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sábado, 29 de janeiro de 2011

Tormentos da Obsessão-Divaldo Pereira Franco

CARO AMIGO: Caso você tenha gostado do livro e tenha condições de comprá-lo, faça-o, pois os direitos autorais são doados.

Muita Paz

 

TORMENTOS DA OBSESSÃO

DIVALDO PEREIRA FRANCO

DITADO PELO ESPÍRITO MANOEL FHILOMENO DE MIRANDA



INTRODUÇÃO

...“Nalguns, ainda muito tenazes são os laços da matéria para permitirem que o Espírito se desprenda das coisas da Terra; a névoa que os envolve tira-lhes a visão do infinito, donde resulta não romperem facilmente com os seus pendores, nem com seus hábitos, não percebendo haja qualquer coisa melhor do que aquilo de que são dotados. Têm a crença nos Espíritos como um simples fato, mas que nada ou bem pouco lhes modifica as tendências instintivas.

Numa palavra: não divisam mais do que um raio de luz, insuficiente a guiá-los e a lhes facultar uma vigorosa aspiração, capaz de lhes sobrepujar as inclinações. Atêm-se mais aos fenômenos do que à moral, que se lhes afigura cediça e monótona. Pedem aos Espíritos que incessantemente os iniciem nos novos ministérios, sem procurar saber se já se tornaram dignos de penetrar os arcanos do Criador. Esses são os espíritas imperfeitos, alguns dos quais ficam a meio caminho ou se afastam de seus irmãos em crença, porque recuam ante a obrigação de se reformarem, ou então guardam as suas simpatias para os que lhes compartilham das fraquezas ou das prevenções. Contudo, a aceitação do princípio da doutrina é um primeiro passo que lhes tornará mais fácil o segundo, noutra existência. Aquele que pode ser; com razão, qualificado de espírita verdadeiro e sincero, se acha em grau superior de adiantamento moral. O Espírito, que nele domina de modo mais completo a matéria, dá-lhe uma percepção mais clara do futuro; os princípios da Doutrina lhe fazem

vibrar fibras que nos outros se conservam inertes. Em suma: é tocado no coração, pelo que inabalável se lhe torna a fé. Um é qual músico que alguns acordes bastam para como­ver; ao passo que outro apenas ouve sons. Reconhece-se o verdadeiro espírita pela sua transformação moral e pelos esforços que emprega para dominar suas inclinações más.”

Allan Kardec (*)

(*) O Evangelho segundo o Espiritismo. Cap. 17º, 52ª ed. FEB, p. 263 e 264.


TORMENTOS DA OBSESSÃO

A obsessão campeia na Terra, em razão da inferioridade de alguns Espíritos que nela habitam.

Mundo de provas e expiações, conforme esclareceu Allan Kardec, é também bendita escola de recuperação e reeducação, onde se matriculam os calcetas e renitentes no mal, que crescerão no rumo da felicidade mediante o contributo das aflições que se lhes fazem indispensáveis.

Alertados para o cumprimento dos deveres morais e espirituais que são parte do programa de crescimento inte­rior de cada qual, somente alguns optam pelo comporta­mento saudável, o que constitui psicoterapia preventiva con­tra quaisquer aflições a que pudessem ser conduzidos. No entanto, aqueles que se tornam descuidados dos compro­missos de auto-iluminação e de paz enveredam pelas trilhas do abuso das faculdades orgânicas, emocionais e mentais, comprometendo-se lamentavelmente com as soberanas Leis da Vida através da agressão e do desrespeito aos irmãos de marcha evolutiva.

Não é, portanto, de estranhar que a inferioridade da­queles que sofrem injustiças e traições, enganos e perver­sidades, os arme com os instrumentos covardes da vingança e da perseguição quando desvestidos da indumentária car­nal, para desforçarem-se daqueles que, por sua vez, foram motivos do seu sofrimento.

Compreendessem, porém, a necessidade do amor e superariam as ocorrências nefastas, desculpando os seus ad­versários e dando-lhes ensejo para repararem o atentado praticado contra a Consciência Divina. No entanto, porque também primários nos sentimentos, resolvem-se pelo desforço, atirando-se nas rudes pugnas obsessivas, nas quais, por sua vez, tornam-se igualmente presas das pai­xões infelizes que combatem nos seus desafetos.

A inteligência e o sentimento demonstram que é muito mais fácil amar ser fiel, construir a paz, implantar o dever, realizar a própria e contribuir em favor da felicidade alheia, do que semear dissabor, cultivar amargura, distender o ódio e o ressentimento. Não obstante, o egoísmo e a crueldade que ainda vigem nas criaturas humanas quase em geral res­pondem pela conduta doentia, impulsionando-as para os desatinos e descalabros que se tornam responsáveis pela sua futura desdita.

Negando-se aos sentimentos elevados, o ser transita pelos sítios tumultuados do desespero a que se entrega, quan­do poderia ascender aos planaltos da harmonia que o aguar­dam com plenitude.

Enquanto permanece esse estado no comportamento humano, as obsessões se transformam em verdadeiro flagelo para todos aqueles que se deixem aprisionar nas suas amar­ras.

A obsessão apresenta-se sob muitos disfarces, tornan­do-se cada vez mais grave na sociedade hodierna que teima em não a reconhecer, nem a considerar

Religiosos apegados a fanatismo injustificável descar­tam-na, acreditando-se credenciados a saná-la onde se manifeste, mediante o poder da fé e a autoridade que se atribu­em.

Acadêmicos vinculados ao cepticismo em torno da imnor­talidade do Espírito nas diversas áreas em que se movimen­tam, especialmente nas denominadas’ ciências da alma, re­cusam-se a aceitá-la, convertendo o ser humano a uma situ­ação reducionista, materialista, que a morte consome, ani­quilan do-o.

Arreligiosos, embriagados pela ilusão dos sentidos ou portadores de empáfia, afirmam-se imunes à enfermidade traiçoeira por indiferença aos elevados fenómenos espiri­tuais, que se multiplicam, volumosos, e são desconsiderados.

Multidões desinformadas da realidade da vida banque­teiam-se na irresponsabilidade, comprometendo-se lamentavelmente através de condutas esdrúxulas e imorais, ge­rando faturas calamidades para cada um dos seus mem­bros.

E mesmo incontável número de adeptos do Espiritis­mo, com profundos esclarecimentos e orientação, não pou­cas vezes opta pela leviandade e arrogância, comprometen­do-se com a retaguarda onde ficam em expectativa aqueles que foram iludidos, defraudados, maltratados pela sua in­sensatez.

A vida sempre convoca à reparação todo aquele que se compromete, perturbando-lhe os estatutos superiores. Nin­guém, que defraude a ordem, deixará de sofrer a conseqüência da atitude irrefletida. Cada ser humano conduz no imo a cruz para o sofrimento ou a transforma em instrumento de ascensão conforme se comporte durante o périplo terreno.

Os sofrimentos, que surpreendem os Espíritos após desvestirem-se da roupagem física, são decorrência natural dos seus próprios atos, assim como as alegrias e bênçãos que desfrutem. Não se tratam, portanto, os primeiros, de punições severas impostas pela Divindade, mas de processo natural de reparação, nem as outras de concessão gratuita oferecidas aos privilegiados. O Amor vige em tudo, facul­tando aos equivocados os sublimes mecanismos para a re­paração dos erros e a edificação no Bem que se encontra ao alcance de todos.

Podemos dizer, portanto, que a obsessão pode ser con­siderada como o choque de retorno da ação infeliz perpe­trada contra alguém que enlouqueceu de dor e de revolta, necessitando de tratamento adequado e urgente.

*

Este livro é mais um brado de alerta aos companheiros da trilha física, para que não se descuidem dos deveres que nos dizem respeito em relação a Deus, ao próximo e a nós mesmos.

Toda semente de ódio, deixada a esmo pelo caminho, sempre se transforma em plantação de infelicidade, propor­cionando colheita de amarguras.

Somente o amor possui o recurso precioso para facul­tar harmonia e alegria de viver.

*

Reunimos, na presente Obra, várias experiências que vivenciamos no Hospital Esperança em nossa Esfera espi­ritual, no qual se encontram internados inúmeros irmãos, falidos e comprometidos com o seu próximo, em lamentá­veis estados de perturbação, sedentos uns de vingança, des­pedaçados outros pelas circunstâncias ultrizes e fatores de desespero a que se entregaram durante a reencarnação, após haverem abandonado os compromissos nobres, que substituíram pela alucinação e pelo transtorno moral que se permitiram.

Nesse Nosocômio espiritual encontram-se recolhidos especialmente pacientes que foram espiritistas fracassados, graças à magnanimidade do Benfeitor Eurípedes Barsanulfo que o ergueu, dando-lhe condição de santuário para a saúde mental e moral, e o administra com incomparável abne­gação auxiliado por outros dedicados servidores do Bem e da Caridade.

Apresentamos a narração de várias vidas e suas histó­rias reais, esperando que sensibilizem aqueles que nos honrarem com a atenção da sua leitura, auxiliando-os a não se permitirem comprometimentos desastrosos semelhantes.

As experiências que recolhemos serão úteis a todos os indivíduos interessados na felicidade pessoal, porque os des­pertarão para os elevados compromissos assumidos peran­te a Consciência Cósmica e os seus Guias espirituais antes do renascimento físico. Não obstante, para outros que co­nhecem a luminosa orientação do Espiritismo, serão mais vivas e penetrantes, por demonstrarem que a crença é muito importante, no entanto, a vivência dos postulados exarados na Codificação tem regime de urgência e não pode nem deve ser postergada.

A muitos companheiros de lide espírita as nossas in­formações causarão estranheza, a outros parecerão fanta­sias de mente em desalinho, porque não encontraram antes informações idênticas em detalhes nas Obras básicas da Doutrina, esquecendo-se que o ilustre mestre de Lyon afir­mou que não estava apresentando a primeira nem a última palavra em torno dos temas que tratava, e que o futuro se encarregaria de confirmar o que estava exarado, ampliar as informações ou corrigir o que estivesse em desacordo com a Ciência. Como nenhuma das afirmações doutrinárias conforme-las ofertou Allan Kardec pôde ser superada ou considerada inexata até este momento, é justo que se lhes possa adir novas lições espirituais, dando prosseguimento às memoráveis experiências de vidas no Além-Túmulo, quais as que se encontram na admirável Obra O Céu e o Inferno, mmarradas com a segurança da sua pena sábia e vigorosa.

Esperando que nossa contribuição espiritual possa au­xiliar algum leitor que nos dignifique com a sua atenção, consciente como estamos da responsabilidade que nos diz respeito, suplicamos as bênçãos do sublime Terapeuta para todos nós, Seus pacientes em recuperação.

Salvador, 15 de janeiro de 2001.

Manoel Philomeno de Miranda


1

ERRO E PUNIÇÃO

Em nossas reuniões habituais com amigos afei­çoados ao dever, não poucas vezes direcionamos as conversações para as questões que dizem respeito àjustiça humana e à justiça divina, assunto palpitante que a todos nos interessa.

Erro e punição, culpa e castigo, dolo e cobrança, fazem parte dos temas que reservamos para análise e debate, considerando o processo de evolução de cada indivíduo em particular e da coletividade em geral.

Muito interessado na problemática obsessiva, di­ante das ocorrências do cotidiano terrestre, chama-me a atenção a grave interferência dos desencarna­dos no comportamento dos homens.

As manchetes sensacionalistas e estarrecedoras, apresentadas pelos periódicos da grande imprensa e o perturbador noticiário da mídia televisiva com es­palhafato e pavor, revelando algumas expressões de sadomasoquismo dos seus divulgadores, na manei­ra de apresentar as tragédias e desgraças da atuali­dade; os comentários em torno da violência, gerando mais indignação e revolta do que propondo soluções, vêm-me despertando crescente sentimento de cons­ternação pelas criaturas, acrescido do lamentável desconhecimento das variadas psicopatologiaS de que são vítimas, assim como das obsessões de que se fazem servas.

Comentando com amigos dedicados aos estudos sociológicos, psicológicos e penalógicos em nossa Esfera de ação, aguardei oportunidade própria para auscultar nobre especialista nessas áreas, com obje­tivo de esclarecer-me, ao tempo em que pudesse ampliar informações e estudos junto aos caros leito­res encarnados, igualmente dedicados às terapias preventiva e curadora dessa enfermidade epidêmica e ultriz.

Nesse estado de espírito, oportunamente fui con­vidado, por afeiçoado servidor de nossa comunida­de, para um encontro íntimo com o venerável Espíri­to Dr. Bezerra de Menezes, numa das suas estâncias entre nós, cuja dedicação à Humanidade, na condi­ção de desencarnadO, se aproximava de um século de ininterrupto humanitarismO, em labor de caridade e iluminação da consciência terrestre.

A reunião fora reservada para pequeno grupo de pesquisadores das terapêuticas próprias para a cri­minalidade e suas conseqüências entre os seres hu­manos reencarnados, havendo sido convidados ape­nas aqueles dedicados ao importante mister.

Em uma área ao ar livre, reservada a tertúlias ín­timas realizadas no Nosocômio, que fora programa­do para obsidiados que faliram nos compromissos terrestres, e que desencarnaram sob o guante dos transtornos psíquicos dessa natureza, teve lugar o encontro abençoado.

Erguido, graças aos esforços e sacrifícios do emi­nente Espírito Eurípedes Barsanulfo, na década de 1930 a 1940, aquele Sanatório passou a recolher des­de então as vítimas da própria incúria, tornando-se um laboratório vivo e pulsante para a análise profun­da das alienações espirituais.

O missionário sacramentano havia constatado ser expressivo o número de almas falidas nos com­promissos relevantes, após haverem recebido as lu­zes do Consolador, e que retornavam à pátria espiri­tual em lamentável estado de desequilíbrio, sofrendo sem consolo na erraticidade inferior. Movido pela compaixão que o caracteriza, empenhou-se e conse­guiu sensibilizar uma expressiva equipe de trabalha­dores espirituais dedicados à psiquiatria, para o so­corro a esses náufragos da ilusão e do desrespeito às soberanas leis da Vida, credores de misericórdia e amparo.

Médiuns levianos, que desrespeitaram o manda­to de que se fizeram portadores; divulgadores des­compromissados com a responsabilidade do esclare­cimento espiritual; servidores que malograram na exe­cução de graves tarefas da beneficência; escritores equipados de instrumentos culturais que deveriam plasmar imagens dignificadoras e que descambaram para as discussões estéreis e as agressões injustifi­cáveis; corações que se responsabilizaram pela edi­ficação da honra em si mesmos, abraçando a fé renovadora, e delinqüiram; mercenários da caridade bela e pura; agentes da simonia no Cristianismo restaura­do ali se encontravam recolhidos, muitos deles após haverem naufragado na experiência carnal, por não terem suportado as pressões dos Espíritos vingado­res, inclementes perseguidores aos quais deveriam conquistar, ao invés de se lhes tornarem vítimas, ex­traviando-se da estrada do reto dever sob sua injun­ção perversa...

Normalmente, naquele Instituto de saúde espiri­tual, se realizavam encontros esclarecedores, quan­do se analisavam as desditosas experiências dos seus pacientes.

Vezes outras, candidatos à reencarnação com ta­refas definidas na mediunidade estagiavam nos seus pavilhões, observando os companheiros que se ilu­diram e foram vencidos, ou escutando-os durante suas catarses significativas ao despertar da consci­ência, dando-se conta do prejuízo que se causaram a si mesmos, assim como aos outros, que arrastaram na sua vertiginosa alucinação.

Verdadeiro Hospital-Escola, constitui um brado enérgico de advertência para os viajores do carro or­gânico, que se comprometeram com as atividades de enobrecimento e de amor.

Foi, portanto, em agradável recanto arborizado, em noite transparente e coroada de estrelas, clarea­da por diáfana e ignota luz, que ouvimos o Apóstolo da caridade entretecendo considerações em torno do erro e da punição, que logo o segue.

Já conhecido, e partícipe de outros cometimen­tos, fui recebido com o seu proverbial carinho e elo­qüente sabedoria, qual sucedera com os demais mem­bros do grupo atencioso.

Após breves instantes de saudações afetuosas e palavras introdutórias a respeito do tema, o venerá­vel Mentor elucidou:

— A problemática do comportamento moral do ser humano encontra-se relacionada com o seu nível de progresso espiritual.

“Por essa razão, Jesus acentuou que mais se pe­dirá àquele a quem mais se deu, considerando-se o grau de responsabilidade pessoal, em razão dos fa­tores predisponentes e preponderantes para a con­duta. Cada indivíduo é a história viva dos seus atos passados. A soma das suas experiências modela-lhe o caráter, as aspirações, o conhecimento e a respon­sabilidade moral. Invariavelmente, ao lado das con­quistas significativas conseguidas em cada etapa reencarnacionista, não raro, gravames e quedas tur­vam a pureza dos seus triunfos, constituindo-lhe em­pecilhos para avanços mais expressivos.’

Soprava uma brisa levemente perfumada, en­quanto ele silenciou por breves segundos, para logo prosseguir:

- Em razão dessa atitude, renascem os Espíritos no clima moral a que fazem jus, nos grupos familiares compatíveis com as suas necessidades, portadores de compromissos próprios para o desenvolvimento dos valores éticos e morais relevantes. Não podendo eliminar as causas precedentes, de alguma forma fa­zem-se acompanhar por afetos ou adversários que se lhes permanecem vinculados à economia evolutiva. É certo que nunca falta, a Espírito algum, o divino amparo, a inspiração e os meios hábeis para o êxito, mas, muitos deles, logo despertam no corpo e atin­gem a idade da razão, são atraidos de retorno aos sítios de onde se deveriam evadir e às viciações que lhes cumpre vencer...

“As tendências inatas, que são reflexos dos com promissos vividos, impelem-nos para as condutas que lhes parecem mais agradáveis e que não lhes exigem esforços para superar. As conexões psíquicas, por afi­nidade, facilitam o intercâmbio com os desafetos da retaguarda, e sem o necessário empenho que, às ve­zes, impõe sacrifício e renúncia, fazem-nos tombar nas urdiduras bem estabelecidas para vencê-los, der­rotá-los no empreendimento que deveria ser liberta­dor.”

Novamente silenciou, e olhando para a grande e significativa construção hospitalar, com iniludível compaixão pelos seus internados, deu prosseguimen­to:

— A justiça está ínsita em a natureza, e o desen­volvimento moral do ser amplia-lhe os conteúdos su­blimes na consciência. A aplicação dos códigos da justiça na Terra vem-se dando conforme o grau de responsabilidade humana e o seu aprimoramento moral. Das grotescas e impiedosas punições do bar­barismo e da Idade Média, para a moderna visão da ciência da Penalogia, houve uma identificação maior da mente humana com a justiça divina, lentamente incorporada aos códigos legais terrestres. Ainda se está longe de uma justiça saudável e igualitária para todos, não obstante, já se pensa em diretrizes huma­nitárias a serem utilizadas, dignificando o delinqüen­te antes que apenas o punindo. Isso porque o con­ceito sobre a justiça de Deus, mediante a evolução do pensamento e da consciência, elimina a arbitrari­edade e a crueldade que Lhe eram atribuídas, a fim de apresentá-lO como misericórdia e amor, que ofe­recem métodos de reeducação construtiva e terapeu­tica para todos os males, conforme se detecta na con­ ceituação atual da doutrina da reencarnação.

“Quase sempre, quando se pensa em justiça, imediatamente ocorre o pensamento em torno do componente da punição, como se a sua fosse a finali­dade do castigo, e jamais da equanimidade, da pre­servação da ordem e do dever. Tão associado tem-lhe estado esse reflexo, que se confunde o seu minis­tério de preservar o equilíbrio do indivíduo, da mas­sa e das nações, mediante medidas coercitivas da liberdade, ao lado de recessões, embargos de alimen­tos e remédios, e dilacerações físicas, psicológicas e morais destruidoras do sentido da vida.

“Um estudo profundo, à luz da psicologia, facul­ta identificar-se no delinqüente um enfermo emocio­nal, cujas raízes do desequilíbrio se encontram nas experiências transatas das existências. Culpa, remor­so, desarmonia interior, desamor, que foram vivenci­ados, refletem-se em forma de comportamentos trans­tornados e atitudes infelizes que desbordam nas vá­rias expressões do crime. Conseqüentemente, assis­tência específica, na mesma área psicológica, deve­ria ser utilizada para recuperar o paciente infeliz e conceder-lhe o direito à reabilitação, ao resgate do erro perante a vítima e a sociedade.”

Pensativo, como se estivesse melhor organizan­do a argumentação, fez nova pausa, logo dando pros­seguimento:

- Além desses fatores psicológicos, outros mais, quando deficientes contribuem para o erro da criatu­ra humana, quais sejam: a educação no lar e a convi­vência familiar, o meio social, os recursos financeiros e o trabalho, a recreação e a saúde, que desempe­nham papel de infinita importância na construção da personalidade e no desenvolvimento dos sentimen­tos. Em uma sociedade justa, há predominância dos valores de que se desincumbem airosamente os go­vernantes, dando conta das responsabilidades que assumiram perante o povo, sempre vigilantes no que diz respeito aos deveres em relação às massas. Infe­lizmente, ainda não viceja genericamente essa cons­ciência, o que responde pelos altos índices da vio­lência e da criminalidade, em razão das fugas espe­taculares pelas drogas químicas, pela anarquia, pelo desbordar das paixões a que se entregam os indiví­duos mais frágeis moralmente. Isso faculta-lhes a eventualidade da prática do delito, conforme se pode constatar na literatura do passado e do presente. Fe­dor Dostoiewski, na sua famosa obra Crime e Casti­go, bem descreve os tormentos da personagem Raskolnikof que, apesar de ser um homem honrado e portador de sentimentos nobres, terminou por come­ter atrocidades sem limites contra as suas vítimas, a fim de apropriar-se dos valores que possuíam, parti­cularmente da atormentada usurária, que ele passou a detestar. Diversos autores, como Victor Hugo, Char­les Dickens, Arthur Müller e muitos outros, utilizan­do-se deste fator eventual, apresentam criminosos que se tornam simpáticos aos seus leitores, porque foram levados ao crime por circunstâncias ocasionais, desde que, portadores de elevados princípios, viram-se na contingência de errar, recebendo em troca pu­nições perversas e injustas.

“O erro é sombra que acompanha aquele que o pratica até que se dilua mediante a luz clara da repa­ração. Providenciados os meios hábeis para a reno­vação do equivocado, reeducando-o para a convivência social, é justo se lhe conceda o ensejo de prosse­guir construindo o futuro, enquanto se sente libera­do do desequilíbrio praticado.”

A fim de conceder-nos ensejo de bem aprofun­dar reflexões, o amorável amigo fez uma nova pausa, e concluiu:

— Dia virá em que os estudiosos do comportamen­to criminoso da criatura humana perceberão, além desses fatores que levam à delinqüência, um outro muito mais grave e sutil, que necessita de profun­dos estudos, a fim de que se criem novos códigos de justiça para os infratores colhidos por essa inci­dência. Referimo-nos à obsessão, quando Espíri­tos adversários, desejando interromper-lhes a mar­cha evolutiva, induzem-nos à prática de delitos de toda ordem, tornando-se co-autores de incontáveis agressões criminosas, que muitas vezes redundam em acontecimentos infaustos, irreversíveis. Traba­lhando lentamente o campo mental das vítimas com as quais se hospedam psiquicamente, terminam por inspirar-lhes sentimentos vis, armando-as contra aqueles que, por uma ou outra circunstância, se lhes tornam inimigos, com ou sem razão. Transfor­mando-se em adversários incansáveis, obstinada-mente as perseguem ou as enfrentam em comba­tes de violência, que terminam em tragédias... Sob outro aspecto, esses Espíritos utilizam-se daque­les com os quais têm sintonia mental e moral, para se desforçarem de quem os prejudicou anteriormen­te, e agora não são alcançados pela sua sordidez nem perversidade, praticando homicídios espiritu­ais hediondos. As obsessões, nessa área, são mui­to expressivas. Seria o caso de examinar-se se a personagem de Dostoiewski não teria sido vítima de algum adversário desencarnado pessoal ou se não houvera conseguido sintonizar com aqueles que se compraziam em odiar todos quantos lhe tom­baram nas cruas perversidades!

“O erro, em si mesmo, gera um clima psíquico nefasto, que atrai Espíritos semelhantes ao que se compromete moralmente, passando a manter siste­mática sintonia e comércio emocional continuado. O castigo geral aplicado a todos quantos se fazem víti­mas da criminalidade, sem diferença de situação ou conteúdo espiritual, torna-se injusto e mesmo odien­to, transferindo-se para o mundo espiritual os efeitos desses conúbios desastrosos.

“A Divindade, porém, vela, e as Suas Leis sábias alcançam inapelavelmente todos os seres da Criação, facultando o processo evolutivo, mediante o qual será possível a felicidade que se anela.

“Cuidemo-nos, todos nós, de nos preservar do mal, suplicando o divino socorro, conforme propôs o incomparável Mestre, na Sua Oração dominical, bus­cando-Lhe o amparo e a inspiração, a fim de poder­mos transitar com equilíbrio pelos difíceis caminhos da ascensão espiritual.”

Silenciou, o bondoso amigo, deixando-nos mate­rial expressivo para reflexão.

Despedindo-se momentaneamente, prometeu dar prosseguimento ao tema fascinante que é a obses­são, nesse aspecto, quase desconhecida.


2

O SANATÓRIO ESPERANÇA

Terminado o colóquio com o venerável Benfeitor Dr. Bezerra de Menezes, continuamos entretecendo comentários em torno do assunto ventilado, quando senti interesse de aprofundar conhecimentos em tor­no do Sanatório Esperança, onde anteriormente tive­ra oportunidade de realizar estudos sobre a obses­são, bem como experienciar outras atividades espiri­tuais.

Embora informado da finalidade do admirável No­socômio, desconhecia detalhes da sua fundação.

Apresentando-se própria a ocasião, face à pre­sença em nosso grupo de um dos seus atuais direto­res, o Dr. Ignácio Ferreira, que fora na Terra eminente médico uberabense, interroguei ao amigo gentil, so­bre a história daquele Santuário dedicado à saúde mental, e ele, bondosamente respondeu:

— Quando ainda reencarnado, Eurípedes Barsa­nulfo foi portador de verdadeiro medianato, porqüan­to conduziu as faculdades mediúnicas, de que era ins­trumento, dentro dos postulados enobrecedores da caridade e do amor, em uma vivência aureolada de exemplos de renúncia e de abnegação, havendo sido também educador emérito. Em razão dessas suas ad­miráveis faculdades, dedicou-se a atender os porta­dores de alienação mental, psiquiátrica e obsessiva, erguendo um Hospital na cidade em que nascera, para socorrê-los. Conseguiu, naquele tempo, resultados incomuns, favorecendo os enfermos com a reconquis­ta do equilíbrio. Não obstante a terapêutica acadê­mica vigente, e que ele não podia aplicar, por não ser habilitado a exercer a Medicina nessa área, era a sua própria força moral que lograva o maior número de recuperações, face à bondade que expressava em re­lação aos pacientes desencarnados, assim como a mi­sericórdia de que se utilizava para atender os pade­centes dos graves transtornos psíquicos.

“Ser interexistente, viveu como apóstolo da cari­dade, possuindo extraordinários potenciais curado­res e especial acuidade como receitista espiritual, dedicado ao socorro dos menos felizes.

“Nunca se negou a socorrer quem quer que fos­se, mesmo àqueles que o perseguiam de forma incle­mente, e que, ao enfermarem, não encontrando re­cursos hábeis para o reequilíbrio, buscavam-no, dele recebendo o concurso superior para o prosseguimen­to da jornada evolutiva.

“Desencarnando jovem, vitimado pela epidemia da gripe espanhola, que assolou o mundo, prosseguiu como missionário de Jesus amparando milhares de vidas que se lhe vincularam, especialmente na região por onde deambulara na recente existência encerra­da.

“O seu nome tornou-se bandeira de esperança, e com um grupo de cooperadores devotados ao Bem, alargou o campo de trabalho socorrista, ampliando as áreas de atendimento sob a inspiração do Psicote­rapeuta por excelência.”

Sinceramente comovido, ante a evocação dos atos de caridade do eminente Espírito, prosseguiu, sere­namente narrando:

- Não se limitando a socorrer exclusivamente os viandantes do carro físico, acompanhou, também, após a desencarnação, muitos daqueles que lhe re­ceberam o concurso, neles constatando o estado de­plorável em que retornavam à Pátria, vencidos por perseguidores cruéis que os obsidiavam, ou vitima­dos por ideoplastias terríveis derivadas dos atos a que se entregaram, enlouquecendo de vergonha, de dor e de desespero após o portal do túmulo.

“Formando verdadeiras legiões de alienados mentais, que se agrediam, uns aos outros, chafurdan­do em paisagens de sombra e angústia, constituídas por abismos de sofrimentos insuportáveis, condoeu-se particularmente, por identificar que muitos deles haviam recebido o patrimônio da mediunidade ilu­minada pelas lições libertadoras do Espiritismo, mas preferiram enveredar pelos dédalos da irresponsabi­lidade, utilizando-se da superior concessão para o deleite de si mesmos e das paixões mais vis que pas­saram a cultivar. Outros tantos corromperam a pala­vra iluminativa, de que se fizeram instrumentos, uti­lizando-a para atender aos interesses escusos, ou negociar favores terrestres com desprezo pela opor­tunidade de edificação de muitas vidas que lhes aguardavam o contributo. Diversos mercadejaram os dons espirituais, tombando sob o vampirismo propi­ciado por verdugos do passado, que se compraziam em empurrá-los para mais graves despautérios, com­prometendo-lhes a reencarnação.

“Diante da massa imensa de desesperados que haviam conhecido as diretrizes para a felicidade, mediante o serviço dignificante e restaurador dos ensinamentos de Jesus, mas que preferiram os jogos doentios dos prazeres exorbitantes, o missionário compadecido buscou o apoio dos Benfeitores de mais Alto, para que conduzissem a Jesus uma proposta sua, caracterizada pelo interesse de edificação de um Nosocômio espiritual, especializado em loucura, para aqueles que desequilíbrio apresentassem após a mor­te do corpo físico, e que também serviria de Escola viva, como igualmente de laboratório, para a prepa­ração das suas reencarnações futuras em estado me­nos doloroso e com possibilidades mais seguras de recuperação.

“Após deferido o seu requerimento de beneficên­cia, suplicou ao nobre Espírito Agostinho de Hipona, que na Terra o houvera auxiliado e inspirado no mi­nistério abraçado, que se tornasse o intermediário das futuras necessidades da Instituição em surgimento junto ao Médico divino, a Quem suplicava bênçãos em favor da obra.

“Havendo o sábio cristão, autor das Confissões e de outros memoráveis trabalhos, aquiescido em in­termediar os apelos do trabalhador do Bem junto ao Senhor Jesus, foi permitida a edificação do refúgio e abrigo especial para os doentes da alma, que se en­contrassem sob tormentosas alucinações nos antros escusos da erraticidade inferior.”

O bondoso narrador concedeu-nos uma pausa para apreensão da surpreendente história, logo con­tinuando:

— Eurípedes providenciou a convocação de ad­miráveis psiquiatras e psicólogos desencarnados, que haviam na Terra cuidado das desafiadoras patologi­as obsessivas e auto-obsessivas, de forma que, pre­parada a Equipe, foram tomados os cuidados própri­os para a edificação do Sanatório, situado nesta área distante do movimento da comunidade espiritual, a fim de que as bênçãos da Natureza contribuíssem também com elementos próprios para acalmar as suas torpes alucinações e ensejar-lhes renovação e paz.

“Obedecendo a um plano cuidadoso, foram er­guidos diversos blocos, que deveriam atender a pa­tologias específicas, tais como delírios graves, pos­sessões de longo porte, consciências autopunitivas, desespero por conflitos íntimos, fixações mórbidas, hebetação mental, autismo conseqüente a arrepen­dimentos tardios, esquizofrenias tenebros as, obsessões compulsivas, etc.

“A região, amplamente arborizada, absorve o im­pacto vibratório dos tormentos que se exteriorizam dos conjuntos bem desenhados e das clínicas de re­pouso, para onde são transferidos aqueles que se encontram em processo de recuperação.

“Hábeis psicoterapeutas movimentam-se no abençoado complexo, auxiliados por devotado corpo de paramédicos, todos habilmente preparados para esse ministério de alta magnitude, demonstrando quanto é forte o liame do dever com amor, no atendi­mento ao desespero e à loucura.

“Afinal, a vida se expressa com intensidade no corpo e fora dele, sendo que, na sua realidade causal, mais significativas e vigorosas são as energias que compõem o ser, produzindo ressonâncias no futuro organismo somático, que vivenciará todas as ações desenvolvidas.

“Desse modo, os métodos de atendimento aos enfermos espirituais são fundamentados no profun­do conhecimento do ser, das suas necessidades, dos fatores que levam ao fracasso os empreendimentos nobilitantes, das injunções penosas provocadas pelo intercâmbio com Entidades infelizes e perversas, dos desequilíbrios íntimos por acomodação e aceitação da vulgaridade e do crime...

“Muitos companheiros doentes, aqui internados, portadores de outras patologias, foram aquinhoados com a dádiva da constatação da continuidade da vida após o decesso tumular, e, não obstante esse conhe­cimento, utilizaram das faculdades mediúnicas para dar vazão aos tormentos pretéritos ainda vivos no inconsciente, que deveriam vencer a qualquer pre­ço.”

Enquanto o gentil psiquiatra silenciou por bre­ves momentos, pus-me a reflexionar: — sempre me chamaram atenção aqueles irmãos que foram vítimas das expressões sexuais desequilibradas, e que não souberam canalizar nobremente as energias repro­dutoras, deixando-se consumir pelos vícios hedion­dos, que os perturbaram profundamente. Não pou­cos deles mantiveram durante a existência carnal a ambigüidade de comportamento, apresentando-se externamente de maneira correta, mas vivendo sór­didos conúbios mentais com Entidades promíscuas, em extravagantes e contínuas perversões a que se entregavam à hora de dormir, dessa forma mantendo comunhão estreita com as mesmas, que se haviam degenerado e os atraíam para os redutos mais abje­tos, tais os lupanares antigos e motéis modernos, que lhes servem de habitação...

Utilizando-me, então, daquela breve pausa, in­terroguei com interesse de aprender:

— Aqui são albergados também portadores de dis­túrbios sexuais, que contribuíram para desastrosas condutas na área da mediunidade?

Sempre gentil, o caro médico elucidou:

— Como sabemos, o sexo é santuário da vida, que não pode ser perturbado sem tormentosas conse­qüências para o seu depositário. Em razão disso, mui­tos distúrbios de comportamento têm suas matrizes nos mecanismos sexuais íntimos. Os seus aspectos e sinistras vinculações sempre produzem dolorosa compunção, por vê-los se negarem a despertar para a realidade, enlanguescidos e sofridos nos estados de depauperamento da energia vital, mesmo quando socorridos e amparados... O vício se lhes instala nos tecidos delicados do Espírito como necessidades se­melhantes aos tormentosos processos da toxicoma­nia e do alcoolismo, que tantos males causam à Hu­manidade terrestre que estagia no corpo físico e fora dele.

“Estudadas as energias variadas que compõem o complexo espiritual de cada indivíduo, abnegados especialistas em sexologia aqui trabalham, ajudan­do os que vieram recambiados para este Centro de socorro, utilizando dos recursos próprios e correspon­dentes, de modo a agirem nas causas dos dramas que se desenrolaram por largo tempo, revigorando cada paciente com as incomparáveis lições de Jesus.”

Novamente silenciou, para logo dar prossegui mento à narrativa interessante:

— Face à sua profunda vinculação com o Divino Médico, à entrada do amplo pavilhão central, Eurípe­des mandou inscrever o lapidar conceito kardequia­no Fora da Caridade não há salvação, revivendo os exemplos do Senhor, que todos deveriam insculpir com vigor no imo, a fim de que o amor jamais diminu­ísse de intensidade no ministério socorrista, fossem quais fossem os resultados do labor em desenvolvi­mento ou conforme o enfrentamento dos desafios.

“Equipes adestradas recolhem novos pacientes com freqüência, conforme as possibilidades que es­ses lhes ofereçam, nas regiões punitivas para onde resvalam, facultando-lhes a honra da misericórdia de acréscimo que procede do Pai magnânimo, sempre àespera do filho displicente ou rebelde.

“É, sem dúvida, deplorável, o estado em que mui­tos aqui chegam, lutando contra as idéias mantidas durante o corpo e atormentados pelas visões que cul­tivaram durante a vilegiatura carnal, apresentando no perispírito todas as mazelas do seu desrespeito às soberanas leis da Vida. Não poucos deles aqui são instalados, mantendo a imantação psíquica com os inimigos cruéis, que também passam a receber as­sistência conveniente, libertando-os a pouco e pou­co das incríveis fixações e vampirizações a que se entregam.

“Para esse fim, uma ampla enfermaria de recep­ção acolhe a todos os recém-chegados, após o que são examinados por diligentes psicoterapeutas, que os encaminham aos respectivos núcleos onde pode­rão desfrutar do atendimento correspondente às suas necessidades.

“Todos, sem exceção, recebem assistência mui­to carinhosa, sem que, em qualquer circunstância, seja desrespeitado o livre arbítrio do perseguidor ou daquele que se permite dominar.”

E porque fizesse nova pausa, como se esperasse por alguma indagação, para mais esclarecer, atrevi­me a interrogar:

— Do fato de haverem sido atendidos esses Espí­ritos enfermos, ocorre, vez que outra, alguma evasão ou retorno aos sítios de onde viveram?

Sem demonstrar enfado, o bondoso psiquiatra elu­cidou:

- Face à circunstância do respeito ao livre arbí­trio de cada qual, com relativa freqüência muitos in­ternos, atraídos psiquicamente pelos seus verdugos, retornam aos sítios de hediondez de onde foram re­movidos, por perfeita identificação de interesses e afinidade moral mantida entre eles... Não há impedi­mento para essa ocorrência, em se considerando o direito de cada qual evoluir conforme as próprias pos­sibilidades, embora os impositivos expiatórios que, na ocasião adequada, alteram o comportamento da­queles que se permitem enlanguescer na indiferen­ça, longe de qualquer propósito de renovação...

‘Aqui, além do ministério de recuperação de pa­cientes mentais, em razão da sua especialidade, mui­tos candidatos a reencarnações como futuros psico­terapeutas e estudiosos da alma, conforme a visão das modernas Doutrinas transpessoais, vêm fazendo estágio, a fim de adquirirem conhecimentos para li­dar com os problemas volumosos da obsessão, dos transtornos psicológicos e das psicopatologias que se apresentam cada vez mais dominadoras na sociedade contemporânea.

“Por outro lado, nobres pioneiros da hipnose como dos estudos da histeria, da psiquiatria, da psi­canálise e de outras doutrinas correlatas, visitam com certa constância o respeitável Sanatório, para colher dados e aprimorar conhecimentos, alterar ou aprofun­dar informações que ficaram paralisadas, quando dei­xaram o corpo carnal na Terra...

“De Thomas Willis, o psiquiatra inglês do século 15II, a Filipe Pinel, de Mesmer a James Braid, de Wi­lhelm Griesinger a Kraepelin, a Charcot, a Freud, a Jung, apenas para nos referir a alguns dos cultos vi­sitantes, muitas aulas têm sido ministradas, e deba­tes são estabelecidos para que se encontrem os me­lhores métodos terapêuticos para imediata aplicação, não apenas nos internos como em favor dos viandan­tes da Terra, especialmente considerando-se a fragi­lidade das forças morais de muitos candidatos ao equilíbrio e à fidelidade aos postulados do dever, quando mergulham na carne.

“Muitos daqueles mestres do passado, que con­tribuíram para alargar o conhecimento em torno da psique humana, davam-se e dão-se conta agora ante o espetáculo truanesco e grandioso da vida em triun­fo sobre a transitoriedade da matéria, da sabedoria incomparável de Jesus, quando conclamou as criatu­ras ao amor e à compaixão, à conduta reta em favor da vida futura, indestrutível, conforme o demonstrou com a Sua própria ressurreição...

“Outrossim, muitos deles não conheceram o tra­balho incomum de Allan Kardec, especialmente no que diz respeito às psicopatologias por obsessão, igualmente tratadas por Jesus, e raros, que poderi am haver pesquisado o valioso contributo do mestre lionês, não o fizeram por preconceito acadêmico, e tudo quanto ignoravam nessa área preferiram situar no verbete Ocultismo, pronunciado de maneira de­preciativa.

“Algumas das tentativas terapêuticas de que fo­ram iniciadores esses visitantes e ilustres mestres, agora são aqui aplicadas com eficiência, pelo fato de produzirem o efeito desejado no campo energético de onde procedem os fenômenos psicológicos e psi­quiátricos, sede, portanto, do ser integral, espiritual, que somos todas as criaturas.

“Não ignoramos, todos os que aqui estagiamos, que qualquer tipo de enfermidade tem no Espírito a sua origem, face à conduta mental, emocional e mo­ral que o mesmo se permite, produzindo transtorno vibratório que se refletirá na área correspondente do corpo perispiritual, e mais tarde no físico. Somente agindo-se no mesmo nível e campo, propondo-se si­multaneamente a mudança de atitude psíquica e com­portamental do paciente, se pode aguardar resulta­dos satisfatórios na correspondente manifestação da saúde.”

Novamente interrompeu a surpreendente expli­cação, para prosseguir:

— Musicoterapia, preceterapia, amorterapia são as bases de todos os procedimentos aqui praticados, que se multiplicam em diversificados métodos de atendimento aos sofredores, conforme as síndromes, a extensão do distúrbio, a gravidade do problema. Concomitantemente, as indiscutíveis terapias desob­sessivas recebem cuidados especiais, particularmen­te nos processos de vampirização, para liberar aqueles que submetem as suas vítimas, internando-os logo depois para tratamento de longo curso; para cirurgi­as perispirituais de retirada de implantes perturbadores, que foram fixados no cérebro e prosseguem vibrando na área correspondente do psicossoma; para momentosas regressões a experiências pregressas em cujas vivências se originaram os enfrentamentos e os ódios, demonstrando-se que, inocentes, realmen­te não existem ante a Consciência Cósmica; para li­beração de hipnoses profundas; para reestruturação do pensamento danificado pelas altas cargas de vi­brações deletérias desde a vida física; para reencon­tros com afetos preocupados com a recuperação de cada um daqueles pertencentes à sua família emocional...

“Por outro lado, a fluidoterapia muito bem apli­cada produz efeitos surpreendentes, tendo-se em vis­ta aqueles que a utilizam, movimentando energias internas e trabalhando as da Natureza, que são dire­cionadas aos centros perispirituais e chakras, agin­do no intrincado mecanismo das forças energéticas que constituem o Espírito.

“O amor, porém, e a paciência, — acentuou com ênfase — assumem primazia em todos os processos socorristas, procurando amenizar a angústia e o de­sespero daqueles que se enganaram a si mesmos e sofrem as lamentáveis conseqüências.

“Convidados especiais, para a psicoterapia me­diante palestras comovedoras e ricas de ensinamen­tos libertadores dos vícios, evocando vultos e acon­tecimentos históricos que merecem ser repensados, apresentam-se com assiduidade, fazendo parte do programa terapêutico deste Núcleo de Esperança, que­ sempre representa o Amor que nunca falta e pacien­temente aguarda.”

Havendo silenciado, algo comovido, deixou-nos o conforto que deflui da bondade de Deus, jamais de­samparando os filhos rebeldes, que preferem os ca­minhos tormentosos, quando poderiam haver segui­do a estrada do bem e do dever sem tropeços.

E porque a noite se encontrasse coroada de es­trelas e um perfume balsâmico bailasse no ar, à me­dida que o grupo se diluiu, cada qual buscando o repouso ou as atividades que deveria desempenhar, continuamos no local, reflexionando.


3

REMINISCÊNCIAS

As informações do Dr. Ignácio Ferreira deram-nos a dimensão perfeita da grandeza espiritual de Eurí­pedes Barsanulfo, cuja dedicação à vivência do Evan­gelho, à luz do Espiritismo, dele fizera um verdadeiro apóstolo da Era Nova.

Dando prosseguimento ao seu ministério de amor ao Mestre através do próximo colhido pelo vendaval da alucinação, com um grupo de abnegados mensa­geiros da luz erguera, sem medir esforços, aquele Nosocômio para o socorro aos enfermos da alma e o estudo preventivo da loucura, assim como das tera­pias próprias, com especificidade na área dos trans­tornos obsessivos de natureza mediúnica atormen­tada.

Sem dúvida, sendo a mediunidade uma faculda­de inerente ao Espírito, que a deve dignificar medi­ante o seu correto exercício, todos os seres humanos, de alguma forma, são-lhe portadores.

Quando se expressa mais ostensivamente, em razão de compromissos espirituais anteriores, é cam­po muito vasto a joeirar, exigindo comportamento consentâneo com a magnitude de que se reveste. Ao mesmo tempo, em razão das defecções e conquistas morais do seu possuidor, situa-se em faixa vibratória correspondente ao grau evolutivo do mesmo, produ­zindo sintonia com Entidades que lhe correspondem ao apelo de ondas equivalentes.

Assim sendo, torna-se veículo dos pensamentos e induções próprios à sintonia, todos aqueles, encar­nados ou não, que são semelhantes aos sentimentos do médium.

Por isso mesmo, quando irrompe a mediunida­de, não raro, se transforma em grave tormento para o seu portador, por colocá-lo em campo diferente do habitual, expondo-o às mais diferentes condutas mo­rais e mentais, procedentes do mundo espiritual, e que se sucedem de maneira volumosa e perturbado­ra.

Desequipado de conhecimento e de recursos para contrabalançar as ondas psíquicas e as sensações fí­sicas delas decorrentes, experimenta distúrbios ner­vosos, tais a ansiedade, a depressão, a insegurança, o mal-estar físico, as cefalalgias, os problemas de es­tômago, de intestinos, as tonturas, e que resultam da absorção das energias negativas que lhe são direci­onadas pelos próprios adversários, assim como por outros Espíritos, perversos uns, zombeteiros outros, malquerentes quase todos eles...

É certo que jamais escasseia a misericórdia divi­na através do amor, da inspiração que verte do seu Guia espiritual na sua direção, das induções para a prática das virtudes, da oração e do dever, mas que nem sempre são captadas e decodificadas conforme seria necessário para os resultados imediatos.

Pela tendência à acomodação e por decorrência das más inclinações que vicejam do passado de onde cada qual procede, mais facilmente se dá guarida às vinculações malfazejas do que à condução superior.

Quando, no entanto, o medianeiro toma conheci­mento das lições educativas do Espiritismo, especi­almente através das diretrizes seguras de O Livro dos Médiuns, de Allan Kardec, o roteiro de segurança se lhe desenha com maior eficiência, convidando-o a submeter-se ao compromisso sério de trabalhar pelo próprio como pelo bem comum.

À medida que se moraliza, o médium se equipa de resistências para vencer as perseguições espiri­tuais, que são um grande entrave ao êxito do seu mi­nistério, particularmente tendo em vista as paixões inferiores que constituem um grande desafio a en­frentar a todo momento.

A mediunidade, portanto, pode ser uma prova­ção dolorosa, que se transforma em tarefa de ascen­são, ou um sublime labor missionário que, assim mes­mo, não isenta o indivíduo dos testemunhos, das di­ficuldades, das renúncias e da vigilância constante que deve manter.

Durante a mais recente vilegiatura terrena, lidan­do com portadores de mediunidade, acompanhamos não poucos indivíduos que derraparam em terríveis enganos, açodados pelos seus inimigos desencarna­dos, que lhes não concediam trégua. Isso acontecia, porque neles encontravam tomadas psíquicas para acoplarem os seus plugs, o que lhes permitia o inter­câmbio sistemático e contínuo.

Recordo-me, por exemplo, do irmão Ludgério, que se iniciara no hábito destrutivo do alcoolismo desde muito jovem.

Portador de faculdade mediúnica atormentada, por necessidade reparadora, foi reencontrado pelos inimigos desencarnados que, desde cedo, aos doze anos aproximadamente, o induziram à ingestão de bebidas alcóolicas, inicialmente nas festas familia­res e nas de caráter popular muito comuns na cidade onde residia, para o arrastarem por longos anos aos mais abjetos comportamentos e experiências infeli­zes.

Quando, pela primeira vez, travamos contato pes­soal com esse paciente, defrontamo-lo, excitado e pro­vocador, na sala das palestras doutrinárias da Casa Espírita onde mourejávamos.

Havia terminado a reunião, dedicada ao estudo de O Livro dos Espíritos, de Allan Kardec, quando ele se adentrou pelo recinto, visivelmente embriagado, agressivo, utilizando-se de palavras vulgares e ges­tos grosseiros para fazer-se notado.

Gentilmente atendido por um dos membros da Instituição, desatou em gritaria e ameaças, que cria­ram um constrangimento geral entre as pessoas que se encontravam de saída e aqueloutras que perma­neciam em conversação saudável e despedidas.

O nobre diretor da Casa, o irmão José Petitinga, que se mantinha entretecendo considerações sobre o tema abordado junto a um grupo de interessados, foi atraído pelo alarido inusitado, e acercou-se do en­fermo, a fim de o atender. Com muita habilidade, to­cando-lhe o braço e envolvendo-o em suave magne­tismo, retirou-o da sala pública, conduzindo-o para um cômodo mais discreto, onde procurou dialogar com paciência e misericórdia.

Era totalmente impossível qualquer conversação edificante, em razão do estado de alcoolismo do visi­tante inesperado, cujos centros do discernimento e da lógica se encontravam bloqueados. Assim mes­mo, as palavras gentis do abnegado diretor provoca­ram mais rebeldia nos comparsas espirituais, que se locupletavam com os vapores alcoólicos que absor­viam através do enfermo da alma, logo deixando-o, após imprecações e promessas de vinditas em altos brados, sem que conseguissem atemorizar ou pertur­bar o psicoterapeuta sereno.

Ato contínuo, o paciente, sem o suporte fluídico dos seus perseguidores, entrou em ligeira convulsão, tremendo e vomitando violentamente, causando pro­funda compaixão. Logo depois desmaiou, permane­cendo inconsciente por alguns minutos, tomado de palidez mortal e débil respiração.

Formando um círculo de orações, Petitinga, eu e mais alguns companheiros, envolvemo-lo em vibra­ções de revigoramento, aplicando-lhe passes restau­radores de energias, que lhe facultaram recuperar a consciência vagarosamente.

Passados esses momentos mais graves, a cari­dade cristã socorreu-o, conforme as circunstâncias do momento, envolvendo-o em esperanças e promessas de paz.

Após ser-lhe providenciado o concurso monetá­rio para alguma refeição, Ludgério afastou-se, ga­nhando a praça ensolarada...

A impressão que nos deixou foi muito dolorosa. Tratava-se de um jovem de aproximadamente vinte e oito anos, que demonstrava o desgaste produzido pelo alcoolismo e a insegurança derivada do processo ob­sessivo pertinaz quão dilacerador.

A partir desse incidente, inspirado pelos seus Guias espirituais, ele retornou, em estado de sobrie­dade, às reuniões doutrinárias, uma ou outra vez, quando se comportava com relativa calma. Avança­do o fenômeno obsessivo, já assinalava marcas irre­versíveis nas telas mentais do paciente, que o leva­vam a confundir os conceitos que ouvia e a supor-se facilmente ofendido, quando algo o desagradava.

Normalmente era de trato irritável, de maneiras rudes e possuidor de ego muito sensível, que o ar­mava contra as demais pessoas que sequer o podi­am olhar, produzindo-lhe sempre a idéia falsa de que o estavam censurando.

Na complexidade desse problema obsessivo de­frontamos: primeiro, o paciente soberbo, cuja dor não lhe alterara a conduta da existência anterior, quando malograra, exatamente na faixa do comportamento obstinado e violento, traindo lembranças de poder e ostentação, que lhe davam um aspecto quase ridícu­lo de prepotência entre farrapos e imundície; e, se­gundo, os inimigos, insolentes e perversos, aqueles que padeceram nas suas mãos impiedosas, e hoje buscavam desforçar-se sem qualquer escrúpulo. A pugna se instalara quando, identificado na atual re­encarnação pelas suas antigas vítimas, passou à con­vivência psíquica dominadora, conduzido ao vício, no qual experimentava prazer, facultando-lhe descarre­gar as complexas excentricidades que lhe remanes­ciam no inconsciente.

Podia-se perceber a extensão do ódio que viceja­va entre ambos, comparsas do comprometimento, por quanto, esclarecido quanto à interferência desses Espíritos em sua conduta, Ludgério reagia entre blas­fêmias e maldições, que denotavam a rebeldia que lhe era peculiar, facultando o campo vibratório espe­cífico para maior intercâmbio com os perseguidores. Esses, por sua vez, desejavam derrotá-lo cada vez mais, não se contentando em vê-lo jogado à ruína fí­sica, moral, mental, econômica, sem qualquer amigo, dormindo em verdadeiras pocilgas, nas ruas imun­das do hórrido bas fond onde permanecia semi-he­betado... Planejavam recebê-lo, após exaurir-lhe as energias animais por vampirização, além do portal do túmulo para darem prosseguimento ao conúbio vin­gador.

Em uma das oportunidades em que se encontra­va lúcido e com relativa paz, mantivemos uma con­versação mais calma, havendo recolhido dados mui­to importantes para uma anamnese do seu caso e estudo cuidadoso da questão tormentosa, que sem­pre me despertava profundo interesse espiritual.

Narrou-nos que, desde a primeira infância, era acometido de sonhos terrificantos, nos quais seres monstruosos perseguiam-no, ameaçando destruí-lo por meio de formas as mais terríveis que se possa imaginar. Sempre despertava daqueles sombrios pe­sadelos banhado em álgido suor e apavorado. As som­bras da noite passaram a ser-lhe um incomparável tormento.

Não tendo renascido em lar equilibrado, conse­qüência compreensível, porque decorrente da con­duta anterior vivenciada, os pais não lhe proporcio­naram o carinho necessário, antes repreendendo-o, surrando-o sem aparente motivo, e obrigando-o a silenciar o sofrimento, que se lhe foi agigantando, a ponto de passar a temer as noites e o sono. Lenta-mente se lhe instalaram no imo sentimentos de ira e mágoa contra os genitores, transferindo-os para os demais irmãos, que com ele não mantinham bom re­lacionamento, de algum modo por efeito da sua pró­pria constituição temperamental.

Freqüentou a Escola pública para o curso primá­rio, sempre depressivo e atemorizado, expressando conduta anti-social, até que, aos doze anos, experi­mentou o primeiro trago, no próprio lar, por ocasião do aniversário do genitor. A partir daí, após uma alu­cinação que o venceu, criando tumulto e sendo sova­do impiedosamente pela ignorância que predomina­va na família, passou a tomar bebidas alcoólicas às ocultas e a entregar-se a pensamentos vulgares na área sexual, que lhe constituía um tormento cruel, em razão do surgimento de impotência psicológica, que era também resultado da somatização dos conflitos mantidos, bem como efeito do alcoolismo em instala­ção no seu organismo debilitado.

À medida que os anos se passaram, viu diminuir as perspectivas de vida alegre ou feliz, sendo empur­rado para a região do meretrício, após desavenças domésticas contínuas, quando sua presença se tor­nou insuportável na família difícil, em razão das cri­ses alcoólicas que se faziam prolongadas e gravemen­te perigosas.

Muitas vezes foi levado ao cárcere público por policiais impiedosos que o surpreenderam nas casas de lascívia em deploráveis situações, ou por desor­dens nos bares, quando lhe era negada bebida sem o correspondente pagamento.

Estava transformado em pária social, detestado por uns e ameaçado por outros companheiros de des­dita.

Nunca ouvira falar a respeito do Espiritismo, po­rém, sabia que a morte não representava o fim da vida, porqüanto, nos delírios alcoólicos, conseguia detectar os inimigos que o afligiam e o levavam a re­cordar-se dos atos ignóbeis que lhe haviam sofrido. Juravam jamais o perdoar, mas vingar-se sem pieda­de até que, rastejante, experimentasse o máximo de padecimentos que lhe imporiam.

Tratava-se, bem se vê, de muito difícil conjuntu­ra espiritual, cuja alteração dependeria do paciente submetido e sem resistências morais, face ao largo período de entrega espontânea. Apesar disso, bus­camos envolvê-lo em carinho, oferecendo-lhe os ins­trumentos poderosos do Evangelho de Jesus, parti­cularmente o amor e o perdão, que deveria usar com segurança, a fim de reconquistar aqueles a quem maltratara, e agora cometiam erro equivalente, toman­do a dava da justiça nas mãos desvairadas.

Parecendo despertar do largo transe, passou a freqüentar as reuniões dominicais de exposição dou­trinária, iniciando um período de abstinência alcoóli­ca. Auxiliado por nossa Casa, que procurava dimi­nuir-lhe a penúria econômica, sentia-se atraído aos antros conhecidos, quando os companheiros de des­dita o instigavam a novas libacões alcoólicas, tom­bando muitas vezes em recidivas dolorosas.

Algumas vezes, banhado em lágrimas, nos infor­mava que sempre lhe negavam alimento, enquanto lhe ofereciam as bebidas malditas. Sem resistências morais e dependente dos tóxicos do álcool, fraqueja­va, porqüanto, simultaneamente, os desencarnados não apenas inspiravam os doadores como o induzi­am à queda...

Sinceramente compungido com o caso Ludgério, em ocasião própria, durante nossas reuniões hebdo­madárias de terapia desobsessiva, indagamos ao Benfeitor encarregado o que se poderia fazer em fa­vor do enfermo desorientado, e esse esclareceu que traria ao atendimento espiritual um dos seus verdu­gos, a fim de formularmos uma idéia da gravidade do cometimento.

Menos de um mês transcorrido, incorporou-se em um dos nossos médiuns sonambúlicos indigitado obsessor que, vociferando, golpeando o ar e arque­jante sob a ação do ódio, declarou, asselvajado:

— Aqui estou, atendendo à solicitação do Sr. Mi­randa, que se atreve a envolver-se em problemas que não lhe dizem respeito. Nunca tive defensores, e su­foquei as minhas penas por largo período em silenci­oso sacrifício, até o momento, quando posso desfor­çar-me do bandido que mas cumulou por anos a fio, sem qualquer piedade ou misericórdia. Que preten­de, o seu improvisado benfeitor?

Usando a palavra com cautela e demonstrando compreensão do drama de que se tornara vítima o desditado, tentamos recordar-lhe a Justiça Divina da qual ninguém se evade, bem como considerar o sig­nificado daquele instante para todos nós, por ense­jar-nos reconhecer a falibilidade das nossas concei­tuações e formas de ver a vida, numa tentativa de chegar-lhe até os sentimentos obnubilados.

Totalmente desvairado, na cegueira que o toma­va, passou a detalhar as ocorrências que o desgraçaram antes, bem como a outros que ora participavam do programa de cobrança.

Deixamo-lo exteriorizar o desconforto e as mágo­as, quando blasonou, estentórico:

— O nosso plano, já que é um plano coletivo, do qual participamos diversos adversários que o detes­tamos, é armá-lo contra alguém, a fim de que cometa um hediondo crime, para o qual não haverá perdão. Isso realizado, tê-lo-emos para sempre sob nosso po­der.

- E os amigos, por acaso — respondemos com pa­ciência — desconhecem que os programas divinos são outros, com características mui diversas das que vêm estabelecendo contra o irmão submetido às suas te­nazes?

- É claro que sabemos — ripostou, alardeando su­perioridade intelectual. — No entanto, ele é o deve­dor, a quem nos recusamos desculpar, porqüanto ja­mais usou de piedade, mínima que fosse, para quem lhe sofria a crueza. Perverso e obstinado, caprichoso e mau, sobrepôs-se às Leis e destruiu vidas incontá­veis que deveria preservar, dominado pela loucura do poder que logo lhe escapou das mãos hediondas quando lhe adveio a morte.

- Curioso — analisamos com piedade fraternal — éobservar que o amigo incrimina-o, procedendo da for­ma que nele censura, utilizando-se da mesma medi­da de que o acusa, assim rumando para futuros pro­cessos, não menos desditosos do que esse no qual jaz o seu antigo verdugo. De maneira como não exis­te vítima inocente, nenhum algoz passa sem expun­gir os delitos através dos mecanismos soberanos da Vida. Só o amor possui a chave para decifrar todos os

enigmas existenciais e solucionar as dificuldades do caminho evolutivo. Assim, rogamos-lhe, e aos demais companheiros, que lhe seja concedida uma chance pelo menos, para reabilitar-se pelo bem que possa oferecer àqueles aos quais prejudicou, especialmen­te os incluindo por haverem sido os ofendidos...

— Nunca! — interrompeu-nos, com rispidez. — Ele nos pagará, e isso acontecerá sem demora... Utiliza­mos da lei de talião: olho por olho, dente por dente.

— O amigo esqueceu-se do amor — propusemos com piedade — conforme nos ensinou Jesus. Somen­te o amor possui os mecanismos que desagregam as construções do mal, gerando bênçãos e proporcionan­do o bem.

O comunicante estrugiu em ruidosa gargalhada de mofa e acrescentou com ironia:

— Não me fale em amor, nem em Jesus. Também se dizia cristão, o covarde, e após os crimes tenebro­sos que praticava contra aqueles que lhe caíam no desagrado, corria ao culto religioso a que se filiava, e rogava perdão do seu confessor, que o atendia, igual­mente infame, enquanto suas vítimas eram dilacera­das pelo relho, trucidadas por métodos incomuns de perversidade. Onde o amor desse Jesus?

Profundamente consternados, esclarecemos:

— Não podemos confundir a Doutrina do Mestre com os homens que dela se utilizam para atendimento das próprias misérias e paixões imediatistas. Longe dos sentimentos que apregoam, exploram e mentem, enganando-se a si mesmos e àqueles que se deixam conduzir pelas suas urdiduras, igualmente interes­sados nesse conúbio de ilusões e mendacidade. O Mestre ofereceu-se em holocausto, mesmo quando todos O abandonaram.

— Nunca lhe concederemos ocasião de repetir o que já fez, e temos pressa em concluir a tarefa inicia­da —. Ripostou com enfado e nervosismo.

Preferimos silenciar. O momento não era para dis­cussão verbal, nem para debate inútil. Recolhendo-nos em oração, escutamos suas palavras finais e ator­mentadas:

— O mal devora aqueles que o vitalizam, nós o sabemos. Enquanto não chega a nossa vez, torna­mo-nos os instrumentos hábeis para que essa lei se cumpra sem qualquer desvio...

Porque não existem violências em nossos com­promissos para com a vida, ele resolveu afastar-se do médium, ou foi retirado carinhosamente pelo Men­tor, deixando-nos algo frustrados e incompletos.

Posteriormente, nosso Instrutor esclareceu-nos que a hora era grave, e somente o esforço do pacien­te poderia modificar os planos de vindita elaborados pelos seus desafetos, o que parecia bastante difícil...

Não passaram duas semanas, e fomos informados da tragédia em que se envolvera o pobre Ludgé­rio, tendo fim a consumida existência física.

Discutindo com outro companheiro embriagado, comparsa habitual das extravagâncias alcoólicas, num dos bares em que se homiziavam, foi acometido de grande loucura e, totalmente alucinado, tomou de uma faca exposta no balcão da espelunca, cravando­a, repetidas vezes, no antagonista, mesmo após tê-lo abatido e morto.

A cena de sangue, odienta e ultrajante, provo­cou a ira dos passantes e comensais do repelente re­cinto que, inspirados pelos perversos e indigitados

Espíritos vampirizadores, se atiraram contra o alcoó­latra, linchando-o sem qualquer sentimento de hu­manidade, antes que a polícia que freqüentava o lo­cal pudesse ou quisesse interferir.

Todo linchamento demonstra o primarismo em que ainda permanece o ser humano, e resulta da ex­plosão do ódio que acomete aos imprevidentes, que passam a servir de instrumentos inconscientes de hordas espirituais perversas, que dão vasa aos sen­timentos vis através das paixões desordenadas...

A hedionda cena do Calvário é bem o exemplo desse fenômeno de primitivismo em que estagiam muitos indivíduos. Aquele Homem, que somente ama­ra e o bem fizera, fora escarnecido, abandonado, cru­cificado, após um julgamento arbitrário, apoiado pela massa que dEle tanto recebera. E mesmo na cruz, ins­pirados pelas hostes selvagens da erraticidade infe­rior, bradavam irônicos, aqueles que se Lhe fizeram de inimigos de última hora:

— Não és o Messias? Sai, então, da cruz para que vejamos e acreditemos... — E estertoravam em aluci­nadas gargalhadas.

Os jornais fizeram estardalhaço sobre o inditoso acontecimento, que a nós outros que o conhecíamos, muito nos compungiu, deixando-nos material espiri­tual para demoradas reflexões e interrogações que somente após a morte nos foi possível compreender.

Naquela ocasião, indagamo-nos, se teria falhado a ajuda espiritual que se estava iniciando com futu­ras perspectivas de atenuar o processo obsessivo. Por que os desafetos conseguiram atingir as metas esta­belecidas? Por qual razão não nos foi possível apro­fundar terapias mais eficientes em favor dos desen­ carnados, quando da comunicação psicofônica de um deles? Outras indagações permaneceram bailando em nossa mente, até que o tempo, o grande consola­dor, foi-nos esclarecendo com as luzes soberanas da lógica do Espiritismo.

Após a morte física, ainda interessado no caso Ludgé rio, tentamos encontrá-Lo, sem o conseguir. Sou­bemos, por fim, que aquele, que Lhe fora vítima do homicídio infame, era um dos comparsas anteriores, que se desaviera quando da partilha de terras que haviam sido espoliadas de camponeses humildes que lhes sofriam a dominação arbitrária, tornando-se-lhe igualmente adversário. Desde então, unidos pelos crimes, uma ponte de animosidade fora distendida entre eles. Como os adversários espirituais se vincu­lavam a ambos, encontraram campo vibratório propí­cio para o assassinato de cunho espiritual.

Ante esse fato doloroso, em outras circunstânci­as, sempre me perguntava, como as leis terrenas jul­gariam os criminosos que houvessem sido vítimas dos seus inimigos desencarnados? Puniriam ao ho­micida visível que, por sua vez, se tornara vítima de outros indigitados criminosos? E como alcançar aque­les que se encontram além das sombras terrenas em paisagens imortais excruciantes e permanecem odi­entos, se escasseiam recursos próprios para a análi­se e penetração nessas regiões?

Eram essas interrogações que nos ficaram e per­manecem interessando-nos por conquistar as respos­tas, em razão da freqüente repetição de delitos des­sa ordem e crimes outros sob a inspiração de seres espirituais desencarnados. Igualmente, podemos con­siderar aqueles suicídios, nos quais a insidiosa pre­sença e indução de algozes desencarnados respon­de pelo ato tormentoso, que diariamente arrebata em todo o mundo grande parcela da sociedade...

Agora, certamente, teríamos oportunidade de conseguir respostas com os admiráveis estudiosos do assunto, quando pudéssemos conhecer mais de­talhes a respeito de alguns irmãos delinqüentes den­tre os internados no Sanatório espiritual.

E porque a noite avançasse incessante e gene­rosa, busquei, eu próprio, o repouso, aguardando as bênçãos do amanhecer.


4

NOVOS DESCORTINOS

Menos de uma semana após a noite de convi­vência reconfortante com Dr. Bezerra de Menezes, recebemos novo convite, agora firmado por Dr. Igná­cio Ferreira, para participarmos de novo encontro que deveria ocorrer no anfiteatro do Nosocômio, e cujo tema que por ele seria debatido, tinha por título Ho­micídios espirituais.

A hora aprazada, dirigimo-nos ao Sanatório da Esperança, e, em ali chegando, encontrando-nos com alguns dos amigos que participaram do evento ante­rior, seguimos ao belo recinto, onde se realizavam di­versas conferências e se debatiam temas de interes­se comum, pertinentes aos transtornos obsessivos.

Alguns dos companheiros que se reuniram co­nosco haviam exercido o sacerdócio médico na Terra, na área da psiquiatria, de que se desincumbiram a contento, porqüanto conseguiram conciliar o conhe­cimento acadêmico com as informações salutares da Doutrina Espírita, que melhor elucidam as psicogê­neses das diversas perturbações psíquicas, incluin­do a cruel obsessão.

Quando alcançamos o local, um suave burburi­nho percorria as galerias que se apresentavam reple­tas. Uma ansiedade saudável pairava em quase to­das mentes, aguardando a presença do conferencis­ta que, na Terra, havia participado de atividades ain­da pioneiras nesse campo delicado da saúde mental.

Dr. Ignácio Ferreira houvera experienciado com muito cuidado, enquanto no corpo físico, o tratamen­to de diversas psicopatologias incluindo as obses­sões pertinazes, no Sanatório psiquiátrico que ergue­ra na cidade de Uberaba, e que lhe fora precioso labora­tório para estudos e aprofundamento na psique huma­na, especialmente no que diz respeito ao inter-relacio­namento entre criaturas e Espíritos desencarnados.

A Sra. Maria Modesto Cravo, se iniciara pelas mãos abnegadas do nobre Espírito Eurípedes Barsanulfo, quando os fenômenos insólitos passaram a per­turbá-la, e, graças à sua faculdade preciosa, revelou-se abnegada servidora do Bem. De sua segura me­diunidade se utilizavam os bons Espíritos, particu­larmente o próprio Eurípedes, para o ministério do esclarecimento dos estudiosos, assim como para a prática da caridade.

A gentil dama, que se vinculava à religião católi­ca com o fervor característico do coração feminino, subitamente passou a ser acometida por clarividên­cia lúcida, ao tempo em que fenômenos elétricos a afligiam, sempre quando tocava objetos metálicos, produzindo-lhe peculiares choques. Sem explicação para a ocorrência, que a desorientava compreensi­velmente, após ouvir alguns médicos locais que ig­noravam completamente a causa de tais sucessos, consultou constrangidamente o nobre missionário sacramentano, que logo a submeteu a cuidadosa ana­mnes e, constatando-lhe a mediunidade responsável pelas ocorrências aflitivas.

Após esclarecê-la em torno da causa daqueles distúrbios, propôs-lhe o estudo sério do Espiritismo, no que foi atendido com respeito e consideração, com o que também anuiu o dedicado esposo, intrigado que se encontrava com a singularidade daquelas manifestações totalmente estranhas.

Numa das experiências de educação da mediu­nidade, e encontrando-se a respeitável senhora em transe profundo, um dos guias espirituais comuni­cou-se, explicando as razões da fenomenologia e re­comendando os cuidados compatíveis, a fim de que a senhora bem pudesse exercer o compromisso su­perior que trouxera programado antes da sua atual reencarnação, a fim de contribuir eficazmente em fa­vor dos enfermos mentais e de outras pessoas com distúrbios transitórios de comportamento.

Durante muitos anos a digna dama submeteu-se às instruções dos seus abnegados Mentores, encar­nado e desencarnado, trabalhando com disciplina e devotamento, havendo, ao desencarnar, conseguido a palma da vitória, sendo mais tarde convocada para prosseguir no mesmo serviço em nossa esfera da ação.

No momento reservado para o início da confe­rência, adentraram-se no auditório, além do conferen­cista, o respeitável Eurípedes e D. Maria Modesto. Ato contínuo, e sem desnecessárias explicações, Eu­rípedes proferiu emocionada oração, logo apresentan­do o orador, que assomou à tribuna, enquanto os seus acompanhantes sentaram-se à mesa, ao lado do que presidia a reunião.

Dr. Ignácio encontrava-se sereno e bem apesso­ado. Ante o silêncio que se fez natural, ele começou a exposição, utilizando-se da saudação que caracteri­zava os encontros entre os cristãos primitivos:

— Que a paz de Deus seja conosco! “Peregrinos do carreiro das reencarnações, bus­cando a iluminação e a paz, temos mergulhado no corpo e dele saído, graças à abnegação dos genero­sos Guias que se responsabilizam pelas nossas ten­tativas evolutivas. Desse modo, a Terra continua sendo para nós, o colo de mãe generosa, que nem todos temos sabido preservar em elevado conceito. Honra­dos com as oportunidades sucessivas do processo de crescimento interior, sempre nos apresentamos conforme as conquistas realizadas nas experiências anteriores que nos assinalam os passos, havendo contribuído para que rompêssemos as duras algemas da ignorância, da perversidade e do primarismo. Ju­guiados, porém, às ações que não soubemos praticar com a elevação necessária, repetimos comportamen­tos ou avançamos sempre tendo em vista a conquis­ta interior de valores que jazem adormecidos. Viti­mados pela preguiça mental, em grande número não conseguimos avançar quanto seria desejável, e, por isso, formamos grupos de repetidores de lições que permanecem inaproveitadas. O egoísmo, esse algoz implacável de cada um de nós, tem sido o adversário declarado do nosso processo de desenvolvimento espiritual. Face à sua dominação, resvalamos para o orgulho, a presunção, logo despertamos para a razão, atribuindo-nos vaiares que estamos longe de possuir. Por conseqüência, tornamo-nos hipersensíveis em re­lação à conduta pessoal, disputando créditos que não possuímos em detrimento das demais criaturas nos­sas irmãs.

“Esse comportamento malsão tem-nos gerado an­tipatias que poderiam ser evitadas, atritos que não se encontravam programados, preconceitos que so­mente nos têm retido na retaguarda. Incapazes de discernir o que podemos fazer em relação ao que de­vemos, atribuímo-nos recursos de que não dispomos; ao invés de nos esforçarmos por viver a lídima frater­nidade, nos separamos em grupos que se hostilizam reciprocamente, semeando discórdias e divisionis­mos ingratos, que se nos transformam em algemas de sombra e de dor.

“Mesmo quando convidados por Jesus para uma saudável mudança de conduta, as vaidades intelec­tuais hauridas nas Academias ou fora delas nos as­saltam, conduzindo-nos à soberba e fazendo-nos des­denhar o Mestre que não freqüentou Escolas especi­alizadas, por considerarem-nO mito ou arquétipo em­butido em nosso inconsciente. Em decorrência des­sa perturbadora atitude, derrapamos em lamentáveis situações de angústia e de desajuste, que nos têm mantido distantes do conhecimento profundo do Es­pírito, somente ele capaz de nos libertar totalmente da ditadura do ego. É essa postura doentia, gerada pela vaidade e sustentada pelas ilusões do corpo, que nos tem desviado do roteiro que deveremos seguir, a fim de conquistarmos por definitivo a plenitude na vida eterna.

“Soa, no entanto, o momento próprio para a nos­sa definição espiritual frente aos desafios que nos chegam e aos apelos que nos são dirigidos de toda

parte, seja dos corações aflitos no corpo fisico ou da­queloutros que se perderam nos dédalos das paixões primitivas de que ainda não se conseguiram libertar. Não é, desse modo, por acaso, que aqui nos reuni­mos mais uma vez sob as bênçãos do sábio Psicote­rapeuta, que é Jesus.”

Houve uma breve pausa, para facultar-nos acom­panhar com atenção os enunciados oportunos.

Suave brisa perpassava pelo amplo anfiteatro. Todos nos mantínhamos serenos e atentos, sintoni­zados com o pensamento do expositor, que logo pros­seguiu:

- A grandeza da vida se expressa através de inu­meráveis maneiras, porqüanto, envolvido pelo corpo físico ou sem ele, estua rico de vida o ser espiritual. Enquanto mergulhado no denso véu da carne, entor­pece-lhe parte do discernimento e a visão global se lhe torna limitada. No entanto, ao despir-se do envol­tório material, é recuperada a plenitude das funções, podendo avaliar o resultado das experiências vividas, das construções edificadas e dos planos anteriormen­te traçados, se foram executados conforme sua ela­boração ou se houve malogro entre a intenção e a ação. Sempre, porém, luz a divina misericórdia am­parando, inspirando, conduzindo, ensejando o cres­cimento infinito do Espírito. No entanto, face à rebel­dia que se demora na conduta de expressiva maio­ria, eis que adia a felicidade, equivocando-se, para depois reparar, comprometendo-se, para mais tarde recuperar-se, adquirindo resistências, para vencer o mal que nele permanece, avançando sempre e sem cessar. Mesmo nas aparentes existências malsuce­didas, adquire valores que irão contribuir para a sua plena realização, porqüanto nada permanece inútil nesse processo ascensional.

A aprendizagem, por isso mesmo, é conseguida através do erro e do acerto, da percepção do fato e de como realizá-lo, bem como da iluminação, que são verdadeiras metodolo­gias para aprimorar cada aluno na Escola da vida.

“É mediante esse agir e arrepender-se, quando equivocado, que surgem as vinculações dolorosas, exigindo reparações igualmente aflitivas. Isso, por­que, raramente, o erro é individual. Quase sempre acontece envolvendo outras pessoas com as quais se convive ou junto a quem se estabelecem progra­mas de afetividade, de interesses comuns, de lutas necessárias. E toda vez que alguém defrauda a con­fiança, ou burla o respeito e a dignidade de outrem, estabelecem-se vínculos perturbadores entre o agen­te e a sua vítima que, destituída de elevação moral, ao invés de esquecer e perdoar, atormenta-se nos ci­poais da vingança, desejando cobrar os males de que se crê objeto.

Não estando preparados para entender que o mecanismo do progresso exige disciplina e testemunho, os temperamentos arbitrários rebelam-se e se propõem fazer justiça com as próprias mãos, em atentado grave contra a ordem estabelecida e a pró­pria Vida. Ninguém, porém, pode ser juiz honesto em causa própria, por impossibilidade de harmonizar ou de eliminar as emoções que ditam comportamentos quase sempre egoísticos e perturbadores. Assim, as malhas da rede obsessiva se vão estabelecendo, vin­culando negatívamente uns indivíduos aos outros, aqueles que se agridem e se desconsideram.

“Por conseqüência, a obsessão é pandemia que permanece quase ignorada embora a sua virulência, para a qual, na sua terrível irrupção, ainda não cogi­taram os homens de providenciar vacinas preventi­vas ou terapias curadoras. Tão antiga e remota quanto a própria existência terrestre — por decorrência das afinidades perturbadoras entre os homens — todos os Guias religiosos se lhe referiram com variedade de designações, sempre utilizando-se dos mesmos mé­todos para a sua erradicação, tais: o amor, a piedade, a paciência e a caridade para com os envolvidos na terrível trama. Passados os períodos em que viveram, e os seus discípulos, quase de imediato, olvidaram-se de levar adiante pela prática, essas específicas li­ções que receberam. Face à tendência para o envol­vimento emocional com o mitológico, não poucas ve­zes têm confundido a revelação do fenômeno mediú­nico com idéias de arquétipos que jazem semi-ador­mecidos no inconsciente, e que passam a ocupar as paisagens mentais, sem os correspondentes critéri­os de compreensão, para investir esforços na sua equação, desse modo transferindo-os para a galeria do fantástico e do sobrenatural.”

Desejando que o auditório absorvesse as refle­xões psicológicas e históricas da sua proposta, silen­ciou por breves segundos, dando prosseguimento:

- Graças à valiosa contribuição científica do Es­piritismo no laboratório da mediunidade, constatan­do a sobrevivência do ser e o seu intercâmbio com as criaturas terrestres, a obsessão saiu do panteão místi­co para fazer parte do dia-a-dia de todos aqueles que pensam. Enfermidade de origem moral, exige tera­pêutica específica radicada na transformação espiri­tual para melhor, de todos aqueles que lhe experi­mentam a incidência. Ocorre, no entanto, como é fácil de prever-se, que essa psicopatologia, qual suce­de com outras tantas, sempre apresenta, no paciente que a sofre, graves oposições para o seu tratamento. Quando, ainda lúcido, o mesmo se recusa receber a conveniente orientação, e, à medida que se lhe faz mais tenaz, as resistências interiores se expressam mais vigorosas. De um lado, em razão da vaidade pes­soal, para não parecer portador de loucura, particu­larmente porque assim se sente, e, por outro motivo, quando sob os camartelos das obsessões, porque o agente do distúrbio cria dificuldades no enfermo, transmitindo-lhe reações violentas, para ser evitado o tratamento especial. Em todos os casos, porém, o tempo exerce o papel elevado de convencer a vítima da parasitose espiritual, através do padecimento ul­triz, quant o à necessidade de submeter-se aos cui­dados libertadores.

“Iniciando-se de forma sutil e perversa, a obses­são, salvados os casos de agressão violenta, instala-se nos painéis mentais através dos delicados tecidos energéticos do perispírito até alcançar as estruturas neurais, perturbando as sinapses e a harmonia do conjunto encefálico. Ato contínuo, o quimismo neu­ronial se desarmoniza, face à produção desequilibra­da de enzimas que irão sobrecarregar o sistema ner­voso central, dando lugar aos distúrbios da razão e do sentimento.

Noutras vezes, a incidência da ener­gia mental do obsessor sobre o paciente invigilante irá alcançar, mediante o sistema nervoso central, al­guns órgãos físicos que sofrerão desajustes e pertur­bações, registrando distonias correspondentes e com­portamentos alterados. Quando se trata de Espíritos inexperientes, perseguidores desestruturados, a ação magnética se dá automaticamente, em razão da afi­nidade existente entre o encarnado e o desencarna­do, gerando descompensações mentais e emocionais. Todavia, à medida que o Espírito se adestra no co­mando da mente da sua vítima, percebe que existem métodos muito mais eficazes para uma ação profun­da, passando, então, a executá-la cuidadosamente. Ainda, nesse caso, aprende com outros cômpares mais perversos e treinados no mecanismo obsessivo, as melhores técnicas de aflição, agindo conscientemen­te nas áreas perispirituais do desafeto, nas quais im­planta delicadas células acionadas por controle remo­to, que passam a funcionar como focos destruidores da arquitetura psíquica, irradiando e ampliando o campo vibratório nefasto, que atingirá outras regiões do encéfalo, prolongando-se pela rede linfática a todo o organismo, que passa a sofrer danos nas áreas afe­tadas.

“Estabelecidas as fixações mentais, o hóspede de­sencarnado lentamente assume o comando das fun­ções psíquicas do seu hospedeiro, passando a mani­pulá-lo a bel-prazer. Isso, porém, ocorre, em razão da aceitação parasitária que experimenta o enfermo, que poderia mudar de comportamento para melhor, des­sa forma conseguindo anular ou destruir as induções negativas de que se torna vítima. No entanto, afeiço­ado à acomodação mental, aos hábitos irregulares, compraz-se no desequilíbrio, perdendo o comando e a direção de si mesmo. Enquanto se vai estabelecen­do o contato entre o assaltante desencarnado e o as­saltado, não faltam a este último inspiração para o bem, indução para mudança de conduta moral, ins­piração para a felicidade. Vitimado, em si mesmo, pela autocompaixão ou pela rebeldia sistemática, descon­sidera as orientações enobrecedoras que lhe são di­recionadas, acolhendo as insinuações doentias e perversas que consegue captar.

“Muita falta faz a palavra de Jesus no coração e na mente das criaturas humanas em ambos os lados da vida. Extraordinária fonte de sabedoria, as Suas lições constituem mananciais de saúde e de paz que plenificam, assim que sejam vivenciadas, imunizan­do o ser contra as terríveis perturbações de qualquer ordem. Mas o mundo ainda não compreende consci­entemente o significado do Mestre na sua condição de Modelo e Guia da humanidade, o que é lamentá­vel, sofrendo, as conseqüênciaS dessa indiferença sistemática.”

Novamente o orador fez oportuna pausa na sua alocução.

Enquanto isso ocorria, o meu cérebro esfervilha­va de interrogações em torno do tema palpitante. Não havia, porém, tempo para desvincular-me do raciocí­nio fixado nas suas palavras.

Dando continuidade, Dr. Ignácio Ferreira aduziu: - Como a inspiração espiritual se faz em todos os fenômenos da Natureza, inclusive nas atividades hu­manas, é compreensível que, além das tormentosas obsessões muito bem catalogadas por Allan Kardec, simples, por fascinação e subjugação — os objetivos mantidos pelos perseguidores sejam muito variados. Eis porque as suas maldades abarcam alguns dos cri­mes hediondos, tais como: autocídios, homicídios, guerras e outras calamidades, face à intervenção que realizam no comportamento de todos aqueles que se afinizam com os seus planos nefastos. Agindo medi ante hábeis programações adrede elaboradas, vão conquistando as resistências do seu dependente mental, de forma que, quase sempre, porque não haja uma reação clara e definitiva por parte da sua vítima, alcançam os objetivos morbosos a que se entregam enlouquecidos.

“Quando das suas graves intervenções no psi­quismo dos seus hospedeiros, suas energias deleté­rias provocam taxas mais elevadas de serotonina e noradrenalina, produzidas pelos neurônios, que con­tribuem para o surgimento do transtorno psicótico­maníaco-depressivo, responsável pela diminuição do humor e desvitalização do paciente, que fica ainda mais à mercê do agressor. É nessa fase que se dá a indução ao suicídio, através de hipnose contínua, transformando-se em verdadeiro assassínio, sem que o enfermo se dê conta da situação perigosa em que se encontra. Sentindo-se vazio de objetivos existen­ciais, a morte se lhe apresenta como solução para o mal-estar que experimenta, não percebendo a capta­ção cruel da idéia autocida que se lhe fixa na mente. Não poucas vezes, quando incorre no crime infame da destruição do próprio corpo, foi vitimado pela for­ça da poderosa mentalização do adversário desen­carnado. Certamente, há, para o desditoso, atenuan­tes, em razão do processo malsão em que se deixou encarcerar, não obstante as divinas inspirações que não cessam de ser direcionadas para as criaturas e as advertências que chegam de todo lado, para o res­peito pela vida e sua conseqüente dignificação.

“O mesmo fenômeno ocorre quando se trata de determinados homicídios, que são planejados no mundo espiritual, nos quais os algozes se utilizam de enfermos por obsessão, armando-lhes as mãos para a consumpção dos nefastos crimes. Realizam o trabalho a longo prazo, interferindo na conduta men­tal e moral do obsesso, a ponto de interromperem-lhe os fluxos do raciocínio e da lógica, aturdindo-os e do­minando-os. Tão perversos se apresentam alguns desses perseguidores infelizes quão desnaturados, que se utilizam da incapacidade de reação dos paci­entes para os incorporar, podendo saciar sua sede de vingança contra aqueles que lhes estão ao alcance. Utilizando-se do recurso da invisibilidade material, covardemente descarregam a adaga do ódio nas víti­mas inermes, tombando, mais tarde, na própria ar­madilha, porqüanto não fugirão da justiça divina ins­talada na própria consciência e vibrando nas Leis cósmicas, que sempre alcançam a todos.

“De maneira idêntica, desencadeiam guerras entre grupos, povos e nações, cujos dirigentes se en­contram em sintonia com as suas terríveis programa­ções, formando verdadeiras legiões que se engalfi­nham em lutas encarniçadas visando alcançar os ob­jetivos infelizes a que se propõem.

Passam desconhe­cidas essas causas, que os sociólogos, os políticos, os psicólogos, os religiosos não conseguem detectar, mas que estão vivas e atuantes nas paisagens ter­restres, e a reencarnação se encarregará de corrigir sob a sublime direção de Jesus.

Quedou-se o orador em rápida reflexão, enquan­to nos dávamos conta da gravidade das obsessões geradoras de tumultos e desgraças coletivas, através daqueles que se lhes tornavam instrumentos dóceis ao comando, na condição de inimigos da Humanida­de. O tema apresentava-se muito mais profundo e grave do que podíamos imaginar, embora não igno­rássemos, por dedução, que assim ocorria.

Não havia tempo para mais amplas ponderações, porque o preclaro orador continuou com a palavra:

- Na raiz de inumeráveis males que afetam a co­letividade humana, encontramos o intercâmbio espi­ritual manifestando-se com segurança. As obsessões campeiam desordenadamente. Isto não implica em dar margem ao pensamento de que as criaturas ter­restres se encontram à mercê das forças desagrega­doras da erraticidade inferior. Em toda parte está pre­sente a misericórdia de Deus convidando ao bem, ao amor, à alegria de viver. A opção inditosa, no entan­to, de grande número de criaturas é diversa dessa oferta, o que facilita a assimilação das idéias tene­brosas que lhe são dirigidas. Assim mesmo, ante a preferência das terríveis alucinações, o amor paira so­berano aguardando, e quando não é captado, a dor traz de volta o calceta, encaminhando-o para o reto proceder mediante o oportuno despertar.

“Todos esses criminosos espirituais, terminadas as batalhas em que se empenham, passam a experi­mentar incomum frustração por haverem perdido as metas que desapareceram e por darem-se conta dos tormentos íntimos em que naufragam, descobrindo-se sem objetivo nem razão de continuar a viver... E como não podem fugir da vida em que se encontram, são atraídos compulsoriamente às reencarnações dolorosas, experimentando os efeitos das hecatom­bes que ajudaram a ter lugar. Mergulham, então, na grande noite terrestre do abandono, da loucura, das anomalias, emparedados em enfermidades reparado­ras, experimentando rudes expiações, que lhes serão a abençoada oportunidade para reencontrar o cami­nho do futuro...

“O Mestre Jesus foi enfático, ao enunciar: — Vin­de a mim todos vós que estais cansados e eu vos alivi­arei, complementando com segurança: — Em verdade vos digo que ninguém sairá dali (do abismo) enquan­to não pagar até o último ceitil. Ele alivia todos aque­les que O buscam sob o pesado fardo das aflições, entretanto, é necessário que a dívida moral contraí­da contra a Vida seja resgatada até o último centavo, quando então, o devedor se sentirá equilibrado para conviver com aquele que lhe padeceu a impiedade, sendo perdoado e reconciliando-se com a própria consciência e o seu próximo. Somente, portanto, atra­vés do perdão e da reconciliação, da reparação e da edificação do bem incessante, é que o flagelo das ob­sessões desaparecerá da Terra de hoje e de amanhã, pelo que todos nós devemos empenhar desde este momento.”

Demonstrando emoção bem controlada, concluiu:

— O amor é o bem eterno que sobrepaira em to­das as situações, mesmo nas mais calamitosas, apon­tando rumos e abrindo espaços para a realização da felicidade total. Vivê-lo em clima de abundância, é o dever a que nos devemos propor, inundando-nos com a sua sublime energia que dimana de Deus.

“Que esse amor, procedente de nosso Pai, nos permeie todos os pensamentos, palavras e ações, são os votos que formulamos ao terminarmos a rápida análise em torno desse tema palpitante.”

Logo foi concluída, com simplicidade e profun­deza a exposição, o venerável Eurípedes assomou à tribuna e dirigiu palavras estimuladoras aos presen tes, encerrando a reunião com sentida prece, que a todos nos reconfortou.

Porque diversos ouvintes se houvessem acerca­do do Dr. Ignácio Ferreira, fizemos o mesmo, endere­çando-lhe algumas rápidas questões, que foram res­pondidas com bonomia e gentileza. Interessado em aprofundar estudos em torno do tema exposto e ou­tros que haviam conduzido pacientes desencarnados à internação no Nosocômio espiritual, indaguei ao gentil diretor se me permitiria realizar um estágio naquele reduto de amor e de recuperação mental e emocional, a fim de ampliar estudos e conhecimen­tos que me facultassem maior crescimento íntimo.

Como se aguardasse a solicitação apresentada, o dedicado médico, com suave expressão de júbilo no rosto, aquiesceu de imediato, oferecendo-se, in­clusive, para acompanhar-me, quanto lhe permitis­sem os deveres, e quando impossibilitado, me pro­porcionaria a ajuda de competente psiquiatra que ali colaborava com devotamento e abnegação.

Sem titubear, aceitamos a gentileza e despedi­mo-nos, logo alguns dos amigos se preparavam para sair, rumando com eles aos deveres a que nos vincu­lamos.

A noite, salpicada de estrelas e banhada de luar, era um convite a reflexões profundas sobre o amor de nosso Pai, sempre misericordioso e sábio.

Banhado por essa quase mágica claridade dos astros, pude ver o planeta terrestre querido, de onde procedia, envolto em sombras no seu giro colossal em torno do Astro-Rei, e não sopitei o sentimento de gratidão e de saudade das suas paisagens inesquecidas.


5

CONTATO PRECIOSO

No dia seguinte, ainda vibrando de emoção pe­las lições recebidas na véspera, dirigi-me ao Sanató­rio Esperança, estuante de alegria, por considerar excepcional a oportunidade de aprendizagem naque­le reduto de bênçãos que o amor havia erguido para auxiliar os combalidos e fracassados nas lutas espiri­tuais da Terra.

Conhecia, através de referências, desde há mui­to, aquele Nosocômio, de que ouvia falar em conver­sações habituais com diversos amigos. Todavia, por reconhecer a precariedade dos meus conhecimentos em torno das doutrinas psíquicas e das conquistas realizadas por especialistas dessa área, nunca me atrevera a solicitar oportunidade para conhecer mais de perto as enobrecedoras realizações que ali tinham lugar.

Embora soubesse superficialmente da finalida­de a que se destinava, ignorava os métodos e as terapêuticas utilizadas no tratamento dos pacientes espirituais. Eram, portanto, compreensíveis, a eufo­ria e expectativa que me assaltavam.

O dia estava esplêndido, banhado de suave luz e agradável temperatura, quando, vencendo alguma distância e atravessando os jardins bem cuidados, enriquecidos de flores e arbustos formosos, dei en­trada no agradável hall, dirigindo-me à recepção.

Solicitando o encontro com Dr. Ignácio, fui infor­mado que ele me esperava no seu gabinete, que me foi gentilmente indicado. Um voluntário, que ali se encontrava, ofereceu-se para conduzir-me à sala, elu­cidando-me que estava em estágio, na fase do aten­dimento, a fim de preparar-se para iniciar estudos especiais sobre a problemática do comportamento humano, quando se encontrasse habilitado.

Muito simpático, logo informou-me que houvera desencarnado, fazia vinte anos, havendo sido aten­dido naquele Nosocômio, onde despertara em lamen­tável estado de perturbação espiritual, de que se foi libertando, graças ao amparo e empenho dos médi­cos e enfermeiros que o atenderam, até que pôde en­saiar os primeiros passos pelo ambiente, dando-se conta da realidade da vida e procurando adaptar-se ao novo habitat, embora as saudades dilaceradoras que conservava em relação à família e aos seres ami­gos, bem como às tarefas interrompidas que ficaram no domicílio carnal.

Escutava-o, atento, como se estivesse recordan­do-me dos primeiros tempos, quando chegara àque­la Comunidade, recambiado pela morte à Pátria de origem.

Gentil e jovial, elucidou-me que houvera sido vi­tima de si mesmo, porqüanto, portador de mediuni­dade psicofônica, tivera ensejo de travar contato com a Doutrina codificada por Allan Kardec, porém, por negligência e perturbação, nunca se interessara em aprofundar estudos e educar o comportamento que, embora não fosse vulgar, igualmente não se fazia por­tador de títulos de enobrecimento.

Consorciando-se com uma jovem que acreditava ser-lhe alma gêmea, sentiu-se amparado emocionalmente, de maneira a manter o equilíbrio sexual, que lhe constituía motivo de desarmonia antes do matri­mônio, dificultando-lhe preservar-se fiel ao compro­misso mediúnico, que abraçava desde os dezessete anos, quando recém-saído de um tormento obsessi­vo simples...

Nesse ínterim, chegamos à ante-sala do diretor daquela área, específica para os obsidiados desen­carnados, fazendo-nos anunciar, e aguardando o con­vite para sermos recebidos. Como o infatigável diri­gente se encontrasse em reunião, acomodamo-nos, e o novo amigo prosseguiu:

— Após haver passado por diferentes terapias de adaptação, estou agora sendo utilizado na recepção para acompanhamento de visitantes, preparando-me para futuros cometimentos.

Sinceramente sensibilizado pela sua gentileza, apresentei-me com breves considerações, e continu­amos a agradável conversação.

— Chamo-me Almério — informou-me com um sor­riso afável — e fui uma vítima a mais da própria levi­andade, no trato com os tesouros da vida espiritual, razão porque fui recolhido a este Hospital.

“Recordo-me que, desde criança, vez por outra, era acometido de clarividências, detectando seres infantis, que se me acercavam em festa, convivendo com os mesmos por alguns minutos.

Outras vezes, defrontava monstros pavorosos que me ameaçavam, levando-me ao desespero e a desmaios, dos quais acordava banhado por álgido suor. O carinho vigilan­te de minha mãe sempre me socorria, defendendo-me desses fantasmas terrificantes. Por algum breve período tive a impressão de que amainara a ocorrên­cia, para, a partir dos catorze anos, distúrbios nervo­sos tomarem-me com certa periodicidade, fazendo-me tremer e quase convulsionar. Fui levado ao médi­co que, após exames superficiais, atribuiu tratar-se de epilepsia, havendo-me receitado medicamentos que mais me atordoavam, e que, de alguma forma, diminuíam aquele desagradável tormento. Tomando conhecimento do que sucedia comigo, uma vizinha nossa sugeriu aos meus pais que me encaminhas­sem a um Centro Espírita, por acreditar que se trata­va de um distúrbio no campo mediúnico, portanto, de uma obsessão que estivesse em processo de ins­talação. Embora meus genitores estivessem vincula­dos à religião católica, não titubearam, conduzindo-me ao Núcleo que fora indicado, por ser aquele da freqüência da generosa amiga.”

Almério fez uma pausa, como se estivesse reca­pitulando páginas importantes do livro da sua exis­tência mais recente, após o que, tranqüilamente con­tinuou:

- A primeira visita foi inesquecível, porque, aten­dido carinhosamente pela diretora da Casa, enquan­to conversávamos fui acometido da crise, facilitan­do-lhe o diagnóstico espiritual.

Conhecedora dos tor­mentos da obsessão, D. Clarice usou de palavras bon­dosas para com o perturbador, enquanto me aplicava a bio-energia através de passes vigorosos em clima de oração.

De imediato, retornei ao estado de paz, de modo que a entrevista foi encerrada, após ser-me oferecida a terapia para o equilíbrio da saúde, que con­sistia em fazer parte de um grupo juvenil de estudos espíritas, a fim de que me pudesse iniciar no conhe­cimento da Doutrina, após o que, e somente então, me seria permitido participar das atividades mediú­nicas.

“Na minha condição juvenil, felizmente, não ti­vera tempo para derrapar nas viciações que estão ao alcance da mocidade. Não obstante, cometera os equí­vocos pertinentes à condição de jovem, por fazerem parte do cardápio comportamental destes tumultuados dias da Humanidade.

“A mediunidade, em razão da freqüência à Insti­tuição Espírita, talvez, pelo clima psíquico ali exis­tente, irrompeu com melhor definição, assegurando-me tratar-se de um compromisso sério, que deveria abraçar, mas, para o qual seria necessário abandonar a mesa farta dos prazeres, que se encontrava diante de mim, convidativa, e que eu não estava disposto a fazê-lo. Preparava-me para o vestibular, numa tenta­tiva de conseguir uma vaga na Faculdade de Farmá­cia, quando fui acometido por uma crise mais forte, que me deixou prostrado, acamado, exigindo a pre­sença da devotada diretora da Casa Espírita, que me socorreu com fluidoterapia e palavras de muito enco­rajamento, recomendando-me a leitura saudável de O Evangelho segundo o Espiritismo, de Allan Kardec, para robustecer-me moralmente, ajudando-me a su­perar a agressão espiritual.

“A Entidade, que insistia em me afligir, estava- me vinculada por fortes laços do passado próximo, quando fora molestada pela minha irresponsabilida­de e não se encontrava interessada em liberar-me com facilidade da sua sujeição. Tornava-se indispensável que, mediante a minha reforma íntima demonstras­se-lhe a mudança que se operara dentro de mim, e do esforço empreendido para reparar os males que lhe houvera feito. Esse programa de iluminação inte­rior iria exigir-me um grande tributo, porque anelava por viver como as demais pessoas, amealhar um bom pecúlio para, mais tarde, construir família e desfrutar dos favores da vida, O meu passado espiritual, po­rém, era muito severo, e fui constrangido a trabalhar-me para algumas adaptações à circunstância que então se apresentava...

“Eis, pois, como me iniciei no Espiritismo, atra­vés das bênçãos do sofrimento, que não soube apro­veitar o quanto deveria.”

O novo amigo silenciou discretamente. Passados alguns segundos de reflexão, parecendo aturdido, referiu-se:

— Rogo-lhe desculpas por haver-me disparado neste relato autobiográfico, sem dar-lhe oportunida­de de uma conversação mais simpática, egoistica­mente pensando no meu próprio caso. Como vê, es­tou aprendendo a disciplinar-me, sem conseguir si­lenciar os anseios do ego doentio, cumulando-o de comentários desinteressantes...

Interrompi-o, com delicadeza, explicando-lhe que sua narração me proporcionava imensa alegria, ade­mais da sua amizade, simples e desinteressada, que me havia recebido com amabilidade e confiança.

— Constitui-me — disse-lhe, sinceramente — um imenso prazer, iniciar os meus estudos neste Noso­cômio, aprendendo, desde o primeiro momento em que aqui me apresento, lições de inapreciado valor. Sou-lhe, portanto, muito reconhecido, e agradeceria que, enquanto esperamos o nosso dirigente, que con­tinue com a sua agradável e proveitosa narração.

Estimulado, e desculpando-se, Almério deu con­tinuidade:

- Graças ao apoio de pessoas abnegadas na Casa Espírita, dos meus pais e do meu Guia espiritual, con­segui adentrar-me na Faculdade e iniciar o curso que desejava. Concomitantemente, continuei participan­do das atividades da Juventude, porém, quase indi­ferente pelo estudo da Doutrina e a sua incorporação interior na conduta diária. O ambiente tumultuado da Faculdade, as minhas predisposições para compro­metimentos na área sexual, facultaram-me compro­missos perturbadores e vinculações com Entidades enfermas que enxameiam nos antros de prostituição, nos motéis da moda, freqüentados por semelhantes encarnados que ali dão vazão aos seus instintos pri­mários e tendências pervertidas.

“Já participava das atividades mediúnicas, ao lado de pessoas enobrecidas e caridosas, sem que os seus exemplos repercutissem nos meus sentimen­tos exaltados pelo sexo em desvario e por falsa ne­cessidade que lhe atribuía. Tornei-me, desse modo portador de psicofonia atormentada, que o carinho dos dirigentes encarnados e espirituais tentaram a todo esforço equilibrar, mas as minhas inclinações infelizes dificultavam esse saudável empreendimen­to. Acredito que a generosa D. Clarice percebia o meu conflito, porém, honrada e discreta, esperava que o meu discernimento e as orientações espirituais que me chegavam em abundância me despertassem para a realidade, que não podia ser postergada.

“Foi nesse ínterim que, orando fervorosamente, supliquei auxílio aos Céus, prometendo-me alteração de conduta e vinculação mais segura com o compro­misso aceito espontaneamente... E a minha oração foi ouvida, porqüanto, nessa mesma semana, conhe­ci Annette, que seria mais tarde a carinhosa esposa que me auxiliaria na educação das forças genésicas.

“O amigo deve saber quanto é importante a dis­ciplina sexual na vivência mediúnica. Como as ener­gias procriativas e vitais não devem ser desperdiça­das, mas canalizadas com propriedade e sabedoria. O seu uso indevido, além de produzir conexões vici­osos com Espíritos enfermos e vampirizadores, debi­lita os centros de captação psíquica, dificultando o correto exercício da faculdade. O casamento, portan­to, constituiu-me verdadeira dádiva de Deus, que me impeliu a uma conduta melhor em intercâmbio eno­brecido.

“As lutas prosseguiram com certa harmonia, até quando me diplomei e consorciei-me com a mulher amada. O nosso relacionamento foi muito equilibra­do e, conhecedora dos meus compromissos, Annette não teve qualquer dificuldade em acompanhar-me aos estudos espíritas e participar das reuniões dou­trinárias, a princípio, e depois, das sessões práticas e de socorro espiritual aos desencarnados.”

Almério empalideceu subitamente, e percebi-lhe uma leve sudorese na teste.

Preocupado, interroguei-lhe se estava sentindo-se mal, ao que respondeu:

— Encontro-me bem, muito obrigado! É que me acerco dos momentos graves da narrativa, e sinto-me constrangido. Afinal, o amigo não me conhece, e eu o bombardeio com uma narrativa tão pessoal e ín­tima, que certamente o surpreende e o desagrada. Com certeza, é descortesia de minha parte o que lhe estou fazendo, quando deveria estar apresentando-lhe alguns dos admiráveis programas de nosso Hos­pital-santuário.

Toquei-lhe o ombro afavelmente, animando-o a continuar, não porque estivesse picado pela curiosi­dade doentia, mas porque senti que lhe fazia bem a catarse, tanto quanto me era útil para o aprendizado que iria iniciar.

Narrei-lhe algumas das próprias experiências, de quando me encontrara no corpo físico, assim como dos estudos que relatei em algumas das Obras psi­cografadas que havia enviado aos queridos viajan­tes terrestres, a fim de o tranqüilizar, asseverando-lhe mesmo, que houvera sido a Providência que o destacara para acompanhar-me, ajudando-me a en­tender os sublimes mecanismos da evolução, das lu­tas de aprimoramento moral e das conquistas espiri­tuais de todos nós. Por fim, expliquei-lhe que a de­mora em ser atendido pelo nosso abnegado Dr. Fer­reira parecia proposital, ensej ando-nos aprofunda­mento da amizade recém-iniciada.

O novo amigo sorriu, um pouco desconcertado, e anuiu, dando curso à sua muito oportuna exposição.

— Não obstante todo o empenho a que me entre­gava — esclareceu, com sinceridade — para a renova­ção interior e o desempenho das tarefas em anda­mento, um ano após o casamento passei a experimentar inexplicável impotência sexual, gerando-me graves conflitos e dificuldades em torno do relacio­namento conjugal. Sentindo-me fracassado e sem esperanças, procurei ajuda médica, após uma gran­de relutância, fruto da ignorância e da conceituação machista, e o especialista nada detectou na minha constituição orgânica, que justificasse o problema, encaminhando-me a um sexólogo que, inadvertidamen­te, me recomendou extravagante terapia, perturban­do-me além do que já me encontrava transtornado. Nesse período, o exercício mediúnico tornou-se-me penoso e angustiante, por dificuldades de concen­tração e de equilíbrio emocional.

“Foi quando resolvi pedir socorro ao Mentor de nossa Sociedade que, solícito, através da mediuni­dade sonambúlica de Eduardo, por quem se comuni­cava desde há muito tempo, aconselhou-me a recon­quistar o equilíbrio mediante a confiança em Deus, explicando-me tratar-se de uma disfunção psicológi­ca, em cuja raiz estava a influência perversa da mi­nha adversária espiritual...

“Equipado com o esclarecimento oportuno, pro­curei reanimar-me, elucidando a esposa em torno da terapia em desdobramento, e pedindo-lhe a compre­ensão, que nunca me foi negada, já que sempre se conduziu como digno exemplo de companheira ideal e madura, embora contasse apenas vinte e quatro anos de idade. A tentativa de renovação interior, po­rém, não havendo proporcionado resultados imedia­tos, diminuiu de intensidade, enquanto a volúpia do desejo incontrolado, me inquietava em angústia cres­cente.

“Nesse período, em que a mente se encontrava agitada, passei avivenciar sonhos eróticos, nos quais a lascívia me dominava, particularmente com uma mulher que se me apresentava, ora linda e maravi­lhosa, noutros momentos, desfigurada e perversa. Muitas vezes arrastava-me a antros de perversão, onde me sentia exaurir, despertando, socorrido pela esposa que percebia minha agitação e lamentos, e sentindo-me tão depauperado quão perdido em mim mesmo. Não experimentava a necessária coragem para narrar-lhe o pandemônio em que me debatia, evitando que identificasse os meus tormentos mentais. O drama prolongou-se por mais de seis meses, quando algo inusitado ocorreu.

O amigo silenciou brevemente, concatenando as idéias, após o que prosseguiu:

— Participando das reuniões mediúnicas de so­corro aos desencarnados, fui instrumento de terrível comunicação, que acredito era necessária para o es­clarecimento da minha provação, certamente provi­denciada pelos Benfeitores espirituais. Tratava-se de Entidade feminina que se dizia minha vítima, de quem abusara, explorando-a sexualmente até arrui­ná-la. Pior do que isso, informava que eu era casado naquela ocasião, mas vivia clandestinamente com jovens seduzidas em orgias e alucinações. Não fora ela a primeira... No entanto, havia sofrido muito sob os impositivos das minhas perversões. Duas vezes, sucessivamente, concebera, e, sentindo-se feliz pelo fato, esperava receber apoio, que lhe neguei, sem qualquer compaixão, levando-a ao abortamento in­sensato. Na primeira ocasião do crime, ela pôde ce­der sem maior relutância, por manter a ilusão de que eu possuísse algum sentimento de afetividade e pra zer em conviver ao seu lado, mesmo que fugazmen­te. Todavia, na segunda concepção, recusando-se ceder à minha insistência, foi levada, quase à força, quando já se encontrava no quinto mês de gravidez, para o hediondo infanticídio, que se transformou numa tragédia de alto porte. A inabilidade do médi­co, na clínica sórdida onde recebia as clientes infeli­zes, ao extrair o feto, provocou uma hemorragia, não conseguindo deter o fluxo sangüíneo, e, embora trans­ferida de emergência para o Pronto Socorro da cida­de, menos de duas horas depois seguia pela morte o destino da filhinha covardemente assassinada... Nar­rou, então, os sofrimentos indescritíveis que experi­mentou, e a sede de vingança que tomou conta da sua mente... No entanto, perdeu-se num dédalo de aflições sem nome. Só mais tarde, quando eu me en­contrava na passada reencarnação, no período infan­til, é que conseguiu, com a ajuda de alguns especia­listas em obsessão, reencontrar-me, o que lhe hou­vera proporcionado infinito prazer.

Desde então, con­tinuou explicando, me seguia, e pretendia levar a cabo o plano de interromper-me a existência carnal, auxiliada como se encontrava por outros Espíritos a quem eu prejudicara, e que estavam igualmente dis­postos a conseguir o mesmo fanal.

“A lúcida doutrinadora tudo fez para explicar-lhe o erro em que se movimentava, não havendo conse­guido resultados expressivos. Envolvendo-a, por fim, após diversas tentativas de esclarecimentos, em ter­nura e vibrações de paz, a atormentada inimiga reti­rou-se do campo mediúnico em que se comunicava. Mas não se desvinculou de mim, porqüanto, onde se encontra o devedor, aí estagia o cobrador... Terminada a reunião, fui elucidado quanto aos meus deveres imediatos em favor da libertação, beneficiando o Es­pírito infeliz, quanto a mim próprio. No entanto, os vícios do pretérito tornaram-se-me grilhões indestru­tíveis, que eu não conseguia romper.

Mantendo a mente aturdida pelos desejos que o corpo não aten­dia, lentamente derrapei em perigosa depressão, que se tornou grave, graças às reações que me acometi­am, maltratando a família, os amigos, e deixando-me sucumbir cada dia mais, ao ponto de recusar-me pros­seguir nas atividades espirituais e profissionais, mer­gulhando no fosso profundo e escuro da sub jugação, que poderia ter sido evitada, caso me houvesse re­solvido pela luta.”

Novamente interrompeu a história. Respirou, quase penosamente, e vendo-o sofrido, propus-lhe que deixasse para próximo encontro a conclusão do seu drama, ao que ele redargüiu

— Apesar da angústia que me produz a lembran­ça, desta vez, face a espontaneidade com que bro­tam da alma as evocações, experimento um certo bem-estar, como se me conscientizasse em definiti­vo dos graves erros, sem escamoteamento das pró­prias responsabilidades, nem fugas injustificáveis do enfrentamento, que são passos decisivos para o re­começo em clima de renovação legítima.

Sorriu, ligeiramente, e ante a minha anuência com um movimento simples da cabeça, concluiu:

— Naquele transe, sob a indução cruel, que me houvera conduzido ao transtorno psicótico-maníaco­depressivo, em uma noite de alucinação, porqüanto podia ver a mulher-verdugo de minha existência e os seus asseclas, fui induzido a ingerir algumas drágeas de sonífero, quase automaticamente, sem qualquer reflexão, a fim de apagar da mente aqueles terríveis pesadelos e libertar-me dos vergonhosos doestos que me atiravam à face, humilhando-me, escarnecendo-me, e sempre mais me ameaçando. A medida que as substâncias passaram a atuar no meu organismo, um cruel torpor e enregelamento tomou-me todo, produ­zindo-me a parada cardíaca, e a desencarnação...

“Muito difícil explicar os sofrimentos que então passei a experimentar. No princípio, era o pesadelo do morrer-e-não-estar-morto, a vida sem vida, as sen­sações da matéria em decomposição e a crua perse­guição que não cessava. Não saberia dizer por quan­to tempo estive sob as torpes e excruciantes vingan­ças daqueles irmãos mais desditosos. As preces da esposa sofrida, dos meus genitores e dos amigos da Instituição religiosa, passaram, então, a alcançar-me como orvalho refrescante no tórrido padecimento que não diminuía. Um dia, que ainda não posso identifi­car, senti-me sair do antro para onde fora levado pe­las mãos perversas que me induziram ao suicídio, embora sem a minha concordância, o que represen­tava um atenuante para a desdita, passando a dor­mir sem a presença dos sicários, e a despertar, para logo adormecer, até que a memória e o discernimen­to ressurgiram, auxiliando-me no processo de recu­peração. E senti-me amparado neste verdadeiro san­tuário. Graças a Deus e aos Bons Espíritos, aos cora­ções amigos e caridosos, aqui me encontro abraçan­do um novo trabalho com vistas ao futuro, que a Ter­ra-mãe me concederá, pela nímia misericórdia do Céu.

“Tenho orado em favor daqueles que sofreram a minha perversão e loucura, propondo-me espiritualmente socorrê-los, quando as circunstâncias o per­mitirem. Somente o perdão com a reconciliação real, edificando os sentimentos das vítimas com os algo­zes, conseguirá produzir a paz e a lídima fraternida­de.”

Almério agora, quando encerrara a narração, apresentava-se corado, e sorria, exteriorizando real alegria. Deixava-me a impressão que houvera retira­do um peso da consciência e, talvez, por primeira vez, encarara-se sem constrangimento nem desculpas em relação aos atos conturbadores praticados.

Agradeci-lhe a confiança e a gentileza de ofere­cer-me a sua história, que me proporcionaria muito material para reflexões, e pedi-lhe, ato contínuo, que durante o meu estágio naquele Nosocômio, quanto lhe permitissem os deveres, que eu gostaria de con­tar com a sua companhia fraterna para conversações, troca de opiniões e mesmo sua ajuda, desde que ali habitava, há muito tempo, o que me seria muito vali­oso.

Ele não se fez de rogado, e, num gesto muito amigo, abraçou-me, exteriorizando gratidão e votos de muito êxito.

Encontrávamo-nos abordando outros temas, quando fui chamado nominalmente, para o encontro com o Dr. Ignácio, que se encontrava aguardando-me. Despedi-me do jovem companheiro e segui ao gabinete onde teria a entrevista com o nobre psiquiatra.


6

INFORMAÇÕES PRECIOSAS

Com jovialidade irradiante o Dr. Ferreira recepci­onou-nos, exteriorizando os júbilos que o invadiam, face à possibilidade de esclarecer-me em torno das nobres atividades daquela Casa de Socorro.

Por minha vez, profundamente sensibilizado, não tinha como expressar-lhe o reconhecimento que me dominava, retribuindo-lhe com simplicidade a gene­rosa maneira de estimular-me ao progresso íntimo.

Convidando-me a sentar-me em confortável pol­trona, passou a explicar-me parte da complexidade dos labores que tinham lugar naquele admirável No­socômio espiritual.

Esclareceu-me que era responsável somente por um dos pavilhões que albergava médiuns e alguns outros equivocados, enquanto diversos trabalhado­res, respectivamente se incumbiam de administrar outros setores que acolhiam diferentes ordens de por­tadores de alienações espirituais e que haviam fra­cassado no projeto reencarnacionista.

A supervisão geral era realizada por uma coligação constituída pelos diretores dos diversos Núcleos sob a presidência do apóstolo sacramentano, encar­regado das decisões finais.

Outrossim, lidadores da psiquiatria, que ali tra­balhavam com terapias valiosas, ofereciam também seu contributo, na condição de responsáveis pelas clínicas, nas quais estagiavam.

A ordem, a disciplina e o respeito pelas ativida­des pertinentes a cada área constituíam valioso re­curso para a harmonia geral e o contínuo aprimora­mento de técnicas terapêuticas como métodos de socorro que se multiplicavam conforme as necessi­dades que ocorressem.

— Vige, em todos os momentos — expôs com deli­cadeza — o sentimento de amor, entre aqueles que ali laboramos, constituindo o elo forte de vinculação en­tre nós. As decisões são tomadas sempre após diálo­gos construtivos e nunca vicejam o melindre, a cen­sura ou qualquer outra expressão perturbadora de comportamento, qual sucede nas diversas Entidades terrestres. O exemplo de engrandecimento moral e de abnegação, oferecido por Eurípedes, sensibiliza e dá segurança, por haver-se transformado no servidor de todos, ao invés de constranger os menos hábeis com as suas valiosas conquistas.

Fazendo uma breve pausa, apresentou-me o pro­grama que me propunha para o período do estágio solicitado.

— Não ignoramos — acrescentou — que o amigo Miranda vem-se aprofundando nas psicogêneses da obsessão e suas seqüelas, das enfermidades men­tais que as precedem ou que as sucedem, e, por isso mesmo, quanto me seja possível, acompanhá-lo-emos nas visitas às enfermarias e apartamentos que hos­pedam os irmãos em recuperação moral e comportamental.

“Noutros momentos, o irmão Alberto será o seu cicerone constante, autorizado a atendê-lo quanto seja possível e os nossos regulamentos permitam.”

Chamando, nominalmente, pelo interfone sobre a mesa o companheiro, deu entrada na sala um ho­mem de sessenta anos presumíveis, cordial e gentil, que deveria ser o bondoso orientador de que eu ne­cessitava.

Apresentados amavelmente pelo incansável di­retor, disse-nos:

— O caro Alberto aqui se encontra em ação, há mais de vinte anos, desde quando se despiu do cor­po físico e foi recolhido carinhosamente, de imediato passando à condição de cooperador infatigável.

“Havendo exercido a mediunidade socorrista por quatro lustros em venerável Instituição Espírita, atra­vessou o portal do túmulo portando títulos de mere­cimento, que o credenciaram a tornar-se valioso au­xiliar no despertamento de consciências em hiber­nação ou nubladas pelos fluidos tóxicos remanescen­tes das subjugações perversas de que foram vítimas. Ele terá expressivas experiências para repartir com o nosso querido estagiário.”

Antes que o novo amigo pudesse dizer algo, des­culpando-se ante as referências justas, prosseguiu:

— O caro Miranda é estudioso das faculdades me­diúnicas e suas distonias, com expressiva folha de serviço ao intercâmbio saudável entre as criaturas deambulantes no corpo físico e fora dele. Fui infor­mado, hoje mesmo, através do nosso serviço de esclarecimento, a respeito das atividades espirituais que vem desenvolvendo do lado de cá, há mais de cinqüenta anos... Portanto, identificados pelos mes­mos objetivos, tenho certeza que formarão um par de trabalhadores abençoados, fiéis aos propósitos do ministério de iluminação interior e da saúde integral a que se afeiçoam.

Agradecendo, algo canhestramente, apertamo­nos as mãos com sorriso fraternal, enquanto concluía:

— Nesta primeira fase, o nosso Alberto irá levá-lo a conhecer superficialmente o nosso pavilhão.

Rogando-lhe permissão, expressamos reconhe­cimento e saímos do seu gabinete, facultando-lhe dar prosseguimento aos compromissos graves que lhe diziam respeito, comprometendo- se reencontrar-nos logo mais.

Quando nos encontramos no amplo corredor de acesso aos vários setores, com cortesia Alberto cha­mou-me a atenção para a estrutura do edifício dese­nhado com cuidados especiais.

- Utilizamo-nos durante o dia — começou a eluci­dar-me — do máximo da luz natural do Sol, cuja inten­sidade é coada pelas lâminas especiais transparen­tes, que constituem grande parte do teto, ao mesmo tempo beneficiando a flora abundante que decora o imóvel, enquanto emana energias revigorantes. Man­temos todas as plantas vivas e evitamos colher as flores, a fim de que sejam mais duradouras nas suas hastes e se renovem com facilidade.

Olhei para a frente e percebi paralelamente des­tacados os blocos das enfermarias que se desloca­vam da via central, intercalados por áreas retangula­res externas que davam um aspecto agradável, qual se fosse uma clínica especial, sem as características convencionais, frias e rígidas dos hospitais terrestres. A um observador menos cuidadoso, pareceria um Ho­tel de grande porte, reservado para o repouso de con­valescentes.

Notando a minha admiração, o generoso amigo aduziu:

— Realmente, essa foi a preocupação dos cons­trutores deste Nosocômio: retirar ao máximo qualquer motivo que induza à depressão ou à angústia, pro­pondo bem-estar e recuperação. Igualmente, houve o cuidado de organizar um ambiente saudável sem os atavios que levam a devaneios e a reminiscências perturbadoras da caminhada terrestre... Nesta parte superior, pois que nos encontramos no primeiro piso, estagiam os pacientes melhorados, enquanto os mais aflitos e desesperados permanecem no térreo e no piso inferior, onde identificam paisagens menos be­las, face ao estado de estremunhamento e perturba­ção em que se demoram.

Realmente, eu não me houvera dado conta de que o pavilhão se erguia suavemente do solo, e que os pisos se destacavam com ligeira inclinação, diferin­do das edificações a que me encontrava acostuma­do.

Anotando as observações que detectava, agra­deci a Deus a incomum oportunidade que ora me era concedida, e que deveria aproveitar ao máximo.

Informou-nos Alberto que, naquela unidade hos­pitalar, estavam internados cem pacientes, aproxima­damente quarenta em boa fase de recuperação, com lucidez, e mais sessenta, que ainda experimentavam os tormentos que os assaltaram na etapa final, que lhes precedeu à desencarnação. Variavam os dramas de consciência, todos porém, quase sempre vincula-lados à conduta, no exercício da mediunidade.

Dando ênfase à informação, comentou:

— A mediunidade é bênção, sob qualquer aspec­to considerada, porque faculta a constatação da so­brevivência do Espírito à disjunção molecular, o que é fundamental para um comportamento compatível com os fatores que geram felicidade. Logo após, en­seja oportunidades valiosas para o exercício da auto-iluminação, pelas instruções de que o médium se faz portador, adotando-as, de início, para si mesmo, an­tes que para os outros. Por fim, podendo exercer uma forma de caridade especial, que é a de auxiliar no es­clarecimento daqueles que se demoram na ignorân­cia da sua realidade após a desencarnação, granje­ando amigos e irmãos excepcionais, que se lhe in­corporam à afetividade. A mediunidade, portanto, exercida com a lógica haurida na Codificação Kardequiana, constitui valioso patrimônio para a elevação e a paz. O médium, por isso mesmo, é donatário tran­sitório de oportunidades ímpares para a plenitude, não se podendo permitir as leviandades de utilizar esse nobre recurso de maneira comprometedora, vul­gar, insensata. Todo aquele que se facultar desvirtu­ar-lhe a finalidade nobre, qual acontece com qualquer faculdade física ou moral, sofrerá as inevitáveis con­seqüências de que não se libertará com facilidade. No entanto, é bem reduzido o número daqueles ser­vidores que se desincumbem a contento desse ministério, quando o abraçam.

Parecendo reflexionar com cuidado, logo prosseguiu:

— Seria de pensar-se que essa concessão não de­veria ser delegada àqueles que moralmente são dé­beis, mas somente a quem Possuísse resistências contra o mal que nele mesmo reside. A questão, po­rém, não está bem colocada nesses termos. A Divin­dade faculta a todos os seres humanos ensejos inco­muns, nas mais diversas áreas, para propiciar-lheso progresso moral. Com a mediunidade não ocorre de forma diferente. Embora nem todos os indivíduos pos­suam faculdades ostensivas, que se expressem em forma sonambúlica ou inconsciente, quanto gostari­am muitos, que justificam suas dúvidas por tomarem parte nas comunicações mais ou menos lúcidas na área da consciência, o fenômeno é bem caracteriza­do, oferecendo fatores para avaliação equilibrada de quem se empenhe em realizá-lo. À medida que o seu exercício se faz equilibrado, sistemático, ordeiro, sur­gem melhores Possibilidades para o intercâmbio, ampliando os recursos do medianeiro, que deverá aprimorar-se mais, ante o estímulo de que se vê ob­jeto.

“Todos sabemos, quando portadores de algum senso e consciência, que as faculdades genésicas têm finalidade específica, proporcionando a procriação, e, para tanto, ensejando o prazer que leva ao êxtase. Não obstante esse conhecimento, a utilização do sexo se transformou em um mercado de sensações, sem qualquer sentido afetivo ou de intercâmbio emocio­nal.

“No que diz respeito ao desempenho mediúnico, o sexo equilibrado é de vital importância, por ofere­cer energias específicas para potencializar os meca­nismos delicados de que se utilizam os Espíritos. Simultaneamente, a faculdade mediúnica, em razão dessas energias que movimenta, irradia, qual ocorre com outras faculdades artísticas, culturais, científi­cas, um campo vibratório que proporciona bem-estar àqueles que se lhe acercam, envolvendo-os em en­cantamento e admiração.

O mesmo se dá em relação à mediunidade, pelo fato de parecer algo mágico ou sobrenatural, muito do agrado dos sensacionalistas e supersticiosos. Como efeito, não são poucas as pes­soas que se sentem atraidas pelos médiuns, a princí­pio sem se darem conta da ocorrência fascinante, ter­minando por envolver-se emocionalmente em afeti­vidade apaixonada, injustificável. Do mesmo modo, os Espíritos ociosos e perversos, que sempre procu­ram perturbar aqueles que se voltam para o bem, não logrando agir diretamente sobre o instrumento me­diúnico, despertam sentimentos perturbadores que vicejam nos invigilantes, que se deixam arrebatar, comprometendo-se e prejudicando aquele que lhe tombe na armadilha bem urdida... Ao mesmo tempo, outros fatores que geram ganância, heranças infeli­zes do ego em desgoverno, como o dinheiro fácil, os sonhos do triunfo e da glória efêmeros, as vaidades infantis, que lhes dão a impressão de serem indiví­duos privilegiados, que se acreditam possuir somen­te méritos e destaques, são terríveis adversários do bom desempenho da mediunidade.”

Perscrutando o imenso corredor, pelo qual tran­sitavam médicos, enfermeiros, assistentes sociais, psicólogos e alguns pacientes em recuperação, o amigo concluiu com alguma melancolia:

— A maioria dos que aqui se encontram em trata­mento foi vítima de perturbações na área sexual, que os fez derrapar em compromissos graves perante a própria e a Consciência Divina. Certamente, outros igualmente caíram nos referidos perigos à mediuni­dade, procurando, no íntimo, satisfações hedonistas, sexuais...

Enquanto caminhávamos, o bondoso cicerone re­feria-se aos problemas que mereciam maiores consi­derações, chamando-me a atenção para o estado dos enfermos e explicando, ligeiramente, com o respeito que cada qual merece, os esforços que agora desen­volviam para se reabilitar dos enganos a que se ati­raram.

Visitamos, passo a passo, a clínica de avaliação, para onde eram trazidos aqueles que se encontravam melhorados, quando eram submetidos a testes psi­cológicos, de modo a medir-lhes o grau de entorpeci­mento mental e de vinculação com os dramas vivi­dos, após o que eram encaminhados às enfermarias próprias.

Fomos travando conhecimento com diversos ope­rosos funcionários especializados, sempre corteses, que trabalhavam com a face radiosa de alegria sau­dável, sem os ruídos costumeiros que são apresenta­dos como júbilo.

Visitamos uma clínica para tratamento de cho­ques eletromagnéticos, que se aplicavam em baixa voltagem, com objetivo de produzir estímulos nas si­napses eletroquímicas dos neurônios, especialmen­te naqueles que haviam sido portadores do transtor­no maníaco-depressivo ou obsessivo-compulsivo, permanecendo com as suas seqüelas. Esse processo facultava a liberação das energias deletérias que se haviam fixado no perispírito e continuavam aturdindo-os.

Acompanhamos um tratamento aplicado por jo­vem psicoterapeuta feminina, que dialogava com uma dama amargurada, que resistia em responder às per­guntas que lhe eram dirigidas. Sem qualquer enfado, cansaço ou irritação, a psicóloga narrou-lhe pequena história, que lhe atraiu a atenção.

Contou com simplicidade, que a existência ter­rena pode ser comparada a alguém que possui um tesouro valioso e sai em busca de outro perfeitamen­te dispensável, mas que acredita ser o único que lhe trará felicidade, tombando depois em frustração e de­sespero.

Para ilustrar, referiu-se a uma antiga lenda orien­tal, na qual uma jovem senhora, caminhando com o filhinho nos braços, passou por uma estranha gruta, de onde uma voz agradável e sedutora chamou-a, no­minalmente, convidando-a a entrar e apropriar-se dos tesouros ali existentes, belos e raros, como os olhos humanos nunca viram antes. Ficando aturdida, foi to­mada de curiosidade, pelo fato de ouvir a desconhe­cida voz e pela proposta fascinante. Como novamen­te escutasse o convite para se tornar muito rica, ou­viu com nitidez a voz lhe dizer que tudo poderia re­colher antes de sair, que passaria a pertencer-lhe, po­rém, no momento em que se afastasse da caverna, uma pesada porta desceria e não mais se abriria. Ti­vesse pois, cuidado, porqüanto estava diante de incomum felicidade, mas não poderia voltar ao local de­pois que a porta fosse cerrada.

A felizarda olhou em volta, e como não visse nin­guém, imaginou que nada teria a perder, se se adentrasse, o que fez de imediato, ficando deslumbrada ao contemplar jóias de peregrina beleza, gemas pre­ciosas, colares reluzentes, vasos de ébano e alabas­tro, estatuetas de incomparável Perfeição cobertas de lápis-lazúli esmeraldas, diamantes rubis, pérolas.

Não retornara à realidade, quando ouviu a VOZ repetir:

— Retira o que quiseres para levar, mas, tem ten­to, porque após saíres a porta descerá, fechando-se para sempre, e o que ficar atrás, nunca mais será re­cuperado.

Tomada por imensa ganância, começou a reco­lher as peças que lhe pareciam mais valiosas, e por­que desejasse a maior quantidade colocou o filhinho que tinha nos braços em lugar confortável no solo, continuando a colocar na barra da saia transformada em depósito, tudo quanto podia carregar.

Quando acreditou estar com um fardo infinita­mente valioso saiu apressadamente e viu descer a porta pesada.

Respirou aliviada e sorriu.

Encontrava-se radiante de felicidade quando, su­bitamente recordou-se do filhinho que havia deixado na furna...

Os olhos da paciente brilharam inteligentes, e ela perguntou:

— E a mãe, como ficou?

— Desesperada! — replicou a psicoterapeuta — Ago­ra, que tinha tudo quanto havia anelado, perdera, es­quecido na caverna, o seu maior tesouro. Assim agi­mos em nosso dia-a-dia terreno. Possuímos o que há de mais importante para a felicidade, e, no entanto, continuamos na cova das ambições procurando fan­tasias e brilhos secundários, perdendo o tesouro da paz, sem o qual caímos no fosso do desespero sem remédio...

E prosseguiu na sua atividade maravilhosa, tra­zendo aqueles que se atiraram no desfiladeiro som­brio do mutismo e do isolamento para recomeçar o treinamento para a realidade.


7

A AMARGA EXPERIÊNCIA DE LEÔNCIO

Gentilmente assessorado por Alberto, dirigimo­nos a uma das Enfermarias de amplas proporções, que era dividida habilmente em agradáveis e cômo­dos apartamentos para atendimento individual dos pacientes.

Adentramo-nos em um deles, que se apresenta­va acolhedor.

Ampla janela abria-se para o jardim verdejante, onde árvores frondosas abrigavam folhagem luxuri­ante e roseirais abriam-se com abundância de perfu­madas flores.

O cômodo reconfortante transpirava paz, pinta­do em suave tonalidade verde, apropriada para o re­pouso e a reflexão.

Reclinado sobre duas amplas almofadas encon­trava-se um senhor de pouco mais de sessenta anos, de semblante sério, mas que não denotava sofrimen­to ou simples circunspeção. Sentada próxima à cabe­ceira da cama, uma dama que irradiava paz conver­sava afavelmente em doce tonalidade de voz.

Quando nos notaram a entrada, Alberto explici­tou:

— Perdoe-nos a invasão da privacidade.

De imediato, foi advertido quanto ao prazer que a sua visita lhes proporcionava. Certamente, muito querido, foi recebido com real alegria, o que deveria acontecer com certa freqüência.

— Desejo apresentar-lhes um novo amigo — expli­cou o visitante — que se encontra realizando estágio em nossa Clínica. Trata-se do irmão Miranda, traba­lhador afeiçoado aos problemas pertinentes aos dis­túrbios espirituais, nos quais vicejam as interferên­cias dos irmãos alucinados e doentes, que se com­prazem no mal por ignorância.

Sorri jovialmente e acerquei-me do leito, cumpri­mentando fraternalmente o convalescente e a nobre senhora, que se apressou em dizer:

— É sempre com renovada alegria que recebemos companheiros dedicados ao estudo dessa grave epi­demia, que tem sido motivo de martírio para as cria­turas humanas, até hoje ainda não combatida com a eficiência que merece. E parece-me bastante estra­nho, por ser, talvez, a doença mais antiga da Huma­nidade, em relação a outras tantas prejudiciais. Bas­ta que nos recordemos que, em todos os períodos do pensamento histórico, a obsessão e suas seqüelas se têm apresentado ceifando a saúde física e mental dos indivíduos. Terrivelmente ignorada, ou simples­mente desconsiderada, vem prosseguindo no seu triste fanal de vencer todos aqueles que lhe tombam nas malhas coercitivas. Todos os esforços, portanto, direcionados para a desmistificação e o combate a esse terrível mal devem ser envidados, por todos aqueles que nos encontramos forrados pelos ideais superiores e que haurimos na palavra de Jesus o di­recionamento correto para a felicidade.

Parecendo que esperavam alguma palavra de minha parte, algo timjdamente concordei, acrescen­tando:

— Na raiz de todos os problemas que aturdem o ser humano sempre encontraremos o Espírito como seu responsável, face aos comprometimentos que se ocasionou Criado, simples e ignorante, com neutrali­dade interior, defrontando as opções de agir correta ou incorretamente, tudo quanto lhe ocorre provém da preferência que se permitiu de início, cabendo-lhe o reencontro com o equilíbrio que lhe direcionará os passos para o futuro. A obsessão encontra-se incur­sa nesse raciocínio porqüanto, somente ocorre em razão do comportamento irregular de quem se des­via do roteiro do bem fazer, criando animosidades e gerando revides. Certamente, haverá muitas antipatias gratuitas entre as pessoas, que resultam de pre­ferências psicológicas, de identificações ou reações afetivas, Os dardos atirados pelas mentes agressi­vas e inamistosas são inevitáveis para aqueles con­tra quem são dirigidos. No entanto, a conexão somen­te se dará por identidade de sintonia, por afeição àafinidade em que se manifestam. Por esse motivo, a obsessão sempre resulta das defecções morais do Es­pírito em relação ao seu próximo, e desse, infeliz e tresvariado, que não se permite desculpar e dar no­vas chances a quem lhe haja prejudicado, Não igno­ramos aquelas que têm gênese nas invejas, nas per­seguições aos idealistas e trabalhadores do Bem, mas que também somente se instalam se houver tomada psíquica naquele que se lhes torna objeto de perse­guição.

Porque percebesse o interesse real pela exposi­ção não proposital, continuei:

— O individuo que ama a retidão de princípios e os executa firmado em propósitos de elevação moral, mesmo quando fustigado pela pertinácia dos irmãos desajustados e perversos de ambos os planos da vida, não se deixa afetar, permanecendo nas disposições abraçadas, fiel ao programa traçado. Pode experimen­tar alguma aflição, como é natural, mas robustece-se na oração, no prazer do serviço que realiza, nas leitu­ras edificantes, na consciência pacificada. Simultaneamente, torna-se amparado pelos Espíritos nobres, seus afeiçoados desencarnados, aqueles que foram beneficiados por sua bondade fraternal, que acorrem a protegê-lo e sustentá-lo nas atividades que lhe di­zem respeito. Jamais se curvam sob as forças tene­brosas do mal aqueles que se entregam a Deus, a Je­sus e ao Bem, nas fileiras do dever a que se apegam.

Sentia-me enrubescer, quando, silenciando, Al­berto aduziu:

— Tem toda razão o nosso estagiário. Nenhuma sombra, por mais densa, consegue diminuir a clari­dade, assim como força alguma da desagregação moral e espiritual logra romper o equilíbrio da Lei de amor.

Dando novo curso à conversação, informou-me que o nosso visitado chamava-se Leôncio e a dama devotada, era D. Matilde, sua genitora, que o prece­dera no retorno à Pátria pela desencarnação.

— Leôncio explicou gentilmente — encontrava- se naquele apartamento, há alguns poucos meses, após tratamento prolongado na área de psiquiatria do Hospital, na parte inferior do edifício. Desencar­nara fazia pouco mais de quinze anos, e naquele mo­mento se encontrava em perfeito refazimento, reiden­tificando-se com os superiores objetivos da vida.

Sentindo-se indiretamente convidado à conver­sação edificante, o paciente apresentou uma expres­são de melancolia, e com gentileza comunicou

- Eu sou um hóspede feliz deste abençoado re­duto de misericórdia. Aqui cheguei em lamentável situação moral e espiritual, que somente a compla­cência divina pode socorrer. Em realidade, não me recordo dos detalhes que me caracterizaram a che­gada. Antes, eu conhecera o amor e o experienciara através do lar ditoso em que renasci, do carinho dos meus genitores devotados e, mais tarde, da esposa e dos filhos queridos. No entanto, a grandeza do amor que experimentamos neste remanso dedicado à saú­de transcende quaisquer palavras, porqüanto, os mis­sionários que o construíram, e o mantêm há longos anos, optaram pelo trabalho incessante em favor do próximo, quando poderiam estar desfrutando de ou­tros ambientes de luz e de reconforto moral... Renun­ciaram à felicidade de fruir paz, adotando a alegria de oferecê-la àqueles que a malbarataram por conta da própria irresponsabilidade. Medito longamente nos enunciados luminosos de Jesus, que aqui se vivem, e no ensinamento superior de Allan Kardec, a respei­to da Caridade, que é a essência do trabalho desen­volvido neste Hospital, a fim de que se me insculpam a ferro e fogo no Espírito, para que jamais volva a olvidá-los...

Silenciou brevemente, e após solicitar-nos, a Al­berto e a mim, que nos sentássemos em cômodo divã próximo, o que aquiescemos, talvez por considerar oportuno, deu curso à edificante conversação:

- Renasci, na Terra, há pouco mais de setenta anos, em formoso lar, onde o amor e o dever constitu­íam diretrizes de segurança. Desde cedo ouvi e senti o respeito pelo nome de Jesus e por Sua doutrina. Assim, portanto, fui educado na escola do exemplo, ao lado de outros irmãos consangüíneos. Meus pais eram católicos, porém, se dedicavam com fidelidade aos ensinamentos da Igreja que freqüentavam e para a qual nos conduziram com carinho. A medida que crescemos e adquirimos maioridade fomos optando pelas doutrinas que nos pareciam mais compatíveis com o desenvolvimento intelectual e moral. Conse­gui, por minha vez, adentrar-me em uma Universida­de, que era um dos meus sonhos mais ardentes, e concluí o curso que elegera.

“Foi nesse período, que passei a me interessar pelos fenômenos mediúnicos e paranormais, nos dias febricitantes em que a Parapsicologia era apresenta­da como a grande esclarecedora e devoradora de su­perstições, mitos e crenças... Aprofundei-me no es­tudo das diferentes correntes russa, holandesa, in­glesa, americana e brasileira, se podemos classificá­las desse modo, adotando o comportamento em tor­no dos fenômenos de natureza eminentemente psi e aqueloutros mediúnicos, que me levaram ao estudo sério do Espiritismo. Afeiçoado à literatura, à filoso­fia, à história, encontrei nos postulados espíritas a lógica profunda e a ética feliz para uma existência ditosa. Havendo-me dedicado à arte de escrever, já que era profissionalmente ligado a um grande periódico, no qual estava presente com regularidade e co­mentava acontecimentos inusuaís, passei a divulgar a Doutrina Espírita com entusiasmo e quase exalta­ção. De temperamento forte e presunçoso, esqueci-me que todos têm liberdade para pensar e agir con­forme lhes pareça melhor e que ninguém foi designado para ser defensor do Espiritismo, num arremedo de postura zelote, que hoje reconheço como abomi­nável, conseguindo ferir gregos e troian os, conforme o velho conceito, quando deveria ater-me ao lado no­bre das questões, apresentando os conceitos superiores do pensamento dos imortais e do Codificador, sem preocupações mesquinhas e exibicionistas.”

Interrompeu a narração por um pouco, após o que, medindo as palavras com acentuado cuidado, voltou a narrar:

- Consorciei-me com excelente companheira, que me foi enviada por Deus para ajudar-me na travessia terrestre e experimentei a honra da paternidade vári­as vezes. Reconheço que fui esposo e pai cuidadoso, cumpridor dos deveres, que procurou transmitir à fa­mília as lições libertadoras do Espiritismo. Mas a pro­sápia intelectual envenenou-me os sentimentos. So­berbo e egoísta, lentamente deixei-me fascinar pela absurda idéia de que me cabia a missão de preser­var a memória do mestre de Lion, lutando qual Don Quixote contra os fantasmas monstruosos que detec­tava nas pás dos moinhos de vento da ilusão, pas­sando a agredir sistematicamente nomes respeitá­veis e Instituições venerandas, por discrepâncias de minha parte. Possuidor de palavra fácil, usei a tribu­na espírita muitas vezes, apresentando temas relevantes, mas sempre os concluindo com dardos venenosos bem dirigidos contra os inimigos que criava ou supunha possuir. Simultaneamente consegui es­crever páginas repassadas de beleza, que ainda con­fortam muitas pessoas que as lêem. As paixões que predominavam no ser que sou, com o tempo as soma­ram, tomaram-me o fôlego, e tornei-me pessimista, agressivo, antipático.

“Como seria de esperar, muitos daqueles a quem agredi pela Imprensa reagiram com o seu direito de defesa, dando curso a discussões infelizes e desne­cessárias, que a morte a mim demonstrou serem so­mente fruto da vaidade e da exibição do personalis­mo doentio. E que, no meu inconsciente, qual ocorre com muitos outros viandantes terrenos, agasalhava a idéia de passar à imortalidade... humana. Conse­gui, por fim, ser mais detestado do que estimado. Não me dava conta, eu que ensinava aos outros, que es­tava sendo arrastado vigorosamente a rude obses­são, face ao cerco organizado por adversários soezes do Cristo e da Doutrina Espírita. Como conseqüên­cia, passei a nutrir vigorosa antipatia por médiuns e dirigentes de reuniões que se me apresentavam como ignorantes e incapazes de contribuir em favor da Cau­sa Espírita, quando, em uma reunião experimental, dentre as muitas que visitava com o fim de desmas­carar médiuns e exibir-me, encontrei aquela que se­ria o pivô dos meus desconcertos emocionais. Trata­va-se de jovem e encantadora médium psicofônica clarividente de excelentes recursos, porém, em fase primária de educação da faculdade. Relativamente frágil e muito insegura, inspirou-me imediata afeição, que não pude identificar de momento, tal a qualidade de que se constituía, O certo é, que, à medida que voltei àquele Núcleo, ao qual se vinculara, passei a oferecer-me para ministrar cursos de passes e outros, atraindo-a com persistente indução. Não me passa­vam, então, pela mente, idéias perturbadoras ou de­sejos malsãos. Telementalizado, porém, pelas Entida­des infelizes, consegui que ela se me afeiçoasse, der­rapando posteriormente em adultério nefando.”

O irmão Leôncio empalideceu ante a lembrança daqueles acontecimentos sombrios e fez-se ligeira­mente trêmulo. Tentando, porém, controlar a emoção, prosseguiu, de voz embargada:

- O escândalo, que tem pernas curtas, logo acon­teceu, envolvendo a moça que, admoestada carinho­samente, foi afastada da Instituição, quanto eu mes­mo, cortesmente, pelo seu diretor, até que a minha família tomou conhecimento, e não mais pude ocul­tar a verdade, massacrando com a conduta irrefletida e doentia, corações afetuosos e sensíveis. Incapaz de continuar no lar, após exculpar-me com a esposa dilacerada, retirei-me para viver com a aturdida víti­ma da minha sedução. A sua faculdade incipiente, ante a conduta reprochável que passou a manter, se tornou campo de Perturbação e enfermidades que a vitimaram, levando-a à prematura desencarnação.

“Não me perdoando a série de desatinos, trans­feri-me de cidade, abandonei os deveres espirituais quando mais deles necessitava, e derrapei por com­pleto na obsessão, O desequilíbrio mental assaltou-me, e passei aos alcoólicos em fuga espetacular da realidade. Nesse comenos, soube da desencarnação da esposa devotada, e somei, às dores antigas, mais essa aflição, perdendo totalmente o interesse pela existência física. A queda no fosso de si mesmo não encontra apoio ou piso de sustentação, abrindo-se o abismo e cada vez mais se tornando profundo. Esquecido dos e pelos amigos, uni-me a grupos de dip­somaníacos elegantes e vulgares até que a morte me convidou o corpo ao túmulo e o Espírito à consciên­cia dos atos.”

Novamente aquietou-se ante o respeitoso silên­cio de todos nós. Enquanto a genitora lhe acariciava a cabeça, como a estimulá-lo a prosseguir, ele assim o fez:

— Fui arrastado por antigos asseclas, inimigos que eu arregimentara em reencarnações anteriores, quan­do me houvera tornado membro-soldado do Exército de Jesus, e impusera a crueldade como instrumento de conversão religiosa... Agora desforçavam-se com inclemente perversidade, arrastando-me para regiões inferiores onde experimentei as mais rudes humilha­ções e desacatos de outros mais arrogantes adversá­rios. O meu sofrimento era tão atroz e a consciência de culpa tão severa, que não me recordava das blan­dícias da oração, nem da intercessão divina sempre ao alcance de todos os calcetas e criminosos.

“Por fim, depois de excruciantes sofrimentos, re­cordei-me de Jesus, e passei a suplicar-Lhe miseri­córdia e compaixão. Essa atitude porém, era reflexo das intercessões de minha mãe e de minha esposa, então recuperada das dores que lhe houvera infligi­do e que me perdoara todos os delitos que eu come­tera, apiedadas das minhas refregas e dos meus so­frimentos superlativos.

“Desse modo, em uma das excursões realizadas pela Rainha Santa Isabel, de Portugal, às regiões de supremo desconforto e dor, o apóstolo de Sacramen­to me retirou do abismo prendendo-me numa das re­des magnéticas atiradas sobre o paul de degradação e vergonha, recambiando-me para este Abrigo, onde permaneci longamente em recuperação, libertando-me dos pesadelos que me continuaram afligindo. Transferido para este recinto onde me encontro, ago­ra livre das marcas hediondas das regiões trevos as onde estive, permanecem as reminiscências dos er­ros, a amargura do insucesso, mas também a espe­rança do futuro acenando-me com oportunidades de reparação.”

Quando silenciou, o suor porejava-lhe na face pálida e as lágrimas corriam-lhe em abundância si­lenciosa e depuradora.

Dona Matilde, traduzindo expressiva alegria no rosto, enquanto o filho se refazia, completou:

— A jovem, por haver sido vítima da própria igno­rância e insensatez, foi amparada devidamente em outro pavilhão do nosso Hospital, e apesar desta Clí­nica ser dedicada a pacientes específicos, ele aqui foi amparado para receber assistência mais especi­alizada através dos médiuns que cooperam com o nosso serviço de recuperação espiritual.

“Conforme os amigos podem depreender, mais se pede àquele que mais recebe, de acordo com o en­sinamento sábio de Jesus, e a responsabilidade do nosso Leôncio é muito grave em razão do seu pro­fundo conhecimento do Espiritismo, que não soube aplicar como recurso e combustível para a auto-ilu­minação, preocupado como se encontrava em com­bater os outros, esquecido de si mesmo... Mas, como tudo acontece conforme a vontade de Deus, haverá tempo para recomeço e trabalho, alegria e serviço, repa­ração e crescimento interior. Hoje vivemos alegres, porque a minha nora querida tem estado conosco, e os filhos que ambos deixaram na Terra, felizmente conseguiram superar os traumas sofridos, não haven­do, portanto, maiores danos como conseqüência da deserção ao dever.

Sentia-me fascinado com o ocorrido com Leôncio e a mente esfervilhava de perguntas que a oportuni­dade não permitia apresentar.

Agradecendo-lhe a generosidade da narração edificante para mim e rica de advertências para to­dos os que dela tomem conhecimento, passamos a outros temas agradáveis, após o que, alguns minu­tos transcorridos, pedimos licença para nos afastar­mos, prosseguindo com a nossa visita de aprendiza­gem e tomada de conhecimento dos fatores que le­vam o indivíduo que possui tudo, no entanto invigi­lante, a delinqüir.

Quanto é grave o comportamento de querer mu­dar o mundo sem a preocupação de realizar mudan­ças internas, fundamentais, para que, assim, o mun­do venha a tornar-se melhor. É sempre mais fácil exi­gir dos demais, impor ao próximo, vigiar os atos alhei­os, do que voltar-se para si mesmo, sendo exigente consigo e contemporizador com as deficiências que registre nas demais pessoas.


8

INDAGAÇÕES ESCLARECEDORAS

Logo nos afastamos do apartamento aconchegan te, indaguei ao preclaro Alberto:

— Sem desejar envolver-me em julgamento apres­sado, gostaria de entender como pôde o amigo Leôn­cio, portador de tantos recursos de elevação e conhe­cimentos profundos da Doutrina da razão, envolver se nessa teia de prejuízos graves?

Lúcido e ponderado, sem qualquer expressão de Censura, explicou-nos:

— Caro Miranda a existência terrestre, como sa­bemos, é sempre inçada de perigos, que repontam do passado delituoso e das atrações que se multipli­cam exuberantes ao calor das paixões que remanes­cem dos instintos e são imperiosas no seu cerco àlógica, à razão. Reencarnado, o Espírito perde tem­porariamente parte da lucidez que possui, a fim de que aprimore os sentimentos e engrandeça-se nos testemunhos. Não obstante, no fragor das lutas re­nhidas, envolve-se com entusiasmo ou desinteressa-se de levar adiante os objetivos para os quais re­tornou ao proscênio terrestre, quando sofre injunções difíceis. Invariavelmente, os primeiros tentames de crescimento se fazem com relativa facilidade, tornan­do-se desafiadores à medida que se expande o cam­po de ação e se dá o reencontro com as experiências pretéritas que ficaram interrompidas, mas as personagens que delas participaram continuam vivas e atuantes... É nessa fase que irrompem as lembran­ças, agora transformadas em sentimentos e emoções, sem claridade de entendimento, conduzindo a com­portamentos que surpreendem pelo inesperado da circunstância. Nosso caro Leôncio experimentou a dádiva do conhecimento espírita, mas lhe faltaram os recursos morais, que embora vicejassem no ínti­mo e o orientassem de alguma forma, não eram sufi­cientes para superar as tendências em predomínio no ego: a vaidade exacerbada, o temperamento agres­sivo e soberbo, a presunção do conhecimento acadê­mico, a ambição por exercer um ministério missioná­rio... Foi nessa deficiência do Espírito, que se abri­ram as brechas para as agressões imprudentes dos seus adversários pessoais, bem como aqueloutros do ideal libertador.

Facultando-me tempo para reflexão, calou-se por breve momento, para logo dar seguimento aos comen­tários:

— O conhecimento intelectual nem sempre ofere­ce discernimento emocional, e não são poucos aque­les que, possuidores de grande cultura, falham em questões pertinentes ao sentimento, ensoberbecen­do-se e mantendo distância mental das pessoas que consideram inferiores. Infelizmente, os preconceitos de toda ordem sempre surgem na utópica superiori­dade daqueles que se atribuem valores que realmen­te não possuem. Afirma-se com certa sabedoria, que Deus pôs o conhecimento na cabeça, para bem con­duzir o indivíduo através da razão, porém o senti­mento foi colocado no coração, para que a ardência das emoções possa derreter o gelo da inteligência. Há, desse modo, uma distância significativa entre conhecer e vivenciar, ensinar e sentir, compreender e amar em profundidade, ajudando sempre e sem ces­sar. O Espiritismo é dirigido à lógica e à razão, po­rém, tem as suas raízes fincadas no amor, o que per­mite que todos os indivíduos o assimilem pelo en­tendimento e pelo sentimento, quando desvestido das linguagens complexas que, não poucas vezes, alguns dos seus profitentes o revestem, em exibicio­nismos literários desnecessários e de resultados ne­gativos. Há muita facilidade em dizer coisas simples de maneira interpolada, mas é muito difícil exprimir temas complexos de forma fácil, o que resulta em pos­suir mais do que o conhecimento, mas sim, a sabe­doria.

“O nosso confrade tornou-se duelista da palavra, esgrimindo o verbo com terminologia aguçada como lâmina para ferir, esquecendo-se de que a nossa é a proposta de ajudar sempre, porqüanto Jesus e Allan Kardec sempre se conduziram dessa forma. Mesmo quando assumiram postura austera, jamais recorre­ram à violência ou ao desrespeito acusador em rela­ção aos seus adversários, O Espiritismo é a grande luz que predominará um dia no arquipélago de estre­las do conhecimento, orientando e iluminando men­tes e corações para o auto-encontro e a plenitude.”

Eu concordava totalmente com as suas elucida­ções claras e robustas. Apesar disso, desejando me­lhor entender o acontecimento de que tomáramos conhecimento, ainda interroguei:

— Leôncio referiu-se a ter sido membro-soldado do Exército de Jesus. O que desejou dizer?

Elegante e generoso, o diligente companheiro es­clareceu:

— Devemos recordar-nos que nos séculos 15º e 16º na Espanha, dois acontecimentos graves na área da religião assinalaram toda uma época de terror para a Humanidade. A primeira, teve lugar quando o mon­ge dominicano Tomás de Torquemada foi nomeado um dos inquisidores da fé, no ano de 1482. Homem culto e perverso, logo se reuniu com os legistas João de Chaves e Tristão de Medina, de imediato redigin­do as Instruções e Ordenanças dos Inquisidores que, somente por ele pessoalmente condenaram à foguei­ra 8.800 pessoas e mais 96.504 que experimentaram outras punições. Ainda, graças a ele, os Reis católi­cos, Fernando e Isabel, expulsaram do país mais de um milhão de judeus que de lá fugiram a fim de esca­par às hediondas perseguições. O segundo, foi a cri­ação da Companhia de Jesus, pelo também domini­cano Inácio de Loyola que, após o insucesso como cavaleiro, renunciou às batalhas, mergulhou o pen­samento na história da vida dos santos e tornou-se peregrino, trocando a sua pela indumentária de um mendigo. Posteriormente visitou a terra santa, orde­nou-se monge e criou a referida Ordem que, se de um lado sensibilizou homens notáveis para o minis­tério da evangelização dos povos, como José de An­chieta e Manoel da Nóbrega, por outro submeteu os

silvícolas do Novo Mundo a arbitrariedades inimagi­náveis, inclusive, quase destruindo-lhes a cultura e a fé primitiva... Juntando-se a esses dois visionários, que nos merecem respeito, mas que exorbitaram no comportamento religioso a que se entregaram, mui­tos homens se ofereceram para servir a Jesus, desde que não abandonassem, naturalmente, o mundo nem os seus bens, motivando desgraças inomináveis, cu­jos frutos amargos ainda se encontram na árvore dos remorsos de incontáveis criaturas... O nosso caro Le­ôncio fez parte das hostes desses soldados de Jesus, que se permitiam todas as arbitrariedades sob o am­paro da justiça religiosa e apoio da secular igreja, con­traindo dívidas inumeráveis, que continuam pesan­do na economia moral de cada um. Embora haja re­tornado à Terra mais de uma vez em experiências ex­piatórias, na mais recente, aquinhoado com a luminí­fera mensagem do Consolador, para poder reparar e libertar muitos encarcerados na ignorância religiosa, eis que volveu à conduta soberba e perniciosa de on­tem, sintonizando com os desafetos que o vêm per­seguindo desde aqueles já recuados dias... Ao invés de haver utilizado a incomum oportunidade para de­salgemar-se, continuou no ergástulo a que se permi­tiu espontaneamente. O período de sofrimento nas regiões purificadoras o auxiliará a agir corretamente em futuros cometimentos. O reencontro com a cons­ciência pessoal e a Cósmica, presentes no próximo, mesmo ferido, é inevitável para todas as criaturas.”

Ante o silêncio que se fez natural, meditando, re­cordei-me da informação de D. Matilde, quanto ao seu internamento naquele e não em outro pavilhão, por motivos especiais. Para não perder o ensejo de aprendizagem, novamente indaguei:

— Quais os motivos especiais para que o irmão pa­decente viesse para esta Clínica e não para outra qual­quer, já que essa era específica para médiuns fracas­sados?

Como se esperasse pela interrogação, com a gen­tileza de paciente professor, o cicerone disposto ex­plicou:

— O grave comprometimento com o erro não anu­lou as boas obras que foram praticadas. O irmão Le­ôncio deixou na Terra um patrimônio literário muito nobre, que vem ensinando e orientando muitas vi­das a encontrar o rumo da felicidade mediante o es­clarecimento correto e oportuno. As suas defecções são pessoais, e por elas vem respondendo, mas tam­bém os labores de engrandecimento moral oferecem-lhe créditos relevantes, que diminuem as conseqüên­cias funestas da sua invigilância. Nada desaparece na contabilidade da vida, constituindo sempre valor que faz parte das operações evolutivas dos seres. Ao lado disso, os seus afetos, particularmente a genito­ra, credora de muitos títulos de enobrecimento, e sua esposa, que conseguira manter o amor acima das vi­cissitudes, as orações de muitos corações que lhe são afetuosos, intercederam em seu favor, facultando-lhe conquista especial da misericórdia de Deus, que nun­ca se expressa em regime de exceção, por estar aber­ta a todos os seres do universo. Ademais, em razão da hipnose profunda de que foi vítima nos recintos expungitivos por onde passou, fixando nele as atro­cidades anteriormente praticadas, que necessitavam ser apagadas por intermédio de terapia baseada nas vivências passadas, de forma que, somente o presente e o futuro pudessem direcionar-lhe os passos, sem os clichês perversos insculpidos no inconsciente pro­fundo, impondo-lhe amargura e remorso pouco edifi­cantes. Aqui estagiam médiuns psicofônicos muitos hábeis e portadores de excelentes recursos de ecto­plasmia, facultando que sejam realizadas sessões pró­prias para essa finalidade — cirurgias para a extração de células fotoelétricas implantadas no encéfalo perispiritual, clichês insculpidos na memória psíquica, etc. Foi, portanto, uma providência terapêutica e não uma concessão de privilégio, o que lhe aumenta tam­bém a responsabilidade e o compromisso para com a Vida.

— E que lhe está reservado para o futuro? — tornei a inquirir com real interesse, igualmente pensando nas experiências que eu próprio deveria enfrentar em relação ao porvir.

Sorrindo com jovialidade, sem apresentar qual­quer laivo de irritação com uma indagação tão ingê­nua, Alberto contestou:

— Para todos nós, caro Miranda, estão reservadas as oportunidades abençoadas de crescimento e evo­lução, não importando qual seja o contributo de dor e luta que nos seja imposto. Evolução é processo de renovação constante e de crescimento interior passo a passo com alegria e tirocínio em torno da Realida­de. Ainda não foram desenhados os projetos especí­ficos para o retorno do nosso Leôncio à Terra. Muitos que lhe estão vinculados encontram-se no plano fisi­co, e creio que somente após reunir novamente o clã, revisar conquistas e prejuízos, os Mensageiros da Verdade irão definir diretrizes para recomeço, tendo em vista as possibilidades do paciente então renovado e rico de entusiasmo pelo recomeço. A Terra écolo gentil de mãe devotada, que sempre nos recebe de volta, ensejando-nos amadurecimento e liberta­ção de grilhões, a fim de que, também ela ascenda na escala dos mundos, conforme está programado.

Silenciou o bom condutor, ensej ando-me reflexi­onar um pouco, e voltar a nova indagação:

— E a jovem médium, como se encontra? Volverá a manter relacionamento com Leôncio?

— Conheço a moça enganada — prosseguiu com a sua gentileza e sinceridade — e tenho-lhe acompa­nhado o processo de recuperação. Pelo fato de haver sido mal orientada, a sua responsabilidade é menor, mesmo em relação ao fracasso no campo mediúnico, no qual deveria exercer a faculdade atormentada, con­tribuindo para o bem de muitos Espíritos que, atra­vés do seu concurso, receberiam a orientação tera­pêutica para se libertarem dos sofrimentos em que estorcegam. Destituída como se encontrava de sen­timentos pervertidos ou intenções malsãs, foi consi­derada em nossa Instituição como sendo vítima das circunstâncias e da própria fragilidade moral, rece­bendo carinhosa ajuda. Atualmente vem trabalhan­do mediunicamente, colaborando no socorro aos de­sencarnados portadores de alucinações dolorosas que, nos seus fluidos, encontram campo de refazimen­to e, mediante a doutrinação que recebem, passam a ter diminuídos os sofrimentos. Sempre há oportuni­dade para todos quantos honestamente se empe­nhem na tarefa de recuperação de si mesmos e de fraternidade em relação ao seu próximo. A moeda de amor que direcionamos a outrem é raio de luz em nos­so caminho em sombras, clareando-nos a marcha. Certamente, em momento próprio, defrontar-se-ão esses Espíritos amigos e de sentimentos controvertidos, para que programem a sublimação do amor através de algum mecanismo da reencarnação. Por enquan­to, é prematura qualquer conjectura em torno de como isso acontecerá, cabendo a cada qual o estabeleci­mento de metas renovadoras e felizes.

Sentia-me encantado com as informações escla­recedoras. O dia estava esplendente de luz, que pe­netrava suavemente pelo teto e pelos lados do edifí­cio, derramando claridade suave e benfazeja. E por­que as horas corressem céleres, retornamos ao gabi­nete do doutor Ignácio Ferreira, para aguardar novas instruções. Certamente que ficaram por ser visitados muitos outros setores do Pavilhão, o que ocorreria em momento adequado.


9

TAREFAS RELEVANTES

Quando retornamos ao gabinete do psiquiatra amigo, fomos recebidos com gáudio e interesse em torno do que houvéramos observado, e quais eram as nossas opiniões a respeito do trabalho. Natural­mente, escusando-nos de apresentar conceitos pre­cipitados e usando prudência, referi-me à agradável oportunidade de aprender e renovar-me sob a orien­tação fraternal de Alberto que aliava, à condição de cicerone, a sabedoria do bom professor, que muito me surpreendera positivamente.

Dispensando-lhe os serviços, pois que se encon­trava comprometido com novas tarefas naquela tar­de, doutor Ignácio convidou-me a um passeio pelo jardim externo do Pavilhão, a fim de nos reabastecer­mos de energias vitalizadoras extraídas da Nature­za.

A temperatura amena e o favônio caricioso que bailava no ambiente calmo estimulavam-nos a cami­nhar entre as aléias bem traçadas com buxos formo­sos e pelos jardins floridos que trescalavam perfumes variados. Tínhamos a impressão de nos encontrar em uma estância de paz, distante das aflições terrenas, o que era realidade, pois essa fora a intenção do ide­alizador do Conjunto hospitalar, a fim de que os paci­entes se refizessem das turbulências vividas, recom­pondo-se e reformulando conceituações em torno da vida.

Intrigavam-me, a argúcia para o bem e a eleva­ção espiritual de Eurípedes Barsanulfo, o abnegado servidor de Jesus, que abraçara o martírio nos pri­mórdios do Cristianismo nas Gálias lugdunenses, assinalando o seu sacrifício com a coragem e a fé ina­movível no Herói da Cruz.

Porque a circunstância fosse favorável, e saben­do que o nobre médico privava da intimidade do gran­de apóstolo, interroguei-o com delicadeza a respeito do lídimo cristão.

Sem fazer-se rogado, o benfeitor entreteceu con­siderações justas sobre a sua mais recente existên­cia na Terra, que dava continuidade a experiências luminosas que lhe caracterizavam a evolução. Face ao seu interesse pelo atendimento psiquiátrico aos falidos no ministério da fé espírita, informou-nos que, desde há dois séculos, aquele Espírito de escol se interessava pela interpretação do homem, pelo apro­fundamento na sua psicologia e por uma formulação de proposta iluminativa para a sua perfeita integra­ção no equilíbrio.

- Depois de inumeráveis existências profícuas —informou-nos o amigo, enquanto caminhávamos pela alameda — o missionário do amor renascera em Zuri­que, no ano de 1741, com o nome de Johann Kaspar Lavater, havendo manifestado desde muito jovem acentuado pendor místico, que o levou através dos anos à adoção da religião dominante, na área do protestantismo. Havendo sido ordenado pastor, contri­buiu grandemente para a divulgação do pensamento cristão desvestido de qualquer dogmatismo, paixão de seita ou denominação estranha. Orador incomum e pensador profundo, com imensa habilidade para desenovelar Jesus dos símbolos neotestamentários em que fora sitiado pelos Concílios e interesses su­balternos das religiões do passado, seus sermões atraíam grande público, especialmente porque, àque­la época, apoiavam a revolução das idéias novas que se alastrava pela Suíça, recém-chegada da França. Logo depois, porque a Revolução Francesa extrapo­lasse na difusão das teses materialistas, favorecen­do o racionalismo absoluto, colocou-se contra o ab­surdo da negação de Deus e da imortalidade da alma, permanecendo vinculado às correntes místicas e sen­timentais, nas quais melhor identificava Jesus e os Seus propósitos de amor para com a Humanidade. As suas reminiscências de outras existências, de sa­crifício e dedicação à fé cristã, tornaram-no admirado e respeitado. Exilado para a Basiléia, pela sua lealdade ao pensamento cristão original, permaneceu devotado ao apostolado, retornando, mais tarde, quando foi ferido numa das lutas pela tomada da cidade por Massèna, no ano de 1799, de cujas conseqüências veio a desencarnar em 1801. Admirado teólogo passou a ser considerado o criador da moderna Fisiognomonia, em razão do livro que deixou e foi publicado mais tarde sob o título de A Arte de Conhecer os Homens pela Fisionomia.

- Convidando-nos a sentar em gracioso banco uma pérgula florida, atraente e confortável, prosseguiu, explicando-nos:

- A Fisiognomonia, é uma velha arte, ou ciência para alguns estudiosos, de se conhecer as qualida­des inatas e os valores morais dos indivíduos atra­vés do exame e da cuidadosa interpretação da fisio­nomia de cada um. Trata-se, sem dúvida, de crença antiga, através da qual a fisionomia é reflexo do ser humano em si mesmo. Fosse hoje, e poderíamos adu­zir que isso teria alguma razão graças ao perispírito, que se encarrega de modelar no corpo os valores éti­co-morais da criatura, muitas vezes desvelando o seu mundo interior pelos reflexos que a face exterioriza. Muitos sábios gregos cuidaram de estudá-la, dentre os quais Galeno, Plínio, Cassiodoro, além de diver­sos escritores do passado que fizeram o mesmo. Es­quecida, por um largo período, ressurgiu na Renas­cença, despertando o interesse de inúmeros pesqui­sadores, especialmente do célebre Tomás de Campa­nella, que muito a divulgou, baseando-se no trabalho de Porta, intitulado Da Fisiognomonia Humana. No­vamente esquecida, foi restaurada por Lavater, e pas­sou a merecer alguma consideração a partir daí, no século 19, ligando-se à nascente Frenologia, sendo, sem qualquer dúvida, ambas doutrinas precursoras da atual Biotipologia. Cremos, pessoalmente, ser pro­vável que César Lombroso utilizou-se de alguns dos seus postulados, a fim de estabelecer as bases da sua tese na Antropologia Criminal, através de estu­dos antropométricos cuidadosos, procurando demons­trar que os criminosos pertencem a um tipo biológico especial da humanidade, biótipo representativo de um grupo próprio descendente do gênero humano. Esse ser apresentaria uma degenerescência que o re­ baixaria ao nível inferior, ao estágio de selvageria, pouco superior ao dos lunáticos. Igualmente supu­nha, o grande investigador italiano, que as caracte­rísticas mentais decorreriam da hereditariedade, sen­do, portanto, de origem fisiológica, expressando a representação de um ser degenerado e primário muito diferente do indivíduo humano normal e expressan­do-o nos traços físicos, mentais e nervosos. Centrali­zava no conceito do atavismo as anomalias mentais, como sendo uma regressão a um tipo inferior de ser humano, graças à hereditariedade e não aos fatores ambientais. Embora rechaçado no seu tempo, contri­buiu de alguma forma para a introdução de novos métodos para otratamento dos criminosos e de muitos alienados mentais...

“Apesar de haver travado conhecimento com os fenômenos mediúnicos, que após estudados levaram-no ao Espiritualismo e mesmo ao Espiritismo, faltou-lhe um conhecimento profundo da reencarnação como das leis de causa e efeito, para entender que, todo Es­pírito é o autor do seu destino, insculpindo em cada experiência carnal as conquistas e prejuízos que de­correm da sua conduta. Desse modo, o atavismo que o leva a uma aparente queda na escala inferior da evolução, trata-se apenas do distúrbio que o Espírito se impõe para aprender a valorizar a vida, mediante expiações engrandecedoras e provações regenerati­vas. No caso dos criminosos natos, que tanto o preo­cupavam, identificamos, sim, em cada um deles, o Es­pírito primário, em processo de ajustamento às leis da ordem e da disciplina, desarmonizado no grupo social. Identificados, devem merecer tratamento es­pecializado, a fim de evitar que derrapem nos crimes hediondos ou sejam vítimas da própria impulsivida­de, sendo trucidados por Outros mais perturbados A reencarnação é, portanto, a chave para eqüacionar o enigma que o notável antropólogo criminalista não conseguiu, detendo-se apenas nos efeitos, na cons­tituição do crânio e noutras características mentais e nervosas.”

Parecendo ordenar o raciocínio, em espontânea reflexão, logo depois, deu curso à narração:

- Sempre interessado no progresso do ser huma­no e na sua transformação moral, a fim de conquistar a felicidade, Eurípedes tem trabalhado, desde recua­dos tempos, para conseguir esse desiderato. Enquan­to viveu na organização física e amou, ajudando a edificar vidas, na sua querida Sacramento, na recen­te reencarnação, onde deixou pegadas luminosas, que prosseguem apontando os rumos do Mestre, não me­diu sacrificios para se transformar no lídimo discípu­lo fiel de Jesus em todas as circunstâncias. Regres­sando à pátria espiritual e constatando a falência de muitas existências que se deveriam ter entregado ao ministério do Bem, mas retornavam na condição de Espíritos desvairados hebetados, tristes, fracassados e arrebanhados para regiões de muita sombra e dor, nas quais se homiziam os adversários da Luz, empe­nhou-se em erguer este santuário para a saúde men­tal, que é também albergue para repouso e refazimento dos descuidados filhos do Calvário, que se esque­ceram do Mestre, deixando-O abandonado...

Nas palavras finais, o médico denotava emoção na voz e compaixão pelos combalidos que foram ar­rebatados pela loucura a que se entregaram espon­taneamente, porque nunca faltam advertências e con­ solações, socorros e apoio, mesmo quando, obstina­damente, os aprendizes preferem afastar-se dos mes­tres e das suas lições de amor.

Os doces perfumes pairavam na leve brisa, e har­monias, para mim desconhecidas, tocavamme as mais delicadas fibras do Espírito.

— O processo de evolução — continuou esponta­neamente a enunciar — é lento, porque aqueles que nele estamos envolvidos, optamos pelo imediato, que são as ilusões que afastam aparentemente as respon­sabilidades e as lutas, intoxicando-nos os centros do discernimento e entorpecendo-nos a razão. Luz, po­rém, em toda parte, o amor de Nosso Pai convidando à renovação e ao trabalho, à conquista de si mesmo como passo inicial para a aquisição da alegria, da paz e da felicidade de viver. Dia virá, e já se anuncia, em que o Evangelho de Jesus tocará os corações com mais profundidade, e o ser humano se levantará dos vales por onde deambula, galgando a montanha da libertação, a fim de contemplar e fruir os horizontes infinitos e plenificadores. Até que chegue esse mo­mento, que todos nós, aqueles que amamos e já des­pertamos para as responsabilidades que nos dizem respeito, nos demos as mãos e, unidos, sirvamos sem reclamação, ampliando o campo das realizações eno­brecedoras.

Depois de um sorriso muito especial, tocou-me o ombro, e com gesto de simpatia e muita cordialida­de, concluiu o passeio, convidando-me:

- Retornemos ao Pavilhão, porqüanto, logo mais, quando o manto da noite descer sobre a Terra e nos­sa Região, teremos muito trabalho pela frente e algu­mas realizações especiais.

Sem qualquer delonga levantamo-nos e, silenci­Osos, beneficiando-nos das concessões da natureza, respirando em ritmo tranqüilo e profundo, seguimos na direção da entrada do formoso Nosocômio.


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EXPERIÊNCIAS GRATIFICADORAS

Hospedado em agradável apartamento situado no Pavilhão por onde caminhamos pela manhã, aten­dendo à gentileza do seu diretor que no-lo ofereceu para o período reservado ao nosso estágio, quando retornamos e despedimo-nos, fomos conduzido por Almério ao novo domicílio.

Ficando a sós, após agradecer ao dedicado com­panheiro, não me pude furtar a reflexões oportunas.

Para onde dirigisse o pensamento encontrava presente a misericórdia de Deus através dos Seus Em­baixadores. O amor desse Espírito superior, o vene­rável Eurípedes, conseguira edificar um ninho de paz para alguns dos náufragos da jornada terrestre, es­pecialmente aqueles que não deveriam fracassar ante o fragor das marés bravias que se sucedem na socie­dade terrestre, e, não obstante, sucumbiram... Hon­rados pelo conhecimento da Revelação Espírita, como se houveram enganado, a ponto de retornarem em situação calamitosa! Os esclarecimentos e as adver tências oferecidos pelo Espiritismo constituem um barco de segurança para a travessia orgânica no pro­cesso evolutivo. No entanto, fazia-se expressivo o nú­mero daqueles que, mesmo informados da realidade da vida, optaram pelas enganosas paixões de breve duração, entorpecendo a consciência nos vapores do egoísmo e dos desejos infrenes que os conduziram ao malogro.

Não são poucas as pessoas que, ignorando a Dou­trina Espírita e respeitando-a, acreditam que o fato de alguém esposar as lições que defluem das pági­nas luminosas da Codificação e das Obras que lhe são subsidiárias, de imediato o torna um ser renova­do e imbatível. Isso deveria ocorrer, sem dúvida, no entanto, em razão das heranças ancestrais negati­vas e das múltiplas vinculações com o vício, cujos resíduos permanecem por longo período impregnan­do o perispírito, nem sempre o candidato à edifica­ção de si mesmo consegue o objetivo a que se pro­põe. Para que isso aconteça, torna-se imprescindível todo o empenho e sacrifício pessoal, renunciando às fortes tendências perturbadoras, a fim de realizar a transformação moral imprescindível à felicidade.

O expositor, o escritor, o médium espírita, melhor do que qualquer outro adepto da Doutrina do Conso­lador, são portadores de altas responsabilidades, de­vendo insculpir na conduta os conteúdos que ofere­cem aos demais. Com destaque, porém, o medianei­ro esclarecido, por sentir e manter contato direto com o mundo extra-físico, tornando-se instrumento das comunicações dos imortais, está consciente do sig­nificado dos valores morais que deve cultivar, a fim de não se deixar dominar pelas fantasias e fanfarro nices do gozo exorbitante, do egoísmo, do orgulho e da presunção que o tentam constantemente, mas não dispõem de recursos mais valiosos e profundos para o convencerem.

Sucede, no entanto, que o conhecimento apenas não basta para oferecer resistência a pessoa alguma ante as inclinações para o mal e para a desordem in­terior. Após consegui-lo, faz-se imprescindível viven­ciá-lo, passo a passo, momento a momento, manten­do vigilância e coerência na conduta, a fim de não se comprometer negativamente, desviando-se do cami­nho da retidão.

Simultaneamente, e não podemos olvidar, há um adversário traiçoeiro e perverso, sempre alerta, para torpedear as aspirações de soerguimento daqueles que se encontram comprometidos com a retaguarda. São os inimigos espirituais, que devem merecer mui­ta atenção. Testemunhas e acompanhantes dos ho­mens terrestres inspiram-nos, participam das suas atividades, tornam-se companheiros inseparáveis do seu comportamento. E, no entanto, graças ao livre-arbítrio de que cada qual dispõe, que conseguem in­terferir nas vidas com as quais se associam, materia­lizando os seus intentos malsãos em razão da predo­minância das inclinações vinculadas ao egotismo, ao orgulho, à soberba, aos interesses mesquinhos, que permanecem com as suas seqúelas tormentosas na­queles que lhes tombam nas armadilhas.

Por outro lado, os bons Espíritos não cessam de inspirar, de interceder, de oferecer proteção a todos quantos se lhes facultam a ajuda, utilizando-se de todos os recursos possíveis para que os seus afeiço­ados consigam desobrigar-se dos compromissos assumidos, alcançando o patamar da vitória.

Precatem-se, portanto, aqueles que aspiram pela felicidade e por alcançar êxito nos empreendimentos que realizam, com os recursos da oração, da paciên­cia e do trabalho elevado, a fim de manter o pensa­mento em faixa superior de reflexões, evitando, des­se modo, ser alcançados pelos petardos mentais e hipnoses dos seus comparsas de ontem, hoje inves­tidos de propósitos doentios e vingativos.

Encontrava-me, desse modo, extasiado com os providenciais recursos de atendimento aos que tom­baram nos fundos abismos da insensatez durante a jornada humana.

Refletindo em torno das instruções recebidas, e diante da vida estuante, recordava-me da frase lapi­dar que encima incontáveis sepulturas terrestres:

Repousa em paz. Apesar disso, constatava que so­mente existe movimento, nunca repouso absoluto, mesmo em relação à matéria que experimenta os fe­nômenos transformadores das células e moléculas. O Espírito, esse peregrino da imortalidade, mesmo quando em profunda hibernação, que é sempre tran­sitória, está vivo e pulsante.

Ao mesmo tempo, como é lamentável a informa­ção inverídica de algumas religiões em torno do sono perene até o momento em que soarão as trombetas anunciando o Dia do Juízo Final. A simbologia, que assinalava o despertar de cada consciência, foi trans­formada em realidade, sem qualquer análise da sua possibilidade.

Em toda parte a vida estua de maneira dinâmi­ca. Morre uma forma para dar lugar a outra mais es­pecífica, ininterruptamente. A cada instante essa alteração se apresenta no Universo. Galáxias são ab­sorvidas pelos buracos negros e outras surgem glori­osas. No entanto, na óptica desses religiosos ortodoxos, o Espírito deve permanecer em atitude inútil, ou segundo os negadores da vida, sucumbindo ante o fenômeno biológico da desintegração molecular. São conclusões ingênuas de ambos grupos, porque acos­tumados ao conceito antropomórfico de Deus, esque­cem-se de aprofundar-Lhe a grandeza.

Naquela Comunidade, a ação era a mola mestra a vibrar com dinamismo em toda parte. Continuação natural das realizações terrenas, convidava-nos ao trabalho de auto-aprimoramento, de construção do bem em favor do próximo e de nós mesmos, sem que isso constituísse violência aos falsos créditos para a santificação.

O mesmo Sol que aquece a Terra e o incompará­vel zimbório estrelado a que me acostumara contem­plar enquanto no corpo físico, ali estavam irradiando beleza e concitando-me a reflexões graves sobre a excelsitude do Amor e a necessidade de crescimento moral e espiritual.

Constituída de material específico, maleável àação do pensamento, quase tudo se assemelhava a uma cidade terrestre aprimorada, sem os excessos de perturbação e tumulto, porém, igualmente regida por Leis e Estatutos próprios.

Compreensivelmente, o céu de delícias, no qual o trabalho é abominado, não deixa de ser monotonia, insensatez e cansaço... Da mesma maneira, o inferno com as suas labaredas que ardem e queimam as car­nes da alma, sem nunca as consumir, não resiste a qualquer indagação da lógica em torno do amor que

nunca perdoa e sempre castiga com a eternidade o erro relativo que foi praticado...

O Espírito é legatário de si mesmo, armazenan­do sempre as experiências e ascendendo de esfera em esfera, cada vez menos densa, até alcançar a Er­raticidade superior de constituição sublime.

Vigem e estuam em todo lugar o movimento, o trabalho de solidariedade e de socorro de reeduca­ção. Sempre existem soluções para os dramas mais complexos e as desgraças mais tenebrosas.

Não me podia furtar, portanto, ao mergulho na gratidão ao Criador e a Jesus, que no-lO desvelara, cujo exemplo de dedicação e sacrifício infunde em milhões de vidas o desejo de servi-lO e distribuir mi­sericórdia, compaixão e auxílio por amor.

Os minutos corriam céleres, pois que os momen­tos de júbilo parecem ser portadores de velocidade incomum, enquanto aqueles de sofrimentos apresen­tam-se lentos e intérminos...

Procurando sintonizar com a psicosfera reinan­te, aguardei a noite amiga para iniciar-me na ação socorrista e aprender a experiência do serviço frater­nal.

Após orar, agradecendo ao Senhor as concessões de que me via objeto, procurei alguns momentos de repouso, pensando nas atividades que deveriam ter lugar naquele Pavilhão, conforme anunciara o gentil orientador.

Às vinte e duas horas Alberto me veio buscar, conduzindo-me até um recinto simples, onde se en­contravam presentes diversos Espíritos treinados nas excursões às zonas excruciantes e expungitivas das faixas inferiores, o Dr. Ignácio e o amorável Eurípedes.

Reunidos em clima de amizade e expectativa, o Benfeitor exorou a superior proteção para a tarefa pro­gramada através de sentida oração, gerando um cli­ma psíquico de inefável harmonia, após o que, sinte­tizou:

— Desceremos em grupo a especial região terres­tre de muito sofrimento espiritual, onde se homiziam atormentados e atormentadores em desesperação recíproca, todos eles, porém, irmãos nossos que se deixaram colher na rede das dissipações que se per­mitiram, sucumbindo ante o fascínio das obsessões e da desenfreada conduta nas paixões tenebrosas.

“Não nos cabe, em momento algum, julgar aque­les que se equivocaram, nem revidar às provocações dos seus sicários impenitentes, igualmente infelizes, na loucura que se permitem. A misericórdia de Deus estende-se a todos igualmente, no entanto, somente aqueles que começam a despertar para a realidade de si mesmos, logram beneficiar-se.”

Fez uma pausa oportuna, e com entonação de voz que traía responsabilidade e zelo, acrescentou:

— Todas as criaturas terrestres — Espíritos reen­carnados que são — possuem percepção mediúnica, que o futuro se encarregará de estudar com serieda­de, a fim de ser utilizada com elevação, tornando-se um sentido a mais que será conquistado a pouco e pouco, lentamente incorporando-se aos demais sen­soriais. O eminente Codificador informou que a me­diunidade radica-se no organismo, sendo, portanto, uma conquista do processo evolutivo para facilitar o crescimento do Espírito, que no corpo imprimiu essa função. Aqueles, no entanto, que são portadores de capacidade ostensiva e se comprometeram antes do berço em vitalizá-la pelo exemplo de honradez e ab­negação, quando se entregaram ao uso indevido das forças de que eram portadores, ataram-se a infelizes adversários pessoais, assim como do Bem, que lu­tam milenarmente para a instalação da loucura no mundo. Alguns deles, que se rebelaram contra Jesus, por haver, no corrente milênio, sido vítimas das in­justiças e dos crimes hediondos praticados contra as suas existências e as daqueles a quem amavam, pe­los falsos cristãos do período medieval, transforma­ram-se em justiceiros e vingadores, que pensam de­safiar as soberanas Leis da Vida, sem compreender que são utilizados, na alucinação a que se entregam, pela Divina Justiça, que lhes permite serem os bra­ços que alcançam os delinqüentes que com eles sin­tonizam, para despertarem após as dores extenuan­tes que lhes são impostas.

“Rabinos judeus e mulah’s muçulmanos, que fo­ram suas vítimas preferidas durante o período da he­dionda Inquisição, e transferiram o seu horror ao su­ave Mestre, em nome de Quem os seus algozes se apresentavam, permanecem nessas províncias de aberrações e crueldade, distantes da esperança e da compaixão. No entanto, isso ocorre, em razão do livre-arbítrio de cada um, porqüanto, no momento em que é disparado o raio do arrependimento e a súplica lhes escapa do coração dirigida ao Pai, são-lhes enviadas as providências necessárias para os atender. Nunca cessa o amor soberano em favor dos seres sencien­tes.”

Novamente fez silêncio, enquanto o pulsar da Na­tureza clara pelos pirilampos estelares tornava-se lição viva de misericórdia dirigida a todos. Logo após, concluiu:

— Nossa atividade, logo mais, terá lugar em nos­so querido planeta, em região pantanosa, que a ima­ginação humana descreveria como infernal. Nosso objetivo é resgatar Ambrósio, que ali se encontra há quase duas dezenas de anos... Guardaremos vigilân­cia e oração em nossa vilegiatura espiritual e fare­mos parte da caravana da nobre Entidade que fora, na Terra, a Rainha Isabel de Portugal, considerada santa, que se dedica a esse mister há muitos anos como mensageira do Amor, mantendo irrestrita con­fiança em Deus.

De imediato, notificados que a Caravana da mag­nânima Benfeitora chegaria em breves momentos, di­rigimo-nos ao jardim, a fim de aguardá-la.

A minha mente atropelava-se com interrogações que a ocasião não permitia esclarecer.

Procurei relaxar ante um gesto fraterno de Alber­to, que parecia entender-me a perplexidade e a in­quietação, passando a manter uma conversação des­contraída e promissora com o gentil amigo.

Vimos acercar-se então o grupo de trabalhado­res especializados em libertação magnética de Espíritos aprisionados em regiões dolorosas sob o coman­do da nobre Senhora. Vestida com traje largo e sim­ples, que exteriorizava suave claridade procedente do Espírito, sem qualquer sinal exterior de grandeza, a santa da caridade trazia na mão direita um bordão de substância transparente levemente azulada, en­quanto a sua aura irradiava incomparável majesta­de. Aproximadamente cinqüenta colaboradores apre­sentavam-se equipados com redes muito delicadas e macas alvinitentes, alguns archotes apagados e mais ou menos dez enfermeiros encontravam-se a postos.

A um sinal do Dr. Ignácio, Alberto e eu nos acercamos da Comandante, sendo apresentados ca­rinhosamente, na condição de aprendizes daqueles serviços específicos de socorro aos infelizes espiri­tuais.

Expressando um sorriso de indefinível beleza e humildade, a Senhora nos distendeu uma nívea mão com dedos delicados, que osculei com emoção e re­conhecimento pela oportunidade que me facultava junto aos seus cooperadores. Não disse qualquer pa­lavra nem era necessário enunciá-la. O amor irradia sentimentos que o verbo não pode traduzir.

Antes de descermos ao abismo terrestre, e por­que todos nos encontrássemos em silenciosa expec­tativa, a Entidade santificada exorou a proteção do Médico divino para o ministério de amor, e silencian­do avançou, por todos nós seguida na direção do que­rido planeta.

Seria difícil para mim explicar o admirável fenô­meno de volitação que nos reunia sob a mesma vi­bração no harmonioso deslocamento.

Podíamos ver-nos aproximando-nos da Terra que se agigantava diante de nós até pararmos em um lu­gar lúgubre, de aspecto truanesco.

Não haviam passado vinte minutos, segundo os meus cálculos, e sentíamos as emanações deletérias da região enfermiça e sombria, onde nenhum sinal de vida se manifestava. Ao lado de pântanos pútri­dos, cavernas se abriam profundas em montanhas escuras que limitavam a área do paul dantesco. Reu­nindo-nos à borda do lamaçal, demo-nos conta da escuridão reinante, como se nuvens carregadas co­brissem a área, vez que outra sacudida por trovões espocantes e relâmpagos velozes. Concornitantemen­te, o exalar de matéria em decomposição e os fogos fátuos que eram percebidos falavam sem palavras sobre a zona rnorbífica em que nos adentrávamos.

À medida que nos adaptávamos ao ambiente hos­til, percebemos as emanações carregadas que subi­am do lodo tornando sempre mais densas as nuvens que pairavam ameaçadoras, como se estivessem car­regadas de tormentas incomuns prestes a desabar frenéticas e destruidoras.

A Senhora postou-se à frente, enquanto os coo­peradores de imediato a seguiram formando uma fila indiana silenciosa e austera, O nosso pequeno grupo ficou entre os que carregavam as tochas e os padio­leiros vigilantes. Erguendo o bordão que derramava suave claridade, iniciou-se a marcha sobre o treme­dal. Os archotes foram acesos e produziam uma luz branca que não se expandia, suficiente porém, para iluminar o charco que borbulhava ameaçador. Acom­panhando o Dr. Ignácio e Alberto, que sempre segui­am as pegadas que eram deixadas pelos visitantes, eu mantinha a mente em Jesus e os sentimentos ador­nados de compaixão. Nesse estado de alma pude per­ceber que, de momento a momento, na sombra das lamas agitadas erguiam-se cabeças que clamavam por misericórdia e apoio, para logo afundarem no lodo asfixiante, O vozerio, as exclamações, os pedidos de socorro e as queixas misturavam-se a blasfêmias e recriminações que aumentavam à medida que nos adentrávamos pela furna aberta na rocha por antigas correntes dágua, que a tornava perigosa, escorregadia...

Sem nenhuma palavra, conseguia captar o pen­samento do Dr. Ferreira, infundindo-me ânimo e si­lenciando-me as inquietações que começavam a as­saltar-me. A densa treva era cada vez mais escura, impedindo quase a irradiação dos archotes acesos. Entre um e outro relâmpago, pudemos perceber que acima do lamaçal pairavam Entidades perversas, que pareciam flutuar no ambiente, de aspecto indescrití­vel, que as oleogravuras religiosas não conseguem imitar pelo seu aspecto degenerado e apavorante, que aplicavam relhos naqueles que se erguiam do charco imundo suplicando amparo.

— São os perturbadores da ordem que nos visi­tam, objetivando roubar nossos escravos. Pancada neles...

E gargalhadas estentóricas produziam estranhos ecos na furna imensa.

— Ataquemo-los! — Gritou alguém de aspecto fe­roz, exibindo sua carantonha deformada, enquanto, ameaçadoramente eliminava fumaça arroxeada pe­las narinas, erguendo bidentes e chibatas que esta­lavam no ar pesado.

E como logo voltava a escuridão, passado o ins­tante do relâmpago, somente ouvíamos os protestos e desafios, que não recebiam qualquer resposta.

A caravana avançava decidida, entre acusações e doestos, acrimônias e agressões verbais, até que vimos erguer-se o bastão da Senhora e os archotes aumentaram a luminosidade. Nesse momento apre­sentou-se uma área imensa dentro da caverna, na qual estorcegavam Espíritos aprisionados às paredes, fazendo recordar alguns dos suplícios da mitologia grega, surrados sem piedade, outros acorrentados por pés e mãos, carregando pedras pesadas e removen­do-as de um para outro lugar, enquanto no lodo, afogando-se sem cessar, inúmeros se erguiam e nova­mente desciam em terrível e inominável sofrimento.

Novamente o bordão se ergueu, e as redes foram atiradas sobre o lameirão, tornando luminosas as malhas que pareciam pirilampos sobre o lodo. Mui­tas cabeças que se erguiam, percebendo o recurso que poderia ser salvador, agarravam-se-lhes e grita­vam por socorro, enunciando os nomes de Jesus, de Deus, de Maria, de alguns dos santos das suas anti­gas devoções, alardeando arrependimento e supli­cando amparo. De energia magnética muito bem constituídas, a novo sinal as redes foram puxadas pe­los braços fortes dos seus condutores e observamos que, enquanto algumas se despedaçavam, deixando no lugar, em agonia, aqueles que as seguraram, ou­tros eram colhidos e arrastados até os caravaneiros que os retiravam e os colocavam, debilitados, nas macas que de imediato eram distendidas para os re­ceber.

Por algumas vezes se repetiu o admirável con­curso de proteção aos infelizes.

Percebendo a ocorrência, seres monstruosos, que haviam sido vítimas de zoantropia por hipnose e que se deslocavam no ar tentando impedir o atendimen­to, eram rechaçados por outras redes protetoras que foram atiradas sobre o grupo, impossibilitando qual­quer investida maléfica dos dominadores da região.

Enquanto se travava uma verdadeira batalha, em que os perversos administradores da área purgatori­al tentavam anular o esforço dos missionários do amor, o venerando Eurípedes acercou-se de uma parede que exsudava putrefação e rompeu com as mãos as cadeias que prendiam um Espírito desfalecido e de­formado, que lhe tombou nos braços, antes que os sicários vigilantes pudessem interferir... Ato contínuo, dois auxiliares tomaram-no e o colocaram em maca protetora, iniciando-se o retorno, deixando para trás o abismo aterrador.

Nesse comenos, cães amestrados foram trazidos e atiçados contra a caravana. Não me atrevi a olhá-­los na escuridão banhada levemente pelos archotes e os relâmpados contínuos, porque o benfeitor me ins­pirava à oração e ao mergulho íntimo no amor de Deus. Mais tarde, vim a saber que se tratava de terrí­veis mutilações experimentadas pelo perispírito de muitos seres desditosos que se vitimaram na Terra e foram arrastados para aquele sítio infeliz, onde expe­rimentaram hipnoses terríveis e deformantes.

Quando, por fim, chegamos à orla daquele ver­dadeiro purgatório, que superava tudo quanto a ima­ginação pudesse definir, observamos que os Espíri­tos recolhidos foram de imediato atendidos com flui­doterapia, recebendo ligeiro asseio e atendimento para que viessem a adormecer, a fim de não serem criados impedimentos na viagem de retorno ao Hos­pital.

Novamente sob o comando da Rainha Isabel a caravana ascendeu e, à medida que se aproximava da nossa comunidade, podíamos ver o querido pla­neta mergulhado em sombras, menos densas do que aquelas localizadas onde estivéramos, banhando-nos da claridade das estrelas que adornavam o zimbório sobre a cidade onde residíamos.

Logo chegamos, e os pacientes foram levados com o grupo de visitadores, enquanto o enfermo es­piritual, que fora retirado das paredes e do ergástulo, foi encaminhado à parte inferior do nosso Pavilhão, para receber o tratamento que lhe seria dispensado.

Só então fui informado pelo Dr. Ignácio, que se tratava de Ambrósio, que motivara a excursão de mi­sericórdia e de socorro, não obstante também, já fos­sem credores de auxílios aqueloutros que vieram tra­zidos ao Núcleo de renovação e tratamento.


11

O INSUCESSO DE AMBRÓSIO

De certo modo já familiarizado com incursões àErraticidade inferior, aquela expedição, todavia, pe­las características de que se revestia, ensejou-me in­terrogações, que tive oportunidade de apresentar ao gentil diretor no dia imediato.

Impressionara-me profundamente com o facies do irmão Ambrósio, tendo em vista os sinais das sevíci­as que lhe haviam sido aplicadas e que se apresen­tavam na forma, dando-lhe um aspecto dantesco. Os traços humanos haviam sofrido graves alterações e todo ele se apresentava esquálido, destroçado, ins­pirando compaixão e produzindo choque emocional em quem o fitasse.

Adormecido, ao ser transportado ressonava de maneira particular, em um repouso assinalado pelo terror, natural reminiscência dos sofrimentos e pavo­res que experimentara durante o largo cativeiro na­quela região de furnas macabras.

Concomitantemente, exteriorizava odores pútri­dos que remanesciam da decomposição cadavérica, ainda impregnada no perispírito, que igualmente se exteriorizava sob deformações responsáveis pela maneira como se encontrava em espírito.

Andrajoso, quase despido, a cabeleira desgre­nhada, como se houvesse crescido desordenadamen­te, misturava-se à barba hirsuta, de aspecto imundo, a envolver a cabeça, o rosto e parte do tórax.

Os seus gemidos eram gritos de indefinível dor, que antes provocavam nos algozes que o martiriza­vam chalaça e mais azedume, e agora, um grande res­peito e compaixão em nós.

Naqueles dédalos de onde provinha, não luziam a misericórdia nem a esperança, e alguém menos ha­bituado ao trabalho nas zonas espirituais inferiores suporia tratar-se do inferno mitológico das religiões, ultrapassando, porém, as figurações horrendas das imaginações terrestres...

Quando o Dr. Ignácio nos convidou a visitá-lo, agora internado em nosso Pavilhão, não sopitamos o interesse de aprender mais e, rogando-lhe licença, apresentamos-lhe algumas das inquietações que me ardiam na mente.

Com a afabilidade que lhe é natural, o distinto esculápio não se fez rogado, permitindo-nos fôssem­-lhe propostas as questões.

— Por que a Caravana — iniciei — era presidida pela nobre benfeitora de Portugal?

Sem qualquer enfado ou indisposição, respondeu-me:

— Desde quando desencarnara, deixando lumino­sas lições de caridade, que a celebrizaram na Terra, e podendo desfrutar de justas alegrias em regiões di­tosas, a fim de prosseguir no seu desenvolvimento espiritual, a extraordinária Senhora optara por conti­nuar amparando o povo que o matrimônio lhe havia concedido para ser também sua família espiritual. Por conseqüência, dedicou-se a socorrer igualmente os desencarnados retidos em lúgubres paisagens de re­cuperação dolorosa, trabalhando para retirá-los dali, oferecendo-lhes as oportunidades sacrossantas çlo amor e do perdão. Face às faculdades mediúnicas in­contestáveis que lhe exornaram a existência física, especialmente a de ectoplasmia, que lhe permitira a realização de vários fenômenos grandiosos e que fo­ram tomados por milagres pela ignorância vigente na época, poderia movimentar essas forças agora in­trapsíquicas, direcionando-as em favor dos Espíritos mais infelizes, aprisionados ao remorso, à consciên­cia culpada, que se tornaram vítimas fáceis de si mes­mos e dos seus adversários inclementes quão odien­tos.

Fez uma breve pausa, e logo adiu:

— Com um vasto patrimônio de realizações espi­rituais, fez-se muito amada, e quando se propôs a esse especial ministério de socorro, muitos valoro­sos Espíritos se apresentaram para assessorá-la, con­tribuindo para a diminuição dos angustiosos sofri­mentos daqueles que estagiam nas esferas desdito­sas e de difícil acesso. Não que a misericórdia divina deixe de possuir recursos extraordinários de atendi­mento aos párias morais, que se permitiram homiziar com outros semelhantes em conúbios nefastos. Gra­ças, porém, à sua elevação moral, granjeada no sacri­fício e na abnegação, e à especialização que se per­mitiu através dos tempos nesse gênero de atendi­mento, a sua irradiação vibratória produz um vigoro so campo de defesa, que os petardos mentais e as agressões dos verdugos desencarnados da Humani­dade não conseguem cindir.

“Silêncio, oração mental e amor são os equipa­mentos exigíveis para que se possa tomar parte na sua Caravana, ao lado de muito bem elaborada disci­plina interior, feita de confiança em Deus e respeito às Suas Leis, a fim de que a perturbação e o receio não abram brechas tornando vulnerável o conjunto.

“Para evitar reações desnecessárias dos habitan­tes e controladores desses lôbregos sítios, ela dimi­nui a potência da energia que pode exteriorizar, irra­diando apenas a claridade suficiente para iluminar a área visitada, mantendo os objetivos traçados, sem deixar-se atrair por simulações e armadilhas dos há­beis artesãos do mal e da crueldade. Com certeza existem numerosas Caravanas equivalentes, no en­tanto, compromissos espirituais existentes entre ela e o nobre Eurípedes atraem-na periodicamente à nos­sa Comunidade hospitalar, a fim de oferecer a sua valiosa e sábia ajuda.”

— E por que a fila indiana, para conduzir-se no paul tormentoso? — inquiri, interessado.

- Por precaução — redargüiu, calmamente. — O campo de energia por ela aberto, ao marchar à frente do grupo, cria defesas em favor daqueles que seguem na retaguarda. Ademais, o terreno pantanoso encon­tra-se empesteado de vibriões mentais e de detritos psíquicos que poderiam reter os caminhantes des­cuidados, quais armadilhas distendidas por todos os lados para impedir a fuga dos prisioneiros espiritu­ais.

“Da mesma forma que na Terra a astúcia perversa se utiliza de engrenagens sórdidas para reter e malsinar suas vítimas, considerando-se ser o nosso o mundo causal, convém não esqueçamos que aqui a mente dispõe para o bem como para o mal, de muitos arsenais de força, de que se utiliza conforme o está­gio de evolução em que se encontra.”

Porque o clima da conversação fosse agradável, prossegui, indagando:

— O nosso irmão Ambrósio constitui-se merece­dor de um socorro especial, tendo-se em vista haver sido ele o motivo central da incursão vitoriosa?

Desenhando um suave sorriso na face, em razão da pergunta algo ingênua, o amigo educado retru­cou:

— Não há privilégios nas Leis divinas, caro Mi­randa, conforme sabemos. Nem pessoas ou Espíritos existem que sejam especiais... O nosso irmão Ambró­sio, que hoje se encontra conosco, partiu da Espiritu­alidade na direção do planeta terrestre cantando ho­sanas de esperanças e retorna destroçado, aprisio­nado no calabouço que abriu para si mesmo através da invigilância, em razão de haver falido nos propó­sitos que se comprometeu tornar realidade.

“Há quase setenta anos mergulhou no corpo físi­co sob a carinhosa assistência de Benfeitores que o inspiraram e se prontificaram a ajudá-lo por mais de meio século em atividades espirituais significativas. Enriquecido com mediunidade ostensiva, preparou­-se para cooperar com a divulgação da Doutrina Espí­rita, devendo entregar-se ao ministério com abnega­ção e humildade. Em razão dos seus esforços direci­onados para o Bem não seriam regateados valores que o auxiliassem na desincumbência da tarefa.

“Recuperado de graves delitos cometidos no campo do sacerdócio católico, no passado, no qual se comprometera terrivelmente, o exercício da me­diunidade iluminada pela Codificação Espírita ser-lhe-ia a estrada de Damasco para o verdadeiro en­contro com Jesus. Embora a terapia valiosa de que fora objeto, não conseguiu superar inteiramente o homem velho e os vícios derivados do egoísmo e da presunção, voltando a enrodilhar-se em cipoais mais vigorosos, agora sem escusas, em razão do conheci­mento que possuía sobre a vida espiritual...”

Fazendo uma reflexão mais cuidadosa, concluiu:

O corpo é ainda uma armadura muito pesada para o Espírito que sente o bloqueio dos compromis­sos e desvaira nos arrazoados da insensatez, mesmo quando advertido e orientado com segurança.

“Nosso amigo e irmão Ambrósio renasceu em cálido ninho doméstico, onde o amor vicejava, a fim de dispor de forças para enfrentar e superar as agres­sões dos adversários desencarnados, que o vigiavam desde a infância. Como não esquecemos, nesse perí­odo, os médiuns ostensivos experimentam grandes aflições propiciadas pelos seus inimigos de ontem que tentam perturbar-lhes a marcha, impedindo por antecipação a realização dos programas para os quais renasceram.

“Por isso mesmo, o carinho dos pais, as orienta­ções espirituais, particularmente as espíritas, cons­tituem o valioso recurso para criar resistências mo­rais nos futuros trabalhadores da Causa do Bem, que se poderão dedicar sem receio aos compromissos ilu­minativos. Foi o que aconteceu com o nosso candi­dato à reabilitação. Se foi acicatado e perseguido por diversos companheiros inamistosos que o afligiam, não lhe faltaram o devotamento dos pais, especial­mente da mãezinha que também era portadora de percepção mediúnica, ajudando-o no exercício da ora­ção e dos bons costumes, a fim de que se imunizasse contra as heranças infelizes que se lhe encontravam vivas no íntimo, mas também como tesouro de sus-tentação para as lutas do futuro.”

Caminhávamos lentamente pelo corredor, na di­reção da enfermaria em que se encontrava o recém-chegado. Segurando-me o braço, afetuosamente, e mudando de tom de voz, o nobre médico aduziu:

— A mediunidade é compromisso de alta signifi­cação que ainda não encontrou a necessária compre­ensão entre as criaturas encarnadas no mundo físi­co. Por um atavismo perverso que teima em perma­necer dominante, é quase sempre tida como favor di­vino para eleitos, força sobrenatural, mecanismo pro­digioso e equivalentes, que tornam o medianeiro um ser especial, quando não combatido tenazmente, tor­nando-se-lhe uma armadilha cruel que o leva à pre­sunção e ao despautério. Mesmo que procure viver com simplicidade e demonstre que é somente instru­mento do mundo espiritual, que a ocorrência do fe­nômeno independe da sua vontade, as criaturas vici­adas nas superstições e interessadas nas questões imediatistas o envolvem em bajulação, em excesso de cortesias, em destaques embaraçosos que quase sempre terminam por perturbar-lhe a marcha... As heranças do pensamento mágico, com que acompa­nham as manifestações mediúnicas, fazem que se transfiram para a criatura os méritos que pertencem à Vida, empurrando-a para tropeços e compromissos negativos, sem forças para resistir aos assédios de todo porte que a circunscrevem em área muito aper­tada e conflitiva.

“Por outro lado, vigem a intolerância sistemática e a perseguição gratuita à faculdade mediúnica, por uns considerada como de natureza demoníaca, por outros como transtorno patológico ou sagacidade de malabaristas interessados em enganar ou fruir resul­tados monetários para o próprio bem. Embora injus­tas, apoiam-se em algumas ocorrências infelizes que assinalam personalidades frágeis ou enfermiças, cuja conduta sempre oferece margem para essas indito­sas afirmações, totalmente destituídas de significa­do ou de lógica.

“O nosso Ambrósio conseguiu atravessar a in­fância relativamente bem, suportando o cerco da hos­tilidade dos inimigos da Verdade, amparado pelos genitores vigilantes. Durante a adolescência, quan­do os fenômenos se fizeram mais ostensivos, foi le­vado a uma célula do Espiritismo cristão, recebendo apoio e orientação segura para a desincumbência dos compromissos que ficaram firmados na retaguarda. A adolescência, com os seus tumultos orgânicos, pro­duziu-lhe alguns distúrbios que foram superados com boa orientação, e quando chegou a idade da razão, dedicando-se ao trabalho mediúnico atraiu a aten­ção das pessoas desacostumadas com as autênticas manifestações espíritas, que começaram a cercá-lo de privilégios, exaltando-lhe a personalidade e im­pregnando-o com as infelizes influências, qual se tra­tasse de um semideus com missão especial na Terra.

“Terminados os estudos e passando a exercer a função que elegera como recurso para uma vida honrada, graças à exteriorização do ectoplasma produ­zia manifestações seguras, que fascinavam os com­panheiros honestos e deslumbravam os incautos. As mensagens que retratavam os seus autores com ri­queza de detalhes tornaram-se motivo de interesse e de atração para os corações saudosos, que se recon­fortavam, e o campo de serviço ampliou-se-lhe, fas­cinante e rico de oportunidades. Logo se criou uma pequena corte de assessores ociosos e de pessoas desinteressadas do Espiritismo, mas desejosas de projeção e de oportunismo, atraindo-o, lentamente, para o abismo no qual se precipitou.”

Demonstrando compaixão e entendimento na face e na voz, o dedicado amigo prosseguiu:

- Embora inspirado e bem direcionado pelos seus Mentores espirituais, começou a negligenciar as ad­vertências, supondo-se infalível e possuidor de re­cursos que não lhe pertenciam, tornando-se verda­deiro infante adulado, e exibindo os distúrbios do passado que começaram a ressumar do inconsciente profundo. Logo se fez exótico, tomando atitudes es­tranhas e sintonizando com Entidades vulgares que lhe exploravam a vaidade exacerbada, empurrando­o para o anedotário chulo nas palestras doutrinárias que se permitia proferir, perdendo o equilíbrio total e a compostura a pouco e pouco. Os conflitos sexuais, que estavam sob controle, também começaram a as­somar nesse comenos, e tornou-se propagandista do exercício livre das paixões da libido, em tons de mo­dernidade, como se liberdade e licenças morais fos­sem a mesma coisa.

“Inspirado e açulado por Entidades vulgares dos comportamentos do sexo ultrajado, vampirizadoras das energias humanas, foi empurrado para atitudes públicas e particulares reprocháveis, gerando vexa­me nas pessoas sinceramente vinculadas à Doutrina Espírita e embaraçando aquelas outras menos infor­madas face às propostas expendidas, todas estranhas aos cânones espiritistas.

“Não demorou muito e começou a sentir a mu­dança radical que passou a operar-se em torno da faculdade mediúnica. Os Espíritos nobres, rechaça­dos pela sua vacuidade e presunção, foram afasta­dos por ele mesmo, e outros, de elevação suspeita, pseudo-sábios e perversos, começaram a influenciá-­lo, especialmente uma legião de artistas plásticos do fim do século passado e começo deste, que manti­nham as paixões que os consumiram, nele encontran­do campo psíquico para o prosseguimento das aluci­nações a que se entregaram. Os efeitos físicos foram cessando, e sob a tutela das insinuações perturba­doras, começou a preencher por conta própria os es­paços mediúnicos com astúcia e manobras espúrias, sem entender a lição silenciosa que lhe era ministra­da pelos Guias espirituais, chamando-lhe a atenção, aos retos deveres, à honestidade, ao afastamento das companhias malsãs de ambos os planos da vida.

“A perda e a suspensão da mediunidade são efei­tos naturais das Leis soberanas, que fazem parte do ministério a que se entregam todos aqueles que pre­tendem servir ao Bem, em razão da não propriedade desses recursos, mas apenas da possibilidade de sua utilização para fins edificantes e libertadores. São uma verdadeira providência superior para advertir os in­cautos e trazê-los de volta ao caminho do dever, o que nem sempre, porém, sucede.

“Fascinado pela chamada vida social, recalque natural de dificuldades vividas na infância, passou a desfilar como ser excepcional, que provocava excla­mação e inveja nos círculos frívolos dos meios em que comparecia festivamente. Distanciando-se dos enfer­mos e sofredores, fez-se rude no trato com as demais pessoas, subestimando-as, soberbo nas expressões comportamentais, verdadeiro astro da mediunidade de ocasião, e em tudo quanto realizava em nome da Caridade, disfarçava embutidos os sentimentos de autopromoção e exibicionismo, longe, portanto, do amor ao Bem e do culto irrestrito do dever.

“Desnecessário dizer que passou da obsessão simples para a fascinação, quando não lhe faltaram co-responsáveis, e, por fim, tombou, aturdido, na sub­jugação, que o fez mais agressivo, quando não total­mente vulgar.”

Estávamos chegando à pequena e especial en­fermaria na qual se alojava o enfermo, quando o de­dicado diretor concluiu:

— Nesse estado de alienação espiritual e moral, tornou-se a estrela das festas da futilidade, aplaudi­do pelos incautos, seus semelhantes, e mentalmente foi acometido pelos acicates dos inimigos desencar­nados que o exploravam e o induziam à perda do con­tato com os Benfeitores da Vida Maior. Numa noite de horror, após a exibição em uma das promoções que realizava com freqüência para lisonjear o próprio ego, foi acometido de uma isquemia cerebral inesperada, e não obstante atendido com urgência, padeceu um bom par de meses em tratamento hospitalar, sucumbindo sob o assédio dos inimigos que o arrastaram para a repugnante região de onde foi agora retirado.

“A mediunidade é ponte de serviço, pela qual che­garam à Terra as informações do mundo espiritual, ensejando a Allan Kardec a construção da incompa­rável Obra que legou à humanidade como patrimô­nio indestrutível para os tempos do futuro. No entan­to não é imprescindível para a preservação da Dou­trina, que a dispensa, sendo o seu exercício, sem a prudência e orientação do Espiritismo, sempre um ris­co de imprevisíveis conseqüências para o seu usuá­rio, assim como para todos aqueles que compartilham das experiências sem controle.”

Silenciando, convidou-nos a entrar.

Deparei-me com uma cena inesperada. O enfer­mo encontrava-se sob forte indução hipnótica ainda em sono provocado. O aspecto horrendo permanecia como na véspera. Assistido por enfermeiros dedica­dos, gritava com regular freqüência, como se conti­nuasse sob açoites e lapidações que experimentara. Os odores fétidos, embora diminuídos, em razão do ambiente assepsiado, continuavam, causando algum mal-estar.

- Nosso amigo encontra-se em sono profundo que lhe foi aplicado — esclareceu Dr. Ignácio — por­que, ao despertar, face ao longo período em que es­teve prisioneiro, poderia sair correndo em desespe­ro, pensando fugir da rocha a que se encontrava ata­do. O nosso labor inicial é fluidoterapêutíco, a fim de desvesti-lo das couraças vibratórias em que se en­contra envolvido, até podermos chegar mais tarde ao seu psiquismo anestesiado pelas energias dos algo­zes que o entorpeceram desde os dias quando tran­sitava no corpo físico.

“Oremos com unção, a fim de que nossa mente possa envolvê-lo em vibrações de harmonia, dissi­pando as camadas de energia deletéria que o subju­gam, mantendo as imagens cruéis que o dilaceram mentalmente.”

Sem mais detalhes, o amigo silenciou e mergu­lhou em profunda oração, sendo acompanhado por mim e pelos demais auxiliares presentes. Lentamen­te uma suave claridade em tons alaranjados desceu sobre o enfermo e um suave perfume invadiu o ambi­ente contrastando com as emanações enfermiças que foram ultrapassadas. Após alguns minutos de oração silenciosa, que se transformaram em bálsamo para o internado, fomos convidado a sair, deixando-o entre­gue a enfermagem competente.

No lado externo, Dr. Ignácio informou-nos que, a noite, seria realizada uma reunião especial de trata­mento, contando com a presença da Senhora Maria Modesto Cravo e do venerando Eurípedes Barsanul­fo, para a qual me convidava.

Acompanhamo-lo até a porta do gabinete onde nos despedimos, ali encontrando Alberto, que se dis­pôs a continuar conosco.


12

TERAPIA ESPECIAL

À hora aprazada, encontrávamo-nos na enferma­ria onde se recuperava o irmão Ambrósio.

Dr. Ignácio requisitara a presença de duas da­mas que não conhecíamos, a fim de contribuírem com as suas faculdades mediúnicas na atividade progra­mada.

Estávamos em silêncio e recolhimento, quando deram entrada no agradável recinto o venerando Eu­rípedes Barsanulfo e Dona Maria Modesto, que eu iria conhecer com mais identificação a partir daquele momento.

O apóstolo sacramentano saudou-nos com equi­librada jovialidade, enquanto a senhora Modesto li­mitou-se a desenhar um sorriso na face delicada, meneando a cabeça em gesto de cumprimento silen­cioso.

A enfermaria mantinha-se em penumbra e paira­va a agradável psicosfera amena que fora providen­ciada desde a manhã.

Éramos, ao todo, oito participantes da empresa espírita para o atendimento ao enfermo cujo drama nos compungia.

Eurípedes, tomando a palavra, sintetizou o pro­grama a ser desenvolvido:

— A transferência do nosso querido paciente para este recinto não rompeu os vínculos energéticos man­tidos com alguns dos verdugos que o retinham na furna de aflições. Foi deslocado espiritualmente, sim, mas as fixações psíquicas encontram-se-lhe imanta­das através do perispírito denso de energias morbo­sas.

“Iremos tentar deslocar algumas das mentes que prosseguem vergastando-o, atraindo os seus emis­sores de pensamentos destrutivos a conveniente e breve diálogo, para, em ocasião própria, torná-lo mais prolongado, mediante cuja terapia procuraremos li­berá-lo das camadas concêntricas de amargura e de culpa, de necessidade de punição e de fuga de si mesmo, até o momento de o despertarmos do sono reparador, que lhe foi imposto por força das circuns­tâncias.”

De imediato fomos convidados a sentar-nos, os médiuns em torno da mesa próxima ao leito do paci­ente, e os demais ao lado, em um convívio dulçuroso e fraterno.

O nobre Eurípedes levantou-se, e proferiu como­vida oração:

— Jesus, Incomparável benfeitor!

Tu que elegeste o amor como solução para todos os graves problemas humanos, inunda-nos desse su­blime tesouro, para bem atendermos aos deveres que nos dizem respeito neste momento.

Logo a morte se Te assenhoreou no Gólgota, e o teu corpo foi inumado, desceste em espírito ao Abis­mo, a fim de buscar Judas, que houvera enlouqueci­do, deixando-se arrastar pelas forças hediondas da Treva, e o libertaste para recomeçar novas experiên­cias iluminativas...

Incapazes de agir com a Tua superior vontade e poderosa energia, ajudaste-nos a retirar da região afli­tiva o Teu discípulo desvairado, agora necessitado de socorro específico, para que as pesadas escamas da ignorância e da loucura sejam-lhe igualmente libera­das.

Porque se acumpliciou com a sombra, perdeu o contato com a Tua claridade mirífica, permanecendo nesta demorada situação de horror.

Ajuda-nos a libertá-lo daqueles que lhe engendra­ram a escravidão, e, não obstante o largo período de impiedade com que o seviciaram, ainda teimam em reconduzi-lo para os hediondos sítios onde esteve até há pouco.

Penetra-nos com a Tua sabedoria e guia-nos no difícil dédalo, cujo acesso está ao nosso alcance, para que não nos percamos nas suas rotas mentirosas.

Irriga -nos de ternura e conduze-nos com seguran­ça no labor que realizaremos em Tua homenagem.

Ao silenciar, pairavam no ar vibrações harmoni­osas, interrompidas somente pela agitação de Am­brósio que, no entanto, estava mais calmo.

Poucos minutos após, uma das damas convida­das começou o transe psicofônico atormentado, agi­tando-se e blasfemando em desconserto emocional profundo, com a voz alterada e roufenha.

Palavras agressivas e gestos de violência deno­tavam o baixo nível evolutivo do comunicante desen­carnado, enquanto exteriorizava vibrações morbífi­cas, penosas.

Eurípedes, profundamente concentrado, deixou­ o falar, facultando maior entrosamento com a médium, e enquanto todos nos uníamos em prece silenciosa, o visitante blasonou, agressivo:

— Com qual direito os senhores se adentram em nosso recinto de justiça, sem nosso consentimento, com a presunção de libertarem o réprobo e infame criminoso? Onde ele estiver, não conseguirá ficar li­vre dos nossos vínculos que foram muito bem fixa­dos durante os seus largos anos de dependência do nosso alimento mental. Não lhes parece muita a au­dácia da invasão?

Sem qualquer desagrado ou agressividade como revide, o Benfeitor esclareceu:

— Não ignoramos o seu relato e o lamentamos muito, tendo em vista a sua consciência de parcial responsabilidade no que nos narra, o que torna o ir­mão acusado, recém libertado de sua região, como sendo vítima de si mesmo, mas também do caro visi­tante.

“Não somos responsáveis pela apontada invasão da sua área para ajudar o aflito que pôde fruir de luci­dez e anelar pela libertação, recordando-se que tam­bém é filho do Amor. Foi ele próprio quem nos propi­ciou a busca, terminada a prova reparadora que se impôs, ao permitir-se o conúbio moral com os ami­gos...

“Cada qual sintoniza com aquilo e aqueles com os quais se compraz. No momento em que muda o direcionamento da aspiração, passa a sintonizar nou­tra faixa psíquica e emocional, estabelecendo novos compromissos...

— E quem são os senhores — interrompeu com inso­lência mal disfarçada — que se atrevem a adentrar-se pela nossa província?

Com a tranqüilidade da sabedoria e da fé, res­pondeu o amigo gentil:

— Que saibamos, todo o Universo pertence a Deus, e as dominações transitórias mudam de mãos, con­forme as circunstâncias. Desse modo, inspirados pelo Pai Doador e Seu filho todo amor, buscamos atender aqueles que Os evocam, e mesmo encontrando-se retidos nos antros de perversão têm o direito de ser liberados.

“Graças à interferência de Isabel de Portugal, a nobre rainha das rosas, apiedada dos infelizes, foi possível buscar a ovelha perdida para recolocá-la no rebanho, já que se houvera extraviado por si mesma, atraída pelo canto enganoso do amigo infeliz e dos seus cômpares.”

A um sinal discreto, Dr. Ignácio levantou-se e co­meçou a aplicar passes dispersivos no chacra coro­nário da médium em transe, para logo distribuir vi­gorosas energias na mesma região, que facultava ao agressor a perda do controle da situação.

Ato contínuo, o orientador prosseguiu:

— Não pretendemos mudar-lhe a maneira de pen­sar, de ver e de entender os atuais acontecimentos. Os irmãos cruéis existem e proliferam, porque são ali­mentados psiquicamente por aqueles que preferem o engodo, o crime e a irresponsabilidade, trabalhan­do com eficiência os braços da justiça desvairada que os alcançará nas suas esferas espirituais. Reconhe­cemos que a sua como a existência de justiceiros espirituais é resultado da alucinação que grassa no mundo das fantasias até quando se instale a verda­de nas mentes e nos corações.

Fez uma breve pausa, e notamos que o verdugo passava por uma rápida alteração com sinais de en­torpecimento mental.

A seguir, o doutrinador completou:

— O nosso desejo, no momento, é diluir os laços psíquicos que o atam ao nosso irmão, rompendo as vinculações doentias que têm vicejado até então en­tre ambos. Confiemos, outrossim, que num dia não longínquo, o irmão Ambrósio certamente será o men­sageiro da luz para o felicitar também. Por enquanto, o amigo ficará hospedado conosco em recinto pró­prio, onde começará com as reflexões que lhe permi­tirão retroceder ou avançar, conforme o seu livre-ar­bítrio.

Quando silenciou, o agressor, adormecido, foi deslocado do perispírito da médium e acomodado em maca próxima que o aguardava.

Imediatamente Dona Maria Modesto, a instân­cia do mentor concentrou-se especialmente e vimos Dr. Ignácio tomar de delicado aparelho, constituído por dois capacetes unidos entre si por um tubo trans­parente, colocando cada um, respectivamente na ca­beça de Ambrósio e da médium.

A seguir, parecendo ligados por corrente elétrica desconhecida, sendo, no entanto, de natureza psí­quica, vimos que o tubo passou a deslocar um tipo de energia viscosa que se desprendia do interior da cabeça do enfermo e que inundava a mente da se­nhora, fazendo-a agitar-se.

Era a primeira vez que observava esse tipo de transferência de energia psíquica, mente a mente, com finalidade terapêutica em caráter mediúnico.

A médium foi sendo envolvida pela massa volátil e densa, que fora do tubo e do capacete movimenta­va-se em torno da sua cabeça, prolongando-se des­cendentemente ao tórax, parecendo produzir-lhe do­res. Gemidos e expressões de pavor tomaram-lhe a face e a voz, enquanto Eurípedes, atento, acompa­nhava o fenômeno peculiar.

Subitamente propôs à Senhora em transe profun­do, inundada pelas sucessivas camadas de espesso vapor, que liberasse as aflições que a angustiavam. Vimos, então, o rosto congestionar-se envolto pela névoa em tonalidade marrom, que eliminava também odor acre, nauseabundo, e contorcer-se, transmitin­do a todo o corpo os movimentos agônicos, quando, então, começou a falar:

— A sua vida é nossa e você deve funcionar como um fantoche sob nosso controle... Ouça nossa voz, que é a única portadora de recursos para o conduzir à felicidade... Somos os conquistadores do Infinito e dominamos as vidas que se nos entregam, possuido­res dos recursos que proporcionam poder na Terra, destaque e glória... Negociemos: você cede um pou­co e nós concedemos muito... Não lhe faltarão amor, glória, alegrias e posição de destaque...

Houve uma pausa rápida, e a ouvimos exclamar em aflição:

— Morro! Asfixio-me nessa neblina venenosa. So­corro!

A voz sofrida provocava-nos compaixão, enquan­to a sua agitação denotava realmente um grande sofrimento.

O Mentor, que se encontrava na retaguarda da Senhora, muito sereno, nimbado de suave claridade, intercedeu, ajudando-a com palavras calmantes:

— Absorva essa energia infeliz, para libertar o nosso paciente. O sacrifício de amor arrebenta as al­gemas da loucura e da perversidade. Ofereça a sua contribuição em forma de misericórdia.

Simultaneamente, procurava retirar com movi­mentos rítmicos as camadas que se movimentavam em torno da cabeça e dos ombros da Senhora, pare­cendo anéis constritores que apertavam, produzindo asfixia. Da cabeça do Orientador a suave claridade passou a envolver a massa que continuava avoluman­do-se, até que, a um sinal, o Dr. Ignácio retirou o ca­pacete do paciente, interrompendo o fluxo da nefas­ta energia.

Eurípedes continuou a operar em silêncio, movi­mentando as mãos e desprendendo as vibrações po­derosas do seu psiquismo iluminado, que se mistu­ravam com aquelas nefandas que foram sendo diluí­das, a pouco e pouco, enquanto a médium continua­va extravasando mal-estar...

Todos orávamos, envol­vendo o instrumento medianímico em dúlcidas e ter­nas energias de amor que a vitalizavam, sustentan­do-a no cometimento socorrista.

Alguns minutos transcorridos, e o envoltório vis­coso começou a desaparecer e a diluir-se como se fosse transformado em vapor que se fizesse água e escorresse para o piso.

Como a operação transformadora continuasse, a médium foi recuperando as características normais, o ritmo respiratório não mais aflitivo, desaparecendo da cabeça, ainda encimada pelo capacete, as condensações doentias.

Permanecendo em transe, expressou-se noutro tom:

— Tenho medo e devo obedecer... Sou um réprobo e necessitado... A minha falência moral é sinal de des­graça, mas não há outra alternativa... O que aconte­ceu comigo? Onde a promessa dos anjos, que já não estão comigo?

E mudando de tonalidade, pôs-se a gargalhar, es­tentórica:

— Gozar, é o lema... Viver enquanto o corpo me permite a oportunidade... Logo mais vem a morte e tudo se aniquila, ou não? Deus, meu, estou louco! Que me aconteceu? Onde estou, e que faço aqui?

Tratava-se, para mim, de uma estranha comuni­cação, que não recebia a terapia da palavra gentil do Orientador.

Continuou esse estado alterado de consciência na trabalhadora mediúnica.

Eurípedes ouvia-a com atenção, dispersando, agora, ondas quase invisíveis à minha percepção psí­quica, até que um grande silêncio tomou conta da enfermaria.

O paciente acalmou-se, quase totalmente, e diá­fana claridade além daquela natural que inundava o ambiente envolveu a sala em tons alaranjados sua­ves, procedente das Ignotas Regiões espirituais, em decorrência da concentração e das preces ali viven­ciadas.

Dona Maria Modesto retornou ao estado de luci­dez sem denotar cansaço ou mal-estar, nimbada de delicada luz que dela se irradiava. Era portadora de títulos de enobrecimento que lhe conferiam lumino sidade própria pelos serviços de amor direcionados à Humanidade.

Eurípedes, visivelmente jubiloso, após dedicar pa­lavras de reconforto e agradecimento aos presentes, levantou-se e orou:

— Médico das almas!

Apresentamo-nos com as nossas dores e queixu­mes à Tua misericórdia, como filhos pródigos de volta ao Lar paterno, e Tú, Irmão incomparável, nos rece­beste com júbilo e compaixão, envolvendo-nos nos Teus recursos terapêuticos, libertadores.

Desnudamo-nos, abandonando os atavios da men­tira e da farsa, e não nos censuraste, nem nos acusas­te de queda ou delito.

Percebeste as chagas do nosso sentimento e colo­caste o bálsamo curador, que agora nos diminui as dores, ajudando-nos na recomposição.

Ensejaste-nos a oportunidade de trabalhar na tua vinha, e embora sabendo que não correspondemos à confiança, não nos cobraste o dever interrompido ou o fracasso cometido.

Somente tiveste compaixão para com a nossa de­fecção, e bondade para facultar o nosso soerguímen­to.

Eis-nos novamente de pé, aguardando o que quei­ras que façamos, já que ainda não sabemos discernir após o torvelinho que nos visitou...

Agradecemos-Te, Compassivo Benfeitor, e nos re­jubilam os por estarmos despertos, preparando-nos para novos cometimentos, nos quais esperamos triun­far.

Permanece conosco, particularmente com o náu­frago que alcança esta praia de amor, por onde passas, qual acontecia na Galiléia do passado, a fim de recolheres os combalidos e cansados, os colhidos pe­las ondas furiosas das forças inesperadas e podero­sas.

Inundados de júbilo, louvamos-Te e, reconhecidos, pedimos-Te que abençoes a tarefa que ora encerra­mos.

Todos estávamos sensibilizados. O ambiente cal­mo exigia silêncio, a fim de que a meditação nos en­sei asse o entendimento das ocorrências vividas.

Saímos discretamente, deixando os enfermeiros encarregados de assistir ao irmão Ambrósio, que ago­ra dormia um sono reconfortante, sem os estertores angustiantes, embora a expressão do rosto perma­necesse quase a mesma.

Fora da enfermaria, despedimo-nos do Terapeu­ta e da sua auxiliar, das duas damas e do cavalheiro que as acompanhara, ficando com o Dr. Ignácio, que parecia perceber o turbilhão de questões que me agi­tavam a mente.

Antes mesmo que o interrogasse, o Médico con­vidou-me a um momento de relaxamento no jardim florido da entrada do Edifício, para onde nos dirigi­mos, e enquanto as estrelas lucilavam ante a Nature­za também iluminada pela claridade argêntea da lua, explicou-me:

- Realizamos, há pouco, uma atividade não co­mum na área dos fenômenos mediúnicos, conforme o habitual entre os encarnados. Trata-se de uma expe­riência específica para distúrbios profundos, que se fixaram no recesso do perispírito de Ambrósio, alcan­çando as delicadas tecelagens mentais do Espírito, que lhe sofrem as conseqüências danosas.

“O objetivo inicial era romper a fixação mental de um dos seus adversários, o que foi conseguido graças à psicofonia atormentada, retirando as ener­gias que lhe estavam imantadas e, momentaneamen­te transferindo-as para a médium. Desligado psiqui­camente da sua vítima, o retorno se lhe tornará mais difícil, especialmente quando o paciente despertar com outras disposições mentais, não mais facultan. do campo vibratório para sintonia com esse teor de energia.

“Já, no caso do fenômeno de que foi objeto a Se­nhora Cravo, observamos que não houve uma incor­poração, mas a retransmissão das idéias e pensamen­tos, no primeiro instante, que foram fixadas no enfer­mo desde há muitos anos, quando ele se encontrava no exercício da mediunidade e começou a sintonizar com essas Entidades perversas, que o sitiavam. To­das aquelas frases eram hipnóticas, que lhe foram direcionadas através dos tempos e se tornaram gra­vações verbais a se repetir sem cessar, levando-o ao desespero, à obediência. Esse é um dos hábeis me­canismos geradores de obsessões, porque o pacien­te não tem como deixar de estar em contato interno com os comandos devastadores, que terminam por dominar-lhe o raciocínio, a vontade, a emoção...”

Reflexionou um pouco, parecendo coordenar o pensamento, e continuou:

— Trata-se de técnicos desencarnados que dão as­sistência ininterrupta às futuras vítimas que, desa­bituadas ao exercício dos pensamentos edificantes e felizes, acolhem as induções negativas e prejudici­ais com as quais passam a sintonizar e comprazer­se, em mecanismos de fuga da responsabilidade, transferindo sempre culpa e dever aos outros, que julgam não lhes conferir a importância que se atribu­em.

Normalmente sentem-se abandonados por to­dos e pelas Leis, evitando reconhecer o desleixo pes­soal perante o compromisso assumido e passam àposição de vítimas, que não o são, facultando mais franco intercâmbio mental com esses verdugos da sua paz, de que não se dão conta, ou que preferem não cuidar com a necessária atenção. Lentamente, se lhes vão fixando as manifestações da raiva contra os de­mais, os ressentimentos se lhes aninham na emoção e se entregam ao desvario, conscientes ou não do que está acontecendo. Quanto mais se permitem des­cuidar, mais amplas possibilidades são oferecidas aos inimigos, que os não liberam, até quando pas­sam ao controle mental soberano, empurrando-os para as obsessões por subjugação.”

Novamente aquietou-se, e, recordando-se do fe­nômeno, esclareceu:

- Para esse tipo de manifestação psíquica, torna-se indispensável um médium muito sensível e porta­dor de elevação espiritual, a fim de evitar impregnar-se desses miasmas pestilenciais, que se tornam vi­briões mentais e passam a ter vida embora transitó­ria, enquanto nutridos pelos geradores de energia. Sendo retiradas as frases perturbadoras, são libera­dos os centros pensantes, e após um período de tor­por, enquanto se refazem as sinapses perispirituais, que volvem à normalidade ao largo do tempo, o ree­quilíbrio volta a instalar-se.

‘Desse modo, se tornou dispensável qualquer tipo de esclarecimento, porqüanto não se encontrava em comunicação qualquer Espírito, e sim, as idéias que atormentaram longamente o desavisado. A atitude do Benfeitor era aquela mesma, desembaraçar a mé­dium das correntes mentais absorvidas, a fim de que não permanecessem resíduos mórbidos, enquanto as dissipava com refinada técnica e concentração dilu­ente dos fluidos perniciosos.”

Utilizando-se do silêncio natural, indaguei:

— A médium experimentou dores durante o tran­se, face aos gemidos e expressões de angústia que exteriorizava?

Paciente e educativo, respondeu:

- No estado de transe sonambúlico, indispensá­vel àquele tipo de ocorrência, pela falta da consciên­cia alerta, não há qualquer sensação de dor ou de sofrimento no médium. São os automatismos fisiopsi­cológicos que produzem os estertores, as contrações e os gemidos. Devemos, porém, levar em conta, que é necessária a abnegação por parte do médium que se oferece para esse delicado mister.

- Tendo em vista a informação, — voltei a indagar - de que se tratavam as fixações implantadas no pe­rispírito do paciente? Não poderíamos considerar a comunicação como sendo do corpo mental, conforme designação de alguns espiritualistas do passado e do presente, que asseveram ser a criatura humana constituída por sete cornos?

— Poderíamos assim denominar parte do fenôme­no — respondeu com sabedoria — No entanto, a expli­cação não se aplica à primeira fase da ocorrência, porque eram as idéias e imagens que foram transmi­tidas ao paciente e que ora se exteriorizavam. Na­quelas em que havia auto-reflexão, poderemos considerar como dessa natureza, por haverem pertenci­do ao enfermo. A tese dos sete corpos é muito anti­ga, e iremos encontrá-la nas revelações primitivas do pensamento indiano, mais tarde renovadas por Buda e, através dos tempos, por diversas outras doutrinas como a Rosacruz, a Teosofia, etc. Alguns estudiosos desse conceito, tentando negar a comunicação dos Espíritos desencarnados, recorrem à velha tese da mitologia chinesa sobre as almas errantes, que per­manecem em volta da Terra, para dizer que são esses cascões mentais que se manifestam, enquanto outros apelam para o corpo mental, na condição de conden­sação de resíduos do pensamento que envolvem o corpo astral... Preferimos a tese espírita, conforme a desenvolveu o eminente Codificador Allan Kardec que, no perispírito, situa recursos ainda não detecta­dos e que serão a chave para decifrar inúmeros pro­blemas que dizem respeito ao ser humano, à vida na Terra...

“Face à plasticidade de que é portador, o perispírito assimila os pensamentos que são elaborados pelo Espírito, condensando-os e dando lugar às cons­truções que são do particular agrado do seu agente. Eis porque as deformações, que experimentam mui­tas Entidades, decorrem das próprias elaborações mentais, quando não são ampliadas por processos hipnóticos de companheiros perversos, que os obsi­diam, e o fazem porque encontram campo propício às induções pemiciosas.

“Foi o Dr. Hyppolite Baraduc, o nobre médico fran­cês, que se dedicou à pesquisa do duplo etéreo, quem denominou essa emanação da mente, que pôde foto­grafar, por corpo mental. Trata-se, naturalmente, de um delicado envoltório, qual ocorre com o perispírito em relação ao Espírito.

“A grande verdade é — arrematou com um sorriso — que somos aquilo que cultivamos mentalmente, abrindo espaço a sintonias correspondentes. Não foi por outra razão que o Mestre galileu nos advertiu: — A cada um conforme suas obras, que são decorrência natural dos seus pensamentos.”

Considerando o adiantado da hora, o generoso amigo convidou-me ao repouso, acompanhando-me à porta do meu recanto de paz, embriagado de emo­ção e reconhecimento a Deus por tantas concessões de que me sentia enriquecido.


13

A EXPERIÊNCIA DE LICÍNIO

As observações da experiência, tendo por ins­trumento o irmão Ambrósio, levaram-me a profundas reflexões.

O conhecimento das propriedades do perispíri­to, conforme as lúcidas referências do eminente Co­dificador do Espiritismo Allan Kardec, é a única for­ma de compreender-se inúmeros enigmas que dizem respeito à saúde física, mental e emocional dos indi­víduos, bem como os processos de evolução do ser humano. Sede da alma, arquiva as experiências que são vivenciadas, bem como os pensamentos elabo­rados, transformando-os em realidade, conforme a intensidade da sua constituição.

Eis porque a fixação de determinadas idéias ter­mina por impor-se na face da criatura, exteriorizando o seu comportamento interior, mesmo quando o dis­farce se apresenta ocultando as estruturas reais da personalidade.

Graças a este poder plástico que lhe é uma das propriedades básicas, as idéias demoradamente mantidas levam a estados obsessivos-compulsivos, que terminam por alterar a forma do ser que passa a vivenciar uma monoidéia degenerativa e des agrega­dora da estrutura molecular, de que esse corpo sutil se constitui. Essa condição permite que Entidades perversas e vingativas induzam as suas vítimas a assumir posturas bizarras e infelizes, mediante lar­gos processos de hipnose a que se deixam arrastar. Esse fenômeno ocorre, todavia, porque há uma res­sonância vibratória em quem entra em contato com esses técnicos espirituais, encarregados de realizar processos perturbadores. Já podíamos notar na face do nosso recém-chegado os sinais da alteração que se operava, como conseqüência dos próprios e dos pensamentos que lhe eram transmitidos.

As atividades que haviam sido realizadas trazi­am como meta libertar o paciente das sucessivas ca­madas mentais deletérias nas quais se envolveu, re­alizando-se o processo de fora para dentro, a fim de que, ao despertar para a realidade lúcida passe a ope­rar a transformação no sentido inverso: do interior para o exterior.

Cada um é, portanto, o arquiteto das suas cons­truções de felicidade ou de desdita.

Jesus foi peremptório, quando propôs: — Busca a verdade e a verdade te libertará.

É de surpreender que muitas pessoas tomem co­nhecimento da realidade, dos mecanismos libertado­res da vida, e, não obstante, optem pela escuridão da conduta, derrapando em compromissos insanos, que as levam a derrapar nas terríveis alucinações que se prolongam por largo período, de forma a insculpir nos refolhos da alma as leis de equilíbrio e de harmonia indispensáveis à felicidade.

Sucede que as Leis de Deus estão escritas na cons­ciência, e, por essa razão, ninguém consegue fugir de si mesmo, porqüanto, para onde for, sempre se conduzirá conforme a estrutura moral e espiritual in­terior. Porque essa realidade se exterioriza em ondas de vibração compatível, os Espíritos nobres como os inferiores as identificam, acercando-se dos seus agen­tes conforme a sua constituição.

Aguardava o prosseguimento das terapias, quan­do fui visitar o novo amigo acompanhado pelo gene­roso Alberto.

Em retornando à sua enfermaria, fomos gratifica­dos com a visita de bondosa Entidade, que nos foi apresentada como sendo Licínio que, na Terra, por sua vez, exercera também a mediunidade.

O visitante justificou-se, informando que houve­ra conhecido o nosso Ambrósio, quando ambos exer­ciam o ministério mediúnico e abraçaram a Revela­ção Espírita.

Tive a alegria de conhecer o caro companheiro, quando fui ouvi-lo por primeira vez em um Clube Re­creativo onde sua palavra era aguardada com entu­siasmo.

Vivamente aclamado, o trabalhador do Bem já se encontrava em franca decadência espiritual, porque se embriagara dos vapores da vaidade e da presun­ção, cercado por um grupo de admiradores que não cessavam de o elogiar, como se estivesse a soldo do mundanismo. Já lhe faltavam a gentileza no trato com as pessoas e a arrogância se expressava na sua for­ma de conduzir-se. No entanto, ao levantar a voz e expor o tema que lhe houvera sido proposto, fui to­mado de surpresa ao acompanhar-lhe os profundos conceitos éticos e filosóficos bem como as conclusões espíritas que imprimia às frases muito bem elabora­das. Com uma linguagem clássica mas sem pedan­tismo, passeou literariamente pela cultura da imorta­lidade do Espírito desde priscas Eras, chegando à atu­alidade com verdadeira ênfase e lógica que a todos sensibilizou.

“Enquanto o ouvíamos, eu meditava analisando a pessoa que chegara, indiferente ao público que ali se encontrava ansioso, e o expositor feliz, quase mei­go e rico de conhecimentos, que produzia viva em­patia no auditório superlotado. Pude observar então que, durante a sua conferência, face ao significado do assunto, conseguiu romper a carapaça infeliz que o envolvia, entrando em sintonia com o Mundo espi­ritual que passou a inspirá-lo por intermédio de ve­nerando Mensageiro de Esfera mais elevada. O ver­bo fluía pelos seus lábios em catadupas sonoras e agradáveis, enquanto dele se irradiava a energia do Benfeitor que produzia incomparável bem-estar em todo o público. Concomitantemente, eu podia perce­ber que outros Espíritos dedicados ao socorro pela fluidoterapia aproveitavam-se da concentração natu­ral que se fizera no auditório interessado, passando a descarregar energias saudáveis nas pessoas, que as assimilavam, enriquecendo-se de forças para o prosseguimento da luta.

“Também eu me encontrava vivamente emocio­nado e quase em lágrimas. Nesse estado de espírito, me interrogava em silêncio: — por que o esclarecido orador se permitia derrapar nos equívocos do mun­danismo, sabendo-se amparado por elevados Guias da Humanidade, aos quais deveria submeter-se em clima de humildade e serviço? Evitei, no entanto, con­siderações negativas, porqüanto todos somos ídolos com pés de barro, frágeis, incapazes de suportar o peso das próprias imperfeições.”

Licínio olhou o enfermo com legítimo sentimento de compaixão e solidariedade, logo prosseguindo:

— Terminada a alocução, ruidoso aplauso explo­diu natural, resultado do entusiasmo que a todos do­minava. Encerrada a solenidade, fez-se um círculo de simpatizantes a sua volta, enquanto os zeladores da sua pessoa procuravam impedir o acercamento dos interessados em travar um contato, manter um diálo­go complementar ao tema apresentado, em total des­consideração às palavras que haviam sido pronunci­adas. Foi com dificuldade, que se rompeu o cerco de­fensor, como se o médium-orador fosse uma estrela dos entretenimentos terrestres e devesse ficar dis­tante dos seus fãs ardorosos.

“Infelizmente, ainda não se entendeu que Jesus jamais se escusava. Nunca necessitou de defenso­res da Sua integridade física, moral ou psíquica. Mes­mo na multidão mais compacta, vagamente protegi­do pelo Apóstolo Pedro que O seguia à retaguarda, quando tocado pela mulher enferma, percebeu-o e ajudou-a no seu apelo mudo... Lentamente, os mé­diuns vão adquirindo status de santidade, tornando-se intocáveis, de personalidades extraterrestres, ou de missionários especiais que devem evitar o conta­to com as massas, com os necessitados, exatamente aqueles para os quais veio em serviço. Essa onda modernista cultivada por alguns que se inebriam da própria prosápia, termina por afogá-los na insensa­tez e no despautério.

“Convém nunca esquecermos que o Senhor é o nosso Pastor... e nos defende, desde que nos não per­mitamos a leviandade de buscar os enredamentos com o mal, a perversidade, a vulgaridade. Manten­do-se atitude de equilíbrio e nobreza, coloca-se uma invisível tela transparente de fluidos entre as pesso­as e os instrumentos do Bem, dificultando atravessar essa delicada mas poderosa barreira vibratória, e fran­queando o acesso de todos àqueles que podem, de alguma forma, contribuir espiritualmente a benefício do seu próximo”.

Novamente silenciou, recapitulando a experiên­cia, para logo continuar:

— Com a mente fixa no expositor, ele captou-me a onda psíquica e percebeu que se tratava de uma emis­são de simpatia, sorrindo jovialmente e distenden­do-me a mão fraterna, que cumprimentei, para sur­presa dos seus corifeus levianos... A sua mão puxou-me como se tivesse necessidade de um amigo, e quando estávamos próximos, com um sorriso espon­tâneo, perguntou-me, jovialmente:

— É a primeira vez que nos encontramos?

“Por minha vez, sorri afavelmente, e retruquei:

— Na atual reencarnação, creio que sim. Porém, acredito que já nos conhecemos...

“Ele anuiu com satisfação, e propos:

— Que não seja, pois, a última. Gostaria muito de privar da sua amizade, que me pode enriquecer na trajetória que ambos estamos realizando.

“Ante a surpresa dos seus acólitos, justificou-se com a informação de que outro compromisso o aguar­dava e saiu, deixando algo frustrados aqueles que o houveram buscado para um convívio fraterno mais próximo.

“Voltamos a ver-nos e a estreitar relações nas se­manas seguintes, quando tive oportunidade de con­viver melhor com as suas aflições e lutas, compreen­dendo quanto se encontrava amargurado e inquieto, inseguro ante os acontecimentos e, ao mesmo tem­po, paradoxalmente entusiasmado com os êxitos so­ciais e econômicos.”

As observações de Licínio, pela maneira tranqüila com que eram apresentadas, calavam-me profunda­mente no coração, facultando-me melhor compreen­der o médium que naufragara no mar tormentoso de ondas encapeladas dos compromissos espirituais, e aquele outro que, sob o coercitivo das aflições alcan­çara o porto de segurança. O primeiro intoxicara os centros do discernimento com os vapores da presun­ção que se transformara em loucura destrutiva, en­quanto o segundo mantivera irretocável o compro­misso, fitando o futuro, mas tendo como bússola o dever e como leme as lições sábias da Doutrina Espí­rita que introjetara para melhor vivenciá-las no presente.

Interrompendo-me as reflexões, voltei a atenção para os oportunos apontamentos do visitante opero­so.

- A partir daquele contato — aduziu o trabalhador do Bem — passei a nutrir imensa simpatia pelo expo­sitor e médium, dando-me conta do perigo que o siti­ava, graças ao envolvimento emocional produzido pelos auxiliares e fascinados que constituíam o seu grupo de adoradores.

“No primeiro encontro, terminada a alocução e recuperada a consciência lúcida, o hábito mental doentio a que se entregava na volúpia dos prazeres dos sentidos voltou a predominar-lhe na consciência, e logo se lhe acercaram os comensais infelizes da con­vivência psíquica, adversários de ontem que lhe ur­diam cuidadosamente o fracasso, e outros desordei­ros de ocasião se lhes associavam, locupletando-se no banquete da vampirização das suas forças e ener­gias morais.”

Deteve-se por breves segundos a contemplá-lo ainda disforme e profundamente adormecido, conti­nuando a esclarecer com outro timbre de voz:

— A mediunidade, por mais vigor de que se revis­ta, jamais produzirá com dignidade sob o açoite in­terno dos conflitos humanos, gerando a conduta re­prochável do seu possuidor. Compromisso de gravi­dade, não se pode converter em instrumento de mer­cantilismo danoso, nem de diversão para frívolos sem conseqüências de alta periculosidade. Face às leis de afinidade e de sintonia que vigoram em toda parte, logo a instrumentalidade mediúnica passa a emitir vibrações de baixo teor, torna-se campo de extenu­antes combates com predominância de viciações crescentes. Não poucas vezes são os Espíritos per­versos que promovem a situação afugente, inspiran­do os médiuns às defecções morais em razão da sua fragilidade em relação aos valores éticos. No entanto, tornando-se presunçosos, recusam-se a meditar em torno das advertências que lhes chegam de am­bos os planos da vida, negando-se ao auto-exame do comportamento a que se afeiçoam, expulsando do convívio os amigos legítimos que os passam a consi­derar como inimigos, enquanto se deixam arrastar pelos demais telementalizados dos referidos cruéis adversários que também os utilizam para a grande derrocada. Perdem os paradigmas da conduta, os pa­râmetros do equilíbrio, tornam-se irresponsáveis, al­teram a linguagem para a compatibilidade com o chu­lo e o atrevido, enquanto se exaltam pensando er­guer-se ao Olimpo da alucinação. Nessa fase, encon­tram-se instaladas as matrizes das obsessões de lon­go curso, e a queda ruidosa no abismo é somente questão de tempo.

Olhou-nos com imensa ternura, e completou:

- Longe de mim analisar as ciladas que foram pre­paradas para colher o querido irmão Ambrósio. No entanto, por experiência pessoal, conheço a senda de espinhos por onde transitamos todos aqueles que desejamos servir à Causa do Senhor sob chuvas, às vezes, ácidas, ou de pedras, noutras ocasiões, que são sempre as incompreensões de todo jaez. Certa­mente não é fácil resistir às investidas do mal. Toda­via, quando o médium se torna dócil às orientações dos seus Guias, seguindo-as, antes que as estabele­cendo ou impondo as que supõe serem corretas, gran­jeia-lhes a proteção e o concurso. Ocorre, normalmen­te, que a faculdade que permite as comunicações éneutra em si mesma, dependendo das disposições morais do médium, invariavelmente um Espírito com­prometido negativamente com a Vida e as experiên­cias evolutivas.

“Em diversas ocasiões tentei, nos encontros fra­ternos que o mundo espiritual nos proporcionou, ad­vertir o amigo iludido, convidando-o a retornar às ori­gens do trabalho, na simplicidade, nos labores desob­sessivos e no socorro aos desencarnados em afli­ção. Demonstrando simpatia e mesmo sensibilizado com minhas palavras, sorria, gentil, e retrucava-me:

Já realizei essas atividades no começo... Agora en­contro-me noutro patamar, em contato com Entida­des Superiores que não se envolvem com a proble­mática dessa natureza, e que me norteiam os passos para grandes cometimentos, para os espetáculos de impacto que posso produzir...”

“Dei-me conta da gravidade do problema do ami­go, mas os deveres aos quais me afervorava, como o atendimento aos pobres físicos, econômicos, morais, foram preenchendo-me as horas e os dias, e, embora ouvindo comentários já desfavoráveis à sua conduta por alguns daqueles que o perturbaram com a sua bajulação desmedida, prossegui envolvendo-o em orações intercessórias, quando soube, posteriormen­te, da alienação em que derrapou e da desencarna­ção, digamos, prematura, que o retirou do corpo.”

Encontrava-se com os olhos marejados de lágri­mas, o que também ocorria conosco.

Foi nesse clima de solidariedade e compaixão fra­ternal, que Licínio nos convidou à oração em favor do companheiro em processo de recuperação, com o que todos concordamos, vitalizando o enfermo que se beneficiou do concurso espontâneo da caridade fraternal.

Como o visitante estivesse de saída e eu já hou­vera estado com o enfermo cordialmente, a instância de Alberto acompanhamos o novo amigo que, muito acessível, demonstrou-se gratificado pela oportuni­dade de darmos prosseguimento à conversação nou­tro recinto.

A enfermaria situava-se na parte inferior do Pa­vilhão, onde se internavam os pacientes mais graves. Assim, atravessamos o longo corredor ouvindo as exclamações e gemidos que venciam os obstácu­los das enfermarias, o que provocava certo constran­gimento pela impossibilidade de fazermos algo que modificasse a situação dos aflitos além do que era realizado.

Chegamos à parte superior e nos afastamos do edifício central, rumando para o parque onde um lago transparente refletindo o céu de azul turquesa, tor­nava-se convite natural para um diálogo demorado e esclarecedor. A brisa suave carreava ondas de perfu­mes que nos envolviam agradavelmente. Pequenos grupos espirituais espalhavam-se nas alamedas co­loridas pelas flores primaveris, enquanto outros en­contravam-se em conversação animada nos diversos recantos programados para esse fim.

Porque nos encontrássemos em silêncio respei­toso, Alberto, mais familiarizado com Licínio, solici­tou-lhe que nos informasse um pouco mais sobre as suas experiências mediúnicas, esclarecendo que o interesse era justificado em razão do programa de aprendizado a que me propusera naquele Nosocômio espiritual. Informou-o, outrossim, que eu funcionava, às vezes, como repórter de acontecimentos fora do corpo, transferindo as notícias para os amigos da jor­nada terrestre em convites oportunos para reflexões e auxílios de esclarecimentos.

Sem fazer-se rogado, o amigo sorriu com amabi­lidade, passando a informar:

- A mediunidade foi-me no planeta a cruz de ele­vação moral, e prossegue como oportunidade de cres­cimento interior, face às aspirações acalentadas de iluminação e paz.

“Quando for realmente valorizada conforme me­rece, constituirá para as criaturas humanas uma fon­te de inexauríveis consolações, assim como incom­parável instrumento de evolução. Por mim próprio aquilato as suas bênçãos, porque renasci na Terra com pesada carga de compromissos infelizes que me cumpria atender, reabilitando-me e ressarcindo dívi­das. Desde o berço, felizmente, experimentei a po­breza e o desafio das dificuldades domésticas nos braços de genitores atormentados que se me toma­ram verdadeiros benfeitores pelas exigências, às ve­zes, descabidas, e pelos sofrimentos que me impu­seram, sem dar-se conta certamente do que realizavam, porque também obsidiados tornavam-se instru­mento daqueles que não desejavam o meu processo de reeducação espiritual. A dor, desse modo, foi-me sempre o anjo alerta, ensinando-me obediência e sim­plicidade.

“Os fenômenos começaram a aturdir-me durante a primeira infância, quando se me apresentavam inú­meros verdugos da paz a quem eu houvera criado embaraços em passado não distante. Assustavam-me, ameaçavam-me e agrediam-me com freqüência e impiedade. Não obstante, Amigos espirituais afei­çoados, quais a minha avó materna, a quem não ha­via conhecido no corpo, sempre interferiam socorren­do-me e orientando-me, carinhosamente ajudando­me a compreender a ocorrência penosa. Na adoles­cência fiquei órfão de pai, sendo felicitado mais tar­de pela presença de um padrasto caridoso que foi enviado pelo Senhor, e que me ajudou a encontrar o caminho da renovação de que necessitava. Facultou-me possibilidades para estudar e granjeou-me o trabalho honrado para a conquista do pão diário.

“Acompanhando os múltiplos fenômenos de que me fazia objeto, levou-me a uma Instituição Espírita, que passamos a freqüentar sob os protestos veemen­tes de minha genitora, e onde aprenderíamos as li­ções inquestionáveis da Codificação do Espiritismo. Embora vivêssemos em cidade muito católica, não fomos incomodados quando da adoção da nossa fé religiosa, exceto por algumas pessoas menos infor­madas e mais fanatizadas, o que é natural. Aos vinte e cinco anos de idade consorciei-me e transferi-me para a capital com a esposa, a fim de cuidar dos inte­resses da Firma em que trabalhava com dedicação e respeito.

“As sortidas das Entidades perversas eram cons­tantes, criando-me embaraços contínuos onde quer que me apresentasse. Calúnias, acusações sem qual­quer justificativa, antipatias inexplicáveis, azedume e desprezo foram as armas de que se utilizaram atra­vés de pessoas invigilantes para me aturdir. A pró­pria esposa — alma querida que Deus pôs no meu ca­minho, a fim de torná-lo menos áspero — experimen­tou cruas perseguições por ser-me fiel e permanecer ao meu lado em todos os momentos difíceis. Não re­sultando favoráveis esses mecanismos de persegui­ção, outros surgiram em forma de coima impiedosa por parte de senhoras insatisfeitas e vazias interiormente, que procuravam compensação sexual, passan­do a atacar-me com exigências descabidas em nome de paixões atormentadas e sem qualquer sentido moral.

“Felizmente, a trama sempre se desfazia, quan­do nas reuniões de desobsessão os Benfeitores

traziam à psicoterapia aqueles algozes impenitentes que, através de mim mesmo se beneficiavam, mudan­do de idéias e comportamento. Mas não se tratava de uma tarefa de fácil execução, por motivos compre­ensíveis, exigindo perseverança renúncia, coragem e fé.”

O narrador fez um silêncio oportuno, dando-nos tempo para a assimilação das suas palavras repassa­das de sinceridade, logo prosseguindo ante nosso interesse compreensível:

- Não fomos abençoados, a minha mulher e eu, com a presença de filhos biológicos, mas o nosso era e é um amor profundo. Aos vinte oito anos de idade, a esposa contraiu tuberculose pulmonar, e após me­nos de dois anos de rudes provações e dores liber­tou-se do coma, deixando-me profundamente sofri­do. Naqueles dias, a tísica era considerada uma ver­dadeira peste branca, arrasadora e insensível. A fé espírita, no entanto, que já era o bastão de segurança da minha existência, fez-se-me mais vigorosa, sen­do-me possível então prosseguir abraçando os com­promissos espirituais sem desânimo ou solução de continuidade.

“Naquela época, eram comuns os médiuns de­nominados receitistas, que se faziam instrumento de devotados médicos desencarnados, especialmente dedicados à Homeopatia, que atendiam aos enfermos pobres que os buscavam nas reuniões públicas ou lhes escreviam cartas solicitando auxílio. Eu me en­contrava entre esses servidores, e de cedo compre­endi a soberania das Leis em relação às possibilida­des humanas. No começo, após a desencarnação da esposa, experimentei a frustração decorrente do meu insucesso mediúnico, não conseguindo salvar a companheira enferma que também passara a receber o tratamento conveniente do esculápio a quem recor­rêramos. E isso foi sempre tido em relevância por al­guns companheiros, que expressavam suas dúvidas quanto à interferência dos bons Espíritos através da minha faculdade, adindo que eu sequer conseguira curar a esposa, como se isso dependesse das peque­nas possibilidades humanas de qualquer um de nós. Robustecido na fé e sustentado pela palavra lúcida do meu Guia espiritual prossegui com ardor, sem olhar para trás.”

Mais uma vez silenciou, por alcançar um momen­to mais delicado da narração. Olhou em derredor, como se buscasse a alma querida que estivesse pres­tes a acercar-se-lhe, e explicou:

— Um homem que se consorcia e é feliz, quando lhe chega a viuvez, essa se lhe torna um fardo pesa­do em demasia. Os hábitos conjugais, o companhei­rismo, a afetividade bem sustentada agora em falta, transformam-se-lhe em vazio existencial que, muitas vezes, conduz o solitário a precipitados relacionamen­tos como fuga ou busca de solução, ou o empurram para transtornos depressivos muito graves. Graças àoração e ao apoio da esposa desencarnada, que pas­sou a visitar-me, fui-me readaptando ao estado de solteiro, quando o cerco dos Espíritos viciosos fez-se-me mais rude, atirando pessoas desprevenidas na minha direção, inspirando-lhes sentimentos contra­ditórios que eu tinha que administrar com muito cui­dado, face à invigilância que se permitiam e à frivoli­dade com que se apresentavam. Dentre algumas des­sas almas atormentadas, uma se me transformou em intolerável presença. Dizendo-se apaixonada e recor­rendo a expedientes falsos sobre sermos almas gê­meas comprometidas, passou a assumir atitudes in­compatíveis com o bom tom, exigindo-me adotar um comportamento enérgico, dissuadindo-a de qualquer próxima ou longínqua possibilidade de futuro relaci­onamento íntimo, conjugal ou não. Desarvorada, pro­moveu um escândalo, no qual, totalmente incorpora­da por Entidade leviana do seu mesmo jaez, acusa­va-me de má conduta em relação a outra dama, de quem tinha ciúme, gerando ambiente desagradável e psicosfera venenosa que davam margem a comen­tários injustos e sempre do agrado daqueles compa­nheiros desocupados, que se comprazem em gerar situações penosas... Foram dois anos de lutas seve­ras, mas sem desistência de minha parte. Felizmen­te, o reto proceder, a severidade imposta aos meus atos, a disciplina na desincumbência dos deveres fi­zeram-se os meus argumentos de inocência, que ter­minaram por prevalecer ante a insidiosa perseguição. Afastando-se da Sociedade, a pobre senhora entre­gou-se ao alcoolismo, semidependente que já o era, havendo sido essa a brecha moral por onde se infil­traram as influências malsãs... Pouco tempo depois desencarnou em lamentável situação espiritual, sen­do arrebatada pelos seus comparsas de embriaguez etílica. Estou informado que, há pouco, após mais de vinte anos de padecimentos em regiões de muito so­frimento, foi recambiada à reencarnação em situação de resgate penoso. Nunca esteve fora das minhas ora­ções, porqüanto é digna de ajuda e compaixão.

“No passado próximo, a mediunidade era vivida com muito sacrifício, face à ignorância a respeito do Espiritismo e às informações propositadamente deturpadas em torno dos seus postulados. Os médiuns éramos vistos como pessoas esquisitas, endemoni­nhadas, mantenedoras de estranhos pactos e ritos com Satanás, ou quando não, como possuidoras de dons mágicos e sobrenaturais, que descaracteriza­vam o ministério. Permanecer com simplicidade e trabalhar sem alarde, eram o compromisso estabeleci­do, porqüanto, como sempre ocorreu, erixameavam também os oportunistas, os aventureiros, os interes­sados exclusivamente nas questões materiais, que esperavam recompensas na prática mediúnica...

“Foi o caso do nosso irmão Ambrósio, que não teve forças para romper o cerco dos simpatizantes, que se lhe fez em volta sob indução dos embaixado­res da Treva, que o atraíram para o poço fundo da falência espiritual, conforme oportunamente os ami­gos compreenderão.

“Não conseguindo colher-me nas suas redes for­tes de perturbação, os inimigos da Luz encontraram outra forma de afligir-me. Entre os pacientes que re­corriam à nossa Casa buscando o amparo dos Ben­feitores, apareceu um senhor de largos recursos fi­nanceiros e de projeção social, que se fazia acompa­nhar de um filho enfermo de leucemia. Após haver tentado os recursos em voga, nada conseguindo, vol­tou-se para a assistência espiritual e a medicina ho­meopática mediúnica. Jamais se lhe prometeu qual­quer resultado, senão aquele que a Misericórdia Di­vina sabe, e apenas ela administra. A princípio, o jo­vem apresentou sinais de melhora, o que muito animou o genitor, para depois ser consumido pela enfer­midade pertinaz que o arrebatou do corpo... Não obs­tante todos procurássemos consolá-lo, subitamente pareceu enlouquecer, e acusou-me de exercício ile­gal da Medicina, tentando responsabilizar-me pela desencarnação do filho amado. Foram dias muito som­brios, mas também visitados pelas claridades espiri­tuais, porqüanto, o próprio médico do jovem falecido convidado a opinar, quando se pretendia instaurar um inquérito contra mim, foi taxativo em assinalar que a enfermidade era incurável naquela ocasião e que os dias a mais que o jovem desfrutara poder-se-ia considerar como dádiva de Deus, já que não havia outra explicação... O sofrido genitor aquietou-se, en­quanto nós outros ficamos com o coração opresso e a alma retalhada pela amargura da acusação e suas duras penas...

Estávamos comovidos ante os testemunhos si­lenciosos do trabalhador da Causa do Bem. Quantas renúncias e aflições que o mundo não conhece, assi­nalam as almas de escol dedicadas ao ministério da Verdade! Esses são os verdadeiros heróis, aqueles que estão crucificados nas traves invisíveis da calú­nia, da perversidade e não se queixam, não blasfe­mam, antes agradecem a Deus a oportunidade de demonstrar-Lhe amor, sem abandonar a charrua da caridade fraternal.

Ao dar continuidade à narração autobiográfica, Licínio obtemperou:

— As pessoas inadvertidas e apressadas pensa­rão que somos apologistas do sofrimento e preferi­mos a dor como mecanismo de auto-realização em atitude masoquista com que nos comprazemos. Mas estão enganadas. Trata-se da realidade do cotidiano existencial no mundo até hoje. A única maneira que se apresenta como ideal para o indivíduo é o enfren­tamento tranqüilo e lógico dos desafios, sem deixar-se sucumbir ou perturbar, como sói acontecer com aqueles que, no século, somente esperam o prazer, a glória, a ostentação, vivendo o transitório, o efêmero, o enganoso...

“Sob outro aspecto, a mediunidade bem exerci­da faculta ao seu possuidor momentos de incompa­rável beleza e ventura, contatos espirituais insupe­ráveis, facultando a conquista de afeições duradou­ras e abençoadas, que se lhes tornam enriquecimen­to especial para os dias do futuro imortal. Ao mesmo tempo, como existem aqueles que criam dificuldades e sombreiam as horas do medianeiro com dores ex­cruciantes, produzindo dificuldade de todo teor, apro­ximam-se também criaturas de elevada estatura mo­ral, que o cercam de bondade e legítima afetividade, envolvendo-o em orações de reconforto moral e âni­mo, a fim de que seja vitorioso no ministério desafia­dor. Não são poucos esses amigos ideais do servidor de Jesus na mediunidade dignificada, que estão sem­pre próximos para o ajudar sem qualquer interesse de retribuição, tocados pelos seus exemplos de fé e de coragem, de dedicação e de trabalho.”

A consideração foi muito oportuna, funcionando de maneira positiva, evitando que a melancolia ou a angústia assinalasse a narrativa edificante do traba­lhador jovial.

E utilizando-me da interrupção natural, indaguei-lhe, interessado:

- E a esposa querida, ainda se encontra no plano espiritual, residindo com o amigo?

— Sim — respondeu com espontaneidade. — Agora preparamo-nos para outros misteres no futuro, que desejamos ocorram na seara espírita que nos fasci­na. Os tempos agora são mais favoráveis, embora as criaturas, de certo modo, permaneçam com muitos conflitos e dificuldades. No entanto, o Espiritismo já desfruta de algum respeito e o campo é propício para um esforço de renovação preparando a Nova Era.

— Permito-me imaginar — continuei indagando —que o amigo deverá estar de volta ao planeta querido muito em breve, é verdade?

Tomado pela mesma jovialidade, Licínio respon­deu:

— É claro que gostaríamos, Albertina e eu, de vol­ver ao proscênio terrestre ao amanhecer do novo Mi­lênio, a fim de podermos trabalhar pela extinção das sombras que, gradualmente irão cedendo lugar à pe­regrina luz da Verdade.

— E desde há quantos anos, o amigo se encontra fora do corpo físico?

— Há quase uma vintena de anos, o que não émuito, mas considero suficiente para estar prepara­do para os compromissos do amanhã. No entanto, como sabe o caro amigo Miranda, tudo depende de muitos fatores que estão sendo considerados pelos nossos Maiores...

Estávamos edificados diante de tudo quanto ouvíramos através da narração das experiências bem vividas pelo irmão Licínio. Compreendemos, então, que havia chegado o momento de nos des­pedir, porqüanto as horas avançavam sem que nos déssemos conta e outros misteres esperavam-nos a todos.

Agradecemos ao novo companheiro, colocan do-nos às suas ordens para qualquer eventualida­de, e, após abraçar-nos, retornamos ao pavilhão, Al­berto e eu.


14

IMPRESSÕES MARCANTES

Os dias transcorriam ricos de aprendizado. O amigo Alberto revelava-se cada vez mais identifica­do comigo nos labores dignificantes do Nosocômio. Sempre que lhe era possível convidava-me a excursi­onar pelas dependências do pavilhão, onde defron­távamos variados exemplos de queda e propostas de ascensão moral, de erros e programas de recupera­ção entre os pacientes.

Simpático e discreto, levava-me a visitar os com­panheiros de luta que não souberam aproveitar a oportunidade formosa da reencarnação, seja porque, fragilizados, não suportaram a carga da perseguição que sofreram ou porque, vitimados em si mesmos optaram pelo equívoco, quando deveriam conduzir o fardo de provações com elevada postura moral. A ver­dade é que os internos daquele Nosocômio haviam recebido demasiadamente da Misericórdia Divina, que neles investira largo patrimônio de esperança, e retornaram vencidos, sem que os valores aplicados se transformassem em oportunidade de crescimento interior.

Pode parecer estranho, que pessoas informadas da imortalidade do Espírito e familiarizadas com o fenômeno das comunicações mediúnicas permane­çam vulneráveis aos tórridos ventos da alucinação terrestre, decorrentes do mergulho no organismo fí­sico. No entanto, a ocorrência é mais freqüente do que parece. Superados os primeiros períodos do en­tusiasmo com a constatação da imortalidade e a pos­sibilidade de intercâmbio com o mundo espiritual, os indivíduos, que sempre estão à caça de novidades, com as exceções compreensíveis, adentram-se na rotina e não se estimulam a novas empresas de estu­do e ação em favor de si mesmos e do seu próximo, deixando-se anestesiar pela indiferença, ou se per­mitem espicaçar pelo perfeccionismo, passando a descobrir erro em tudo e em todos, num mecanismo de autojustificação para a inércia a que se entregam, ou para o afastamento dos deveres que lhes dizem respeito.

A embriaguez dos sentidos é muito forte, e não raro prepondera em a natureza humana, dificultando o discernimento dos valores reais em relação aos tran­sitórios. Mesmo informados os indivíduos sobre a le­gitimidade da vida e como se desenrolam os pro­gramas de crescimento interior, escapam do dever, procurando mecanismos psicológicos de racionaliza­ção, para se comprometerem negativamente, estabe­lecendo vínculos psíquicos perniciosos com os Espí­ritos insensatos e maus que pululam em toda parte.

Por outro lado, não disciplinados pela escola do sacrifício a perseverar nos ideais de engrandecimen­to humano, quando defrontados pelos problemas e desafios, que são naturais em todos os empreendi­mentos, passam a demonstrar mau humor e descon­fiança, transferindo-se para outras províncias de in­teresses imediatos, abandonando os compromissos relevantes.

Quando lhes sucede a desencarnação, porém, que sempre parece chegar quando não se a está aguar­dando, as tentativas de recomeço e reparação apre­sentam-se tardiamente e os conflitos assomam ago­ra em forma de remorsos inúteis, que mais estreitam as amarras com os seus comensais criminosos.

O ser humano é sempre responsável pelas injun­ções que se propicia, e porque portador de livre-arbí­trio e discernimento, deve optar pelo melhor, isto é, aquilo que lhe proporcione equilíbrio e felicidade real, sem a névoa dos enganos.

Cada paciente com o qual travara contato naque­les dias, ensejava-me vasto cabedal de informações para o próprio burilamento interior. A todo instante, em cada um patenteava-se a lição que eu deveria ins­culpir a fogo na consciência: ninguém foge da Vida, e a mesma clamava aos meus sentimentos por com­preensão e fidelidade máxima aos deveres que me diziam respeito.

Já me encontrava no Hospital psiquiátrico por duas semanas de enriquecimento espiritual, quando o dr. Ignácio me informou que desejava levar-me às enfermarias onde se encontravam os irmãos sonâm­bulos. Certamente, não me era estranha a situação em que muitos Espíritos chegam à Erraticidade e cá permanecem por largo tempo anestesiados nos cen­tros da consciência, até quando o Amor os recambia à reencarnação em processos dolorosos de recuperação. Trata-se, muitas vezes, de suicidas, assassina­dos, psicopatas, pessoas que haviam sido vítimas de desencarnação violenta e cujo processo de desper­tamento era difícil em razão das circunstâncias que os arrebataram do corpo somático. No entanto, a for­ma como o Diretor se referiu àqueles pacientes cha­mou-me particularmente a atenção, despertando-me saudável curiosidade.

Terminados os seus labores diurnos, às 20h. o in­cansável médico me aguardava no seu gabinete, para onde rumamos, Alberto e eu.

Apresentando excelente disposição defluente do bem fazer e da alegria de servir, recebeu-nos com de­monstração de afeto, logo dispondo-se a conduzir-nos à área especializada.

— Trata-se de um lugar específico em nosso pavi­lhão — acentuou com delicadeza — onde se encontram amparados inúmeros Espíritos em estado de hiber­nação temporária. A mente exerce em todos nós, con­forme é do nosso conhecimento, um papel preponde­rante. A denominada mente abstrata concebe e o no­minalismo verbal envolve a idéia que passa a ter exis­tência real, tomando forma e facultando-nos identifi­car pensamentos, coisas, pessoas, assim como intercambiar mensagens. Quando essas formulações pos­suem conteúdo edificante, saudável, e aspirações nobres, transformam-se em paisagens de beleza e de alegria, favorecendo o bem-estar e a tranqüilidade na­quele que as cultiva. Da mesma forma, quando ten­dem ao primarismo, ao exclusivamente sensorial, par­ticularmente nas áreas do prazer e do mesquinho, igualmente se convertem em províncias de gozo rá­pido e sombrio, envoltas em névoa densa, na qual se movimentam e se vitalizam arquétipos grosseiros e princípios espirituais em transição evolutiva. Noutras ocasiões, homiziam-se, nesses redutos mentais, Es­píritos profundamente asselvajados que se alimen­tam dessas emanações deletérias em um círculo vi­cioso entre o paciente, seus hospedeiros e vice-ver­sa. Como efeito do baixo teor dessas vibrações, a mente degenera na seleção de mensagens e retrai­se, fixando-se apenas naquelas em que se compra­zem os indivíduos. Com o passar do tempo, quase monoidealizando-se, o Espírito deixa de emitir novos influxos psíquicos e o perispírito sofre alterações cor­respondentes, retraindo-se, volvendo às expressões iniciais...

“Difere esse processo dos lamentáveis casos de zoantropía, licantropia e diversos equivalentes, por­que não são produzidos por hipnose exterior, mas por exclusiva responsabilidade do enfermo.

“Nunca será demasiado insistir-se na necessi­dade da educação do pensamento, na disciplina das aspirações mentais, nas buscas psíquicas relevan­tes, a fim de evitar-se o enredamento nas malhas das próprias construções idealizadas.”

Descemos ao piso inferior, já nosso conhecido, no qual se encontrava Ambrósio, aproximando-nos de uma dentre várias enfermarias de maior porte, e adentrando-nos cuidadosamente. Embora se tratas­se de uma sala de dimensão expressiva, com janelas que davam para o exterior — mesmo a construção se encontrando em uma espécie de subsolo — as mes­mas eram resguardadas por cortinas espessas para impedir a claridade que pudesse vir de fora. Apesar da suave luz que se derramava do alto, pairava no ambiente uma tênue névoa pardacenta que cobria praticamente todo o ambiente acima dos leitos bem cuidados e paralelamente arrumados em ambos os lados, mantendo uma ampla passagem central que os separava. Na parte do fundo, pude observar que havia alguns biombos, que recordavam os existen­tes nas enfermarias terrestres, para preservar a inti­midade dos doentes. Sentia-se também um odor nau­seante especial, conforme percebera nas visitas a Ambrósio, enquanto diversas Entidades amigas, vi­gilantes e dedicadas, permaneciam silenciosas as­sistindo-os a todos.

Podíamos escutar também o ressonar pesado dos adormecidos, com variações de ritmo, que certamen­te representava o estado de torpor ou de pesadelo vigente em cada qual.

Acercando-se de um leito assistido por uma Se­nhora que denotava elevação espiritual, o Diretor sau­dou-a afavelmente e apresentou-nos sem maiores explicações.

- A querida amiga — disse-nos com naturalidade — e a genitora do irmão Agenor, que se encontra em estado sonambúlico, há mais de dois anos entre nos. Com freqüência vem visitar o filho e envolvê-lo em energias diluentes do casulo no qual se encarcerou. A sua constância e amor têm contribuído eficazmen­te para o refazimento do jovem equivocado, lentamen­te arrancando-o da auto-hipnose que se permitiu embora inconscientemente.

A Dama, que irradiava cativante simpatia, sor­riu, e acrescentou:

— Percebo-o mais calmo e já consigo emitir pen­samentos que lhe ressoam na casa mental, convidando-o a sair do esconderijo onde se oculta.

Dr. Ignácio solicitou-me que me concentrasse na área correspondente ao encéfalo do adormecido. Todo ele fazia recordar uma crisálida, no seu processo de transformação. Havia adquirido estranha aparência, envolvendo-se em anéis constritores que se movi­mentavam ao ritmo respiratório. As formas convenci­onais e humanas haviam sido substituídas pela es­drúxula carapaça que o envolvia externamente, ape­sar de a respiração eliminar a mefítica substância que se adensava no ar em contato com a predominante no recinto.

Tomado de sincera compaixão, e mentalizando o Mestre Jesus, procurei direcionar o meu pensamen­to para a área correspondente ao cérebro, e, à medi­da que ali me fixava, pude observar que penetrava o envoltório grosseiro, podendo acompanhar a luta que era travada pelo Espírito mergulhado em angústia inominável. Tratava-se de um encarcerado esforçan­do-se para libertar-se da constrição entre blasfêmias e imprecações, ameaçando-se de extermínio com in­terregnos de alucinação e gritaria infrene. Pela sua memória repassavam, como numa tela cinematográ­fica, os atos que havia cometido e que respondiam pela situação penosa em que se encontrava, sofren­do inenarrável aflição que, no entanto, não o conse­guia consumir. Fixações mais severas repetiam-se em terrível continuidade, impedindo-lhe qualquer dispo­sição para pensar ou elaborar algum mecanismo de libertação. Nessa rude peleja surgiam com rapidez momentos de calma, que pareciam animá-lo, para logo recrudescer o tormento. Naquela visão profunda, apa­reciam as imagens do passado, especialmente as decorrentes do uso infeliz que fizera da existência dedicada ao prazer, e, por fim, ao mergulho em dis­túrbio depressivo sob a ação mental de vingador in­clemente que o induziu ao suicídio...

Retomando a lucidez e demonstrando a surpresa em torno do terrível flagelo moral que infelicitava o paciente, dr. Ignácio veio-me em socorro, esclarecen­do-me:

— Agenor, o nosso irmão, nasceu em lar feliz, am­parado pela abnegação materna, que não soube va­lorizar desde os verdes anos da existência física. Con­vidado ao estudo do Evangelho no Lar, realizado pela mãezinha, escusava-se, renitente e ingrato. Reencar­nara-se, como é normal, para recuperar-se de graves delitos, e o Espiritismo dever-lhe-ia ser a diretriz de segurança para caminhar com acerto, produzindo no bem e recuperando-se do mal que jazia nele próprio. Embora a insistência da genitora, pouco assimilou das lições espíritas e cristãs. Logo lhe foi possível, entregou-se aos disparates sexuais, enveredando pelas drogas de consumo fácil. Nos intervalos, quan­do despertava dos estados de alucinação, encontra­va a mãezinha vigilante a convidá-lo à mudança de comportamento, sem que os resultados se fizessem eficazes. Nesse comemos, adveio a desencarnação da senhora, crucificada no sofrimento que ele lhe im­punha, e, logo recuperando-se no Além, compreen­deu que somente o tempo seria o grande educador do filho rebelde.

“Os anos sucederam-se, multiplicando desequi­líbrios no nosso paciente, que mergulhou em pros­tração e distúrbio de melancolia, em depressão, mais consumindo drogas, até que, inspirado pelos Espíritos perversos com os quais convivia mentalmente, desertou do corpo através de uma superdose.”

Houve um silêncio, repassado de piedade e emo­ção, após o qual, continuou:

— Pode-se imaginar a dor materna; mas, submis­sa aos desígnios de Deus e conhecedora das leis que regem a vida, ao invés de censurar ou esquecer o fi­lho, empenhou-se em prosseguir auxiliando-o, con­seguindo ampará-lo além da morte com a sua poste­rior transferência para nossa Casa, depois de um pe­ríodo de tempo expressivo em que o mesmo perma­neceu em região espiritual correspondente à situa­ção de suicida. Há quinze anos desencarnado, en­contra-se entre nós, conforme informamos, há vinte e cinco meses em processo de recondicionamento e reequilíbrio.

“Os momentos de calma, que foram observados, são já o resultado das induções abençoadas da geni­tora, que o tranqüilizam por breves momentos, e que se irão ampliando até que sejam conseguidos mais significativos reflexos de paz no seu mundo interior desestruturado.”

Porque se fizesse um silêncio espontâneo, alon­guei o olhar na direção do leito próximo, e pude ver outro paciente envolto em vibrações escuras, que o apresentavam como se fosse uma múmia enlaçada por ataduras especiais que o mantinham imóvel.

Acompanhando-me a expressão de surpresa, o Benfeitor auxiliou-me o entendimento, informando­-me que se tratava de uma deformidade muito espe­cial do perispírito, que fora mutilado pela mente en­carnada com ambições desmedidas, produzidas tam­bém por terrível incidência obsessiva de hábil hipnotizador sem a indumentária carnal, que induzira aquele Espírito a atitudes de perversão sexual de­morada, levando-o a retomar a postura larval...

“Não obstante — prosseguiu com gentileza — fos­se conhecedor da vida após a morte, porqüanto se houvera dedicado a experiências mediúnicas, as per­turbações do sexo insaciável conduziram-no ao des­respeito pelo santuário genésico, corrompendo diver­sas pacientes que lhe buscavam o apoio terapêutico, porqüanto se apresentava como portador de valores dessa natureza. Médico que era, percebera que, na raiz de muitos transtornos psicológicos e distúrbios orgânicos, existem razões anteriores à concepção, face às conseqüências de condutas equivocadas em outras existências e subseqüentes perturbações es­pirituais, concebendo estranho método de atendi­mento, e conseguindo, às vezes, dialogar com os de­sencarnados em perturbação, sensibilizando-os, em algumas ocasiões. Com avidez incomum para amea­lhar moedas e açodado no comportamento sexual pela mente transtornada, seduzia as pacientes que o bus­cavam aflitas, mantendo conúbios infelizes sob a jus­tificativa de que, através desse relacionamento, se lhes tornava mais fácil a recuperação da saúde. Há­bil, na conversação, e sedutor, iludiu algumas mulheres que lhe caíram nas teias ardilosas, e quando al­gumas se apresentaram grávidas, não trepidou em propiciar-lhes o aborto criminoso com que se evadia da responsabilidade paterna.

“Como ninguém consegue desrespeitar as Leis da Vida sem sofrer-lhes as imediatas conseqüências, uma jovem se lhe afeiçoou apaixonadamente, trans­formando-se em fardo desagradável. Havendo con­cebido dele um filho, e sendo obrigada a abortá-lo no quarto mês de gestação, ao ser desprezada com in­diferença apelou para o suicídio, em que sucumbiu martirizada e desditosa... Despertando em profunda desolação e vigiada por verdugos impenitentes, foi arrebanhada por um dos perversos inspiradores do insensato, que a conduziu ao campo vibratório do desarvorado, ampliando-lhe os tormentos mentais que já o sitiavam interiormente. Vencido pela consci­ência de culpa, passou a recordar-se da jovem ob­sessivamente, a ouvi-la na tela mental e a desejá-la como anteriormente, enquanto prosseguia nos desa­tinos a que se entregava cada vez mais ávido e aluci­nado...”

Dr. Ignácio acercou-se do leito e, convidando-me a observar profundamente o que existia além da ca­mada externa que envolvia o Espírito, pude detectar-lhe a deformidade que o assinalava, fazendo recor­dar-me o estado de larva que precede à forma defini­tiva. Somente que, ali, ocorria o oposto: as desvaira­das aspirações que o dominavam perturbaram-lhe em demasia a mente, e a hipnose bem urdida pelos ini­migos produziu na plasticidade do perispírito a de­generescência chocante que agora se manifestava.

Pude perceber também, que mentalmente conti­nuava ligado à suicida que se lhe imantava ao pen­samento embora estando distante, enquanto vozes desesperadas e acusadoras ressoavam na acústica mental, recordando-o dos crimes cometidos.

— Aqui está conosco, porque — explicou o esculá­pio amigo — apesar de todos os lances trágicos da sua infeliz existência, momentos houve, no início das experiências, em que procurou auxiliar desinteressa­ damente a diversas pessoas, quando socorreu como médico muitos enfermos pobres, e esse concurso no Bem não ficou desconhecido pelos Códigos sobera­nos. O Senhor continua desejando o desaparecimen­to do pecado, do erro, do mal, não o do pecador, do equivocado, do doente que ficou mau, havendo sem­pre a bênção para o recomeço, jamais uma punição eterna ou um castigo sem remissão.

— E de quanto tempo necessitará para o desper­tar? — interroguei, impressionado:

Com a sua proverbial prudência, respondeu:

- Não existe pressa no relógio da Eternidade... O tempo é dimensão muito especial em nossa Comuni­dade, apesar de aqui nos encontrarmos sob as vibra­ções e o magnetismo do Sol. Nesse caso, muitos fato­res estão no acontecimento em si mesmo, aguardan­do solução adequada...

O certo é que, estando ampa­rado em nosso pavilhão, isso já lhe constitui uma bên­ção de reconforto e de esperança após os longos anos de martírio em região particular para onde foi empur­rado pelos seus algozes e comparsas espirituais.

Alonguei os olhos pelo ambiente repleto de lei­tos ocupados e senti-me estremecer de preocupação em relação a mim mesmo, bem como a todos aqueles que deambulam anestesiados pela ilusão, manten­do-se longe dos compromissos espirituais, ou mes­mo quando tomam contato com as lições de vida eter­na em quaisquer que sejam as doutrinas religiosas do planeta, e ao invés de adaptarem o comportamen­to às suas diretrizes moralizadoras, submetem-nas ao seu talante, continuando irresponsáveis e fingin­do-se auto-suficientes.

Havia muito que aprender. Toda uma existência carnal, realmente, nada significa para o Espírito que deve crescer no rumo do infinito, ampliando a capa­cidade de entendimento da Realidade.

Após visitarmos com brevidade outros pacien­tes necessitados do divino amparo, porém socorridos pela caridade cristã incessante, dirigimo-nos à en­fermaria de Ambrósio, que deveria experimentar nova. terapia para o despertamento.


15

A CONSCIÊNCIA RESPONSÁVEL

Com o abnegado Alberto retornamos à enferma­ria onde Ambrósio prosseguia sob assistência carinhosa, mergulhado no abismo das próprias angústias e aflições. Apresentava-se como de hábito amadurecendo as reflexões ao calor do arrependimento tardio, que abre espaço para a expiação que vivia, a fim de que o futuro lhe facultasse a necessária reparação.

Afeiçoei-me ao sofredor, nele identificando mui­tos companheiros terrestres que fazem da mediuni­dade mercantilismo extravagante ou instrumento de exibição do ego para tormento próprio.

Detendo-me junto ao seu leito, procurava exteriorizar os sentimentos de compaixão e ternura, a fim de que as densas camadas de energia deletéria fossem, a pouco e pouco, diluindo-se, de forma que, em ocasião oportuna, ele se pudesse libertar para novos enfrentamentos com a razão e a caridade.

Dessa maneira, ali permaneci em oração por alguns minutos, assessorando os assistentes espirituais que dele cuidavam, dando-me conta de que o amor com que se encontrava visitado pela caridade geral, conseguia o objetivo feliz de abrir-lhe espaço para a libertação.

Preparava-me para sair com o devotado cicerone, quando deu entrada uma nobre Senhora, portadora de expressiva beleza, que havia conhecido o médium durante a vilegiatura carnal e mantinha por ele devotamento fraternal.

Depois de saudar-nos, manteve-se em silencio­sa oração, durante cujo período exteriorizou suave e peregrina claridade que igualmente envolveu o paciente adormecido. Manteve-se em atitude de reflexão por vários minutos, quando, então, dispôs-se a sair.

Alberto, sempre gentil, conhecendo-lhe a história vivida na recente existência terrena, acompanhou-a e, no corredor, apresentou-me com bondade e gentileza, explicando os objetivos da minha estância, naquele Sanatório espiritual.

Sem qualquer constrangimento, a Senhora externou simpatia pelo projeto no qual me encontrava envolvido, e ofereceu-se a narrar-nos sua especial experiência humana.

Acercamo-nos, por sugestão da mesma, de uma sala muito agradável, num dos recantos do pavilhão, ali, no subsolo, que se encontrava iluminado pela branda luz do Sol da primavera.

Logo se apresentou o ensejo, ela expôs:

— Conheci a provação da facilidade econômica, havendo nascido em uma família paulistana possuidora de largos tratos de terras e abundantes bens de várias natureza. Experimentei a ternura de pais devotados e generosos, que me mimaram por demorados anos, enriquecendo-me de carinho e falando-me dos deveres da consciência perante a vida e a humanidade. Pude estudar em Escolas requintadas, embora não me houvesse interessado por adquirir um Diploma de qualquer especialidade. Senti, desde muito cedo, que havia nascido para o lar, anelando por uma família que pudesse contribuir favoravelmente para a sociedade. Muito sensível, passei a identificar fenômenos mediúnicos que me alegravam, ensejando­-me convivência com os Espíritos, que passei a amar.

“Nesse ínterim, travei conhecimento com o Espiritismo, e confesso que me fascinei com os romances mediúnicos, firmados por Entidades nobres através de seareiros dignos. As histórias, repassadas de sabedoria, fundamentadas nos postulados kardequianos, me tocavam profundamente. Procurei introjetar algumas daquelas vidas, de forma que me servis­sem de modelo para o cotidiano existencial. Porque essas mensagens fossem reveladoras, participando de experiências práticas em um grupo familiar, comecei a psicografar breves páginas, que me constituíram verdadeiras bênçãos.

“Muito bem relacionada socialmente, não temi informar às amigas e aos familiares as descobertas preciosas da Doutrina dos Imortais. Na minha ingenuidade supunha que todos estivessem amadureci­dos para as reflexões profundas da vida após o túmulo, esquecendo-me de que muitos são chamados, mas somente poucos serão escolhidos. Compreensivelmente, minhas palavras e entusiasmo foram mal interpretados, e mesmo censurados, levando-me ao retrai­mento em torno das idéias que abraçava.”

A Senhora, enquanto recordava, demonstrou emoção que a fez parar por um momento, logo pros­seguindo:

— Foi naquele pequeno grupo que conheci o ho­mem honrado e brilhante com quem me casei posteriormente. Exercendo um alto cargo em respeitável Empresa, tornara-se espírita premido pela lógica dos postulados doutrinários e pelos esclarecimentos que oferecia em torno dos ensinamentos de Jesus, porqüanto, estudioso do Evangelho, não podia concordar com as peias dogmáticas e as interpretações ab­surdas que eram oferecidas pela Igreja de Roma.

“O nosso foi um reencontro, porqüanto as afinidades que nos vinculavam eram numerosas, insejando-nos um relacionamento afetivo, profundo e sé­rio. Consorciamo-nos, para júbilo dos meus pais, que ainda se encontravam reencarnados, e construímos a casa que deveria hospedar-nos, como se fosse um ninho encantado para a vivência do amor. A medida que os anos se passaram, relacionamo-nos com outras famílias espíritas e tornamo-nos membros ativos de respeitável Instituição devotada à divulgação do Espiritismo.

“Como a felicidade no mundo não é completa, constatamos com tristeza a impossibilidade de ser­mos pais, por impedimento orgânico de minha parte. Conseguimos, no entanto, sobrepor à tristeza e decepção, a compreensão de que na Terra colhemos con­forme a semeadura anterior, e resolvemo-nos por contribuir de maneira positiva em favor das crianças muito necessitadas que acorriam ao Departamento assistencial do Núcleo que freqüentávamos.”

Novamente fez uma breve pausa oportuna, como que para concatenar as recordações, e continuou:

— Nessa ocasião, um dos casais que se nos tornou muito amigo e afeiçoado, informou-nos que pretendia visitar em outra cidade abnegado médium que enriquecia as vidas que o buscavam com mensagens de alta qualidade, porque fiéis aos seus Autores, e cuja vida era um Evangelho de feitos. Sem qualquer dificuldade programamos uma excursão, objetivando visitá-lo, e, na data estabelecida, bem como no horário regulamentar, tivemos a imensa alegria de conhecer alguém que passaria, a partir de então, a constituir-nos exemplo de fé, de coragem, de abnegação na mediunidade e na conduta, cujo convívio iluminava as vidas que se lhe acercavam.

“Naquela noite incomparável, tivemos a impressão que os Céus desceram à Terra, no modesto recinto onde se orava e se discutia as promessas do Evangelho, ao tempo em que o medianeiro psicografava sem cessar. Fascinada, acompanhei todos os lances daquele inesquecível acontecimento entre preces de entrega a Deus e, porque não dizer, deslumbramento pelo que acontecia à minha volta. Posso afirmar que, também os outros, aqueles que viajaram conosco e diversos mais que vieram de diferentes lugares, participavam do banquete de luz com a mesma emotividade, reconhecidos e firmando propósitos de fidelidade ao dever, à consciência espírita.

“A reunião prolongou-se por várias horas, e, ao terminar, foram lidas as mensagens de alto conteúdo filosófico, ético e espiritual. Umas de consolação aos familiares aflitos que ali estavam buscando conforto para as dores da saudade e do sofrimento; outras de poetas e escritores que volviam ao proscênio terres­tre para traduzir as emoções da sobrevivência ao cor­po frágil; outras mais, de orientação e advertência. Foi nesse momento, que O abnegado médium chamou-nos nominalmente, a mim e ao meu marido, passando a ler uma mensagem do Venerável dr. Bezerra de Menezes conclamando-nos ao trabalho da caridade fraternal, da entrega aos filhos do Calvário, da dedicação aos que se encontrassem perdidos na noite da ignorância espiritual... O casal amigo igualmente foi aquinhoado com expressiva mensagem de conforto e de chamamento, que lhes assinalou os sentimentos em profundidade, norteando-lhes a existência a partir de então com segurança e firmeza. Concluída essa parte, em convívio espontâneo e quase íntimo O iluminado Instrumento dos Espíritos narrou-nos detalhes da sua faculdade, especialmente aqueles que ocorriam durante o transe mediúnico, informando-nos sobre acontecimentos que tiveram lugar na reunião, e que se tornaram para todos nós lições de incomum beleza, que jamais seriam esquecidos ou descurados.

“Retornamos aos nossos lares tomados por incoercível felicidade, prometendo-nos servir e amar sem restrição, custasse-nos o preço que fosse. Posso afirmar que aquela experiência iluminativa foi o marco definidor do nosso futuro espiritual, e que, lamentavelmente não soube preservar por fraqueza moral face ao cerco das más inclinações que predominam em a minha natureza. Outras vezes voltaria àquele santuário, onde a morte era destruída pela Presença da vida abundante, e outras páginas de invulgar beleza nos foram dirigidas, convidando-nos ao prosseguimento do serviço e da caridade, caminhos seguros para a libertação do egoísmo, do orgulho e da presunção. Simultaneamente, as faculdades mediúnicas ampliaram-me as possibilidades de captação espiritual, e, sem dar-me conta comecei a intoxicar-me de vaidade, considerando-me quase privilegiada...

“Como se pode perceber, um passo em falso, na difícil ascensão, e tudo pode transformar-se em sofri­mento, em desalinho, em queda... Foi o que me sucedeu, porqüanto, convidada a edificar uma Obra de amor para atender criaturas infelizes, que a orfandade recolhera e o abandono social crestara, considerando a minha posição sócio-econômica passei a imaginar uma construção fabulosa, longe da simplicidade do bem, empenhando-me com todas as forças e aplicando muitos dos recursos que possuía, a fim de executá-la. A imaginação em febre libertou antigos infelizes hábitos adormecidos no inconsciente, e a Dama que deveria ser da Caridade, passou a viver a imponência da ilusão, pensando em detalhes sem importância, a que atribuía alto significado, deixando o tempo correr, precioso patrimônio que escapava, enquanto os candidatos espirituais ao amparo se perdiam nos cipoais dos vícios e da delinqüência.”

A Senhora demonstrava visível emotividade. Desejei pedir-lhe para interromper a narrativa que se lhe apresentava aflitiva, mas, olhando o caro Alberto, em busca de apoio, vi que ele esboçou delicado sorriso, tranqüilizando-me.

— Peço desculpas — disse-nos a narradora — pela emoção. Trata-se de recordações muito caras, que não posso esquecer, hoje patrimônio da consciência responsável. Olvidei que o bem dispensa atavios, tem praticidade e urgência. Nos engodos a que me entreguei no mundo, facilmente as imposições da frivolidade se transformam em valores significativos somente porque lhes atribuímos significado.

“É claro que o nobre dr. Bezerra me advertiu sutilmente várias vezes, não apenas através do seu dócil instrumento mediúnico, como também por meu próprio intermédio. Mas a ilusão, que se me instalara no Espírito, bloqueou-me a razão, e somente eu não conseguia ver o lamentável engano a que me entregava. A morte amiga, nesse momento difícil, arrebatou-me o companheiro, que me deixou um grande vazio existencial, mas não me despertou a humildade necessária para o serviço de Jesus entre os Seus na Terra.

“Sem a lucidez indispensável, afastei-me dos amigos que me tentavam dissuadir da empresa gran­diosa, convidando-me ao singelo trabalho da frater­nidade, e reuni um grupo de equivocados como eu, fascinados com as mensagens de que me fazia obje­to, sem aplicar a razão, o discernimento, na análise das páginas que então psicografava. Como conse­qüência, não fruí a alegria de albergar aqueles que a Vida me confiava aos cuidados, havendo desencar­nado antes de concluir o trabalho...

“Pode-se imaginar a decepção que me assaltou ao despertar além do portal de cinzas. A medida que a claridade mental me assomava, mais angústia me assaltava o coração e a razão. O compassivo dr. Be­zerra, veio então, mais uma vez, em meu socorro, ofe­recendo-me conforto moral e esperança em relação ao futuro, de forma que o desespero não me fizesse afundar na depressão ou noutro estado qualquer de perturbação. Esclareceu-me que sempre é tempo de recomeçar, e demonstrou-me que ele próprio prosse­guia auxiliando os companheiros que ficaram na re­taguarda, o que também eu poderia fazer em compa­nhia do esposo, despertando os amigos aos quais anestesiara, e amparando os necessitados que fica­ram na expectativa da assistência que lhes não pude oferecer. É certo que a luz do Espiritismo orientava-me na ação da fraternidade, e procurei atender os afli­tos do caminho, assistindo-os com carinho e miseri­córdia quanto me era possível.”

Um outro silêncio espontâneo fez-se entre nos. Transcorridos alguns segundos, a nobre Dama adiu:

- A reencarnação é dádiva de Deus, sem a qual ninguém lograria o triunfo sobre as próprias paixões. Etapa a etapa, o Espírito se liberta dos limites, como o diamante que sai da parte bruta a golpes da lapi­dação, a fim de brilhar como estrela divina. O traba­lho prossegue, felizmente, e os amigos devotados têm encontrado no Benfeitor vigilante a inspiração, que procuramos vivenciar com eles, restaurando os obje­tivos desviados e trabalhando afanosamente para que a dor seja menos aflitiva e o amor mais operoso em todas as dimensões.

“Foi no início das atividades de construção da Obra que conheci o irmão Ambrósio, numa das suas conferências monumentais em nossa cidade. Vincu­lamo-nos fraternalmente, e o recebemos em nosso lar, meu marido e eu, diversas vezes, quando ele exercia a mediunidade com elevação. Acompanhei, de algu­ma forma, o seu declínio, quando mudou de amiza­des, preferindo os espetáculos estapafúrdios e exibi­cionistas decorrentes da lamentável obsessão que o acometeu. Visitando-o, não me posso furtar à reflexão, de que também eu tombara em sutil intercâmbio nefasto, cuja sintonia facultara através da vaidade exacerbada no cumprimento do dever. A sua é a his­tória de muitos de nós, médiuns desprevenidos e vi­timados em nós mesmos pela luxúria, pela prepotên­cia, pela sede de glórias terrenas e de encantamen­tos para a egolatria.”

E dando um toque final, com um sorriso matreiro, encerrou o nosso encontro, esclarecendo:

— Mediunidade e presunção não podem andar jun­tos sem desastre à vista.

Pediu-nos licença e afastou-se airosa, deixando-nos mensagens de alta gravidade para reflexão e aprendizado.

Como eu poderia entender que, não obstante o quase insucesso da sua experiência, se apresentas­se portadora de valores espirituais relevantes? Logo porém compreendi, por rápida conclusão, que o Bem que se faz sempre é melhor para o seu realizador, não importando como é feito ou vivenciado. A Dama, que ora se analisava com bastante severidade, realizara uma Obra de amor e vivenciara o Evangelho quanto lhe permitiram as possibilidades. Os equívocos, a que se referia, eram conseqüência de malogradas experi­ências anteriores, que não conseguiu superar, mas lutou tenazmente para produzir melhor e com mais eficácia. O essencial é não parar, não se acumpliciar com o mal, não perverter os objetivos nobres, perma­necendo fiel ao compromisso abraçado para fazer o melhor, mesmo que o não consiga. E ela, de alguma forma, fora uma triunfadora.

Dialogando com Alberto, concluímos que ela se tornara vítima da interferência de mentes desencar­ nadas interessadas em manter a sombra na Terra e de impedir que os Espíritos afeiçoados à Verdade se desembaraçassem dos liames negativos a que se vin­cularam antes.

Sutilmente, mas com firmeza, esses Espíritos enfermos movimentam-se nos mais signifi­cativos programas de dignificação humana, tentan­do enredar aqueles que se encontram envolvidos na sua realização, inspirando pensamentos equivocados, mas com aparência de elevação. Induzem-nos a pra­ticas exóticas, como destaque no grupo onde moure­iam, à usança de indumentárias com esta ou aquela tonalidade, dando um toque de pureza externa aos seus atos, sem a correspondente pulcritude interna, enquanto lhes insuflam a vaidade desmedida, atra­indo-os para posturas não condizentes com a ativi­dade que realizam...

A obsessão sutil é enfermidade que grassa de­sordenadamente entre as criaturas humanas passan­do quase despercebida. A sua ação nefasta se de­vem muitos distúrbios no comportamento terrestre e muitas quedas ante os compromissos morais e espi­rituais que deveriam ser realizados com mais eleva­da nobreza.

Somente a constante vigilância da consciência reta constitui mecanismo de defesa contra essas sor­tidas do mundo espiritual inferior, ao lado do envol­vimento nos compromissos íntimos com a simplici­dade do coração e da ação, perseverando-se nos de­veres, sem qualquer extravagância até o momento da libertação carnal.

A um observador inexperiente pareceria que as forças identificadas como sendo o Mal, conseguem operar livremente em toda parte, sem que haja con­ trole superior limitando o seu campo de ação. No en­tanto, a realidade é bem diversa; isto porque esses Espíritos que se crêem poderosos na preservação dos objetivos vis, estão apenas doentes, necessitados de amor e de misericórdia que nunca lhes faltarão. A sua permanência nesses objetivos é de breve duração, porque serão atraídos para a Grande Luz, e se liber­tarão no momento próprio dos impositivos inferiores a que se afervoram momentaneamente.

O processo de crescimento espiritual nem sem­pre é fácil, porqüanto vencida uma etapa outra se apresenta, de modo que são superadas as deficiên­cias anteriores mediante conquistas novas. Aqueles que se mantêm na retaguarda e se acreditam inca­pacitados de prosseguir, lentamente despertam para os valores nobres e conquistam-nos, alçando-se à ple­nitude que a todos nos aguarda.


16

PROVA E FRACASSO

A entrevista proveitosa com a nobre senhora Hil­degarda ensejou-me reflexões complexas em torno das oportunidades de iluminação de que dispomos durante a existência carnal e das situações que nos conduzem aos desvios, aos insucessos.

Impressionado com a tranqüilidade e confiança que dela se irradiavam naquela noite, quando do en­contro adrede estabelecido com o dr. Ignácio Ferreira, não sopitei a curiosidade positiva e, aproveitan­do-me da sua proverbial bonomia, referi-me à experi­ência que tivera e às conclusões a que chegara, in­dagando-o com interesse:

— Quais as perspectivas que se desenham para esse Espírito que, integrado no programa do Bem, considera-se, no entanto, em débito para com o de­ver não cumprido, e de que aparentemente não é res­ponsável?

Conhecendo a experiência da Senhora, o amigo respondeu-me com naturalidade e lucidez:

— O caro Miranda sabe que as Leis Divinas, ins­critas na consciência de cada ser, estabelecem as di­retrizes da felicidade ou da necessidade de repara ção do erro conforme a pauta de valores vivenciados durante a oportunidade existencial. Nossa gentil irmã, despertando para a consciência responsável, deu-se conta da mais grave imperfeição que lhe dificultou a execução da tarefa, e sem permitir-se autocompai­xão ou remorso desnecessário, trabalha com afã e com diferentes propósitos dos experienciados anterior­mente, anelando por granjear méritos para retornar oportunamente ao palco terrestre, a fim de realizar o mister que a desencarnação lhe interrompera. Sen­do-lhe a vaidade, a excessiva autoconfiança, o ponto vulnerável do seu caráter, adestra-se, neste momen­to, no exercício da vera humildade, executando ativi­dades que lhe propiciem maior entendimento do sig­nificado profundo da reencarnação. Elegeu, assim que se encontrou em condições para a própria edificação, os serviços das áreas da limpeza e da conservação de algumas das nossas enfermarias para auto-edu­car-se. No trato mais direto com a dor e os labores que jamais imaginou executar quando na Terra, lapi­da as imperfeições morais e alarga os sentimentos da afetividade, para retornar ao Lar que planejou com excessivos cuidados em relação à forma, à aparên­cia, vivendo-lhe a essência dos objetivos e da reali­zação da caridade sem jaça...

O querido Orientador calou-se por um pouco e, de imediato, alongou-se:

— Tenho conhecimento que a dedicada senhora Hildegarda requereu às Entidades Superiores, a opor­tunidade de reencarnar-se em região de muita po­breza, na cidade onde levantou a Instituição dedica­da à caridade, a fim de ser recolhida em plena orfan­dade, naquele mesmo ninho, de modo que, ao alcan çar a idade adulta, afeiçoada e reconhecida pelo do­micílio que a favoreceu, possa dedicar-se ao prosse­guimento da tarefa, lá mesmo, em benefício de algu­mas gerações de necessitados que virão para os seus braços. Verificamos, dessa forma, que o compromis­so não realizado é transferido de ocasião, mas nunca deixado de ser executado.

“Face aos esforços envidados para a vivência da fé racional que abraçou, à solidariedade bem viven­ciada na Associação que freqüentava, a conduta mo­ral saudável e severamente mantida, conquistou mé­ritos que a tornam um exemplo de vida espiritual eno­brecida. A deficiência que lhe dificultou a execução plena do programa que deveria realizar, é problema íntimo, que ela está procurando ultrapassar. A Lei ésempre de amor, nunca de punição, no sentido cas­trador e perverso. Jamais faltam ensejos de ilumina­ção para quem deseja realmente a palma da vitória, bastando-lhe não olhar para trás, mas prosseguir com devotamento, utilizando-se de todas as oportunida­des para tornar-se melhor. Por isso mesmo, o grande desempenho é sempre de natureza interna, nas pai­sagens dos sentimentos onde ninguém passeia para os observar, exceto o próprio indivíduo.”

Mudando o ritmo da conversação, convidou-nos, a Alberto e a mim, para visitarmos uma das alas do pavilhão, na qual se encontravam as enfermarias re­servadas aos pacientes portadores de transtornos psíquicos.

Jubilosamente surpreendidos, aquiescemos de bom grado e dirigimo-nos ao andar superior ao da administração, onde eram atendidos os portadores de distúrbios mentais além da morte...

Os enfermos mais agitados permaneciam em am­bientes restritos, enquanto os outros em processo de recuperação, desfrutavam da convivência geral com diversos companheiros, a fim de readquirirem a au­toconfiança e a sociabilização.

— Visitaremos — elucidou o diretor — o irmão Gus­tavo Ribeiro, que foi recolhido em nossa Clínica após dois anos da desencarnação, quando recambiado do lar e da família a que se fixava em terrível perturba­ção psíquica. Sob tratamento especializado, há mais de seis meses, reajusta-se e readquire, mui lentamen­te, o equilíbrio da consciência.

Quando nos adentramos no agradável aparta­mento, encontramos sob a carinhosa vigilância de dois enfermeiros, que nos saudaram jovialmente, um cavalheiro com aproximadamente cinqüenta e cinco anos, com as cãs embranquecidas e acentuado des­gaste orgânico de que fora vítima na Terra, com uma fácies desfigurada e macilenta. O olhar desvairado fi­tava um ponto vago, e agitava-se com regularidade, bracejando no ar e chorando copiosamente.

Os dedicados assistentes acalmavam-no com pa­lavras repassadas de carinho e de lucidez, auxilian­do-o a retornar à postura anterior.

Observando-o com cuidado, não detectei vincu­lação direta com qualquer Entidade perversa, que fos­se responsável pelo seu desequilíbrio, o que me sur­preendeu, sobremaneira.

Olhando o médico interrogativamente, o amigo atento percebeu a minha perplexidade e acorreu em meu auxílio, explicando-me:

— Não se trata de perturbação obsessiva, mas de transtorno mental, ocasionado pela rebeldia e insensatez do próprio paciente. O nosso caro Gustavo é o protótipo do indivíduo que, da Vida, somente se atri­bui méritos, tomado sempre de altas doses de presunção e rico de cultura vazia. Atraído ao Espiritis­mo, faz mais de vinte anos, quando contava pouco mais de trinta e cinco janeiros, portador então de de­licado problema de saúde, pareceu descobrir as res­postas para os enigmas teológicos e existenciais que o aturdiam. Advogado de profissão, com família cons­tituída, abraçou as idéias novas com o entusiasmo que resultava também da recuperação da saúde.

“Beneficiado pela fluidoterapia, enquanto rece­bia conveniente ajuda médica, seus mentores traba­lharam com afinco para auxiliá-lo na liberação de al­tas cargas de energia deletéria que absorvia dos ini­migos desencarnados, que o perseguiam com cruel­dade e pertinácia. Havia, portanto, no seu problema orgânico significativa contribuição espiritual negati­va, que o ameaçava no transcurso dos dias. Lenta-mente, graças aos recursos combinados da Ciência médica e do auxílio espiritual, o amigo recompôs o quadro da saúde, tornando-se um entusiasta simpa­tizante do Espiritismo. Possuidor de temperamento forte e autoritário, logo começou a discordar da administração da Entidade, apresentando sugestões descabidas e referindo-se des agradavelmente, com a arrogância que lhe era habitual, a algumas ativida­des que ali se desenvolviam.

“Amiúde ocorre nos comportamentos humanos atitudes dessa natureza. Os indivíduos são atraidos a qualquer tipo de realização, e, sem estrutura nem experiência, imaturos e um tanto irresponsáveis, co­meçam a atirar petardos destruidores em todas as direções, acreditando-se detentores do conhecimen­to pleno, que pode ser muito expressivo na teoria mas inoperante na prática. Ao invés de auxiliarem sem imposição, corrigindo, quando necessário, após ha­verem adquirido a confiança do grupo e dado provas de sinceridade, de lealdade ao dever, agem de maneira inversa, cuidando mais das prerrogativas do ego do que da edificação de todos. Muito sensíveis, são severos com os demais e muito melindrosos, sentin­do-se magoados por qualquer coisa, ou pelo simples fato de não serem aceitas suas idéias estapafúrdias. No caso em tela, o amigo, não sendo atendido, como realmente não deveria ser, face às suas descabidas exigências, abandonou a Instituição onde se benefi­ciara e começou a peregrinação para encontrar uma que fosse modelar, isto é, dentro dos ângulos estrei­tos da sua convicção. Passou a estudar a Doutrina, e logo começou a detectar erros e conceitos que atri­buía estarem superados, preocupando-se em corrigir o que ignorava, ao invés de autocorrigir-se, o que écertamente mais difícil.

“Não demorou muito tempo, e transformou-se no que se denominava como espírita de gabinete, eufe­mismo bem elaborado para justificar-se a preguiça, a inutilidade pessoal, distanciando-se do trabalho e quedando-se na postura de atirador de pedras. A fa­mília não lhe recebeu a orientação espiritual conve­niente, os filhos cresceram sem formação religiosa e sem a necessária assistência paterna em razão das dificuldades de relacionamento, quando foi acometi­do de pertinaz enfermidade que o consumiu lenta­mente. Nesse comenos, procurou apoio espiritual na antiga Instituição onde anteriormente se beneficiara, mas, não obstante a abnegação dos seareiros de boa vontade, o processo cancerígeno prostático era irreversível, e o caro confrade desencarnou em situa­ção penosa, assinalada pela revolta surda contra a Vida...

Calou-se o bondoso médico e olhou demorada-mente para o enfermo em novo episódio de alucina­ção. Logo após, acentuou:

- Miranda, somos o que cultivamos em nosso pensamento. Semeamos ventos mentais e colhemos tempestades morais avassaladoras. Enquanto não nos resolvamos pela solução dos problemas íntimos, al­terando nossa conduta mental, adquirindo lúcida compreensão das Leis de Deus para vivenciá-las, es­taremos cercados pelos tesouros da felicidade sem nos apercebermos, antes, barafustando-nos pelos lu­gares onde nos encontrarmos.

“Porque a sua não fosse uma fé trabalhada na razão e no sentimento, sua lógica era também anár­quica, que deveria funcionar em seu favor, desejan­do submeter a Lei de Causa e Efeito ao seu talante, esquecido de que, afinal, a vida é do Espírito e não do corpo transitório. A função da Doutrina Espírita épreparar o ser humano para a compreensão da sua imortalidade, jamais para ajudá-lo a conquistar coi­sas e posições terrenas que o destacam no grupo so­cial, mas não o dignificam nem o engrandecem mo­ralmente. Ainda permanece em muitos simpatizan­tes do pensamento espírita a falsa idéia de coletar benefícios pessoais e sociais, quando aderindo aos postulados kardequíanos, tendo a vida modificada para mais prazer e maior soma de comodidades. Ou­tros, igualmente mantêm a respeito do Espiritismo a falsa idéia mitológica em torno das Entidades Nobres, que deverão estar às suas ordens, solucionando-lhes os problemas que engendram, atendendo-os nas suas questiúnculas e necessidades do processo evoluti­vo.

“O amigo Gustavo é mais um náufrago, que teve oportunidade de encontrar a embarcação segura, a bússola para conduzi-lo no oceano imenso, o timão de equilíbrio e, não obstante, resolveu guiar-se pelos instrumentos equivocados das próprias paixões.”

Ante a pausa natural feita pelo narrador, interro­guei com interesse de aprender:

— E como veio parar aqui? Qual o mecanismo que desencadeou o interesse dos Benfeitores pelo irmão equivocado?

Sem demonstrar irritação, dr. Ignácio respondeu com tranqüilidade:

— Somando a aflição da partida do esposo, às pre­ocupações com os filhos e à perturbação que o mes­mo produzia no lar, sem dar-se conta do deslindamen­to dos vínculos carnais, a viúva sofrida, embora pou­co informada das bênçãos do Espiritismo, recordou-se que o marido, vez que outra, no passado, referira-se à excelência da Doutrina. Tivera ocasião de assis­tir aos passistas transmitindo bioenergia ao pacien­te e falando-lhe com inefável doçura sobre a resigna­ção e a coragem ante o processo degenerativo e afli­gente, ficando sinceramente comovida e grata a es­ses operosos desconhecidos que lhe visitavam o lar para ajudar o companheiro, sem apresentar outro in­teresse, senão o bem dele mesmo. Orando, compun­gida, em momento de grande aflição, sinceramente voltada para o bem da família e de si, atraiu o seu Guia espiritual que a inspirou a procurar aquele gru­po de pessoas generosas, cuja conduta espiritual tan­to a impressionara. Ao buscá-los, e sendo imediata­mente atendida, os trabalhadores do Evangelho su­geriram o estudo da Palavra no seu lar, em encontro hebdomadário, quando então, mui lentamente o po­bre Gustavo percebeu que fora arrebatado do corpo, entrando em dilaceradora revolta e perturbação. Após transcorridos mais de dez meses de assistência es­piritual à família, o Mentor do desencarnado solici­tou internamento do amigo falido, o que foi providen­ciado pelo dedicado Eurípedes sem qualquer relutân­cia.

— E qual a terapia — voltei à carga — que lhe tem sido oferecida, a fim de liberá-lo do transtorno psí­quico em que se debate?

Pacientemente, o Amigo explicou:

— Três vezes por dia são-lhe aplicados recursos magnéticos para reajustamento dos neurônios peris­pirituais desagregados pelas ondas da rebeldia que lhe assinalou a existência física. As sinapses, sofren­do a irregularidade das cargas elétricas, funcionam-lhe desordenadamente liberando os fantasmas encar­cerados no inconsciente, que foram os comportamen­tos odientos, censuráveis, que agora, ressuscitados, perturbam-no. Duas vezes por semana são aplicadas técnicas hipnóticas, levando-o a processos regressi­vos, a fim de serem trabalhadas as lembranças, que recebem terapia calmante para que desapareçam, len­tamente diluídas as formas de conflitos e remorsos que o aturdem. Concomitantemente, são realizadas leituras edificantes que se lhe vão imprimindo na mente e estabelecendo novos raciocínios propiciadores de paz e de esperança.

— Qual a perspectiva — insisti com amabilidade —de recuperação da sua lucidez mental?

— Dependerá do esforço dele mesmo — redargüiu, gentilmente. — As fixações mentais são trabalho de demorado curso, realizadas por aqueles que as esti­mam. Quando de qualidade inferior, mantêm-se pre­judicando e enlouquecendo. E natural que a sua de­sestruturação ocorra também de maneira lenta, a fim de serem evitados choques emocionais no compor­tamento dos pacientes. A violência não faz parte dos Soberanos Códigos, sendo expressão de atraso espi­ritual daquele que a desencadeia. Assim mesmo, pro­vidências cuidadosas têm sido tomadas, de forma a reconduzi-lo à realidade. Não há muito, a esposa veio-lhe em visita, trazida em desdobramento pelo sono natural, e ele conseguiu percebê-la, experimentando alguns momentos de lucidez e de emoção natural. Esse fenômeno foi-lhe muito positivo, e tudo indica que será repetido na medida que se apresente mais favorável o seu quadro. Outros Espíritos amigos en­contram-se empenhados em predispô-lo à retomada da consciência, para que recomece a experiência de busca da felicidade.

“O nosso Sanatório tem como prioridade, confor­me o Miranda está esclarecido, atender os amigos da fé espírita que optaram pela perturbação, pelo engo­do, pelos compromissos infelizes, e que necessitam de atendimento carinhoso para o prosseguimento das tarefas interrompidas.

Naquele momento, chegaram os passistas encar­regados do atendimento de Gustavo. Era uma exce­lente oportunidade para auxiliá-lo com o nosso mo­desto contributo de oração e simpatia.

Proferida a prece por Alberto, solicitado pelo Ori­entador, logo após foi lida uma página de O Evange­lho segundo o Espiritismo, de Allan Kardec, e depois de breve comentário por um dos servidores, foram aplicados passes dispersivos no chakra coronário, alongando-se por todo o corpo perispiritual, prosse­guindo-se com a doação de energias saudáveis. No início, o paciente estertorou, acalmando-se lentamen­te, até ser abençoado por um sono repousante e tran­qüilo.

Estava encerrada a nossa visita. Despedimo-nos dos assistentes, e quando nos encontrávamos no cor­redor, indaguei ao médico uberabense:

— São aplicados outros recursos, que desconhe­cemos na Terra?

— Sim — respondeu com simpatia — todos eles de natureza energética. Houve tempo, em alguns casos muito graves, em que foram aplicados eletrochoques, e mesmo hoje, vez que outra, um tanto raramente, se fazem necessários procedimentos terapêuticos des­sa natureza. Todavia, os mecanismos espirituais são muito variados para o atendimento dos enfermos mentais, incluindo regressão de memória, hipnose profunda, fixação de pensamentos libertadores atra­vés da sua repetição mental em direção ao enfermo e aplicação de energias especiais encontradas em nos­so campo vibratório... Mas, é sobretudo através do amor, com o interesse pelo bem-estar dos enfermos que, por meio da oração que nos vincula ao Pensa­mento Divino, e do qual se haurem forças vigorosas para transmiti-las em favor dos necessitados, que, na razão em que vão sendo absorvidas, o quadro em que demoram se modifica para melhor, alterando o com­portamento emocional e psíquico, por fim, propician­do-lhes a recuperação do equilíbrio.

“Vivemos em um universo de ondas e de men­tes, de idéias, de vibrações, de energia, e tudo quan­to existe é resultado das várias apresentações des­ses campos de forças, apresentando-se em variado painel de formas e de acontecimentos. Se nos recor­darmos de Jesus, constataremos essa realidade quan­do Ele nos ensinou: — Seja o que for que peçais na prece, crede que o obtereis, e vos será concedido — con­forme as anotações de Marcos 11, versículo 24. Por que, na prece? Em razão desse miraculoso mecanis­mo vibratório poder alterar a estrutura da nossa rea­lidade, passamos a experimentar outras expressões da energia que promana de Deus e nos modifica a realidade interior. Sendo o pensamento uma fonte de energia específica, de acordo com a sua constituição positiva ou negativa, sempre alcança a meta para a qual é direcionado. No que se refere ao bem que pro­duz, à excelência dos resultados que proporciona, àqualidade de onda de que se constitui, transforma­se num excepcional recurso terapêutico que pode­mos utilizar em qualquer lugar onde nos encontre­mos e que, entre nós, desencarnados lúcidos e traba­lhadores, face à maior facilidade de elaborá-lo, torna-se-nos um instrumento dos mais preciosos para a construção do equilíbrio, propiciando a saúde.”


17

ALUCINAÇÕES ESPIRITUAIS

Encerrada a visita a Gustavo Ribeiro, dr. Ignácio conduziu-nos a uma Enfermaria onde se encontra­vam diversos pacientes: uns hebetados, outros agi­tados, todos em lamentável estado de desequilíbrio psíquico.

Havia uma gritaria infrene, gargalhadas ensur­decedoras, blasfêmias e vitupérios que se mistura­vam ao choro convulsivo e aos apelos comovedores.

A enfermaria espiritual diferia pouco daquelas terrestres, caracterizada porém, pela limpeza e pelos cuidados especiais que eram dispensados aos paci­entes. Havia, não obstante o tumulto, uma psicosfera de tranqüilidade e de dedicação ao próximo, que sur­preendia. Observando os doentes, notei que cada um permanecia no seu mundo, totalmente alienado da realidade ambiental, das necessidades do seu com­panheiro de infortúnio, dos acontecimentos à sua volta.

Sob o direcionamento do médico, acercamo-nos de um leito, separado dos demais por um biombo co­berto de tecido alvinitente, e nos deparamos com um paciente desfigurado, estereótipo do alucinado. Gri­tava e debatia-se com desesperação, como se dese­jasse libertar-se de agressores invisíveis que o ago­niavam. Agucei a observação mental e detectei que ele lutava contra formas hediondas que o ameaça­vam e logravam atacá-lo. Ante a surpresa, que se me fez natural, o amigo gentil explicou-me:

— Trata-se de formas-pensamento, que foram ela­boradas por ele mesmo durante quase toda a exis­tência de adulto, e de que não se conseguiu desem­baraçar na Terra, continuando no seu campo mental após a morte física. Tão vívida era a sua constituição que adquiriram existência, e são nutridas agora pelo medo e pelo mecanismo da consciência culpada. O irmão Honório é vítima também de si mesmo, porém, com alguma diferença em relação a Gustavo, como teremos ocasião de o constatar.

Indagando quanto aos procedimentos que deve­riam ter antecipado aquele momento, dr. Ignácio foi informado de que a sala estava preparada, faltando, somente, anestesiar o paciente para conduzi-lo.

De surpresa em surpresa, saímos da Enfermaria com o pequeno grupo que conduzia o sofrido Honó­rio agora adormecido mediante o recurso especial que lhe foi aplicado e aproximamo-nos, no lado oposto, de um recinto suavemente iluminado onde já se en­contravam Eurípedes, dona Maria Modesto e as duas médiuns já nossas conhecidas. Pairava no ar dúlcida vibração de paz, em razão de o recinto estar invadido por ondas sucessivas de bem-estar com quase im­perceptível melodia ambiental, que convidava à re­flexão e à prece.

Após instalar o enfermo na cama que o aguardava, depois de breves considerações, o venerável Eu­rípedes orou:

— Jesus, Excelso Terapeuta:

Os enfermos espirituais, que somos quase todos nós, reunimo-nos, mais uma vez, no Hospital de amor que nos confiaste, para rogar-Te diretriz de seguran­ça para a reconquista da saúde eterna.

Apesar de conhecedores que somos dos sublimes recursos do amor, ainda não conseguimos aplicá-los com a eficiência desejável, razão pela qual apelamos à Tua sabedoria para que nos inspire a sua aplicação na dosagem correta de medicamento libertador.

Anelando por servir, perdemo-nos, não poucas ve­zes, no labirinto dos interesses mesquinhos e pesso­ais, deixando a empresa da fraternidade em plano se­cundário.

Ajuda-nos a manter a força moral indispensável, para nos não desviarmos do objetivo central da evolu­ção, que é o bem fazer.

Neste momento, vem ter conosco na praia da com­paixão, para auxiliar-nos a recuperar o náufrago da viagem terrestre, cujo barco orgânico se esfacelou nos recifes das paixões.

Colocamo-nos em Tuas hábeis mãos e aguarda­mos que nos guies mediante a inspiração de que ne­cessitamos.

Vem, pois, Médico das almas, socorrer-nos, supli­camos-Te!

Ao silenciar, graças à unção com que pronuncia­ra cada palavra, a vibração superior mantinha-se na sala, gerando emoção de paz e de confiança ilimita­da.

Sentados em um semicírculo fronteiro ao leito de Honório, percebemos que dona Maria Modesto en­trava em transe profundo. A medida que se lhe alte­ravam as formas do rosto, suave ectoplasma era ex­teriorizado pelas duas damas envolvendo a médium, auxiliando-lhe a transfiguração. O semblante empa­lideceu expressivamente, a respiração fez-se-lhe opressiva, um noto estranho sulcou-lhe a face dese­nhando uma figura estranha, quase uma máscara de sarcasmo, semelhando-se às oleogravuras represen­tativas de Satanás que, entre estertores, começou a blasonar:

— Eu sou o Senhor dos vândalos e perversos. Sou a chibata que estimula e que pune. Sou Mefistófeles, de que se utilizou Goethe, para o seu Fausto. Atendo aos chamados, inspiro e passo a comandar aqueles que se me afeiçoam e passam a dever-me a alma. Logo se me faz oportuno arrebato-a para os meus domíni­os. Qual é o problema que aqui se delineia, exigindo minha presença? Venho espontaneamente, bem se vê, a fim de inteirar-me do que se deseja.

- Reconhecemos — respondeu com brandura, Eu­rípedes — todas as prerrogativas do amigo que nos visita, o que nos constitui um grande prazer e uma honra especial, recebendo-o com carinho e muita fra­ternidade.

— Deixe-se de verborréias desnecessárias. Que esperam de mim?

— Inicialmente trata-se de um encontro de ami­zade — respondeu o Mentor. — Respeitando-lhe as con­vicções em torno do que lhe apraz, desejamos escla­recê-lo que, infelizmente, o poder que estardalhaça é destituído de fundamento, porque o caro amigo é Espírito criado, sujeito às Leis que regem a vida, embora possuidor de recursos magnéticos que poderiam ser utilizados de maneira mais útil. Demais, apesar da sua aparente força, outra existe mais poderosa que a todos nos submete, que é aquela que procede de Deus, ínsita nos Seus ministros e, especialmente em Jesus.

— Onde estão e quais são essas decantadas for­ças, que as não conheço — vociferou, gargalhando es­tranhamente — Eu sou forte e apoio-me em mais se­guro poder. Honório é meu, e o terei pelo tempo que me aprouver, porqüanto assim ele quis, já que firmou um pacto comigo para todo o sempre, a partir do mo­mento em que lhe facultei desfrutar do prazer e do gozo. Como me desincumbi da minha parte, ele terá que corresponder ao comprometido.

— Não ignoramos — ripostou o evangelizador es­pírita — que o enfermo manteve largos colóquios men­tais com o amigo. No entanto, o seu critério de razão estava perturbado pela insânia de que já se encon­trava acometido, embora a aparente conduta equili­brada. Ele preferiu viver o seu mundo mental às ex­periências dignificadoras do mundo moral. Nessa fuga da realidade, conectou com o amigo que se apro­veitou da sua fraqueza para infundir-lhe idéias fal­sas e brindar-lhe estímulos perversos, qual ocorreu com você próprio em ocasião oportuna, quando se fez vítima de outrem mais perverso que o vem explo­rando...

— E quem é esse explorador a que se refere. — Es­bravejou em ruidosa gargalhada de mofa. — Eu sou senhor dos meus atos e movimento-me na área que me agrada, onde sou respeitado e temido.

— Certamente — elucidou Eurípedes — mais temido que respeitado, em razão de transitar entre cegos, fingindo possuir visão total e clara da realidade. Re­corde-se do enunciado de Jesus ao referir-se que todo cego que conduz cegos, tomba no abismo com eles... Isso, aliás, já aconteceu, desde que a sua, é a região da ignorância, verdadeiro abismo onde se encontram sepultadas todas as aspirações do ser. Mas, Jesus, e a luz libertadora, e para Ele estamos convocando-o neste momento aflitivo da sua vida.

— Dou-me conta que você não me conhece. — Es­tridulou, revoltado. — Lamento que não tenha infor­mações a meu respeito, não obstante tenho-as mui­tas em referência à sua pessoa. E porque sei quem é, não temi enfrentá-lo, desejando, neste momento, medir forças com o adversario...

Sem perturbar-se, o Mentor redargüiu:

— Não é nosso interesse medir forças, porque re­conheço não as possuir. O pouco de que disponho não é meu, antes é-me concedido por misericórdia de acréscimo. Além do mais, apoiamo-nos no amor, e com ele esperamos encontrar o recinto de paz e en­tendimento para seguir juntos na direção da Grande Luz.

— A mim não me interessa grande ou pequena luz. — Acentuou com desdém. — Já tenho a minha clari­dade essencial, aquela que me norteia os passos. A questão, todavia, é outra. Trata-se de Honório e nada mais me interessa.

— Penso diferente — aduziu o doutrinador. — Creio que se trata de você, que se encontra em sofrimento que escamoteia com a máscara da indiferença. O nos­so irmão Honório, que tem sido sua vítima, natural­mente necessita de libertação, para que, posterior mente você se libere dos próprios conflitos.

— Isso não me interessa, nem tampouco a você -reagiu com violência verbal - Continuarei cobrador inclemente com aquele que me é devedor, a quem tudo ofereci conforme me solicitou, e o realizarei com a severidade que o assunto requer.

— Novamente o amigo se equivoca — esclareceu, sereno, enquanto o perturbador espumava de ira — O único doador real é Deus, a quem tudo pertence. O que parece pertencer-nos é de Sua propriedade, es­pecialmente no que diz respeito ao poder, que no mundo é sempre transitório e vão. Por um processo de afinidade, o caro Mefistófeles estimulou mental­mente o descuidado, já que ambos navegavam na faixa da ilusão, facultando-lhe experiências pertur­badoras e doentias que se lhe fixaram na mente, ge­rando formas psíquicas que se condensavam quan­do lhes recorria às imagens para deleitar-se na aluci­nação que o assaltava.

— Exijo que me respeite — redargüiu, furibundo -Não vim aqui para ser desconsiderado. O meu pro­blema é com o bandido traidor, mas posso aceitar o repto e enfrentá-los a todos os senhores, porque sou decidido e sei o de que necessito, bem como a me­lhor maneira de conseguí-lo.

Sem perder a serenidade, antes pelo contrário, Eurípedes contestou:

— Não é nosso objetivo desrespeitá-lo, submetê­lo ou intimidá-lo. O nosso Guia é Jesus, que sempre conquista com amor e compaixão, jamais com violên­cia. A Sua compassiva misericórdia desce hoje sobre você, como sempre tem acontecido embora o amigo não o haja detectado anteriormente. Desejamos esclarecê-lo que Honório, como você mesmo e todos nós, somos filhos de Deus, que não nos encontramos ao desamparo. É certo que ele se comprometeu e se en­ganou. Quem lhe pode atirar a primeira pedra, consi­derando-se isento de erro? Porém, através do sofri­mento que se impôs, já resgatou a dívida, estando em condições de iniciar uma nova experiência ilumi­nativa para crescer e libertar-se da inferioridade que lhe pesa na economia moral.

— E se eu não o permitir? — Interrogou, arrogante.

— Deus o fará através de Jesus, Aquele a quem entregamos a operação desta noite — esclareceu com tranqüilidade. — O que pretendemos, é que o amigo-irmão dê-se conta do tempo que vem sendo desper­diçado na ilusão de manter-se como uma persona­gem que não tem existência real. Conforme sabemos, o mito do diabo está ultrapassado, embora a loucura de alguns Espíritos que desejam assumir-lhe o com­portamento e dar-lhe legitimidade em um esforço in­sensato que vai além da fantasia. Ninguém foge de si mesmo, dos seus próprios arquivos mentais, das suas realizações... Neste momento, iremos convidá­lo a recordar-se de suas experiências pessoais, levan­do-o numa viagem ao tempo-ontem, quando se lhe instalou a idéia absurda de ser Mefistófeles.

Ato contínuo, dr. Ignácio acercou-se da médium e começou a aplicar-lhe energias dissolventes no cen­tro cerebral, a fim de que a memória do Espírito se desenovelasse das induções mentais a que fora sub­metida. Ao mesmo tempo, pôs-se a induzi-lo ao sono profundo, usando o recurso da palavra tranqüila, mo­nocórdia, repetitiva. Sem muita relutância o visitante adormeceu e, estimulado a recuar ao passado, no sé culo 19º, logo começou a caracterizar-se como um ator em pleno palco representando a figura dramática da tragédia do Fausto.

Enquanto repetia as palavras de Goethe, enunciadas por Mefistófees, em atitude prepotente e exuberante, o Benfeitor esclarecia:

— Você confundiu a personagem da fantasia trágica a que dava vida no teatro com o homem da realidade terrena, igualmente atormentado, vaidoso, sonhador e perseguidor do triunfo na ribalta dos interesses humanos, sem qualquer estrutura em torno da espiritualidade interior. Repetindo o papel que o fascinava, introjetou-o de tal forma, que passou a vivê-lo no comportamento cotidiano, embrenhando-se no matagal da auto-obsessão. Ao desencarnar foi, por sua vez, vítima de hábil hipnotizador, que o induziu a assumir a forma perversa, para que lhe fosse útil nos lamentáveis processos de perturbação espiritual em que o atirou, desprevenido e insano como tem sido. Enfrente agora a realidade diversa. Você é filho de Deus e necessita ser feliz. Abandone a indumentária triste e ilusória que o veste.

Enquanto o Espírito apresentava diferentes expressões faciais que variavam do espanto ao terror durante o esclarecimento oportuno, Eurípedes prosseguia:

- O seu período de sofrimentos também acabou Atrás da máscara sempre se encontra o ser humano angustiado, sem roteiro, escondendo suas dores no disfarce da ilusão. Você merece despertar para uma nova realidade, começando a experiência dignificadora, aquela que constrói o ser interno verdadeiramente harmonizado.

E dando maior ênfase à voz, enquanto dr. Igná­cio aplicava passes de dispersão energética no Espí­rito, permitindo que fossem desaparecendo as cons­truções ideoplásticas, Eurípedes acentuou com firme­za:

— Augusto, acorde para a realidade e para a vida. Retome a sua forma humana, aquela que o vestiu durante a trajetória terrestre antes da alucinação. Saia do palco e volva à realidade. Você está entre amigos que lhe compreendem o drama íntimo, que não vem ao caso aqui examinar, e é muito bem recebido. Nin­guém foge indefinidamente de si mesmo, nem das Leis de Deus, que a todos nos alcançam onde quer que nos refugiemos. Desperte... desperte... e seja bem-vindo, meu irmão.

O Espírito começou a contorcer-se na aparelha­gem mediúnica delicada, a respirar com dificuldade, e enquanto se diluíam as formações da indumentária e da máscara facial, ele se foi reconstituindo e assu­mindo a personalidade que lhe pertencia, recurvan­do-se como alguém de muita idade, portador de pro­blema na coluna, para finalmente ser tomado por con­vulsivo pranto, que lhe dificultou o verbo.

— Acalme-se, meu amigo! — Propôs, suavemente Eurípedes — Todo renascimento é doloroso, especial­mente quando se dá através do abandono da fanta­sia para a realidade, da loucura para a razão. Tudo agora é passado, e você dispõe de um futuro abenço­ado que o aguarda. Agora é necessário repousar, dor­mir e sonhar com o Bem, de forma que o amanhã sur­ja das névoas do ontem com as claridades da alegria de viver.

Nesse momento, dr. Ignácio, que prosseguia aplicando energias restauradoras do equilíbrio, deslin­dou o comunicante dos laços que o vinculavam ao perispírito da médium e o colocou em uma cama de campanha que se encontrava atrás do semicírculo para posterior transferência para a Enfermaria ade­quada, onde prosseguiria o seu tratamento.

Ainda sob o clima psíquico de júbilo ante o êxito do cometimento espiritual com o irmão Augusto, Ho­nório despertou, chamado por Eurípedes, logo assu­mindo a postura alucinada. As formas-pensamento, que o exauriam em terrível processo de vampiriza­ção das suas energias espirituais, assomaram ao consciente e ele começou a delirar, assumindo pos­turas grotescas, escabrosas, que eram os resíduos dos seus conflitos morais e sexuais em desalinho, vi­venciados pela mente atormentada.

Utilizando-se das bênçãos do clima psíquico, uma das damas presentes, a Sra. Emestina, visivel­mente mediunizada, levantou-se e aproximou-se do enfermo. Irradiava mirífica luz que a banhava toda em tom prata-violáceo, espraiando-se pelo pequeno recinto e dando-lhe uma tonalidade especial.

Nesse comemos, Eurípedes assinalou:

— Honório, você já não se encontra no corpo no qual se refugiava. Espírito liberto da matéria, mas preso às suas sensações, você já não necessita das imagens delirantes para encontrar o prazer. Enquan­to não mudar de atitude perante a vida, descobrindo outros valores, permanecerá nesse estado de loucu­ra. Acorde para a realidade na qual está instalado e passe a vivenciá-la.

Segurando-lhe firmemente as mãos, impôs:

— Acorde! Abandone, por momentos breves que sejam, as fantasias sexuais e os devaneios mentais. Desperte, nós lhe ordenamos em nome de Jesus, o Cristo!

Do terapeuta, à medida que a voz assumia ex­pressão enérgica, ondas sucessivas de energia en­volviam o enfermo, diluindo as imagens mentais que permaneciam como verdadeiro envoltório em torno da sua cabeça, e ele, nominalmente convocado, pa­receu despertar, alterou a expressão da face, os olhos recuperaram a normalidade, banhado por débil lumi­nosidade, e enquanto balbuciava palavras descone­xas, num retorno lento, como quem desperta de um largo letargo recheado de pesadelos intérminos, per­cebeu o Benfeitor e escutou-o, propondo-lhe:

— Observe onde se encontra. Você não está a sós como lhe era habitual. Aqui estamos alguns amigos interessados em liberá-lo do largo sofrimento, da lou­cura do prazer impossível. Volva à consciência e olhe bem à sua volta...

O paciente atendeu à solicitação, quase automa­ticamente, e gritou, quando viu o Espírito comuni­cando-se através de dona Ernestina:

— Deus meu, um anjo! Será a Mãe de Jesus?!

— Não, meu filho. Sou a tua pobre mãezinha, que vem em teu auxílio em nome da nossa Mãe espiritu­al, a Genitora de Jesus.

O paciente foi acometido de emoção sincera e levantou-se do leito, ajoelhando-se, num impulso in­tempestivo, dobrando-se quase até o solo, que ten­tou beijar em uma atitude profundamente comove­dora. A seguir, explicitou:

— Volte para o Céu, mamãe, porque eu não mere­ço a sua presença. Eu sou um pântano e a senhora é um lírio de Deus. Não me atormente com a sua visita, porqüanto eu sou detestável e devo estar sonhan­do...

— Não, meu filho, você está desperto, não é um sonho. — Elucidou com bondade e ternura que se mis­turavam em vibrações de paz. — Você já não se encon­tra entre as pessoas da Terra. A morte, essa benfeito­ra de todos nós, trouxe-o para o reino da verdade, onde nada permanece oculto, e as oportunidades de elevação se apresentam enriquecedoras. As aflições deveriam ter ficado com o corpo que já se desfez, mas você as trouxe no seu mundo íntimo, fechado à luz do discernimento e da confiança irrestrita em Deus. Agora, devem cessar suas aflições.

Honório chorava e sorria, num misto de tristeza profunda e de alegria que o tomava. Enquanto isso, após uma breve pausa, que deveria auxiliá-lo a ab­sorver-lhe as considerações, a mãezinha prosseguiu:

— Visitei-o durante os longos anos da nossa se­paração física, mas você não me pôde identificar. A solidão em que esteve atirado por vários fatores, ao invés de direcionar-lhe a mente para Deus e para a paz, empurrou-o para as fugas espetaculares no rumo do delírio e das abjeções morais. Não desejamos jul­gar-lhe a conduta. Apenas queremos informá-lo que tudo isso agora é passado, mas o futuro sorri-lhe mil possibilidades de refazimento, de renovação, de tra­balho edificante. Você nunca esteve realmente a sos... Quanto nos foi possível, procuramos infundir-lhe âni­mo ante as vicissitudes e inspiração para suportar o fardo da soledade, que necessitava por imposição evolutiva. Optando pelos devaneios, associou-se a Espíritos vulgares que o exploraram psíquica e fisicamente, enquanto o auxiliavam no banquete da per­versão moral. Mas agora tudo começa a mudar. Per­maneça atento, e levante-se, meu filho, para refun­dirmos nossas energias em um abraço de inefável amor.

A veneranda Entidade dobrou a médium, disten­deu os braços e auxiliou o filho atônito a levantar-se. Tremendo como varas verdes, foi cingido pela geni­tora, enquanto apoiava a cabeça suarenta e dorida nos ombros maternos, soluçando, e balbuciando: — Eu não sabia! Eu não sabia...

— Jesus, meu filho — acentuou a nobre visitante —é o nosso Caminho para a Verdade e para a Vida. Bus­que-O em suas reflexões, siga-O em seu comporta­mento mental e suas atitudes espirituais. É sempre tempo para recomeçar e para servir. Não se detenha. Tanto quanto me esteja ao alcance, virei visitá-lo, por­que estagio em outro campo de atividade que não está nesta cidade. O nosso amor facilitará o nosso intercâmbio mental e nos dará forças para recuperar­mos juntos o tempo malbaratado, as oportunidades perdidas, o serviço que deixou de ser executado.

Auxiliando-o a sentar-se no leito, concluiu com doçura:

— Nunca se esqueça do amor de Deus. A medida que você compreender o significado deste momento, mesmo que retornando os clichês viciosos à sua cons­ciência, reaja e pense em Deus, buscando a leitura dos textos evangélicos, a fim de conseguir material iluminativo para o seu crescimento interior.

“Muito bom ânimo, filho da alma! Que Deus o abençoe e o ampare!”

Agradecendo ao grupo que lhe criou as condi ções psíquicas hábeis para a comunicação, afastou-se da médium que volveu à consciência.

Honório respirava sem muita dificuldade, en­quanto as lágrimas lhe escorriam lentas e, em refle­xão, tentava fixar na mente a ocorrência de alto sig­nificado, sem apresentar, porém, os delírios que an­tes lhe caracterizavam o comportamento.

Pairando peculiar silêncio, Eurípedes concluiu a reunião, orando:

— Sábio Médico das almas!

No momento em que encerramos a operação espi­ritual de libertação dos Espíritos emaranhados no ci­poal do erro e da amargura, reconhecemos que foste Tu Aquele que agiu por nós e através de nós, exterio­rizando o Teu inefável amor, que os impregnou, libe­rando-os de si mesmos e abrindo-lhes os horizontes da saúde interior e plena.

Agradecemos-Te, Benfeitor da Terra, e curvamo-nos, humildemente, ante a Tua magnanimidade, ro­gando-te que nos não deixes a sós na longa marcha ascensional, para que não venhamos a perder o Teu rumo, que a nossa segurança.

Suplicando-Te que nos envolvas a todos nós nas Tuas mercês, concluímos o labor desta noite, prepa­rando-nos para o permanente amanhã de nossas vi­das. Sê, pois, conosco, hoje e sempre.

Podia-se perceber-lhe a emoção além das pala­vras e a humildade real que as vestia de beleza e gra­tidão.

A seguir, depois de breves momentos de conver­sação edificante despediu-se e afastou-se com as médiuns, rumando para novos deveres.

Honório foi conduzido a uma outra enfermaria in­

dividual, onde passaria a receber diferente assistên­cia à daquela que lhe era oferecida até então, enquan­to dr. Ignácio, eu e Alberto, rumamos em direção aos nossos aposentos.

Caminhando silenciosamente, porque a ocasião me ensejasse oportunidade, interroguei ao médico:

— Honório continuará lúcido a partir deste mo­mento?

- Não totalmente — respondeu com afabilidade. —Os processos de auto-obsessão prolongada deixam muitas seqüelas que somente o tempo e o esforço do paciente poderão drenar, superando-as. Nesse pro­cesso, conforme vimos, o enfermo experimentava o assédio do seu comparsa obsessivo, que se manti­nha à distância, mas se lhe vinculava pelo pensamen­to, induzindo-o constantemente à vivência dos pra­zeres vulgares. Fazia-se vítima do desequilíbrio pes­soal e da ligação perversa. Amparado aquele que o perturbava, e que irá enfrentar as conseqüências dos seus atos infelizes, o paciente terá pela frente todo um significativo trabalho de reconstrução mental, de reestruturação do pensamento, de mudança da con­duta moral. No entanto, sob o adequado tratamento que se prolongará pelo período necessário, conseguirá readaptar-se ao correto, ao moral e ao saudável

— E que acontecerá com Mefistófeles? — Indaguei curioso.

— Será atendido conforme merece, por sua vez desligando-se do outro comparsa mais inditoso, que dele se utilizava para processos vulgares dessa na­tureza. Nosso relacionamento de criaturas umas com as outras produz efeitos correspondentes aos graus de vinculação. Quando auxiliamos a alguém, que passa a contribuir positivamente no grupo social em que se encontra, os juros de amor são-nos também acres­centados, porqüanto o importante é o ato inicial de ajuda. Da mesma forma, quando nos responsabiliza­mos pela degradação ou queda, infelicidade ou de­salinho de outrem, todo o volume de desares que apa­rece é adicionado à nossa atitude primeira, àquela que deu curso aos desatinos que tiveram lugar a par­tir dali. Eis porque o bem é sempre melhor, mais pro­veitoso, mais positivo para aquele que o realiza. Nun­ca devemos desperdiçar o ensejo de servir, de amar, de contribuir em favor do progresso, por menor que seja a nossa contribuição, por menos valiosa que se nos apresente. Estamos convidados a construir, nun­ca a perturbar, a erguer o amor às culminâncias, ja­mais a impedir-lhe o avanço, seja sob qual justificati­va o façamos.

Silenciando, naturalmente, respeitamos-lhe o can­saço natural e, logo mais, atingindo o apartamento onde me hospedava, despedi-me de Alberto e do no­bre missionário da psiquiatria, buscando também o conveniente repouso.


18

SOCORRO DE EMERGÊNCIA

No dia seguinte, ao despertar, o drama que en­volvia Augusto e Honório retornou-me à memória com acentuada nitidez. Relacionava aquelas duas vidas, cujas experiências tiveram cenário em épocas e lu­gares diferentes, e, no entanto, se associaram de maneira tão perturbadora quão desastrosa. Sem que houvesse algum vínculo pessoal, pelo menos aparen­te, passaram por experiências doentias que somente a bondade de Deus conseguira interromper. Pergun­tava-me, então: — Seguiriam diferente rumo ou volta­riam a encontrar-se, a fim de diluírem quaisquer ressentimentos que permanecessem após as reflexões profundas dos acontecimentos nefastos? Haveria al­guma ligação espiritual anterior negativa, que justi­ficasse aquele intercurso obsessivo? Outras questões dentro do mesmo pensamento surgiram-me e tive que postergar esclarecimentos, aguardando o momento próprio.

Como de hábito naquele período, Alberto veio buscar-me para participar das atividades nas enfer­marias, observando e aprendendo, e expus ao amigo as minhas inquietações.

Demonstrando interesse, foi sincero em respon­der-me que também ignorava as implicações em tor­no do caso muito especial.

Através do cicerone amável, fui informado que, ao amanhecer do dia imediato, teríamos uma reunião de atendimento espiritual a um companheiro encar­nado, que se encontrava enleado em sutil obsessão, e deveria receber uma assistência mais especializa­da em nossa Instituição, o que era relativamente co­mum. Esse ministério de amor acontecia com a fina­lidade de auxiliar os corações humanos reencarna­dos a sentirem de mais perto o amor de Deus e serem alertados das ciladas que lhes eram armadas pela in­vigilância e pelos inimigos da Causa do Bem na Ter­ra, assim como dos seus próprios adversários, aque­les em relação aos quais cometeram desatinos, e agora se voltavam armados de ódio e dominados pela sede de vingança. Para esse novo trabalho eu me encon­trava convidado, devendo preparar-me conveniente-mente, como seria de esperar-se.

Não pude ocultar o júbilo, porque o tema da ob­sessão sob qualquer aspecto considerado sempre me fascinou, ajudando-me a entender o intrincado da Lei de Causa e Efeito no transcurso da evolução humana.

Desse modo, visitamos alguns dos amigos cujas experiências dolorosas anotáramos, oferecendo a con­tribuição da nossa fraternidade e, dentre eles, Honó­rio, que apresentava sinais de visível melhora, em­bora a expressão dos olhos ainda denotasse fixação nos quadros do passado, conforme era de esperar-se e nos fora esclarecido.

Não é nada fácil a ascensão, a transferência do vale estreito para a adaptação no monte que alcança horizontes infinitos. A longa peregrinação pelo char­co produz diversos problemas ao organismo que se intoxica das emanações morbíficas, da umidade, do tremedal. A medida que o ser ascende é convidado àadaptação lenta em cada patamar, a fim de no futuro poder contemplar as alturas e absorver o oxigênio puro a que não está acostumado.

O dia transcorreu enriquecido de experiências li­bertadoras, por ensejar-nos reflexões cada vez mais profundas em torno dos acontecimentos que elevam ou escravizam o Espírito, decorrentes da sua condu­ta anterior. A visão da vida, desde o ponto de vista espiritual, elimina o mecanismo da culpa alheia e a consciência se transforma no acusador severo ou no benfeitor amigo de cada qual, relacionando os feitos existenciais que retornam vivos e pulsantes através do caleidoscópio da memória.

Às 23 horas e 30 minutos, dr. Ignácio buscou-me no apar­tamento, ensejando-me apresentar-lhe as interroga­ções sobre o caso Honório. Com muita sabedoria e simplicidade, explicou-nos que, nem todo novo en­contro se trata de um reencontro, como aliás, é lógi­co. Estamos diariamente fazendo novos amigos ou afastando-nos deles conforme as nossas ações. No caso que me impressionara, fora o encarnado quem abrira brechas mentais para a parasitose espiritual, atraindo Mefistófeles pelo teor de vibrações emana­das pela sua mente em desalinho. E logo adiu:

— Cada experiência humana faculta vinculação com o objetivo a que se direciona, ensej ando novos relacionamentos ou dando prosseguimento aos anti­gos, sem que, necessariamente, esteja a repetir-se com as mesmas personagens. Digamos, por fim, que foi meramente casual esse fenômeno obsessivo, face à similitude vibratória entre os dois cômpares espiri­tuais. Liberados dos laços da afinidade que os reti­nha em perturbação, marcharão por caminhos diver­sos, tendo em vista os valores que tipifiquem o pro­cesso evolutivo de cada qual. Talvez possam encon­trar-se, o que não será indispensável, porqüanto des­pertarão em paisagens mentais próprias a fim de seguirem adiante no rumo do Infinito.

Quando silenciou, estávamos em um recinto que transcendia a beleza comum, na sua simplicidade quase comovedora. Harmonias espirituais pairavam no ar, produzindo um estado de emoção especial. De reduzidas proporções, era um santuário para as ex­periências mediúnicas e os intercâmbios com aque­les que transitavam na noite terrestre exercendo ati­vidades muito delicadas. Preservado de vibrações deletérias, convidava à meditação e à prece.

Ao nos adentrarmos, encontramos o nobre Eurí­pedes e sua dedicada médium, bem como outros Es­píritos afáveis, para mim desconhecidos, que nos re­ceberam com cordialidade e simpatia.

Dr. Ignácio, sem maior formalidade, apresentou-nos, explicando a razão da minha presença no labor espiritual da noite, e todos foram, a uma só voz, gen­tis e fraternos. Alberto também já se encontrava pre­sente, o que aumentou a minha alegria.

A reunião seria um pouco mais tarde. A necessi­dade do encontro antecipado tinha por objeto favo­recer-nos o contato proveitoso com o dedicado Eurí­pedes, que iria conversar conosco informalmente, conforme aconteceu.

— Dentre as atividades mediúnicas a que me hou vera afervorado na Terra — iniciou, o devotado amigo, a sua explicação — o tratamento com os obsessos sem­pre me significou ministério delicado e credor do maior empenho. Acompanhar a trajetória de um ser submetido pela mente desarvorada de outro, que se utiliza da situação espiritual para reivindicar valores que lhe não pertencem, porque tudo procede de Deus, ou para exigir pagamentos morais por danos sofridos, sempre se me expressava como uma forma de sofrimento pessoal. Isso, não somente por sentir a alu­cinação do hospedeiro, mas também por compreen­der a infelicidade do seu transitório hóspede. Sempre que enfrentava essa pertinaz enfermidade, procura­va penetrar no âmago do vingador para despertá-lo para a felicidade que adiava apenas por capricho, ig­norância ou rebeldia. Acostumado, no entanto, ao abandono que se permitira ou ao sofrimento a que se deixara arrastar, esse irmão do Calvário relutava em acreditar nos meus sentimentos, sempre supondo que eu guardava motivos subalternos, qual o de afastá­lo do encarnado e semelhantes, sem qualquer consideração pela sua dor. Evitando discussões estéreis, sempre busquei irradiar simpatia e compreensão pelo seu drama, conseguindo sensibilizar um expressivo número de equivocados.

“Na trama da obsessão, portanto, não apenas se encontra em desalinho o que chora e se desespera, mas também aquele que aplica o látego, o verdugo aparentemente insensível, que é sempre alguém que perdeu o rumo de si mesmo, por conseqüência, a iden­tificação com a vida. Acercar-se da sua situação pe­nosa, mediante sincera emoção, é de significado pro­fundo, porque a irradiação mental é mais poderosa do que a verbalização que pode ser destituída da vi­bração de legitimidade. O amor, por conseqüência, éo mais poderoso recurso ao nosso alcance, expresso ou não, para ser utilizado, do que quaisquer argu­mentos bem urdidos, porém, escassos do recurso vitalizador que é necessário a todo aquele que se en­contra em carência afetiva. E os perseguidores são, invariavelmente, Espíritos em grande carência, des­confiados e áridos, porque foram vítimas de enleios e traições relacionados com os seus sentimentos de nobreza e de sinceridade.”

Fazendo uma pausa oportuna, e mantendo a ex­pressão da face muito serena, prosseguiu:

— Tendo em vista a necessidade de ressarcimen­to das dívidas contraídas pelo abuso da confiança que nos foi oferecida, torna-se-nos necessário o mergu­lho na carne, a fim de refazermos os caminhos, as afei­ções, as oportunidades. Antes da viagem à reencar­nação, ainda lúcido, o candidato promete fidelidade e devotamento, sintonia com os Amigos espirituais que ficaram na Erraticidade para os ajudar na desin­cumbência do dever. Logo porém, que o corpo en­sombra a lucidez espiritual, diminuindo-a, os impo­sitivos da matéria passam a predominar no ser em recomeço, não poucas vezes afastando-o do caminho traçado. Eis porque o Espiritismo, representando o retorno de Jesus à Terra através de O Consolador, de­sempenha a missão sublime de despertar as consci­ências adormecidas, facultando o intercâmbio direto com o mundo de origem, onde se haurem as energias indispensáveis ao cumprimento da tarefa e se dis­põem das lembranças para o prosseguimento dos compromissos. E também durante a vilegiatura car­ nal que têm curso os combates iluminativos, quando se devem reunir e confraternizar os antigos adversários, a princípio, sob o sufrágio da dor, porqüanto de­fraudaram as Leis, sem que delas se possam evadir, para depois se renderem ao amor, à fraternidade.

“Assim sendo, as matrizes que se encontram no perispírito — as marcas impressas pela consciência culpada — facultam as induções e fixações entre cre­dores e devedores, expressando-se em aflições ob­sessivas para ambos atormentados. Ninguém, pois, na Terra, que esteja isento da comunhão com os Es­píritos, seja pela necessidade reparadora, manifeste-se através do impositivo da inspiração e do direcio­namento feliz para o rumo que se pretende alcançar. Esse relacionamento faz parte do processo da evolu­ção, porque o crescimento ou a queda de alguém sem­pre repercute na grande família espiritual que cons­tituímos. Reconhecemos, portanto, que a reencarna­ção é sempre um grande desafio, especialmente para aquele que deseja realizar a meritória obra de espiri­tualização dos homens, a começar por si mesmo. São muitos os impedimentos naturais que se levantam nessas ocasiões, tentando embaraçar ou dificultar a execução do programa delineado.”

O querido Instrutor olhou suavemente para o Alto, como tentando colocar em palavras o que co­nhecia por vivência pessoal, e estava acima da ver­balização, continuando:

— O carreiro carnal é sempre uma experiência de alto risco para quem deseja atingir as cumeadas da montanha das bem-aventuranças. Recordando-nos do Mestre, constataremos que Ele venceu os três montes que O desafiaram: o Tabor, onde se transfigurou esplendente de beleza diante de Moisés e Elias, que vieram reverenciá-lO, bem como dos discípu­los que ainda não tinham dimensão da Sua grande­za. Foi o monte da comunhão espiritual no seu senti­do mais elevado. O outro, foi aquele no qual Ele can­tou as bem-aventuranças, revolucionando os códigos de ética, de economia e de moral vigentes na socie­dade, abrindo horizontes novos para o entendimento dos valores espirituais. E, por fim, o Gólgota, onde, aparentemente vencido, triunfou, imortal, colocando a ponte para a perpétua comunhão de todas as cria­turas com o Pai. No primeiro, Ele desvelou-Se, no se­gundo estabeleceu as diretrizes do amor, e, no ter­ceiro, viveu todos os ensinamentos que enunciou.

“O Espírito reencarnado em tarefa libertadora sempre será chamado ao testemunho nos montes onde problemas equivalentes o aguardam: no primei­ro, deve dar a conhecer o objetivo a que se dedicará; no segundo, cabe-lhe traçar as linhas de comporta­mento que adotará, e no terceiro, vivê-las até o mo­mento final com equilíbrio e abnegação. Não é dema­siado, porque nunca faltará o apoio indispensável ao êxito, que procede do mundo espiritual vigilante e ativo. Eis porque, iniciada a tarefa na seara, ninguém deve olhar para trás.

“Reunimo-nos aqui, neste momento, para rece­ber um querido companheiro que se encontra nas sombras terrestres com tarefa muito bem programa­da, mas caminha a largos passos para a loucura das paixões humanas a que ora se entrega. Telementali­zado pelos adversários do seu progresso, bem como por sistemáticos inimigos da libertação das mentes humanas das chagas obsessivas, deveremos convi dar o companheiro a reflexões acuradas e, mais uma vez, tentar dissuadi-lo dos objetivos vãos que está abraçando com louca sofreguidão, procurando na Ter­ra o prazer e o engodo, a fama e a popularidade, es­quecendo-se de Jesus, que vai passando para segun­do plano, ou pior, que se torna instrumento de atra­ção para os seus torpes desejos de sensações. Quan­do se está muito preocupado com a própria promo­ção, esquece-se da razão do trabalho, que passa a lugar secundário. Como a existência física é muito breve e logo se acaba, o iludido desperta no abismo do arrependimento tardio, assinalado pelos sofrimen­tos demorados.

“Aguardemos, portanto, Edmundo, o servidor em perigo.”

Nesse comenos, um grupo de amigos espirituais deu entrada no recinto trazendo Edmundo adormeci­do, que foi colocado em uma cadeira confortável e acolhedora.

Pude observar que se tratava de um jovem que ainda não completara quarenta janeiros. O seu era um sono inquieto, que demonstrava desalinho inte­rior. Embora a aparência agradável, o como perispiri­tual apresentava-se com estranhas exteriorizações vibratórias, particularmente nos centros coronário e genésico. Emitiam ondas de cores quentes, intermi­tentes, denunciando comprometimento dos fulcros geradores de energia. Continuando a observação com mais cuidado, percebi-lhe dilacerações no campo modelador biológico de procedência inferior, que iri­am manifestar-se posteriormente no corpo somático. No centro cerebral estava instalada a matriz obses­siva, o que também se apresentava no aparelho sexual. Certamente, os plugues de ligação haviam sido desligados magneticamente naquele momento pe­los assistentes que o trouxeram para o encontro es­pecial.

Interrompi as observações, porque o Instrutor exorou as bênçãos divinas para a atividade que se iniciava mediante comovida oração, após o que se aproximou do visitante e o despertou, chamando-o nominalmente com carinho fraternal.

Ouvindo-o, e despertando, Edmundo logo reco­brou a lucidez, detectando com relativa facilidade o local onde se encontrava, não ocultando a surpresa que o acometeu.

Sorridente, percebeu o Mentor, que jovialmente o convidou à reflexão, sem maiores preâmbulos:

— Saudamo-lo mui cordialmente em nome de Je­sus, a quem servimos. Aqui nos reunimos e o rece­bemos carinhosamente com o objetivo de recordá-lo que esta não é uma viagem de recreação espiritual ou de compensação emocional. Objetivamos, isto sim, acordá-lo para o cumprimento digno das responsabi­lidades assumidas antes do berço e que, neste mo­mento, encontram-se em grave perigo para a sua con­cretização.

Fez uma rápida pausa, e com tom bondoso, mas enérgico, prosseguiu:

— Você partiu desta Colônia com um programa de ação espiritual muito bem delineado, no qual foram investidos muitos valores, e o atendeu por bom perí­odo da existência física. Abeberando-se na inexaurí­vel fonte do Espiritismo, saciou a sede de informa­ções e despertou para a tarefa que deveria realizar. A mediunidade franqueou-lhe o acesso à Espiritualidade, que jamais deixou de regatear-lhe auxílio e apoio. Agora, quando a notoriedade o alcança, facultando-lhe ensejo para ampliar o campo de serviço e dedica­ção a Jesus e à Sua Doutrina, você começa a compro­meter-se com a frivolidade e o mundanismo.

“Entendemos que esses adversários já se lhe en­contram fixados no Espírito, responsáveis que foram por mais de um insucesso em existências anteriores. Todavia, esta é a sua oportunidade feliz para servir ao Senhor, e não para dEle servir-se, como vem fa­zendo, repetindo a insânia para a qual recebeu altas dosagens de energia libertadora. A mediunidade os­tensiva é compromisso muito grave de conseqüênci­as relevantes, que não pode ser utilizada mediante a irreverência e o despautério.

“Não lhe deve ser vão o conhecimento espiritual para o transformar em espetáculo circense, que lhe exalta o personalismo doentio em detrimento da aus­teridade e da consciência de dever que lhe cumpre atender. O investimento dos bons Espíritos está sen­do malbaratado, enquanto a futilidade e a presunção assumem prioridade no seu comportamento.”

Silenciou, facultando ocasião de serem as suas palavras apreendidas e memorizadas.

Ante o aturdimento de Edmundo, o Benfeitor con­tinuou:

— Iremos recordá-lo dos compromissos a que você se vinculou e os vem desrespeitando sob induções de Espíritos vulgares, que ora se lhe associam à con­duta mental e social, apoiados nas suas preferências transatas...

Olhando a senhora Modesto, a nobre médium de­senrolou um pergaminho que trazia nas mãos e, com voz pausada, leu o programa que fora traçado por so­licitação do medianeiro e sua anuência jubilosa a al­gumas propostas que haviam sido apresentadas pe­los seus Guias espirituais.

Eu me encontrava pasmado. Era a primeira vez que via uma atividade dessa natureza, mediante a exibição de um relatório no qual estavam arquivadas as responsabilidades de alguém comprometido pe­rante as soberanas leis.

A voz melódica da senhora parecia derramar pé­rolas luminosas que eram os deveres que assinalari­am a experiência do companheiro reencarnado.

— Você prometeu — prosseguiu com a leitura do documento — canalizar para Jesus e Sua Doutrina quaisquer homenagens e triunfos que lhe chegassem. Aceitou servir e passar, lutando contra as tendênci­as inferiores; superar o cerco da bajulação e reconhe­cer que a faculdade mediúnica não é propriedade pessoal, mas empréstimo superior, a fim de dignifi­cá-la. Você pediu a solidão, para recolher-se nos bra­ços amorosos do Mestre; rogou o convívio com os so­fredores, a fim de enxugar-lhes as lágrimas através das bênçãos da mediunidade; suplicou a simplicida­de de coração, de forma que pudesse entesourar paz; empenhou-se para que a sua fosse a família univer­sal, e todo esse seu esforço deveria ser direcionado para a iluminação de consciências, considerando o século como oportunidade de crescimento e não de usança desarvorada...

Por alguns minutos a médium vitoriosa repassou as informações contidas no pergaminho em luz, até concluí-lo.

Silenciando, Eurípedes perguntou-lhe com tris teza na voz:

— Que tem o querido irmão feito da fé renovada? Como se tem utilizado dos recursos mediúnicos, ora movimentados por forças inferiores? Como se enco­raja a tentar unir César e Jesus no mesmo recipiente de prazer e proclamar que a vida deve ser fruída sem qualquer desvio das suas concessões?

Outras interrogações foram apresentadas com amor e severidade, a fim de que ficassem impressos na memória espiritual todos os acontecimentos da­quela noite incomparável.

— Somando-se a esses desatinos de comporta­mento moral e psicológico — prosseguiu o nobre Men­tor — advertimo-lo que os Mensageiros que o ampa­ram têm encontrado dificuldades para manter o con­tato psíquico, porque os seus centros de captação me­diúnica estão sintonizados com as faixas de baixa fre­qüência que decorrem das suas aspirações ocupa­das por ativistas infelizes. A mente do médium deve sempre estar vinculada aos ideais de enobrecimen­to, impedindo, desse modo, a interferência dos Espí­ritos vulgares, que se comprazem na ilusão, estimu­lando conduta equivocada, para mais estreitarem a comunhão psíquica com aqueles que os albergam no mundo íntimo. Nunca faltam recursos preciosos para a preservação da saúde interior, tais: a oração, as lei­turas edificantes, o trabalho de socorro fraternal, tan­to quanto o social que diz respeito aos valores exis­tenciais, a meditação, o espairecimento sadio, a con­versação edificante, o intercâmbio de pensamentos elevados... Somente dessa forma, é possível preser­var o psiquismo das incursões desastrosas, propicia­das pelos servidores das paixões subalternas. Nesse sentido, o caro irmão tem-se permitido a cultura da ociosidade espiritual, negligenciando os deveres, para ter tempo de entregar-se ao culto da personali­dade e ao prazer nas rodas elegantes do anedotário picante e vulgar, tanto quanto da exibição de valores que estão longe de ser legítimos... Para onde preten­de direcionar os passos? Que tem feito dos tesouros mediúnicos que deveriam ser aplicados para enxu­gar lágrimas e diminuir aflições? Onde o devotamen­to à causa do Bem? A simples presença nas reuniões que propiciam a exaltação do ego, nas quais a cho­carrice e a insensatez campeiam, somente traz maior contingente de responsabilidade não atendida. Tor­na-se urgente que faça uma avaliação de conduta, a fim de retomar a charrua sem olhar para trás. Fracas­so hoje, significa compromisso adiado para mais tar­de com aumento de graves deveres.

“Este nosso reencontro deve facultar-lhe o des­pertar da consciência e a visão real do compromisso com o corpo efêmero. Não negamos a contribuição da psicanálise, a que recorreu para elucidação dos enigmas que dizem respeito ao sexo e aos conflitos que dele se derivam. Todavia, convém considerar que o ser não se origina no momento da concepção fetal. A sua carga genética é desenhada antes desse ins­tante, através do qual o Espírito mergulha no fenô­meno carnal... As heranças morais se delineiam como futuros compromissos a serem resgatados, necessitando mais de seriedade moral na conduta do que placebos psicológicos, que contribuem para aparente melhora, mas não resolvem em profundidade o pro­blema das responsabilidades assumidas, que ressur­girão em outras expressões. Você solicitou determinadas inibições de natureza sexual, a fim de dedicar-se mais ao amor desinteressado de paixões, à convi­vência com os sofredores, compreendendo-lhes os transes porque passam, à renúncia de alguns praze­res, de modo a oferecer maior contributo aos labores espirituais... Ademais, tornando-se visível o seu trabalho espírita, não lhe cabe o direito de desnudar os próprios conflitos e apresentar soluções equivocadas, que irão servir de modelo para outros corações ator­mentados, que buscarão a fuga ao invés do enfrenta­mento libertador.

“Ninguém se evade do dever sem mais graves conseqüências. A reencarnação é bênção que facul­ta a reparação dos erros e propicia o crescimento moral mediante o dever retamente exercido. A tarefa, que você escolheu, põe-no em contato com antigos com­panheiros de alucinação, hoje desencarnados, que ora se manifestam para demonstrar a sobrevivência, não obstante permaneçam alguns em estado de per­turbação e desar, deixando seqüelas vibratórias no seu campo mediúnico... Para uma saudável vivência espiritual, torna-se imprescindível que a sua estru­tura moral seja bem definida, no que diz respeito àelevação de pensamentos e nobreza dos atos.”

Houve um silêncio expressivo. O Benfeitor fez um sinal quase imperceptível, e dois auxiliares deram entrada a um Espírito visivelmente cruel, que ester­torava no campo vibratório em que era conduzido.

Enquanto isso, dona Maria Modesto, profunda­mente concentrada, atraiu a Entidade violenta, que lhe tomou os recursos mediúnicos, logo esbravejan­do:

— Por que essa proteção a esse biltre? Não vêem que ele nos elege ao invés de aos senhores? Reen­contramo-nos, por fim, após um largo distanciamen­to. Atraído por ele e suas mórbidas exigências mo­rais, vivemos agora em parceria. Ajudo-o na dissimu­lação, na prática do exibicionismo, e devoro-lhe as entranhas, nutrindo-me com o ódio que lhe devoto.

Tomado de surpresa, Edmundo estremeceu e pôs-se muito pálido.

— Reconhece-o? — indagou-lhe Eurípedes — toma­do de imensa compaixão.

— Como não? — Ripostou o visitante, que tremia, dominado por profunda emoção. — Vivemos juntos em Paris, nos dias já longínquos do começo deste sécu­lo, quando nos acumpliciamos ambos em relaciona­mentos perversos. Eu experimentava peculiar intui­ção a respeito da sua presença no meu campo psí­quico, mas não tinha certeza...

Não pôde alongar-se, porque o sicário interrom­peu-o de chofre, praguejando:

— Tu sabes que a morte a ninguém devora. Mais do que outros tens conhecimento da imortalidade e suas diversas vivências graças aos teus recursos mediúnicos. Agora estás sob o meu comando, e não mais daquele que antes te conduzia. As afinidades que existem entre nós, e que aproximaste mais quan­do optaste por nossos interesses, tornam-nos quase xifópagos espirituais. Espero que, neste intercurso, predominem os meus sentimentos, arrastando-te aos sítios onde me encontro por tua causa.

Edmundo mantinha uma expressão de choque desenhada na face e respirava ofegante, quase trans­tornado. Nas suas paisagens íntimas, a memória hou­vera desencadeado painéis que estavam cobertos pela névoa do olvido, mas permaneciam vivos e ago­ra retornavam.

Com a elevação que o caracterizava, o Mentor di­rigiu-se ao verdugo e atenuou-lhe a agressividade, informando:

— O amigo se refere ao conhecimento da imortali­dade que o nosso Edmundo possui. Mas o fato é idên­tico em relação a você. Sobrevivente do carreiro car­nal, permanece com os valores que amealhou e deles se utiliza. Tomando a decisão de vingar-se do antigo companheiro de lutas, escorrega na mesma rampa da loucura, porque se torna vítima de si mesmo. Ninguém tem o direito ou o poder de transformar-se em cobra­dor do seu próximo, buscando regularização de compromissos que ficaram em sombras. A Vida a todos impõe suas necessidades, não cabendo a ninguém esse procedimento arbitrário e infeliz. Da mesma for­ma como o nosso Edmundo agiu incorretamente, a sua conduta não lhe é diferente. Até quando teremos a luta mudando somente de cenário, e prosseguindo a mesma batalha?

— Ele em nada se modificou — estertorou o enfer­mo espiritual — permanecendo vulgar e debochado, explorador da credulidade alheia e aproveitador sem caráter. E destituído de sentimento de amor e de dig­nidade, porque o seu egoísmo o alucina. Sempre foi assim a sua forma de viver.

— Não desconhecemos os problemas do seu acu­sado — elucidou o Instrutor — no entanto, não vemos condições de ser-lhe você o julgador impiedoso e o cobrador inditoso. A sua atitude não é diversa da que ele vem mantendo. Não lhe cabe, portanto, a prerro­gativa de apresentar-se como o braço da Lei que a tudo e a todos alcança, porqüanto isso dá-se sem a intervenção de quem quer que seja...

— Haja o que houver — interrompeu o indigitado perseguidor — seguirei vingando-me, e ninguém me impedirá de fazê-lo. Nossos laços de identificação muito vigorosos me facultarão isso. Eu o conheço e os senhores não. Compromisso com ele não tem qual­quer sentido. Os anos em que esteve cá, preparan­do-se para a nova experiência não lhe concederam as resistências necessárias para a auto-superação. Foi um investimento muito valioso em pessoa sem dignidade...

— Quanto a isso — interferiu Eurípedes com bran­dura — não lhe cabe o julgamento por falta total de conhecimentos que lhe facultem o mesmo. A decisão veio de Mais Alto e ele aceitou a incumbência, ha­vendo falhado em alguns pontos, é certo, graças tam­bém à sua interferência, o que lhe diminui a respon­sabilidade, mas estando ainda em condições de re­começar e prosseguir com admiráveis possibilidades para o êxito futuro.

“De nossa parte agradecemos a presença do amigo e suas informações, que serão levadas em con­ta, ao tempo que o envolvemos em vibrações de paz e de perdão, despedindo-nos por enquanto”....

Os assistentes acercaram-se da médium em tran­se e aplicaram-lhe energias anestesiantes, que ter­minaram por acalmar o agressor espiritual que se re­belava e esbravejava, levando-o ao sono refazente, e logo retirando-o do recinto.

No silêncio, que se fez natural, podia-se ouvir a respiração ofegante de Edmundo, que chorava, sin­ceramente comovido.

O amoroso Eurípedes acercou-se-lhe, tomou-lhe as mãos e falou-lhe paternalmente:

— Irmão da alma: tenha cuidado! Você acaba de conhecer a trama oculta que se desenrola na Erratici­dade inferior para impedir-lhe o avanço. Naturalmen­te, que nós, os seus Amigos devotados, não nos en­contramos inertes, e esta reunião é uma demonstra­ção disso. Todavia, a sua cooperação será de inesti­mável valor em benefício dos seus deveres. É neces­sário retroceder no caminho por onde tem seguido, para recomeçar a estrada da renúncia e do serviço de Jesus, por onde deve avançar. Não se estremunhe ante a realidade, que lhe cabe entender para prosse­guir. Os dias terrestres são muito rápidos, por mais largos se apresentem. Se você cumprir com o dever, retornará ao Lar vitorioso para os grandes momentos de felicidade que aguardam todos aqueles que são fiéis.

“Iremos deixá-lo consciente do nosso encontro espiritual, a fim de que possa refletir e reprogramar os seus atos. Sabemos que não será fácil, porque os seus aduladores encarnados e exploradores espiritu­ais estarão vigilantes. No entanto, a opção será sem­pre sua. Tenha bom ânimo e confie no Senhor que nos ama. Agora durma e repouse, para despertar em paz e em lucidez.”

Começou a aplicar-lhe energias relaxantes, que adormeceram o médium visitante, que recuperou a expressão facial agora refletindo paz.

Logo depois, Eurípedes orou com unção, agra­decendo ao Senhor da Vida pela concessão daquela madrugada, deixando-nos envolvidos num halo de alegria e de felicidade.

Antes que a reunião fosse formalmente dissolvi­da, os assistentes reconduziram ao leito o amigo re­encarnado, enquanto os presentes, após saudações afetuosas, nos afastamos, cada qual buscando o seu próprio ambiente de repouso.

Dr. Ignácio e Alberto tiveram a gentileza de con­duzir-me ao apartamento, e, durante o trajeto, inda­guei ao sábio médico:

— Edmundo se recordará da experiência de há pouco?

— Sim — redargúiu, generoso. — O inconsciente li­berará as informações com bastante clareza, e as li­ções recebidas, tanto do adversário espiritual como do Benfeitor, voltarão à consciência, para lentamente se diluírem no esquecimento parcial.

— E terá possibilidades para retornar ao caminho do compromisso? — indaguei, com real interesse na sua renovação.

Sem fazer-se muito solicitado, ele explicou:

— Quando o Espírito reencarnado se enleia nas experiências do prazer sensual, demora-se obstina­do na busca de novas sensações que lhe facultem o exorbitar das forças. Face ao hábito que se lhe fixa, encontra alguma dificuldade em mudar de compor­tamento, exceto quando visitado pelo sofrimento de­purador, que lhe dá dimensão da realidade na qual se encontra envolvido. Não raro, as advertências es­pirituais do tipo das que acabamos de participar, re­sultam pouco frutíferas, em razão da obstinação da conduta irrefreada no sono carnal. Entretanto, têm o valor de demonstrar as bênçãos do Amor Sem Limite que tudo investe em favor daqueles que se Lhe encontram comprometidos, a fim de que se não tenham do que queixar: abandono, desconforto, solidão, ne­cessidade... Nunca lhes faltam os recursos do Mundo Maior. Saber aplicá-los é tarefa de cada qual. Orare­mos, no entanto, e volveremos a inspirá-lo de dife­rentes formas, a fim de que aproveite a ensancha for­mosa que lhe está sendo concedida. Nesse sentido, o Espírito Mateus, encarregado de o assistir, não me­dirá esforços nem meios para liberá-lo de si mesmo e daqueles perturbadores com os quais comparte as paixões desordenadas.

Chegando ao recinto generoso onde me hospe­dava, despedi-me dos amigos afetuosos e procurei o repouso, não sem antes meditar em torno das lições que nos foram ministradas naquele amanhecer de bênçãos.


19

DISTÚRBIO DEPRESSIVO

Os momentos, uns após outros, enriqueciam-me com as experiências adquiridas no Hospital espiritu­al.

As diferentes vidas que prosseguiam buscando o rumo de segurança, e que ali se encontravam ou eram trazidas para atendimento, constituíam-me um laboratório expressivo para preciosas conquistas ilu­minativas.

Edmundo permanecia-me nas reflexões, que me facultavam compreender o amor de Nosso Pai na sua essência mais elevada, sempre vigilante e misericor­dioso, não se detendo nas defecções daqueles a quem socorre, porém, ajudando-os sem cessar.

Assim pensando, refletia a respeito das incontá­veis concessões de que fora objeto durante a exis­tência anterior, e de que, somente, a pouco e pouco, me dava conta na vida após a morte. Como conse­qüência desse conhecimento, o júbilo era-me inten­so e a gratidão a Deus tornava-se-me um constante hino de louvor.

Após visitar os irmãos, Ambrósio, que se reno­vava mui lentamente, Agenor, que prosseguia adormecido, porém agora menos agitado, Honório, em re­fazimento vagaroso, mas seguro, prossegui observan­do as terapias energéticas aplicadas no pavilhão. Detinha-me especialmente na observância dos paci­entes mais agitados, compreendendo cada vez me­lhor o alto significado do trabalho anônimo de muitos Espíritos abnegados, que escolheram essas ativida­des socorristas tomados pela afetividade em favor do próximo. Não se escusavam dedicar-se à caridade em tempo integral mediante a assistência fraternal aos portadores de alienação mental e àqueloutros porta­dores de seqüelas das obsessões prolongadas. Gen­tis e pacientes, movimentavam-se em silêncio, inte­riorizados nos deveres que lhes diziam respeito, cons­tituindo-se verdadeiros exemplos de psicoterapeutas do amor em jubiloso serviço de elevação pessoal.

Tanto devotamento facultava-me entender quan­to me encontro distante da santificação, por me falta­rem os recursos indispensáveis ao serviço libertador. Não obstante, tornava-se-me estímulo para prosse­guir na busca de informações que pudessem eluci­dar os enigmas do comportamento humano durante a vilegiatura carnal, assim facilitando a ascensão de todos os interessados no processo evolutivo.

A assistência fraternal de Alberto, o seu conhe­cimento dos diversos setores socorristas do Nosocô­mio, eram-me fatores de encorajamento para a apren­dizagem, impulsionando-me ao avanço.

Nesse ínterim, fui convidado por dr. Ignácio a par­ticipar de um ato solene, quando um estudioso dos transtornos psicológicos deveria proferir uma confe­rência sobre o fascinante e grave tema do distúrbio depressivo.

Enquanto estava na Terra, as informações a res­peito do assunto eram relativamente escassas, sen­do mais abundantes entre os estudiosos da psiquia­tria e da psicologia, sem maior divulgação em rela­ção aos leigos. Passadas algumas décadas após a desencarnação, podia constatar que os avanços na pesquisa das gêneses e terapêuticas dessa síndro­me haviam avançado muito, e, no mundo espiritual, sendo o conhecimento mais profundo, facultava res­postas próprias para o que podemos denominar qua­se de epidemia na atualidade do convulsionado pla­neta de provas...

Assim, aguardei com interesse redobrado a oca­sião para participar do magno evento.

À hora aprazada dirigimo-nos, Alberto e eu, ao Auditório ao ar livre, onde teria lugar o significativo cometimento.

Tratava-se de um recinto de amplas proporções com capacidade para aproximadamente mil pessoas e a sua edificação recordava os anfiteatros greco-ro­manos, que facultavam uma bela visão do palco de qualquer lugar onde se estivesse, O entardecer esta­va deslumbrante, abençoado por favônios perfuma­dos, enquanto os convidados assentavam-se nas ar­quibancadas semicirculares. O expositor adentrou-se no recinto acompanhado por Eurípedes, dr. Ignácio e outros nobres Espíritos que eu não conhecia pesso­almente. Apresentava um semblante calmo e demons­trava na face que houvera desencarnado com mais de setenta anos... Jovial e de agradável expressão, foi conduzido à parte central, tomando parte na mesa da cerimônia presidida pelo fundador do Nosocômio.

Encontravam-se presentes médicos especializados no estudo da psique, enfermeiros e trabalhado­res dos diversos departamentos do Hospital, interes­sados nos esclarecimentos que seriam oferecidos pelo culto conferencista e muitos outros Espíritos es­pecialmente convidados.

Após expressiva exoração ao Senhor da Vida, a todos sensibilizando, Eurípedes fez breve apresen­tação do cientista-orador, esclarecendo que o mes­mo exercera a profissão de psiquiatra enquanto re­encarnado na Terra, havendo oferecido expressivo contributo à psicanálise e à psicologia, e que se en­contrava liberado do corpo havia mais de trinta anos, dando prosseguimento às pesquisas em torno da mente e da emoção humana como resultado dos pro­cessos da evolução espiritual.

Sem mais delongas, o esclarecido médico acer­cou-se da tribuna, deteve-se em breve silêncio du­rante o qual exteriorizou uma suave claridade que o emoldurou delicadamente. Em seguida, deu início à conferência, saudando-nos a todos com jovialidade e adentrando-se no tema:

— A depressão, também identificada anteriormen­te como melancolia, é conhecida na Humanidade des­de recuados tempos, por estar associada ao compor­tamento psicológico do ser humano. A Bíblia, especi­almente no Livro de Jó, dentre outros, nos apresenta vários exemplos desse distúrbio que ora aflige incon­tável número de criaturas terrestres. Podemos iden­tificá-la na Grécia antiga, considerada como sendo uma punição infligida pelos deuses aos seres huma­nos em conseqüência dos seus atos incorretos. En­contramo-la, desse modo, também presente no sécu­lo 4º a.C., graças a diversas referências feitas por Hipócrates. Mais tarde, no século 2º a.C., Galeno estu­dou esse transtorno como sendo resultado do dese­quilíbrio dos quatro humores: sangue, bílis amarela, bílis negra e fleuma, que seriam responsáveis pelo bem-estar e pela saúde ou não dos indivíduos. Aris­tóteles assevera que Sócrates e Platão, como muitos outros filósofos, artistas, combatentes gregos, foram portadores de melancolia, que acreditava estar vin­culada às capacidades intelectuais e culturais do seu portador. A Igreja romana, a partir do século 4º, também passou a considerá-la e defini-la, ligando-a à tris­teza, sendo tida como um pecado decorrente da falta de valor moral do homem para enfrentar as vicissitu­des do processo existencial. Posteriormente esteve associada à acídia, passando a ser definida com mais severidade como sendo um pecado cardinal, em ra­zão de tornar os religiosos preguiçosos e amedronta­dos ante as tarefas que deveriam desempenhar. As lendas a seu respeito fizeram-se muito variadas e as discordâncias complexas, vinculando-a, não raro, àbílis negra, responsável pelo ato impensado de Adão ao comer a maçã no paraíso...

‘A história da medicina também relata que, já no século 10º, um médico árabe, estudando a melancolia, confirmou que a mesma resultava da referida e tradi­cional bílis negra. Com o Renascimento, porém, esse transtorno passou a ser tido como uma forma de in­sanidade mental, surgindo nessa época diferentes propostas terapêuticas de resultado duvidoso.

“À medida que se processava o progresso cultu­ral, a melancolia passou a expressar os estados de­pressivos e, a partir de 1580, tornou-se popular na literatura com características melhor definidas. Foi a partir do século 15II, que a tese de Galeno começou a ser superada e lentamente substituída por defini­ções que abrangiam a natureza química e mecânica do cérebro, responsável pelo distúrbio perturbador. Não obstante a descoberta da circulação do sangue pelo eminente Harvey, que facultou a apresentação de novos conceitos explicativos para a depressão, esclarecendo que se podia tratar de uma deficiência circulatória, permaneceram ainda aceitos os concei­tos ancestrais de Galeno, e, por efeito, a terapia se apresentava centrada nos métodos da aplicação de sangrias, purgantes, vomitórios com o objetivo de lim­par o como, eliminando os humores negros nefastos. No século 19, ainda por um largo período foi associ­ada à hipocondria, responsável pela ansiedade mór­bida referente ao estado de saúde e às funções físi­cas... Logo depois, passou à condição de uma pertur­bação mental, de um estado emocional deprimido.

“A melancolia alcançou homens e mulheres no­táveis que não conseguiram superá-la, e padeceram por largos períodos a sua afugente presença, e em alguns casos, conduzindo-os a perturbações profun­das e até mesmo a suicídios hediondos. Inúmeros poetas, escritores, artistas, religiosos, cientistas fa­mosos não passaram sem sofrer-lhe a incidência cru­el, dando margem a que alguns desavisados pensas­sem que se tratava da exteriorização da genialidade de cada um...”

Houve uma pausa oportuna, a fim de facultar o entendimento do discurso na sua apresentação his­tórica para logo prosseguir:

- A depressão é hoje classificada como sendo uma perturbação do humor, uma perturbação afetiva, um estado de mal-estar que se pode prolongar por tempo indeterminado. Foi o admirável Emil Krae­pelin, o nobre psiquiatra alemão, quem apresentou melhores análises sobre a depressão no século pas­sado, classificando-a como de natureza unipolar, quando é menos grave, mais simples e rápida, e bi­polar, quando responsável pelas associações manía­cas. Aprofundadas pesquisas ofereceram novas clas­sificações nos anos sucessivos, incluindo as melan­colias de involução, que se manifestam em forma de medo, de culpa e de vários distúrbios do pensamen­to. O eminente psicanalista Sigmund Freud sugeriu o luto como sendo responsável pela depressão, resul­tado de perda, de um ser amado ou de outra nature­za. A perda, para o nobre mestre austríaco, produz dilacerações psicológicas muito graves, gerando dis­túrbios comportamentais que se prolongam por tem­po indeterminado. Concomitantemente, outros pesquisadores estabeleceram que a depressão poderia ser endógena, quando originada em disfunções or­gânicas, portanto, de natureza biológica, e reativa, como conseqüência de fatores psicossociais, sócio-econômicos, sócio-morais, em razão das suas nefas­tas conseqüências emocionais. Outros observadores, no entanto, detiveram-se em analisar a depressão sob dois outros aspectos: a de natureza neurótica e a de natureza psicótica. A primeira é mais simples, com melhores possibilidades terapêuticas, enquanto que a segunda, por se caracterizar pelas alucinações e ilusões perturbadoras, exige procedimentos mais cui­dadosos e prolongados.

“A depressão, seja como for considerada, é sem­pre um distúrbio muito angustiante pelos danos que proporciona ao paciente: dores físicas, taquicardias, problemas gástricos, inapetência, cefalalgia, senti­mento de inutilidade, vazio existencial, desespero, isolamento, ausência total de esperança, pensamen­tos negativos, ansiedade, tendência ao suicídio... O enfermo tem a sensação de que todas as suas ener­gias se encontram em desfalecimento e as forças morais se diluem ante a sua injunção dolorosa.

“A perturbação depressiva ainda pode apresen­tar-se como grave e menos grave, crônica ou distími­ca, cuja fronteira é muito difícil de ser estabelecida. Somente através dos sintomas é que se pode defini-las, tendo-se em vista as perturbações que produz nos pacientes. Nesse sentido, a somatização, decor­rente de estigmas e constrangimentos que lhe facul­tam a instalação, pode dar lugar ao que Freud deno­minou perturbação de conversão, graças à qual um conflito emocional se converte em cegueira, mudez, paralisia ou equivalentes, enquanto outros psicote­rapeutas, discordando da tese, acreditam que esses fenômenos resultem de perturbações fisicas não identificadas...

“Por outro lado, a fadiga tem sido analisada como responsável por vários estados depressivos, especi­almente a de natureza crônica, que se apresenta aci­ma do nível tolerável de gravidade. Não obstante, a depressão também se manifesta em crianças e jo­vens, estruturada em fatores endógenos e outros de natureza sociológica, decorrentes do relacionamento entre pais e filhos, do convívio familiar e comunitário conflitivo.

“A mania, por outro lado, é mais severa em razão das alterações manifestadas no humor, que se fazem mui amiúde em proporções gravemente elevadas. Em determinado paciente pode expressar-se como um es­tado de excessivo bom humor, de exaltação da emo­tividade, em contraste com os acontecimentos viven­ciados no momento, logo regredindo com rapidez para a depressão, as lágrimas, envolvendo sentimentos contraditórios, que passam dos risos excitados aos prantos pungentes. No momento de exacerbação o enfermo delira, acreditando-se messias, gênio da po­lítica, da arte, com demasiada valorização das pró­prias possibilidades. Vezes outras, experimenta es­tados de temor, por acreditar que existe conspiração contra sua vida e seus desejos, seus valores especi­ais. Apresenta-se em determinado momento palrador, mudando de conduta com muita freqüência, ou então deixa-se ao abandono, sem higiene, aparecen­do, noutras vezes, de maneira extravagante e vulgar. Nessa fase, torna-se sexualmente excitado, exótico, irresponsável, negando-se a aceitar a enfermidade e mesmo a submeter-se ao tratamento adequado.

“A incidência do distúrbio depressivo apresen­ta-se quantitativamente maior no sexo feminino. Nes­se caso, podemos aduzir ao quadro geral, as mani­festações da depressão pré epost-partum, que se ori­ginam em disfunções hormonais, conduzindo as pa­cientes a estados de grave perda do equilíbrio emo­cional e mental.”

O expositor calou-se por um pouco, enquanto o público atento, acompanhava-lhe o raciocínio rico de ensinamentos oportunos. De imediato, deu curso àconferência:

— As influências básicas para a síndrome depres­siva são muitas, e podem ser encontradas nas crenças religiosas, nos comportamentos sociais, políticos, artísticos, culturais e nas mudanças sazonais. Por outro lado, a hereditariedade é fator decisivo na ocor­rência inquietante, tanto quanto diversos outros de natureza ambiental e social, como guerras, fome, abandono, seqüelas de enfermidades dilaceradoras... Pode-se, portanto, informar que é também multifato­rial. Do ponto de vista psicanalítico, conforme emi­nentes estudiosos quais Freud, Abraham e outros, a depressão oculta uma agressão contra a pessoa ou o objeto oculto. Numa análise biológica, podemos considerar como fatores responsáveis pelo desencadear do distúrbio depressivo, as alterações do quimismo cerebral, no que diz respeito aos neurotransmissores como a serotonina e a noradrenalina. Em uma análi­se mais cuidadosa, além dos agentes que produzem stress, incluímos entre os geradores da depressão, os hormônios esteróides, estrênios e androgênios, rela­cionados com o sexo, que desempenham papel fun­damental no humor e no comportamento mental.

“É claro que não estamos relacionando todas as causas que predispõem ou que dão origem à depres­são, antes desejamos referir-nos mui superficialmen­te a somente algumas daquelas que desencadeiam esse processo alienante. Nosso objetivo essencial neste momento é identificar o fator de natureza pre­ponderante para depois concluirmos pelo de nature­za predisponente. E esse, essencial, importante, é o próprio Espírito reencarnado, por nele se encontra­rem ínsitas as condições indispensáveis para a ins­talação do distúrbio a que faz jus, em razão do seu comportamento no transcurso das experiências car­nais sucessivas.

“O Espírito é sempre o semeador espontâneo, que volve pelo mesmo caminho, a fim de proceder à co­lheita das atividades desenvolvidas através do tem­po. Não bastassem as suas próprias realizações ne­gativas para propiciar o conflito depressivo e as suas ramificações decorrentes, que geraram animosida­des, mágoas e revoltas em outros seres que convive­ram ao seu lado e foram lesados nos sentimentos, transformando-se em outro tipo de razão fundamen­tal para a ocorrência nefasta.

“Ao reencarnar-se o Espírito, o seu perispírito im­prime no futuro programa genético do ser os requisi­tos depurativos que lhe são indispensáveis ao cres­cimento interior e à reparação dos gravames pratica­dos. Os genes registram o desconserto vibratório pro­duzido pelas ações incorretas no futuro reencarnan­te, passando a constituir-se um campo no qual se apresentarão os distúrbios do futuro quimismo cere­bral. Quando se apresentam as circunstâncias pre­disponentes, manifesta-se o quadro já existente nas intrincadas conexões neuroniais, produzindo por fe­nômenos de vibração eletroquímica o transtorno, que necessitará de cuidadosa terapia específica e moral. Não apenas se fará imprescindível o acompanhamen­to do terapeuta especializado, mas também a psico­terapia da renovação moral e espiritual através da mudança de comportamento e da compreensão dos deveres que devem ser aceitos e praticados.

“Nesse processo, no qual o indivíduo é respon­sável direto pelo distúrbio psicológico, face aos erros cometidos, às perdas e ao luto que lhe permanecem no inconsciente e agora ressumam, o distúrbio faz-se inevitável, exceto se, adotando nova conduta, adquire recursos positivos que eliminam o componente cármico que lhe dorme interiormente. Não são da Lei Divina a punição, o castigo, a vingança, mas são im­postas a necessidade da reparação do erro, da reno­vação do equivocado, da reconstituição daquilo que foi danificado... O Espirito reflete o amor de Deus nele insculpido, razão pela qual está fadado à perfeição relativa, que alcançará mediante o esforço empreen­dido na busca da meta que lhe está reservada. São, portanto, valiosas, as modernas contribuições das ci­ências da psique, auxiliando os alienados e depres­sivos a reencontrar a paz, a alegria interior, a fim de prosseguirem no desiderato da evolução.”

Novamente o lúcido orador fez uma pausa opor­tuna, logo dando prosseguimento:

— Nesse capítulo, não podemos olvidar aqueles outros Espíritos que foram vitimados pelo infrator, que agora retorna ao palco terrestre a fim de crescer inte­riormente. Quando permanecem em situação peno­sa, sem olvido do mal que padeceram, amargurados e fixados nas dores terrificantes que experimentaram, ou se demoram em regiões pungitivas, nas quais vivenciam sofrimentos incomuns, face à pertinácia nos objetivos perversos do desforço pessoal, são atraí-dos psiquicamente aos antigos verdugos, com eles mantendo intercurso vibratório danoso, que a esses últimos conduz a transtornos obsessivos infelizes, O cérebro do hospedeiro bombardeado pelas ondas men­tais sucessivas do hóspede em desalinho, recebe as partículas mentais que podem ser consideradas como verdadeiros elétrons com alto poder desorganizador das conexões neuroniais, afetando-lhe os neurotrans­missores como a serotonina, a noradrenalina, a dopamina e outros mais, aos quais se encontra associ­ado o equilíbrio emocional e o do pensamento.

“Instalado o plugue na tomada perispiritual, o in­tercâmbio doentio prosseguirá atingindo o paciente até o momento quando seja atendido por psicotera­pia especial, qual seja a bioenergética, por intermé­dio dos passes, da água fluidificada, da oração, das vibrações favoráveis à sua restauração, à alteração da conduta mental e comportamental, que contribui­rão para anular os efeitos morbosos da incidência ali­enadora. Simultaneamente, a desobsessão, median­te cujo contributo o perseguidor desperta para as pró­prias responsabilidades, modifica a visão espiritual, ajudando-o a resolver-se pela mudança de atitude perante aquele que lhe foi adversário, entregando-o, e a si mesmo também se oferecendo, aos desígnios insondáveis do Pai Criador.

“Nunca será demasiado repetir que, na raiz de todo processo de desequilíbrio mental e emocional, nas psicopatologias variadas, as causas dos distúr­bios são os valores morais negativos do enfermo em processo de reeducação, como decorrência das ações pretéritas ou atuais praticadas. Não existindo efeito sem causa, é compreensível que toda ocorrência in­feliz de hoje resulte de atividade agressiva e destru­tiva anterior.

“Não poucas vezes, também se pode identificar na gênese da depressão o fator responsável pelo fun­cionamento sexual deficiente, receoso, frustrante, que induz o paciente ao desinteresse pela vida, à fuga da realidade...

“Desse modo, a depressão, mesmo quando de­corra de uma psicogênese bem delineada, seja pela hereditariedade ou pelos fatores psicossociais e ou­tros, sua causa profunda se encontra sempre no Es­pírito endividado que renasce para liberar-se da in­junção penosa a que se entregou.

“Assim sendo, aproxima-se o dia, no qual, a ci­ência acadêmica se dará conta da realidade do ser que transcende a matéria, e cujas experiências mul­tifárias através dos renascimentos corporais respon­de pelo binômio saúde-doença.

“Nós próprio, quando nos labores terrestres, mui­to nos aproximamos da fronteira da imortalidade, não a havendo transposto em razão dos preconceitos aca­dêmicos, embora não nos houvessem sido regatea­dos os recursos que evidenciavam a indestrutibili­dade do ser através da morte e isso demonstravam de forma irretocável. Como ninguém pode deter o pro­gresso, que se multiplica por si mesmo, o amanhã constitui a esperança dos que tombaram nos proces­sos perturbadores e degenerativos, quando encon­trarão a indispensável contribuição dos cientistas e religiosos que, de mãos dadas, estarão trabalhando em favor da sua recuperação mental e orgânica.”

Fez, propositadamente, uma nova pausa, que a todos nos comoveu pelo que disse de imediato:

— Não há como negar-se: Jesus-Cristo é o Psico­terapeuta excepcional da Humanidade, o único que pôde penetrar psiquicamente no âmago do ser, auxi­liando-o na reestruturação da personalidade, da in­dividualidade, facultando-lhe uma perfeita identifi­cação entre o ego e o self, harmonizando-o para que não mais incida em compromissos degenerativos. Por isso mesmo, todos aqueles que lhe buscaram o con­forto moral, a assistência para a saúde combalida ou comprometida, física ou mental, defrontaram a reali­dade da vida, alterando a forma existencial do com­portamento que lhes seria de inapreciado valor nas futuras experiências carnais.

“A Ele, o afável Médico das almas e dos corpos, a nossa sincera gratidão e o nosso apelo para que nos inspire na equação dos dramas que afligem a huma­nidade, tornando a Terra um lar melhor para se cres­cer moral e espiritualmente, onde os sofrimentos de­correntes das enfermidades de vária gênese cedam lugar ao equilíbrio e à produção da vera fraternidade assim como da saúde integral.”

Pairava no ambiente uma dulçurosa vibração de paz e de alegria. Todos apresentavam o semblante irradiante de júbilo. O lúcido orador mantinha-se se­reno e suavemente iluminado, banhado por peregri­na claridade que jorrava dos Altos Cimos...

Eurípedes levantou-se, abraçou-o, conduziu-o àmesa diretora da solenidade e, visivelmente feliz, proferiu inesquecível oração gratulatória, dando como encerrada a conferência.

A noite havia chegado e se encontrava banhada por argênteo luar e pelos pingentes estelares que cin­tilavam muito ao longe.

Os mais interessados acercaram-se do palco, a fim de conhecer mais de perto o convidado eloqüen­te e com ele dialogarem brevemente. Nós, Alberto, dr. Ignácio e eu, fomos daqueles que se lhe acerca­ram, a fim de fruir mais proximamente a sua vibração penetrante e saudável, congratulando-nos com a ex­posição oportuna e esclarecedora.


20

TERAPIAS ENRIQUECEDORAS

A conferência oferecera-me valioso material para meditação, especialmente na parte em que o orador se referira à interferência das Entidades desencar­nadas, produzindo transtornos depressivos, median­te os lamentáveis processos de obsessão. Irrompen­do em onda caudalosa, essa psicopatologia moder­na, ora denominada como a doença do século, inves­te contra uma verdadeira multidão de criaturas reen­carnadas, cujo processo se prolonga além da roupa­gem física, advindo a desencarnação.

No dia seguinte, Alberto apresentou-me ao dr. Orlando Messier, que fora, no país onde vivera a sua mais recente experiência carnal, devotado psiquia­tra que se dedicara ao estudo da psicologia com alma. Não conhecera o Espiritismo conforme a estrutura doutrinária defluente da Codificação Kardequiana. No entanto, mediante cuidadosas investigações com os seus pacientes, ao lado da análise demorada das obras dos drs. Roberto Assagioli e Viktor Frankl, con­seguira detectar a sobrevivência do Espírito à disjun­ção molecular da matéria e entender a interferência que os desencarnados exercem na conduta dos viandantes terrestres. Tivera também oportunidade de atender a diversos pacientes portadores de obsessões, em cujas oportunidades se manifestaram os seus algozes, bem como examinou a contribuição do psiquiatra Karl Whikland, através das narrações das suas experiências de consultório, exaradas no livro Trinta anos entre os mortos, que o auxiliaram a acei­tar a realidade da vida além do corpo, facultando-lhe desenvolver psicoterapias valiosas no atendimento àqueles enfermos mentais que o buscaram.

Desencarnado, foi convidado a especializar-se no Sanatório Esperança, onde se encontrava em ativi­dade socorrista fazia mais de dez anos.

Também estivera na conferência da noite anteri­or e encontrava-se vivamente fascinado com a expo­sição do visitante ilustre. Para ele não houve propria­mente novidades quanto às origens dos distúrbios psicológicos e das alienações mentais, bem como no tocante às terapias que eram aplicadas largamente em nosso pavilhão. Todavia, as referências proceden­tes de mais doutos conhecedores da psique humana, perfeitamente concordes com as suas conclusões, constituíam-lhe motivo de compreensível gáudio.

Foi, portanto, num clima de muita cordialidade, que decorreu o nosso encontro, propiciando-me mais amplas possibilidades de aprendizagem.

O amigo recente dirigia-se a uma das Enfermari­as onde se hospedam os irmãos violentos, não se escusando a uma conversação fraterna que ele próprio iniciou.

— Convenço-me, cada vez mais — informou-nos dr. Orlando — que ao lado de todos os tratamentos especializados para a cura da depressão, assim como de outros distúrbios de comportamento, o trabalho desempenha um papel terapêutico fundamental. O mesmo acreditamos, no que diz respeito à psicodan­ça. Enquanto a mente do enfermo se encontrar dire­cionada para um objetivo saudável, desvinculando­se da idéia depressiva, irá regularizando a distonia e provocando uma positiva reação cerebral, face à im­posição do pensamento bem direcionado, que agirá nos neurônios, favorecendo-lhes as sinapses em rit­mo equilibrado. O trabalho é recurso muito valioso para fazer o tempo passar, informa a tradição terres­tre, mas, sobretudo, para que passe de maneira sau­dável e dignificadora, acentuamos nos. Felizmente, a praxiterapia vem sendo utilizada com propriedade, colhendo resultados positivos.

“Quando o indivíduo se envolve com qualquer tipo de trabalho ou responsabilidade edificante, con­centra-se na sua execução e mantém-se atento aos objetivos delineados. Naturalmente estimulados pela ação mental saudável os neurônios produzem enzi­mas carregadas de energia que, à semelhança de fó­tons especializados, produzem harmonia vibratória nos neurotransmissores, proporcionando reequiiíbrio. O mesmo milagre produz a oração. Como porém, ra­ros desses pacientes podem demorar-se concentra­dos na prece, na meditação ou nas leituras elevadas, porque entram em divagação pessimista, o trabalho e a dança, em razão do esforço físico para desempe­nhá-los, produz resposta mais direta e imediata.

“Sempre quando atendia um cliente portador de distúrbio depressivo, após as recomendações tera­pêuticas acadêmicas, propunha-lhe qualquer tipo de laborterapia, a começar por quase insignificantes es­forços no próprio lar, no jardim, na reparação de obje­tos ou móveis quebrados até os serviços de benefi­cência em favor da comunidade. Os resultados, ape­sar das permanentes negativas do mesmo em execu­tá-los, explicando que lhe era quase impossível aten­der-me, redundavam sempre positivos. Renascia-lhe o interesse pela vida, o desejo de prosseguir, a dimi­nuição da ansiedade, a autoconfiança, claro que len­tamente. O importante era demonstrar-lhe as imen­sas possibilidades que lhe estavam à disposição e que, por momentos se encontravam adormecidas, aguardando somente o despertar da vontade e do esforço.

“Como passo seguinte procurava identificar-lhe a confissão religiosa, a fim de estimulá-lo à crença em Deus, eliminando as propostas fanatizantes das diversas religiões, ensinando que o apoio divino nun­ca falta, e quando a criatura se entrega ao Criador, Ele corresponde-lhe com segurança e amor. Esse meu comportamento causava estranheza em muitas famí­lias, nas quais se encontravam os problemas depres­sivos, bem como entre os colegas, quase sempre afer­rados a terrível convicção materialista. No entanto, a observância de tal procedimento terapêutico confe­ria-me estatística valiosa, quantitativa e qualitativa-mente, confirmando-me a sua excelência nos resul­tados favoráveis à recuperação da saúde.”

Olhando-me com interesse, o novo amigo inda­gou-me:

- Nas suas experiências com obsidiados na Ter­ra, alguma vez sugeriu o trabalho como terapia liber­tadora?

Recordando-me dos momentos valiosos vivenci­ados nas atividades desobsessivas, retruquei, sem qualquer dúvida:

— Somos também de parecer que o trabalho é, re­almente, um dos mais eficazes mecanismos de pro­moção do indivíduo. Jesus teve ocasião de acentuar, conforme anotado pelo evangelista João, no capítulo 5, versículo 17: — Meu Pai trabalha até agora e eu tam­bém trabalho, demonstrando a alta significação des­se procedimento. Não poucas vezes, estimulando os obsessos ao trabalho, eles reagiam justificando-se incapacidade de realizar alguma coisa de útil, ao que lhes objetava, informando que sempre se pode fazer algo, mínimo que seja, quando se tem interesse. E insistindo, conseguia auxiliá-los a sair da inércia, da autocompaixão, da frustração existencial ou da revolta neles instalada pela ação corrosiva da obsessão...

“Quando a mente se desvincula de atividades en­riquecedoras, o drama da obsessão se torna mais gra­ve, porque a insistente idéia transmitida torna-se aco­lhida pelo enfermo, que passa ao diálogo desestrutu­rador do comportamento. Quanto mais recua para o interior, vivenciando a conversação infeliz, mais po­derosa se torna a indução do agente perseguidor.”

Exteriorizando um sorriso jovial, dr. Messier alon­gou as considerações psicoterapêuticas:

— A oração, por sua vez, produz uma interação mente-corpo, espírito-matéria, de incontáveis bene­fícios. Examinemos, por exemplo, o que sucede com as idéias desconcertantes. A medida que o paciente as fixa, uma energia deletéria se prolonga pela cor­rente sangüínea, partindo do cérebro ao coração e espraiando-se por todo o organismo, o que produz desconforto, sensações de dores, dificuldades respi­ratórias, taquicardias, num crescendo que decorre do estado auto-sugestivo pessimista, que ameaça com a possibilidade de morte próxima, de perigo iminen­te de acontecimento nefasto e semelhantes... Trata-se essa, sem dúvida, de uma oração negativa, cujos efeitos imediatos são aflição e desalinho emocional. Tal sucede, porque a mente visitada pelos pensamen­tos destrutivos responde com produção de energia tóxica que alcança o coração — o chakra cerebral en­via ondas eletromagnéticas ao cardíaco, que as ab­sorve de imediato — e esparze pelo aparelho circula­tório os petardos portadores de altas cargas dessa vibração, somatizando os distúrbios. Da mesma for­ma, portanto, a oração, que é a estruturação do pensamento em comunhão com as elevadas fontes do Amor Divino, permite que a mente sintonize com os campos de vibração sutil e elevada, realizando o mes­mo processo, somente que de natureza saudável e reconfortante. Captadas essas ondas pelo psiquismo, irradiam-se do espírito ao perispírito, que aumenta a resistência energética, vitalizando as células e os campos organizados da matéria, modificando-lhes a estrutura para o equilíbrio, a harmonia.

“Quando alguém ora, torna-se um dínamo gera­dor de força, a emitir ondas de teor correspondente à qualidade da energia assimilada. De incomparável resultado terapêutico, a oração é, também, ponte de ligação com a Divindade, na qual se haurem coragem e bem-estar. O exemplo mais dignificante vem de Je­sus. Sempre que o cansaço Lhe tomava o organismo, Ele buscava a oração, a fim de comungar com Deus, reabastecendo-se de vitalidade. E era Ele quem con­ seguia alterar os campos de energia com a simples vontade, direcionando-a conforme Lhe aprouvesse.”

Encontrava-me encantado com os conceitos ló­gicos do médico gentil, e recordava-me dos efeitos salutares da oração, toda vez, quando, na Terra e no Além, deixava-me conduzir pelas suas vigorosas cor­rentes de ondas saudáveis.

Após o silêncio, que se fez natural, dr. Messier adiu:

— Estou seguro de que a Evangelhoterapia é o recurso precioso para produzir a recuperação do equi­líbrio das criaturas, preservá-lo naquele que já o pos­sui e irradiá-lo na direção de quem se encontra ne­cessitado.

“Partindo-se do princípio através do qual todos reconhecemos que o paciente mental necessita de compreensão, bondade e estímulo constante, nas li­ções do Evangelho de Jesus, mesmo tendo-se em vis­ta algumas distorções que decorrem das traduções incorretas, infiéis, ou das adulterações que experi­mentou durante os quase dois milênios, assim mes­mo ainda é um repositório de otimismo, de esperan­ça e de conforto moral, difícil de ser encontrado em outra qualquer Obra da humanidade. Não negamos a excelência de outros livros básicos de diversas reli­giões, ricos de misericórdia, de paz e de consolo es­piritual. No entanto, o Evangelho, face à sua lingua­gem simples e profunda, ética e atual, dá-nos a im­pressão que foi elaborado para este momento tormen­toso que se vive no planeta terrestre, atendendo a todas as necessidades do ser humano. A sua leitura calma, com reflexão, objetivando entender as ocor­rências existenciais, constitui incomum medicamento para o Espírito que se recupera da ansiedade e dos distúrbios que o afetam, repousando na alegria de viver. Ademais, sua proposta de saúde fundamen­ta-se no amor, em todo o bem que se pode fazer, no deslocamento do eu para o nós, do isolamento a que se arroja o enfermo para a solidariedade que aguarda a sua parcela de cooperação.

“Com essas disposições interiores, altera-se para melhor a paisagem íntima, e Espíritos nobres, inte­ressados no bem-estar de toda a humanidade acer­cam-se da pessoa, envolvendo-a em ondas de amor, de autoconfiança, de bem-estar, não poucas vezes apresentando-se nos estados oníricos, quando a re­confortam e a estimulam ao prosseguimento da jor­nada.

“Todo indivíduo é constituído de antenas psíqui­cas transceptoras, que emitem e captam ondas equi­valentes à sua capacidade vibratória, portanto, à in­tensidade e qualidade da energia que exterioriza. Não é, pois, de estranhar-se, que cada qual viva con­forme pensa, tomando-se feliz ou desventurado em razão das idéias que agasalha na mente.”

Estávamos quase chegando à Enfermaria, quan­do o psiquiatra nos convidou a entrar, caso não ti­véssemos outra tarefa em pauta no momento. Alber­to e eu nos olhamos, e porque não nos encontrásse­mos comprometidos com atividade imediata, anuí­mos, acompanhando-o.

Utilizei-me desses breves minutos antes de pe­netrarmos no recinto, para interrogá-lo:

— E que me diz sobre a aplicação dos fármacos e antidepressivos outros, quais o Prozac, tão utilizado atualmente nos diversos transtornos emocionais e em alguns outros mentais?

Com a mesma gentileza, considerou:

— O avanço da ciência, buscando entender e so­lucionar os graves problemas humanos, é considerá­vel, constituindo-se numa demonstração do amor de Deus pelas Suas criaturas, diariamente enviando àTerra os Seus missionários em todas as áreas, a fim de alterar as ocorrências para melhor, estabelecendo parâmetros de equilíbrio e de paz, bem como de renovação e de saúde para todos. Os fármacos antide­pressivos em geral, têm por meta elevar os níveis da serotonina, bem como da noradrenalina, substâncias relacionadas com a depressão conforme ouvimos na conferência da noite passada. Significa dizer, que têm por meta aumentar a quantidade de neurotransmis­sores no cérebro, que lhes sofre carência. O que ain­da merece estudos é a necessidade de compreender-se como as alterações que ocorrem em uma molécula tão simples podem produzir transtornos tão profun­dos no comportamento do ser? Sabemos, nós outros, os estudiosos da vida espiritual, que essa ocorrência tem sua gênese no processo reencarnatório, quando o Espírito imprime nos genes as suas necessidades evolutivas, desencadeando os distúrbios correspon­dentes ao processo de crescimento moral no momen­to adequado da vida física. Não obstante, os antide­pressivos oferecem resultados positivos de acordo com a ficha cármica de cada paciente, porque a fun­ção, por exemplo, do Prozac, composto denominado hidrocloreto de fluoxetina, é bloquear a captação da serotonina, constituído de tal forma semelhante àque­la, que pode enganar os neurônios, competindo com a mesma na sua captação e deixando-a na face extenor da célula. Como todos os fármacos objetivam al­terar diretamente a química cerebral, inevitavelmen­te produzem dependência e algumas seqüelas, que podem ser contornadas pelo psiquiatra e também pelo esforço do próprio paciente no processo de re­cuperação.

“Variam as opiniões de especialistas em torno do Prozac. Alguns consideram-no como excelente, com respostas positivas quase imediatas à sua apli­cação. Outros, no entanto, evitam-no, por haverem constatado em alguns dos seus clientes resultados menos felizes, até mesmo indutivos ao suicídio... Tudo isso tem a ver, sem dúvida, com o passado espiritual do enfermo, porqüanto, cada indivíduo possui as con­quistas que o tipificam, diferenciando-o dos demais. O medicamento que, em alguém produz resultado po­sitivo, noutrem desencadeia distúrbios e efeitos di­ferentes, como é compreensível, face à estrutura or­gânica de cada qual.

“Reconhecendo e valorizando a contribuição ci­entífica dos nobres pesquisadores e dos resultados das suas conquistas em favor dos pacientes depres­sivos como de outras enfermidades, a conduta do re­cuperado terá muito que ver com o seu processo de preservação da saúde, evitando as perturbadoras re­cidivas que invariavelmente acontecem por novos desvios de comportamento, por falta de identificação com os valores enobrecedores da vida, por abuso e desgaste das energias nos prazeres exorbitantes e primários.

‘Avançamos, a pouco e pouco, para a eliminação das terapias realizadas mediante a aplicação de dro­gas que, por enquanto, ainda se fazem necessárias.

Relatórios cuidadosos atestam que existem, neste momento, aproximadamente duzentos tipos de psi­coterapias variadas, incluindo-se, bem se vê, aque­las denominadas alternativas que, em diferentes re­giões do planeta oferecem resultado positivo, desde as denominadas fitoterapia, acupuntura, bioenergia, florais de Bach, energização através de metais, de cristais, de perfumes e óleos, de do-in, de Reiki, etc, auxiliando o ser humano na conquista e no encontro de si mesmo.”

Alcançamos a porta de entrada da Enfermaria, quando o amigo, sorrindo, sentenciou:

— Em cada de um nós se encontram ínsitos os valores da saúde e da doença, dependendo da ocor­rência de fenômenos adequados para a sua manifes­tação... Entremos!


21

EXPERIÊNCIA INCOMUM

A minha mente esfervilhada de novas interroga­ções, que no momento não podiam ser esclarecidas. O conhecimento do dr. Messier fascinava-me, e a sua naturalidade encantava-me. Enunciava os conceitos com a espontaneidade daquele que os conquistou pela experiência após larga reflexão em torno da psi­que humana.

Embora já houvesse estado na área dos pacien­tes agitados, aquela enfermaria era-me totalmente desconhecida.

A psicosfera local apresentava-se densa e o am­biente fracamente iluminado, a fim de manter os pa­cientes na condição conforme se apresentavam. To­dos aqueles que ali trabalhavam movimentavam-se em silêncio respeitoso, procurando irradiar tranqüili­dade e compaixão, que se exteriorizavam por leve cla­ridade que os envolvia, destacando-os na penumbra ambiente. Ouvia-se o ressonar ruidoso dos internos, e espaçadamente alguns estranhos ruídos guturais, que poderiam ser gritos e apelos sufocados na an­gústia que os dominava.

Quando nos acercamos de um dos leitos enfileirados em duas ordens, uns defronte dos outros, de­parei-me com uma cena surpreendente. Sobre a cama havia algo semelhante a um casulo de expressiva pro­porção, como um envoltório mumificador ocultando o Espírito que se encontrava revestido por essa forma estranha. Já conhecia a ocorrência com Agenor que, no entanto, não se consumara totalmente, como a transformação que agora estava diante dos meus olhos.

O Espírito assim revestido movia-se com dificul­dade, aprisionado por resistentes fios sucessivos que o imobilizavam quase, apertando-o no hórrido envol­tório de coloração cinza e de estrutura viscosa.

- A mente — sussurrou o esculápio, discretamen­te — produz material conforme a sua própria vontade, criando asas para a ascensão ou presídio para a es­cravidão. O irmão Evaldo é prisioneiro de si mesmo. Não anotamos mais graves anomalias no perispírito, no entanto, encapsulou-se em fortes teias mentais degenerativas que o vêm retendo desde quando se encontrava na Terra, interrompendo-lhe a bênção da reencarnação. Oculto nessa triste forma por vários anos após a viagem de retorno, soa-lhe o momento de iniciar-se o seu processo de libertação, para o des­pertar da consciência em torno das responsabilida­des que lhe dizem respeito. A vida é incorruptível e jamais pode ter o seu curso alterado indefinidamen­te. A inefável misericórdia do Pai está sempre vigi­lante, a fim de que todos os Seus filhos alcancemos a plenitude que nos está destinada.

Silenciando, analisou o paciente demoradamen­te, detendo-se na área cerebral igualmente oculta. O seu olhar penetrante alcançava o ser infeliz que se escondia de si mesmo e gerara mentalmente o casu­lo para refugiar-se.

O atendente espiritual, que o cuidava, acercou-se prestimoso e explicou que as providências para o ato cirúrgico haviam sido tomadas, estando a equipe aguardando no Centro destinado a esse fim.

Anuindo à elucidação, dr. Orlando autorizou a re­moção do enfermo para a sala reservada para o mis­ter, convidando-nos, a Alberto e a mim, a acompa­nhá-lo.

Na parte final da imensa enfermaria encontrava-se o centro cirúrgico, onde já estavam alguns mem­bros do tratamento especializado que ali deveria ter lugar.

Apresentando-nos rapidamente ao gntpo, o pa­ciente que fora trazido em cama com roldanas foi transferido para a mesa cirúrgica, iluminada por for­te luz que se originava em lâmpadas próprias, qual ocorre nas mesmas circunstâncias na Terra.

O casulo, que tinha a dimensão de um homem, exteriorizava na parte superior a exsudação que se convertia em fio espesso sempre se concentrando em volta da cápsula densa.

Logo depois de ser proferida por dr. Orlando uma oração fervorosa suplicando o auxílio divino, dois médicos ao seu lado tomaram posição em volta do paciente. Tudo fazia recordar um tratamento cirúrgi­co conforme os padrões conhecidos no mundo físico. Havia o instrumentador, o anestesista, que permane­ciam concentrados, irradiando energia calmante que se direcionava para o chakra cerebral do adormecido e dois outros enfermeiros-auxiliares que aguardavam instruções.

Nesse momento, percebi que o paciente encon­trava-se sob ação hipnótica de uma energia que lhe chegava como ressonância psíquica e que o manti­nha na estranha autopunição. Compreendi que, mes­mo naquele caso, estava diante de um processo ob­sessivo à distância, que deveria ser interrompido com muito cuidado.

O anestesista acercou-se mais e começou a apli­car bioenergia dispersiva na área do chakra corona­rio, onde se adensavam campos de magnetismo per­turbador, como se podia depreender pela coloração escura condensada. A medida que eram aplicados os recursos libertadores e diluídas as sucessivas cama­das que cobriam a região, interrompeu-se o fluxo ex­terior e o paciente agitou-se por alguns segundos dentro do envoltório confrangedor.

Foi a vez de dr. Orlando, utilizando-se de uma lâ­mina semelhante a um bisturi a laser, tentar cortar os fios superpostos uns e interpenetrados outros, para alcançar a cabeça do enfermo. A delicada tarefa era feita com perfeição, cortando os mais viscosos, exte­riores, e adentrando-se naqueles que se encontravam consolidados internamente. O cirurgião auxiliar, uti­lizando-se de uma pinça própria, mantinha aberta a pequena cavidade, enquanto era aprofundado o cor­te. A medida que se fazia a incisão, aqueles fios gros­seiros desmanchavam-se e se transformavam em um líquido nauseabundo, que escorria pela carapaça e a mesa, caindo no piso. Os enfermeiros vigilantes re­colhiam-no com vasilhames especiais, mantendo a assepsia do ambiente. A incisão deveria medir dez centímetros mais ou menos, tornando-se mais cuida­dosa à medida que se acercava do ser espiritual ali encarcerado. Logo depois, o outro médico ampliou-a de forma que alcançasse a dimensão de toda a cabe­ça numa linha reta.

Nesse instante, dr. Messier, começou a bloquear o campo coronário-cerebral com algo semelhante a uma atadura que irradiava peculiar vibração para que impossibilitasse a exteriorização do psiquismo doen­tio do cirurgiado.

Para minha surpresa, constatei que era o próprio paciente quem emitia as sucessivas cargas de ener­gia deletéria que lhe procedia da mente fixada na autopunição. Quando a cabeça pôde ser vista, perce­bi que do seu interior vinham as ondas excêntricas, agora com menor intensidade, porque parcialmente impedidas pelo tecido vibratório de proteção, para evitar a ocorrência do processo danoso.

O anestesista direcionou as mãos para a parte desvelada e começou a aplicar a bioenergia que se exteriorizava em campos vibratórios de tonalidades azul-prateada e violácea, penetrando o cérebro pe­rispiritual e modificando-lhe a coloração escura, en­fermiça. Enquanto esse processo se realizava, dr. Or­lando continuou cortando o casulo da parte superior da testa para baixo, alongando-se pelo tórax e mem­bros inferiores, auxiliado pelo outro cirurgião.

Havia tensão nos especialistas que se encontra­vam profundamente concentrados no tratamento de emergência e de gravidade.

Transcorrida mais de uma hora, foi aberta toda a cápsula, deixando à mostra o Espírito infeliz, que se apresentava com hórrida aparência, esquálido, com várias excrescências tumorosas na face e por todo o corpo, como flores despedaçadas e apodrecidas, fazendo-me recordar as enfermidades parasitas que agridem os pacientes destituídos dos recursos imu­nológicos de defesa orgânica. O aspecto era repelen­te e nauseante. No entanto, se tratava de um irmão colhido pelo vendaval das paixões, que retornava ao lar destroçado pela loucura de si mesmo, mas que nunca estivera ao abandono...

Carinhosamente foi retirado do molde grosseiro que o vestia e transferido para outra mesa próxima, onde o processo de auxílio prosseguiu.

Sobre as pústulas foram aplicadas substâncias especiais que eram concentrados de energia assép­tica, para auxiliar o refazimento dos tecidos decom­postos, e apesar de encontrar-se em sono profundo, o cirurgiado passou a gemer dolorosamente. Os pro­cedimentos de recuperação prosseguiram fortalecen­do-o, enquanto os enfermeiros auxiliares retiravam os resíduos morbosos dos envoltórios que o vitima­vam.

Concluída a intervenção cirúrgica, dr. Orlando re­comendou que se continuassem com os recursos de reenergização a cada quatro horas, tendo-se o cuida­do de substituir a atadura vibratória que funcionava como bloqueador da mente em desalinho, a fim de evitar que novos comprometimentos pudessem ser exteriorizados.

O trabalho agora seria de despertamento de Eval­do ao primeiro ensejo, de modo a conscientizá-lo da necessidade de modificar o direcionamentO mental para o próprio bem.

Outras recomendações foram feitas, e após uma prece gratulatória saímos da sala com o hábil cirur­gião e psiquiatra.

Logo nos afastamos do recinto e alcançamos o amplo corredor, não pude ocultar o interesse de apren­der, e indaguei ao médico:

— Como explicar-se esse processo de encapsulamento que acabáramos de ver?

Sem nenhum desagrado ele esclareceu-nos:

- Convém ter sempre em consideração que so­mos aquilo que cultivamos interiormente. O céu e o inferno são regiões interiores que habitamos confor­me a postura mental responsável pelos nossos atos. Exteriorizando essas preferências psíquicas, con­substanciamo-las em edificações que se tomam sus­tentadas pelas contínuas ondas do desejo e do inte­resse. Quando outros indivíduos trazem os mesmos valores, reúnem-se forças que concretizam aspira­ções, dando lugar a regiões próprias dos pensamen­tos em ação. Assim temos as províncias de provas e dores além do túmulo, tanto quanto aquelas de delí­cias e de paz. Não poucos místicos e médiuns, em processo de desdobramento ainda na Terra, têm sido trazidos a esses sítios, o que deu margem aos con­ceitos míticos de inferno, purgatório, limbo e céu de forma concreta com as suas implicações religiosas e dogmáticas. E óbvio que não os existem do ponto de vista material, consoante a propositura da física newtoniana ou linear. Não obstante, multiplicam-se, em realidade, os campos e regiões de sofrimento, de angústia e de recuperação na Erraticidade, da mes­ma forma que os abençoados redutos de alegria, de paz, de bem-aventurança, conforme prometidos por Jesus no conceito do reino dos Céus.

“Por enquanto, face ao primarismo que ainda vi­ceja entre as criaturas, os desvios mentais e comportamentais têm projetado e vitalizado mais áreas para recuperação penosa do que lugares paradisíacos e edênicos.

“Toda vez que a mente se fixa em algo, emite vi­brações que se transformam em força corresponden­te, logrando atender ao direcionamento que lhe é pro­posto. No caso do nosso irmão Evaldo, sua consciên­cia de culpa elaborou um recinto escuro para ocultar a miséria a que se entregou, enquanto deambulava no proscênio terrestre na sua anterior e mais recente jornada.”

Fez uma pausa tranqüila, para ordenar o raciocí­nio e continuou:

— Nosso amigo partiu do mundo espiritual com definidos compromissos na área político-religiosa a que era afeito anteriormente e que não soube corres­ponder com o valor que deveria ser aplicado. Fracas­sou, várias vezes, gerando situações penosas na fé religiosa abraçada, assim como no campo da políti­ca, que submeteu às paixões do dogmatismo e dos interesses inconfessáveis que o caracterizaram. Mui­to comprometido espiritualmente, preparou-se para novo cometimento e recebeu o aval dos seus Guias espirituais. Por mais de um decênio equipou-se de conhecimento e de valores éticos para atuar com ele­vação nos dois delicados campos. Quando se acredi­tou em condições de reencetar a jornada, foi condu­zido a um nobre lar espírita, sob a tutela de mãe generosa que lhe era anjo protetor, a fim de que o Con­solador lhe facultasse compreender os compromissos assumidos e a Lei de Causa e Efeito o despertasse para o desempenho sagrado da tarefa.

“Desde cedo, participou com a genitora dos estudos evangélicos no lar, em momentosos encontros de meditação e de intercâmbio, quando os Amigos espirituais inspiravam as conversações e direciona­vam os interesses da família. Participou das aulas de evangelização da época, indevidamente denomina­das de catecismo espírita, e mais tarde tomou parte num dos primeiros grupos de mocidades espíritas que se iniciavam no Brasil. Conseguiu destacar-se, exercendo liderança, porqüanto, para tanto, fora pre­parado, enquanto simultaneamente estudava direi­to. Bacharelando-se, teve a felicidade de ser convi­dado por hábil advogado político que o iniciou na di­fícil conjuntura administrativa do país, na qual con­seguiu amealhar expressivos recursos financeiros. Logo depois, consorciou-se com excelente compa­nheira, e enquanto o triunfo lhe batia às portas, per­mitia-se o distanciamento da fé espírita. É claro que se justificava como sendo vítima da falta de tempo, escamoteando o constrangimento que sentia de de­clarar-se espiritista nas altas rodas, nas quais agora se movimentava entre luxos e preconceitos mesqui­nhos.

“O tempo é inexorável, e todos passam por ele, que permanece inalterado. O dr. Evaldo, então proe­minente político, esqueceu-se completamente dos compromisso espirituais. No auge do poder, tomado pela avidez desvairada para o enriquecimento ilícito, acumplíciou-se com amigos envolvidos em corrupção e, em breve, derrapou em terríveis enovelamentos mo­rais, desviando verbas que deveriam atender neces­sidades urgentes e salvar vidas, transferindo-as para contas fora do país nos denominados paraísos fiscais.

“Nesse interregno, face aos descalabros íntimos que não ficaram apenas na área dos comprometimen­tos políticos, mas também sexuais, vinculou-se a an­tigos inimigos desencarnados que o espreitavam, co­meçando a hospedar psiquicamente hábil manipula­dor das forças mentais que passou a comandá-lo va­garosamente até apropriar-se-lhe com relativa facili­dade do seu mundo psíquico.

“Quando menos esperava, a esposa sofrida ante a conduta irregular do marido com a qual não concor­dava e o admoestava sempre que possível, foi aco­metida de um carcinoma que a vitimou em rápidos meses. Surpreendido pelo infausto acontecimento, não tendo procriado, o insensato começou a atormen­tar-se, dando campo à consciência de culpa e procu­rando fugir de si mesmo. Os valores amealhados de nada lhe valeram, porque não podiam minimizar os conflitos íntimos e a sensação de que a morte da mulher em condições muito dolorosas de certo modo era uma punição à sua conduta irregular, como se a Divindade se utilizasse de mecanismos mórbidos quais os dessa natureza.

“Lentamente afastou-se da agitada vida munda­na sob a justificativa da viuvez, e apesar de insisten­temente convidado pelos comparsas, refugiou-se em pertinaz depressão que passou a consumir-lhe as metas existenciais, a razão de viver, qualquer objeti­vo que o pudesse arrancar da penosa situação.

“A mãezinha, ora desencarnada, envidou esfor­ços exaustivos para arrancá-lo da situação pungente a que se entregou, mas tudo redundou inútil, porque o torturado começou a perceber quanto a sua avidez contribuíra para a miséria de muitos seres humanos necessitados, os quais deveria defender e amparar através dos mecanismos políticos e da fé espírita que anteriormente esposara.

“Tentando ocultar o drama, o seu inconsciente começou a criar a teia vibratória que terminou por envolvê-lo então sob o direcionamento do adversário espiritual. Três anos transcorridos após a desencar­nação da senhora, sucumbiu em triste ruína huma­na, negando-se à alimentação e ao tratamento espe­cializado, que embora sob imposição vigorosa de ou­tros familiares não logrou arrancá-lo do abismo da consciência culpada ao qual se atirara com sofregui­dão.”

Novamente o psiquiatra silenciou, demonstran­do uma profunda compunção pelo enfermo. A seguir, concluiu:

— Em deplorável estado mental e físico desencar­nou, jugulado à estranha obsessão por ressonância dos pensamentos perversos do inimigo que o aguar­dou no pórtico da imortalidade, encarcerando-o nos fios vigorosos da própria urdidura mental e recambi­ando-o para o escuso recinto onde se homiziava. Ali, sob hipnose cruel, vergastou-o por mais de um decê­nio, após o que foi transferido para nosso Hospital por intercessão da mãezinha abnegada, aqui demo­rando-se até este momento, quando começa o seu processo de despertamento para o encontro lúcido com a realidade.

— Deus, meu! — exclamei — emocionado. Quanto a aprender e a corrigir no mundo íntimo!

Alberto, sempre silencioso, aduziu com joviali­dade:

— Não é por outra razão que o Mestre nos infor­mou que mais será pedido àquele a quem mais foi dado.

De fato, quem possui a luz embutida na mente e no coração não pode andar em trevas, semear escuri­dão, para tanto, apagando a própria claridade íntima, pois que, sem qualquer dúvida, voltará a percorrer o mesmo caminho e o defrontará conforme o haja dei­xado.

Assim, emocionados e reconhecidos, despedimo­nos do culto e generoso médico, rumando ao gabine­te do dr. Ignácio Ferreira, onde éramos gentilmente aguardados.


22

LIÇÕES DE SABEDORIA

A aprendizagem prosseguia ampliando-me os ho­rizontes do entendimento em torno do ser, do seu destino, das aflições e alegrias que são vividas ao largo do processo evolutivo. Em todo lugar, naquele pavilhão, que era apenas um dos quatro reservados aos alienados mentais que permaneciam vinculados às reminiscências terrestres e aos seus engodos, eu defrontava a Lei de Causa e Efeito no seu mister de disciplinar e educar, orientar e libertar o Espírito das amarras que o jugulam às heranças do primarismo por onde passa ao largo da vilegiatura carnal.

Novos contatos permitiam-me penetrar em ques­tões dantes jamais concebidas, que fazem parte da natureza humana e se sediam nas estruturas mais complexas do ser espiritual.

A existência corporal é sempre um desafio digni­ficante, que deve ser vivida com elevação e respeito pelos postulados que facultam o crescimento interior no rumo da plenitude. Nem todos aqueles que se en­contram mergulhados na neblina carnal dão-se con­ta do alto significado dessa concessão superior da misericórdia divina. Enquanto transcorre em clima de júbilos infantis sem mais graves compromissos, pre­dominam os encantamentos, que logo passam, as­sim se desenham os exercícios de auto-aprimoramen­to, de auto-iluminação mediante o serviço do bem, o sacrifício das paixões, a renúncia às ilusões, o teste­munho depurador pelo sofrimento... Anestesiado pe­los vapores do organismo, o Espírito transita sem res­ponsabilidade, comprometendo-se e despertando para os necessários resgates, até adquirir a consci­ência de si mesmo, definindo-se pela marcha ascen­sional sem estágios nos patamares de sombra e dor. O tropismo divino atrai-o e fascina-o, poderoso e ab­sorvente, fazendo-o superar os atavismos ancestrais e romper as vigorosas redes retentivas da retaguar­da.

Esse processo de libertação é, às vezes, penoso, feito com suores e lágrimas, oferecendo, logo depois, o prêmio da harmonia, da superação dos instintos e dos tormentos. Empenhar-se com acendrado interesse pelo conseguir, deve ser a meta de todos nós, que ainda nos encontramos vinculados aos vícios mile­nares, prejudiciais e asselvajados.

Ali tivera oportunidade de conhecer abnegados servidores anônimos que se encarregavam de tare­fas humildes umas, aparentemente insignificantes outras, nas quais investiam todo o amor e alegria, pro­curando ser úteis, intensificando propósitos de su­blimação e aguardando confiantes o futuro. Espíritos que, na Terra, haviam envergado a túnica do desta­que social, mantido nas mãos a adaga do poder, tran­sitado entre honrarias e louvores, agora se encontra­vam mergulhados na simplicidade por onde recome­çavam o desenvolvimento ético-moral para a cons trução superior de si mesmos.

Por outro lado, encontrara testemunhos de renún­cia incomparáveis, em que almas nobres aguardavam a recuperação dos seus afetos para somente depois ascenderem a planos mais elevados e desfrutarem de bem-estar. O serviço de auxílio ao próximo sofredor em nome do amor, exigindo-lhes sacrifícios con­tínuos, possuía-lhes significado essencial em detri­mento das próprias alegrias que adiavam, a fim de que os seus júbilos não se assentassem no esqueci­mento das lágrimas que os aguardavam para enxu­gá-las...

Um mês se havia passado desde que chegára­mos ao Hospital e fôramos carinhosamente recebi­dos.

Com esse saldo credor na economia dos senti­mentos, encaminhei-me ao gabinete do dr. Ignácio Ferreira, a fim de informá-lo de que, no dia imediato retornaria à comunidade onde residia, ali prosseguin­do no desempenho das atividades que me diziam res­peito.

O médico uberabense recebeu-nos com efusão de júbilos, explicando-me que Eurípedes Barsanulfo, recordando-se que o prazo referente ao meu estágio terminava, houvera-me convidado e a outros amigos por seu intermédio, para nos reunirmos na sua resi­dência, a fim de participarmos de um encontro infor­mal de despedida, o que ocorreria às vinte horas da­quele mesmo dia.

Não pude ocultar o entusiasmo que, por pouco, não me conduziu às lágrimas. Reconheço as defici­encias que me tipificam o processo espiritual, e rece­ber tão generosa deferência representava-me alta res­ponsabilidade em relação àquele momento e ao futu­ro que me aguarda.

Assim, busquei o caro Alberto, a fim de visitar­mos os enfermos e novos amigos com os quais trava­ra contato naquele período, deixando-lhes exteriori­zados os meus sentimentos de gratidão e votos de breve recuperação das dores pungitivas que a alguns excruciavam, pórtico porém, das inefáveis alegrias que os esperavam.

Fomos ao encontro de Almério que se apresen­tava com excelente disposição psíquica e continua­va no atendimento aos visitantes do pavilhão. Agra­deci-lhe, penhorado, a gentileza com que me houve­ra recebido no primeiro dia, confiando-me a sua his­tória rica de lições, ajudando-me a resguardar-me das próprias mazelas.

Logo mais, restabelecemos o contato com dr. Le­ôncio, que se conscientizava, a cada novo dia, com mais amplo tirocínio dos deveres para com a vida e para consigo mesmo, ao invés da intolerância e do radicalismo que invariavelmente ocultam os confli­tos graves, que logo se exteriorizam assim tenham oportunidade.

Junto a Ambrósio, a prece de reconforto moral e de fraternal sentimento solidário foi a contribuição única de que dispusemos para expressar-lhe simpa­tia e ajuda, confiando-o à inalterável bondade de Deus.

Igualmente, ao lado do dr. Agenor reflexionamos em silêncio a respeito dos tesouros do conhecimento que aplicamos incorretamente e das duras conse­qüências que advêm dessa inditosa conduta. Ape­sar de hibernado, sem poder exteriorizar as aflições que o martirizavam, vivia-as mentalmente através do processo das evocações constantes e automáticas. O tempo lhe seria o auxiliar milagroso em favor do despertamento para os novos desafios que deveria enfrentar.

O reencontro com Licínio foi enriquecido de ale­grias, face às conquistas do digno trabalhador do Bem, que se soube apagar a fim de que brilhasse a luz da verdade através dos seus atos. O seu riso generoso e fácil permaneceria em minha memória como o sinal de vitória após o dever retamente cumprido, agora lhe descortinando infinitas outras possibilidades de crescimento interior.

Dona Hildegarda recebeu-nos com sensibilida­de, convidando-nos ao retorno, assim nos fosse pos­sível, a fim de participarmos não apenas das ativida­des hospitalares, mas também dos labores espiritu­ais que desenvolvia na crosta terrestre ao lado dos amigos. Jovial e confiante, avançava no nimo da Gran­de Luz sem olhar para trás, investindo amor e tenaci­dade no desempenho dos compromissos que ora lhe diziam respeito.

O irmão Gustavo Ribeiro apresentava-se mais animado, embora os vínculos profundos que ainda mantinha com o lar e o peso do arrependimento que o esmagava. A prece de reconforto moral e de enco­rajamento, que fizemos ao seu lado, foi a forma de que dispúnhamos no momento para agradecer-lhe a lição de vida que nos oferecera como advertência para a própria indigência.

Buscamos a presença de Honório, encontrando-o no lento processo de conscientização após os du­ros transes passados, que ainda prosseguiam em for ma de fixações mentais pungentes.

Não nos esquecemos de Agenor, cuja mãezinha nos encantara com o seu testemunho de fidelidade e proteção ao filho rebelde, e que permanecia em sono profundo visitado pelas imagens perturbadoras da conduta irregular.

Fomos agradecer ao dr. Orlando Messier a confi­ança e a generosidade que nos dispensara, pedindo-lhe permissão para rever o dr. Evaldo e orar ao seu lado, a fim de o envolver em vibrações de esperança e de recuperação, no que fomos gentilmente atendi­dos.

Diante de cada um desses irmãos e de outros tan­tos, agradecemos a Deus a oportunidade de apren­der com eles, sem a necessidade de experimentar os mesmos sofrimentos porque passaram e ainda sofri­am, face à lucidez que nos acompanhava. A verdade é que, em toda parte, o amor abre o seu elenco de possibilidades de serviço e de renovação em convite perene para a felicidade.

À medida que a noite se anunciava, ao lado do incansável Alberto que se nos houvera transformado em verdadeiro benfeitor, experimentava já os senti­mentos de saudade e de reconhecimento pelas ad­miráveis lições aprendidas no pavilhão que nos hos­pedara naquele breve período.

Agradecendo ao companheiro vigilante e presti­moso, recolhi-me ao apartamento, a fim de preparar­me para o encontro com o fundador do Hospital Es­perança conforme delineado.

À hora estabelecida, dr. Ignácio Ferreira e Alber­to vieram buscar-me para o convívio feliz.

Somente então dei-me conta de que o missionário sacramentano residia em área próxima ao Hospi­tal, e não em alguma das suas dependências. Desde quando desencarnara, que se empenhara em dar prosseguimento à edificação de uma comunidade dedicada ao amor e ao estudo da Verdade, que hou­vera iniciado antes do mergulho no como, conseguin­do, ao largo dos anos, receber nas diversas edifica­ções familiares e amigos mais recentes, tanto quanto de épocas recuadas, a fim de prosseguirem juntos no ministério iluminativo, assim iniciando a fraternida­de mais ampla entre eles, pródromo daquela que sera universal.

Podia-se dizer que se tratava de um bairro na ci­dade espiritual com magnífico traçado urbanístico e rica paisagem luxuriante, na qual se experimentava a harmonia entre as realizações do Espírito e o ambi­ente geral, produzindo refazimento e inefável bem-estar por toda parte.

As residências encontravam-se bem distribuídas com expressivas dimensões e jardins que as uniam, tanto quanto largos espaços para encontros e convi­vência em grupos. Noutra área, destacava-se um amplo edifício escolar, no qual se encontrava um dís­tico expressivo enunciando tratar-se do Educandá­rio Allan Kardec.

Não cabia em mim de contentamento e sumresa. Dr. Ignácio, percebendo-me o espanto, e sorrin­do jovialmente, informou-me:

— Esse Instituto foi o modelo no qual Eurípedes se inspirou para erguer o seu equivalente em Sacra­mento no começo do século 20. Aqui, em momento­sos deslocamentos espirituais, ele vinha abastecer-se de energias e conhecimentos mediante desdobramento parcial pelo sono físico, para desenvolver no­vos padrões pedagógicos à luz do Espiritismo, viven­do grandioso pioneirismo em torno da educação. Di­versos daqueles seus alunos de então, ora aqui se encontram, trabalhando na divulgação da metodolo­gia do ensino moderno, ampliando a visão da liber­dade com responsabilidade nas grades pedagógicas. A obra do Bem não é realizada de improviso, nem surge concluída de um para outro momento. Exige esforço, perseverança e dedicação.

“O Educandário tem vários setores, que se inici­am no atendimento maternal, passando pelo jardim de infância e prosseguindo através da preparação primária, secundária, universitária... Há lugar para todos os níveis etários conforme os padrões terres­tres, e aqueles que desencarnam em diferentes ida­des, quando para cá são trazidos, dispõem de com­petente atendimento de acordo com as suas neces­sidades.”

Havíamos caminhado entre jardins e alamedas bem cuidados por quase um quilômetro desde que saíramos da porta central do pavilhão no Hospital que nos alojava.

Diante dos meus olhos alargava-se a Com unida­de amor e conhecimento da Verdade.

Perpassavam no ar da noite suaves e quase inau­díveis melodias que nos estimulavam à alegria e aos sentimentos superiores, produzindo vibrações de harmonia em nosso mundo íntimo.

Quando chegamos à ampla residência do Ben­feitor gentil, este veio receber-nos à porta e fez-nos adentrar com amabilidade que nos sensibilizou, re­conhecendo a ausência de mérito de nossa parte.

Na sala de largas janelas que permitiam a entra­da do perfume exterior das flores em explosão de pri­mavera, iluminada amplamente encontravam-se inúmeros Espíritos joviais que nos receberam com ver­dadeiro e natural contentamento. O anfitrião nos apre­sentou a todos, um a um, entretecendo ligeiro comen­tário a respeito de cada qual. Eram familiares da últi­ma experiência física, amigos queridos, ex-alunos, cooperadores devotados, médiuns que o auxiliavam na psicoterapia espiritual com os sofredores desen­carnados, enfim, membros da grande ordem do amor universal.

Deixando-me inteiramente à vontade, convidou-nos a sentar e, com a naturalidade que lhe era habi­tual, explicou-nos a todos que o encontro tinha por objetivo agradecer a nossa visita e entretecer breves comentários em torno do cristão no mundo, especial­mente do cristão-espírita enriquecido pela Terceira Revelação.

Todos concentramos os olhos e a atenção no emé­rito trabalhador de Jesus que, sem mais delonga, con­siderou:

— Todo conhecimento superior que se adquire visa ao desenvolvimento moral e espiritual do ser. No que diz respeito às conquistas imortais, a responsabili­dade cresce na razão direta daquilo que se assimila. Ninguém tem o direito de acender uma candeia e ocultá-la sob o alqueire, quando há o predomínio de sombras solicitando claridade. A consciência escla­recida, portanto, não se pode omitir quando convida­da ao serviço de libertação da ignorância de outras em aturdimento. Somos células pulsantes do organis­mo universal, e quando alguém está enfermo, debilitado, detido no cárcere do desconhecimento, o seu estado se reflete no conjunto solicitando cooperação. Jesus é o exemplo dessa solidariedade, porque ja­mais se escusou, nunca se deteve, avançando sem­pre e convidando todos aqueles que permaneciam na retaguarda para segui-lO. Esse é o compromisso do ser inteligente na Terra e no Espaço: socorrer em nome do amor os irmãos que se detêm ergastuiados no erro, no desconhecimento, na dor...

“A Humanidade, desde priscas Eras, tem recebi­do a iluminação que verte do Alto. Nunca faltaram os missionários do Bem e da Verdade conclamando àascensão, à superação das imperfeições morais. Em época alguma e em lugar nenhum deixou de brilhar a chama da esperança em nome de Nosso Pai, que en­viou os Seus apóstolos ao Planeta, a fim de que todas as criaturas tivessem as mesmas chances de auto-realização e de crescimento interior. Todos eles, os nobres Mensageiros da Luz, desempenharam as suas atividades em elevados climas de enobrecimento e de abnegação, que deles fizeram líderes do pensa­mento de cada povo, de todos os povos.

“Foi, no entanto, Jesus, quem melhor se doou àHumanidade, ensinando pelo exemplo dedicação até à morte, e oferecendo carinho até hoje, aguardando com paciência infinita que as Suas ovelhas retornem ao aprisco. Apesar das Suas magníficas lições, o ser humano alterou o rumo da Sua proposta de lídima fra­ternidade, promovendo guerras de extermínio, elabo­rando castas separatistas, elegendo ilusões para a conquista do reino terrestre... Sabendo, por anteci­pação, dessa peculiaridade da alma humana, o Mes­tre prometeu o Consolador que viria para erguer em definitivo os combalidos na luta, permanecendo com as criaturas até o fim dos tempos...

“E o Consolador veio. Ao ser apresentado no Es­piritismo, surgiram incontáveis possibilidades de edificação humana, pelo fato de a Doutrina abarcar os vários segmentos complexos e profundos da Ci­ência, da Filosofia e da Religião, contribuindo em to­das as áreas do conhecimento e da emoção para o desenvolvimento dos valores eternos e a conseqüente consolidação do reino de Deus na Terra. Expandindo-se a Codificação kardequiana, as multidões esfaima­das de paz e atormentadas por vários fatores, acer­caram-se e continuam abeberando-se na fonte gene­rosa e rica, para serem atendidas, sorvendo os seus sábios ensinamentos.

“Quando, porém, deveriam estar modificados os rumos convencionais e estabelecidos a fraternidade, a solidariedade, a tolerância, o trabalho de amor na família que se expande, começam a surgir desaven­ças, ressentimentos, conflitos, campanhas de pertur­bação e ataques grosseiros, repetindo-se as infelizes disputas geradas pelo egoísmo e pela vã cegueira das paixões dissolventes, conforme ocorreu no passado com o Cristianismo, destruindo a sementeira ainda não concluída e ameaçando a ceifa que prometia bên­çãos. Espíritos uns, possuídos pelo desejo de servir, mergulham no corpo conduzindo expectativas felizes para ampliar os horizontes do trabalho digno, mas, vítimas de si mesmos e do seu passado sombrio, res­tabelecem as vinculações enfermiças, tombando nas malhas bem urdidas de obsessões cruéis, vitimados e perdidos... Outros mais, que deveriam ser as pon­tes luminosas para o intercâmbio entre as duas esferas vibratórias, açodados na inferioridade moral, com­prometem-se com os vícios dominantes no mundo e desertam das tarefas redentoras... Diversos outros ainda, preparados para divulgar o pensamento liber­tador, deixam-se vencer pelo bafio do egoísmo e do orgulho que deveriam combater, tornando-se elemen­tos perturbadores, devorados pela ira fácil e domina­dos pela presunção geradora de ressentimentos e de ódios... A paisagem, que deveria apresentar-se irisa­da pela luz do amor, torna-se sombreada pelos vapo­res da soberba e do despautério, tornando-se palco de disputas vis e de promoções doentias do perso­nalismo, longe das seguras diretrizes do legítimo pen­samento espírita... Que estão fazendo aqueles que se comprometeram amar, ajudar-se reciprocamente, fornecendo as certezas da imortalidade do Espírito e da Justiça Divina? Enleados pelos vigorosos fios da soberba e da presunção, crêem-se especiais e dota­dos com poderes de a tudo e a todos agredir e malsi­nar.

“Como conseqüência dessa atitude enferma es­tão desencarnando muito mal, incontáveis trabalha­dores das lides espíritas que, ao inverso, deveriam estar em condições felizes. O retorno de expressivo número deles ao Grande Lar tem sido doloroso e an­gustiante, conforme constatamos nas experiências vivenciadas em nossa Esfera de atividade fraternal e caridosa. O silêncio em torno da questão já não émais possível. Por essa razão, anuímos que sejam trombeteadas as informações em torno da desencar­nação atormentada de muitos servidores da Era Nova em direção aos demais combatentes que se encon­tram no mundo, para que se dêem conta de que de sencarnar é desvestir-se da carne, libertar-se dela e das suas vinculações, porém, é realidade totalmente diversa e de mais difícil realização.”

O digno missionário silenciou por breves segun­dos, logo dando curso aos seus enunciados:

— Felizmente nos confortam o testemunho de inú­meros heróis do trabalho, os permanentes exemplifi­cadores de caridade, a constância no bem pelos van­guardeiros do serviço dignificante, os ativos operári­os da mediunidade enobrecida e dedicada ao socor­ro espiritual, os incansáveis divulgadores da verda­de sem jaça e sem prepotência que continuam no ministério abraçado em perfeita sintonia com as Es­feras Elevadas de onde procedem.

“Quem assume compromisso com Jesus através da Revelação Espírita, não se pode permitir o luxo de O abandonar na curva do caminho, e seguir a sós, soberbo quão dominador, porque a morte o aguarda no próximo trecho da viagem e o surpreendera con­forme se encontra, e não, como se dará conta do quan­to deveria estar melhor mais tarde.

“A transitoriedade da indumentária física é con­vite à reflexão em torno dos objetivos essenciais da vida que, a cada momento, altera o rumo do viajante de acordo com o comportamento a que se entrega. Ninguém se iluda, nem tampouco iluda aos demais. A consciência, por mais se demore anestesiada, sem­pre desperta com rigor, convidando o ser ao ajusta­mento moral e à regularização dos equívocos deixa­dos no trajeto percorrido. Todos quantos aqui nos encontramos reunidos, conhecemos a dificuldade do trânsito físico, porque já o vivenciamos diversas ve­zes, e ainda o temos vivo na memória e nos testemu nhos a que fomos convocados. Ninguém esteve na Terra em regime de exceção. Apesar disso, bendize­mos as dificuldades e as provas que nos estimula­ram ao avanço e à conquista da paz.

“Provavelmente, estas informações, quando fo­rem conhecidas por muitos correligionários, serão contraditadas e mesmo combatidas. Nunca faltam aqueles que se entregam à zombaria e à aguerrida oposição. Os seus estímulos funcionam melhor quan­do estão contra algo ou alguém. Não nos preocupa­mos com isso. Cumpre-nos, porém, o dever de infor­mar com segurança, e o fazemos com o pensamento e a emoção direcionados para a Verdade. Como os reencarnados de hoje serão os desencarnados de amanhã, e certamente o inverso acontecerá, os com­panheiros terrestres constatarão e se cíentificarão de visu. Jamais nos cansaremos de amar e de servir, ten­tando seguir as luminosas pegadas de Jesus, que nos assinalou com sabedoria: — Muitos serão chamados e poucos serão escolhidos. Sem a pretensão de sermos escolhidos, por enquanto apenas pretendemos aten­der-lhe ao sublime chamado para o Seu serviço en­tre as criaturas humanas de ambos os planos da vida.”

Calando-se, visivelmente emocionado, ergueu-se e, nimbado por peculiar claridade que dele se irradi­ava, exorou a Deus com inesquecível tom de voz:

Amantíssimo Pai, incomparável Criador do Uni­verso e de tudo quanto nele pulsa!

Tende compaixão dos vossos filhos terrestres, mer­gulhados nas sombras densas da ignorância e do pri­marismo em que se demoram.

A vossa excelsa misericórdia tem-se consubstan­ciado em lições de vida e de beleza em toda parte, convidan do-nos, estúrdíos que somos, ao despertamen­to para a vossa grandeza e sabedoria infinita. Não obstante, continuamos distraídos, distantes do dever que nos cabe a tendei.

Apiedai-vos da nossa pequenez e deixai-nos sen­tir o vosso inefável amor, que nos rocia e quase não é percebido, a fim de alterarmos o comportamento que vimos mantendo até este momento.

Enviastes-nos Jesus, o inexcedível Amigo dos de­serdados e dos infelizes, depois de inumeráveis Men­sageiros da Luz, ouvimos-Lhe a voz, sensibilizamo-nos com o Seu sacrifício, no entanto, desviamo-nos do ro­teiro que Ele nos traçou e continua apontando. Tom­bando, porém, no abismo, por invigilância e levian da-de, tentamos reerguer-nos várias vezes, e nos ajudas­tes por compaixão, sem que essa magnanimidade al­terasse por definitivo nossa maneira de ser durante os séculos transatos.

Permitistes que Allan Kardec mergulhasse no cor­po, afim de demonstrar-nos a imortalidade da alma, quando campeava a descrença e a cegueira em torno da vossa Majestade, e também nos fascinamos com o mestre lionês. Logo depois, porém, eis-nos perdidos no cipoal dos conflitos a que nos afeiçoamos, experimen­tando sombra e dor, esquecidos das diretrizes apre­sentadas.

No limiar da Nova Era que se anuncia, permiti que vossa luz imarcescível nos clareie por dentro, li­bertan do-nos de toda treva e assinalando-nos com o discernimento para vos amar e vos servir com devota­mento e abnegação.

Excelso Genitor, tende piedade de nós, favorecen­do-nos com o entendimento que nos ajude a eliminar o mal que ainda se demora em nós, desenvolvendo o bem que nos libertará para sempre da inferioridade que predomina em a nossa natureza espiritual.

Sede, pois, louvado, por todo o sempre, Veneran­do Pai!

Calou-se o orante.

A luz ambiente diminuiu de intensidade durante a oração, ao tempo em que peregrina claridade de luar invadiu o recinto bafejado por acordes harmôni­cos de harpa dedilhada ao longe com incomum ma­estria. Simultaneamente, pétalas de rosas coloridas caíam do teto e diluíam-se com delicadeza no conta­to conosco.

As lágrimas nos escorriam silenciosas e longas pela face, confirmando o nosso compromisso emoci­onal com o dever que jamais desapareceria do nosso rumo espiritual.

O ambiente permaneceu em silêncio profundo por alguns minutos, ouvindo-se o pulsar da Natureza e recebendo-se o inefável amparo divino.

Lentamente a claridade ambiente retomou e to­dos nos olhamos comovidos e felizes.

Estava encerrado o incomum encontro.

Despedimo-nos de todos os novos amigos, cer­tos de que nos voltaríamos a encontrar oportunamente em algum outro lugar na grande marcha para Deus.

Eurípedes, gentilmente acompanhou-nos à por­ta, abraçando-nos com afeto e colocando a comuni­dade na qual se encontrava inteiramente à nossa dis­posição, caso viéssemos a ter qualquer necessidade.

Beijei as mãos da Entidade veneranda e, com dr. Ignácio e Alberto, retornei ao pavilhão, igualmente despedindo-me de ambos com profunda gratidão, por quanto, ao amanhecer, seguiria de retorno ao lar, ja­mais me olvidando de tantas graças recebidas e das afeições estabelecidas.

A noite de bênçãos daria lugar a futuros ama­nheceres de trabalho e de iluminação, que estamos percorrendo com os olhos postos em Jesus, o Amigo por excelência.

Fim