Translate

sábado, 29 de janeiro de 2011

Os Mensageiros-Francisco Cândido Xavier

OS MENSAGEIROS

FRANCISCO CÂNDIDO XAVIER

DITADO PELO ESPÍRITO ANDRÉ LUIZ

(2)

Série André Luiz

1 - Nosso Lar

2 - Os Mensageiros

3 - Missionários da Luz

4 - Obreiros da Vida Eterna

5 - No Mundo Maior

6 - Agenda Cristã

7 - Libertação

8 - Entre a Terra e o Céu

9 - Nos Domínios da Mediunidade

10 - Ação e Reação

11 - Evolução em Dois Mundos

12 - Mecanismos da Mediunidade

13 - Conduta Espírita

14 - Sexo e Destino

15 - Desobsessão

16 - E a Vida Continua...



Os Mensageiros

Lendo este livro, que relaciona algumas experiências de mensageiros espirituais, certamente muitos lei­tores concluirão, com os velhos conceitos da filosofia, que “tudo está no cérebro do homem», em virtude da materialidade relativa das paisagens, observações, ser­viços e acontecimentos.

Forçoso é reconhecer, todavia, que o cérebro é o aparelho da razão e que o homem desencarnado, pela simples circunstância da morte física, não penetrou os domínios angélicos, permanecendo diante da pró­pria consciência, lutando por Iluminar o raciocínio e preparando-se para a continuidade do aperfeiçoamento noutro campo vibratório.

Ninguém pode trair as leis evolutivas.

Se um chimpanzé, guindado a um palácio, encon­trasse recursos para escrever aos seus Irmãos de fase evolucionária, quase não encontraria diferenças fun­damentais para relacionar, ante o senso dos semelhan­tes. Daria noticias de uma vida animal aperfeiçoada e talvez a única zona Inacessível às, suas possibilidades de definição estivesse justamente na auréola da razão que envolve o espírito humano. Quanto às formas de vida, a mudança não seria profundamente sensível. Os pelos rústicos encontram sucessão nas casimiras e sedas modernas. A Natureza que cerca o ninho agreste é a mesma que fornece estabilidade à mora­dia do homem. A furna ter-se-ia transformado na edificação de pedra. O prado verde liga-se ao jardim civilizado. A continua ção da espécie apresenta fenôme­nos quase idêntico. A lei da herança continua, com ligeiras modificações. A nutrição demonstra os mes­mos trâmites. A união de família consangüínea revela os mesmos traços fortes. O chimpanzé, desse modo, somente encontraria dificuldade para enumerar os pro­blemas do trabalho, da responsabilidade, da memória enobrecida, do sentimento purificado, da edificação espiritual, enfim, relativa à conquista da razão.

Em vista disso, não se justifica a estranheza dos que lêem as mensagens do teor das. que André Luis endereça aos estudiosos devotados à construção espi­ritual de si mesmos.

O homem vulgar costuma estimar as expectativas ansiosas, à espera de acontecimentos espetaculares, es­quecido de que a Natureza não se perturba para satis­fazer a pontos de vista da criatura.

A morte física não é salto do desequilíbrio, épasso da evolução, simplesmente.

Á maneira do macaco, que encontra no ambiente humano uma vida animal enobrecida, o homem que, após a morte física, mereceu o ingresso nos círculos elevados do Invisível, encontra uma vida humana su­blimada.

Naturalmente, grande número de problemas, refe­rentes à Espiritualidade Superior, ai espera a criatura, desafiando-lhe o conhecimento para a ascensão sublime aos domínios iluminados da vida, O progresso não sofre estacionamento e a alma caminha, incessante-mente, atraida pela Luz Imortal.

No entanto, o que nos leva a grafar este pre­fácio singelo, não é a conclusão filosófica, mas a necessidade de evidenciar a santa oportunidade de tra­balho do leitor amigo, nos dias que correm.

Felizes os que buscarem na revelação nova o lugar de serviço que lhes compete, na Terra, consoante a Vontade de Deus.

O Espiritismo cristão não oferece ao homem tão somente o campo de pesquisa e consulta, no qual raros estudiosos conseguem caminhar dignamente, mas, mui­to mais que isso, revela a oficina de renovação, onde cada consciéncia de aprendiz deve procurar sua justa integração com a vida mais alta, pelo esforço interior, pela disciplina de si mesma, pelo auto-aperfeiçoamento.

Não falta concurso divino ao trabalhador de boa vontade. E quem observar o nobre serviço de um Ani­ceto, reconhecerá que não é fácil prestar assisténcia espiritual aos homens. Trazer a colaboração fraterna dos planos superiores aos Espíritos encarnados não é obra mecânica, enqüadrada em princípios de menor esforço. Claro, portanto, que, para recebé-la, não po­derá o homem fugir aos mesmos imperativos. É in­dispensável lavar o vaso do coração para receber a “água viva”, abandonar envoltórios inferiores, para vestir os “trajes nupciais” da luz eterna.

Entregamos, pois, ao leitor amigo, as novas pági­nas de André Luiz, satisfeitos por cumprir um dever. Constituem o relatório incompleto de uma semana de trabalho espiritual dos mensageiros do Bem, junto aos homens e, acima de tudo, mostram a figura de um emissário consciente e benfeitor generoso em Aniceto, destacando as necessidades de ordem moral no qua­dro de serviço dos que se consagram às atividades nobres da fé.

Se procuras, amigo, a luz espiritual; se a anima­lidade já te cansou o coração, lembra-te de que, em Espiritualismo, a investigação conduzirá sempre ao Infinito, tanto no que se refere ao campo infinitesimal, como à esfera dos astros distantes, e que só a transformação de ti mesmo, à luz da Espiritualidade Supe­rior, te facultará acesso da fontes da Vida Divina. E, sobretudo, recorda que as mensagens edificantes do Além não se destinam apenas à expressão emocional, mas, acima de tudo, ao teu senso de filho de Deus, para que faças o inventário de tuas próprias realiza­ções e te integres, de fato, na responsabilidade de vi­ver diante do Senhor.

EMMANUEL

Pedro Leopoldo, 26 de fevereiro de 1944.


1

Renovação

Desligando-me dos laços Inferiores que me prendiam às atividades terrestres, elevado entendi­mento felicitou-me o espírito.

Semelhante libertação, contudo, não se fizera espontânea.

Sabia, no fundo, quanto me custara abandonar a paisagem doméstica, suportar a incompreensão da esposa e a divergência dos filhos amados.

Guardava a certeza de que amigos espirituais, abnegados e poderosos, me haviam auxiliado a alma pobre e imperfeita, na grande transição.

Antes, a inquietude relativa à companheira tor­turava-me incessantemente o coração; mas, agora, vendo-a profundamente identificada com o segundo marido, não via recurso outro que procurar diferentes motivos de interesse.

Foi assim que, eminentemente surpreendido, observei minha própria transformação, no curso dos acontecimentos.

Experimentava o júbilo da descoberta de mim mesmo. Dantes, vivia à feição do caramujo, segre­gado na concha, impermeável aos grandiosos espe­táculos da Natureza, rastejando no lodo. Agora, entretanto, convencia-me de que a dor agira em minha construção mental, à maneira do alvião pesado, cujos golpes eu não entendera de pronto. O alvião quebrara a concha de antigas viciações do sentimento. Libertara-me. Expusera-me o organis­mo espiritual ao sol da Bondade Infinita. E come­cei a ver mais alto, alcançando longa distância.

Pela primeira vez, cataloguei adversários na categoria de benfeitores. Comecei a freqüentar, de novo, o ninho da família terrestre, não mais como senhor do círculo doméstico, mas como operário que ama o trabalho da oficina que a vida lhe de­signou. Não mais procurei, na esposa do mundo, a companheira que não pudera compreender-me e abu a irmã a quem deveria auxiliar, quanto estivesse em minhas forças. Abstive-me de encarar o segundo marido como intruso que modificara meus propósitos, para ver apenas o irmão que necessi­tava o concurso de minhas experiências. Não vol­tei a considerar os filhos propriedade minha e sim companheiros muito caros, aos quais me competia estender os benefícios do conhecimento novo, am­parando-os espiritualmente na medida de minhas possibilidades.

Compelido a destruir meus castelos de exclu­sivismo injusto, senti que outro amor se instalava em minhalma.

Órfão de afetos terrenos e conformado com os desígnios superiores que me haviam traçado diver­so rumo ao destino, comecei a ouvir o apelo pro­fundo e divino, da Consciência Universal.

Somente agora, percebia quão distanciado vi­vera das leis sublimes que regem a evolução das criaturas.

A Natureza recebia-me com transportes de amor. Suas vozes, agora, eram muito mais altas que as dos meus interesses isolados. Conquistava, pouco a pouco, o júbilo de escutar-lhe os ensina­mentos misteriosos no grande silêncio das coisas. Os elementos mais simples adquiriam, a meus olhos, extraordinária significação. A colônia espiritual, que me abrigara generosamente, revelava novas expressões de indefinível beleza. O rumor das asas de um pássaro, o sussurro do vento e a luz do Sol pareciam dirigir-se à minhalma, enchendo-me o pen­samento de prodigiosa harmonia.

A vida espiritual, inexprimível e bela, abrira-me os pórticos resplandecentes. Até então, vivera em “Nosso Lar” como hóspede enfermo de um palácio brilhante, tão extremamente preocupado comigo mesmo, que me tornara incapaz de anotar deslumbramentos e maravilhas.

A conversação espiritualizante tornara-se-me indispensável.

Aprazia-me, antigamente, torturar a própria alma com as reminiscências da Terra. Estimava as narrativas dramáticas de certos companheiros de luta, lembrando o meu caso pessoal e embriagando-me nas perspectivas de me agarrar, novamente, à parentela do mundo, valendo-me de laços infe­riores. Mas agora... perdera totalmente a paixão pelos assuntos de ordem menos digna. As próprias descrições dos enfermos, nas Câmaras de Retifica­ção, figuravam-se-me desprovidas de maior inte­resse. Não mais desejava informar-me da proce­dência dos infelizes, não indagava de suas aventuras nas zonas mais baixas. Buscava irmãos necessita­dos. Desejava saber em que lhes poderia ser útil.

Identificando essa profunda transformação, fa­lou-me Narcisa certo dia:

— André, meu amigo, você vem fazendo a renovação mental. Em tais períodos, extremas dificuldades espirituais nos assaltam o coração. Lem­bre-se da meditação no Evangelho de Jesus. Sei que você experimenta intraduzível alegria ao con­tacto da harmonia universal, após o abandono de suas criações caprichosas, mas reconheço que, ao lado das rosas do júbilo, defrontando os novos caminhos que se descerram para sua esperança, há espinhos de tédio nas margens das velhas estradas Inferiores que você vai deixando para trás. Seu coração é uma taça iluminada aos raios do alvorecer divino, mas vazia dos sentimentos do mundo, que a encheram por séculos consecutivos.

Não poderia, eu mesmo, formular tão exata definição do meu estado espiritual.

Narcisa tinha razão. Suprema alegria inunda­va-me o espírito, ao lado de incomensurável sensação de tédio, quanto às situações da natureza inferior. Sentia-me liberto de pesados grilhões, po­rém, não mais possuia o lar, a esposa, os filhos amados. Regressava freqüentemente ao círculo do­méstico e aí trabalhava pelo bem de todos, mas sem qualquer estimulo. Minha devotada amiga acer­tara. Meu coração era bem um cálice luminoso, porém, vazio. A definição comovera-me.

Vendo-me as lágrimas silenciosas, Narcisa acen­tuou:

— Encha sua taça nas águas eternas daquele que é o Doador Divino. Além disso, André, todos nós somos portadores da planta do Cristo, na terra do coração. Em períodos como o que você atra­vessa, há mais facilidade para nos desenvolvermos com êxito, se soubermos aproveitar as oportuni­dades. Enquanto o espírito do homem se engolfa apenas em cálculos e raciocínios, o Evangelho de Jesus não lhe parece mais que repositório de ensi­namentos comuns; mas, quando se lhe despertam os sentimentos superiores, verifica que as lições do Mestre têm vida própria e revelam expressões desconhecidas da sua inteligência, à medida que se esforça na edificação de si mesmo, como instru­mento do Pai. Quando crescemos para o Senhor, seus ensinos crescem igualmente aos nossos olhos. Vamos fazer o bem, meu caro! Encha seu cálice com o bálsamo do amor divino. Já que você pres­sente os raios da alvorada nova, caminhe confiante para o dia!...

E, conhecendo meu temperamento de homem, amante do serviço movimentado, acrescentou, ge­nerosa:

— Você tem trabalhado bastante aqui nas Câ­maras, onde me preparo, por minha vez, conside­rando o futuro próximo, na carne. Não poderei, portanto, acompanhá-lo, mas creio deve você apro­veitar os novos cursos de serviço, instalados no Ministério da Comunicação. Muitos companheiros nossos habilitam-se a prestar concurso na Terra, nos campos visíveis e invisíveis ao homem, acom­panhados, todos eles, por nobres instrutores. Po­deria você conhecer experiências novas, aprender muito e cooperar com excelente ação individual. Porque não tenta?

Antes que pudesse agradecer o alvitre valioso, Narcisa foi chamada ao interior das Câmaras, a serviço, deixando-me dominado por esperanças di­ferentes de quantas abrigara até então, relativa­mente às minhas tarefas.


2

Aniceto

Comunicando meus novos propósitos a Tobias, verifiquei a satisfação que lhe transpareceu do olhar.

— Fique tranqüilo — disse, bondoso —, você possui a quantidade necessária de horas de traba­lho para justificar o pedido. Temos, por nossa vez, grande número de colegas na Comunicação. Não será difícil localizá-lo com instrutores amigos. Co­nhece o nosso estimado Aniceto?

— Não tenho esse prazer.

— É antigo companheiro de serviço — conti­nuou informando, amável — e esteve conosco na Regeneração, algum tempo. Em seguida, devotou-se a tarefas sacrificiais no Ministério do Auxílio e, hoje, é instrutor competente na Comunicação, onde vem prestando concurso respeitável. Conver­sarei, a respeito, com o Ministro Genésio. Não te­nha dúvidas. Seu desejo, André, é muito nobre aos nossos olhos.

O prestimoso companheiro deixou-me num mar de contentamento indefinível.

Comecei a compreender o valor do trabalho. A amizade de Narcisa e Tobias era tesouro de ina­preciável grandeza, que o espírito de serviço me havia descortinado ao coração.

Novo setor de luta desdobrar-se-ia à minhal­ma. Não deveria perder a oportunidade. “Nosso Lar” estava cheio de entidades ansiosas por aqui­sições dessa natureza. Não seria justo entregar-me, de boa vontade, ao novo aprendizado? Além disso, certo da minha volta à carne, em futuro talvez não distante, a providência constituiria realização de profundo interesse ao meu aproveitamento geral.

Misteriosa alegria dominava-me todo, sublima­da esperança iluminava-me os sentimentos. Aquele desejo ardente de colaborar em benefício dos ou­tros, que Narcisa me acendera no Intimo, parecia encher, agora, a taça vazia do meu coração.

Trabalharia, sim. Conheceria a satisfação dos cooperadores anônimos da felicidade alheia. Pro­curaria a prodigiosa luz da fraternidade, através do serviço às criaturas.

A noite, fui procurado por Tobias, sempre ge­neroso, trazendo-me a confortadora aquiescência do Ministro Genésio.

Com sorrisos afetuosos, convidou-me a acom­panhá-lo. Conduzir-me-ia à presença de Aniceto, para conversarmos relativamente ao assunto.

Emocionadíssimo segui para a residência da nova personagem que se ligaria fundamente à minha vida espiritual.

Aniceto, ao contrário de Tobias, não se con­sorciara em “Nosso Lar”. Vivia ao lado de cinco amigos que lhe foram discípulos na Terra, em edi­fício confortável, encravado entre árvores frondo­sas e tranqüilas, que pareciam postas ali para protegerem extenso e maravilhoso roseiral.

Recebeu-nos com extrema gentileza, o que me causou excelente impressão. Aparentava ele a cal­ma refletida do homem que chegou à idade madu­ra, sem fantasias da mocidade inexperiente. Em­bora lhe transparecesse muita energia no rosto, revelava o otimismo sadio do coração cheio de ideais sacrossantos. Muito sereno, recebeu todas as alegações do meu benfeitor, dirigindo-me, de quan­do em vez, olhares amistosos e indagadores.

Tobias falou longamente, comentando minha posição de ex-médico no plano terráqueo, agora em reajustamento de valores no plano espiritual.

Depois de examinar-me com atenção, o orien­tador aduziu:

— Não há o que embargar, meu prezado To­bias. No entanto, é preciso reconhecer que a solução depende do candidato. Sabe você que estamos aqui na Instituição do Homem Novo.

— André está pronto e disposto — adiantou o amigo, carinhosamente.

Aniceto fixou em mim o olhar penetrante e advertiu:

— Nosso serviço é variado e rigoroso. O de­partamento de trabalho, afeto à nossa responsabi­lidade, aceita sômente os cooperadores interessados na descoberta da felicidade de servir. Comprome­temo-nos, mütuamente, a calar toda espécie de re­clamação. Ninguém exige expressão nominal nas obras úteis realizadas, e todos respondem por qual­quer erro cometido. Achamo-nos, aqui, num curso de extinção das velhas vaidades pessoais, trazidas do mundo carnal. Dentro do mecanismo hierár­quico de nossas obrigações, interessazno-nos tão somente pelo bem divino. Consideramos que toda possibilidade construtiva vem de nosso Pai e esta convicção nos auxilia a esquecer as exigências des­cabidas de nossa personalidade inferior.

Identificando-me a surpresa, Aniceto esboçou um gesto significativo e continuou:

— Nos trabalhos de emergência, destinados àpreparação de colaboradores ativos, tenho um qua­dro suplementar de auxiliares, constante de cinquen­ta lugares para aprendizes. No momento, disponho de três vagas. Há intensa atividade de instrução, necessária a servidores que cooperarão em socor­ros urgentes, na Terra. Orientadores há que se fazem acompanhar, nos serviços da crosta, por todo o pessoal em aprendizado, mas eu adoto processo diferente. Costumo dividir a classe em grupos es­pecializados, de acordo com a profissão familiar aos estudantes, para melhor aproveitamento no preparo e na prática. Tenho, presentemente, um sacerdote católico-romano, um médico, seis enge­nheiros, quatro professores, quatro enfermeiras, dois pintores, onze irmãs especializadas em traba­lhos domésticos e dezoito operários diversos. Em “Nosso Lar”, a ação que nos compete é desdobrada de maneira coletiva; mas, nos dias de aplicação na crosta terrestre, não me faço seguido de todos. Naturalmente, não se negará ao engenheiro, ou ao operário, o ensejo de aquisição de conhecimentos outros, que transcendem a paisagem de realizações que lhes cabem; mas, tais manifestações devem constar do quadro de esforços espontâneos, no tempo vasto que cada qual aufere para descan­so e entretenimento. Considerando, pois, o serviço atual, temos interesse em aproveitar as horas no limite máximo, não só em beneficio dos que neces­sitam de nosso concurso fraternal, como também a favor de nós mesmos, no que toca à eficiência.

Ponderei, admirado, o curioso processo, enquan­to o orientador fazia longa pausa.

Após mergulhar toda a atenção em mim, como se desejasse perceber o efeito de suas palavras, Aniceto continuou:

- Este método não visa apenas a criar obri­gações para os outros. Aqui, como na Terra, quem alcança a melhor porção, nas aulas e demonstrações, não é prôpriamente o discípulo e sim o instrutor, que enriquece observações e intensifica experiên­cias. Quando o Ministro Espiridião me chamou a exercer o cargo, aceitei-o sob a condição de não perder tempo na melhoria e educação de mim mes­mo. Desse modo, não preciso alongar-me noutras considerações. Creio haver dito o bastante. Se está, portanto, disposto, não posso recusar-me a aceitá-lo.

— Compreendo seus nobres programas — res­pondi, comovido —, será honra para mim a possi­bilidade de acompanhá-lo e receber suas determi­nações de serviço.

Aniceto esboçou a expressão fisionômica de quem atinge a solução desejada, e concluiu:

— Pois bem; poderá começar amanhã.

E, dirigindo-se a Tobias, acrescentou:

— Encaminhe o nosso amigo, amanhã cedo, ao Centro de Mensageiros. Lá estaremos em estu­do ativo e providenciarei para que André seja boni­ficado pelas tabelas da Comunicação.

Agradecemos, satisfeitos e, logo em seguida a Tobias, despedi-me, alimentando novas esperanças.


3

No Centro de Mensageiros

No dia seguinte, após ouvir longas pondera­ções de Narcisa, demandei o Centro de Mensageiros, no Ministério da Comunicação. Acompanhava-me o prestimoso Tobias, não obstante os imensos tra­balhos que lhe ocupavam o circulo pessoal.

Deslumbrado, atingi a -série de majestosos edi­fícios de que se compõe a sede da instituição. Julguei encontrar algumas universidades reunidas, tal a enorme extensão deles. Pátios amplos, povoados de arvoredo e jardins, convidavam a subli­mes meditações.

Tobias arrancou-me do encantamento, excla­mando:

— O Centro é muito vasto. Atividades com­plexas são desempenhadas neste departamento de nossa colônia espiritual. Não creia esteja resumida a instituição nos edifícios sob nossos olhos. Temos, nesta parte, tão sômente a administração central e alguns pavilhões destinados ao ensino e à prepa­ração em geral.

— Mas esta organização imensa restringe-se ao movimento de transmissão de mensagens? —perguntei, curioso.

O companheiro sorriu significativamente e es­clareceu:

— Não suponha se encontre aqui localizado o serviço de correio, simplesmente. O Centro pre­para entidades a fim de que se transformem em cartas vivas de socorro e auxílio aos que sofrem no Umbral, na Crosta e nas Trevas. Acreditaria, por­ventura, que tanto trabalho se destinasse apenas a mera movimentação de noticiário? Amplie suas vis­tas. Este serviço é a cópia de quantos se vêm fazen­do nas mais diversas cidades espirituais dos planos superiores. Preparam-se aqui numerosos compa­nheiros para a difusão de esperanças e consolos, instruções e avisos, nos diversos setores da evo­lução planetária. Não me refiro tão só a emissá­rios invisíveis. Organizamos turmas compactas de aprendizes para a reencarnação. Médiuns e dou­trinadores saem daqui às centenas, anualmente. Tarefeiros do conforto espiritual encaminham-Se para os círculos carnais, em quantidade considerá­vel, habilitados pelo nosso Centro de Mensageiros.

— Que me diz? — interroguei, surpreso. — Se­gundo seus informes, os trabalhos de esclareci­mento espiritual devem estar muitíssimo adiantados no mundo!...

Fixou Tobias expressão singular, sorriu tran­qüilamente e explicou:

— Você não ponderou, todavia, meu caro An­dré, que essa preparação não constitui, ainda, a realização prôpriamente dita. Saem milhares de mensageiros aptos para o Serviço, mas são muito raros os que triunfam. Alguns conseguem execu­ção parcial da tarefa, outros muitos fracassam de todo. O serviço legítimo não é fantasia. É es­forço sem o qual a obra não pode aparecer nem prevalecer. Longas fileiras de médiuns e doutrinadores para o mundo carnal partem daqui, com as necessárias instruções, porque os benfeitores da Espiritualidade Superior, para intensificarem a redenção humana, precisam de renúncia e de altruís­mo. Quando os mensageiros se esquecem do espí­rito missionário e da dedicação aos semelhantes, costumam transformar-se em instrumentos inúteis. Há médiuns e mediunidade, doutrinadores e dou­trina, como existem a enxada e os trabalhadores. Pode a enxada ser excelente, mas, se falta espírito de serviço no cultivador, o ganho da enxada será inevitavelmente a ferrugem. Assim acontece com as faculdades psíquicas e com os grandes conhe­cimentos. A expressão mediúnica pode ser riquís­sima; entretanto, se o dono não consegue olhar além dos interesses próprios, fracassará fatalmen­te na tarefa que lhe foi conferida. Acredite, meu caro, que todo trabalho construtivo tem as bata­lhas que lhe dizem respeito. São muito escassos os servidores que toleram as dificuldades e reveses das linhas de frente. Esmagadora percentagem permanece a distância do fogo forte. Trabalhado­res sem conta recuam quando a tarefa abre opor­tunidades mais valiosas.

Algo impressionado, considerei.

— Isto me surpreende sobremaneira. Não su­punha fôssem preparados, aqui, determinados men­sageiros para a vida carnal.

— Ah! meu amigo — falou Tobias sorriden­te —, poderia você admitir que as obras do bem esti­vessem circunscritas a simples operações automá­ticas? Nossa visão, na Terra, costuma viciar-se no círculo dos cultos externos, na atividade religiosa. Cremos, por lá, resolver todos os problemas pela atitude suplicante. Entretanto, a genuflexão não soluciona questões fundamentais do espírito, nem a mera adoração à Divindade constitui a máxima edificação. Em verdade, todo ato de humildade e amor é respeitável e santo, e, incontestàvelmente, o Senhor nos concederá suas bênçãos; no entanto, é imprescindível considerar que a manutenção e limpeza do vaso, para recolhê-las, é dever que nos assiste. Não preparamos, pois, neste Centro, simples postalistas, mas espíritos que se transformem em cartas vivas de Jesus para a Humanidade encarnada. Pelo menos, este e o programa de nossa administração espiritual...

Calei, emocionado, ponderando a grandeza dos ensinamentos. Meu companheiro, após longa pau­sa, prosseguiu observando:

— Raros triunfam, porque quase todos esta­mos ainda ligados a extenso pretérito de erros criminosos, que nos deformaram a personalidade. Em cada novo ciclo de empreendimentos carnais, acreditamos muito mais em nossas tendências in­feriores do passado, que nas possibilidades divinas do presente, complicando sempre o futuro. E’ desse modo que prosseguimos, por lá, agarrados ao mal e esquecidos do bem, chegando, por vezes, ao dis­parate de interpretar dificuldades como punições, quando todo obstáculo traduz oportunidade verda­deiramente preciosa aos que já tenham “olhos de ver”.

A essa altura, alcançamos enorme recinto.

Centenas de entidades penetravam no vasto edifício, cujas escadarias galgamos em animada conversação.

Os aspectos do maravilhoso átrio impressio­navam pela imponente beleza. Espécies de flores, até então desconhecidas para mim, adornavam co­lunatas, espalhando cores vivas e delicioso perfume.

Quebrando-me o enlevo, Tobias explicou:

— As diversas turmas de aprendizes encami­nham-se às aulas. Procuremos Aniceto no departamento de instrutores.

Atravessamos galerias vastíssimas, sempre de­frontados por verdadeiras multidões de entidades que buscavam as aulas, em palestras vibrantes.

— Muito bem! — disse, alegre e bondoso —esperava o novo aluno, desde a manhãzinha.

E em virtude de Tobias alegar muita pressa, o nobre instrutor explicou:

— Doravante, André ficará aos meus cuida­dos. Volte tranqüilo.

Despedi-me do companheiro, comovidamente.

Notando-me o natural acanhamento, Aniceto determinou a um auxiliar de serviço:

— Chame o Vicente em meu nome.

E, voltando-se para mim, esclareceu:

— Até agora, Vicente é o meu único aprendiz médico. Vocês ficarão juntos, em vista da afinidade profissional.

Não haviam decorrido três minutos e tínhamos Vicente diante de nós.

— Vicente — falou Aniceto sem afetação —, André Luiz é nosso novo colaborador. Foi também médico nas esferas carnais. Creio, pois, que ambos se encontrarão à vontade, partilhando a mesma experiência.

O interpelado abraçou-me, demonstrando ex­trema generosidade, e, após encorajar-me com belas palavras de estimulo, perguntou ao nosso orien­tador:

— Quando deveremos procurá-lo para os es­tudos de hoje?

Aniceto pensou um instante e respondeu:

— Esclareça ao novo candidato os nossos re­gulamentos e venham juntos para as instruções, após o meio-dia.


4

O caso Vicente

Impossível traduzir meu contentamento com a nova companhia.

Vicente, semblante muito calmo, olhar inteli­gente e lúcido, irradiava carinho e bondade, sen­satez e compreensão.

Disse-me de sua alegria por haver encontrado um companheiro médico, alojou-me conveniente-mente junto dele, demonstrando extrema genero­sidade fraternal.

Era o primeiro colega na profissão, igualmente recém-chegado das esferas da Crosta, de quem me aproximava de modo direto.

Trocamos idéias largamente sobre as surpre­sas que nos defrontavam. Comentamos as dificuldades oriundas da ilusão terrestre, a miopia da pequena ciência, os problemas profundos e seduto­res da medicina espiritual.

Vicente, conquanto não houvesse feito ainda qualquer visita ao plano dos encarnados, em cará­ter de serviço, admirava Aniceto extraordinaria­mente, e punha-me ao corrente dos estudos valiosos a que se entregava junto dele.

Estava cheio de conceitos entusiásticos. Em pouco mais de uma hora, nossa intimidade semelliava-se ao sentimento de dois irmãos unidos, des­de muito, por laços espirituais, O novo companheiro conquistara-me infinita confiança.

Evidenciando mínia delicadeza, indagou da mi­nha posição perante os parentes terrestres, ao que respondi com a história resumida de minha sin­gular aventura, ao conhecer as segundas núpcias de minha viúva. Imprimi toda a ênfase possível ao meu relatório verbal, sensibilizando-me, profunda­mente, no curso da narrativa. Em cada pormenor culminante dos fatos, detinha-me de propósito, sa­lientando meus velhos sofrimentos e relacionando dissabores que me pareciam insuperáveis.

Vicente ouviu silencioso, sorrindo a intervalos.

Quando terminei a comovida exposição, ele pôs­

-me a destra no ombro e murmurou:

— Não se julgue desventurado e incompreen­dido. Saiba, meu caro André, que você foi muitís­simo feliz.

— Como assim?

— Sua Zélia respeitou o companheiro até ao fim, e o segundo matrimônio, em tais circunstân­cias, não é de admirar. No meu caso, porém, a coisa foi muito pior.

E, dado meu justo espanto, o novo amigo con­tinuou:

— Explico-me.

Meditou alguns instantes, como quem alinhava reminiscências, e prosseguiu:

— Não pode você imaginar como foi intenso o sonho de amor do meu casamento. Logo após a aquisição do diploma profissional, aos vinte e cin­co anos, esposei Rosalinda, exultante de ventura. Não levava à esposa tão sômente uma situação material confortadora e sólida, no terreno financeiro, mas também os meus tesouros de afeto e devotamento. Minha felicidade não tinha limites. Em pouco tempo, dois filhinhos enriqueceram-me o lar ditoso. Meu bem-estar era inexprimível. Em virtude das reservas bancárias, não me especializei na clínica, consagrando-me, todavia, apaixonada­mente, ao laboratório. Atendendo aos meus pendores, não me foi difícil atrair a confiança de numerosos colegas e vários cenlros de estudos, multiplicando pesquisas e resultados brilhantes. E Rosalinda era a minha primeira e melhor colaboradora. De quando em quando, notava-lhe o en­fado no trato com os tubos de ensaio, mas minha esposa sabia então calar as contrariedades peque­ninas, a favor da nossa felicidade doméstica. Pa­recia compreender-me integralmente. Era, aos meus olhos, a mãe dedicada e companheira sem defeitos.

Contávamos dez anos de ventura conjugal, quando meu irmão Eleutério, advogado, solteiro, algo mais velho que eu, deliberou localizar-se jun­to de nós. Rosalinda foi inexcedível em atenções, considerando que se tratava de pessoa de minha família. Eleutério entrou em nossa casa como ir­mão. Embora residisse em hotel, compartilhava dos nossos serões caseiros, sempre bem posto e inte­ressado em agradar.

Observei, desde então, que minha mulher se modificava pouco a pouco. Exigiu fôsse contratada uma auxiliar que a substituísse nos meus serviços, alegando que os nossos filhinhos não dis­pensavam assistência maternal, mais assídua. Anui, satisfeito. Tratava-se, afinal, de providência inte­ressante ao bem-estar de nossos filhos. Contudo, a transformação de Rosalinda assumiu caráter im­pressionante. Passou a não comparecer ao labo­ratório, onde tantas vezes nos abraçávamos, alegremente, ao vermos coroadas de êxito nossas pesquisas mais sérias. Preferia o cinema ou a estação de repouso, em companhia de Eleutério.

Isso me entristecia bastante, mas eu não po­deria desconfiar da conduta de meu irmão. Fôra sempre criterioso, em família, não obstante ousado e filaucioso nas atividades profissionais.

Minha vida doméstica, antes tão feliz, passou a ser de solidão assaz amarga, que eu tentava ilu­dir com o trabalho persistente e honesto.

Assim corriam as coisas, quando singular trans­formação me alterou a experiência. Pequena bor­bulha na fossa nasal, que nunca me trouxera in­cômodos de qualquer natureza, depois de levemente ferida, tomou caráter de extrema gravidade. Em poucas horas, declarou-se a septicemia. Reuniram-se colegas em verdadeira assembléia, junto de meu leito. Inúteis, todavia, todos os cuidados; anula­das as melhores expressões de assistência. Com­preendi que o fim se aproximava, rápido. Rosalin­da e Eleutério pareciam consternados e, até hoje, guardo a impressão de rever-lhes o olhar ansioso, no momento em que a neblina da morte me en­volvia os olhos materiais.

Nessa altura, Vicente fêz longo estacato, como a fixar reminiscências mais dolorosas, e continuou menos vivaz:

— Depois de algum tempo de tristes pertur­bações nas zonas inferiores, quando já me encontrava restabelecido, em “Nosso Lar”, certifiquei-me de toda a verdade. Voltando ao lar terreno, en­contrei a grande surpresa. Rosalinda. havia des­posado Eleutério em segundas núpcias.

— Como são idênticas as nossas histórias! —exclamei impressionado.

— Isso é que não — protestou a sorrir.

E continuou:

— Outra surpresa me dilacerava o coração. Sômente ao regressar ao lar, soube que fôra vítima de odioso crime. Meu próprio irmão inspirou a trama sutil e perversa. Minha mulher e ele apai­xonaram-se perdidamente um pelo outro e cederam a tentações inferiores. Não havia que recorrer a di­vórcio, e, mesmo que a legislação o facultasse, cons­tituiria um escândalo o afastamento de Rosalinda para unir-se, püblicamente, ao cunhado. Eleutério lembrou, porém, que possuíamos experiências de laboratório e sugeriu a Rosalinda a ideia de me aplicarem determinada cultura microbiana, que ele mesmo se incumbiria de obter, na primeira oportunidade. A pobre da companheira não vacilou, e, valendo-se do meu sono descuidado, introduziu na minúscula espinha nasal, algo ferida, o vírus des­truidor.

E aí tem você o meu caso naturalmente re­sumido.

Eu estava assombrado.

— E os criminosos? — perguntei.

Vicente sorriu ligeiramente e informou:

— Rosalinda e Eleutério vivem aparentemente felizes, são excelentes materialistas, por enquanto, e gozam, no mundo transitário, grande fortuna amoedada e alto conceito social.

— Mas... e a justiça? — indaguei, aterrado.

— Ora, André — esclareceu serenamente —, tudo vem a seu tempo, tanto no bem quanto no mal. Primeiro a semente, depois os frutos.

Percebendo-me, porém, as tristes impressões, Vicente concluiu:

— Não falemos mais nisto. Aproxima-se a hora da instrução. Atendamos às nossas necessidades essenciais, auxiliando os nossos amados, que ainda permanecem a distância, nos círculos terrestres. Não se impressione. A árvore, para produzir, não reclama as folhas mortas. Para nós, atualmente, meu amigo, o mal é simples resultado da ignorân­cia e nada mais.


5

Ouvindo instruções

No grande salão, Aniceto esperava-nos, aco­lhedor.

Fileiras enormes de assistentes enchiam o es­paço vastíssimo.

Homens e mulheres, aparentando idades diver­sas, permaneciam recolhidos, a demonstrar, porém, expectativa e interesse.

— Hoje — explicou o nosso orientador, diri­gindo-se a Vicente de maneira particular — teremos a palavra de Telésforo, antigo lidador da Comunicação, que pediu a presença de todos os aprendizes do trabalho de intercâmbio entre nós e os irmãos encarnados.

Sentamo-nos, confortàvelmente, aguardando, por nossa vez.

Dai a minutos, Telésforo penetrava no recin­to, sob harmoniosas vibrações de simpatia geral.

Aniceto e outros instrutores instalaram-se ao lado dele, em torno da mesa nobre, onde se loca­lizava a direção da assembléia.

Após saudar a assistência numerosíssima, for­mulando votos de paz e incentivando-nos aos tes­temunhos redentores, Telésforo atingiu o assunto principal que o levam até ali.

— Agora — disse com autoridade sem afe­tação — conversaremos sobre as necessidades da representação de nossa colônia nos trabalhos ter­restres. Aqui se encontram companheiros fracassados nas intenções mais nobres e irmãos outros desejosos de colaborar nas tarefas que condizem com as nossas responsabilidades atuais. Referi­mo-nos às laboriosas atividades da Comunicação, no plano carnal. Vemos nesta reunião grande par­te dos cooperadores de “Nosso Lar”, que faliram nas missões da mediunidade e da doutrinação, bem como outros muitos colegas que se preparam para provas dessa natureza, nos círculos da Crosta.

Nossa repartição vem promovendo grande mo­vimento de auxílio a irmãos encarnados e desen­carnados, que se revelam incapazes de qualquer ação, além da superfície terrestre.

Nossa tarefa é enorme - Precisamos dissemi­nar ensinamentos novos, relativamente à preparação dos que habitam nossa colônia, considerando os esforços e realizações do presente e do porvir.

É indispensável socorrer os que enfrentam, co­rajosos, as profundas transformações do planeta.

As transições essenciais da existência na Terra encontram a maioria dos homens absolutamente distraídos das realidades eternas. A mente huma­na abre-se, cada vez mais, para o contacto com as expressões invisíveis, dentro das quais funciona e se movimenta. Isto é uma fatalidade evolutiva. Desejamos e necessitamos auxiliar as criaturas ter­restres; todavia, contra a extensão de nosso con­curso fraterno, operam dilatadas correntes de in­compreensão. Não relacionamos apenas a ação da ignorância e da perversidade. Agem, contradito­riamente, nesse particular, grande número de for­ças do próprio espiritualismo. Combatem-nos al­gumas escolas cristãs, como se não colaborássemoS com o Mestre Divino. A Igreja Romana classifi­ca-nos a cooperação como diabólica. A Reforma Luterana, em seus matizes variados, persegue-nos a colaboração amistosa. E há correntes espiritualistas de elevado teor educativo, que nos malsinam a influência, por quererem o homem aperfeiçoado de um dia para outro, rigorosamente redimido a golpe instantâneo da vontade, sem realização metódica.

No campo de nosso conhecimento da vida, não podemos condená-los pelo desentendimento atual. O catolicismo romano tem suas razões ponderá­veis; o protestantismo é digno de nosso acatamen­to; as escolas espiritualistas possuem notáveis edi­ficações. Toda expressão religiosa é sagrada, todo movimento superior de educação espiritual é santo em si mesmo. Temos, então, diante de nós, a in­compreensão dos bons, que constitui dolorosa pro­va para todos os trabalhadores sinceros, porque, afinal, não estamos fazendo obra individual e sim promovendo movimento libertador da consciência humana, a favor da própria idéia religiosa do mundo.

Sacerdotes e intérpretes dos núcleos organiza­dos da religião e da filosofia, não percebem ainda que o espírito da Revelação é progressivo, como a alma do homem. As concepções religiosas se elevam com a mente da criatura. Muitas Igrejas não compreendem, por enquanto, que não devemos espalhar a crença nos tormentos eternos para os desventurados, e sim a certeza de que há homens infernais criando infernos para si mesmos.

Não podemos, porém, perder tempo no exame da teimosia alheia. Temos serviços complexos e dilatados. E, como dizíamos, a Humanidade terre­na aproxima-se, dia a dia, da esfera de vibrações dos invisíveis de condição inferior, que a rodeia em todos os sentidos. Mas, segundo reconhecemos, esmagadora percentagem de habitantes da Terra não se preparou para os atuais acontecimentos evo­lutivos. E os mais angustiosos conflitos se veri­ficam no sendal humano. A Ciência progride ver­tiginosamente no planeta, e, no entanto, à medida que se suprimem sofrimentos do corpo, multipli­cam-se aflições da alma. Os jornais do mundo estão cheios de notícias maravilhosas, quanto ao progresso material. Segredos sublimes da Natureza são surpreendidos nos domínios do mar, da terra e do ar; mas a estatística dos crimes huma­nos é espantosa. Os assassínios da guerra, apre­sentam requintes de perversidade muito além dos que foram conhecidos em épocas anteriores. Os homicídios, os suicídios, as tragédias conjugais, os desastres do sentimento, as greves, os impulsos re­volucionários da indisciplina, a sêde de experimen­tação inferior, a inquietação sexual, as moléstias desconhecidas, a loucura, invadem os lares huma­nos. Não existe em país algum preparação espiri­tual bastante para o conforto físico. Entretanto, esse conforto tende a aumentar naturalmente. O homem dominará, cada vez mais, a paisagem ex­terior que lhe constitui moradia, embora não se conheça a si mesmo. Atendido, porém, o corpo re­velará as necessidades da alma e vemos agora a criatura terrestre assoberbada de problemas gra­ves, não só pelas deficiências de si própria, senão também pela espontânea aproximação psíquica com a esfera vibratória de milhões de desencarnados, que se agarram à Crosta planetária, sequiosos de renovar a existência que menosprezaram, sem maior consideração aos desígnios do Eterno.

A rigor, também nós compreendemos que os serviços da Comunicação, no mundo, deveriam rea­llzar-se apenas no plano da inspiração divina para os círculos terrenos, do superior para o inferior; mas, como agir diante de milhões de enfermos e criminosos nas zonas visíveis e invisíveis da expe­riência humana? Pelo simples culto externo, como pretende a Igreja de Roma? Pelo ato de fé, ex­clusivamente, como espera a Reforma Protestante? Por mera afirmação da vontade, conforme ponti­ficam certas escolas espiritualistas? Não podemos, no entanto, circunscrever apreciações, na visão uni­lateral do problema. Concordamos que a reverên­cia ao Pai, a fé e a vontade são expressões básicas da realização divina no homem, mas não podemos esquecer que o trabalho é necessidade fundamen­tal de cada espírito. Que outros irmãos nossos per­severem, tão sõmente, nas especulações teológicas; encaremoS, porém, os serviços do Senhor, como se faz indispensável.

A Humanidade terrena, atualmente, é como um grande organismo coletivo, cujas células, que são as personalidades humanas, se envolvem no dese­quilíbrio entre si, em processo mundial de reajus­tamento e redenção.

Quantos cooperam conosco, vêem a extensão dos cipoais em que se debate a mente humana. Criminosos agarram-se a criminosos, doentes asso­ciam-se a doentes. Precisamos oferecer, no mundo, os instrumentos adequados às retificações espiri­tuais, habilitando nossos irmãos encarnados a um maior entendimento do Espírito do Cristo. Para consegui-lo, todavia, necessitamos de colaboradores fiéis, que não cogitem de condições, compensações e discussões, mas que se interessem pela sublimi­dade do sacrifício e de renunciação com o Senhor.

A essa altura, Telésforo interrompeu a lição em curso, e, fixando o olhar percuciente na assembléia, tornou em voz mais alta:

— Quem não deseje servir, procure outros gêneros de tarefa. A Comunicação não comporta perda de tempo nem experimentação doentia, sem grave prejuízo dos cooperadores incautos. Noutros Ministérios, a designação de trabalhadores define, com precisão, todos os que colaboram com o Di­vino Mestre. Aqui, porém, acima de trabalhadores, precisamos de servidores que atendam de boa von­tade.

Nesse instante, em vista doutra longa pausa, Identifiquei a forte impressão dos ouvintes, que se entreolhavam com inexprimível espanto.


6

Advertências profundas

— Irmãos nossos — prosseguiu Telésforo, sob o calor de sagrada inspiração —, fazem-se ouvir na Terra gritos comovedores de sofrimento. Necessi­tamos de servidores que desejem integrar-se na escola evangélica da renúncia.

Desde as primeiras tarefas do Espiritismo re­novador, “Nosso Lar” tem enviado diversas turmas ao trabalho de disseminação de valores educativos. Centenas de companheiros partem daqui anualmen­te, aliando necessidades de resgate ao serviço re­dentor; mas ainda não conseguimos os resultados desejáveis. Alguns alcançaram resultados parciais nas tarefas a desenvolver, mas a maioria tem fra­cassado ruidosamente. Nossos institutos de socor­ro debalde movimentam medidas de assistência in­dispensável. Raríssimos conquistam algum êxito nos delicados misteres da mediunidade e ‘da dou­trinação.

Outras colônias de nossa esfera providenciam tarefas da mesma natureza, mas pouquíssimos são os que se lembram das realidades eternas, no “outro lado do véu”... A ignorância domina a maioria das consciências encarnadas. E a ignorância é mãe das misérias, das fraquezas, dos crimes. Grandes instrutores, nos fluidos da carne, amedrontam-se por sua vez, diante dos atritos humanos, e se re­colhem, indevidamente, na concepção que lhes é própria. Esquecem-se de que Jesus não esperou que os homens lhe atingissem as glórias magnificentes e que, ao invés, desceu até ao plano dos ho­mens para amar, ensinar e servir. Não exigiu que as criaturas se fizessem imediatamente iguais a Ele, mas fêz-se como os homens, para ajudá-los na su­bida áspera.

E, com profundo brilho no olhar, Telésforo acentuou, depois de pequeno Intervalo:

— Se o Mestre Divino adotou essa norma, que dizer das nossas obrigações de criaturas falidas?

Abstraindo-nos das necessidades imensas de outros grupos, procuremos identificar as falhas existentes naqueles que nos são afins.

Em derredor de nós mesmos, os laços pessoais constituem extenso campo de atividade para o tes­temunho.

Cesse, para nós outros, a concepção de que a Terra é o vale tenebroso, destinado a quedas lamentáveis, e agasalhemos a certeza de que a es­fera carnal é uma grande oficina de trabalho reden­tor. Preparemo-nos para a cooperação eficiente e indispensável. Esqueçamos os erros do passado e lembremo-nos de nossas obrigações fundamentais.

A causa geral dos desastres mediúnicos é a ausência da noção de responsabilidade e da recordação do dever a cumprir.

Quantos de vós fôstes abonados, aqui, por generosos benfeitores que buscaram auxiliar-vos, condoídos de vosso pretérito cruel? Quantos de vós partistes, entusiastas, formulando enormes promes­sas? Entretanto, não soubestes recapitular digna-mente, para aprender a servir, conforme os desíg­nios superiores do Eterno. Quando o Senhor vos enviava possibilidades materiais para o necessário, regressáveis à ambição desmedida; ante o acrés­cimo de misericórdia do labor intensificado, agar­rastes a idéia da existência cômoda; junto às ex­periências afetivas, preferistes os desvios sexuais; ao lado da família, voltastes à tirania doméstica, e aos interesses da vida eterna sobrepusestes as sugestões inferiores da preguiça e da vaidade. Des­tes-vos, na maioria, à palavra sem responsabilidade e à indagação sem discernimento, amontoando ati­vidades inúteis. Como médiuns, muitos de vós pre­feríeis a inconsciência de vós mesmos; como dou­trinadores, formuláveis conceitos para exportação, jamais para uso próprio.

Que resultado atingimos? Grandes massas ba­tem às fontes do Espiritismo sagrado, tão só no propósito de lhe mancharem as águas. Não são procuradores do Reino de Deus os que lhe forçam, desse modo, as portas, e sim caçadores dos interes­ses pessoais. São os sequiosos da facilidade, os amigos do menor esforço, os preguiçosos e delin­qUentes de todas as situações, que desejam ouvir os Espíritos desencarnados, receosos da acusação que lhes dirige a própria consciência. O fel da dúvida invade o bálsamo da fé, nos corações bem intencionados. A sêde de proteção indevida azor­raga os seguidores da ociosidade. A ignorância e a maldade entregam-se às manifestações Inferiores da magia negra.

Tudo porque, meus irmãos? Porque não temos sabido defender o sagrado depósito, por termos esquecido, em nossos labores carnais, que Espiri­tismo é revelação divina para a renovação funda­mental dos homens. Não atendemos, ainda, como se faz indispensável, à construção do “Reino de Deus” em nós.

Contudo, não abandonemos nossos deveres a meio da tarefa. Voltemos ao campo, retificando as semeaduras. O Ministério da Comunicação vem incentivando esse movimento renovador. Necessi­tamos de servidores de boa vontade, leais ao espírito da fé. Não serão admitidos os que não desejarem conhecer a glória oculta da cruz do testemunho, nem atendem aqui os que se aproximem com obje­tivos diferentes...

Aqui estamos todos, companheiros da Comu­nicação, endividados com o mundo, mas esperan­çosos de êxito em nossa tarefa permanente. Le­vantemos o olhar. O Senhor renova diariamente nossas benditas oportunidades de trabalho, mas, para atingirmos os resultados precisos, é impres­cindível sejamos seguidores da renunciação ao in­ferior. Nenhum de nós, dos que aqui nos encon­tramos, está livre do ciclo de reencarnações na Crosta. Todos, portanto, somos sequiosos de Vida Eterna. Não olvidemos, desse modo, o Calvário de Nosso Senhor, convictos de que toda saida dos planos mais baixos deve ser uma subida para a esfera superior. E ninguém espere subir, espiri­tualmente, sem esforço, sem suor e sem lágrimas!...

Nesse momento, cessou a preleção de Telés­foro, que abençoou a assembléia, mostrando o olhar Infinitamente brilhante e aceitando, em seguida, o braço de Aniceto, para afastar-se.

Debaixo de profunda impressão, em face das Incisivas declarações do instrutor, observei que nu­merosos circunstantes choravam em silêncio.

Ao meu olhar interrogativo, Vicente explicou:

— São servidores fracassados.

Nesse instante, Telêsforo e o nosso orientador postaram-se junto de nós.

Duas senhoras, de grave fisionomia, aproxima­ram-se respeitosamente e uma delas dirigiu-se a Aniceto, nestes termos:

— Desejávamos o obséquio de uma informa­ção concernente à próxima oportunidade de serviço que será concedida a Otávio.

— O Ministério prestará esclarecimentos —respondeu o interpelado, atencioso.

- Todavia — tornou a interlocutora —, ou­saria reiterar-lhe o pedido. E’ que Marina, grande amiga nossa, casada na Terra há alguns meses, prometeu-me cooperação para auxiliá-lo, e seria muito de meu agrado localizar, agora, o meu po­bre filho em novos braços maternais.

Aniceto esboçou um gesto de compreensão, sor­riu e esclareceu, sem afetação:

— Convém não estabelecer o plano por en­quanto, porque, antes de tudo, precisamos conhecer a solução do processo de médiuns fracassados, em que está ele envolvido. Sômente depois, minha irmã.

Volvi os olhos para o Vicente, sem ocultar a surpresa, mas, enquanto as senhoras se retiravam conformadas, Aniceto dirigia-nos a palavra:

— Tenho serviços imediatos, em companhia de Telésforo. Deixo-os, a todos, em estudos e obser­vações aqui no Centro de Mensageiros.

Retirou-se Aniceto com os maiores, e um com­panheiro declarou alegremente:

— Podemos conversar.

— Nosso orientador — explicou-me Vicente, solicito — considera trabalho útil toda conversa­ção sadia que nos enriqueça os conhecimentos e aptidões para o serviço. Pelas nossas palestras construtivas, portanto, receberemos também a re­muneração devida à cooperação normal.

Curioso e surpreendido, indaguei:

— E se eu tentasse voltar aos assuntos infe­riores da Terra, esquecendo a conversação edificante?

Vicente sorriu e retrucou:

— O prejuízo seria seu, porque aqui a palavra define o Espírito, e, se você fugisse à luz da palestra instrutiva, nossos orientadores conheceriam sua atitude imediatamente, porqüanto sua presença se tornaria desagradável e seu rosto se cobriria de sombra indefinível.


7

A queda de Otávio

A ausência de Aniceto deu ensejo a palestras interessantes.

Formaram-se grupos de conversação amiga.

Impressionado com as senhoras que haviam solicitado providências para Otávio, pedi a Vicente me apresentasse a elas, não que me movesse curio­sidade menos digna, mas desejo de alcançar novos valores educativos sobre a tarefa mediúnica, que a palavra de Telésforo me fizera sentir em tons diferentes.

O amigo atendeu de boamente.

Em breves momentos, não me achava tão só à frente das irmãs Isaura e Isabel, mas do próprio Otávio, um pálido senhor que aparentava quarenta anos.

— Também sou principiante aqui — expli­quei — e minha condição é a do médico falido nos deveres que o Senhor lhe confiou.

Otávio sorriu e respondeu:

— Possivelmente, o meu amigo terá a seu fa­vor o fato de haver ignorado as verdades eternas, no mundo. O mesmo não ocorre comigo, ai de mim! Não desconhecia o roteiro certo, que o Pai me designava para as lutas na Terra. Não pos­suía títulos oficializados de competência; entretan­to, dispunha de considerável cultura evangélica, coisa que, para a vida eterna, é de maior importância que a cultura intelectual, simplesmente con­siderada. Tive amigos generosos do plano superior, que se faziam visíveis aos meus olhos, recebi mensagens repletas de amor e sabedoria e, no en­tanto, cai mesmo assim, obedecendo à imprevidên­cia e à vaidade.

As observações de Otávio impressionavam-me vivamente. Quando no mundo, eu não tivera con­tacto especial com as escolas espiritistas e experi­mentava certa dificuldade para compreender tudo quanto ele desejava dizer.

— Ignorava a extensão das responsabilidades mediúnicas — respondi.

— As tarefas espirituais — tornou o inter­locutor, algo acabrunhado — ocupam-se de interesses eternos e daí a enormidade de minha falta. Os mordomos de bens da alma estão investidos de responsabilidades pesadíssimas. Os estudiosos, os crentes, os simpatizantes, no campo da fé, podem alegar ignorância e inibição; todavia, os sacerdotes não têm desculpa. E’ o mesmo que se verifica na tarefa mediúnica. Os aprendizes ou beneficiários, nos templos da Revelação nova, podem referir-se a determinados impedimentos; mas o missionário éobrigado a caminhar com um patrimônio de cer­tezas tais, que coisa alguma o exonera das culpas adquiridas.

— Mas, meu amigo — perguntei, assaz inipres­sionado —, que teria motivado seu martírio moral? Noto-o tão consciente de si mesmo, tão superior-mente informado sobre as leis da vida, que me custa acreditar se encontre necessitado de novas experiências nesse capítulo...

Ambas as senhoras presentes mostraram es­tranho brilho no olhar, enquanto Otávio respondia:

— Relatarei minha queda. Verá como perdi maravilhosa oportunidade de elevação.

E, após mais longa pausa, continuou, grave­mente:

- Depois de contrair dividas enormes na es­fera carnal, noutro tempo, vim bater às portas de “Nosso Lar”, sendo atendido por irmãos dedicados, que se revelaram incansáveis para comigo. Pre­parei-me, então, durante trinta anos consecutivos, para voltar à Terra em tarefa mediúnica, desejoso de saldar minhas contas e elevar-me alguma coisa. Não faltaram lições verdadeiramente sublimes, nem estímulos santos ao meu coração imperfeito. O Mi­nistério da Comunicação favoreceu-me com todas as facilidades e, sobretudo, seis entidades amigas movimentaram os maiores recursos em benefício do meu êxito. Técnicos do Auxílio acompanharam-me à Terra, nas vésperas do meu renascimento, entregando-me um corpo físico rigorosamente sa­dio. Segundo a magnanimidade dos meus benfei­tores daqui, ser-me-ia concedido certo trabalho de relevo, na esfera de consolação às criaturas. Per­maneceria junto das falanges de colaboradores en­carregados do Brasil, animando-lhes os esforços o atendendo a irmãos outros, ignorantes, perturbados ou infelizes. O matrimônio não deveria entrar na linha de minhas cogitações, não que o casamento possa colidir com o exercício da mediunidade, mas porque meu caso particular assim o exigia.

Nada obstante, solteiro, deveria receber, aos vinte anos, os seis amigos que muito trabalharam por mim, em “Nosso Lar”, os quais chegariam ao meu círcu­lo como órfãos. Meu débito para com essas enti­dades tornou-se muito grande e a providência não só constituiria agradável resgate para mim, como também garantia de triunfo pelo serviço de assis­tência a elas, o que me preservaria o coração de leviandades e vacilações, porqüanto o ganha-pão laborioso me compeliria a não aceder a sugestões inferiores nos domínios do sexo e das ambições incontidas. Ficou também assentado que minhas atividades novas começariam com muitos sacrifí­cios, para que o possível carinho de outrem não amolecesse a minha fibra de realização, e para que se não escravizasse minha tarefa a situações caprichosas do mundo, distantes dos desígnios de Jesus, e, sobretudo, para que fôsse mantida a im­pessoalidade do serviço. Mais tarde, então, com o correr dos anos de edificação, me enviariam de “Nosso Lar” socorros materiais, cada vez maiores, à medida que fosse testemunhando renúncia de mim mesmo, desprendimento das poases efêmeras, desin­teresse pela remuneração dos sentidos, de maneira a intensificar, progressivamente, a semeadura de amor confiada às minhas mãos.

Tudo combinado, voltei, não só prometendo fidelidade aos meus instrutores, como também hipotecando a certeza do meu devotamento às seis entidades amigas, a quem muito devo até agora.

Otávio, nesse momento, fêz uma pausa mais longa, suspirou fundamente, e prosseguiu:

— Mas, ai de mim, que olvidei todos os com­promissos! Os benfeitores de “Nosso Lar” localizaram-me ao lado de verdadeira serva de Jesus. Minha mãe era espiritista cristã desde moça, não obstante as tendências materialistas de meu pai, que era, todavia, um homem de bem. Aos treze anos fiquei órfão de mãe e, aos quinze, começaram para mim os primeiros chamados da esfera supe­rior. Por essa ocasião, meu pai contraiu segundas núpcias, e, apesar da bondade e cooperação que a madrasta me oferecia, eu me colocava num plano de falsa superioridade, a respeito dela. Em vão, minha genitora endereçou, do invisível, apelos sa­grados ao meu coração. Eu vivia revoltado, entre queixas e lamentaçôes descabidas. Meus parentes conduziram-me a um grupo espiritista de excelente orientação evangélica, onde minhas faculdades po­deriam ser postas a serviço dos necessitados e so­fredores; entretanto, faltavam-me qualidades de trabalhador e companheiro fiel. Minha negação em matéria de confiança nos orientadores espirituais e acentuado pendor para a crítica dos atos alheios compeliam-me a desagradável estacionamento. Os beneméritos amigos do invisível estimulavam-me ao serviço, mas eu duvidava deles com a minha vaidade doentia. E como prosseguissem os apelos sagrados, por mim interpretados como alucinações, procurei um médico que me aconselhou experiên­cias sexuais. Completara, então, dezenove anos e entreguei-me desenfreadamente ao abuso de facul­dades sublimes. Desejava conciliar, à força, o pra­zer delituoso e o dever espiritual, alheando-me, cada vez mais, dos ensinos evangélicos que os amigos da esfera superior nos ministravam. Tinha pouco mais de vinte anos, quando meu pai foi arrebatado pela morte. Com a triste ocorrência, ficavam na orfandade seis crianças desfavorecidas, porqüanto minha madrasta, ao se consorciar com meu geni­tor, lhe trouxera para a tutela três pequeninos. Em vão implorou-me socorro a pobre viúva. Nunca me dignei aceitar os encargos redentores que me estavam destinados. Após dois anos de segunda viuvez, minha desventurada madrasta foi recolhida a um leprosário. Afastei-me, então, dos pequenos órfãos, tomado de horror. Abandonei-os definiti­vamente, sem refletir que lançava meus credores generosos, de “Nosso Lar”, a destino incerto. Em seguida, dando largas à ociosidade, cometi uma ação menos digna e fui obrigado a casar-me pela violência. Mesmo assim, porém, persistiam os cha­mados do invisível, revelando-me a inesgotável mi­sericórdia do Altíssimo. Contudo, à medida que olvidava meus deveres, toda tentativa de realização espiritual figurava-seme mais difícil. E continuou a tragédia que inventei para meu próprio tormento. A esposa a que me ligara, tão sômente por ape­tites inconfessáveis, era criatura muito inferior àminha condição espiritual e atraiu uma entidade monstruosa, em ligação com ela, para tomar o pa­pel de meu filho. Releguei à rua seis carinhosas crianças, cuja convivência concorreria decisivamen­te para minha segurança moral, mas a companhei­ra e o filho, ao que me pareceu, incumbiram-se da vingança. Atormentaram-me ambos, até ao fim da existência, quando para aqui regressei, mal ten­do completado quarenta anos, roído pela sífilis, pelo álcool e pelos desgostos... sem nada haver feito para meu futuro eterno... Sem construir coi­sa alguma no terreno do bem...

Enxugou os olhos tímidos e concluiu:

Como vê, realizei todos os meus condená­veis desejos, menos os desejos de Deus. Foi por isso que fali, agravando antigos débitos...

Nesse instante, calou-se como se alguma coisa Invisível lhe constringisse a garganta.

Abracei-o com simpatia fraternal, ansioso de proporcionar-lhe estimulo ao coração, mas Dona Isaura aproximou-se mais, acariciou-lhe a fronte e falou:

— Não chores, filho! Jesus não nos falta com a bênção do tempo. Tem calma e coragem...

E identificando-lhe o carinho, meditei na Bon­dade Divina, que faz ecoar o cântico sublime do amor de mãe, mesmo nas regiões de além-morte.


8

O desastre de Acelino

Ía dirigir-me a Otávio novamente, quando al­guém se aproximou e falou ao ex-médium, com voz forte:

— Não chore, meu caro. Você não está de­samparado. Além disso, pode contar com o devotamento materno. Vivo em piores condições, mas não me faltam esperanças. Sem dúvida, estamos em bancarrota espiritual; no entanto, é razoável aguardarmos, confiantes, novo empréstimo de opor­tunidades do Tesouro Divino. Deus não está pobre.

Voltei-me surpreendido e não reconheci o re­cém-chegado.

Dona Isaura fez o obséquio das apresentações.

Estávamos diante de Acelino, que partilhara a mesma experiência.

Fitando-o, triste, Otávio sorriu e advertiu:

— Não sou um criminoso para o mundo, mas sou um falido para Deus e para “Nosso Lar

— Sejamos, porém, lógicos — revidou Aceli­no, parecendo mais encorajado —, você perdeu a partida porque não jogou, e eu a perdi jogando desastradamente. Tive onze anos de tormento nas zonas inferiores. Sua situação não reclamou esse drástico. Mesmo assim, confio na Providência.

Nesse instante, interveio Vicente, acrescen­tando:

— Cada um de nós tem a experiência que lhe é própria. Nem todos ganham nas provas terrestres.

E voltando-se de modo especial, para mim, aduziu:

— Quantos de nós, os médicos, perdemos la­mentàvelmente na luta?

Depois de concordar, trazendo à baila o meu próprio caso, objetei:

— Seria, porém, muitíssimo interessante conhe­cer a experiência de Acelino. Teria sofrido o mes­mo acidente de Otávio? Creio de grande apro­veitamento penetrar essas lições. No mundo, não compreendia bem o que fossem tarefas espirituais, mas aqui a nossa visão se modifica. Há que cogi­tar do nosso futuro eterno.

Acelino sorriu e obtemperou:

— Minha história é muito diferente. A queda que experimentei apresenta características diversas e, a meu ver, muito mais graves.

E, atendendo-nos a expectativa, prosseguiu, narrando:

— Também parti de “Nosso Lar”, no século findo, após receber valioso patrimônio instrutivo dos nossos assessores. Segui enriquecido de bên­çãos. Uma de nossas beneméritas Ministras da Comunicação presidiu, em pessoa, as medidas ati­nentes à minha nova tarefa. Não faltaram providências para que me felicitassem a saúde do corpo e o equilíbrio da mente. Após forMular grandes promessas aos nossos maiores, parti para uma das grandes cidades brasileiras, em serviço de nossa colônia. O casamento estava em meu roteiro de realizações. Ruth, minha devotada companheira, in­cumbir-se-ia de colaborar comigo para melhor de­sempenho das tarefas.

Cumprida a primeira parte do programa, aos vinte anos de idade fui chamado à tarefa mediúnica, recebendo enorme amparo dos benfeitores in­visíveis. Recordo ainda a sincera satisfação dos companheiros do grupo doutrinário. A vidência, a audição e a psicografia, que o Senhor me concedera, por misericórdia, constituíam decisivos fato­res de êxito em nossas atividades. A alegria de todos era inexcedível. Entretanto, apesar das li­ções maravilhosas de amor evangélico, inclinei-me a transformar minhas faculdades em fonte de ren­da material. Não me dispus a esperar pelos abun­dantes recursos que o Senhor me enviaria mais tarde, após meus testemunhos no trabalho, e pro­voquei, eu mesmo, a solução dos problemas lucra­tivos. Não era meu serviço igual a outros? Não recebiam os sacerdotes católicos-romanos a remu­neração de trabalhos espirituais e religiosos? Se todos pagávamos por serviços ao corpo, que razões haveria para fugir ao pagamento por serviços à alma? Amigos, inscientes do caráter sagrado da fé, aprovavam-me as conclusões egoísticas. Admitia-mos que, no fundo, o trabalho essencial era dos desencarnados, mas também havia colaboração mi­nha, pessoal, como intermediário, pelo que devia ser justa a retribuição.

Debalde, movimentaram-se os amigos espiri­tuais aconselhando-me o melhor caminho. Em vão, companheiros encarnados chamavam-me a esclare­cimento oportuno. Agarrei-me ao interesse inferior e fixei meu ponto de vista. Ficaria definitivamente por conta dos consulentes. Arbitrei o preço das consultas, com bonificações especiais aos pobres e desvalidos da sorte, e meu consultório encheu-se de gente. Interesse enorme foi despertado entre os que desejavam melhoras físicas e solução de ne­gócios materiais. Grande número de famílias abas­tadas tomou-me por consultor habitual, para todos os problemas da vida. As lições de espiritualidade superior, a confraternização amiga, o serviço re­dentor do Evangelho e as preleções dos emissários divinos ficaram a distância. Não mais a escola da virtude, do amor fraternal, da edificação superior, e sim a concorrência comercial, as ligações humanas legais ou criminosas, os caprichos apaixonados, os casos de policia e todo um cortejo de misérias da Humanidade, em suas experiências menos dignas. Transformara-Se completamente a paisagem espiri­tual que me rodeava. A força de me cercar de pessoas criminosas, por questões de ganho siste­mático, as baixas correntes mentais dos inquietos clientes encarceraram-me em sombria cadeia psí­quica. Cheguei ao crime de zombar do Evangelho de Nosso Senhor Jesus, esquecido de que os negó­cios delituosos dos homens de consciência viciada contam igualmente com entidades perniciosas, que se interessam por eles nos planos invisíveis. E transformei a mediunidade em fonte de palpites materiais e baixos avisos.

Nesse momento, os olhos do narrador cobri­ram-se de súbita vermelhidão, estampando-se-lhe fundo horror nas pupilas, como se estivesse revi­vendo atrozes dilacerações.

— Mas a morte chegou, meus amigos, e ar­rancou-me a fantasia — prosseguiu mais grave.

Desde o instante da grande transição, a ronda es­cura dos consulentes criminosos, que me haviam precedido no túmulo, rodeou-me a reclamar palpi­tes e orientações de natureza inferior. Queriam noticias de cúmplices encarnados, de resultados comerciais, de soluções atinentes a ligações clandestinas.

Gritei, chorei, implorei, mas estava algemado a eles por sinistros elos mentais, em virtude da im­previdência na defesa do meu próprio patrimônio espiritual. Durante onze anos consecutivos, expiei a falta, entre eles, entre o remorso e a amargura.

Acelino calou-se, parecendo mais comovido, em vista das lágrimas abundantes. Fundamente sensi­bilizado, Vicente considerou:

— Que é isso? Não se atormente assim. Você não cometeu assassínios, nem alimentou a intenção deliberada de espalhar o mal. A meu ver, você enganou-se também, como tantos de nós.

Acelino, porém, enxugou o pranto e respondeu:

— Não fui homicida nem ladrão vulgar, não mantive o propósito intimo de ferir ninguém, nem desrespeitei alheios lares, mas, indo aos círculos carnais para servir às criaturas de Deus, nossos irmãos, auxiliando-os no crescimento espiritual com Jesus, apenas fiz viciados da crença religiosa e de­linqüentes ocultos, mutilados da fé e aleijados do pensamento. Não tenho desculpas, porque estava esclarecido; não tenho perdão, porque não me fal­tou assistência divina.

E, depois de longa pausa, concluiu gravemente:

— Podem avaliar a extensão da minha culpa?


9

Ouvindo impressões

Deixando Acelino em conversação mais íntima com Otávio, fui levado por Vicente ‘a outro ângulo da sala.

Muitos grupos se mantinham em palestra in­teressante e educativa, observando eu que quase todos comentavam as derrotas sofridas na Terra.

- Fiz quanto pude — exclamava uma ve­lhinha simpática para duas companheiras que a escutavam atentamente —; no entanto, os laços de família são muito fortes. Algo se fazia ouvir sem­pre, com voz muito alta, em meu espírito, com­pelindo-me ao desempenho da tarefa; mas... e o marido? Amâncio nunca se conformou. Se os enfermos me procuravam no receituário comum, agravava-se-lhe a neurastenia; se os companheiros de doutrina me convidavam aos estudos evangélicos, revoltava-se, ciumento. Que pensam vocês? Chegava a mobilizar minhas filhas contra mim. Como seria possível, em tais circunstâncias, atender a obri­gações mediúnicas?

— Todavia — ponderou uma das senhoras que parecia mais segura de si —, sempre temos recur­sos e pretextos para fugir às culpas. Encaremos nossos problemas com realismo. Há de convir que, com o socorro da boa vontade, sempre lhe ficariam alguns minutos na semana e algumas pequenas oportunidades para fazer o bem. Talvez pudesse conquistar o entendimento do esposo e a colabora­ção afetuosa das filhas, se trabalhasse em silên­cio, mostrando sincera disposição para o sacrifício. Nossos atos, Mariana, são muito mais contagiosos que as nossas palavras.

— Sim — respondeu a interlocutora, emitindo voz diferente —, concordo com a observação. Em verdade, nunca pude sofrer a incompreensão dos meus, sem reclamar.

— Para trabalharmos com eficiência — tornou a companheira, sensata —, é preciso saber calar, antes de tudo. Teríamos atendido perfeitamente aos nossos deveres, se tivéssemos usado todas as receitas de obediência e otimismo que fornecemos aos outros. Aconselhar é sempre útil, mas acon­selhar excessivamente pode traduzir esquecimentos de nossas obrigações. Assim digo, porque meu caso, a bem dizer, é muito semelhante ao seu. Fomos ao círculo carnal para construir com Jesus, mas caímos na tolice de acreditar que andávamos pela Terra para discutir nossos caprichos. Não execu­tei minha tarefa mediúnica, em virtude da irrita­ção que me dominou, dada a indiferença dos meus familiares pelos serviços espirituais. Nossos ins­trutores, aqui, muito me recomendaram, antes, que para bem ensinar é necessário exemplificar melhor. Entretanto, por minha desventura, tudo esqueci no trabalho temporário da Terra. Se meu marido fa­zia ponderações, eu criava refutações. Não supor­tava qualquer parecer contrário ao meu ponto de vista, em matéria de crença, incapaz de per­ceber a vaidade e a tolice dos meus gestos. Das irreflexões nasceu minha perda última, na qual agravei, de muito, as responsabilidades. Quase mensalmente, Joaquim e eu nos empenhávamos em discussões e não trocávamos apenas os insultos contundentes, mas também os fluidos venenoSos, segregados por nossa mente rebelde e enfermiça. Entre os conflitos e suas conseqüências, passei o tempo inutilizada para qualquer trabalho de ele­vação espiritual.

Nesse instante, chamou-me Vicente para apre­sentar um amigo.

Ao nosso lado, outro grupo de senhoras con­versava animadamente:

— Afinal, Ernestina — indagava uma delas àmais jovem —, qual foi a causa do seu desastre?

— Apenas o medo, minha amiga — explicou-se a interpelada —, tive medo de tudo e de todos. Foi o meu grande mal.

— Mas, como tudo isto impressiona! Você foi muitíssimo preparada. Recordo-me ainda das nos­sas lições em conjunto. As instrutoras do Escla­recimento confiavam extraordinariamente no seu concurso. Seu aproveitamento era um padrão para nós outras.

- Sim, minha querida Benita, suas reminis­cências fazem-me sentir, com mais clareza, a ex­tensão da minha bancarrota pessoal. Entretanto, não devo fugir à realidade. Fui a culpada de tudo. Preparei-me o bastante para resgatar antigos dé­bitos e efetuar edificações novas; contudo, não vigiei como se impunha. O chamamento ao serviço ressoou no tempo próprio, orientando-me o raciocí­nio a melhores esclarecimentos; nossos instrutores me proporcionavam os mais santos incentivos, mas desconfiei dos homens, dos desencarnados e até de mim mesma. Nos estudiosos do plano físico, en­xergava pessoas de má fé; nos irmãos invisíveis, presumia encontrar apenas galhofeiros fantasiados de orientadores, e, em mim mesma, receava as tendências nocivas. Muitos amigos tinham-me em conta de virtuosa, pelo rigorismo das minhas exi­gências; todavia, no fundo, eu não passava de en­ferma voluntária, carregada de aflições inúteis.

— Foi uma grande infantilidade da sua par­te — retrucou a ôutra —, você olvidou que, na esfe­ra carnal, o maior interesse da alma é a realização de algo útil para o bem de todos, com vistas ao Infinito e à Eternidade. Nesse mister, é indispensável contar com o assédio de todos os elemen­tos contrários. Ironias da ignorância, ataques da insensatez, sugestões inferiores da nossa própria animalidade surgirão, com certeza, no caminho de todo trabalhador fiel. São circunstâncias lógicas e fatais do serviço, porque não vamos ao mundo fí­sico para descanso injustificável, mas para lutar pela nossa melhoria, a despeito de todo impedimen­to fortuito.

— Compreendo, agora — disse a outra —; to­davia, o receio das mistificações prejudicou minha bela oportunidade.

— É, minha amiga — tornou a interlocuto­ra —, é tarde para lamentar. Tanto tememos as mistificações, que acabamos por mistificar os ser­viços do Cristo.

Eu ouvia a palestra, com interesse crescente, mas o companheiro levou-me adiante para novas apresentações.

Atendia a esses agradáveis deveres da socie­dade de “Nosso Lar”, mas, para não perder ensejo de instruir-me, continuava atento às conver­sações em torno. Alguns cavalheiros mantinham discreta permuta de pareceres.

— Reconheço que fali — dizia um deles em tom grave — e muito já expiei nas regiões inferiores, mas aguardo novos recursos da Providência.

— Faltou-lhe, porém, bastante orientação para o caminho? — perguntava um companheiro.

— Explico-me — esclareceu o primeiro —, fal­tou-me o amparo da esposa. Enquanto a tive a meu lado, verificava-se profundo equilíbrio em mi­nhas forças psíquicas. A companhia dela, sem que eu pudesse explicar, compensava-me todo gasto de energia mediúnica. Minha noção de balanço estava nas mãos de minha querida Adélia. Esqueci-me, porém, de que o bom servo deve estar preparado para o serviço do Senhor, em qualquer circunstância. Não aprendi a ciência da conformação e nem me resignei a percorrer sozinho as estradas huma­nas. Quando me senti sem a dedicada companhei­ra, arrebatada pela morte, amedrontei-me, por sen­tir-me em desequilíbrio e, erradamente, procurei substitui-la, e fui acidentado. Extremamente liga­da a entidades malfazejas, minha segunda mulher, com os seus desvarios, arrastou-me a perversõeS sexuais de que nunca me supusera capaz. Voltei, insensivelmente, ao convívio de criaturas perversas e, tendo começado bem, acabei mal. Meus desas­tres foram enormes; entretanto, embora reconhe­ça minha deficiência, entendo, ainda hoje, que o triunfo, mesmo no futuro, ser-me-á muito difícil sem a companheira bem-amada.

Tomara-se a palestra sumamente interessante. Desejava acompanhar-lhe o curso, mas Vicente cha­mou-me a atenção para outro assunto e era neces­sário acompanhá-lo.

10

A experiência de Joel

Afastando-nos para um canto do salão, acom­panhei Vicente que se dirigiu a um velhote de fisionomia simpática.

— Então, meu caro Joel, como vai? — per­guntou, atencioso.

O interpelado teve uma expressão melancólica e informou:

— Graças à Bondade Divina, sinto-me bastan­te melhorado. Tenho ido diàriamente às aplicações magnéticas dos Gabinetes de Socorro, no Auxílio, e estou mais forte.

— Cederam as vertigens? — indagou o com­panheiro, com interesse.

— Agora são mais espaçadas e, quando sur­gem, não me afligem o coração com tanta intensidade.

Nesse instante, Vicente descansou os olhos muito lúcidos nos meus, e disse, sorrindo:

— Joel também andou nos círculos carnaiS em tarefa mediúnica e pode contar experiência muito interessante.

O novo amigo, que me parecia um enfermo em princípios de convalescença, esboçou melancó­lico sorriso e falou:

— Fiz minha tentativa na Terra, mas fracas­sei. A luta não era pequena e fui fraco demais.

— O que mais me impressiona no caso dele, porém — interpôs Vicente em tom fraterno —, e a moléstia que o acompanhou até aqui e persiste ainda agora. Joel atravessou as regiões inferiores com dificuldades extremas, após demorar-se por lá muito tempo, voltando ao Ministério do Auxílio per­seguido de alucinações estranhas, relativamente ao pretérito.

— Ao passado? — perguntei, surpreendido.

— Sim — esclareceu Joel, humilde —, minha tarefa mediúnica exigia sensibilidade mais apurada, e, quando me comprometi à execução do serviço, fui ao Ministério do Esclarecimento, onde me apli­caram tratamento especial, que me aguçou as per­cepções. Necessitava condições sutis para o desem­penho dos futuros deveres. Assistentes amigos des­dobraram-se em obséquios, por me favorecerem, e parti para a Terra com todos os requisitos indis­pensáveis ao êxito de minhas obrigações. Infeliz­mente, porém...

— Mas porque — indaguei — perdeu as reali­zações? Tão só em virtude da sensibilidade adqui­rida?

Joel sorriu e obtemperou:

— Não perdi pela sensibilidade, mas pelo seu mau uso.

— Que diz? — tornei, admirado.

— O meu amigo compreenderá sem dificulda­des. Imagine que, com um cabedal dessa natureza, ao invés de auxiliar os outros, perdi-me a mim mesmo. E’ que, segundo concluo agora, Deus con­cede a sensibilidade apurada como espécie de lente poderosa, que o proprietário deve usar para defi­nir roteiros, fixar perigos e vantagens do caminho, localizar obstáculos comuns, ajudando ao próximo e a si mesmo. Procedi, porém, ao inverso. Não utilizei a lente maravilhosa, no mister justo. Dei­xando-me empolgar pela curiosidade doentia, apli­quei-a tão sômente para dilatar minhas sensações. No quadro dos meus trabalhos mediúnicos, estava a recordação de existências pregressas como ex­pressão indispensável ao serviço de esclarecimento coletivo e beneficio aos semelhantes, que me fôra concedido realizar, mas existe uma ciência de recordar, que não respeitei como devia.

Interrompendo um instante a narrativa, agu­çava-me o desejo de conhecer-lhe a experiência pessoal até ao fim. Em seguida, continuou no mes­mo diapasão:

- Ao primeiro chamado da esfera superior, acorri, apressado. Sentia, intuitivamente, a vívida lembrança de minhas promessas em “Nosso Lar”. Tinha o coração repleto de propósitos sagrados. Trabalharia. Espalharia muito longe a vibração das verdades eternas. Contudo, aos primeiros contactos com o serviço, a excitação psíquica fêz rodar o mecanismo de minhas recordações adormecidas, como o disco sob a agulha da vitrola, e lembrei toda a minha penúltima existência, quando enver­gara a batina, sob o nome de Monsenhor Alejan­dre Pizarro, nos últimos períodos da Inquisição Espanhola. Foi, então, que abusei da lente sagra­da a que me referi. A volúpia das grandes sensa­ções, que pode ser tão prejudicial como o uso do álcool que embriaga os sentidos, fêz-me olvidar os deveres mais santos. Bafejaram-me claridades espirituais de elevada expressão. Desenvolveu-se-me a clarividência, mas não estava satisfeito senão com rever meus companheiros visíveis e invisíveis, no setor das velhas lutas religiosas. Impunha a mim mesmo a obrigação de localizar cada um deles no tempo, fazendo questão de reconstituir-lhes as fichas biográficas, sem cuidar do verdadeiro apro­veitamento no campo do trabalho construtivo. A audição psíquica tornou-se-me muito clara; entre­tanto, não queria ouvir os benfeitores espirituais sobre tarefas proveitosas e sim interpelá-los, ousa­damente, no capítulo da minha satisfação egoís­tica. Despendi um tempo enorme, dentro do qual fugia aos companheiros que me vinham pedir ati­vidades a bem do próximo, engolfado em pesquisas referentes à Espanha do meu tempo. Exigia no­tícias de bispos, de autoridades políticas da época, de padres amigos que haviam errado tanto quanto eu mesmo.

- Não faltaram generosas advertências. Freqüen­temente, os colegas do nosso grupo espiritista cha­mavam-me a atenção para os problemas sérios de nossa casa. Eram sofredores que nos batiam à porta, situações que reclamavam testemunho cris­tão. Tínhamos um abrigo de órf ãos em projeto, um ambulatório que começava a nascer e, sobre­tudo, serviços semanais de instrução evangélica, nas noites de terças e sextas-feiras. Mas, qual! eu não queria saber senão das minhas descobertas pessoais. Esqueci que o Senhor me permitia aque­las reminiscências, não por satisfazer-me a vaida­de, mas para que entendesse a extensão dos meus débitos para com os necessitados do mundo e me entregasse à obra de esclarecimento e conforto aos feridos da sorte. Contràriamente à expectativa dos abnegados amigos que me auxiliaram na obtenção da oportunidade sublime, não me movi no concur­so fraterno e desinteressei-me da doutrina consola­dora, que hoje revive o Evangelho de Jesus entre os homens. Sômente procurei, a rigor, os que se encontravam afins comigo, desde o pretérito. Nesse propósito, descobri, com evidentes sinais de iden­tidade, personalidades outrora eminentes, em rela­ção comigo. Reconheci o senhor Higino de Salce­do, grande proprietário de terras, que me havia sido magnânimo protetor, perante as autoridades religiosas da Espanha, reencarnado como proletá­rio inteligente e honesto, mas em grande experiência de sacrifício individual. Revi o velho Gas­par de Lorenzo, figura solerte de inquisidor cruel, que me quisera muito bem, reencarnado como pa­ralítico e cego de nascença. E desse modo, meu amigo, passei a existência, de surpresa em sur­presa, de sensação em sensação. Eu, que renascera recordando para edificar alguma coisa de útil, transformei a lembrança em viciação da personalidade. Perdi a oportunidade bendita de redenção, e o pior é o estado de alucinação em que vivo. Com o meu erro, a mente desequilibrou-se e as pertur­bações psíquicas constituem doloroso martírio. Es­tou sendo submetido a tratamento magnético, de longo tempo.

Nesse momento, porém, o interlocutor empali­deceu de súbito. Os olhos, desmesuradamente aber­tos, vagavam como se fixassem quadros impressio­nantes, muito longe da nossa perspectiva. Depois cambaleou, mas Vicente o amparou de pronto, e, passando-lhe a destra na fronte, murmurava em voz firme:

— Joel! Joel! Não se entregue às impressões do passado! Volte ao presente de Deus!...

Profundamente admirado, notei que o conva­lescente regressava à expressão normal, esfregando os olhos.


11

Belarmino, o doutrinador

As lições eram eminentemente proveitosas. Traziam-me novos conhecimentos e, sobretudo, com elas, admirava, cada vez mais, a bondade de Deus, que nos permitia a todos a restauração do apren­dizado para serviços do futuro. Muitos de nós ha­víamos atravessado zonas purgatoriais de sombra e tormento Intimo. Uns mais, outros menos. Bas­tara, contudo, o reconhecimento de nossa peque­nez, a compreensão do nosso imenso débito e ali estávamos, todos, reunidos em “Nosso Lar”, reani­mando energias desfalecidas e reconstituindo pro­gramas de trabalho. Eu via em todos os compa­nheiros presentes o reflorescimento da esperança. Ninguém se sentia ao desamparo. Observando que numerosos médiuns prosseguiam, em valiosa per­muta de ideias, referentemente ao quadro de suas realizações, e ouvindo tantas observações sobre dou­trinadores, perguntei a Vicente, em tom discreto:

— Não seria possível, para minha edificação, consultar a experiência de algum doutrinador em trânsito por aqui? Recolhendo notícias de tantos médiuns, com enorme proveito, creio não deva per­der esta oportunidade.

Vicente refletiu um minuto e respondeu:

— Procuremos Belarmino Ferreira. É meu amigo há alguns meses.

Segui o companheiro, através de grupos diver­sos. Belarmino lá estava a um canto, em palestra com um amigo. Fisionomia grave, gestos lentos, deixava transparecer grande tristeza no olhar hu­milde.

Vicente apresentou-me, afetuoso, dando início à conversação edificante. Após a troca de alguns conceitos, Belarmino falou, comovido:

— Com que, então, meu amigo deseja conhe­cer as amarguras de um doutrinador falido?

— Não digo isso — obtemperei a sorrir —, desejaria conhecer sua experiência, ganhar também de sua palavra educativa.

Ferreira esboçou sorriso forçado, que expres­sava todo o absinto que ainda lhe requeimava a alma, e falou:

— A missão do doutrinador é muitíssimo gra­ve para qualquer homem. Não é sem razão que se atribui a Nosso Senhor Jesus o título de Mestre. Sômente aqui, vim ponderar bastante esta profun­da verdade. Meditei muitíssimo, refleti intensamen­te e concluí que, para atingirnios uma ressurrei­ção gloriosa, não há, por enquanto, outro caminho além daquele palmilhado pelo Doutrinador Divino. É digna de - menção a atitude d’Ele, abstendo-se de qualquer escravização aos bens terrestres. Não vemos passar o Senhor, em todo o Evangelho, se­não fazendo o bem, ensinando o amor, acendendo a luz, disseminando a verdade. Nunca pensou nisso? Depois de longas meditações, cheguei ao conheci­mento de. que na vida humana, junto aos que admi­nistram e aos que obedecem, há os que ensinam. Chego, pois, a pensar que nas esferas da Crosta há mordomos, cooperadores e servos. Muito espe­cialmente, os que ensinam devem ser dos últimos. Entende o meu irmão?

Ah! sim, havia compreendido perfeitamente. A conceituação de Belarmino era profunda, irre­futável. Aliás, nunca ouvira tão belas apreciações, relativamente à missão educativa.

Após ligeiro intervalo, continuou sempre grave:

— Há de estranhar, certamente, tenha eu fra­cassado, sabendo tanto. Minha tragédia angustiosa, porém, é a de todos os que conhecem o bem, es­quecendo-lhe a prática.

Calou-se de novo, pensou, pensou, e prosseguiu:

— Faz muitos anos, saí de “Nosso Lar” com tarefa de doutrinação no campo do Espiritismo evangélico. Minhas promessas, aqui, foram enor­mes. Minha abnegada Elisa dispôs-se a acompanhar-me no serviço laborioso. Ser-me-ia companhei­ra desvelada, abençoada amiga de sempre. Minha tarefa constaria de trabalho assíduo no Evangelho do Senhor, de modo a doutrinar, primeiramente com o exemplo, e, em seguida, com a palavra.

Duas colônias importantes, que nos convizi­nham, enviaram muitos servos para a mediunidade

e pediram ao nosso Governador cooperasse com a remessa de missionários competentes para o ensino e a orientação.

Não obstante meu passado culposo, candida­tei-me ao serviço com endosso do Ministro Gedeão, que não vacilou em auxiliar-me. Deveria desem­penhar atividades concernentes ao meu resgate pes­soal e atender à tarefa honrosa, veiculando luzes a irmãos nossos nos planos visível e invisível. Im­punha-se-me, sobretudo, o dever de amparar as organizações mediúnicas, estimulando companheiros de luta, postos na Terra a serviço da ideia imor­talista. Entretanto, meu amigo, não consegui esca­par à rede envolvente das tentações. Desde crian­ça, meus pais socorreram-me com as noções con­soladoras e edificantes do Espiritismo cristão. Circunstâncias várias, que me pareceram casuais, situaram-me o esforço na presidência de um gran­de grupo espiritista. Os serviços eram promiSSo­res, as atividades nobres e construtivas, mas en­chi-me de exigências, levado pelo excessivo apego à posição de comando do barco doutrinário. Oito médiuns, extremamente dedicados ao esforço evangélico, ofereciam-me colaboração ativa; contudo, procurei colocar acima de tudo o preceito cientí­fico das provas insofismáveis. Cerrei os olhos àlei do merecimento individual, olvidei os imperati­vos do esforço próprio e, envaidecido com os meus conhecimentos do assunto, comecei por atrair amigos de mentalidade inferior ao nosso círculo, tão sômente em virtude da falsa posição que usufruiam na cultura filosófica e na pesquisa científica. In­sensivelmente, vicejarani-me na personalidade es­tranhos propósitos egoísticos. Meus novos amigos queriam demonstrações de toda a sorte e, ansioso por colher colaboradores na esfera da autoridade científica, eu exigia dos pobres médiuns longas e porfiadas perquirições nos planos invisíveis. O re­sultado era sempre negativo, porque cada homem receberá, agora e no futuro, de acordo com as próprias obras. Isso me irritava. Instalou-se a dú­vida em meu coração, devagarinho. Perdi a sere­nidade doutro tempo. Comecei a ver nos médiuns, que se retraíam aos meus caprichos, companheiros de má vontade e má fé. Prosseguiam nossas reu­niões, mas da dúvida passei à descrença destrui­dora -

Não estávamos num grupo de intercâmbio en­tre o visível e o invisível? Não eram os médiuns simples aparelhos dos defuntos comunicantes? Por­que não viriam aqueles que pudessem atender aos nossos interesses materiais, imediatos? Não seria melhor estabelecer um processo mecânico e rápido para as comunicações? Porque a negação do in­visível aos meus propósitos de demonstrar positi­vamente o valor da nova doutrina?

Debalde, Elisa me chamava para a esfera re­ligiosa e edificante, onde poderia aliviar o espírito atormentado.

O Evangelho, todavia, é livro divino e, en­quanto permanecemos na cegueira da vaidade e da ignorância, não nos expõe seus tesouros sagrados. Por isso mesmo, tachava-o de velharia. E, de desastre a desastre, antes que me firmasse na missão de ensinar, os amigos brilhantes do campo de co­gitações inferiores da Terra arrastaram-me ao ne­gativismo completo. Do nosso agrupamento cristão, onde poderia edificar construções eternas, transfe­ri-me para o movimento, não da política que eleva, mas da politicalha inferior, que impede o progres­so comum e estabelece a confusão nos Espíritos encarnados. Por aí, estacionei muito tempo, desvia­do dos meus objetivos fundamentais, porque a escravidão ao dinheiro me transformara os senti­mentos.

E assim foi, até que acabei meus dias com uma bela situação financeira no mundo e... um corpo crivado de enfermidades; com um palácio confortável de pedra e um deserto no coração. A revivescência da minha inferioridade antiga reli­gou-me a companheiros menos dignos no plano dos encarnados e desencarnados, e o resto o meu ami­go poderá avaliar: tormentos, remorsos, expiações...

Concluíndo, asseverou:

— Mas, como não ser assim? Como aprender sem a escola, sem retomar o bem e corrigir o mal?

— Sim, Belarmino — disse, abraçando-o —, você tem razão. Tenho a certeza de que não vim tão só ao Centro de Mensageiros, mas também ao centro de grandes lições.


12

A palavra de Monteiro

— Os ensinamentos aqui são variados.

Fôra o amigo de Belarmino quem tomara a palavra. Mostrando agradável maneira de dizer, continuou:

— Há três anos sucessivos, venho diariamente ao Centro de Mensageiros e as lições são sempre novas. Tenho a impressão de que as bênçãos do Espiritismo chegaram prematuramente ao caminho dos homens. Se minha confiança no Pai fôsse me­nos segura, admitiria essa conclusão.

Belarmino, que observava atento os gestos do amigo, interveio, explicando:

— O nosso Monteiro tem grande experiência do assunto.

— Sim — confirmou ele —, experiência não me falta. Também andei às tontas nas semeaduras terrestres. Como sabem, é muito difícil esca­par à influência do meio, quando em luta na carne. São tantas e tamanhas as exigências dos sentidos, em relação com o mundo externo, que não escapei, igualmente, a doloroso desastre.

— Mas, como? — indaguei interessado em con­solidar conhecimentos.

— É que a multiplicidade de fenômenos e as singularidades mediúnicas reservam surpresas de vulto a qualquer doutrinador que possua mais raciocínios na cabeça que sentimentos no coração. Em todos os tempos, o vício intelectual pode des­viar qualquer trabalhador mais entusiasta que sin­cero, e foi o que me aconteceu.

Depois de ligeira pausa, prosseguiu:

— Não preciso esclarecer que também parti de “Nosso Lar”, noutro tempo, em missão de En­tendimento Espiritual. Não ia para estimular fe­nômenos, mas para colaborar na iluminação de companheiros encarnados e desencarnados. O ser­viço era imenso. Nosso amigo Ferreira pode dar testemunho, porqüanto partimos quase juntos. Re­cebi todo o auxilio para iniciar minha grande tarefa e intraduzível alegria me dominava o espírito no desdobramento dos primeiros serviços. Minha mãe, que se convertera em minha devotada orientadora, não cabia em si de contente. Enorme entusiasmo instalara-se-me no espírito. Sob meu controle di­reto, estavam alguns médiuns de efeitos físicos, além de outros consagrados à psicografia e à incor­poração; e tamanho era o fascínio que o comércio com o invisível exercia sobre mim, que me distrai completamente quanto à essência moral da dou­trina. Tínhamos quatro reuniões semanais, às quais comparecia com assiduidade absoluta. Confesso que experimentava certa volúpia na doutrinação aos de­sencarnados de condição inferior. Para todos eles, tinha longas exortações decoradas, na ponta da língua. Aos sofredores, fazia ver que padeciam por culpa própria. Aos embusteiros, recomendava, enfaticamente, a abstenção da mentira criminosa, Os casos de obsessão mereciam-me ardor apaixonado. Estimava enfrentar obsessores cruéis para reduzi-los a zero, no campo da argumentação pesada. Outra característica que me assinalava a ação fir­me era a dominação que pretendia exercer sobre alguns pobres sacerdotes católicos-romanos desen­carnados, em situação de ignorância das verdades divinas. Chegava ao cúmulo de estudar, paciente-mente, longos trechos das Escrituras, não para meditá-los com o entendimento, mas por masti­gá-los a meu bel-prazer, bolçando-os depois aos Espíritos perturbados, em plena sessão, com a ideia criminosa de falsa superioridade espiritual. O ape­go às manifestações exteriores desorientou-me por completo. Acendia luzes para os outros, preferin­do, porém, os caminhos escuros e esquecendo a mim mesmo. Sômente aqui, de volta, pude veri­ficar a extensão da minha cegueira.

Por vezes, após longa doutrinação sobre a pa­ciência, impondo pesadíssimas obrigações aos de­sencarnados, abria as janelas do grupo de nossas atividades doutrinárias, para descompor as crian­ças que brincavam inocentemente na rua. Conci­tava os perturbados invisíveis a conservarem se­renidade para, daí a instantes, repreender senhoras humildes, presentes à reunião, quando não podiam conter o pranto de algum pequenino enfermo. Isso, quanto a coisas mínimas, porque, no meu estabe­lecimento comercial, minhas atitudes eram inflexí­veis. Raro o mês que não mandasse promissórias a protesto público. Lembro-me de alguns varejis­tas menos felizes, que me rogavam prazo, descul­pas, proteção. Nada me demovia, porém. Os advo­gados conheciam minhas deliberações implacáveis. Passava os dias no escritório estudando a melhor maneira de perseguir os clientes em atraso, entre preocupações e observações nem sempre muito re­tas e, à noite, ia ensinar o amor aos semelhantes, a paciência e a doçura, exaltando o sofrimento e a luta como estradas benditas de preparação para Deus.

Andava cego. Não conseguia perceber que a existência terrestre, por si só, é uma sessão permanente. Talhava o Espiritismo a meu modo. Toda a proteção e garantia para mim, e valiosos conse­lhos ao próximo. Ao demais disso, não conseguia re­tirar a mente dos espetáculos exteriores. Fora das sessões práticas, minha atividade doutrinária con­sistia em vastíssimos comentários dos fenômenos observados, duelos palavrosos, narrações de acon­tecimentos insólitos, crítica rigorosa dos médiuns.

Monteiro deteve-se um pouco, sorriu e con­tinuou:

— De desvio em desvio, a angina encontrou-me absolutamente distraído da realidade essencial. Passei para câ, qual demente necessitado de hos­pício. Tarde reconhecia que abusara das sublimes faculdades do verbo. Como ensinar sem exemplo, dirigir sem amor? Entidades perigosas e revolta­das aguardaram-me à saída do plano físico. Sentia, porém, comigo, singular fenômeno. Meu raciocínio pedia. socorro divino, mas meu sentimento agarra­va-se a objetivos inferiores. Minha cabeça dirigia-se ao Céu, em súplica, mas o coração colava-se à Terra. Nesse estado triste, vi-me rodeado de seres malévolos que me repetiam longas frases de nossas sessões. Com atitude irônica, recomendavam-me serenidade, paciência e perdão às alheias faltas; perguntavam-me, igualmente, porque me não des­garrava do mundo, estando já desencarnado. Vo­ciferei, roguei, gritei, mas tive de suportar esse tormento por muito tempo.

Quando os sentimentos de apego à esfera fí­sica se atenuaram, a comiseração de alguns bons amigos me trouxe até aqui. E imagine o irmão que meu Espírito infeliz ainda estava revoltado. Sentia-me descontente.

Não havia fomentado as sessões de intercâm­bio entre os dois planos? Não me consagrara ao esclarecimento dos desencarnados?

Percebendo-me a irritação ridícula, amigos ge­nerosos submeteram-me a tratamento. Não fiquei satisfeito. Pedi à Ministra Veneranda uma audiên­cia, visto ter sido ela a intercessora da minha opor­tunidade. Queria explicações que pudessem atender ao meu capricho individual. A Ministra é sempre muito ocupada, mas sempre atenciosa. Não mar­cou a audiência, dada a insensatez da solicitação; no entanto, por demasia de gentileza, visitou-me em ocasião que reservara a descanso. Crivei-lhe os ouvidos de lamentações, chorei amargamente e, durante duas horas, ouviu-me a benfeitora por um prodígio de paciência evangélica. Em silêncio ex­pressivo, deixou que me cansasse na exposição longa e inútil. Quando me calei, à espera de palavras que alimentassem o monstro da minha In­compreensão, Veneranda sorriu e respondeu: —“Monteiro, meu amigo, a causa da sua derrota não é complexa, nem difícil de explicar. Entregou-se, você, excessivamente ao Espiritismo prático, junto dos homens, nossos irmãos, mas nunca se interes­sou pela verdadeira prática do Espiritismo junto de Jesus, nosso Mestre.”

Nesse instante, Monteiro fêz longa pausa, pen­sou uns momentos e falou, comovido:

— Desde então, minha atitude mudou muitis­simo, entendeu?

Aturdido com a lição profunda, respondi, mas­tigando palavras, como quem pensa mais, para falar menos:

— Sim, sim, estou procurando compreender.


13

Ponderações de Vicente

Não estava farto de lições, mas, para o mo­mento, havia aprendido bastante.. Impressionado com o que me fôra dado observar, não insisti com Vicente para prolongar nossa demora no Centro de Mensageiros.

Deixando grandes grupos em conversação ati­va, reconstituindo projetos e refazendo esperanças, segui o companheiro que me convidava a visitar os imensos jardins. Roseirais enormes balsamiza­vam a atmosfera leve e límpida.

— Sinto-me fortemente impressionado — mur­murei. Quem diria pudessem caber tantas respon­sabilidades a essas criaturas? Não conheci pessoal-mente nenhum médium ou doutrinador do Espiri­tismo, justificando agora minha surpresa.

Vicente sorriu e ponderou:

— Você, meu caro, procede das Câmaras de Retificação, onde os trabalhos são muito reserva­dos e circunscritos. Talvez sua impressão provenha dessa circunstância. Verá, porém, com o tempo, que existem aqui locais de conversações dessa na­tureza, referentes a todas as oportunidades perdidas. Já visitou alguma dependência do Ministério do Esclarecimento?

— Não.

— Localizam-se, ali, os enormes pavilhões das escolas maternais. São milhares de irmãs que co­mentam, por lá, as desventuras da maternidade fracassada, buscando reconstituir energias e cami­nhos. Ainda ali, temos os Centros de Preparação à Paternidade. Grandes massas de irmãos exami­nam o quadro de tarefas perdidas e recordam, com lágrimas, o passado de indiferença ao dever. Nesse mesmo Ministério, temos a Especialização Médica. Nobres profissionais da Medicina, que perderam santas oportunidades de elevação, lá discutem seus problemas.

Nesse instante o interrompi, observando:

— Entretanto, somos médicos e não nos acha­mos lá.

— Sim — explicou Vicente, bondoso —, infe­lizmente para nós ambos, caímos em toda a linha. Não só na qualidade de médicos, mas muito mais como homens, pois que, se disse a você o que sofri, ainda não contei o que fiz.

— É verdade — concordei, desapontado, re­cordando minha condição de suicida inconsciente.

- Ainda no Esclarecimento — prosseguiu o companheiro —, temos o Instituto de Administra­dores, onde os Espíritos cultos procuram restaurar as forças próprias e corrigir os erros cometidos na mordomia terrestre. Nos Campos de Trabalho, do Ministério da Regeneração, existem milhares de trabalhadores que se renovam para a recapitu­lação das grandes tarefas da obediência.

Somos numerosos — continuou, sorridente —os falidos nas missões terrestres e note-se que todos os que hajam chegado a zonas como “Nosso Lar” devem ser levados à conta dos extremamen­te felizes. Temos aqui dois Ministérios Celestiais, como o da Elevação e o da União Divina, cuja influenciação santificante eleva o padrão dos nos­sos pensamentos sem que o percebamos de maneira direta. O estágio aqui, André, representa uma bên­ção do Senhor, e, por muito que trabalhássemos, nunca retribuiríamos a esta colônia na medida de nosso débito para com ela. Nossa situação é a de abrigados em verdadeiro paraíso, pelo ensejo de serviço edificante que se nos oferece. Quanto a outros companheiros nossos...

Fez longo hiato e continuou:

— Quanto a muitos, estão fazendo angustio­sas estações de aprendizado nas regiões mais baixas. São infelizes prisioneiros uns dos outros, pela cadeia de remorsos e malignas recordações. No que concerne à Medicina, os colegas em bancarrota espiritual são inúmeros. A saúde humana é patri­mônio divino e o médico é sacerdote dela. Os que recebem o titulo profissional, em nosso quadro de realizações, sem dele se utilizarem a bem dos se­melhantes, pagam caro a indiferença. Os que dele abusam são, por sua vez, situados no campo do crime. Jesus não foi sômente o Mestre, foi Médico também. Deixou no mundo o padrão da cura para o Reino de Deus. Ele proporcionava socorro ao corpo e ministrava fé à alma. Nós, porém, meu caro André, em muitos casos terrestres, nem sem­pre aliviamos o corpo e quase sempre matamos a fé.

As palavras sensatas do amigo caiam-me nal­ma como raios de luz. Tudo era a verdade, simples e bela. Ainda não pensara, de fato, em toda a grandeza do serviço divino de Jesus Médico. Ele expulsara febres malignas, curara leprosos e cegos de nascença, levantara paralíticos, mas nunca fi­cava apenas nisto. Reanimava os doentes, dava-lhes esperanças novas, convidava-os à compreensão da Vida Eterna.

Engolfara-me em pensamentos grandiosos, quando o companheiro voltou a falar:

— Tenho um amigo, nosso colega de profis­são, que se encontra nas zonas inferiores, há al­guns anos, atormentado por dois inimigos cruéis. Acontece que ele muito faliu como homem e mé­dico. Era cirurgião exímio, mas, tão logo alcançou renome e respeito geral, impressionou-se com as aquisições monetárias e caiu desastradamente. Nos dias de grandes negócios financeiros, deslocava a mente das obrigações veneráveis, colocando-a dis­tante, na esfera dos banqueiros comuns. Não fosse a proteção espiritual, essa atitude teria comprometido oportunidades vitais de muita gente. A co­laboração do pobre amigo tornara-se quase nula, e alguns desencarnados nas intervenções cirúrgicas que ele praticava, notando-lhe a irresponsabilidade, atribuíram-lhe a causa da morte física, quando não a esperavam, votando-lhe ódio terrível. Amigos do operador prestaram esclarecimentos justos a mui­tos; entretanto, dois deles, maiS ignorantes e mal­dosos, perseveraram na estranha atitude e o espe­raram no limiar do sepulcro.

— Horrível! — exclamei. Se ele, porém, não é culpado da desencarnação desses adversários gra­tuitos, como pode ser atormentado desse modo?

Explicou Vicente, em tom mais grave:

— Realmente, não tem a culpa da morte deles. Nada fêz para interromper-lhes a existência física. Mas é responsável pela inimizade e incompreensão criadas na mente dessas pobres criaturas, porque, não estando seguro do seu dever, nem tranqüilo com a consciência, o nosso amigo julga-se culpado, em razão das outras falhas a que se entregou im­previdentemente. Todo erro traz fraqueza, e, assim sendo, o nosso colega, por enquanto, não adquiriu forças para se desvencilhar dos algozes. Perante a Justiça Divina, portanto, ele não resgata crimes inexistentes, mas repara certas faltas graves e aprende a conhecer-se a si mesmo, a entender as obrigações nobres e praticá-las, compreendendo, por fim, a felicidade dos que sabem ser úteis com se­gurança de fé em Deus e em si mesmos. A noção do dever bem cumprido, André, ainda que todos os homens permaneçam contra nós, é uma luz firme para o dia e abençoado travesseiro para a noite. O nosso colega, tendo abusado da profissão, entrou em dolorosa prova.

— Ah! sim — exclamei —, agora compreendo. Onde exista uma falta, pode haver muitas pertur­bações; onde apagamos a luz, podemos cair em qualquer precipício.

— Justamente.

Calou-se o amigo, andando, muito tempo, ao meu lado, como se estivesse surpreendido, como eu, defrontando as avenidas de rosas. Depois de longas meditações, convidou-me fraternalmente:

— Regressemos ao nosso núcleo. Creio deva­mos ouvir Aniceto, ainda hoje, referentemente ao serviço comum.

14

Preparativos

A noite, Aniceto veio ver-nos, começando por dizer:

— Amanhã deveremos partir os três, a servi­ço nas esferas da Crosta. Telésforo recomendou-me certas atividades de importância, mas posso aten­dê-las em particular, proporcionando a ambos uma estação semanal de experiência e serviço.

Fiquei radiante. Muita vez regressara ao ni­nho doméstico, tornara à cidade em que desenvolvera a tarefa última e, todavia, não me detivera no exame das possibilidades extensas do concurso fraternal. De quando em vez, era defrontado por situações difíceis, nas quais velhos conterrâneos encaravam problemas de vulto; entretanto, sentia-me incapaz de auxiliá-los, eficientemente, na solução desejável. Faltava-me técnica espiritual para fazê-lo. Não tinha bastante confiança em mim mesmo.

Deixando perceber que ouvira meus pensamen­tos profundos, Aniceto dirigiu-me a palavra de ma­neira especial, asseverando:

— Você, André, ainda não pôde auxiliar os amigos encarnados porque ainda não adquiriu a devida capacidade para ver. É razoável. Quando na carne, somos muitas vezes inclinados a verifi­car tão somente os efeitos, sem ponderar as ori­gens. No mendigo, vemos apenas a miséria; no enfermo, somente a ruína física. Faz-se indispen­sável identificar as causas.

Depois de meditar alguns momentos, prosse­guiu:

— Procuraremos, contudo, remediar a situação. Amanhã, pela madrugada, você e Vicente apare­çam no Gabinete de Auxílio Magnético às Percep­ções, que fica junto ao Centro de Mensageiros. Darei as providências para que vocês alcancem o necessário melhoramento da visão. Peço-lhes, to­davia, receberem semelhante auxílio em prece. Ro­guem a Deus lhes permita a dilatação do poder visual. Compenetrem-se da grandeza desse dom su­blime. E, sobretudo, enviem à Majestade Eterna um pensamento de consagração ao seu amor e aos seus serviços divinos. Não desejo induzi-los a ati­tudes de fanatismo sem consciência. Não podemos abusar da oração aqui, segundo antigas viciações do sentimento terrestre. No círculo carnal, costu­mamos utilizá-la em obediência a delituosos capri­chos, suplicando facilidades que surgiriam em de­trimento de nossa própria iluminação. Aqui, todavia, André, a oração é compromisso da criatura para com Deus, compromisso de testemunhos, esforço e dedicação aos superiores desígnios. Toda prece, en­tre nós, deve significar, acima de tudo, fidelidade do coração. Quem ora, em nossa condição espiri­tual, sintoniza a mente com as esferas mais altas e novas luzes lhe abrilhantam os caminhos.

Diante da nobre autoridade de Aniceto, não me atrevi a falar e cheguei mesmo a recear a externação de qualquer pensamento.

Deixou-nos o generoso instrutor com palavras carinhosas de amizade e incentivo.

Vicente e eu acalentávamos projetos magnífi­cos. fiamos, pela primeira vez, cooperar a favor dos encarnados em geral. Nosso repouso noturno foi brevíssimo. Aguardávamos, ansiosamente, a alvorada, a fim de receber o auxílio magnético do Gabinete referido.

Poucas vezes orei com a emoção daquela hora. Os esclarecidos técnicos da instituição colocaram-nos, primeiramente, em relação mental direta com eles e, em seguida, submeteram-nos a deter­minadas aplicações espirituais, que ainda não posso compreender em toda a extensão e transcendência. Observei, contudo, que a colaboração magnética não nos retirava o sentido consciencial, e aprovei­tei a oportunidade para a oração sincera, que era mais um compromisso de trabalho que ato de sú­plica, prôpriamente considerado.

Decorrido certo tempo, fomos declarados em liberdade para sair, quando nos prouvesse.

A principio, nada notei de extraordinário, em­bora sentisse, dentro do coração, nova coragem e alegria diferente. Experimentava bom ânimo, até então desconhecido. Meus sentidos da visão e da audição pareciam mais límpidos.

Aniceto, que se mostrava muito satisfeito, es­perava-nos no Centro, marcando a partida para o meio-dia.

Ansioso, aguardei o instante aprazado.

Não nos ausentamos de “Nosso Lar” como os viajores terrestres, geralmente carregados de ma­talotagens e volumes diversos.

— Aqui — disse Aniceto jocosamente —, toda a nossa bagagem é a do coração. Na Terra, malas, bolsas, embrulhos; mas, agora, devemos conduzir propósitos, energias, conhecimentos e, acima de tudo, disposição sincera de servir.

Alguns companheiros presentes riram-se com gosto.

Nesse instante, nosso orientador fêz algumas recomendações. Designou colegas para a chefia de turmas de aprendizado, estabeleceu programas de serviço e notificou que voltaria à colônia, diaria­mente, por algumas horas, deixando-nos, Vicente e eu, nos serviços da Crosta, em trabalhos e obser­vações que deveriam prolongar-se por toda a se­mana.

Despedimo-nos dos camaradas de luta, repletos de esperança. Era a nossa primeira excursão de aprendizado e cooperação aos semelhantes.

Quando nos puséramos a caminho, nosso Ins­trutor observou:

— Creio que a viagem para vocês será dife­rente. Certo, estão habituados à passagem livre, mantida por ordem superior para as atividades nor­mais de nossos trabalhos e trânsito dos irmãOS esclarecidos, em vésperas de reencarnação.

— Como assim? — perguntou Vicente, admi­rado.

— Pois não sabia? As regiões inferiores, entre “Nosso Lar” e os círculos da carne, são tão gran­des que exigem uma estrada ampla e bem cuidada, requerendo também conservação, como as importan­tes rotas terrestres. Por lá, obstáculos físicos; por cá, obstáculos espirituais. As vias de comunicação normais destinam-Se a intercâmbio indispensável. Os que se encontram nas tarefas da nossa rotina sagrada precisam livre trânsito e os que se diri­gem da. esfera superior à reencarnação devem se­guir com a harmonia possível, sem contacto direto com as expressões dos círculos mais baixos. A ab­sorção de elementos inferiores determinaria sérios desequilíbrios no renascimento deles. Há que evi­tar semelhantes distúrbios. Nós, porém, seguimos numa expedição de aprendizado e experiência. Não devemos, por isso, preferir os caminhos mais fáceis.

Identificando-nos a perplexidade, Aniceto con­cluiu:

— Imaginemos um rio de imensas proporções. separando duas regiões diferentes. Existe o vau que oferece transporte rápido e há passagens di­versas através de fundos precipícios.

Pela expressão do bondoso instrutor, concluí que ele poderia voltar à colônia quando quisesse, que não encontraria obstáculos de qualquer ordem, em parte alguma, em razão do poder espiritual de que se achava revestido, mas fazia-se peregrino, como nós, por devotamento à missão de ensinar. Vicente e eu não dispúnhamos de expressão vibra­tória adequada aos grandes feitos. Éramos vul­gares, quanto o era a maioria dos habitanteS da nossa cidade espiritual. Possuíamos apenas alguns princípios de volitação; contudo, permanecíamos muito distantes do verdadeiro poder. Nunca vira, pois, a energia e a humildade em tão belo consórcio. Aniceto dirigia-nos, firmemente, como orientador de pulso, vigoroso e sábio, mas não vacilava em se fazer igual a nós, a fim de servir como devo­tado companheiro.

Meditando sobre a lição sublime, em pleno impulso volitante, contemplei as torres de “Nosso Lar”, que iam ficando a distância...


15

A viagem

Depois de empregarmos o processo de condu­ção rápida, atravessando imensas distâncias, surgiu uma região menos bela. O firmamento cobrira-se de nuvens espessas e alguma coisa que eu não po­dia compreender impedia-nos a volitação com facilidade. Creio que o mesmo não acontecia ao nosso instrutor, mas Vicente e eu fazíamos enorme es­forço para acompanhá-lo.

Aniceto percebeu, de pronto, nossos obstáculos e considerou:

— Será conveniente utilizarmos a locomoção. A atmosfera começa a pesar muitíssimo e não de­vemos andar muito distante de Campo da Paz. Não precisaremos ir até lá; todavia, descansaremos no Posto de Socorro. Encontraremos, ali, os re­cursos Indispensáveis.

— Mas, que é isto? — perguntei, admirado da profunda modificação ambiente.

— Estamos penetrando a esfera de vibrações mais fortes da mente humana. Achaxno-nos a gran­de distância da Crosta; entretanto, já podemos iden­tificar, desde logo, a influenciação mental da Hu­manidade encarnada. Grandes lutas desenrolam-se nestes planos e milhares de Irmãos abnegados aqui se votam à missão de ensinar e consolar os que sofrem. Em parte alguma escasseia o amparo di­vino.

Nesse instante, chegáramos ao cume de grande montanha, envolvida em sombra fumarenta. No solo, desenhavam-se trilhas diversas, à maneira de labirintos bem formados. Observando-nos a estra­nheza, Aniceto falou com otimismo:

— Sigamos!

Nesse momento, ó Deus de Bondade! alguma coisa imprevista me felicitava o coração. Contras­tando as sombras, raios de luz desprendiam-se in­tensamente de nossos corpos. Extraordinária co­moção apossou-se-me dalma. Vicente e eu ajoelha­mo-nos a um só tempo, banhados em lágrimas, enviando ao Eterno os nossos profundos agrade­cimentos, em votos de júbilo fervoroso. Estávamos embriagados de ventura. Era a primeira vez que me vestia de luz, luz que se irradiava de todas as células do meu corpo espiritual. Aniceto, que se mantinha de pé, a contemplar-nos com expres­são de alegria, falou comovidamente:

— Muito bem, meus amigos! Agradeçamos a Deus os dons de amor, sabedoria e misericórdia. Saibamos manifestar ao Pai o nosso reconhecimen­to. Quem não sabe agradecer, não sabe receber e, muito menos, pedir.

Durante muito tempo, Vicente e eu mantivemo­-nos em prece repleta de alegrias e de lágrimas... Em seguida, retomamos a marcha, como se esti­véssemos vestidos em sublime luminosidade.

As surpresas, no entanto, sucediam-se ininter­ruptamente.

Aquelas vias de comunicação eram muito di­versas das que conhecia até ali. Mergulhávamos num clima estranho, onde predominavam o frio e a ausência de luz solar. A topografia era um con­junto de paisagens misteriosas, lembrando filmes fantásticos da cunematografia terrestre. Picos altíssimos semelhavam vigorosas agulhas de treva, desafiando a vastidão. Descíamos sempre, como viajores ladeando escuros precipícios, em país de exotismo ameaçador. Esquisita vegetação subia do solo, de espaço a espaço, entre os grandes abis­mos. Aves de horripilante aspecto surgiam, medrosas, de quando em quando, enchendo o silêncio de pios angustiados. Rija ventania soprava em to­das as direções.

Fundamente assombrado, cobrei ânimo e per­guntei ao nosso instrutor:

— Que dizeis de tudo isto? Ignorava que hou­vesse tais regiões entre a Crosta e nossa cidade espiritual. A nossa frente, sinto um mundo novo, que me é totalmente desconhecido... Por quem sois, nobre Aniceto, nada vos pergunto por ocio­sidade, mas estas terras me surpreendem profundamente.

Aniceto, sempre amável, sorriU docemente e respondeu:

- Todo este mundo que vemos é continuação de nossa Terra. Os olhos humanos vêem apenas algumas expressões do vale em que se exercitam para a verdadeira visão espiritual, como nós outros que, observando agora alguma coisa, não estamos igualmente vendo tudo.

Este, André, é um domínio diferente. A per­cepção humana não consegue apreender senão determinado número de vibrações. Comparando as restritas possibilidades humanas com as grandezas do Universo Infinito, os sentidos físicos são mui­tíssimo limitados. O homem recebe reduzido noti­ciário do mundo que lhe é moradia. É verdade que tem devassado com a sua ciência problemas profundos. A astronomia terrena conhece que o Sol, por medidas aproximadas, é 1.300.000 vezes maior que a Terra e que a estrela Capela é 5.800 vezes maior que o nosso Sol; sabe que Arcturo equivale a milhares de sóis, iguais ao que nos ilu­mina; está informada de que Canópus corresponde a 8.760 sóis idênticos ao nosso, reunidos; mediu as distâncias entre o nosso planeta e a Lua; acom­panha certos fenômenos em Marte, Saturno, Vê­nus e Júpiter; sonda os milhões de sóis aglomerados na Via-Láctea; conhece as estrelas variáveis, as nebulosas espirais e difusas. E não param as observações humanas na grandeza ilimitada do Ma­crocosmo. A Ciência vai, igualmente, aos círculos atômicos analisa a materializaçãO da energia, o movimento dos elétrons, estuda o bombardeio de átomoS e esquadrinha corpúsculos diversos. Mas todo esse trabalho, com a colaboração das lunetas de alta potência e dos geradores de milhões de volts, ainda é serviço que apenas identifica os aspectos exteriores da vida. Há, porém, André, outros mundos sutis, dentro dos mundos grosseiros, maravilhosas esferas que se interpenetram. O olho humano sofre variadas limitaçõeS e todas as len­tes físicas reunidas não conseguiriam surpreender o campo da alma, que exige o desenvolvimento das faculdades espirituaiS para tornar-Se percepti vel. A eletricidade e o magnetismo são duas cor­rentes poderosas que começam a descortinar aos noSSOS irmãos encarnados alguma coisa dos infi ritos potenciais do invisível, mas ainda é cedo para cogitarmos de êxito completo. Sômente ao homem de sentidoS espirituais desenvolvidos é possível re­velar alguns pormenores das paisagens sob nossos olhos. A maioria das criaturas ligadas à Crosta não entende estas verdades, senão após perderem os laços físicos mais grosseiros. E’ da lei, que não devemos ver senão o que possamos observar com proveito.

Nessa altura, Aniceto calou-se.

Comovido com as instruçõeS, guardei religioso silêncio.

Agora, em meio das sombras, divisava. alguns vultos negros, que pareciam fugir apressadoS, con­fundindo-se na treva das furnas próximas.

Nosso orientador avisou, cauteloso:

— Procuremos interromper os efeitos lumino­sos do nosso corpo espiritual. Bastará que pensem com vigor na necessidade dessa providência. Es­tamos atravessando extensa zona, a que se acolhem muitos desventurados, e não é justo humilhar os que sofrem com a exibição de nossos bens.

Obedecendo ao conselho, verifiquei o efeito imediato. Os fios de luz que me irradiavam do corpo apagaram-se como por encanto. A excursão tornou-se menos agradàvel. Descíamos, milagrosamente, através dos despenhadeiros de longa exten­são. A sombra fizera-se mais densa, a ventania mais lamentosa e impressionante.

Após algum tempo de marcha em silêncio, divisamos ao longe um grande castelo iluminado. Aniceto fêz um gesto significativo com o indicador e explicou:

— É um dos Postos de Socorro de Campo da Paz.


16

No Posto de Socorro

Deslumbrava-me a visão do castelo soberbo! Incapaz de exprimir a admiração que me dominava, acompanhei Aniceto em silêncio. Com grande surpresa, entretanto, verifiquei que a construção magnífica não se mantinha sem defesa. Cercavam-na pesados muros numa extensão que meus olhos não conseguiam abranger.

Quem imaginasse uma tal instituição, locali­zada nas zonas invisíveis, dificilmente conceberia contrafortes daquela natureza. A noção de céu e inferno, fundamente arraigada na mente popu­lar, não deixa perceber que os homens, de modo geral, não se modificam com a morte física, como a troca de residência não significa mudança de per­sonalidade para a criatura comum.

Espantado, notei que o nosso orientador fazia mover quase imperceptível campainha, disfarçada na muralha. Creio que, se Aniceto estivesse só, não precisaria desse expediente, dado o seu poder espiritual acima de todas as resistências grossei­ras; no entanto, estávamos em sua companhia e, mais uma vez, quis igualar-se a nós, por fidalguia de tratamento. Ocultar a própria glória é do có­digo do bom-tom nas sociedades espirituais nobres e santas.

Atendendo-nos, dois servidores abriram a por­ta extremamente pesada, que rodou nos gonzos, como se daria em qualquer edificação mais antiga do plano terrestre.

— Salve! mensageiros do bem! — disseram ambos ao mesmo tempo, fixando Aniceto, em ati­tude reverente.

Aniceto levantou a mão, que se fêz luminosa nesse instante, e balbuciou algumas palavras de amor, retribuindo a saudação respeitosa. Entramos.

Fiquei admirado! Pomares e jardins maravi­lhosos perdiam-se de vista. A sombra, aí, não era tão intensa. Sentíamo-nos banhados em sua­vidade crepuscular, graças aos grandes focos de luz radiante. O interior apresentava aspectos ines­perados. Sômente agora eu compreendia que a muralha ocultava a maioria das construções. Pa­vilhões de vulto alinhavam-se como se estivéssemos diante de prodigioso educandário. Turmas varia­das de homens e mulheres dedicavam-se a serviços múltiplos. Ninguém parecia dar conta de nossa presença, tal o interesse que o trabalho despertava em cada um.

Acompanhávamos Aniceto através de numero­sas fileiras de árvores senhorís, que se assemelha­vam a carvalhos antiqüíssimos.

Observava, todavia, que nesse abençoado Posto de Socorro a Natureza se fizera maternal. Havia, agora, mais luz no céu e o vento era mais faguei­ro, sussurrando brandamente no arvoredo farto. O bondoso instrutor, notando a nossa admiração, esclareceu:

— Esta paz reflete o estado mental dos que vivem neste pouso de assistência fraterna. Acabamos de atravessar uma zona de grandes confli­tos espirituais, que vocês ainda não podem perce­ber. A Natureza é mãe amorosa em toda a parte, mas, cada lugar mostra a influenciação dos filhos de Deus que o habitam.

A explicação não poderia ser mais clara.

Atingindo o edifício central, construído à ma­neira de formoso castelo europeu dos tempos feudais, fomos defrontados por um casal extremamen­te simpático.

— Meu caro Aniceto! — falou o cavalheiro, abraçando o nosso orientador.

— Meu caro Alfredo! minha nobre Ismá­lia! — respondeu Aniceto, sorridente.

Após as saudações afetuosas, apresentou-nos, lisonjeiro.

O casal abraçou-nos, evidenciando cordialidade e atenção amiga.

— Nosso prezado Alfredo — continuou Ani­ceto, elucidando — é o dedicado Administrador deste Posto de Socorro. Há muito tempo consa­grou-se ao serviço de nossos irmãos ignorantes e desviados.

— Oh! Oh! não prossiga — revidou o apre­sentado, como a fugir às referências elogiosas —, consagrei-me simplesmente ao dever.

E, como se quisesse modificar a conversação, prosseguiu, atencioso:

— Mas, que surpresa agradável! Há muitos dias não temos visitas de “Nosso Lar”! Ainda bem que vieram hoje, quando Ismália veio igualmente ter comigo!...

Pois quê? — considerei Intimamente. Não se­ria aquela senhora, de lindo semblante, a esposa dele? Não viveriam ali juntos, como na Terra? Antes, porém, que pudesse chegar a qualquer conclusão, Alfredo conduzia-nos ao interior doméstico. As escadas de substância idêntica ao mármore, im­pressionavam-me pela transparente beleza.

De varanda extensa e nobre, onde as coluna­tas se enfeitavam de hera florida, muito diferente, porém, da que conhecemos na Terra, penetramos em vasto salão mobiliado ao gosto mais antigo. Os móveis delicadamente esculturados formavam con­junto encantador. Admirado, fixei as paredes, de onde pendiam quadros maravilhosos. Um deles, con­tudo, impunha-me especial atenção. Era uma tela enorme, representando o martírio de São Dinis, o Apóstolo das Gálias rudemente supliciado nos pri­meiros tempos do Cristianismo, segundo meus hu­mildes conhecimentos de História. Intrigado, re­cordei que vira, na Terra, um quadro absolutamente igual àquele. Não se tratava de um famoso tra­balho de Bonnat, célebre pintor francês dos últi­mos tempos? A cópia do Posto de Socorro, todavia, era muito mais bela. A lenda popular estava lin­damente expressa nos mínimos detalhes. O glo­rioso Apóstolo, seminu, com a cabeça decepada, tronco aureolado de intensa luz, fazia um esforço supremo por levantar o próprio crânio que lhe ro­lara aos pés, enquanto os assassinos o contempla­vam, tomados de intenso horror; do alto, via-se descer um emissário divino, trazendo ao Servo do Senhor a coroa e a palma da vitória. Havia, po­rém, naquela cópia, profunda uminosidade, como se cada pincelada contivesse movimento e vida.

Observando-me a admiração, Alfredo falou, sor­rindo:

Quantos nos visitam, pela primeira vez, es­timam a contemplação desta cópia soberba.

— Ah! sim — retruquei —, o original, segun­do estou informado, pode ser visto no Panteão de Paris.

— Engana-se — elucidou o meu gentil inter­locutor —, nem todos os quadros, como nem todas as grandes composições artísticas, são origináriamente da Terra. É certo que devemos muitas cria­ções sublimes à cerebração humana; mas, neste caso, o assunto é mais transcendente. Temos aqui a história real dessa tela magnífica. Foi idealizada e executada por nobre artista cristão, numa cidade espiritual muito ligada à França. Em fins do sécu­lo passado, embora estivesse retido no círculo car­nal, o grande pintor de Bayonne visitou essa colônia em noite de excelsa inspiração, que ele, humana­mente, poderia classificar de maravilhoso sonho. Desde o minuto em que viu a tela, Florentino Bon­nat não descansou enquanto não a reproduziu, pá­lidamente, em desenho que ficou célebre no mundo inteiro. As cópias terrestres, todavia, não têm essa pureza de linhas e luzes, e nem mesmo a repro­dução, sob nossos olhos, tem a beleza imponente do original, que já tive a felicidade de contemplar de perto, quando organizávamos, aqui no Posto, homenagens singelas para a honrosa visita que nos fêz o grande servo do Cristo. Para movimentar as providências necessárias, visitei pessoalmente a cidade espiritual a que me referi.

Grande espanto apossara-se-me do coração. Via, agora, explicada a tortura santa dos gran­des artistas, divinamente inspirados na criação de obras imortais; agora, reconhecia que toda arte elevada é sublime na Terra, porque traduz visões gloriosas do homem na luz dos planos superiores.

Parecendo interessado em completar meus pen­samentos, Alfredo considerou:

— O gênio construtivo expressa superioridade espiritual com livre trânsito entre as fontes sublimes da vida. Ninguém cria sem ver, ouvir ou sentir, e os artistas de superior mentalidade costumam ver, ouvir e sentir as realizações mais altas do caminho para Deus.

Mas, voltando-se, afável, para Aniceto, ex­clamou:

— No entanto, o momento não comporta di­vagações. Sentemo-nos. Devem estar cansados da peregrinação difícil. Necessitam refazer energias e repousar algum tanto.


17

O romance de Alfredo

Depois de alguns minutos, utilizados por nós no serviço da higiene reconfortadora, Alfredo con­vidou-nos à mesa, onde Ismália, com extrema fi­dalguia, mandou servir frutos diversos.

Os senhores do castelo não podiam ser mais gentis.

Servidores iam e vinham, com grande júbilo a lhes transparecer do rosto.

A palestra de Alfredo e as observações de Ismália estavam cheias de notas interessantes e educativas.

— E qual a sua impressão dos serviços em geral? — perguntou Aniceto, atencioso, dirigindo-se ao dono da casa.

- Excelente, quanto às oportunidades de rea­lização que nos oferecem — respondeu Alfredo em tom significativo —; entretanto, não tenho o mes­mo parecer quanto à situação em curso. As zonas a que servimos estão repletas de novidades dolo­rosas. O presente período humano é de conflitos devastadores e as vibrações contraditórias que nos atingem são de molde a enfraquecer qualquer âni­mo menos decidido. Desencarnados e encarnados empenham-se em batalhas destruidoras. É uma lástima.

— Multiplica-se o número de necessitados que recorrem ao Posto? — continuou indagando nosso orientador.

— Enormemente. Nossa produção de alimen­tos e remédios tem sido integralmente absorvida pelos famintos e doentes. Tenho quinhentos coope­radores, mas nos sentimos presentemente incapa­zes de atender a todas as obrigações. As massas de sofredores são incontáveis. Noutro tempo, nos­sa paisagem se mantinha sem sombras, durante muitas semanas, mas .......

Nesse instante, Ismália pediu licença para di­rigir-se ao interior. E como Alfredo fixasse os olhos nos meus, aventurei-me a considerar:

— Ainda bem que tendes uma abnegada com­panheira ao vosso lado.

Ele e Aniceto sorriram, quase a uni só tempo, falando-nos o administrador:

— Ah! meus amigos, por enquanto, não te­nho essa felicidade em caráter definitivo. Minha esposa e eu temos o divino compromisso da união eterna, mas ainda não lhe mereço a presença con­tínua. Ela é a bondade celeste, e eu, a realidade humana.

Depois de pequena pausa, prosseguiu com gen­tileza:

- Aniceto conhece-nos a história. Vocês, po­rém, a ignoram. Sentir-me-ei, portanto, conténte, em relatar algumas lembranças, com benefício du­plo. Aliviarei o coração, uma vez mais, contando minhas faltas, e vocês dois, que talvez tenham em breve novos serviços na Terra, aproveitarão, por certo, alguma coisa das minhas experiências.

Ismália e eu guardávamos um escrínio de felicidade no mundo; no entanto, os salteadores perversos espreitavam-nos a ventura. Minha res­ponsabilidade era enorme no campo dos negócios materiais, e, longe de compreender as obrigações sublimes de esposo e pai, não procurava atender aos deveres justos para com o lar e os dois filhinhos que Deus me enviara ao círculo doméstico. Ismália, porém, era a providência de nossa casa. Esqueci-me, contudo, de que a virtude, a qualquer tempo, será atormentada pelo vicio e minha nobre companheira foi vítima da maldade de um amigo desleal, com quem tinha eu inúmeros interesses em comum, no campo monetário. Minha esposa sofreu, em silêncio, a perseguição dele por alguns anos consecutivos. E quando meu desventurado sócio verificou a inutilidade da atitude criminosa, em franco desespero buscou envenenar-me o espírito desprevenido. Começou por advertir-me, quanto ao procedimento dela. Atordoou-me, envolvendo-a em acusações descabidas. Subornou criados domésti­cos e colocou espiões que seguissem minha que­rida Ismália, nas tarefas de esposa e mãe. Esse homem exercia profunda influência sobre mim, e, atendendo aos laços que nos uniam, minha com­panheira jamais se sentiu com bastante coragem para denunciá-lo. Enquanto dava ouvidos à calú­nia, fora de meu círculo doméstico, tornara-me in­tolerável dentro dele. Não sabia contemplar minha esposa com a despreocupação e a confiança abso­luta de outra época. Via o mal nos seus mínimos gestos e queria descobrir segundas intenções nas suas frases mais inocentes. Cheguei a acusá-la, veladamente. Ismália chorou e calou-se. Por fim, nosso infeliz perseguidor subornou um homem de baixa condição que permaneceu, certa noite, ao lado de nossos aposentos particulares como vulgar ladrão, às ocultas, sendo eu convocado à prova máxima. Penetrei no quarto em extremo desespe­ro e acusei em voz alta ao ver a companheira profundamente tranqüila. Ismália levantou-se, re­ceosa da minha saúde mental, mas não lhe atendi os rogos, procurando, como louco, o conspurcador da minha honra... Abri violentamente grande ar­mário antigo, vasculhando o quarto. Nesse instan­te, o vulto de um homem esgueirou-se na sombra, do aposento próximo, e, antes que eu pudesse agarrá-lo no meu ódio infrene, saltou a janela, alcan­çando o pomar de nossa casa. Corri, desesperado, detonando balas a esmo, mas, nada consegui. Re­gressei ao quarto e, para cúmulo da calúnia odiosa, o desconhecido deixara, atrás de si, um chapéu novo, rigorosamente moderno, para que se acen­tuassem meus sentimentos terríveis. Olhos conges­tos, vomitando insultos, quis eliminar Ismália, ba­nhada em lágrimas a meus pés; no entanto, alguma coisa, que nunca pude compreender na Terra, pa­ralisou-me o braço quase homicida. Vociferando blasfêmias, surdo aos rogos dela, afastei-me do lar, tomado de horror. No dia imediato, fiz valer meu direito exclusivo sobre os filhos e providenciei para que Ismália, convertida em estátua de dor, fôsse restituida à fazenda paterna. Contratei uma go­vernanta para os meninos e, logo após, tomei um paquete para a Europa, onde me demorei mais de três anos. Nunca me propus a verificações sé­rias, e, embora tivesse o espírito incessantemente atormentado, humilhei os sentimentos mais ínti­mos, jamais procurando notícias da companheira caluniada. Certo dia, recebi uma carta lacônica na costa francesa. Um parente dava-me informações da esposa. Após dois anos angustiosos, entre a sau­dade e o abandono, Ismália fôra colhida pela tu­berculose, falecendo em terrível martirológio moral. Deliberei, então, a volta. Fixei-me novamente no Rio, eduquei os filhinhos e conservei a dolorosa viuvez no desencanto do coração. Os anos rolaram uns sobre os outros, quando fui chamado à cabe­ceira do ex-sócio agonizante. O infeliz, em face da morte, confessou o crime odioso, pedindo um per­dão que, infelizmente, não pude conceder. Trans­formei-me, desde então, num louco irremediável. Cansado, envelhecido, procurei a propriedade rural dos sogros, tentando reparar, de alguma sorte, a injustiça, mas a morte não me deu ensejo e voltei para a esfera dos desencarnados, em tristes condi­ções espirituais.

Nesse instante, fêz uma pausa, para continuar comovido:

— Não preciso dizer que recebi de Ismália todo o amparo de que necessitava. Todavia, infelizmen­te para mim, estávamos separados. Não mereci a bênção da união sublime. Ismália segue-me de per­to, mas tem residência num plano superior, que devo esforçar-me por alcançar. Desde muito, dedi­quei-me aos serviços do nosso Posto de Socorro, consagrei-me aos ignorantes e sofredores, e minha santa Ismália vem até aqui, mensalmente, incenti­var-me o bom ânimo e amparar-me nas lutas.

— Mas não poderia ela transferir-se definiti­vamente para aqui? — indagou Vicente, tão im­pressionado quanto eu, com o romance comovedor.

Alfredo sorriu e falou:

— Sei que Ismália tem trabalhado para isso, que seu ideal de união eterna é Idêntico ao meu, atendendo à circunstância de estar o superior sem­pre em posição de dar ao inferior; mas não ignoro que foi advertida por nossos maiores, sobre as minhas atuais necessidades de esforço e solidão. Preciso conhecer o preço da felicidade, para não menosprezar, de novo, as bênçãos de Deus. Mi­nha esposa deseja descer para encontrar-se defini­tivamente comigo; entretanto, é necessário que eu aprenda a subir e, por este motivo, ainda não re­cebemos a devida permissão para o definitivo con­sórcio espiritual.

Observando-nos a emoção, concluiu:

— Estou resgatando crimes de precipitação. Pela impulsividade delituosa, perdi minha paz, meu lar e minha devotada companheira. Conforme ou­viram, não matei nem roubei a ninguém, mas enve­nenei-me a mim próprio. A calúnia é um monstro invisível, que ataca o homem através dos ouvidos invigilantes e dos olhos desprevenidos.


18

Informações e esclarecimentos

A volta de Ismália ao circulo da conversação impediu o prosseguimento do assunto.

Aproveitando, talvez, a oportunidade, Aniceto perguntou ao administrador:

— Que me diz da continuação de nossa via­gem? Estimaríamos alcançar, ainda hoje, as esfe­ras da Crosta.

Dirigiu-nos Alfredo significativo olhar e falou:

— Não me sinto com o direito de alterar-lhes o plano de serviço, mas seria conveniente pernoi­tarem aqui. Nossos aparelhos assinalam aproxima­ção de grande tempestade magnética, ainda para hoje. Sangrentas batalhas estão sendo travadas na superfície do globo. Os que não se encontram nas linhas de fogo, permanecem nas linhas da pa­lavra e do pensamento. Quem não luta nas ações bélicas, está no combate das idéias, comentando a situação. Reduzido número de homens e mulheres continuam cultivando a espiritualidade superior. É natural, portanto, que se intensifiquem, ao longo da Crosta, espessas nuvens de resíduos mentais dos encarnados invigilantes, multiplicando as tor­mentas destruidoras.

Aniceto escutava com atenção.

— Não me preocupo com sua pessoa — con­tinuou Alfredo, dirigindo-se de maneira particular ao nosso instrutor —, mas estes dois amigos, pen­so, seriam desagradavelmente surpreendidos.

— Tem razão — concordou Aniceto.

E, esboçando significativa expressão fisionômi­ca, prosseguiu:

— Avalio o sacrifício dos nossos companheiros espirituais, nos trabalhos de preservação da saúde humana.

- São grandes servidores — disse o senhor do castelo. — De quando em quando, observo-lhes, pessoalmente, os núcleos de atividade santa. A Humanidade parece preferir a condição de eterna criança. Faz e desfaz os patrimônios da civiliza­ção, como se brincasse com bonecas. Nossos ami­gos suportam pesados fardos de serviço para que as tormentas magnéticas, invisíveis ao olhar hu­mano, nÃo disseminem vibrações mortíferas, a se traduzirem pela dilatação de penúrias da guerra e por epidemias sem conta. As colônias espirituais da Europa, mormente as de nosso nível, estão so­frendo amargamente para atenderem às necessida­des gerais. Já começamos a receber grandes mas­sas de desencarnados, em conseqüência dos bom­bardeios. “Nosso Lar”, pela missão que lhe cabe, ainda não pode imaginar todo o esforço que o con­flito mundial vem exigindo da nossa colaboração nas esferas mais baixas. Os Postos de Socorro de várias colônias, ligadas a nós, estão superlotados de europeus desencarnados violentamente. Fomos notificados de que as súplicas da Europa dilace­ram o coração angélico dos mais altos cooperado­res de Nosso Senhor Jesus-Cristo. Aos terríveis bombardeios na Inglaterra, na Holanda, Bélgica e França, sucedem-se outros de não menor extensão. Depois de reiteradas assembléias dos nossos men­tores espirituais, resolveu-se providenciar a remoção de, pelo menos, cinqüenta por cento dos desencar­nados na guerra em curso, para os nossos núcleos americanos. Temos aqui o nosso campo de concen­tração com mais de quatrocentos.

— Mas não há dificuldade no socorro a essa gente? — indagou Aniceto em tom grave. — E a questão da linguagem?

— Os serviços de socorro, apesar de intensos na Europa, têm sido muito bem organizados, ex­plicou Alfredo —; para cada grupo de cinqüenta infelizes, as colônias, do Velho Mundo fornecem um enfermeiro-instrutor, com quem nos possamos en­tender, de modo direto. Desse modo, o problema não pesa tanto, porque nossa parte de colaboração consta de fornecimento de pessoal de serviço e de material de assistência.

— Não seria, porém, mais justo — indagou Vicente — que os desencarnados dessa espécie fos­sem mantidos nas próprias regiões do conflito?

Alfredo sorriu e explicou:

— Nossos instrutores mais elevados são de pa­recer que essas aglomerações seriam fatais à cole­tividade dos Espíritos encarnados. Determinariam focos pestilenciais de origem transcendente, com resultados imprevisíveis. Inúmeros de nossos ir­mãos que perdem o corpo nas zonas assoladas não conseguem subtrair-se ao campo da angústia; mas, quantos ofereçam possibilidades de transferência para cá, dentro das nossas cotas de alojamento, são retirados dali, sem perda de tempo, para que seus pensamentos atormentados não pesem em de­masia nas fontes vitais das regiões sacrificadas.

Nesse ínterim, Aniceto interveio, esclarecendo:

— Embalde voltarão os países do mundo aos massacres recíprocos. O erro de uma nação influirá em todas, como o gemido de um homem perturbaria o contentamento de milhões. A neutralidade é um mito, o insulamento uma ficção do orgulho político. A Humanidade terrestre é uma família de Deus, como bilhões de outras famílias planetárias no Universo Infinito. Em vão a guer­ra desfechará desencarnações em massa. Esses mesmos mortos pesarão na economia espiritual da Terra. Enquanto houver discórdia entre nós, pa­garemos doloroso preço em suor e lágrimas. A guerra fascina a mentalidade de todos os povos, inclusive de grande número de núcleos das esferas invisíveis. Quem não empunha as armas destrui­doras, dificilmente se afastará do verbo destrui­dor, no campo da palavra ou da idéia. Mas, to­dos nós pagaremos tributo. E’ da lei divina, que nos entendamos e nos amemos uns aos outros. To­dos sofreremos os resultados do esquecimento da lei, mas cada um será responsabilizado, de perto, pela cota de discórdia que haja trazido à família mundial.

Alfredo, que parecia ponderar seriamente os conceitos ouvidos, observou:

— É justo.

Aniceto voltou a considerar, após silêncio mais longo:

— Estive pessoalmente, a semana passada, em “Alvorada Nova”, que fica em zonas mais altas, e vim a saber que avançados núcleos de espiritua­lidade superior, dos planetas vizinhos, desde as primeiras declarações desta guerra, determinaram providências de máxima vigilância, nas fronteiras vibratórias mantidas conosco. Ensinam-nos os vi­zinhos beneméritos que devemos suportar, nos pró­prios ombros, toda a produção de mal que levar­mos a efeito. Somos, finalmente, a casa grande, obrigada a lavar a roupa suja nas próprias depen­dências.

Sorrimos todos, com essa comparação.

Ismália, que permanecia em silêncio, não obs­tante a funda impressão que se lhe estampara no rosto, considerou com delicadeza:

— Infelizmente, na feição coletiva, somos ain­da aquela Jerusalém escravizada ao erro. Todos os dias somos curados por Jesus e todos os dias conduzimo-lo ao madeiro. Nossas obras estão re­duzidas quase a simples recapitulações que fra­cassam sempre. Não saimos do estágio da experiência. E, dolorosamente para nós, estamos sempre a ensaiar, no mundo, a política com os Césares, a justiça com os Pilatos, a fé religiosa com os Fa­riseus, o sacerdócio com os rabinos do Sinédrio, a crença com os Jairos que acreditam e duvidam ao mesmo tempo, os negócios com os Anases e Caifases. Neste passo, não podemos prever a ex­tensão dos acontecimentos cruciais.

Encantado com as definições ouvidas, aventu­rei-me a dizer:

— Como é angustiosa, porém, a destruição pela guerra!

— Nestes tempos, contudo — observou Al­fredo, bondosamente —, a prece é uma luz mais intensa no coração dos homens. Bem se diz que a estrela brilha mais fortemente nas noites sem luz. Imaginem que, para iniciar providências de recepção aos desencarnados em desespero, já fui, mais de uma vez, aos serviços de assistência na Europa. Há dias, em missão dessa natureza, fomos, eu e alguns companheiros, aos céus de Bristol. A nobre cidade inglesa estava sendo sobrevoada por alguns aviões pesados de bombardeio. As pers­pectivas de destruição eram assustadoras. No seio da noite, porém, destacava-se, à nossa visão espi­ritual, um farol de intensa luz. Seus raios faiscavam no firmamento, enquanto as bombas eram arremessadas ao solo. A chefia da expedição re­comendou nossa descida no ponto luminoso. Com surpresa, verifiquei que estávamos numa igreja, cujo recinto devia ser quase sombrio para o olhar humano, mas altamente luminoso para nossos olhos. Notei, então, que alguns cristãos corajosos reuniam-se ali e cantavam hinos. O Ministro do Culto lera a passagem dos Atos, em que Paulo e Silas can­tavam à meia-noite, na prisão, e as vozes cristali­nas elevavam-se ao Céu, em notas de fervorosa confiança. Enquanto rebentavam estilhaços lá fora, os discípulos do Evangelho cantavam, unidos, em celestial vibração de fé viva. Nosso chefe mandou que nos conservássemos de pé, diante daquelas almas heróicas, que recordavam os primeiros criatãos perseguidos, em sinal de respeito e reconhe­cimento. Ele também acompanhou os hinos e de­pois nos disse que os políticos construiriam os abri­gos antiaéreos, mas que os cristãos edificariam na Terra os abrigos antitrevosos.

As vezes — concluiu o senhor do castelo, em tom significativo — é preciso sofrer para compre­ender as bênçãos divinas.


19

O sopro

Depois de interessantes considerações relativa­mente à situação dos círculos carnais, Aniceto vol­tou a examinar nossas necessidades de serviço.

Muito amável, Alfredo ponderou:

— Em virtude da tormenta iminente, poderiam demorar conosco algumas horas, seguindo amanhã, ao alvorecer.

E, com profunda surpresa, ouvi-o afirmar:

— Poderão utilizar meu carro, até à zona em que se torne possível. Fornecerei condutor adestrado e ganharão muito tempo com a medida.

Não podia caber em meu espanto. Embora co­nhecendo as operações dos Samaritanos em “Nosso Lar”, que empregavam grandes veículos de tração animal, em trabalhos de salvamento nas regiões inferiores e considerando as dificuldades de vulto que defrontáramos na caminhada longa, rumo ao Posto de Socorro, não supunha possível semelhante condução naquele instituto de auxilio.

Soube, mais tarde, que os sistemas de trans­porte, nas zonas mais próximas da Crosta, são muito mais numerosos do que se poderia imaginar, em bases transcendentes do eletromagnetismo.

Nosso orientador, que parecia meditar grave­mente a situação, observou preocupado:

— Entretanto, temos serviços urgentes nos círculos carnais. Vicente e André precisam iniciar aprendizado ativo.

Alfredo sorriu, bondoso, asseverando:

— Quanto a isso, não necessitaremos de maio­res cuidados. Há sempre quefazeres em toda a par­te. Onde houver espírito de cooperação da cria­tura, existe igualmente o serviço de Deus. Nossos amigos poderiam colaborar conosco, ainda hoje, nas atividades de assistência. Acompanhar-nos-iam, por exemplo, nos trabalhos da prece, nos quais há sempre muita coisa a fazer e muita lição a aprender.

— Excelente sugestão! — exclamou nosso ins­trutor. — A oração individual, ou coletiva, é sem­pre vasto reservatório de ensinos edificantes.

— Aliás — falou Ismália, afetuosa —, não devemos demorar. Estamos quase na hora.

Nesse momento, como se fôra chamado, de súbito, à lembrança de grave compromisso de tra­balho, falou o administrador, dirigindo-se à com­panheira:

— É preciso prevenir Olivia e Madalena das providências que se fazem imperiosas para a noite. Necessitaremos a colaboração de mais alguns téc­nicos do sopro. Temos alguns irmãos em estado grave, tomados de impressões físicas mais fortes.

— Técnicos do sopro? — indaguei, assombrado, antes que Ismália pudesse fazer qualquer obser­vação referente aos serviços.

— Sim, meu amigo — respondeu Alfredo, aten­ciosamente —, o sopro curador, mesmo na Terra, é sublime privilégio do homem. No entanto, quan­do encarnados, demoramo-nos muitíssimo a tomar posse dos grandes tesouros que nos pertencem. Comumente, vivemos por lá, perdendo tempo com a fantasia, acreditando em futilidades ou alimen­tando desconfianças. Quem pudesse compreender, entre as formas terrestres, toda a extensão deste assunto, poderia criar no mundo os mais eficientes processos soproterápicos.

— Mas, semelhante patrimônio está à dispo­sição de qualquer Espírito encarnado? — perguntou Vicente, compartilhando minha surpresa.

Nosso interlocutor pensou alguns instantes e respondeu, atencioso:

— Como o passe, que pode ser movimentado pelo maior número de pessoas, com benefícios apre­ciáveis, também o sopro curativo poderia ser utili­zado pela maioria das criaturas, com vantagens pro­digiosas. Entretanto, precisamos acrescentar que, em qualquer tempo e situação, o esforço indivi­dual é imprescindível. Toda realização nobre re­quer apoio sério. O bem divino, para manifestar-se em ação, exige a boa vontade humana. Nossos técnicos do assunto não se formaram de pronto. Exercitaram-se longamente, adquiriram experiên­cias a preço alto. Em tudo há uma ciência de começar. São servidores respeitáveis pelas realiza­ções que atingiram, ganham remunerações de vulto e gozam enorme acatamento, mas, para isso, pre­cisam conservar a pureza da boca e a santidade das intenções.

Compreendendo o interesse que suas palavras despertavam, continuou o administrador, depois de pequena pausa:

— Nos círculos carnais, para que o sopro se afirme suficientemente, é imprescindível que o ho­mem tenha o estômago sadio, a boca habituada a falar o bem, com abstenção do mal, e a mente reta, interessada em auxiliar. Obedecendo a esses requisitos, teremos o sopro calmante e revigorador, estimulante e curativo. Através dele, poder-se-átransmitir, também na Crosta, a saúde, o conforto e a vida.

E, como Vicente e eu não pudéssemos ocultar a perplexidade, Alfredo considerou:

— Isto não é novo. Jesus, além de tocar na­queles a quem curava, concedia-lhes, por vezes, o sopro divino. O sopro da vida percorre a Criação inteira. Toda página sagrada, comentando o prin­cipio da existência, refere-se a isso. Nunca pen­saram no vento, como sopro criador da Natureza? Quanto a mim, desde o ingresso em Campo da Paz, quando fui ali recolhido em péssimas condi­ções espirituais, tenho aprendido maravilhosas li­ções nesse particular. Tanto assim que, chefiando este Posto, tenho incentivado, com as possibilida­des ao meu alcance, a formação de novos coope­radores nesse sentido, oferecendo compensações aos que se decidam iniciar a tarefa de especialização, nem sempre fácil para todos.

A esse tempo, Ismália recebia algumas cola­boradoras de importância, que se preparavam para a tarefa.

Impressionado com o que ouvira, acompanhei de perto as providências que se organizavam.

Encontrando-me, porém, mais a sós com Ani­ceto, transmiti-lhe minha enorme surpresa, respon­dendo-me ele em tom confidencial:

— Esquecem-se vocês de que a própria Biblia, aludindo aos primórdios do homem, narra que o Criador assoprou na forma criada, comunicando-lhe o fôlego da vida. Referindo-nos aos nossos ir­mãos encarnados, faz-se preciso reconhecer, André, que, mesmo partindo de homens imperfeitos, mas de boa vontade, todo sopro com intenção de aliviar ou curar tem relevante significação entre as cria­turas, porque todos nós somos herdeiros diretos do Divino Poder. Aliás, é necessário observar tam­bém que não estamos diante de uma exclusividade. Você, por certo, passou muito ligeiramente pelo nosso Ministério do Auxílio. Temos, ali, grande instituto especializado nesse sentido, onde nobres colegas se votam a essa modalidade de coopera­ção. No plano carnal, toda boca, santamente intencionada, pode prestar apreciáveis auxílios, no­tando-se, porém, que as bocas generosas e puras poderão distribuir auxílios divinos, transmitindo fluidos vitais de saúde e reconforto.

Esperava que Aniceto prosseguisse, mostrando-me as qualidades magnéticas do sopro, mas Alfredo acercara-se de nós, operoso e solícito, exclamando:

— Estamos no momento destinado aos traba­lhos de assistência e oração.

— Segui-lo-emos com prazer — respondeu nos­so instrutor, sorrindo.

Era necessário interromper a lição, atendendo a deveres diferentes.


20

Defesas contra o mal

Descemos as escadarias e, em frente dos muros altos, pude observar a extensão das defesas do soberbo edifício. Aquela construção grandiosa era muito mais importante que a de qualquer castelo antigo, transformado em fortaleza.

Novamente no exterior, podia detalhar a visão panorâmica com mais exatidão. Reconhecia, agora, que entráramoS por um baluarte avançado, iden­tificando a imponência da construção majestosa. Apresentavam-se-me as linhas gerais com nitidez.

Impressionavam-me, sobretudo, as fortificações. Via a torre de mensagem, consagrada, por certo, ao serviço de resistência; o baluarte agudo, ele­vando-se acima dos fossos que deixavam transbor­dar a água corrente; a torre de vigia, esbelta e alterosa. Observei o caminho da ronda, a cister­na, as seteiras e, em seguida, as paliçadas e bar­bacãs, refletindo na complexidade de todo aquele aparelhamento defensivo. E as armas? Identifi­cava-lhes a presença na maquinaria instalada ao longo dos muros, copiando os pequenos canhões conhecidos na Terra. Entretanto, vi com emoção, no cume da torre de vigia, a enorme bandeira de paz, muito alva, tremulando ao vento como largo penacho de neve...

O administrador percebeu a estranheza que se apossara de Vicente e de mim.

— Já sei a impressão que a nossa defesa lhes causa — disse Alfredo, detendo-se para explicar.

Fixando-nos com o olhar muito lúcido, con­tinuou:

— Naturalmente, não imaginavam necessárias tantas fortificações. Conforme vêem, nossa ban­deira é de concórdia e harmonia; no entanto, éimprescindível considerar que estamos em serviço que precisaremos defender, em qualquer circuns­tância. Enquanto não imperar a lei universal do amor, é indispensável persevere o reinado da jus­tiça. Nosso Posto está colocado, aqui, igualmente, como “ovelha em meio de lobos”, e, embora não nos caiba efetuar o extermínio das feras, necessi­tamos defender a obra do bem contra os assaltos indébitos. As organizações dos nossos irmãos con­sagrados ao mal são vastíssimas. Não admitam a hipótese de serem, todos eles, ignorantes ou in­conscientes. A maioria se constitui de perversos e criminosos. São entidades verdadeiramente dia­bólicas. Não tenham disso qualquer dúvida.

— Deus meu! — exclamou Vicente, admira­do — mas porque se organizam deliberadamente para o mal? Não sabem, porventura, que todos os pa­trimônios universais pertencem à Majestade Di­vina? Não reconhecem o Soberano Poder?

— Ah! meu amigo — falou Alfredo em tom grave —, fiz as mesmas perguntas quando aqui cheguei pela primeira vez. As respostas que tive foram incisivas e concludentes. Poderíamos, Vicente, formular na Crosta as mesmas interrogações. Os criminosos que fazem as vítimas da guerra, os exploradores da economia popular, os avarentoS misérrimos, os sedentos de injustificado predomí­nio e os vaidosos cheios de fatuidade sabem, tão bem quanto os nossos adversários daqui, que tudo pertence a Deus, que o homem é simples usufru­tuário dos divinos bens. Não ignoram que os an­tepassados foram chamados à verdade e a contas pela morte, e que eles seguirão os mesmos cami­nhos; entretanto, atormentam-se na Crosta como verdadeiros loucos, amontoando possibilidades para a ruína e abusando das oportunidades mais santas. Aqui se verifica a mesma coisa. Querem dominar antes de se dominarem, exigem antes de dar e entram em perene conflito com o espírito divino da lei. Estabelecido o duelo entre a fantasia deles e a verdade do Pai, resistem às corrigendas do Senhor e transformam-se, esses desventurados, em verdadeiros gênios da sombra, até que, um dia, se decidam a novos rumos.

Intrigado com as profundas observações, per­guntei:

— Mas, como explicar as bases de semelhante atitude? Na Terra, compreendemos certos enganos, mas aqui...

O generoso interlocutor não me deixou termi­nar e prosseguiu:

— Na Crosta, nossos irmãos menos felizes lu­tam pela dominação econômica, pelas paixões de­sordenadas, pela hegemonia de falsos princípios. Nestas zonas imediatas à mente terrestre, temos tudo isso em identidade de condições. Entre as entidades perversas e ignorantes, há cooperativas para o mal, sistemas econômicos de natureza feu­dalista, baixa exploração de certas forças da Natureza, vaidades tirânicas, difusão de mentiras, escravização dos que se enfraquecem pela invigi­lância, doloroso cativeiro dos Espíritos falidos e im­previdentes, paixões talvez mais desordenadas que as da Terra, inquietações sentimentais, terríveis de­sequilíbrios da mente, angustiosos desvios do sen­timento. Em todo o lugar, meu amigo, as quedas espirituais, perante o Senhor, são sempre as mes­mas, embora variem de intensidade e coloração.

— Mas... e as armas? — perguntei — acaso são utilizadas?

— Como não? — disse Alfredo, pressuroso — não temos balas de aço, mas temos projetis elétricos. Naturalmente, a ninguém atacaremos. Nossa tarefa é de socorro e não de extermínio.

— No entanto — aduzi, sob forte impres­são —, qual o efeito desses projetis?

— Assustam terrivelmente — respondeu ele, sorrindo — e, sobretudo, demonstram as possibi­lidades de uma defesa que ultrapassa a ofensiva.

— Mas apenas assustam? — tornei a inter­rogar.

Alfredo sorriu mais significativamente e acrescentou:

— Poderiam causar a impressão de morte.

— Que diz! — exclamei com insofreâvel es­panto.

O administrador meditou alguns instantes, e, ponderando, talvez, a gravidade dos esclarecimen­tos, obtemperou:

— Meu amigo! meu amigo! se já não estamos na carne, busquemos desencarnar também os nos­sos pensamentos. As criaturas que se agarram, aqui, às impressões físicas, estão sempre criando densidade para os seus veículos de manifestação, da mesma forma que os Espíritos dedicados à re­gião superior estão sempre purificando e elevando esses mesmos veículos. Nossos projetis, portanto, expulsam os inimigos do bem através de vibrações do medo, mas poderiam causar a ilusão da morte, atuando sobre o corpo denso dos nossos semelhan­tes menos adiantados no caminho da vida. A mor­te física, na Terra, não é igualmente pura impres­são? Ninguém desaparece. O fenômeno é apenas de invisibilidade ou, por vezes, de ausência. Quan­to à responsabilidade dos que matam, isto é outra coisa. E além desta observação, que é da alçada da Justiça Divina, temos a considerar, igualmente. que, nesta esfera, o corpo denso modificado pode ressurgir todos os dias, pela matéria mental destinada à produção dele, enquanto que, para obter o corpo físico, almas há que trabalham, por vezes, durante séculos...

Vicente e eu caláramos, estupefatos.

Alfredo sorriu serenamente e perguntou, bem humorado:

— Vocês conhecem a lenda hindu da serpente e do santo?

Ante a nossa expressão negativa, o adminis­trador continuou:

- Contam as tradições populares da Índia que existia uma serpente venenosa em certo campo. Ninguém se aventurava a passar por lá, recean­do-lhe o assalto. Mas um santo homem, a serviço de Deus, buscou a região, mais confiado no Senhor que em si mesmo. A serpente o atacou, desres­peitosa. Ele dominou-a, porém, com o olhar sereno, e falou: — Minha irmã, é da lei que não façamos mal a ninguém. A víbora recolheu-se, envergo­nhada. Continuou o sábio o seu caminho e a ser­pente modificou-se completamente. Procurou os lu­gares habitados pelo homem, como desejosa de reparar os antigos crimes. Mostrou-se integralmen­te pacífica, mas, desde então, começaram a abusar dela. Quando lhe identificaram a submissão abso­luta, homens, mulheres e crianças davam-lhe pe­dradas. A infeliz recolheu-se à toca, desalentada. Vivia aflita, medrosa, desanimada. Eis, porém, que o santo voltou pelo mesmo caminho e deliberou visitá-la. Espantou-se, observando tamanha ruína. A serpente contou-lhe, então, a história amargu­rada. Desejava ser boa, afável e carinhosa, mas as criaturas perseguiam-na e apedrejavam-na. O sábio pensou, pensou e respondeu após ouvi-la:

— Mas, minha irmã, houve engano de tua parte. Aconselhei-te a não morderes ninguém, a não pra­ticares o azsassinio e a perseguição, mas não te disse que evitasses de assustar os maus. Não ata­ques as criaturas de Deus, nossas irmãs no mesmo caminho da vida, mas defende a tua cooperação na obra do Senhor. Não mordas, nem firas, mas é preciso manter o perverso a distância, mostran­do-lhe os teus dentes e emitindo os teus silvos.

Nesse momento, Aniceto sorriu de maneira expressiva.

O administrador fez longa pausa e concluiu:

— Creio que a fábula dispensa comentário.


21

Espíritos dementados

Inúmeros servidores acompanhavam-nos ao ser­viço. Movimentavam-se carregadores sem conta. Conduziam grandes botijas dágua, caldeirões de sopa, vasos de substância medicamentosa, em ga­leotas diversas.

Mais alguns passos e notei que centenas de entidades se reuniam em vastos albergues, olhos vagueantes e rostos sombrios, parecendo uma as­sembleia de loucos em manicômio de amplas proporções.

Alfredo aconselhou umas tantas providências de serviço à maioria dos técnicos do sopro curativo, os quais se desviaram de nós, rumo às edifi­cações situadas em zona diferente.

Gentilmente nos explicava que os benfeitores de “Campo da Paz” localizavam, ali, grande número de Espíritos enfermos, mais desequilibrados que prôpriamente perversos. Os doentes que tínhamos sob os olhos permaneciam em melhores condições. Já se locomoviam e muitos deles já conversavam, apesar do desequilíbrio que lhes assinalava as pa­lavras e pensamentos.

Esclarecia-nos sobre as múltiplas obrigações do trabalho de rotina, quando algumas entidades se acercaram, respeitosas:

— Senhor Alfredo — disse um velho de bar­bas muito alvas —, estou aguardando o resultado da minha petição. Em que ficamos, quanto às minhas terras e os escravos? Paguei bom preço ao Carmo Garcia. Sabe o senhor que venho sendo perseguido durante muitos anos, e não posso perder mais tempo. Quando volto para casa? Creio esteja o senhor ciente da necessidade de eu voltar ao seio dos meus. Esperam-me a mulher e os filhos.

Como excelente médico da alma, Alfredo pres­tou a maior atenção e respondeu, como se estivesse tratando com pessoa de bom senso:

— Sim, Malaquias, você reclama com razão, mas sua saúde não permite o regresso apressa­do. Você sabe que sua esposa, Dona Sinhá, pediu fôsse você aqui tratado convenientemente. Creio que ela deve estar muito tranqüila a seu respeito. Suas idéias, porém, meu amigo, não estão ainda bem coordenadas. Temos alguma coisa mais a fazer. Porque preocupar-se tanto, assim, com as terras e os escravos? Primeiramente a saúde, Malaquias; não esqueça a saúde!

O velho sorriu, como o doente apoiado na fir­meza e no otimismo do médico.

— Reconheço que as suas observações são justas, mas meus filhos não se movem sem mim, são preguiçosos e necessitam da minha presença.

Mas, doutrinando sutihnente o pobre velhinho, o administrador objetou:

— Entretanto, donde vieram os filhos para os seus braços paternos? Não vieram das mãos de Deus?

— Sim, sim... — afirmava o ancião, trêmulo e satisfeito.

- Pois é isso, Malaquias, chegam instantes na vida, em que precisamos devolver a Deus o que a Ele pertence. Além do mais, seus filhos são tam­bém responsáveis, e, se forem ociosos, responde­rão pelos males que criarem em torno de si mes­mos. Por agora, é indispensável que você se refaça, aclare as ideias e sossegue o coração.

O velho sorriu, confortado, mas, antes que pudesse falar de novo, um cavalheiro, denotando nobre aprumo, adiantou-se, exclamando:

— E a solução do meu processo, senhor Al­fredo? Sinto-me prejudicado pelos parentes de má fé. Minha parte na herança dos avós é cobiçada pelos primos. Segundo já lhe fiz ver, meu qui­nhão é superior aos demais. Soube, todavia, que o Visconde de Cairu interpôs toda a sua influên­cia contra mim. Ninguém ignora tratar-se de um grande velhaco. Que não poderá ele fazer com as artimanhas políticas? Está mal informado a meu respeito. O senhor enviou meu pedido ao Imperador?

— Já expedi a mensagem — esclareceu Alfre­do com carinho fraternal —, o Imperador certa­mente levará em conta a solicitação.

— Entretanto, a demora é muito gran­de!... — falou o cavalheiro, impaciente, como se estivesse diante de um subordinado vulgar.

— Mas, meu caro Aristarco — respondeu o administrador, muito calmo —, acredito que você está sendo experimentado para conhecer a gran­deza da herança divina. Que valem os patrimônios terrestres, ante os patrimônios imperecíveis? Não pense no que tem perdido; medite nos bens subli­mes que poderá alcançar, diante da Vida Eterna. Esqueça os primos ambiciosos e o Visconde que não o compreendeu. Terão eles de deixar quanto possuem, no campo transitório, a fim de prestarem contas à Divindade. Nunca pensou nisto?

Aristarco pareceu perder, por momentos, a inquietação, sorriu francamente e respondeu:

— É verdade! Os tratantes morrerão...

Uma senhora, mostrando-se aflita, pôs-se ànossa frente e Interpelou, altiva:

— Senhor Alfredo, peço-lhe não me retenha aqui. Meu marido é nosso próprio adversário. Pro­meteu perseguir as filhas, tão logo me ausentasse de casa. Aqui permanecendo, estou certa de que ele nos dissipará os bens, desmoralizar-nos-á o nome. Por favor, autorize o meu regresso. O coração me diz que as filhinhas estão desesperadas. Convenço-me, cada vez mais, de que e. minha mo­léstia teve origem neste estado de coisas...

— Já sei, minha irmã — respondeu o nosso amigo com a mesma solicitude —; no entanto, que adiantaria regressar, tão fortemente atormentada? Não será melhor curar-se, tranqüilizar o espírito para ajudar as filhinhas com eficiência?

— Mas, nem sequer sei onde estou — recla­mou a pobre senhora, torcendo as mãos —, creio me tenham trazido ao fim do mundo, para trata­mento de uma simples perda de sentidos!

— Todavia, ninguém a maltrata — disse o interlocutor, bondosamente — e seu caso não étão simples como parece. Tenha calma. Os laços consangüineos são edificantes, mas, acima deles, vibra a família universal. Há criaturas suportando fardos muito mais pesados que o seu. Aprenda, quanto esteja em suas possibilidades, a desfazer-se de aquisições passageiras, para ganhar os eternos bens.

A infeliz não sorriu como os outros. Fechan­do-se em sombria catadura, afastou-se pesadamen­te, olhos fulgurantes de cólera, como se a mente estivesse cravada muito longe, incapaz de qualquer compreensão.

Adiantaram-se outros enfermos, mas o admi­nistrador falou em voz alta:

— Não posso atender a todos no momento. Depois de amanhã, serão recebidos para explicações.

E, voltando-se para nós, esclareceu a sorrir:

— No circulo carnal, seriam todos absoluta­mente normais; no entanto, aqui, são verdadeiros loucos. São desencarnados que, por muito tempo, se agarraram aos problemas inferiores. Reclamam providências, sem falar no ensejo de iluminação que menosprezaram, acusam os outros, sem relaciona­rem os próprios erros. Procurei ouvi-los para lhes dar uma idéia do nosso trabalho, no setor dos que se desequilibram mentalmente por excesso de centralização em propósitos inferiores. Não é crime interessar-se alguém pelas atividades rurais, pela recepção de uma herança, pelo bem-estar da famí­lia; mas, no fundo, o velhinho que reclama terras e escravos nunca pensou senão em tirania no cam­po; o cavalheiro, que aguarda a herança, deseja lesar os primos; e a senhora, que se revelou tão Interessada pelo ambiente doméstico, desencarnou quando pretendia envenenar o marido, às ocultas.

Conheço-lhes os processos, um a um. Acordaram de longo sono, na inconsciência, e julgam-se ainda encarnados, supondo igualmente que podem dissi­mular as pretensões criminosas.

Eu estava assombrado. Expressando minha profunda admiração, perguntei:

— Esses doentes demoram-se aqui? Como al­cançaram o Posto?

Gentil, como sempre, Alfredo respondeu:

— Foram recolhidos em pior estado. Já esti­veram em pesado sono durante muito tempo e vão readquirindo a memória, gradativamente, até que possam ser encaminhados aos Institutos Magnéticos de “Campo da Paz”, a fim de receberem maiores auxílios e necessários esclarecimentos.


22

Os que dormem

Seguimos através de longas filas de arvoredo acolhedor, rumo às vastas edificações que obede­ciam a linhas arquitetônicas singulares.

Sem que eu pudesse explicar o fenômeno, as luzes diminuíam progressivamente. Que teria acon­tecido? Vicente e eu nos entreolhamos, assustados. Alfredo, Aniceto e os demais, todavia, caminhavam sem surpresa. A serenidade deles tranqüilizava-me o íntimo, embora o espanto insofreável.

Mais alguns passos, atingimos os pavilhões di­ferentes, que se estendiam em área superior a três quilômetros, pelos meus cálculos. Lá dentro, contudo, as sombras se fizeram mais densas. Con­seguia distinguir, vagamente, os quadros interio­res, observando que se tratava, a meu ver, de espaçosas enfermarias com teto sólido, mas semi-abertas ao longo das paredes altas, dando livre passagem ao ar.

Dezenas de operários, devotados e operosos, seguiam-nos em absoluto silêncio.

Alfredo era o único a falar, notando-se, con­tudo, que se fizera extremamente discreto nas pa­lavras.

Tudo isso me dava a impressão de haver pe­netrado um cemitério escuro, onde os visitantes fossem obrigados a guardar todo o respeito aos mortos.

Com estranheza, notei que um dos servidores entregara ao chefe do Posto pequenina máquina, que Alfredo nos deu a conhecer gentilmente, ex­plicando:

— Este é o nosso aparelho de sinalização lu­minosa. Estamos no centro dos pavilhões a que se recolhem irmãos ainda adormecidos. Temos aqui, presentemente, quase dois mil.

Os numerosos cooperadores dirigiam-se em or­dem para a zona de serviços que lhes competiam.

Depois de pequena pausa, falou o administra­dor com firmeza:

— Iniciemos o trabalho de assistência.

Ao primeiro sinal luminoso de Alfredo, acen­deram-se numerosas lâmpadas elétricas e, então, dominando, a custo, a primeira impressão de hor­ror, vi extensas filas de leitos ao rés do chão, ocupa­dos todos por pessoas mergulhadas em profundo sono. Muitos tinham o semblante horrendo. Eram muito poucos os que traziam as pálpebras cerra­das, parecendo tranqüilos. Em quase todos, estam­pavam-se-lhes nos olhos, aparentemente vitrífica­dos, o extremo pavor e o doloroso desespero da morte. Cadavérica palldez cobria-lhes a face.

Recordando a literatura antiga, pensei nos ve­lhos túmulos egípcios. Tínhamos, diante de nós, centenas de múmias perfeitas. Raríssimos pareciam dormir um sono natural.

Aproximando-se de nós outros, Alfredo falou a Aniceto, em particular:

— Infelizmente, não podemos atender a todos.

— Porquê? — indagou nosso orientador, co­movido.

— Estamos aguardando pessoal adestrado. Te­nho aqui a colaboração de oitenta auxiliares para este gênero de serviço; entretanto, não pode cada qual atender a mais de cinco doentes de uma só vez. A vista disso, dos nossos mil novecentos e oitenta abrigados, separei os quatrocentos mais suscetíveis de próximo despertar, a fim de subme­tê-los ao tratamento intensivo.

— E os demais?

— Recebem alimento e medicação mais den­sos uma vez por dia.

Aniceto calou-se, pensativo.

Profundamente tocado pelo que via, inclinei-me instintivamente para o abrigado mais próximo, ten­tando examinar-lhe o estado fisiológico. Identifi­quei o calor orgânico, a pulsação regular e oS movimentos respiratórios, embora verificasse a ex­trema rigidez dos membros, como que mergulhados em imobilidade cataléptica.

Indescritível impressão apoderou-se de mim. Levantei-me assustado, dirigi-me a Aniceto com a máxima discrição, e interroguei:

Explicai-me, por Deus! que vemos aqui? Estamos, acaso, na moradia da morte, depois da morte?

O instrutor sorriu, complacente, e explicou em voz quase imperceptível:

— Sim, André, este sono é, verdadeiramente, avançada imagem da morte. Aqui permanecem, com a bênção do abrigo, alguns milhões dos nos­sos irmãos que ainda dormem. São as criaturas que nunca se entregaram ao bem ativo e renova­dor, em torno de si, e mormente os que acreditaram convictamente na morte, como sendo o nada, o fim de tudo, o sono eterno. A crença na vida superior é atividade incessante da alma. A ferru­gem ataca a enxada ociosa. O entorpecimento in­vade o Espírito vazio de ideal criador. Os que, nos círculos carnais, homens e mulheres, crêem na vida eterna, ainda que não sejam fundamental­mente cristãos, estão desenvolvendo faculdades de movimentação espiritual e podem penetrar as es­feras extraterrenas em estado animador, pelo me­nos quanto à locomoção e juízo mais ou menos exato. No entanto, as criaturas que perseveram em negação deliberada e absoluta, não obstante, por vezes, filiadas a cultos externos de atividade religiosa, que nada vêem além da carne nem desejam qualquer conhecimento espiritual, são ver­dadeiramente infelizes. Muitos penetram nossas regiões de serviço, como embriões de vida, na câ­mara da Natureza sempre divina. Um amigo nosso costuma designá-los por fetos da espiritualidade; entretanto, a meu ver, seriam felizes se estivessem nessa condição inicial. Temos a certeza, porém, de que muitos se negaram ao contacto da fé, absolu­tamente por indiferença criminosa aos desígnios do Eterno Pai. Dormem, porque estão magnetiza­dos pelas próprias concepções negativistas; perma­necem parallticos, porque preferiram a rigidez ao entendimento; mas dia virá em que deverão levan­tar-se e pagar os débitos contraídos. Eis porque os considero sofredores. Primeiramente, demoram no sono em que acreditaram, mais tarde acordam; porém, a maioria não pode fugir à enfermidade e à perturbação, como acontece aos irmãos demen­tados, que vimos inda há pouco.

Grande o meu assombro. Como Vicente se aproximasse, também, para ouvi-lo, falou Aniceto, esclarecendo a nós ambos:

— A fé sincera é ginástica do Espírito. Quem não a exercitar de algum modo, na Terra, preferindo deliberadamente a negação injustificável, encontrar-se-á mais tarde sem movimento. Seme­lhantes criaturas necessitam de sono, de profundo repouso, até que despertem para o exame das res­ponsabilidades que a vida traduz.

Observando que o nosso orientador se esqui­vava a comentários longos, para que pudéssemos seguir, de mais perto, os trabalhos de assistência, calei as muitas indagações que me escaldavam a mente.

Com exceção de algumas senhoras que per­maneciam junto de Ismália, todo. os servidores se mantinham em posição de vigilância, ao pé dos grupos mumificados. A luz artificial iluminava os leitos, que se perdiam de vista, mas observei que nenhum dos albergados reagia à intensa claridade que se fizera. Continuavam rígidos, cadavéricos, prostrados.

Notei, então, que Alfredo começou a mover o aparelho de sinalização, para emitir as ordens de serviço. Cada sinal determinava operação diferente.

Vi os servidores do Posto distribuírem peque­nas porções de alimento líquido e medicação bucal, em profundo silêncio. Em seguida, forneceram re­duzidas quantidades de água efluviada aos infeli­zes, com exceção, porém, de muitos que pareciam preparados a receber, tão sõmente, caldo e remé­dio. Dois terços dos quatrocentos abrigados em tratamento receberam passes magnéticos. Alguns poucos receberam aplicações do sopro curador.

Todos os movimentos do trabalho eram trans­mitidos pela sinalização luminosa, partida das mãos do administrador, que parecia interessado na ma­nutenção do máximo silêncio. Impressionado com o que via, perguntei ao orientador, em voz baixa, a razão de alguns enfermos não terem sido beneficia­dos com a água e com o socorro de forças novas, através do passe e do sopro vivificante.

Aniceto, todo bondade, inclinou-se aos meus ouvidos, com a ternura de um pai ansioso por tranqüilizar o filhinho inquieto, e falou:

— Cada um na vida, meu caro André, tem a necessidade que lhe é peculiar. Aqui, compreende­mos com amplitude esse imperativo da Natureza.


23

Pesadelos

Enquanto Alfredo continuava dirigindo os ser­viços, nosso instrutor, com a permissão dele, con­duziu-nos aos leitos distantes, onde se asilavam os enfermos desatendidos quanto ao auxílio magnético.

— Precisamos acentuar experiências e aprovei­tar oportunidades — afirmou Âniceto, sorridente.

Acompanhamo-lo, curiosos, identificando as ex­pressões isoladas, dolorosas ou terríveis, daquelas máscaras mortuárias.

Quando nos encontrávamos a regular distância da zona central, o instrutor esclareceu, em tom grave:

— Desejaria conhecer a extensão dos benefí­cios colhidos por vocês no Gabinete de Auxílio Magnético às Percepções. Para ajudar eficiente­mente aos nossos amigos encarnados, é necessário saibamos ver com clareza e precisão.

Indicando os doentes imóveis, acrescentou:

— Todos os que dormem nestes pavilhões per­manecem dentro do mau sono.

— Mas teremos, porventura, nas zonas espiri­tuais, os que estejam em bom sono? — interrogou Vicente, de modo brusco.

— Sem dúvida — respondeu Aniceto, solíci­to —, temos na esfera de nossas atividades os que repousam períodos curtos, quais trabalhadores re­tos que esperam o repouso noturno, com a tranqüilidade dos que sabem trabalhar e descansar, de consciência aliviada.

Fez uma pausa, como quem estudava o melhor meio de sintetizar, por não perder tempo, e acen­tuou:

— Mas esses não precisam estacionar, como filhos da sombra, nas construções de emergência de um Posto de Socorro.

Em seguida, retomou o fio da lição e conti­nuou:

— Quem dorme em desequilíbrio, entrega-se a pesadelos. Todos estes irmãos desventurados que nos cercam, aparentemente mortos, são presas de horríveis visões íntimas. Vejamos o aproveitamen­to de vocês. Procedamos a observações rápidas. Antigamente, o inquérito anatômico, o exame das vísceras, a perquirição científica nas células, tam­bém aparentemente mortas; agora, a auscultação profunda da alma, a sondagem dos sentimentos, a visão do plano mental.

E, com expressão decidida, concluiu, resoluto:

— Mãos à obra!

Designando-me um corpo envelhecido de mu­lher, recomendou:

— Você, André, examine detidamente essa irmã. Abstenha-se de todas as considerações do plano exterior. Observe-a com todas as possibili­dades e percepções ao seu alcance.

Sinceramente interessado em atender, não re­parei nas ordens que o nosso instrutor transmitia a Vicente.

Procurei esquecer os quadros externos, focall­zando aquela máscara feminina com todos os meus recursos mentais. A medida que me despreocupava dos interesses diferentes, observava a sombra cin­zento-escura que se lhe ia condensando em torno da fronte. A visão parecia auxiliar-me o poder de con­centração. Reconhecendo que o fenômeno se acen­tuava, não mais lembrei qualquer objeto ou situação exterior. Estupefato, comecei a divisar formas movimentadas no âmbito da pequena tela sombria. Surgiu uma casa modesta de cidade humilde. Tive a impressão de transpor-lhe a porta. Lá dentro, um quadro horrível e angustioso. Uma senhora de idade madura, demonstrando crueldade impassí­vel no rosto, lutava com um homem embriagado.

— “Ana! Ana! pelo amor de Deus! não me ma­tes!” — dizia ele, súplice, incapaz de defender-se.

— “Nunca! Nunca te perdoarei !“ — exclamava a mulher, acrescentando em tom lúgubre — “Mor­rerás esta noite”. — vi o infeliz cair, exausto.

— “Envenenaste-me com bebida mortal” — excla­mava ele, lacrimoso — “perdoa-me se te causei al­gum mal! Sou pai! Ana! preciso viver para meus filhos! Não me mates, por piedade!” — Ela ouviu com frieza e respondeu duramente: — “Morrerás mesmo assim. Tenho a infelicidade de amar-te, a ti que pertences a outra mulher! Não quiseste se­guir-me e preciso vingar-me!” Rebolcando-se no as­soalho, tomava o infeliz: — “Deus sabe que estou arrependido do meu criminoso passado! Quero vi­ver para o bem, Ana! Perdoa-me por amor do Eter­no Pai! Quem sabe poderei auxiliar-te como irmão? Ajuda-me para que te possa ajudar! Não me ma­tes! Não me mates! “A mulher, porém, como se tivesse a maldade agravada, ao ouvir a expressão da virtude, tomou de um pesado martelo e excla­mou: — “Deus não existe! Deus não existe! Mor­rerás, infame! “E, de súbito, crivou-lhe o crânio de marteladas surdas. O homem expirou sem um grito. Logo após, vi a criminosa conduzindo o ca­dáver em carrinho de mão, através de um trilho ermo. Acompanhava-lhe os movimentos com inte­resse. A noite estava muito escura, mas observei a parada junto à via férrea. Sondou os arredores, certificou-se do insulamento em que se encontrava e depôs a estranha carga sobre os trilhos. Vi-a dispondo o cadáver para que a cabeça fôsse dece­pada à passagem do comboio, retirando-se apressadamente, reconduzindo o pequeno carro vazio. Não esperei a máquina de ferro. Segui a mulher que me pareceu inquieta e pensativa. Antes, po­rém, que depusesse o carrinho no extenso quintal, vi que arregalava os olhos como louca, cercada de seres que me pareceram bandidos de negras vestes. Era ela, agora, quem acusava estranha embriaguez de pavor. Vencera um pobre homem invigilante, mas, a meu ver, seria vencida por seres mais per­versos, talvez, que ela própria: — “Acudam-me! acudam-me!” — gritava, espavorida. E continuava a cena, em que a desventurada golfava súplicas em vão.

Senti-me como espectador que precisasse movi­mentar qualquer socorro. E, graças à Bondade Divina, não experimentei pela mulher infeliz senão a mais viva compaixão. Ao primeiro impulso de revolta pelo crime consumado, recordei as lições já recebidas em “Nosso Lar” e pensei na possibi­lidade de ser a criminosa alguma pessoa querida ao meu coração. Se Ana estivesse no mundo, ao meu lado, na família do sangue, não desejaria au­xiliá-la? Porque haveria de acusá-la, se não lhe conhecia o passado total? Ter-lhe-iam dado a edu­cação na infância, a bênção do lar, a segurança de um afeto sem manchas? Quem sabe viera de longe, como pedra incompreendida, rolando nos abismos do sofrimento? Que laços a uniriam à vítima, igual­mente digna de piedade fraternal? Como teria co­meçado o drama doloroso? Não sabia. Enxergava sômente a pobre mulher rodeada de sombras agres­sivas, implorando socorro. Ignorava como ajudá-la, mas recordei que Ana era minha irmã, filha do mesmo Pai, irmã que adoecera no caminho comum, sem que eu pudesse, pelo menos por agora, inda­gar a causa. Procurava, comigo mesmo, algum meio de auxiliá-la, quando alguém me chamou de súbito.

Era Aniceto que exclamava, bondoso:

— Venha, André! Vicente e você têm sabido aproveitar alguma coisa. Estou satisfeito. Seus pensamentos de fraternidade e paz muito auxiliaram essa irmã infeliz. Guarde a certeza disso e conti­nue buscando a compreensão para socorrer e aju­dar com êxito. Conforme observaram de perto, sabem agora que cada um dos que aqui dormem sono atormentado, vivem estranhoS pesadelos, de que não podem isentar-se de um instante para outro. Não precisamoS comentar qualquer episodio dessas existências vividas em oposição à Vontade Divina. Bastará lembrar sempre que a divida, em toda parte, anda com os devedores.

E com expressivo olhar, acrescentou:

— Voltemos ao centro. DevemoS cooperar na oração.


24

A prece de Ismália

Dentro de poucos instantes, reuníamo-nos, de novo, ao grupo.

O administrador fêz um sinal luminoso, em forma triangular, e observei que todos os cooperadores se puseram de pé, em atitude respeitosa.

— É o momento da oração, no Posto de So­corro — disse Alfredo, gentil, como a prestar-nos esclarecimentos precisos.

O Sol desaparecera no firmamento, mas toda a cúpula celeste refletia-lhe o disco de ouro, Os tons crepusculares encheram as vizinhanças de ma­ravilhosos efeitos de luz, muito visíveis agora ao nosso olhar, porque Alfredo, sem que eu pudesse conhecer o motivo, mandara apagar todas as luzes artificiais, antes da oração. No centro dos pavi­lhões, a sombra se fizera, desse modo, muito inten­sa, mas o novo aspecto do firmamento, banhado em tonalidades sublimes, dava-nos a impressão da permanência em prodigioso palácio, em virtude do imenso teto azul iluminado a distância.

Fundamente impressionado, procurei convizi­nhar-me mais do pequeno grupo de companheiros.

Do quadro de colaboradores do castelo, apenas algumas senhoras permaneciam junto de nós, como se estivessem fazendo honrosa companhia à nobre Ismália. Os demais, homens e mulheres, mantinham-se nos lugares de serviço que lhes compe­tiam, não longe das criaturas mumificadas.

Notei que, embora instado, Aniceto esquivou-se à chefia espiritual da oração, alegando que, por direito, essa posição cabia à devotada esposa de Alfredo.

Ismália, então, num gesto de indefinível deli­cadeza, começou a orar, acompanhada por todos nós, em silêncio, salientando-se, porém, que lhe seguíamos a rogativa, frase por frase, atendendo a recomendações do nosso orientador, que aconse­lhou repetir, em pensamento, cada expressão, a fim de imprimir o máximo ritmo e harmonia ao verbo, ao som e à ideia, numa só vibração.

«Senhor! — começou Ismália, comovidamente —dignei-vos assistir os nossos humildes tutelados, envian­do-nos a luz de vossas bênçãos santificantes. Aqui estamos, prontos para ezecutar vossa vontade, sinceramente dispostos a secundar vossos altos desígnios. Co­nosco, Pai, reunem-se os irmãos que ainda dormem, anestesiados pela negação espiritual a que se entrega­ram no mundo. Despertai-os, Senhor, se é de vossos desígnios sábios e misericordiosos, despertai-os do sono doloroso e infeliz. Acordai-os para a responsabilidade, para a noção dos deveres justos!... Magnânimo Rei, apiedei-vos de vossos súditos sofredores; Criador compassivo, levantai as vossas criaturas caídas; Pai Justo, desculpai vossos filhos desventurados! Permiti caia o orvalho do vosso amor infinito sobre o nosso modesto Posto de Socorro!... Seja feita a vossa vontade acima da nossa, mas se é possível, Senhor, deixai que os nossos doentes recebam um raio vivificante do Sol da vossa bondade!...”

A voz de Ismália penetrava-me o recesso do coração.

Observando-a, por um momento, reparei que a esposa de Alfredo se transfigurara. Luzes diamantinas irradiavam de todo o seu corpo, em particular do tórax, cujo âmago parecia conter miste­riosa lâmpada acesa.

Em vista da ligeira pausa que imprimira àoração, observei a nós outros, verificando que o mesmo fenômeno se dava conosco, embora menos intensamente. Cada qual parecia, ali, apresentar uma expressão luminosa, gradativa. As senhoras que acompanhavam Ismália estavam quase semelhantes a ela, como se trajassem soberbos costumes radiosos, em que predominava a cor azul. Depois delas, em brilho, vinha a luz de Aniceto, de um lilás surpreendente. Em seguida, tínhamos Alfredo, cuja luz era de um verde suave e sugestivo, sem grande esplendor. Depois dele, vinham alguns servidores ostentando na fronte claridades sublimes, expressas em variadas cores, e, logo após, Vicente e eu, mos­trávamos fraca luminosidade, a qual, porém, nos enchia de júbilo intenso, considerando que a maio­ria dos cooperadores em -serviço apresentava o cor­po obscuro, como acontece na esfera carnal.

Com voz pausada e comovedora, Ismália pros­seguiu:

“Temos, ao nosso lado, Senhor, infortunadas mães que não souberam descobrir o sentido sublime da fé, resvalando, Imprudentemente, nos despenhadeiros da indiferença criminosa; pais que não conseguiram ultra­passar a materialidade no curso da existência humana, Incapazes de ver a formosa missão que lhes confiastes; cônjuges desventurados pela incompreensão de vossas leis augustas e generosas; jovens que se entregaram, de corpo e alma, aos alvitres da ilusão!... Muitos deles, atolaram-se no pantanal do crime, agravando débitos dolorosos! Agora dormem, Pai, à espera de vossos desígnios santos. Sabemos, contudo, Senhor, que este sono não traduz repouso do pensamento... Quase todos os nossos asilados são vitimas de terríveis pesadelos, por terem olvidado, no mundo material, os vossos manda­mentos de amor e sabedoria. Sob a imobilidade apa­rente, movimenta-se-lhes o Espírito, entre aflições angustiosas que, por vezes, não Podemos sondar. São eles, Pai, vossos filhos transviados e nossos companheiros de luta, necessitados de vossa mão paternal para o caminho! Quase todos se desviaram da senda reta, pelas sugestões da ignorância que, como aranha gigantesca dos círculos carnais, tece os fios da miséria, enredando destinos e corações! Deprecando vossa mi­sericórdia para eles, rogamos, igualmente para nós, a verdadeira noção da fraternidade universal! Ensinai-nos a transpor as fronteiras de separação para que vejamos em cada Infeliz o irmão necessitado do nosso entendimento! Ajudai-nos a compreensão, a fim de que venhamos a perder todo impulso de acusação nas es­tradas da vida! Ensinai-nos a amar como Jesus nos amou! Também nós, Senhor, que aqui vos rogamos, fomos leprosos espirituais, cegos do entendimento, pa­ralítico, da vontade, filhos pródigos do vosso amor!... Também nós já dormimos, em tempos idos, nos Postos de Socorro da vossa misericórdia!... Somos simples devedores, ansiosos de resgatar Imensos débitos! Sabe­mos que vossa bondade nunca falha e esperamos con­fiantes a bênção de vida e luz!...”

Fizera Ismália nova pausa, agora mais longa. Enxuguei os olhos umedecidos de pranto. Suave calor, todavia, apossava-se-me da alma. E tão in­tensa era essa nova sensação de conforto, que interrompi a concentração em mim mesmo, a fim de olhar em torno. Fixando instintivamente o alto, enxerguei, maravilhado, grande quantidade de flo­cos esbranquiçados, de tamanhos variadíssimos, a caírem copiosamente sobre nós que orávamos, ex­ceto sobre os que dormiam. Tive a impressão de que eram derramados do céu sobre nossa fronte, caindo com a mesma abundância sobre todos, des­de Ismália ao último dos servidores. Não cabia em mim de admiração, quando novo fenômeno me surpreendeu. Os flocos leves desapareciam ao to­car-nos, começando, porém, a sair de nossa fronte e do peito grandes bolhas luminosas, com a coloração da claridade de que estávamos revestidos, elevando-se no ar e atingindo as múmias numerosas. Ainda aí, reparava o problema da gradação espiritual. As luzes emitidas por Ismália eram mais brilhantes, intensas e rápidas, alcançando muitos enfermos de uma só vez. Em seguida, vinham as fornecidas pelas senhoras do seu círculo pessoal. Depois, tínhamos as de Aniceto, de Alfredo e dos demais. Os servos de corpo obscuro emitiam vibra­ções fracas, mas visivelmente luminosas. Cada qual, naquele instante de contacto com o plano superior, revelava o valor próprio na cooperação que podia prestar.

Observando-me o assombro, Aniceto falou-me aos ouvidos:

— Na prece encontramos a produção avançada de elementos-força. Eles chegam da Providência em quantidade igual para todos os que se dêem ao trabalho divino da intercessão, mas cada Espí­rito tem uma capacidade diferente para receber.

Essa capacidade é a conquista individual para o mais alto. E como Deus socorre o homem pelo homem e atende a alma pela alma, cada, um de nós sômente poderá auxiliar os semelhantes e colaborar com o Senhor, com as qualidades de ele­vação já conquistadas na vida.


25

Efeitos da oração

As luzes da prece inundaram o vasto recinto. Palpitava em tudo, agora, uma claridade serena, doce, irradiante, muito diversa da luminosidade artificial. Os flocos radiosos que partiam de nós multiplicavam-se no ar, como se obedecessem a misterioso processo de segmentação, e caíam sem­pre sobre os corpos inanimados e enrijecidos, dan­do a impressão de lhes penetrarem as células mais Intimas.

Eu estava boquiaberto. Não me fôra permitido contemplar fenômenos dessa natureza em “Nosso Lar”. Aliás, concluía, ainda não recebera auxílio magnético às percepções, senão poucas horas antes da viagem.

A claridade crescia e estendia-se em espetáculo prodigioso.

Agora, porém, abandonáramos a atitude de recolhimento destinada à concentração de nossas próprias forças e emissão de energias vibratórias. Nossos corpos, todavia, continuavam envolvidos em vasto circulo irradiante. Prosseguindo, porém, o grande silêncio, notei que a luz da oração se fazia mais clara, mais penetrante. Comecei a ver, como no caso de Ana, que todos aqueles esqueletos mi­sérrimos apresentavam núcleos de sombra, além das máscaras mortuárias, núcleos que se mostra­vam dentro de formas variadíssimas.

As bolhas luminosas caíam incessantemente, mas agora, como se fôssem dirigidas por uma von­tade inteligente, concentravam-se quase todas so­bre as frontes imóveis. Então, pude observar o inaudito e inconcebível para mim.

As múmias, porque não posso dar outro nome aos irmãos que dormem, começaram a dar sinais de vida. Alguns daqueles infelizes deixavam esca­par gemidos angustiosos, outros falavam em voz alta, dando conta dos pesadelos que os atormen­tavam, como sonâmbulos prestes a despertar. Mui­tos moviam os pés e as mãos, como a se esforça­rem por fugir ao sono doloroso.

Eminentemente surpreendido, reparei que dois se levantaram, distante de nós. Recordei que ambos faziam parte daqueles que haviam recebido toda espécie de assistência, inclusive o sopro curativo. Olharam-nos de longe, como loucos que acordassem de súbito, e dispararam a correr, espavoridos, não obstante a impressão de cadáveres ambulantes, que nos causavam.

Admirado, verifiquei que ninguém esboçou a menor disposição de segui-los. E quando me propunha, instintivamente, a fazê-lo, Alfredo deteve-me, exclamando:

— Não se preocupe. Eles seriam amargamente surpreendidos, se fôssem notificados agora de sua permanência longa entre verdadeiras múmias. Acre­ditam sonhar e é melhor assim. Não poderão fugir às nossas fortificações e voltarão a pedir socorro noutras dependências, a que serão recolhidos para adequado tratamento.

Continuamos silenciosos mais alguns minutos, e notei que as luzes se foram apagando gradativamente, ao passo que os cadáveres retomavam a imobilidade anterior.

Ismália declarou terminadas as nossas ativi­dades da oração e o administrador, após o sinal luminoso, que notificava aos operários o término das obrigações, adiantou-se para nós, exclamando:

— Gratíssimo pelo concurso fraternal. Reall­zamos belo serviço intercessório. Desde alguns dias, ninguém se levantava.

Aniceto, percebendo-nos a perplexidade, falou a Vicente e a mim, de maneira significativa:

— Conforme viram, o trabalho da prece é mais importante do que se pode imaginar no círculo dos encarnados. Não há prece sem resposta. E a oração, filha do amor, não é apenas súplica. É comunhão entre o Criador e a criatura, consti­tuindo, assim, o mais poderoso influxo magnético que conhecemos. Acresce notar, porém, já que co­mentamos o assunto, que a rogativa maléfica con­ta, igualmente, com enorme potencial de influen­ciação. Toda vez que o Espírito se coloca nessa atitude mental, estabelece um laço de correspon­dência entre ele o Além. Se a oração traduz atividade no bem divino, venha donde vier, enca­minhar-se-á para o Além em sentido vertical, bus­cando as bênçãos da vida superior, cumprindo-nos advertir que os maus respondem aos maus nos planos inferiores, entrelaçando-se mentalmente uns com os outros. É razoável, porém, destacar que toda prece impessoal dirigida às Forças Supremas do Bem, delas recebe resposta imediata, em nome de Deus. Sobre os que oram nessas tarefas ben­ditas, fluem, das esferas mais altas, os elementos-força que vitalizam nosso mundo interior, edifi­cando-nos as esperanças divinas, e se exteriorizam, em seguida, contagiados de nosso magnetismo pes­soal, no intenso desejo de servir com o Senhor.

E, procurando materializar o pensamento, para facilitar-nos a compreensão, acentuou:

— Viram, vocês, cair sobre nós os elementos a que me refiro, e observaram a sua exteriorização com as luzes de cada um de nós, em benefício dos irmãos que dormem e sofrem. Concedeu-nos o Altíssimo a força de auxiliar, em porções iguais para todos, mas nós a espalhamos de acordo com a nossa possibilidade e coloração individuais. Is­mália, cujos sentimentos são mais amplos e uni­versalistas que os nossos, pôde receber com mais clareza o auxílio divino e distribuí-lo com mais abundância e eficiência. Temos, aqui, uma pro­funda lição. Como já disse, o Pai visita os filhos necessitados, através dos filhos que procuram compreendê-lo. Não poderíamos abusar do Senhor, como abusamos no círculo terrestre dos nossos pais humanos. Não vive Ele ao sabor de nossos caprichos pessoais. Nunca poderia vir, em pessoa, enxugar o pranto do necessitado que chora, em conseqüência, aliás, do olvido das Divinas Leis. Compete ao necessitado caminhar ao reencontro dEle. O Senhor, todavia, atende sempre a todos os homens de boa vontade, por intermédio dos ho­mens bons, que se edificam na casa divina. Todos os nossos desejos e impulsos razoáveis são aten­didos pelas bênçãos paternais do Eterno. Ainda que nos demoremos nas lágrimas e nas aflições, jamais permanecemos ao desamparo. Apenas deve­mos salientar que as respostas de Deus vão sendo maiores e mais diretas, à medida que se intensi­fique o nosso merecimento, competindo-nos reco­nhecer que, para semelhantes respostas, são utiliza­dos todos quantos trazem consigo a luz da bondade, ou já possuem mérito e confiança para auxiliar em nome de Deus.

As explicações de Aniceto abriam-me novos campos de meditação. O esclarecido instrutor, con­tudo, não dera por finda a lição e, depois de longa pausa, concluiu:

- Já que vocês se encontram comigo num curso de serviço auxiliador, espero aproveitem o máximo ensinamento desta hora. Reparem que, nestes pavilhões, temos mil e novecentos e oitenta abrigados que dormem. Todos recebem diàriamen­te alimento e medicação comuns, mas só quatrocentos são atendidos com alimento e medicação especializados, por se mostrarem mais suscetíveis de justa melhora. Desses quatrocentos, apenas dois terços se revelaram aptos à recepção de passes magnéticos. Muitos não podem receber, por en­quanto, a água efluviada. Poucos foram contemplados com o sopro curativo e sômente dois se levantaram, ainda assim, profundamente perturba­dos. Já que iniciam um trabalho de cooperação fraternal, não esqueçam esta lição. Façamos todos o bem, sem qualquer ansiedade. Semeemo-lo sem­pre e em toda a parte, mas não estacionemos na exigência de resultados. O lavrador pode espalhar as sementes à vontade e onde quer que esteja, mas precisa reconhecer que a germinação, o crescimento e o resultado pertencem a Deus.


26

Ouvindo servidores

Notei que o trabalho no Posto se desenvolvia em ambiente da mais bela camaradagem, não obs­tante o respeito natural às noções de hierarquia.

Enquanto palestrávamos animadamente, Ismá­lia recebia servidoras numerosas, em atitude verdadeiramente maternal, embora muitas mostrassem o rosto envelhecido, parecendo avós da esposa do administrador. Aniceto nos ministrava lições de vul­to, extraídas de circunstâncias aparentemente inex­pressivas, e Alfredo recebia - os colaboradores de todas as condições, não só com espírito de solida­riedade, mas também de imenso afeto. Ria-se ca­rinhosamente ou fornecia pareceres, sem o mínimo gesto de impaciência ou irritação.

Aquele clima de concórdia fazia-me enorme bem. Tudo respirava ordem e compreensão, bon­dade e harmonia. A atitude paterna do adminis­trador do Posto de Socorro, expressa em energia e amizade, organização e entendimento, atraía-me com força.

Pedi permissão ao nosso orientador para ouvir os esclarecimentos prestados àqueles numerosos co­operadores.

Aproximei-me, impressionado.

Nesse momento, um colaborador de maneiras simpáticaa dirigia-lhe a palavra, com grande interesse. Tratava-se de um velhinho de humilde expressão, que lhe falava com mostras de justo respeito.

— E o senhor recebeu as noticias?

— Sim, Alonso — atendia o chefe, sem afe­tação —, nossos mensageiros cientificaram-me dos detalhes mínimos. Sua viúva continua muitíssimo acabrunhada, os filhinhos gozam saúde, mas per­manecem na mesma ansiedade por motivo de sua ausência.

O velho, que parecia muito bondoso, esboçou um gesto de confirmação e acrescentou:

— Tenho sentido tanta falta deles!

Nos olhos transparecia a tristeza resignada, de quem deseja alguma coisa, medindo a extensão dos obstáculos.

— Você, porém, Alonso — continuou Alfredo, comovido —, não deve angustiar-se. Sei que está trabalhando agora pelo futuro da família. Na Terra, na qualidade de pais, conseguimos movimentar mui­tas providências a favor dos filhos; entretanto, aqui, podemos realizar certas medidas em benefí­cio deles, com maior segurança. Nem sempre agi­mos no mundo com a necessária visão; mas aqui é possível sentir, de mais perto, os interesses im­perecíveis daqueles que amamos, O sentimento ele­vado é sempre um caminho reto para nossa alma; todavia, não podemos dizer o mesmo, a respeito do sentimentalismo cultivado no círculo da Crosta. É preciso que você tenha muito cuidado em não desorganizar a mente. A saudade que fere, impe­dindo-nos atender à Vontade Divina, não é louvá­vel nem útil. É enfermidade do coração, precipi­tando-nos em abismos insondáveis do pensamento.

Alonso deixou de sorrir, mostrou os olhos ra­sos dágua e falou em voz súplice:

— Reconheço, senhor Alfredo, a oportunidade de suas observações. Graças a Jesus, venho me­lhorando minha vida mental, nos deveres novos que me concedeu e, de fato, sinto-me renovado espi­ritualmente. Sei que sua palavra não me adver­tiria sem razão, mas, ousaria pedir licença para visitar a esposa e os filhos. A noite, quando me concentro nas preces habituais, sinto, em torno de mim, os seus pensamentos. Esses pensamentos me penetram fundo, atraindo-me toda a atenção para a Terra. As vezes, consigo repousar um pouco, mas com muita dificuldade. Sei que a esposa e os fi­lhos estão chamando, dolorosamente, por mim. Esta certeza me perturba de algum modo. Não tenho sentido a mesma firmeza para o trabalho diário e desejaria remediar a situação. Reconheço que minhas obrigações, presentemente, são outras e que devo estar conformado; no entanto, confesso que minha luta espiritual tem sido bem grande. Estou certo de que me perdoará a fraqueza. Que chefe de família não se sentiria atormentado, ouvindo angustiosos apelos do lar, sem meios de atender, como se faz indispensável?

E, revelando o enorme anseio dalma, enxugou os olhos e prosseguiu:

— Quisera rogar aos meus calma e coragem, esclarecendo que meu coração inda é frágil e ne­cessita do amparo deles; estimaria pedir-lhes esse auxílio para que eu possa atender às atuais obri­gações, sem desfalecimentos. Quem sabe me con­cederá, agora, a permissão precisa? Temos bem perto de nossa casa um grupo de amigos espíritas­... talvez não me fôsse difícil transmitir algu­mas palavras, breves que fôssem, tentando tran­quilizar a esposa e os filhos!...

Alfredo, imperturbável, não respondeu negati­vamente. Parecia compreender toda a inquietação do servidor simpático e humilde. Observei-lhe no olhar, muito lúcido, o desejo sincero de atender, e, com extrema simpatia por sua conduta generosa, ouvi-o ponderar:

— Não será impossível satisfazê-lo, meu caro Alonso! Nossos emissários poderão conduzi-lo, nas viagens comuns; entretanto, creia que, como ami­go, ficaria preocupado com você, pela manutenção de sua paz. Não posso abusar da autoridade e sei que cada um tem a experiência que lhe cabe, mas creio seja de seu vital interesse o fortalecimento do coração. É imprescindível conformarmo-nos com os desígnios do Eterno. Você e sua mulher não fica­riam separados se não necessitassem de experiên­cias novas. As dificuldades que ela vem amargan­do com a sua ausência, sofre-as também você com a separação dela. Tenho a impressão, Alonso, de que Deus nos deixa sozinhos, por vezes, a fim de refazermos o aprendizado, melhorando o coração. A soledade, porém, quando aproveitada pela, alma, precede o sublime reencontro. Além disso, você não deve ignorar que os filhos pertencem a Deus, que cada um deles precisa definir responsabilidades e cogitar da própria realização. Por enquanto, vivem chorosos, desalentados. A revolta lhes visita a alma invigilante. Estabeleceu-se a desordem doméstica, depois da sua vinda. Entretanto, que fazer senão pedir para eles e para nós a bênção do Eterno? Precisam eles da conformação com a realidade justa, e você, que já lhes deu o que era razoável, necessita, igualmente, evolver e aperfeiçoar-se na senda nova a que fomos chamados. Em que fica­ria, meu caro, se permitisse a invasão total do sentimentalismo doentio em seus pensamentos? Tão dedicado é você à família do sangue, que, por ago­ra, não o sinto com bastante preparo a tudo ver no antigo lar, sem sofrer desastrosamente. Há tem­pos, autorizei a visita de dois colegas nossos àesfera da Crosta, a fim de reverem as viúvas e abra­çarem de novo os filhinhos; mas foram tão violen­tamente surpreendidos pela situação, que não pu­deram voltar aos seus deveres aqui, lá ficando agarrados ao ninho que haviam abandonado. Não vigiaram o coração, convenientemente. Ouviram, em demasia, o pranto dos familiares terrestres, envol­veram-se nos pesados fluidos do clima doméstico e, passada a semana de licença, não conseguiram erguer-se para o regresso. Estavam como pássaros aprisionados pelo visgo das tentações. Os en­carregados do noticiário particular voltaram ao Posto sem eles, com grande surpresa para mim. E, francamente, não sei quando poderão reassumir as funções que lhes cabem. O prejuízo de ambos émuito grande.

Depois de pequena pausa, Alfredo rematou:

— Os vôos de grande altura pedem asas fortes. Alonso, que ouvia de olhos arregalados, consi­derou resignado:

— Desisto do pedido. O senhor tem razão.

O administrador abraçou-o e murmurou:

— Deus ilumine o seu entendimento.

Admiradíssimo, reparei que outros colaborado­res se aproximavam, rogando esclarecimentos, pa­receres, edificando-me no exemplo do administrador amigo, que respondia em voz firme e afetuosa, demonstrando interesse de irmão.


27

O caluniador

Enquanto o administrador se entregava a con­versações educativas com os numerosos subordina­dos, Aniceto chamou-nos a pequena construção isolada e falou:

— Vejamos outro ensinamento.

Avançamos na direção de algumas câmaras separadas.

Nosso instrutor abriu uma porta e vimos um louco, que parecia fundamente irritado. Fixou em nós o olhar inexpressivo e gritou estentôricamen­te. Aniceto, porém, adiantou-se e cumprimentou-o, atencioso:

— Como vai, Paulo?

As palavras, ao que senti, emitiram certo fluxo magnético e o enfermo revelou profunda modifica­ção. Aquietou-se de súbito. Sentou-se mais calmo, embora trêmulo e espantadiço.

— Tem sentido melhoras, Paulo? — pergun­tou nosso orientador, bondosamente, tocando-o no ombro.

Ao contacto pessoal de Aniceto, o doente mos­trou algum raciocínio e respondeu:

— Vou melhorando, graças...

A vista da expressão reticenciosa, o instrutor falou em tom firme, como se desejasse auxiliar-lhe a vontade enfraquecida:

— Termine!

O doente fêz enorme esforço e concluiu:

— G. .r. .a. .ç. .a. .s a D. .e. .u. .s.

Anotando-lhe o sofrimento e a indecisão, lem­brei dos enfermos das Câmaras, aos quais prestava Narcisa ampla colaboração afetuosa. Percebendo-me as íntimas considerações, disse o mentor escla­recido:

— Vêem a diferença entre os que dormem, os que estão loucos e os que sofrem? Em “Nosso Lar”, não temos dos primeiros, e os que se encon­tram desequilibrados, nos serviços da Regeneração, sentem, na maioria, angústias cruéis. É necessário reconheçamos que os que gemem e sofrem, em qual­quer parte, estão melhorando. Toda lágrima sin­cera é bendito sintoma de renovação. Os escarnecedores, os ironistas e os perturbados que não registram a dor são mais dignos de piedade, por permanecerem embotados em estranha rigidez de entendimento.

E, designando o enfermo sob nossos olhos, afirmou:

— Paulo é um doente a caminho de melhora positiva. Ainda não possui a consciência exata da situação, mas já chora, já padece com as recorda­ções do passado triste.

Recebi o esclarecimento com atenção. Lembrei-me que, de fato, os doentes conduzidos pelos Sa­maritanos a “Nosso Lar”, em serviço diário, eram grandes sofredores. Os que não acusavam padeci­mentos atrozes, revelavam estranho pavor das som­bras. A única entidade que ali observara, com absoluta inconsciência da própria miséria, fôra a de pobre vampiro que não encontrara guarida nas Câmaras de Retificação.

Nosso instrutor, sem qualquer preocupação de transformar o doente em cobaia, recomendou, afe­tuoso:

— Concentrem no Paulo a capacidade de visão!

Estimulado pela experiência anterior, fixei nele todo o meu potencial de observação.

Aos poucos, caracterizou-se a meus olhos a sua tela mental, parecendo formada em compacta sombra noturna. Com surpresa, divisei formas di­versas que se movimentavam. Vários vultos de mu­lher ali surgiam, despertando-me enorme admira­ção. Entre eles, reparei o de Ismália como que doente, enfraquecida, ansiosa. Alguns homens pas­savam, igualmente, mostrando desesperação, e no­tei, nessas imagens, o próprio Alfredo a evidenciar cansaço e extrema velhice prematura. Vozes mis­teriosas se faziam ouvir. Sobre Paulo choviam maldições e blasfêmias. As mulheres pareciam acu­sá-lo, clamorosamente; os homens davam ideia de perseguidores ferozes, ocultos no mundo interior daquele enfermo estranho. Observando, porém, que os vultos de Ismália e Alfredo se movimentavam naquele painel escuro, não pude sofrear a curiosi­dade e interrompi o minucioso exame, voltando a conversar com o nosso orientador, perguntando:

— Como explicar o fenômeno? Estou assom­brado!

Antes, porém, que pudesse expressar maior-mente o espanto que me dominara, Aniceto ajuntou:

— Já sei. Admira-se da presença de Ismália e do seu marido nas reminiscências do enfermo.

E, ante a minha perplexidade, continuou:

— Lembram-se da história de Alfredo? Temos diante de nós o falso amigo que lhe arruinou o lar. Paulo, contudo, não somente cometeu a ingra­tidão, como envenenou o espírito doutras senhoras, traiu outros amigos e destruiu a alegria e a paz doutros santuários domésticos. Observando Ismália aflita e Alfredo desesperado, nas recordações dele, vemos as imagens criadas pelo caluniador, para seus próprios olhos. Nossos amigos deste Posto evoluíram, transpuseram a fronteira da mágoa, es­caparam aos monstros do ódio, vestem-se hoje de luz; no entanto, Paulo os vê como imagina, para escarmento de suas culpas. O criminoso nunca con­segue fugir da verdadeira justiça universal, porque carrega o crime cometido, em qualquer parte. Tanto nos círculos carnais, como aqui, a paisagem real do Espírito é a do campo interior. Viveremos, de fato, com as criações mais intimas de nossa alma.

Reparando-me a dificuldade para compreender de pronto, Aniceto prosseguiu, depois de pequeno intervalo:

— Para melhor elucidação, recordemos a cru­cificação do Mestre Divino. Sabemos que Jesus pe­netrou na glória sublime logo após a suprema dor do Calvário; entretanto, estamos ainda a vê-lo fre­qüentemente pendurado na cruz, martirizado pelos nossos erros, flagelado pelos nossos açoites, por­que a visão interior a isso nos compele. A con­denação do Mestre foi um crime coletivo e esse crime estará conosco até ao dia em que nos vestir­mos na divina luz da redenção.

O esclarecimento não poderia ser mais lúcido. Sentia-me diante de nobre revelação.

— O dever possui as bênçãos da confiança, mas a dívida tem os fantasmas da cobrança —tornou o generoso mentor, com grave acento.

Readquirindo a serenidade, interroguei:

— Mas Paulo veio ter casualmente a este Posto?

— Não — respondeu Aniceto, atencioso —; foi trazido pelo próprio Alfredo, que se sentiu neces­sitado de disciplinar o coração. Nosso amigo, que hoje dirige esta casa de amor, desprendeu-se do mundo, sob intensa vibração de ódio e desespera­ção. Sofreu muitíssimo nos primeiros tempos, em­bora nunca fôsse abandonado pela dedicação da abnegada companheira. Alfredo, todavia, não pôde ver Ismália enquanto não se desvencilhou das bai­xas manifestações do rancor. Socorrido em “Cam­po da Paz”, compreendeu as próprias necessidades. Tão logo adquiriu algum mérito, Intercedeu pelo amigo infiel, buscou-o em recanto abismal, e tão nobremente se dedicou ao aperfeiçoamento de si mesmo, que conquistou a posição de administrador de um Posto de Socorro. Trouxe o tutelado em sua companhia e trata-o como irmão, atualmente. Não julguem que o marido de Ismália conseguiu essa vitória espiritual tão sômente pelo fato de dese­já-la. Ele desejou-a, procurou-a, alimentou-a, e, agora, permanece na realização. Há muitos anos conversa com Paulo, díàriamente. Nos primeiros tempos, aproximava-se do enfermo, como necessi­tado de reconciliação; depois, como pessoa carido­sa; mais tarde adquiriu entendimento, comparando situações; em seguida, sentiu piedade; logo após, experimentou simpatia e, presentemente, conquis­tou a verdadeira fraternidade, o amor sublime de irmão pelo ex-inimigo.

Fazendo pequena pausa, voltou a dizer, espi­rituosamente:

— Como vêem, o ensinamento de Jesus, quan­to ao “batei e abrir-se-vos-á”, é muito extenso. No plano da carne, insistimos à porta das coisas ex­teriores, procurando facilidades e vantagens; mas, aqui, temos de bater à porta de nós mesmos, para encontrar a virtude e a verdadeira iluminação.

Vicente, que até então se conservara calado, indagou:

— Paulo, todavia, permanecerá aqui, indefini­damente?

Nosso instrutor fêz um gesto significativo e concluiu:

— Voltará breve à Terra. Ismália tem feito a seu favor inúmeras intercessões e não deseja que ele, ao retomar a razão plena, se sinta humilhado, com o beneficio das próprias vítimas. Uma das irmãs, por ele caluniada no mundo, já voltou ao círculo carnal, e a abnegada esposa de Alfredo pediu-lhe que recebesse Paulo como filho, tão logo seja oportuno.


28

Vida social

A noite, surpreendiam-me os sublimes aspectos do firmamento no Posto de Socorro. O luar safi­rino envolvia todas as coisas. O céu era qual infi­nita colcha de azul muito límpido, pontilhado de astros fulgurantes. As nuvens da tarde haviam desaparecido.

Contemplando a beleza da noite, Alfredo acen­tuou:

— Felizmente, os fenômenos magnéticos foram deslocados do nosso circulo. Os aparelhos, porém, continuam registrando enorme conflito de forças inferiores.

Ia comentar a beleza do céu, ante a obser­vação do administrador, quando a campainha reti­niu suavemente.

Chamavam à entrada. Alfredo e Ismália sor­riram.

Muito gentil, o chefe do Posto asseverou:

— Temos a visita de amigos do “Campo da Paz”.

E, convidando-nos à recepção no baluarte avan­çado, acrescentou jovialmente:

— Temos, também, aqui, a nossa vida social. Como não? É preciso saber viver.

Encantado com essa nota alegre, acompanhei os donos da casa, verificando, com indizível sur­presa, que tínhamos sob os olhos um belo carro tirado por dois soberbos cavalos brancos. Tratava-se de veículo confortável e interessante, quase idêntico aos velhos carros de serviço público, do tempo de Luis 15, que eu vira, mais de uma vez, em publicações antigas. Nele chegara pequena fa­mília da colônia próxima, que, pelas informações de Aniceto, demorava a três léguas do Posto, apro­ximadamente.

Alfredo apresentou-nos, cavalheirescamente, com exceção de nosso orientador, que era velho amigo dos recém-chegados.

Constituíam-se os visitantes do casal Bacelar e duas filhas jovens. O chefe do grupo mostrava idade avançada, revelando, porém, excelentes dis­posições. A senhora dava impressão de madureza, aparentando, contudo, maravilhosa vivacidade, assim como as duas moças.

A alegria era enorme. Não se observava qual­quer nota de convencionalismo menos digno, como na Terra, Os gestos de cada um, a simplicidade, a despreocupação e as frases afetuosas demonstra­vam sinceridade pura. Permanecíamos num quadro social inacessível ao fingimento.

Voltando ao interior doméstico, entre grandes manifestações de júbilo familiar, observei que os recém-chegados eram amigos de muito tempo, que vinham ao encontro de Ismália. A nobre senhora pareceu-me contentíssima. Expediu recados afetuosos para algumas famílias do Posto e, em breves minutos, o castelo recebia inúmeras pessoas que concorriam ao brilhantismo da seleta reunião.

Sentindo-me assaz insignificante, ao lado dos novos amigos, limitava-me a ouvir e observar.

Logo aos primeiros instantes de conversação particularizada, ouvi Aniceto perguntar ao senhor

Bacelar:

— Como corre o serviço?

O velho bondoso respondeu num sorriso largo:

— Bem, sempre bem. Apenas não podemos fixar demasiada atenção nos companheiros encar­nados.

E ajuntou com graça:

— É indispensável aprender a servir e passar.

Nosso instrutor sorriu igualmente e observou:

— Compreendo, compreendo. Aliás, o progres­so humano não é uma questão de dias. Não tenhamos ilusões.

E, percebendo que Vicente e eu poderíamos aproveitar com a palestra, Aniceto indicou o novo hóspede de Alfredo, explicando solícito:

— Nosso amigo Bacelar é chefe de turmas de assistência aos nossos irmãos do círculo carnal. Tem longa experiência dos homens e conhece-os como ninguém. Há muito que aproveitar nas suas observações.

— Não tanto, meus caros — exclamou o se­nhor Bacelar, de bom humor —‘ não tanto. Sou simples companheiro de vocês, cumprindo deveres por acréscimo da misericórdia divina. Não posso fazer muito, em razão de minhas deficiências na­turais.

— Estamos certos do grande proveito da sua palavra — objetou Vicente, até então calado.

— Tudo o que nos disser sobre o problema de assistência constituirá, para nós, ensinamento precioso — disse por minha vez.

O novo amigo fitou-nos com inteligência, e perguntou:

— Foram médicos no mundo?

— Sim — respondemos a um só tempo.

O senhor Bacelar pensou alguns momentos e acentuou:

— Sempre gostei de conversar com os amigos, recorrendo aos simbolos sugeridos pela profissão que exercem. Mas, no tocante às minhas ativida­des, não teria muito o que dizer a médicos mili­tantes.

— Pelo contrário — aduzi —, seus esclareci­mentos enriquecerão nossas experiências.

O interlocutor sorriu, otimista, e declarou:

— Não creia. Recorde os seus doentes comuns.

Muito raramente lembram a medicina preventiva. De modo quase invariável, esperam a positivação das moléstias para buscarem o recurso preciso. Necessitam de anestésicos para o socorro do bisturi. Fogem ao regime tão logo surja a primeira me­lhora. Confundem o método de tratamento, apenas se registre o primeiro sinal de cura. Detestam a dor que restabelece o equilíbrio. Descontentam-se com a indicação de purgativos. Preferem a me­dicação de sabor agradável. E, sobretudo, quase sempre querem saber muito mais que os médicos. Esta síntese aplicável a corpos doentes representa, em nosso campo de serviço, o resumo do programa de assistência aos Espíritos enfermos, encarnados na Terra, e com agravantes de vulto, porque, em nosso setor, não podemos manipular a alma, à ma­neira do cirurgião que opera as amídalas. Somos forçados à preparação do campo mental convenien­te, a proceder à semeadura de pensamentos novos, velar pela germinação, ajudar os rebentos minúscu­los e aguardar a obra do tempo. Nossa luta não é simples, porque, se o clínico do mundo encontra sempre familiares amorosos, dispostos a cooperar com ele em benefício do doente, o que encontramos, por nossa vez, são enormes legiões de elementos adversos à nossa atividade restauradora e curativa. Em geral, o médico do mundo presta socorro a quem deseja recebê-lo, pelo menos nas ocasiões de graves perigos; nós, porém, meus amigos, muitas vezes temos de prestar assistência aos que não a dese­jam, por viverem sob véus de profunda ignorância.

— Tem razão — murmurei, ouvindo compara­ções tão lógicas —; entretanto, vale por conforto a certeza de que há muitos cooperadores encar­nados no mundo prontos a colaborar na tarefa.

O senhor Bacelar teve uma expressão fisio­nômica muito significativa, e revelou:

— Nem sempre. A cooperação é outro pro­blema. A maioria dos irmãos que se propõem ao serviço, partem daqui prometendo, mas gostam de viver descansados, no planeta. Poucos fogem ao estalão comum. Raramente encontramos companheiros encarnados com bastante disposição para amar o trabalho pelo trabalho, sem idéia de re­compensa. A maioria está procurando remunera­ção imediata. Nessas condições, não percebem que a mente lhes fica como aposento escuro, atulhado de elementos inúteis. À força de viciarem racio­cínios, confundem igualmente a visão. Enxergam tormentas onde há paisagens celestes, montanhas de pedra onde o caminho é gloriosa elevação. De pequenos enganos a pequenos enganos, formam o continente das grandes fantasias. Daí por diante, a recapitulação das experiências terrenas inclina-os, mais fortemente, para a exigência animal e, che­gados a esse ponto, raros voltam ao dever sagra­do, para considerar a grandeza das divinas bênçãos.

Nosso interlocutor fêz uma pausa e tornou:

— E o “desculpismo”? Nesse terreno de assis­tência espiritual, verão, um dia, quantos pretextos são inventados pelas criaturas terrestres por fugir ao testemunho da verdade divina, nas tarefas que lhes são próprias. Os mordomos da responsabili­dade alegam excesso de deveres, os servidores da obediência afirmam ausência de ensejo. Os que guar­dam possibilidades financeiras montam guarda ao patrimônio amoedado, os que receberam a bênção da pobreza de recursos monetários aconselham-se com a revolta. Os moços declaram-se muito jovens para cultivar as realidades sublimes, os mais idosos afir­mam-se inúteis para servi-las. Os casados reclamam quanto à família, os solteiros queixam-se da ausên­cia dela. Dizem os doentes que não podem, comen­tam os sãos que não precisam. Raros companheiros encarnados conseguem viver sem a contradição.

O senhor Bacelar parecia disposto a prosse­guir, mas as duas jovens foram buscá-lo, a ele e Aniceto, em nome de Alfredo, a fim de provi­denciar solução de problema intimo que lhes dizia respeito.


29

Notícias interessantes

Em vista de apresentação mais Intima de Ani­ceto, que deixara as jovens em nossa companhia, entramos a conversar animadamente com Cecília e Aldonina. A primeira tinha sido filha dos Ba­celar, quando na Crosta; a segunda era uma so­brinha do chefe da família, que aguardava a volta da mãezinha para a organização de um lar na ci­dade próxima.

Ambas demonstravam magnífico desenvolvi­mento mental, robusta inteligência e notável capacidade de expressão.

E, enquanto os nossos maiores se conservavam afastados, cogitando de assunto privado, Vicente e eu ouvíamos as jovens, encantados com a sua nobreza e vivacidade.

Verificava que o quadro era idêntico à paisa­gem social da Terra, apenas diferindo quanto aos sentimentos reais. Não havia qualquer nota de fal­sa apresentação. Em tudo a alegria pura, a simplicidade fiel, a sinceridade sem mácula.

No desenvolvimento espontâneo da palestra, falou Cecilia, com graça:

— Estou trabalhando, há muito, para alcançar um prêmio dè visita a “Nosso Lar”. Minhas supe­rioras prometeram-me semelhante satisfação para o ano próximo...

E, sorrindo, rematou expressivamente:

— Entretanto, para consegui-lo, tenho de aten­der a umas tantas obrigações importantes.

— Pois quê! — perguntou Vicente, admira­do — é preciso tanto?

— Sem dúvida — tornou a jovem, bem humo­rada — o meu amigo talvez não esteja convencido, quanto ao brilho de sua atual posição. Viver em “Nosso Lar” é uma grande bênção. Acaso não o terá compreendido ainda?

Sorrimos todos. E, reafirmando o conceito, Ce­cilia continuou:

— Segundo os instrutores que nos visitam em “Campo da Paz”, os seus Ministérios são verda­deiras universidades de preparação espiritual. O ensejo educativo, neles, é imenso. E chego a crer que, para avaliarem a extensão da benesse que Jesus lhes concedeu, seria necessário viverem al­guns anos em nossa colônia, onde o trabalho ativo de vigilância, e assistência é mais imperioso, mais exigente.

— Em “Nosso Lar”, porém — objetei —, te­mos igualmente grande número de sofredores. A Regeneração é uma colmeia de milhares.

A interlocutora, todavia, revelando profunda acuidade nas observações, considerou:

— Você diz muito bem, quando se refere a colmeia, significando possibilidades de trabalho. Creia que os sofredores que atingem o seu núcleo já se encontram a caminho de excelentes realizações. Naturalmente que os irmãos desequilibrados, que por lá existem, já se torturam pelo vagaroso despertar da consciência, já sentem remorsos e arrependimentos indicativos de renovação. São so­fredores que melhoram progressivamente, porque o ambiente da cidade é de elevação positiva. Onde a maioria vive com a bondade, a maldade da mi­noria tende sempre a desaparecer. “Nosso Lar”, portanto, mesmo para os que choram, possui so­beranas vantagens espirituais.

Impressionado com o que ouvia, lembrei:

— Eu mesmo trabalhei algum tempo, em co­operação, nas câmaras retificadoras.

— Já ouvi diversas referências a essa institui­ção — exclamou Cecília, senhora do assunto —, mas, baseando-me nos informes de mentores ami­gos, continuo a manter minha opinião.

E, como se já conhecesse nossos processos de serviço, asseverou, sorridente:

— Vocês conhecem lá muitos Espíritos sofredores, mas, em “Campo da Paz”, conhecemos mui­tos Espíritos obsessores. Lá poderá existir muita gente que ainda chora; mas em nosso meio há muita gente que se revolta. É mais fácil remediar o que geme, que atender ao revoltado. Nas câmaras a que se refere, vocês retificam erros que já apareceram, dores que já se manifestaram; mas aqui, meu amigo, somos compelidos a lutar com irmãos ignorantes e perversos, que se sentem abso­lutamente certos nas fantasias perigosas que espo­saram, e vemo-nos obrigados a atender a doentes que não acreditam na própria enfermidade.

Começava a entender a lógica daquela argumen­tação, e, reconhecendo a impossibilidade de qual­quer contradita, a jovem continuou, segura de si:

— Aliás, é natural que assim seja. Estamos a pouca distância dos homens, nossos irmãos na carne. E sabemos que, na Crosta, a situação não é diferente. Quantos materialistas se fantasiam, por lá, de filósofos? Quantos demônios com capa de santos? Quanta má fé a fingir generosidade e boas intenções? A influência da Humanidade encarnada em nosso núcleo de serviço é vigorosa e inevitável.

Vicente, que ouvia atencioso, obtemperou:

— Deduzo de tudo isso manifestações sacri­ficiais muito grandes, mas o trabalho em “Campo da Paz” deve ser altamente meritório.

— Incontestavelmente — respondeu a jovem.

— A história da fundação é interessante. Alguns benfeitores, reconhecidos a Jesus, resolveram organizar, em nome dele, uma colônia em plena região inferior, que funcionasse como instituto de socorro imediato aos que são surpreendidos na Crosta com a morte física, em estado de ignorância ou de culpas dolorosas. O projeto mereceu a bênção do Senhor e o núcleo se criou, há mais de dois séculos. Nem todos os Espíritos evolvidos, no entanto, es­timam o serviço nesse órgão de assistência cons­tante. A maioria dos missionários vitoriosos, ao se ausentarem da Terra, necessitam refazer energias, por direito natural do trabalhador fiel, e os men­tores de nobre posição hierárquica têm seus pro­gramas de serviços, que não devem quebrar, em obediência aos desígnios do Senhor. Desse modo, nosso serviço é ativo, mas nossas aquisições são lentas e devemos sempre esperar por cooperadores que se eduquem na própria colônia, em benefício geral. Ganha-se excelente compensação, temos di­reito a grandes valores intercessórios, mas, por isso mesmo, nossas responsabilidades não são pe­quenas. Conhecendo a utilidade dos que servem em nossa colônia, não passamos nunca sem instru­tores abnegados, que procedem da zona superior, alentando-nos o bom ânimo, O que pedimos, com fundamentação legítima, nunca é negado; e, se tar­da o recurso, beneméritos orientadores de nossas atividades prestam explicações que nos libertam de qualquer angústia na espera. Por isso, nosso grupo está sempre coeso e muitos preferem adiar certas realizações sublimes, para permanecer ao lado de companheiros antigos, aos quais se unem com des­velado amor.

Os esclarecimentos da jovem encantavam-me. Naquelas poucas palavras estava todo um resumo de lições sobre o sacrifício e o merecimento, o com­promisso fraterno e a solidariedade compensadora.

— A sua família sempre viveu lá? — pergim­tei com interesse.

A jovem sorriu e explicou:

— Meu pai, há mais de cinqüenta anos, foi socorrido pelos benfeitores de “Campo da Paz” e, restabelecida a saúde espiritual, fixou-se na colô­nia, com razoável impulso de amizade e gratidão. Mais tarde, minha mãe reuniu-se a. ele e, faz pre­cisamente vinte anos, Aldonina e eu fomos atraí­das amorosamente por ambos, a fim de continuar­mos, ali, no santuário familiar. Desse modo, trabalhamos ao lado deles, desde a primeira hora.

— E tem muitos programas para o futuro? — indaguei.

Cecília fez um gesto que lhe caracterizava o coração de moça sonhadora, e redargüiu:

— Tenho muitos projetos e problemas’ a re­solver, mas estou aguardando a chegada de alguém que ainda se encontra na Terra.


30

Em palestra afetuosa

Voltávamo-nos em conversação amiga para as belezas de “Nosso Lar”, quando Aldonina interveio, acrescentando:

— Alguns membros de nossa família visitam a cidade de vocês, de tempos a tempos. Nossa irmã Isaura, que se casou em “Campo da Paz”, há três anos, lá reside em companhia do esposo, que é funcionário dos Serviços de Investigação do Minis­tério do Esclarecimento.

Percebendo-nos a curiosidade, prosseguiu:

— Morava ele conosco, mas, desde muito tem­po, foi convocado a serviços por lá, vindo, mais tarde, buscar a noiva.

Vicente, que se mantinha em atitude expectan­te, exclamou:

— Tocamos num assunto que muita admiração me tem despertado, desde que regressei dos círcu­los terrenos. Não tinha, no mundo, a menor idéia de que pudéssemos cogitar de uniões matrimoniais, depois da morte do corpo. Quando assisti a fes­tividades dessa natureza, em “Nosso Lar”, confesso que minha surpresa raiou pela estupefação.

Cecília, vivaz, acentuou, sorrindo:

— Isto se deu também conosco. Entretanto, é forçoso reconhecer que tal estado dalma resulta do exclusivismo pernicioso a que nos entregamos no plano carnal, porque, se o casamento humano é um dos mais belos atos da existência na Terra, porque deixaria de existir aqui, onde a beleza é sempre mais quintessenciada e mais pura? E, além do mais, é imprescindível ponderar que não vivemos à revelia de leis sábias e justas.

— E como são felizes os que se casam em nossos planos! — acentuou o companheiro, denotando aspirações secretas do coração.

Aldonina esboçou um gesto expressivo e con­siderou:

— Sim, para possuirmos aqui essa ventura, épreciso ter amado na Terra, movimentando os mais nobres impulsos do espírito. Para colher os júbilos dessa natureza, é necessário ter amado com alma. Os que se consagram exclusivamente aos desejos do corpo, não sabem amar além da forma, são incapazes de sentir as profundas vibrações espiri­tuais do amor sem morte.

Desejando, porém, retomar o assunto referente a Isaura, interroguei, curioso:

— Continuem falando-nos da irmã que se mu­dou para “Nosso Lar”. Estimaria saber como se realizou o consórcio. Se você, Cecília, está aguar­dando um prêmio de visita à nossa cidade, como se casou ela, transferindo-se para lá definitiva­mente?

Cecília sorriu e retrucou:

— Isto é outro caso. Isaura não poderia cor­rer atrás do noivo, porque estava em situação inferior à dele, mas Antônio, como superior, poderia descer a buscá-la. Não creiam, porém, que o ma­trimônio se tenha verificado sem qualquer prepa­ração ou exigência. O noivo poderia conduzi-la sem qualquer formalidade, desde que recebesse o devido consentimento, porqüanto obtivera permis­são das autoridades de “Nosso Lar”, mas um dos chefes de serviço aconselhou a Isaura, nesse sen­tido, explicando-lhe que, como administrador de uma colônia em condições de inferioridade, não po­dia opor qualquer embargo, mas pedia à noiva preparar-se, por seis anos sucessivos, em “Campo da Paz”, antes da partida definitiva, acrescentan­do sensatamente que, num casamento de almas, é indispensável apurar o enxoval dos sentimentos. Nossa irmã, que foi sempre muito prudente, acei­tou a solicitação e trabalhou durante todo esse tempo em nossa colônia, adquirindo valores cultu­rais e aprimorando o campo do pensamento.

Recebia essas delicadas informações, sem dis­farçar a enorme surpresa.

— Já fui visitar o casal, uma vez — disse Aldonina, honrada —, quando ganhei o prêmio de assiduidade e bom ânimo. Estive em “Nosso Lar”, durante uma quinzena inesquecível para mim; no entanto, embora visitasse sublimes instituições como o Bosque das Águas, o Salão da Arte Divina, o Campo da Prece Augusta, reconheço ter voltado muito longe de um conhecimento integral da enor­me cidade. Lá irei, contudo, mais tarde, pois continuo em meu trabalho e nossos instrutores afir­mam sempre que tudo de bom deve aguardar do destino quem saiba servir ao bem e trabalhar com esperança.

Admirando a beleza de sentimentos daquelas jovens, indaguei emocionado:

— Mas não têm vocês, em “Campo da Paz”, instituições semelhantes? Não existirão, por lá, tem­plos de alegria abertos à juventude?

— Ah! sim — murmurou Cecilia como quem não desejava ser ingrata às Bênçãos do Eterno —, muito nos dá o Senhor, em nossa colônia; entre­tanto, permanecemos na vizinhança dos irmãos encarnados - As tempestades que nos atingem, obri­gam-nos a serviços constantes. Os quadros inCe­riores que nos cercam são profundamente dolorosos. Nossa cidade não possui Ministérios da União Divina, nem da Elevação. Não podemos receber a influência superior com muita facilidade.

trabalhos de comunicação e auxílio necessitam ain­da de muita gente educada no Evangelho, para funcionar com eficiência. Além disso, temos os pro­blemas de finalidade. Nossa colônia foi instituída para socorro urgente. A nosso ver, “Campo da Paz” é, mais que tudo, um avançado centro de enferma­gem, rodeado de perigos, porque os irmãos igno­rantes e infelizes nos cercam o esforço por todos os lados. De dez em dez quilômetros, nas zonas de nossa vizinhança, há Postos de Socorro como este, que funcionam como instituições de assistên­cia fraternal e sentinelas ativas, ao mesmo tempo.

A jovem fez uma pausa mais longa, observando o efeito de suas palavras, e rematou:

— Nosso governador, quando se agravam os serviços, costuma asseverar que estamos num Cam­po de batalha, com a Paz de Jesus. Imagem algu­ma define tão bem o nosso núcleo, como esta. No exterior, o trabalho é rigoroso e incessante, mas, dentro de nós, existe uma tranqüilidade que nós mesmos dificilmente podemos compreender.

— O serviço circunscreve-se à cidade’ — per­guntei.

— Não — o trabalho é multiforme. Eu e Aldonina, por exemplo, temos grandes tarefas de assistência junto dos recém-encarnados. Nossa ci­dade prepara, em média, quinze a vinte reencar­nações diárias e torna-se imprescindível assistir os companheiros ou tutelados, pelo menos no período infantil mais tenro, que compreende os primeiros sete anos de existência carnal.

E talvez porque lesse em nossos olhos a mais viva admiração, a jovem adiantou-se, explicando:

— Felizmente, porém, temos as faculdades de volitação bastante adestradas. Raramente encon­tramos empecilhos vibratórios e podemos, por isso mesmo, agir com grande economia de tempo. Além disso, somente nossos instrutores vão ao serviço sozinhos. Quanto a nós, não saímos, a não ser em grupos. Necessitamos auxílio recíproco, não só no que diz com a eficiência, senão também no que se refere ao amparo magnético.

E, sorrindo de modo singular, concluiu:

— No trabalho de assistência aos outros e de­fesa de nós mesmos, não podemos dispensar a prá­tica avançada e justa da cooperação sincera.


31

Cecília ao órgão

Poucas vezes, no circulo carnal, tivera o prazer de assistir a reunião tão seleta.

Todos os lustres estavam magnificamente ace­sos e, lá fora, as grandes árvores, docemente agitadas pelo vento brando, pareciam refletir o clarão lunar. Pares graciosos passeavam ao longo da va­randa e das escadarias extensas. O castelo enche­ra-se de alegria, com a crescente multiplicação de convidados, O administrador mostrava-se orgulhoso de confraternizar com os colaboradores diretos da sua obra, na recepção condigna aos amigos da co­lônia próxima. O júbilo transparecia em todos os rostos, e eu, observando a beleza do espetáculo, meditava na ventura da vida social, no ambiente daqueles que começavam a compreender e praticar o “amái-vos uns aos outros”, distanciados da hipo­crisia e das convenções aviltantes.

Conversávamos, animadamente, quando Alfre­do nos convidou para o Salão de Música.

Houve geral contentamento. A senhora Bace­lar, dando o braço à nobre Ismália, parecia encan­tada com a lembrança.

Dirigimo-nos para o grande recinto, prodigio­samente iluminado por luzes de um azul doce e brilhante. Deliciosa música embalava-nos a alma. Observei, então, que um coro de pequenos musi­cantes executava harmoniosa peça, ladeando um grande órgão, algo diferente dos que conhecemos na Terra. Oitenta crianças, meninos e meninas, surgiam, ali, num quadro vivo, encantador. Cinqüen­ta tangiam instrumentos de corda e trinta conser­vavam-se, graciosamente, em posição de canto.. Executavam, com maravilhosa perfeição, uma lin­da barcarola que eu nunca ouvira no mundo.

Comovidíssimo, ouvi o administrador explicar:

— As crianças do Posto São as nossas flo­res vivas. Dão-nos perfume, encantamento, alegria, suavizando-nos todos os trabalhos.

Abeiramo-nos do órgão, sentando-nos todos em confortáveis poltronas.

Quando as crianças terminaram, sob aplausos calorosos, Ismália pediu a Cecília executasse algu­ma coisa.

— Eu? — disse a jovem, corando — se a senhora vem das altas esferas, onde a harmonia é santificada e pura, como poderei executar para os seus ouvidos?

— Não diga isso, Cecilia — tornou, sorridente, a generosa esposa do administrador —, a música elevada é sublime em toda parte. Vá, minha filha! lembre-me o lar terreno nos dias mais belos!...

E, antes que a jovem Bacelar perguntasse qual a peça preferida, Ismália continuou:

— Os serviços musicais do Posto levam-me a recordar a velha Fazenda, quando voltava do Internato... Meus pais estimavam as composições européias e, quase todas as noites, ensaiava ao piano...

E, fixando em Cecília os olhos úmidos e bri­lhantes, rematou:

— Sua mamãe deve lembrar comigo a música predileta de meu velho e carinhoso pai...

Notei que a senhora Bacelar disse alguma coi­sa à filha, em voz baixa, e vimos Cecilia caminhar para o grande instrumento, sem hesitação. Com emoção indizível, ouvimo-la executar, magistralmen­te, a ‘Tocata e Fuga em Ré Menor”, de Bach, acompanhada pelas crianças exultantes.

Fixei o rosto de Ismália, notando, pela luz do seu olhar, que seus pensamentos vagueavam longe, talvez em torno do antigo ninho doméstico. Vi-a enxugar as lágrimas discretas e abraçar Cecília carinhosamente, ao findar a execução.

— Agora, Cecilia, cante alguma canção da pró­pria alma! — falou a nobre senhora com ternuras de mãe — mostre-nos seu coração...

Os senhores Bacelar estavam satisfeitos e emo­cionados. Lia-se-lhes nos gestos o carinho com que acompanhavam os menores movimentos da filha.

A jovem sorriu, voltou ao teclado, mas per­manecia, agora, fundamente transfigurada. Seu belo semblante parecia refletir alguma luz diferente, que vinha de mais alto. Começou a cantar, de maneira misteriosa e comovedora. A música parecia sair-lhe das profundezas do coração, mergulhando-nos em sublime emotividade. Procurei guardar as pa­lavras da maravilhosa canção, mas seria impossível repetí-las integralmente, no círculo dos encarna­dos na Terra. A sombra da meia-noite não poderia traduzir o revérbero da aurora. Mas de algo me lembro, para registrar aqui, com a fidelidade de que é suscetível minha memória imperfeita.

Como se fôra rodeada de claridades diversas daquela em que nos banhávamos, Cecilia cantou com voz veludosa e cariciante:

«Guardei para os teus olhos

As estrelas brilhantes do céu calmo...

Guardei para tua alma

Todos os lírios puros dos caminhos!...

Amado meu, amado meu,

Como é longa a viagem entre escolhos

Neste oceano imenso da saudade,

Ao sublime luar da eternidade!...

Em vão, a fada Esperança

Acende a luz dentro de mim...

Porque te foste ao mundo, assim?

Volta, amado!

Ainda mesmo

Que as tuas mãos estejam frias

E que teus pés sangrem de dor.

Trago comigo o bálsamo, a ternura,

Volta a mim,

Vem respirar, de novo, no jardim

Da Imortal união!...

Curarei tuas chagas de amargura,

Dar-te-ei o roteiro para a estrada,

Amarei os que amas,

Para que me abençoes com o teu sorriso.

Volta, amado!

Esquece a dor e a sombra do passado,

Volta, de novo, ao nosso paraíso!...»

Quando desferiu as últimas notas, vi-lhe o sem­blante lavado em lágrimas, como se fôra banhado em pérolas de luz. Observei que a senhora Bace­lar, muitíssimo comovida, tocou de leve a mão de Ismália, e falou:

— Cecília nunca o esquece.

A esposa do administrador, mostrando-se ex­tremamente sensibilizada, indagou:

— Não têm vocês novas notícias de Hermínio?

— O pobrezinho tem vivido de queda em que­da — esclareceu a nobre interlocutora — e Cecília sabe que não poderá contar com ele, por muito tempo ainda, guardando, por esse motivo, muita mágoa Intima. Entretanto, nossa filha não desani­ma e trabalha, incessantemente, cheia de esperança.

Nesse momento, porém, a jovem regressava ao círculo familiar, enxugando os olhos.

A esposa de Alfredo abraçou-a e falou:

— Minhas felicitações! não sabia que você pro­gredira tanto na arte divina! E que bela canção!...

Cecília fez um gesto de timidez, beijou a mão da carinhosa amiga e retrucou:

— Perdoe-me, querida Ismália, meu coração permanece ainda muito ligado à Terra!...

Ismália, porém, de olhos úmidos e compreen­dendo-lhe o sofrimento intimo, conchegou-a ao pei­to e murmurou:

— Devotar-se não é crime, minha boa Cecilia. O amor é luz de Deus, ainda mesmo quando res­plandeça no fundo do abismo.


32

Melodia sublime

Num gesto nobre, Aniceto pediu a Ismália que executasse algum motivo musical de sua elevada esfera.

A esposa de Alfredo não se fêz rogada. Com extrema bondade, sentou-se ao órgão, falando, gentil:

— Ofereço a melodia ao nosso caro Aniceto.

E, ante nossa admiração comovida, começou a tocar maravilhosamente. Logo às primeiras no­tas, alguma coisa me arrebatava ao sublime. Está­vamos extasiados, silenciosos. A melodia, tecida em misteriosa beleza, inundava-nos o espírito em torrentes de harmonia divina. Penetrava-me o co­ração um campo de vibrações suavíssimas, quan­do fui surpreendido por percepções absolutamente inesperadas. Com assombro indefinível, reparei que a esposa de Alfredo não cantava, mas no seio ca­ricioso da música havia uma prece que atingia o sublime — oração que eu não escutava com os ouvidos mas recebia em cheio na alma, através de vibrações sutis, como se o melodioso som esti­vesse impregnado do verbo silencioso e criador. As notas de louvor alcançavam-me o âmago do espírito, arrancando-me lágrimas de intraduzível emotividade:

“O Senhor Supremo de Todos os Mundos

E de Todos os Seres,

Recebe, Senhor,

O nosso agradecimento

De filhos devedores do teu amor!

Dá-nos tua bênção.

Ampara-nos a esperança,

Ajuda-nos o ideal

Na estrada Imensa da vida...

Seja para o teu coração,

Cada dia,

Nosso primeiro pensamento de amor!

Seja para tua bondade

Nossa alegria de viver!...

Pai de amor infinito

Dá-nos tua mão generosa e santa.

Longo é o caminho.

Grande o nosso débito,

Mas inesgotável é a nossa esperança.

Pai Amado,

Somos as tuas criaturas,

Raios divinos

De tua Divina inteligência.

Ensina-nos a descobrir

Os tesouros imensos

Que guardaste

Nas profundezas de nossa vida,

Auxilia-nos a acender

A lâmpada sublime

Da Sublime Procura!

Senhor,

Caminhamos contigo

Na eternidade!...

Em Ti nos movemos para sempre.

Abençoa-nos a senda,

Indica-nos a Sagrada Realização.

E que a glória eterna

Seja em teu eterno trono!...

Resplandeça contigo a Infinita Luz,

Mane em teu coração misericordioso

A Soberana Fonte do Amor,

Cante em tua Criação Infinita

O sopro divino da eternidade.

Seja a tua bênção

Claridade aos nossos olhos,

Harmonia ao nosso ouvido,

Movimento às nossas mãos,

Impulso aos nossos pés.

No amor sublime da Terra e dos Céus!...

Na beleza de todas as vidas,

Na progressão de todas as coisas,

Na voz de todos os seres,

Glorificado sejas para sempre,

Senhor.”

Que melodia era aquela que se ouvia através de sons inarticulados? Não pude conter as lágri­mas abundantes. Cecilia comovera-nos a sensibili­dade. lembrando as harmonias terrenas e os afetos humanos. Ismália, no entanto, arrebatava-nos o Espírito, elevando-nos ao Supremo Pai. Nunca ou­vira oração de louvor como aquela! Além disso, a esposa de Alfredo glorificava o Senhor de maneira diferente, inexprimível na linguagem humana. A prece tocara-me as recônditas fibras do coração e reconhecia que nunca meditara na grandeza divina, como naquele instante em que uma alma santifi­cada falava de Deus, com a maravilha de suas riquezas espirituais.

E não era só eu a chorar como criança. Ani­ceto enxugava os olhos, de maneira discreta, e algumas senhoras levavam o lenço ao rosto.

Compreendi que a oração terminara, porque a música mudou de expressão. O caráter heróico cedeu lugar a lirismo encantador. Experimentando a profunda serenidade ambiente, vi que luzes pro­digiosas jorravam do Alto sobre a fronte de Ismá­lia, envolvendo-a num arco irisado de efeito magné­tico e, com admiração e enlevo, observei que belas flores azuis partiam do coração da musicista, es­palhando-se sobre nós. Desfaziam-se como se feitas de caridosa bruma anilada, ao tocar-nos, de leve, enchendo-nos de profunda alegria. A maior parte caía sobre Aniceto, fazendo-nos recordar as pala­vras amigas da dedicatória. Impressionavam-me profundamente aquelas corolas fluídicas, de sublime azul-celeste, multiplicando-se, sem cessar, no am­biente, e penetrando-nos o coração como pétalas constituídas apenas de colorido perfume. Sentia-me tão alegre, experimentava tamanho bom ânimo que não conseguiria traduzir as emoções do momento.

Mais alguns minutos e Ismália terminou a ma­gistral melodia.

A esposa do administrador desceu até nós, coroada de intensa luz.

Alfredo avançou, beijando-a no rosto, ao mes­mo tempo que Aniceto lhe estendia a destra, agra­decido.

— Há muito tempo não ouvia músicas tão sublimes como as desta noite — exclamou nosso orientador, sorrindo. Cecília falou-nos do sublime amor terrestre, Ismália arrebatou-nos ao divino amor celestial. Idéia feliz a de permanecermos no Posto! Fomos igualmente socorridos pela luz da amizade, que nos revigorou o bom ânimo!

Aproximaram-se os Bacelares, eminentemente comovidos.

— Que maravilhosas flores nos deste, querida amiga! — disse a mãezinha de Cecilia, abraçando a esposa de Alfredo.

— Voltaremos ao trabalho, repletos de ener­gia nova! — acrescentou o senhor Bacelar, sorri­dente.

A extensa sala estava cheia de notas de reco­nhecimento e júbilo sincero. A melodia de Ismália constituira singular presente do Céu. A alegria e o bom ânimo transpiravam em todos os rostos.

Observando que Aniceto se retirava para um canto do salão, procurei-o, ansioso. Desejava es­clarecer o fenômeno da prece sem palavras, das harmonias, das luzes e das flores. Antes, porém, das interpelações do aprendiz, o orientador amigo sorriu, amável, e explicou:

— Conheço a sua sêde, André. Não precisa perguntar. Impressionou-se você com a grandeza espiritual da nobre companheira do nosso amigo. Não precisarei alinhar esclarecimentos. Recorda-se de Ana, a infeliz criatura que dorme nos pavilhões, entre pesadelos cruéis? Lembra-se de Paulo, o ca­luniador? Não os viu carregando pesados fardos mentais? Cada um de nós traz, nos caminhos da vida, os arquivos de si mesmo. Enquanto os maus exibem o inferno que criaram para o Intimo, os bons revelam o paraíso que edificaram no próprio coração. Ismália já amontoou muitos tesouros que as traças não roem. Ela já pode dar da infinita harmonia a que se devotou pela bondade e pelo divino amor. A luz que vimos é a mesma que jorra do plano superior, de maneira incessante, inun­dando os caminhos da vida, mas a melodia, a prece e as flores constituem sublime criação dessa alma santificada. Ela repartiu conosco, neste momento, uma parte dos seus tesouros eternos! Peçamos ao Senhor, meu amigo, que não tenhamos recebido em vão as sublimes dádivas!


33

A caminho da Crosta

Após nos refazermos pela manhã, considerando a viagem ainda longa, despedimo-nos, comovidos. Pelo menos, quanto a mim, podia afirmar que me afastava com mágoa, tão belas as lições ali co­lhidas!

Alfredo e a esposa nos abraçaram, sensibiliza­dos, desejando-nos jornada feliz e êxito no trabalho.

Vários amigos da véspera estavam presentes, saudando-nos jubilosos.

Tomamos o carro, agradàvelmente surpreen­didos.

Ser-me-ia muito difícil descrever a pequena máquina, que mais se assemelhava a pequeno automóvel de asas, a deslocar-se impulsionado por fluidos elétricos acumulados.

Sempre atencioso, Aniceto explicou:

— Aceitei a cooperação do aparelho, não por­que os deseja escravizados ao menor esforço, mas porque a permanência, embora ligeira, no Posto de Socorro, constituiu ensejo dos mais frutuosos à aquisição de conhecimentos necessários. Recebe­ram vocês lições intensivas, relativamente aos nos­sos irmãos perturbados e sofredores, bem como sobre os efeitos da prece. Desse modo, temos nosso expediente bastante adiantado, considerando que se encontram ambos em tarefa de observação e apren­dizado, acima de tudo.

E, depois de pequena pausa, continuou:

— Não creiam, todavia, que possamos apro­veitar a máquina até a Crosta. Calculo que só poderemos voar até ao meio-dia. Em seguida, pros­seguiremos a pé.

Aniceto calou-se por instantes, sorriu noutra expressão fisionômica, e acentuou:

— Isto, porém, acontecerá sômente enquanto não hajam vocês criado asas espirituais, que pos­sam vencer todas as resistências vibratórias. Se­melhante realização pode não estar distante. De­penderá do esforço que desejarem despender no trabalho aquisitivo. Todo aquele que opere, e co­opere de espírito voltado para Deus, poderá aguar­dar sempre o melhor. Não é promessa de ami­zade. É lei.

O pequeno aparelho nos conduziu por enormes distâncias, sempre no ar, mas conservando-se a reduzida altura do solo.

Quase precisamente ao meio-dia, estacionamos em humilde pouso, destinado a abastecimento e reparação de maquinaria de natureza daquela em que havíamos viajado.

Despediu-se de nós o condutor, que nos desejou boa viagem, preparando-se para regressar.

A paisagem tornou-se, então, muito fria e di­ferente. Não estávamos em caminho trevoso, mas muito escuro e nevoento. Tornara-se densa a atmos­fera, alterando-nos a respiração.

Aniceto contemplou, conosco, a vastidão cali­ginosa e falou em tom grave:

— Com quatro horas de locomoção, estaremos na Crosta. Reparem as sombras que nos rodeiam, identifiquem a mudança geral. Infelizmente, as emissões vibratórias da Humanidade encarnada são de natureza bastante inferior, em nos referindo àmaioria das criaturas terrestres, e estas regiões estão repletas de resíduos escuros, de matéria men­tal dos encarnados e desencarnados de baixa con­dição.

Atravessaremos grandes zonas, não prôpria­mente tenebrosas, mas muito obscuras ao nosso olhar. Daqui a duas horas, porém, encontraremos sinais da luz solar.

Nossa peregrinação, francamente, foi muito pe­sada e dolorosa, e, sômente aí, avaliei, de fato, a enorme diferença da estrada comum, que liga a Crosta a “Nosso Lar” e aquela que agora percor­ríamos a pé, vencendo obstáculos de vulto. Imagi­nei, comovido, o sacrifício dos grandes missionários espirituais que assistem o homem, compreendendo, então, quão meritório lhes é o serviço e como ne­cessitam disposições especiais e extraordinário bom ânimo, para auxiliarem as criaturas encarnadas, de maneira constante.

Os monstros, que fugiam à nossa aproxima­ção, escondendo-se no fundo sombrio da paisagem, eram indescritíveis e, obedecendo a determinações de Aniceto, não posso ensaiar qualquer informe nesse sentido, a fim de não criar imagens mentais de ordem inferior no espírito dos que, acaso, ve­nham a ler estas humildes notícias.

No horário previsto por nosso orientador, co­meçámos a vislumbrar, de novo, a luz do Sol, como se estivéssemos em madrugada clara. O espetáculo era magnífico e novo para mim. Calor brando começou a revigorar-nos.

Aniceto fixou o quadro maravilhoso dos raios de luz atravessando as sombras, e falou, de olhos úmidos:

— Agradeçamos ao Senhor dos Mundos a bên­ção do Sol! Na Natureza física, é a mais alta ima­gem de Deus que conhecemos. Temo-lo, nas mais variadas combinações, segundo a substância das esferas que habitamos, dentro do sistema. Ele está em “Nosso Lar”, de acordo com os elementos bá­sicos de vida, e permanece na Terra segundo as qualidades magnéticas da Crosta. E’ visto em Jú­piter de maneira diferente, ilumina Vênus com outra modalidade de luz. Aparece em Saturno nou­tra roupagem brilhante. Entretanto, é sempre o mesmo, sempre a radiosa sede de nossas energias vitais!

Avançamos, comovidos, e, dai a algum tempo, surgiu-nos o astro sublime, na posição que ante­cede o crepúsculo.

Doutras vezes, viajando sempre através da es­trada luminosa e fácil de ser percorrida, em vista das possibilidades de volitação, não fizera maior reparo. Agora, porém, que atravessara névoas com­pactas, anotava diferenças profundas.

A certa distância, surgia a Terra, não na forma esférica, porque nos achávamos não longe da Cros­ta, mas como paisagem além, a interpenetrar-Se nas extensas regiões espirituais.

O Sol resplandecia, rumo ao Poente, como enor­me lâmpada de ouro.

Aniceto, que parecia alegrar-se sobremaneira, exclamou:

— Entramos na zona de influenciação direta da Crosta. Poderemos, doravante, praticar a volitação, utilizando nossos conheçimentos de trans­formação da força centrípeta. A luz que nos banha resulta do contacto magnético entre a energia po­sitiva do Sol e a força negativa da massa plane­tária. Prossigamos. Não tardaremos a entrar no Rio de Janeiro.

A essa altura, assaltou-me o desejo de per­guntar alguma coisa relativamente à direção.

— Como nos orientaremos? — indaguei, curioso.

— Antes de tudo — respondeu o instrutor —é preciso não esquecer que nossas colônias estão situadas no campo magnético da América do Sul. Qualquer bússola seria sensível, de agora em dian­te, mas, em nosso caso, é indispensável educar o pensamento e orientar-nos dentro da energia que lhe é peculiar.

Empregamos, de novo, a capacidade volitante e, dentro em pouco, as matas de Petrópolis estavam à vista. Mais alguns minutos e perlustráva­mos as grandes artérias cariocas. Por sugestão do instrutor, abeiramo-nos do mar, em exercício respiratório de maior expressão.

Vicente e eu estávamos positivamente exaus­tos. Reconhecíamos que o esforço fôra significativo para nossas escassas forças.

Indiferentes à nossa presença, os transeuntes passavam apressados, de mente chumbada aos pro­blemas de ordem material. Fonfonavam ônibus re­pletos. A grande baía figurava-se-nos cheia de forças renovadoras.

Quando se acendiam as primeiras luzes elé­tricas, Aniceto convidou-nos, amavelmente:

— Vamos ao reconforto! Vocês estão fatiga­díssimos. irei mostrar-lhes que “Nosso Lar” tem, igualmente, alguns refúgios na Crosta.


34

Oficina de «Nosso Lar»

Entre dezoito e dezenove horas, atingimos uma casa singela de bairro modesto. No longo percur­so, através de ruas movimentadas, surpreendia-me, sobremaneira, por se me depararem quadros total­mente novos. Identificava, agora, a presença de muitos desencarnados de ordem inferior, seguin­do os passos de transeuntes vários, ou colados a eles, em abraço singular. Muitos dependuravam-se a veículos, contemplavam-nos outros, das sacadas distantes. Alguns, em grupos, vagavam pelas ruas, formando verdadeiras nuvens escuras que houves­sem baixado repentinamente ao solo.

Assustei-me. Não havia anotado tais ocorrên­cias nas excursões anteriores ao círculo carnal. Aniceto, porém, explicou que não fôra vão o au­xílio recebido para intensificação do poder visual. Estávamos em tarefa de observação ativa, com vistas ao aprendizado.

Não dissimulava, entretanto, minha surpresa. As sombras sucediam-se umas às outras e posso assegurar que o número de entidades inferiores, invisíveis ao homem comum, não era menor, nas ruas, ao de pessoas encarnadas, em contínuo vai­vém. Não havia, ali, a serenidade dos ambientes de “Nosso Lar”, nem a calma relativa do Posto de Socorro de Campo da Paz. Receios imprevistos instalavam-se-me nalma, desagradáveis choques íntimos assaltavam-me o coração, sem que lhes pu­desse localizar a procedência. Tinha a impressão nítida de havermos mergulhado num oceano de vi­brações muito diferentes, onde respirávamos com certa dificuldade. Nosso instrutor esclarecia que, com o tempo, seriam dilatados nossos poderes de resistência e que as penosas sensações experimen­tadas obedeciam à circunstância de ser aquela a primeira vez que descíamos ao ambiente da Crosta em serviço de análise mais intenso. Recomenda­va-nos bom ânimo e, sobretudo, a conservação da fortaleza mental, ante quaisquer quadros menos es­timáveis que nos defrontassem de imprevisto. A eficiência do auxilio, exclamava ele, necessita edu­cação persistente. Não seria possível ajudar alguém, prendendo-nos a fraquezas de qualquer espécie.

Os conselhos de Aniceto calmavam-nos a alma surpreendida e inquieta, e eu tudo fazia, no Intimo, para ajustar-me aos alvitres do bondoso orientador, mesmo porque asseverava ele que diversos com­panheiros adiavam nobres realizações, em virtude das manifestações de injustificável receio.

Aquela residência de aspecto tão humilde, que alcançávamos, agora, proporcionava-me cariciosa impressão de conforto. Estava lindamente ilumi­nada por clarões espirituais, que recordavam pre­cisamente nossa cidade tão distante. Fundamente surpreendido, reparei que o nosso orientador se detivera. Notando a nossa admiração, Aniceto in­dicou a casa pobre, e falou:

— Teremos aqui o nosso refúgio. É uma ofi­cina que representa “Nosso Lar”.

Profundo assombro empolgou-me o íntimo, mas não tive ensejo para indagações. Precisava seguir o instrutor, que tomara a direção da casa peque­nina. Aproximamo-nos do jardim que rodeava a construção muito simples e, estupefato, observei que numerosos companheiros espirituais assomavam à janela, saudando-nos alegremente.

Que significava tudo aquilo? De outras vezes, visitara minha cidade e meu antigo lar, mas nunca vira tal coisa.

Aniceto compreendeu-me a perplexidade e ex­plicou:

— Os irmãos que nos saúdam são trabalha­dores espirituais que se abrigam nesta tenda de amor.

Um cavalheiro muito simpático e acolhedor abriu-nos a porta.

Este pormenor foi outra nota imprevista. Tal não sucedia quando voltava à minha velha casa terrena. As portas cerradas não me ofereciam obstáculos. Ali, porém, vigorava um sistema vibra­tório de vigilância que eu não conhecia, até então.

Nosso instrutor envolveu o anfitrião num abra­ço amistoso, apresentando-nos em seguida.

— Aqui, meu caro Isidoro — disse a indicar-nos, carinhoso —, são nossos amigos Vicente e André, novos cooperadores de serviço, em “Nosso Lar”.

— Muito bem! muito bem! — exclamou Isi­doro, abraçando-nos — nossas atividades precisam de trabalhadores operoso.. Entrem!

E acrescentou, hospitaleiro:

— A casa pertence a todos os cooperadores fiéis do serviço cristão.

Era a primeira vez que eu via uma entidade espiritual com tão segura chefia de uma casa ter­restre.

Penetramos o ambiente modesto.

Altamente surpreendido, reparei o interior. A paisagem material mostrava alguns móveis singelos, velhos quadros a óleo na paredes alvas, velha máquina de costura movimentada por uma jovem aparentando dezesseis anos, um rapazote de doze anos presumíveis, atento a cadernetas de exercício escolar, três crianças de nove, sete e cinco anos aproximadamente, e, como figura central do grupo doméstico, uma senhora de quarenta anos, mais ou menos, tricoteando uma blusa. Notei, porém, que da fronte, do tórax, do olhar e das mãos dessa senhora irradiava-se luz incessante que me não per­mitia sofrear minhas expressões admirativas.

Aniceto designou-a, respeitoso, e falou:

— Temos, aqui, a nossa irmã Isabel. Para os olhos humanos ela é a viúva de Isidoro, mas para nós é uma servidora leal nas atividades da fé.

Reparei que Dona Isabel parecia, de algum modo, registrar a nossa presença, acusando certa surpresa no olhar, mas Aniceto adiantou-se, escla­recendo:

— Nossa amiga é senhora de grande vidência psíquica, mas os benfeitores que nos orientam os esforços recomendam não se lhe permita a visão total do que se passa em torno de suas faculdades mediúnicas. O conhecimento exato da paisagem es­piritual, em que vive, talvez lhe prejudicasse a tranqüilidade. Isabel, portanto, apenas pode ver, mais ou menos, a vigésima parte dos serviços espi­rituais em que colabora, de modo direto...

A essa altura, Isidoro nos indicou pequena sala ao lado, e falou a Aniceto em particular:

— Desculpem-me se não lhes posso acompa­nhar no repouso necessário. Descansem, contudo, à vontade. Tenho serviços urgentes na recepção de outros amigos.

Nosso mentor agradeceu, comovidamente, e, acompanhando-o, alcançamos modesto salão pobre­mente mobiliado, mas quase repleto de entidades evolvidas em conversação edificante.

Confortadoras luzes brilhavam em todos os re­cantos. Havia ali um velho relógio, tosca mesa de grandes proporções, uma dúzia de cadeiras e alguns bancos rústicos.

A claridade espiritual reinante, todavia, era de maravilhoso efeito. Muita gente esclarecida e ge­nerosa do plano invisível aos humanos aí se reunia. Aniceto cumprimentou os grupos que lhe eram mais íntimos, de modo especial, e apresentou-nos com a bondade de sempre.

Sentindo-nos a admiração, esclareceu, quando nos vimos mais a sós num canto do salão:

— Estamos numa oficina de “Nosso Lar”. Isidoro e Isabel edificaram-na, num ato de heroismo e fé, tendo saído de nossa cidade para essa tarefa, vai para mais de quarenta anos. Graças a Deus, ambos têm vencido, galhardamente, árduas provas, e mantêm seus compromissos corajosamente, em serviço na Crosta. Há três anos, voltou ele para nossa esfera, e contudo, graças ao altruísmo da esposa e aos vínculos de amor espiritual que con­servam acima de todas as expressões físicas, con­tinuam estreitamente unidos, como no primeiro dia do reencontro na existência material. Dada esta circunstância invulgar, as autoridades de “Nosso Lar” concederam-lhe permissão para continuar nes­ta casa como esposo amigo, pai devotado, sentinela vigilante e trabalhador fiel.

E, observando talvez a nossa maior surpresa, Aniceto acrescentou:

— Sim, amigos, o acaso não define responsa­bilidades nem atende a construção séria. A edificação espiritual pede esforço e dedicação. Assim como os navios do mundo necessitam de âncoras firmes para atenderem eficientemente à sua tarefa nos portos, também nós precisamos de irmãos cora­josos e abnegados que façam o papel de âncoras entre as criaturas encarnadas, a fim de que, por elas, possam os grandes benfeitores da Espiritua­lidade Superior se fazerem sentir entre os homens ainda animalizados, ignorantes e infelizes.


35

Culto doméstico

Nas primeiras horas da noite, Dona Isabel aban­donou a agulha e convidou os filhinhos para o culto doméstico.

Notando o interesse que me despertavam as crianças, Aniceto explicou:

— As meninas são entidades amigas de “Nosso Lar”, que vieram para serviço espiritual e resgate necessário, na Terra. O mesmo, porém, não acon­tece ao pequeno, que procede de região inferior.

De fato, eu identificava perfeitamente a situa­ção, O rapazola não se revestia de substância luminosa e atendia ao convite materno, não como quem se alegra, mas como quem obedece.

Com tamanha naturalidade se sentaram todos em torno da mesa, que compreendi a antigüidade daquele abençoado costume familiar. A filha mais velha, que atendia por Joaninha, trazia cadernos de anotações e recortes de jornais.

A viúva sentou-se à cabeceira e, após meditar breves instantes, recomendou à pequena Neli, de nove anos, fizesse a oração inicial do culto, pedin­do a Jesus o esclarecimento espiritual.

Todos os trabalhadores invisíveis sentaram-se, respeitosos. Isidoro e alguns companheiros mais íntimos do casal permaneceram ao lado de Dona Isabel, sendo quase todos vistos e ouvidos por ela.

Tão logo começou aquele serviço espiritual da família, as luzes ambientes se tornaram muito mais intensas.

Profunda sensação de paz envolvia-me o coração.

A pequena Neli, em voz comovente, fêz a prece:

— Senhor, seja feita a vossa vontade, assim na Terra como nos Céus. Se está em vosso santo desígnio que recebamos mais luz, permiti, Senhor, tenhamos bastante compreensão no trabalho evan­gélico! Dai-nos o pão da alma, a água da vida eter­na! Sede em nossos corações, agora e sempre. Assim seja!...

Dona Isabel pediu à filha mais velha lesse uma página instrutiva e consoladora e, em seguida, algum fato interessante do noticiário comum, ao que Joaninha atendeu, lendo pequeno capitulo de um livro doutrinário sobre a irreflexão, e um epi­sódio triste de jornal leigo. A primogênita de Isi­doro, que revelava muita doçura e afabilidade, pa­recia impressionada. Tratava-se de uma jovem de bairro distante, vitima de suicídio doloroso. O re­pórter gravara a cena com característicos muito fortes. A leitora estava trêmula, sensibilizada.

Assim que Joaninha terminou, Dona Isabel abriu o Novo Testamento, como se estivesse proce­dendo ao acaso, mas, em verdade, eu via que Isido­ro, do nosso plano, intervinha na operação, aju­dando a focalizar o assunto da noite. A seguir, fixou o olhar na página pequenina e falou:

— A mensagem-versículo de hoje, meus filhos, está no capítulo 13 do Evangelho de São Mateus.

E lendo o versículo 31, fê-lo em voz alta:

— “Outra parábola lhes propôs, dizendo: — O Reino dos Céus é semelhante ao grão de mostarda que o homem tomou e semeou no seu campo.”

Observei, então, um fenômeno curioso. Um ami­go espiritual, que reconheci de nobilíssima condição, pelas vestes resplandecentes, colocou a destra so­bre a fronte da generosa viúva.

Antes que lhe perguntasse, Aniceto explicou em voz quase imperceptível:

— Aquele é o nosso irmão Fábio Aleto, que vai dar a interpretação espiritual do texto lido. Os que estiverem nas mesmas condições dele, po­derão ouvir-lhe os pensamentos; mas, os que esti­verem em zona mental inferior, receberão os valores interpretativos, como acontece entre os encarnados, isto é, teremos a luz espiritual do verbo de Fábio na tradução do verbo materializado de Isabel.

Nosso mentor não poderia ser mais explícito. Em poucas palavras fornecera-me a súmula da extensa lição.

Notei que a viúva de Isidoro entrara em pro­funda concentração por alguns momentos, como se estivesse absorvendo a luz que a rodeava. Em se­guida, revelando extraordinária firmeza no olhar, iniciou o comentário:

- “Lemos hoje, meus filhos, uma página sobre a irreflexão e a notícia de um suicídio em tristís­simas circunstâncias. Afirma o jornal que a jovem suicida se matou por excessivo amor; entretanto, pelo que vimos aprendendo, estamos certos de que ninguém comete erros por amar verdadeiramente. Os que amam, de fato, são cultivadores da vida e nunca espalham a morte. A pobrezinha estava doente, perturbada, irrefletida. Entregou-se à pai­xão que confunde o raciocínio e rebaixa o senti­mento. E nós sabemos que, da paixão ao sofrimen­to, ou à morte, não é longa a distância. Lembremos, todavia, essa amiga desconhecida, com um pensa­mento de simpatia fraternal. Que Jesus a proteja nos caminhos novos. Não estamos examinando um ato, que ao Senhor compete julgar, mas um fato, de cuja expressão devemos extrair o ensinamento justo.

A mensagem evangélica desta noite assevera, pela palavra do nosso Divino Mestre aos discípulos, que o reino dos céus é também “semelhante ao grão de mostarda que o homem tomou e semeou no seu coração”. Devemos ver, neste passo, meus filhos, a lição das coisas mínimas. A esfera carnal onde vivemos está repleta de irreflexões de toda sorte. Raras criaturas começam a refletir seriamente na vida e nos deveres, antes do leito da morte física. Não devemos fixar o pensamento tão só nessa jovem que se suicidou em condições tão dramáticas, ao nos referirmos aos ensinos de agora. Há homens e mulheres, com maiores responsabili­dades, em todos os bairros, que evidenciam paixões nefastas e destruidoras no campo dos sentimentos, dos negócios, das relações sociais. As mentes dese­quilibradas pela irreflexão permanecem, neste mun­do, quase por toda a parte. É que nos temos des­cuidado das coisas pequeninas. Grande é o oceano, minúscula é a gota, mas o oceano não é senão a massa das gotas reunidas. Fala-nos o Mestre, em divino simbolismo, da semente de mostarda. Recor­demos que o campo do nosso coração está cheio de ervas espinhosas, demorando, talvez, há muitos sé­culos, em terrível esterilidade. Naturalmente, não deveremos esperar colheitas milagrosas. É indis­pensável amanhar a terra e cuidar do plantio. A semente de mostarda, a que se refere Jesus, cons­titui o gesto, a palavra, o pensamento da criatura.

Há muitas pessoas que falam bastante em humil­dade, mas nunca revelam um gesto de obediência. Jamais realizaremos a bondade, sem começarmos a ser bons. Alguma coisa pequenina há de ser feita, antes de edificarmos as grandes coisas, O Senhor ensinou, muitas vezes, que o reino dos céus está dentro de nós. Ora, é portanto em nós mesmos que devemos desenvolver o trabalho máximo de reali­zação divina, sem o que não passaremos de grandes irrefletidos. A floresta também começou de semen­tes minúsculas. E nós, espiritualmente falando, temos vivido em densa floresta de males, criados por nós mesmos, em razão da invigilância na es­colha de sementes espirituais. A palestra de uma hora, o pensamento de um dia, o gesto de um momento, podem representar muito em nossas vidas. Tenhamos cuidado com as coisas pequeninas e sele­cionemos os grãos de mostarda do reino dos céus. Lembremos que Jesus nada ensinou em vão. Toda vez que “pegarmos” desses grãos, consoante a Palavra Divina, semeando-os no campo íntimo, re­ceberemos do Senhor todo o auxilio necessário. Conceder-nos-á a chuva das bênçãos, o sol do amor eterno, a vitalidade sublime da esfera supe­rior. Nossa semeadura crescerá e, em breve tempo, atingiremos elevadas edificações. Aprendamos, meus filhos, a ciência de começar, lembrando a bondade de Jesus a cada instante. O Mestre não nos desam­para, segue-nos amorosamente, inspira-nos o cora­ção. Tenhamos, sobretudo, confiança e alegria!”

Reparei que Fábio retirou a mão da fronte da viúva e observei que ela entrava a meditar, como quem sentira o afastamento da ideia em curso.

Havia grande comoção na assembleia invisível às crianças que, por sua vez, também pareciam impressionadas.

Dona Isabel voltou a contemplar maternalmente os filhos, e falou:

— Procuremos, agora, conversar um pouco.


36

Mãe e filhos

No comentário evangélico, eu recolhia observa­ções interessantes. Tal como no caso de Ismália, quando lhe ouvíamos a sublime melodia, a inter­pretação de Fábio estava cheia de maravilhas espi­rituais que transcendiam à capacidade receptiva de Dona Isabel. A viúva de Isidoro parecia deter tão somente uma parte.

Desse modo, as crianças recebiam a lição de acordo com as possibilidades mediúnicas da palavra materna, enquanto que a nós outros se propiciava o ensinamento com maravilhoso conteúdo de beleza.

Sempre solícito, o instrutor esclareceu:

— Não se admirem do fenômeno! cada qual receberá a luz espiritual conforme a própria capa­cidade. Há muitos companheiros nossos, aqui reu­nidos, que registram o comentário de Fábio com mais dificuldade que as próprias crianças. Experi­mentam, ainda, grandes limitações.

Havia grande respeito em todos os desencar­nados presentes.

Fábio Aleto sentou-se em plano superior, ao passo que Isidoro se acomodava junto da esposa, no impulso afetivo do pai que se aproxima, solí­cito, para a conversação carinhosa com os filhos bem-amados.

Nesse instante, a pequenina Marieta, que pa­recia haver atingido os sete anos, aproveitando o momento de palavra livre, perguntou à mâezinha, em tom comovedor:

— Mamãe, se Jesus é tão bom, porque esta­mos comendo só uma vez por dia, aqui em casa? Na casa de Dona Fausta, eles fazem duas refeições, almoçam e jantam. Neli me contou que no tempo de papai também fazíamos assim, mas agora... Porque será?

A viúva esboçou um sorriso algo triste e falou:

— Ora, Marieta, você vive muito impressio­nada com essa questão. Não devemos, filhinha, su­bordinar todos os pensamentos às necessidades do estômago. Há quanto tempo estamos tomando nos­sa refeição diária e gozando boa saúde? Quanto benefício estaremos colhendo com esta frugalidade de alimentação?

Joaninha interveio, acrescentando:

— Mamãe tem toda a razão. Tenho visto muita gente adoecer por abuso da mesa.

— Além disso — acentuou Dona Isabel, con­fortada —, vocês devem estar certos de que Jesus abençoa o pão e a água de todas as criaturas que sabem agradecer as dádivas divinas. É verdade que Isidoro partiu antes de nós, mas nunca nos faltou o necessário. Temos nossa casinha, nossa união espiritual, nossos bons amigos. Convençam-se de que o papai está trabalhando ainda por nós.

Nessa altura da palestra, dada a nossa como­ção, Isidoro enxugou os olhos úmidos.

Noemi, a caçula pequenina, falou em voz in­fantil:

— É mesmo, é verdade! eu vi papai ajudando a segurar o bolo que Dona Cora nos trouxe domingo.

— Também vi, Noemi — disse Dona Isabel, de olhos vivamente brilhantes —, papai continua auxiliando-nos.

E voltando-se para todos, acentuou:

— Quando sabemos amar e esperar, meus fi­lhos, não nos separamos dos entes queridos que morrem para a vida física. Tenhamos certeza na proteção de Jesus!...

Marieta, parecendo agora absolutamente tran­qüila, assentiu:

— Quando a senhora fala, mamãe, eu sinto que tudo é verdade! Como Jesus é bom! E se nós não tivéssemos a senhora? Tenho visto os pequenos mendigos abandonados. Talvez não comam coisa alguma, talvez não tenham amigos como os nossos! Ah! como devemos ser agradecidos ao Céu!...

A viúva, que se confortava visivelmente, ou­vindo aquelas palavras, exclamou com profunda emoção:

— Muito bem, minha filha! Nunca deveremos reclamar e sim louvar sempre. E possivelmente não saberia você compreender a situação, se esti­véssemos em mesas lautas.

Observei, porém, que o menino não comparti­lhava aquele dilúvio de bênçãos. Entre Dona Isabel e as quatro filhinhas havia permuta constante de vibrações luminosas, como se estivessem identifi­cadas no mesmo ideal e unidas numa só posição; mas o rapazote permanecia espiritualmente distan­te, fechado num círculo de sombras. De quando em quando, sorria irônico, insensível à significação do momento. Valendo-se da pausa mais longa, ele perguntou à genitora, menos respeitosamente:

— Mamãe, que entende a senhora por po­breza?

Dona Isabel respondeu, muito serena:

— Creio, meu filho, que a pobreza é uma das melhores oportunidades de elevação, ao nosso al­cance. Estou convencida de que os homens afor­tunados têm uma grande tarefa a cumprir, na Terra, mas admito que os pobres, além da missão que lhes cabe no mundo, são mais livres e mais felizes. Na pobreza, é mais fácil encontrar a ami­zade sincera, a visão da assistência de Deus, oS tesouros da natureza, a riqueza das alegrias sim­ples e puras. É claro que não me refiro aos ociosos e ingratos dos caminhos terrenos. Refi­ro-me aos pobres que trabalham e guardam a fé. O homem de grandes possibilidades financeiras muito dificilmente saberá discernir entre a afeição e o interesse mesquinho; crente de que tudo pode, nem sempre consegue entender a divina proteção; pelo conforto viciado a que se entrega, as mais das vezes se afasta das bênçãos da Natureza; e em vista de muito satisfazer aos próprios caprichos, restringe a capacidade de alegrar-se e confiar no mundo.

Apesar da beleza profunda daquela opinião, o rapazola permaneceu impassível, respondendo algo contrariado:

— Infelizmente, não posso concordar com a senhora. Até os garotos do jardim de infância pensam de modo contrário.

Dona Isabel mudou a expressão fisionômica, assumiu a atitude de quem instrui com a noção de responsabilidade, e acentuou:

— Não estamos aqui num jardim de infância, meu filho. Estamos no jardim do lar, competindo-nos saber que as flores são sempre belas, mas que a vida não pode prosseguir sem a bênção dos frutos. Por onde andarmos no mundo, receberemos muitos alvitres da mentira venenosa. É preciso vigiar o coração, Joãozinho, valorizando as bênçãos que Jesus nos envia.

O rapazinho, entretanto, demonstrando enorme rebeldia Intima, tornou:

— A senhora não considera razoável alugar este salão a fim de termos algum dinheiro a mais? Estive conversando, ontem, com o “seu” Maciel, quando vim da escola. Ele nos pagaria bem, para ter aqui um depósito de móveis.

Dona Isabel, de ânimo decidido, respondeu com energia, sem irritação:

— Você deve saber, meu filho, que enquanto respeitarmos a memória de seu pai, este salão será consagrado às nossas atividades evangélicas. Já lhes contei a história do nosso culto doméstico e não desejo que vocês sejam cegos às bênçãos do Cristo. Mais tarde, Joãozinho, quando você entrar diretamente na luta material, se for agradável ao seu temperamento, construa casas para alugar; mas agora, meu filho, é indispensável que você considere este recanto como algo de sagrado para sua mamãe.

— E se eu insistir? — perguntou, mal humo­rado, o pequeno orgulhoso.

A viúva, muito calma, esclareceu firme:

— Se você insistir, será punido, porque eu não sou mãe para criar ilusões perigosas ao coração dos filhinhos que Deus me confiou. Se muito amo a vocês, precisarei incliná-los ao caminho reto.

O pequeno quis retrucar, mas a luz emitida pelo tórax de Dona Isabel, ao que me pareceu, con­fundiu-lhe o espírito rebelde e vi-o calar-se, a con­tragosto, amuado e enraivecido. Admirei, então, profundamente, aquela bondosa mulher, que se di­rigia à filha mais velha como amiga, às filhinhas mais novas como mãe, e ao filho orgulhoso como instrutora sensata e ponderada.

Aniceto, que também se mostrava satisfeito, disse-nos em tom significativo:

— O Evangelho dá equilíbrio ao coração -

A pequena Neli, amedrontada, pediu, humilde:

— Mamãe, não deixe Joãozinho alugar a sala!

A viúva sorriu, acariciou o rostinho da filha e asseverou:

— Joãozinho não fará isso, saberá compreen­der a mamãe. Não falemos mais neste assunto, Neli -

E fixando o relógio, dirigiu-se à primogênita:

— Joaninha, minha filha, ore agradecendo, em nosso nome. Nosso horário está findo.

A jovem, com expressão nobre e carinhosa, agradeceu ao Senhor, tocando-nos os corações.


37

No santuário doméstico

Terminado o culto familiar, um dos compa­nheiros também rendeu graças.

— Esperemos que esses celeiros de sentimen­tos se multipliquem — disse Aniceto, sensibilizado. O mundo pode fabricar novas indústrias, novos arra­nha-céus, erguer estátuas e cidades, mas, sem a bênção do lar, nunca haverá felicidade verdadeira.

— Bem-aventurados os que cultivam a paz doméstica — exclamou uma senhora simpática, que estivera presente ao nosso lado, durante a reunião.

Dois cooperadores de “Nosso Lar” serviram-nos alimentação leve e simples, que não me cabe especificar aqui, por falta de termos analógicos.

— Em oficinas como esta — explicou o ins­trutor amigo —‘ é possível preservar a pureza de nossas substâncias alimentícias, Os elementos mais baixos não encontram, neste santuário, o campo imprescindível à proliferação. Temos bastante luz para neutralizar qualquer manifestação da treva.

E, enquanto a família humana de Isidoro fazia frugal refeição de chá com torradas, numa saleta próxima, fazíamos nós ligeiro repasto, entremeado de palestra elevada e proveitosa.

O ambiente continuou animado, em teor de franca alegria.

Depois das vinte e três horas, a viúva reco­lheu-se com os filhos, em modesto aposento.

Intraduzível a nossa sensação de paz.

Aniceto, Vicente e eu, em companhia doutros amigos, fomos ao pequeno jardinzinho que rodeava a habitação.

As flores veludosas rescendiam. A claridade espiritual ambiente, como que espancava as sombras da noite.

Respirando as brisas cariciosas que sopravam da Guanabara, reparei, pela primeira vez, no deli­cado fenômeno, que não havia observado até então. Uma pequena carinhosa, enquanto a mãezinha pa­lestrava com um amigo, despreocupadamente, co­lheu um cravo perfumoso, num grito de alegria. vi a menina colher a flor, retirá-la da haste, ao mesmo tempo que a parte material do cravo emurchecia, quase de súbito. A senhora repreendeu-a, com calor:

— Que é isso, Regina? Não temos o direito de perturbar a ordem das coisas. Não repitas, minha filha! Desgostaste a mamãe!

Aniceto, sorrindo bondoso, explicou discreta­mente:

— Esta é a nossa Irmã Emilia, servidora em “Nosso Lar”, que vem ao encontro do esposo ainda encarnado.

— E ele virá até aqui? — interrogou Vicente, curioso.

— Virá pelas portas do sono físico — acres­centou nosso orientador, sorridente. — Estas ocor­rências, no cÍrculo da Crosta, dão-se aos milhares, todas as noites. Com a maioria de irmãos encar­nados, o sono apenas reflete as perturbações fisio­lógicas ou sentimentais a que se entregam; entre­tanto, existe grande número de pessoas que, com mais ou menos precisão, estão aptas a desenvolver este intercâmbio espiritual.

Estava surpreendido. Aquele trabalho interes­sante, a que nos trazia Aniceto, com tão vasto campo de serviços gerais, fazia-me intensamente feliz. Em cada canto pressentia atividades novas.

Embora as luzes que nos rodeavam, notei que os céus prometiam aguaceiros próximos. As brisas leves transformavam-se, repentinamente, em ven­tania forte. Não obstante, as sensações de sossego eram agradabilíssimas.

— O vento, na Crosta, é sempre uma bênção celeste — exclamou Aniceto, sentencioso. — Pode­mos avaliar-lhe o caráter divino, em virtude da nossa condição atual. A pressão atmosférica sobre os Espíritos encarnados é, aproximadamente, de quinze mil quilos.

— Todavia, é interessante notar — aduziu Vi­cente — que não sentimos tamanho peso sobre os ombros.

— É a diferença dos veículos de manifesta­ção — esclareceu Aniceto, atencioso. — Nossos corpos e os de nossos companheiros encarnados apresentam diversidade essencial. Imaginemos o círculo da Crosta como um oceano de oxigênio. As criaturas terrestres são elementos pesados que se movimentam no fundo, enquanto nós somos as go­tas de óleo, que podem voltar à tona, sem maiores dificuldades, pela qualidade do material de que se constituem.

A essa altura do esclarecimento, notei que for­mas sombrias, algumas monstruosas, se arrastavam na rua, à procura de abrigo conveniente. Reparei, com espanto, que muitas tomavam a nossa direção, para, depois de alguns passos, recuarem amedron­tadas. Provocavam assombro. Muitas, pareciam verdadeiros animais perambulando na via pública. Confesso que insopitável receio me invadira o coração.

Calmo, como sempre, Aniceto nos tranqüilizou:

— Não temam — disse. Sempre que ameaça tempestade, os seres vagabundos da sombra se mo­vinentam procurando asilo. São os ignorantes que vagueiam nas ruas, escravizados às sensações mais fortes dos sentidos físicos. Encontram-se ainda colados às expressões mais baixas da experiência terrestre e os aguaceiros os incomodam tanto quan­to ao homem comum, distante do lar. Buscam, de preferência, as casas de diversão noturna, onde a ociosidade encontra válvula nas dissipações. Quando isto não se lhes torna acessível, penetram as resi­dências abertas, considerando que, para eles, a ma­téria do plano ainda apresenta a mesma densidade característica.

E, demonstrando interesse em valorizar a lição do minuto, acrescentou:

— Observem como se inclinam para cá, fugindo, em seguida, espantados e inquietos. Estamos co­lhendo mais um ensinamento sobre os efeitos da prece. Nunca poderemos enumerar todos os benefí­cios da oração. Toda vez que se ora num lar, prepara-se a melhoria do ambiente doméstico. Cada prece do coração constitui emissão eletromagnética de relativo poder. Por isso mesmo, o culto familiar do Evangelho não é tão só um curso de iluminação interior, mas também processo avançado de defesa exterior, pelas claridades espirituais que acende em torno. O homem que ora traz consigo inalienável couraça. O lar que cultiva a prece transforma-se em fortaleza, compreenderam? As entidades da sombra experimentam choques de vulto, em con­tacto com as vibrações luminosas deste santuário doméstico, e é por isso que se mantêm a distância, procurando outros rumos...

Daí a momentos, penetrávamos, de novo, no salão abençoado da modesta residência.

Como quem estivesse atravessando um país de surpresas, outro fato me despertava profunda admiração.

Isidoro e Isabel vieram a nós, de braços entre­laçados, irradiando ventura. Aquela viúva pobre do bairro humilde vestia-se agora lindamente, não obstante a adorável singeleza de sua presença. Sorria contente, ao lado do esposo, via-nos a todos, cumprimentava-nos, amável.

— Meus amigos — disse ela, serena —, meu marido e eu temos uma excursão instrutiva para esta noite. Deixo-lhes as nossas crianças por algu­mas horas e, desde já, lhes agradeço o cuidado e o carinho.

— Vá, minha filha! — respondeu uma senhora idosa — aproveite o repouso corporal. Deixe os meninos conosco. Vá tranqüila!

O casal afastou-se com a expressão dum su­blime noivado.

Nosso orientador inclinou-se para nós e falou:

— Observam vocês como a felicidade divina se manifesta no sono dos justos? Poucas almas encarnadas conheço com a ventura desta mulher admirável, que tem sabido aprender a ciência do sacrifício individual.


38

Atividade plena

No salão acolhedor de Dona Isabel, permane­cíamos em plena atividade. Lá fora, começara o aguaceiro forte, mas tínhamos a nítida impressão de grande distância da chuva torrencial.

Logo às primeiras horas da madrugada, o movimento intensificou-se. Muita gente ia e vinha.

— Numerosos irmãos — explicou o orienta­dor — encontram-se neste pouso de trabalho espi­ritual, na esfera a que os encarnados chamariam sonho. Não é fácil transmitir mensagens de teor ins­trutivo, nessa tarefa, utilizando lugares comuns, contaminados de matéria mental menos digna. Nas oficinas edificantes, porém, onde conseguimos acu­mular maiores quantidades de forças positivas da espiritualidade superior, é possível prestar grandes benefícios aos que se encontram encarnados no pla­neta.

Acentuei minhas observações, verificando que muitas das pessoas recém-chegadas pareciam con­valescentes, titubeantes... Algumas se mantinham de pé, sob o amparo de braços carinhosos. Eram os amigos encarnados a se valerem do desprendi­mento parcial, pelo sono físico, que se reuniam a nós, aproveitando o auxílio de entidades generosas e dedicadas. Reconhecia, entretanto, que a maior parte não entendia, com precisão, o que se lhes desejava dizer. Muitos pareciam doentes, incompreensivos. Sorriam infantilmente, revelando boa vontade na recepção dos conselhos, mas grande incapacidade de retenção. Eu estudava os quadros ambientes, com justa estranheza. Sempre cuida­doso, Aniceto veio ao encontro de nossa perple­xidade.

— Os Espíritos encarnados — disse —, tão logo se realize a consolidação dos laços físicos, fi­cam submetidos a imperiosas leis dominantes na Crosta. Entre eles e nós existe um espesso véu. É a muralha das vibrações. Sem a obliteração temporária da memória, não se renovaria a oportunidade. Se o nosso campo lhes fôra francamente aberto, olvidariam as obrigações imediatas, estima­riam o parasitismo, prejudicando a própria evolu­ção. Eis porque raramente estão lúcidos ao nosso lado. Na maioria dos casos, junto de nós, perma­necem vacilantes, enfraquecidos... Vejam aquela jovem senhora encarnada, em conversa com a vo­vôzinha que trabalha conosco, em “Nosso Lar”.

Assim dizendo, Aniceto indicou um grupo mais próximo.

A anciã, de olhos brilhantes e gestos decididos, abraçava-se à neta, lânguida e palidíssima.

— Nieta — exclamava a velhinha, em tom firme —, não dês tamanha importância aos obstáculos. Esquece os que te perseguem, a ninguém odeies. Conserva tua paz espiritual, acima de tudo. Tua mãe não te pode valer agora, mas crê na con­tinuidade de nossa vida. A vovó não te esquecerá. A calúnia, Nieta, é uma serpente que ameaça o coração; entretanto, se a encararmos de frente, fortes e tranqüilas, veremos, a breve tempo, que a serpente não tem vida própria. É víbora de brin­quedo a se quebrar como vidro, pelo impulso de nossas mãos. E, vencido o espantalho, em lugar da serpente, teremos conosco a flor da virtude. Não temas, querida! Não percas a sagrada oportunidade de testemunhar a compreensão de Jesus!...

A jovem senhora não respondia, mas seus olhos semilúcidos estavam cheios de pranto. Demons­trava no gesto vago uma consolação divina, recos­tada ao seio carinhoso da devotada velhinha.

— Esta irmã se lembrará de tudo, ao des­pertar no corpo físico? — perguntei, intrigado, ao nosso orientador.

Aniceto sorriu e esclareceu:

— Sendo a avó superior e ela inferior, e, exa­minando ainda a condição dos planos de vida em que ambas se encontram, a jovem encarnada está sob o domínio espiritual da benfeitora. Entre ambas, portanto, há uma corrente magnética recí­proca, salientando-se, porém, que a vovó amiga detém uma ascendência positiva. A neta não vê o ambiente com precisão, nem ouve as palavras integralmente. Não esqueçamos que o desprendi­mento no sono físico vulgar é fragmentário e que a visão e a audição, pecullares ao encarnado, se encontram nele também restritas, O fenômeno, pois, é mais de união espiritual que de percepções sensoriais, prôpriamente ditas. A jovem está recebendo consolações positivas, de Espírito a Espírito. Não se recordará, despertando nos véus materiais mais grosseiros, de todas as minúcias deste ven­turoso encontro que acabamos de presenciar. Acor­dará, porém, encorajada e bem disposta, semi poder identificar a causa da restauração do bom ânimo. Dirá que sonhou com a avó num lugar• onde havia muita gente, sem recordar as minudências do fato, acrescentando que viu, no sonho, uma cobra amea­çadora, que logo se transformou em serpente de vidro, quebrando-se ao impulso de suas mãos, para transformar-se em perfumosa flor, da qual ainda conserva a lembrança agradável do aroma. Afirmará que soberano conforto lhe invadiu a alma e, no fundo, compreenderá a mensagem consoladora que lhe foi concedida.

— Não se lembrará, contudo, das palavras ouvidas? — indagou Vicente, curioso.

— Precisaria ter adquirido profunda lucidez no campo da existência física — prosseguiu Aniceto, explicando — e devo esclarecer que recordará as imagens simbóllcas da víbora e da flor, porque está em relação magnética com a veneranda avózi­nha, recebendo-lhe a emissão de pensamentos posi­tivos. A benfeitora não fala apenas. Está pensando fortemente também. A neta, todavia, não está ouvindo ou vendo pelo processo comum, mas está percebendo claramente a criação mental da anciã amiga, e dará notícia exata dos simbolos entrevistos e arquivados na memória real e profunda. Desse modo, não terá dificuldade para informar-se quan­to à essência do que a bondosa avó deseja transmi­tir-lhe ao coração sofredor, compreendendo que a calúnia, quando fere uma consciência tranqüila não passa de serpente mentirosa, a transformar-se em flor de virtude nova, quando enfrentada com o valor duma coragem serena e cristã.

A lição fôra profundamente significativa para mim. Começava a adquirir amplas noções do inter­câmbio entre as duas esferas. Pensei no longo esforço dos que indagam o mundo dos sonhos. Quanta riqueza psíquica, suscetível de conquista, se os pesquisadores conseguissem deslocar o centro de estudo, das ocorrências fisiológicas para o campo das verdades espirituais! Lembrei a psicanálise, a tese freudiana, as manifestações instintivas, infe­riores.

Percebendo-me as elucubrações, o devotado mentor dirigiu-me a palavra de maneira especial:

— Freud — asseverou Aniceto — foi um grande missionário da Ciência; no entanto, man­teve-se, como qualquer Espírito encarnado, sob cer­tas limitações. Fêz muito, mas não tudo, na esfera da indagação psíquica.

Pela pausa do nosso instrutor, percebi que ele não desejava entrar em minucioso exame da teoria famosa. Lembrando, porém, a extraordinária importância atribuída pelo grande cientista às ten­dências inferiores, indaguei, um tanto tímido:

— Haverá, porém, centros de reunião para os espíritos desequilibrados no mal, como acontece, aqui, aos amigos interessados no bem?

O generoso mentor sorriu, benévolo, e falou:

— Não haja dúvidas quanto a isto. Através das correntes magnéticas suscetíveis de movimentação, quando se efetua o sono dos encarnados, são mantídas obsessões inferiores, perseguições perma­nentes, explorações psíquicas de baixa classe, vam­pirismo destruidor, tentações diversas. Ainda são poucos, relativamente, os irmãos encarnados que sabem dormir para o bem...

E, fazendo um gesto por demais expressivo, concluiu:

— Livre-nos o Senhor de cair novamente...


39

Trabalho incessante

Ao alvorecer, observei que Aniceto recebia numerosos amigos, com os quais se entendeu em particular. Informou-nos o estimado orientador, por espírito de delicadeza, que trazia consigo incum­bências várias, de acordo com as instruções de Telésforo, das quais era forçado a tratar em cará­ter privado, não nos ocultando, todavia, o objetivo essencial, que era, ao que disse, o combate ativo a uma grande cooperativa de desencarnados ignoran­tes, congregados para o mal.

Enquanto ele se mantinha em conversação ímtima, ouvíamos, por nossa vez, outros amigos da faina espiritual.

O dia raiava, agora, com soberano esplendor. Tínhamos a impressão de que a chuva da noite varrera as sombras do firmamento.

Pelo número de trabalhadores espirituais que pernoitaram na casinha humilde, reconheci a impor­tância daquele núcleo de serviço, tão apagado aos olhos do mundo.

Uma senhora, que se aproximara de nós, excla­mava, comovida:

— Que o Senhor recompense a nossa irmã Isabel, concedendo-lhe forças para resistir às tentações do caminho. Por haver descansado neste pouso de amor, pude encontrar minha pobre filha, desviando-a do suicídio cruel. Graças à Providência Divina!

Incapaz de sofrear o desejo de aprender, per­guntei, curioso:

— Mas como a encontrou, minha irmã?

— Em sonho — respondeu a velhinha bondosa.

— Minha Dalva ficou viúva há três anos, e, faz onze meses, deixei-a só, por haver também desen­carnado. A pobrezinha não tem resistido ao sofri­mento quanto devera e deixou-se empolgar por entidades maléficas, que lhe tramam a ruína. Em­balde me aproximo dela, durante o dia, mas, com a mente engolfada em negócios e complicações mate­riais, não me pôde sentir a influenciação. Precisava encontrar-me com ela à noite, e isso não era fácil, porque não tenho bastante elevação espiritual para operar sôzinha e o grupo em que sirvo não poderia demorar na Crosta uma noite inteira por minha causa. Foi então que uma amiga me trouxe a este posto de serviço de “Nosso Lar”. Aqui descansei e pude agir com os grupos de tarefa permanente, ajudada por infatigáveis operários do bem.

— E conseguiu seus fins com facilidade? —indagou Vicente, interessado.

— Graças a Jesus! — respondeu a senhora, evidenciando enorme satisfação — agora sei que minha filha recebeu meus alvitres carinhosos de mãe e estou certa de que me atenderá as rogativas.

— Escute, minha amiga — interroguei —, há muitos postos de “Nosso Lar”, como este?

— Ao que me informaram, há regular número deles, não sômente aqui, mas também noutras cida­des do país, além de numerosas oficinas que repre­sentam outras colônias espirituais, entre as criatu­ras corporificadas na Terra. Nesses núcleos, há sempre possibilidades avançadas, imprescindíveis ao nosso abastecimento para a luta.

Nesse instante, dois camaradas que nos haviam dirigido a palavra durante a noite, despertando-nos sincera simpatia, apresentaram-nos saudações.

— Mas, como? — perguntei — retiram-se tão cedo?

— Vamos ao trabalho — respondeu-me um deles —; hoje, à noite, realizar-se-á o estudo evan­gélico e devemos auxiliar os irmãos ignorantes e sofredores que estejam em condições de vir até aqui.

— Há também semelhante tarefa? — inda­guei, espantado.

— Como não, meu caro? O próprio Jesus já dizia, há muitos séculos, que a seara é grande. Há trabalho para todos. E cumpre-nos reconhecer que esta oficina de assistência cristã funciona, há quase vinte anos, de maneira incessante.

— Vocês, no entanto — interroguei —, perma­necem aqui desde os primórdios da fundação?

O interlocutor esclareceu prontamente:

— Não. Muitos, como nós, fazem aqui estágios de serviço. Somente alguns cooperadores de Isidoro e Isabel aqui estacionam desde o início da insti­tuição. Nós outros, contudo, não nos demoramos em trabalho por mais de dois anos consecutivos. Um posto, como este, é sempre uma escola ativa e santa, e os que se encontrem no clima da boa von­tade não devem perder ensejo de aprender.

— Desculpem-me tantas interrogativas — tor­nei —, mas estimaria saber se vocês são os únicos com as atribuições de recrutar os que ignoram e sofrem, para a instrução e o consolo.

— Não. Hildegardo e eu somos auxiliares ape­nas de alguns quarteirões no centro urbano. Nesse ramo de socorro, os colaboradores são numerosos.

A essa altura, um dos irmãos, que me parecia integrar o corpo de orientação da casa, aproximou-se e falou ao nosso interlocutor, de maneira especial:

— Vieira, recomendo a você e ao Hildegardo a melhor observância do nosso critério doutrinário. Será inútil trazerem até aqui entidades vagabundas ou de má fé, obedecendo aos alvitres da simpatia pessoal. Não podemos perder tempo com Espíritos escarninhos e ociosos, nem com aqueles que se apro­ximam de nossa tenda alimentando certas intenções de natureza inferior. Não faltarão providências de Jesus para essa gente, em outra parte. Lembrem-se disso.

Não é falta de caridade, é compreensão do dever. Temos um programa de trabalho muito sério, no capitulo da evangelização e do socorro, não podemos abusar da concessão de nossos maiores da Espiritualidade Superior. Quem aceita um com­promisso não vive sem contas. Por muito que vocês amem a alguma entidade ociosa ou irônica, não facilitem os abusos dela. Ajudem-na de maneira individual, quando disponham de tempo e possi­bilidades para isso. Não arrastem o grupo a difi­culdades. Não se esqueçam de que existem deter­minados núcleos de tarefa para os surdos e cegos voluntários.

Vieira e o colega fizeram-se palidíssimos, não respondendo palavra.

Quando o orientador se afastou, sereno e ativo, Vieira explicou, desapontado:

— Recebemos uma admoestação justa.

E porque visse nosso desejo de aprender, pros­seguiu, atencioso:

— Infelizmente, Hildegardo e eu temos alguns parentes desencarnados em dolorosas condições es­pirituais. Na reunião passada, trouxemos meu tio Hilário e o primo Carlos, embora soubéssemos que ambos não se encontram preparados para reflexões sérias, pelo desrespeito às leis divinas em que se movimentam, nos ambientes inferiores. Manifesta­ram-se ambos, porém, tão desejosos de renovação, que ouvimos, acima de tudo, a simpatia pessoal, esquecendo a necessidade de preparação conve­niente. Vieram conosco, sentaram-se entre os ouvin­tes numerosos. Mas, em meio dos estudos evangé­licos, tentaram assaltar as faculdades mediúnicas da irmã Isabel, para transmissão de uma mensagem de teor menos edificante. Sentindo-nos a vigilância e surpreendidos pelos cooperadores desta santifi­cada oficina, revoltaram-se, estabelecendo grande distúrbio. Não fôssem as barreiras magnéticas do serviço de guarda, teriam causado males muito sérios. Assim, a reunião foi menos frutuosa, pela grande perda de tempo. Ora, naturalmente, fomos responsabilizados...

— Meu Deus! — exclamou Vicente, admira­do — quanta lição nova!

— Ah! sim, meu amigo — tornou Vieira, resig­nado —, aqui não devemos abusar tanto do amor, como no circulo carnal! Ninguém está impedido de ajudar, querer bem, interceder; todos podemos auxiliar os que amamos, com os recursos que nos sejam próprios, mas a palavra “dever” tem aqui uma significação positiva para quem deseje cami­nhar sinceramente para Deus.


40

Rumo ao campo

Quase todos os servidores espirituais puse­ram-se a caminho de tarefas variadas. Sômente alguns amigos permaneceriam na residência de Dona Isabel, em missão de auxílio e vigilância -

Notei que Aniceto continuava distribuindo ins­truções diversas, dirigindo-se, em caráter confiden­cial, a determinados companheiros, a respeito da missão que lhe confiara Telésforo.

Antes do meio-dia, porém, convidou-nos a acompanhá-lo.

— Na oficina — disse-nos, bondoso — encon­tramos revigoramento imprescindível ao trabalho. Recebemos reforços de energia, alimentamo-nos con­venientemente para prosseguir no esforço, mas convenhamos que, para muitos de nós, a noite repre­sentou uma série de atividades longas e exaustivas. Necessitamos de algum descanso. Voltaremos ao crepúsculo -

Aonde iríamos? Ignorava. Recordei que, de fato, se alguns haviam repousado no santuário doméstico, durante a noite, a maioria havia traba­lhado intensamente, e conclui que, se muitos pela manhã haviam tomado rumo às obrigações, outros teriam buscado o repouso indispensável.

- Aonde vão? — perguntou um companheiro da vigilância, que se fizera nosso amigo.

Antes que respondêssemos, Aniceto esclareceu:

— Vamos ao campo.

E, dirigindo-se especialmente a Vicente e a mim, considerou:

— Utilizemos a volitação, mesmo porque não temos objetivos imediatos no centro urbano.

Notei que movimentava agora minhas faculda­des volitantes com facilidade crescente. A excursão educativa, com escala pelo Posto de Socorro de Campo da Paz, fizera-me grande bem. Melhorara em adestramento, sentia-me fortalecido ante as vibrações de ordem inferior, mobilizava os recursos próprios sem dificuldade. Reparei, igualmente, que minhas possibilidades visuais cresciam sensivel­mente. Volitando, não observara, até então, o que agora verificava, extremamente surpreendido. Dan­tes, via sômente os homens, os animais, veículos e edifícios chumbados ao solo. Agora, a visão dila­tava-se. Reconhecia, de longe, o peso considerável do ar que se agarrava à superfície. Tive a impres­são de que nadávamos em alta zona do mar de oxigênio, vendo em baixo, em águas turvas, enorme quantidade de irmãos nossos a se arrastarem pesa­damente, metidos em escafandros muito densos, no fundo lodoso do oceano.

— Estão vendo aquelas manchas escuras na via pública? — indagava nosso orientador, percebendo-nos a estranheza e o desejo de aprender cada vez mais.

Como não soubéssemos definir com exatidão, prosseguia explicando:

— São nuvens de bactérias variadas. Flutuam quase sempre também, em grupos compactos, obe­decendo ao princípio das afinidades. Reparem aque­les arabescos de sombra...

E indicava-nos certos edifícios e certas regiões citadinas.

— Observem os grandes núcleos pardacentos ou completamente obscuros!... São zonas de matéria mental inferior, matéria que é expelida inces­santemente por certa classe de pessoas. Se demorarmos em nossas investigações, veremos igual­mente os monstros que se arrastam nos passos das criaturas, atraidos por elas mesmas...

Imprimindo grave inflexão às palavras, consi­derou:

— Tanto assalta o homem a nuvem de bacté­rias destruidoras da vida física, quanto as formas caprichosas das sombras que ameaçam o equilíbrio mental. Como vêem, o “orai e vigiai” do Evangelho tem profunda importância em qualquer situação e a qualquer tempo. Sômente os homens de mentali­dade positiva, na esfera da espiritualidade superior, conseguem sobrepor-se às influências múltiplas de natureza menos digna.

Interessado, contudo, em maior esclarecimento, perguntei:

— Mas a matéria mental emitida pelo homem inferior tem vida própria como o núcleo de corpús­culos microscópicos de que se originam as enfer­midades corporais?

O mentor generoso sorriu singularmente e acentuou:

- Como não? Vocês, presentemente, não des­conhecem que o homem terreno vive num aparelho psicofísico. Não podemos considerar sômente, no capítulo das moléstias, a situação fisiológica pro­priamente dita, mas também o quadro psíquico da personalidade encarnada. Ora, se temos a nuvem de bactérias produzidas pelo corpo doente, temos a nuvem de larvas mentais produzidas pela mente enferma, em identidade de circunstâncias. Desse modo, na esfera das criaturas desprevenidas de recursos espirituais, tanto adoecem corpos, como almas. No futuro, por esse mesmo motivo, a medi­cina da alma absorverá a medicina do corpo. Pode­remos, na atualidade da Terra, fornecer tratamento ao organismo de carne. Semelhante tarefa dignifica a missão do consolo, da instrução e do alívio. Mas, no que concerne à cura real, somos forçados a reconhecer que esta pertence exclusivamente ao homem-espírito.

— Deus meu! — exclamou Vicente, espanta­do — a que perigos está submetido o homem comum!

— Por isso — tornou Aniceto, cuidadoso —, a existência terrestre é uma gloriosa oportunidade para os que se interessam pelo conhecimento e ele­vação de si mesmos. E, por esta mesma razão, ensinamos a necessidade da fé religiosa entre as criaturas humanas. Desenvolvendo essa campanha, não pretendemos intensificar as paixões nefastas do sectarismo, mas criar um estado positivo de con­fiança, otimismo e ânimo sadio na mente de cada companheiro encarnado. Até agora, apenas a fé pode proporcionar essa realização. As ciências e as filosofias preparam o campo; entretanto, a fé que vence a morte, é a semente vital. Possuindo-lhe o valor eterno, encontra o homem bastante dina­mismo espiritual para combater até à vitória plena em si mesmo.

Compreendendo que precisaria completar o es­clarecimento, exclamou, depois de pausa mais longa:

— Todos precisamos saber emitir e saber re­ceber. Para alcançarem a posição de equilíbrio, nesse mister, empenham-se os homens encarnados e nós outros, em luta incessante. E já que conhe­cemos alguma coisa da eternidade, é preciso não esquecer que toda queda prejudica a realização, e todo esforço nobre ajuda sempre.

As explicações recebidas não poderiam ser mais claras. Aquela visão, porém, de ruas repletas de pontos sombrios a se deslocarem vagarosos, atin­gindo homens e máquinas, nas vias públicas, assom­brava-me.

Sequioso de ensinamentos, tornei ao assunto:

— A lição para mim tem valores incalculá­veis. E quando penso no alto poder reprodutivo da flora microbiana...

Aniceto, contudo, não me deixou terminar. Conhecendo, de antemão, minha pergunta natural, cortou-me a frase, exclamando:

— Sim, André, se não fôsse o poder muito maior da luz solar, casada ao magnetismo terres­tre, poder esse que destrói intensivamente para selecionar as manifestações da vida, na esfera da Crosta, a flora microbiana de ordem inferior não teria permitido a existência dum só homem na superfície do globo. Por esta razão, o solo e as plantas estão cheios de princípios curativos e transformadores.

E, abanando significativamente a cabeça, con­cluiu:

— Nada obstante esse poder imenso, recurso di­vino, enquanto os homens, herdeiros de Deus, cultiva­rem o campo inferior da vida, haverá também criações inferiores, em número bastante para a batalha sem tré­guas em que devem ganhar os valores legítimos da evolução.


41

Entre árvores

Decorridos alguns minutos, atingíamos pequena propriedade rural, povoada de arvoredo acolhedor.

Laranjeiras em flor perdiam-se de vista. Ba­naneiras estendiam-se em leque, enquanto o goiabal, de longe, semelhava-se a manchas fortes de ver­dura. A relva macia convidava ao descanso. E o vento calmo passava de leve, sussurrando alguma coisa através da folhagem.

Aniceto respirou a longos haustos, e falou:

— Os desencarnados, embora não se fatiguem como as criaturas terrestres, não prescindem da pausa de repouso. Em geral, nossas operações, ànoite, são ativas e laboriosas. Apenas um terço dos companheiros espirituais, em serviço na Crosta, conserva-se em atividade diurna.

E, notando-nos a curiosidade justa, sentenciou:

— Aliás, isto é razoável. O dia terrestre per­tence, com mais propriedade, ao serviço do Espírito encarnado, O homem deve aprender a agir, teste­munhando compreensão das leis divinas. Pelo menos durante certo número de horas, deve estar mais só com as experiências que lhe dizem res­peito.

Nosso instrutor amigo sorriu e observou:

— O dia e a noite constituem, para o homem, uma folha do livro da vida. A maior parte das vezes, a criatura escreve sozinha a página diária, com a tinta dos sentimentos que lhe são próprios, nas palavras, pensamentos, intenções e atos, e no verso, isto é, na reflexão noturna, ajudamo-la a retificar as lições e acertar as experiências, quando o Senhor no-lo permite.

Calando-se o nosso orientador, tivemos a aten­ção exclusivamente voltada para a beleza circun­dante. Aquele campo amigo e hospitaleiro caracte­rizava-se por ambiente muito diverso. Não mais as emanações pesadas da cidade grande, mas o vento leve, embalsamado de suavíssimos perfumes. Refle­tia eu na bondade do Senhor, que nos oferecia recur­sos novos, quando Aniceto voltou a dizer:

— A Natureza nunca é a mesma em toda parte. Não há duas porções de terra com climas absolutamente iguais. Cada colina, cada vale, possui expressões climatéricas diferentes. É forçoso reco­nhecer, porém, que o campo, em qualquer condição, no círculo dos encarnados, é o reservatório mais abundante e vigoroso de princípios vitais. Em ge­ral, todos nós, os cooperadores espirituais, estima­mos o ar da manhã, quando a atmosfera permanece igualmente em repouso, isenta dos glóbulos de poeira convertidos em microscópicos balões de ba­cilos e de outras expressões inferiores. Entretanto, os trabalhos de hoje não nos permitiram o descanso mais cedo...

Apoiamo-nos no veludoso relvado, e, perceben­do-nos a sêde de saber, Aniceto prosseguiu:

— Assim me explico, porque na floresta temos uma densidade forte, pela pobreza das emanações, em vista da impermeabilidade ao vento. Aí, o ar costuma converter-se em elemento asfixiante, pelo excesso de emissões dos reinos inferiores da Natu­reza. Na cidade, a atmosfera é compacta e o ar também sufoca, pela densidade mental das mais baixas aglomerações humanas. No campo, desse modo, temos o centro ideal...

Indicando, prazeroso, as frondes balouçantes, acentuou:

— Reina aqui a paz relativa e equilibrada da Natureza terrestre. Nem a selvageria da mata virgem, nem a sufocação dos fluidos humanos, O campo é nosso generoso caminho central, a harmonia possível, o repouso desejável.

Embalados ao pio de algumas juritis solitárias, repousamos algumas horas, magnificamente asila­dos no templo da Natureza.

Com as primeiras tonalidades do crepúsculo, Ãniceto nos convidou a passeio rápido pelas ime­diações.

Reconhecia que estávamos muito mais bem dis­postos.

— Sàmente depois de nos locomovermos por alguns minutos, observei que nas vizinhanças havia grande quantidade de trabalhadores espirituais.

Em face das minhas interrogações, nosso men­tor explicou, bondosamente:

— O campo é também vasta oficina para os serviços de nossa colaboração ativa.

E apontando os servidores, que iam e vinham, considerou:

— O reino vegetal possui cooperadores nume­rosos. Vocês, possívelmente, ignoram que muitos irmãos se preparam para o mérito de nova encar­nação no mundo, prestando serviço aos reinos infe­riores, O trabalho com o Senhor é uma escola viva, em toda parte.

Nesse momento, nossa atenção foi atraida por significativo movimento na estrada próxima.

Dirigimo-nos para lá, seguindo os passos de Aniceto, que parecia adivinhar o acontecimento.

Observei, então, um quadro interessante: um homem jazia por terra, numa poça de sangue, ao lado de pequeno veículo sustentado por um muar impaciente, dando mostras de grande inquietação. Dois companheiros encarnados prestavam socorro ao ferido, apressadamente. “É preciso conduzi-lo à fazenda sem perda de tempo”, dizia um deles, aflito, “temo haja fraturado o crânio.” O número de d•esencarnados que auxiliava o pequeno grupo, todavia, era muito grande.

Um amigo espiritual que me pareceu o chefe, naquela aglomeração, recebeu Aniceto e a nós com deferência e simpatia, explicou rapidamente a ocor­rência. O carroceiro havia recebido a patada de um burro e era necessário socorrer o ferido.

Serenada a situação, vi o referido superior hierárquico chamar um guarda do caminho, inter­pelando:

— Glicério, como permitiu semelhante acon­tecimento? Este trecho da estrada está sob sua responsabilidade direta.

O subordinado, respeitoso, considerou sensa­tamente:

— Fiz o possível por salvar este homem, que, aliás, é um pobre pai de família. Meus esforços foram improfícuos, pela imprudência dele. Há mui­to procuro cercá-lo de cuidados, sempre que passa por aqui; entretanto, o infeliz não tem o mínimo respeito pelos dons naturais de Deus. É de uma grosseria inominável para com os animais que o auxiliam a ganhar o pão. Não sabe senão gritar, encolerizar-se, surrar e ferir. Tem a mente fe­chada às sugestões do agradecimento. Não estima senão a praga e o chicote. Hoje, tanto perturbou o pobre muar que o ajuda, tanto o castigou, que pareceu mais animalizado... Quando se tornou quase irracional, pelo excesso de fúria e ingratidão, meu auxílio espiritual se tornou ineficiente. Ator­mentado pelas descargas de cólera do condutor, o burro humilde o atacou com a pata. Que fazer? Minha obrigação foi cumprida...

O Superior, que ouvia atenciosamente as alega­ções, respondeu sem hesitar:

— Tem razão.

E como dirigisse o olhar a Aniceto, desejando aprovação, nosso orientador afirmou:

— Auxiliemos o homem, quanto esteja em nos­sas mãos, cumpramos nosso dever com o bem, mas não desprezemos as lições. Esse trabalhador im­prudente foi punido por si mesmo. A cólera é pu­nida por suas conseqüências. Ao mal segue-se o mal. Se os seres inferiores, nossos irmãos no grande lar da vida, nos fornecem os valores do serviço, devemos dar-lhes, por nossa vez, os valores da educação. Ora, ninguém pode educar odiando, nem edificar algo de útil com a fúria e a bruta­lidade.

E, indicando o grupo que conduzia o ferido a uma casa próxima, concluiu, imperturbável:

— Como homem comum, nosso pobre amigo sofrerá muitos dias, chumbado ao leito; entre as aflições dos familiares, demorar-se-á um tanto a restabelecer o equilíbrio orgânico; mas, como Espí­rito eterno, recebeu agora uma lição útil e neces­sária.

Altamente surpreendido, reparei na grande se­renidade do nosso orientador e comecei a compreen­der que ninguém desrespeita a Natureza sem o doloroso choque de retorno, a todo tempo.


42

Evangelho no ambiente rural

Apagados os comentários mais vivos, relativa­mente ao episódio desagradável, o superior hierár­quico daquela grande turma de trabalhadores espi­rituais indagou do nosso orientador, com delica­deza:

— Nobre Aniceto, valendo-vos da oportunida­de, poderíeis interpretar para nós outros alguma das lições evangélicas, ainda hoje?

Aniceto aquiesceu, pressuroso.

Notei que o interesse em torno do assunto era enorme.

Com grande surpresa, vi que os servidores da gleba traziam ao estimado mentor um livro, que não tive dificuldades em identificar. Era um exem­plar do Evangelho, que Aniceto abriu firmemente, como quem sabia onde estava a lição do momento.

Fixando a página escolhida, começou a medi­tar, enquanto sublimada luz lhe aureolava a fronte. Houve profundo silêncio. Todos os colaboradores demonstravam grande interesse pela palavra que se fazia. Tudo era de aspecto imponente e calmo na Natureza. Um rebanho bovino acercara-se de nós, atraído por forças magnéticas que não consegui compreender. Alguns muares humildes chegaram, igualmente, de longe. E as aves tranqüilizaram-se nas frondes fartas, sem um pio. A única voz que toava, leve e branda, era a do vento, sussurrando harmonia e frescura. A paisagem não podia ser mais bela, vestida em ouro líquido do Poente. Excetuada a rusticidade natural do quadro vivo, o ambiente sugeria recordações fiéis dos verdes salões de “Nosso Lar”.

Aniceto, mergulhando o olhar no Sagrado Li­vro, leu em voz alta os versículos 19, 20 e 21 do capítulo 8, da Epístola aos Romanos:

— “Porque a ardente expectação da criatura espera a manifestação dos filhos de Deus. Porque a criação ficou sujeita à vaidade, não por sua von­tade, mas por causa do que a sujeitou, na esperança de que também a mesma criatura será libertada da servidão da corrupção, para a liberdade da glória dos filhos de Deus.

Em seguida, refletiu alguns instantes e comen­tou, com evidente inspiração:

- Irmãos, recebamos a bênção do campo, lou­vando o Amor e a Sabedoria de Nosso Pai!

Exalte­mos o Soberano Espírito de Vida, que sopra em nós a força eterna da incessante renovação!

Pon­deremos a palavra do Apóstolo da Gentilidade, para extrair-lhe o conteúdo divino!... Há milênios a Natureza espera a compreensão dos homens. Não se tem alimentado tão sômente de esperança, mas vive em ardente expectação, aguardando o enten­dimento e o auxílio dos Espíritos encarnados na Terra, mais prôpriamente considerados filhos de Deus. Entretanto, as forças naturais continuam sofrendo a opressão de todas as vaidades humanas. Isto, porém, ocorre, meus amigos, porque também o Senhor tem esperança na libertação dos seres escravizados na Crosta, para que se verifique igual­mente a liberdade na glória do homem. Conheço-vos de perto os sacrifícios, abnegados trabalha­dores espirituais do solo terrestre! Muitos de vós aqui permaneceis, como em múltiplas regiões do planeta, ajudando a companheiros encarnados, acor­rentados às ilusões da ganância de ordem material. Quantas vezes, vosso auxílio é convertido em baixas explorações no campo dos negócios terrestres? A maioria dos cultivadores da terra tudo exige sem nada oferecer.

Enquanto zelais, cuidadosamente, pela manutenção das bases da vida, tendes visto a civilização funcionando qual vigorosa máquina de triturar, convertendo-se os homens, nossos irmãos, em pequenos Moloques de pão, carne e vinho, abso­lutamente mergulhados na viciação dos sentimen­tos e nos excessos da alimentação, despreocupados do imenso débito para com a Natureza amorável e generosa. Eles oprimem as criaturas inferiores, ferem as forças benfeitoras da vida, são ingratos para com as fontes do bem, atendem às indústrias ruralistas, mais pela vaidade e ambição de ganhar, que lhes são próprias, que pelo espírito de amor e utilidade, mas também não passam de infelizes servos das paixões desvairadas. Traçam programas de riqueza mentirosa, que lhes constituem a ruína; escrevem tratados de política econômica, que re­dundam em guerra destruidora; desenvolvem o comércio do ganho indébito, colhendo as complicações internacionais que dão curso à miséria; dominam os mais fracos e os exploram, acordando, porém, mais tarde, entre os monstros do ódio! É para eles, nossos semelhantes encarnados na Crosta, que deve­mos voltar igualmente os olhos, com espírito de tolerância e fraternidade. Ajudemo-los ainda, agora e sempre! Não esqueçamos que o Senhor está espe­rando pelo futuro deles! Escutemos os gemidos da criação, pedindo a luz do raciocínio humano, mas não olvidemos, também, a lágrima desses escravos da corrupção, em cujas fileiras permanecíamos até ontem, auxiliando-os a despertar a consciência di­vina para a vida eterna! Ainda que rodeiem o campo de vaidades e insolências, auxiliemo-los ainda, O Senhor reserva acréscimos sublimes de valores evolutivos aos seres sacrificados. Não olvi­dará Ele a árvore útil, o animal exterminado, o ser humilde que se consumiu em benefício de outro ser! Cooperemos, por nossa vez, no despertar dos ho­mens, nossos Irmãos, relativamente ao nosso débito para com a Natureza maternal. Sempre, ao voltar­mos à Crosta, envolvendo-nos em fluidos do círculo carnal, levamos muito longe a aquisição de nitro­gênio.

Convertemos em tragédia mundial o que poderia constituir a procura serena e edificante.

Como sabemos, organismo algum poderá viver na Terra sem essa substância, e embora se locomova, no oceano de nitrogênio, respirando-o na média de mil litros por dia, não pode o homem, como nenhum ser vivo do planeta, apropriar-se do nitrogênio do ar. Por enquanto, não permite o Senhor a criação de células nos organismos viventes do nosso mundo, que procedam à absorção espontânea desse elemento de importância primordial na manutenção da vida, como acontece ao oxigênio comum. Sômente as plantas, infatigáveis operárias do orbe, conseguem retirá-lo do solo, fixando-o para o entretenimento da vida noutros seres. Cada grão de trigo é uma bênção nitrogenada para sustento das criaturas, cada fruto da terra é uma bolsa de açúcar e albu­mina, repleta do nitrogênio indispensável ao equi­líbrio orgânico dos seres vivos. Todas as indústrias agropecuárias não representam, na essência, senão a procura organizada e metódica do precioso ele­mento da vida. Se o homem conseguisse fixar dez gramas, aproximadamente, dos mil litros de nitro­gênio que respira diAriamente, a Crosta estaria transformada no paraíso verdadeiramente espiri­tual. Mas, se muito nos dá o Senhor, é razoável que exija a colaboração do nosso esforço na cons­trução da nossa própria felicidade. Mesmo em “Nosso Lar”, ainda estamos distantes da grande conquista do alimento espontâneo pelas forças atmosféricas, em caráter absoluto. E o homem, meus amigos, transforma a procura de nitrogênio em movimento de paixões desvairadas, ferindo e sendo ferido, ofendendo e sendo ofendido, escravi­zando e tornando-se cativo, segregado em densas trevas! Ajudemo-lo a compreender, para que se organize uma era nova. Auxiliemo-lo a amar a terra, antes de explorá-la no sentido inferior, a valer-se da cooperação dos animais, sem os recursos do extermínio! Nessa época, o matadouro será con­vertido em local de cooperação, onde o homem aten­derà aos seres inferiores e onde estes atenderão às necessidades do homem, e as árvores úteis viverão em meio do respeito que lhes é devido. Nesse tempo sublime, a indústria glorificará o bem e, sentindo-nos o entendimento, a boa vontade e a veneração às leis divinas, permitir-nos-á o Senhor, pelo menos em parte, a solução do problema técnico de fixação do nitrogênio da atmosfera. Ensinemos aos nossos irmãos que a vida não é um roubo incessante, em que a planta lesa o solo, o animal extermina a planta e o homem assassina o animal, mas um movimento de permuta divina, de cooperação gene­rosa, que nunca perturbaremos sem grave dano à própria condição de criaturas responsáveis e evo­lutivas! Não condenemos! Auxiliemos sempre!

A assembléia, tanto quanto nós, estava sob forte impressão.

Aniceto calou-se, contemplou com simpatia os animais e as aves próximas, como se estivesse a endereçar-lhes profundos pensamentos de amor e, a seguir, fechou o Livro Sagrado, com estas pa­lavras:

— Observamos com o Evangelho que a criação aguarda ansiosamente a manifestação dos filhos de Deus encarnados! Concordamos que as criaturas inferiores têm suportado o peso de iniqüidades imensas! Continuemos em auxilio delas, mas não nos percamos em vãs contendas. Os homens espe­ram também a nossa manifestação espiritual! Desse modo, ajudemos a todos, no capitulo do grande entendimento.


43

Antes da reunião

Os preparativos espirituais para a reunião eram ativos e complexos.

Chegamos de regresso a residência de Dona Isabel, quando faltavam poucos minutos para as dezoito horas e já o salão estava repleto de traba­lhadores em movimento.

Observando, com estranheza, determinadas ope­rações, fiz algumas perguntas ao nosso orientador, que me esclareceu com bondade:

— Realizar uma sessão de trabalhos espiri­tuais eficientes não é coisa tão simples. Quando encontramos companheiros encarnados, entregues ao serviço com devotamento e bom ânimo, isentos de preocupação, de experiências malsãs e inquieta­ções injustificáveis, mobilizamos grandes recursos a favor do êxito necessário. Claro que não podemos auxiliar atividades infantis, nesse terreno. Quem não deseje cuidar de semelhantes obrigações, com a seriedade devida, poderá esperar fatalmente pelos espíritos menos sérios, porqüanto a morte física não significa renovação para quem não procurou renovar-se. Onde se reúnam almas levianas, ai es­tará igualmente a leviandade. No caso de Isabel, porém, há que lhe auxiliar o esforço edificante. Em todos os setores evolutivos, é natural que o traba­lhador sincero e eficiente receba recursos sempre mais vastos. Onde se encontre a atividade do bem, permanecerá a colaboração espiritual de ordem su­perior.

Calara-se o bondoso amigo.

Continuei reparando as laboriosas atividades de alguns irmãos que dividiam a sala, de modo singular, utilizando longas faixas fluídicas. Aniceto veio em socorro da minha perplexidade, explicando, atencioso:

— Estes amigos estão promovendo a obra de preservação e vigilância. Serão trazidas aos tra­balhos de hoje algumas dezenas de sofredores e torna-se imprescindível limitar-lhes a zona de in­fluenciação neste templo familiar. Para isso, nos­sos companheiros preparam as necessárias divisões magnéticas.

Observei, admirado, que eles magnetizavam o próprio ar.

Nosso instrutor, porém, informou, gentil:

— Não se impressione, André. Em nossos ser­viços, o magnetismo é força preponderante. Somos compelidos a movimentá-lo em grande escala.

E, sorrindo, concluiu:

— Já os sacerdotes do antigo Egito não igno­ravam que, para atingir determinados efeitos, é indispensável impregnar a atmosfera de elementos espirituais, saturando-a de valores positivos da nossa vontade. Para disseminar as luzes evangéli­cas aos desencarnados, são precisas providências variadas e complexas, sem o que, tudo redundaria em aumento de perturbações. Este núcleo é peque­nino, considerado do ponto de vista material, mas apresenta grande significação para nós outros. É preciso vigiar, não o esqueçamos.

Enquanto as atividades de preparação espiri­tual seguiam intensas, Dona Isabel e Joaninha, nou­tra ordem de serviço, chegaram ao salão, dispondo arranjos diferentes. Usaram, largamente, a vas­soura e o espanador. Revestiram a mesa de toalha muito alva e trouxeram pequenos recipientes de água pura.

A uma ordem de um dos superiores daquele templo doméstico, espalharam-se os vigilantes, em derredor da moradia singela. Nos menores detalhes. estava a nobre supervisão dos benfeitores. Em tudo a ordem, o serviço e a simplicidade.

Logo após alguns minutos além das dezoito horas, começaram a chegar os necessitados da es­fera invisível ao homem comum.

Se fosse concedida à criatura vulgar uma vista de olhos, ainda que ligeira, sobre uma assembléia de espíritos desencarnados, em perturbação e sofri­mento, muito se lhes modificariam as atitudes na vida normal. Nessa afirmativa, devemos íncluir, igualmente, a maioria dos próprios espiritistas, que freqüentam as reuniões doutrinárias, alheios ao esforço auto-educativo, guardando da espirituali­dade uma vaga idéia, na preocupação de atender ao egoísmo habitual, O quadro de retificações indi­viduais, após a morte do corpo, é tão extenso e va­riado que não encontramos palavras para definir a imensa surpresa.

Aqueles rostos esqueléticos causavam compai­xão. Chegavam ao recinto aquelas entidades per­turbadas, em pequenos magotes, seguidas de orien­tadores fraternais. Pareciam cadáveres erguidos do leito de morte. Alguns se locomoviam com grande dificuldade. Tínhamos diante dos olhos uma autên­tica reunião de “coxos e estropiados”, segundo o símbolo evangélico.

- Em maioria — esclareceu Âniceto — são irmãos abatidos e amargurados, que desejam a re­novação sem saber como iniciar a tarefa. Aqui, poderemos observar apenas sofredores dessa natureza, porque o santuário familiar de Isidoro e Isabel não está preparado para receber entidades delibera­damente perversas. Cada agrupamento tem seus fins.

Com efeito, os recém-chegados estampavam profunda angústia na expressão fisionômica. As senhoras em pranto eram numerosas. O quadro consternava. Algumas entidades mantinham as mãos no ventre, calcando regiões feridas. Não eram poucas as que traziam ataduras e faixas.

— Muitos — disse-nos o mentor — não con­cordam ainda com as realidades da morte corporal. E toda essa gente, de modo geral, está prisioneira da ideia de enfermidade. Existem pessoas, e vocês, como médicos, as terão conhecido largamente, que cultivam as moléstias com verdadeira volúpia. Apaixonam-se pelos diagnósticos exatos, acompa­nham no corpo, com indefinível ardor, a manifes­tação dos indícios mórbidos, estudam a teoria da doença de que são portadoras, como jamais ana­lisam um dever justo no quadro das obrigações diárias, e quando não dispõem das informações nos livros, estimam a longa atenção dos médicos, os minuciosos cuidados da enfermagem e as compridas dissertações sobre a enfermidade de que se cons­tituem voluntárias prisioneiras. Sobrevindo a de­sencarnação, é muito difícil o acordo entre elas e a verdade, porqüanto prosseguem mantendo a ideia dominante. Ás vezes, no fundo, são boas almas, dedicadas aos parentes do sangue e aprovei­táveis na esfera restrita de entendimento a que se recolhem, mas, no entanto, carregadas de viciação mental por muitos séculos consecutivos.

E num gesto diferente, nosso instrutor con­siderou:

— Demoramo-nos todos a escapar da velha concha do individualismo. A visão da universalidade custa preço alto e nem sempre estamos dis­postos a pagá-lo. Não queremos renunciar ao gosto antigo, fugimos aos sacrifícios louváveis. Nessas circunstâncias, o mundo que prevalece para a alma desencarnada, por longo tempo, é o reino pessoal de nossas criações inferiores. Ora, desse modo, quem cultivou a enfermidade com adoração, submeteu-se-lhe ao império. E’ lógico que devemos, quando encarnados, prestar toda a assistência ao corpo físi­co, que funciona, para nós, como vaso sagrado, mas remediar a saúde e viciar a mente são duas atitudes essencialmente antagônicas entre si.

A palestra era magnificamente educativa; en­tretanto, o número crescente de entidades necessitadas chamava-nos à cooperação. Muitas choravam baixinho, outras gemiam em voz mais alta.

Depois de longa pausa, Aniceto advertiu:

— Vamos ao serviço. Para nós, cooperadores espirituais, os trabalhos já começaram. A prece e o esforço dos companheiros encarnados represen­tarão o termo desta reunião de assistência e ilumi­nação em Jesus Cristo.


44

Assistência

A paisagem de sofrimento, desdobrada aos nossos olhos, lembrava-me o ambiente das Câmaras de Retificação.

Entendeu-se Aniceto com Isidoro e falou, re­soluto:

— Mãos à obra! Distribuamos alguns passes de reconforto!

— Mas — objetei — estarei preparado para trabalho dessa natureza?

— Porque não? — indagou o instrutor em voz firme — toda competência e especialização no mundo, nos setores de serviço, constituem o desen­volvimento da boa vontade. Bastam o sincero pro­pósito de cooperação e a noção de responsabilidade para que sejamos iniciados, com êxito, em qualquer trabalho novo.

Semelhantes afirmativas estimularam-me o coração.

Recordei Narcisa, a dedicada irmã dos infor­tunados, que permanecia, em “Nosso Lar”, quase sempre sem repouso, como prisioneira do sacrifício. Pareceu-me, ainda, ouvir-lhe a voz fraterna e cari­nhosa — “André, meu amigo, nunca te negues, quanto possível, a auxiliar os que sofrem. Ao pé dos enfermos, não olvides que o melhor remédio éa renovação da esperança; se encontrares os fali­dos e os derrotados da sorte, fala-lhes do divino ensejo do futuro; se fores procurado, algum dia, pelos espíritos desviados e criminosos, não profiras palavras de maldição. Anima, eleva, educa, des­perta, sem ferir os que ainda dormem. Deus opera maravilhas por intermédio do trabalho de boa von­tade!” Sem mais hesitação, dispus-me ao serviço.

Aniceto designou-me um grupo de seis enfer­mos espirituais, acentuando:

— Aplique seus recursos, André. Com a nossa colaboração, os amigos em tarefa nesta casa pode­rão atender a responsabilidades diferentes e tam­bém imperiosas.

Os mais apagados trabalhadores do bem reju­bilem-se pela exemplificação nas lutas comuns e edifiquem-se no Senhor Jesus, porque nenhuma de suas manifestações fica perdida no espaço e no tempo. Naquele instante em que fôra chamado a prestar auxílios reais, eu não recorria aos meus cabedais científicos, não me reportava tão sômente à técnica da medicina oficial, a que me filiara no mundo, mas recordava aquela Narcisa humilde e simples, das Câmaras de Retificação, enfermeira devotada e carinhosa, que conseguia muito mais com amor do que com medicações.

Aproximei-me duma senhora profundamente abatida, lembrando o exemplo da generosa amiga de “Nosso Lar”, entendendo que não deveria socorrer utilizando apenas a firmeza e a energia, mas tam­bém a ternura e a compreensão.

— Minha irmã — disse, procurando captar-lhe a confiança —, vamos ao passe reconfortador.

— Ai! ai! — respondeu a interpelada — nada vejo, nada vejo! Ah! o tracoma! Infeliz que sou! E me falam em morte, em vida diferente... Como recuperar a vista?! Quero ver, quero ver!...

— Calma — respondi, encorajado —, não con­fia no Poder de Jesus? Ele continua curando cegos, iluminando-nos o caminho, guiando-nos os passos!

Somente mais tarde lembrei que, naquele ins­tante, olvidara a curiosidade doentia, não pensei na Impressão deixada pelo tracoma naquele orga­nismo espiritual, nem me preocupei com a expressão propriamente científica do fenômeno, vendo, apenas, à minha frente, uma irmã sofredora e necessitada. E, à medida que me dispunha a obser­var a prática do amor fraternal, uma claridade dife­rente começou a iluminar e a aquecer-me a fronte.

Lembrando a influência divina de Jesus, iniciei o passe de alivio sobre os olhos da pobre mulher, reparando que enorme placa de sombra lhe pesava na fronte. Pronunciando palavras de animação, às quais ligava a melhor essência de minhas intenções, concentrei minhas possibilidades magnéticas de au­xílio nessa zona perturbada. Dentro de alguns instantes, a desencarnada desferiu um grito de es­panto.

— Vejo! Vejo! — exclamou, entre o assombro e a alegria — grande Deus! grande Deus!

E ajoelhando-se, num movimento instintivo para render graças, dirigia-me a palavra, comovidamente:

— Quem sois vós, emissário do bem?

Dominava-me profunda emoção, que não con­seguia sofrear. Confundia-me a bondade do Eterno. Quem era eu para curar alguém? Mas a alegria daquela entidade, libertada das trevas, afirmava a ocorrência, na qual não queria acreditar. A luz daquela dádiva como que mostrava mais fortemente o fundo escuro de minhas imperfeições individuais e o pranto inundou-me as faces, sem que pudesse retê-lo nos recônditos mananciais do coração. En­quanto a enferma espiritual se desfazia em lágri­mas de louvor, também eu me absorvia numa onda de pensamentos novos. O acontecimento surpreen­dia-me. Desejava socorrer o doente próximo e, con­tudo, estava enlaçado em singular deslumbramento intimo. Aniceto, porém, aproximou-Se delicadamen­te e falou em voz baixa:

— André, a excessiva contemplação dos resul­tados pode prejudicar o trabalhador. Em ocasiões como esta, a vaidade costuma acordar dentro de nós, fazendo-nos esquecer o Senhor. Não olvides que todo o bem procede dEle, que é a luz de nossos corações. Somos seus Instrumentos nas tarefas de amor. O servo fiel não é aquele que se inquieta pelos resultados, nem o que permanece enlevado na contemplação deles, mas justamente o que cumpre a vontade divina do Senhor e passa adiante.

Aquelas palavras não poderiam ser mais signi­ficativas, O generoso mentor voltou ao serviço a que se entregara, junto de outros irmãos, e, valen­do-me do amoroso aviso, dirigi-me à reconhecida senhora, acentuando:

— Minha amiga, agradeça a Jesus e não a mim, que sou apenas obscuro servidor. Quanto ao mais, não se impressione em demasia com a visão dos aspectos exteriores; volte o poder visual para dentro de si mesma, para que possa consagrar ao Senhor da Vida os sublimes dons da visão.

Notei que a ouvinte se surpreendia com as minhas palavras, que lhe pareceram, talvez, inopor­tunas e transcendentes, mas, novamente firme na compreensão do dever, acerquei-me do enfermo pró­ximo. Tratava-se dum infeliz irmão que falecera na Gamboa, vitimado pelo, câncer. Toda a região facial apresentava-se com horrífico aspecto. Apli­quei os passes dê reconforto, ministrando pensa­mentos e palavras de bom ânimo, e reparei que o pobrezinho se sentia tomado de considerável me­lhora. Prometi-lhe interesse amigo, a fim de inter­nar-se em alguma casa espiritual de tratamento, recomendando que preparasse a vida mental para colher semelhante benefício, oportunamente. Em seguida, atendi a dois ex-tuberculosos do Encan­tado, a uma senhora que desencarnara em Piedade, em conseqüência de um tumor maligno, e a um rapaz de Olaria, que se desprendera num choque operatório. Nenhum destes quatro últimos, con­tudo, manifestou qualquer alivio. Persistiam as mesmas indisposições orgânicas, os mesmos fenô­menos psíquicos de sofrimento.

Terminada a tarefa que me fôra cometida, reuni-me ao nosso instrutor e Vicente, que me espe­ravam a um canto da sala.

— As atividades de assistência — exclamou Aniceto, cuidadoso — se processam conforme obser­vam aqui. Alguns se sentem curados, outros acusam melhoras, e a maioria parece continuar impermeá­vel ao serviço de auxílio. O que nos deve interes­sar, todavia, é a semeadura do bem. A germinação, o desenvolvimento, a flor e o fruto pertencem ao Senhor.

Vicente, que se mostrava fortemente impres­sionado, observou:

— O número de entidades perturbadas es­panta. Vemo-las, em diversos graus de desequilíbrio, desde “Nosso Lar” até a Crosta.

Aniceto sorriu e falou em tom grave:

— Devemos esmagadora percentagem desses padecimentos à falta de educação religiosa. Não me refiro, porém, àquela que vem do sacerdócio ou que parte da boca de uma criatura para os ouvidos de outra. Refiro-me à educação religiosa, íntima e profunda, que o homem nega sistematicamente a si mesmo.


45

Mente enferma

Observando e trabalhando sempre, Aniceto con­siderou:

— Aqui não comparecem apenas os desencar­nados enfermos. Reparem os encarnados, igualmente. Entre o nosso círculo e a assembléia dos irmãos corporificados, a percentagem de trabalha­dores em relação ao número de doentes e necessi­tados é quase a mesma.

Designando um cavalheiro aprumado e bem posto, que se mantinha em palestra com o senhor Bentes, doutrinador naquele grupo, acrescentou:

— Vejam este amigo rodeado de sombra, em conversação com o colaborador de nossa irmã Isa­bel. Ouçam-lhe a palavra e, depois, ajuizem.

Com efeito, o cavalheiro indicado rodeava-se de pequenas nuvens, mormente ao longo do cérebro.

Fixando nele a atenção, eu o ouvia distinta-mente:

— Há muito — asseverava com ênfase — fre­quento as reuniões espiritistas, à procura de alguma coisa que me satisfaça; no entanto — e sorriu irô­nico —, ou a minha infelicidade é maior que a dos outros ou estamos diante de mistificação mundial.

Atento à respeitosa atitude do orientador en­carnado, prosseguia, orgulhoso:

— Tenho estudado muitíssimo, não me fur­tando ao crivo da razão rigorosa. Já devorei extensa literatura relativa à sobrevivência humana e, todavia, nunca obtive uma prova. O Espiritismo está cheio de teses sedutoras, mas o terreno se mos­tra cheio de dúvidas. A obra de Kardec, inegàvel­mente, representa extraordinária afirmação filosófi­ca; entretanto, encontramos com Richet um acervo de perspectivas novas. A metapsíquica corrigiu mui­tos vôos da imaginação, trazendo à análise pública observações mais profundas sobre os desconheci­dos poderes do homem. No exame dessas verdades científicas, o mediunismo foi reduzido em suas pro­porções. Precisamos dum movimento de racionali­zação, ajustando os fenômenos a critério adequado. Todavia, meu caro Bentes, vivemos em paisagem de mistificações sutis, distantes das demonstrações exatas.

A essa altura, o interlocutor, muito calmo e seguro na fé, interveio, considerando:

— Concordo, Dr. Fidélis, em que o Espiritismo não deva fugir a toda espécie de considerações sérias; contudo, creio que a doutrina é um con­junto de verdades sublimes, que se dirigem, de preferência, ao coração humano. É impossível auscultar-lhe a grandeza divina com a nossa im­perfeita faculdade de observação, ou recolher-lhe as águas puras com o vaso sujo dos nossos racio­cínios viciados nos erros de muitos milênios. Ao demais, temos aprendido que a revelação de ordem divina não é trabalho mecânico em leis de menor esforço. Lembremos que a missão do Evangelho, com o Mestre, foi precedida por um esforço humano de muitos séculos. Antes de morrerem os cristãos nos circos do martírio, quantos precursores de Jesus foram sacrificados? Primeiramente, devemos construir o receptáculo; em seguida, alcançaremos a bênção. A Bíblia, sagrado livro dos cristãos, é o encontro da experiência humana, cheia de suor e lágrimas, consubstanciada no Velho Testamento, com a resposta celestial, sublime e pura, no Evangelho de Nosso Senhor.

O cavalheiro, que respondia pelo nome de Dr. Fidélis, sorria de modo vago, entre a ironia e a vaidade ofendida.

Bentes, contudo, não perdeu a oportunidade e continuou:

— Se todo serviço sério da existência hu­mana é alguma coisa de sagrado aos nossos olhos, que dizer da expressão divina no trabalho plane­tário? E considerando a essência do serviço na organização do mundo, que seria de nós se um punhado de espíritos amigos e sábios nos arrebatassem à visão ampla de orbes superiores, impe­lindo-nos para eles, precipitadamente, tão só pelo fato de nos dispensarem, como indivíduos; uma estima santa? Estaríamos preparados para a mu­dança radical? Saberemos o que venha a ser a vida num orbe superior? Teremos trabalhado bas­tante para entender os. divinos desígnios? E a Terra? E as nossas milenárias dívidas para com o planeta que nos tem suportado as imperfeições? Como residir nos andares mais altos, sem drenar os pântanos que jazem em baixo? Estas considera­ções tomam-se imprescindíveis no exame de argu­mentação como a sua, porqüanto não poderemos ajuizar, com precisão, as correntes generosas de um rio caudaloso, observando tão sômente as gotas recolhidas no dedal das nossas limitações.

O pesquisador renitente acentuou a expressão irônica do rosto e revidou:

- Você fala como homem de fé, esquecendo que meu esforço se dirige à razão e à ciência. Quero referir-me às ilações inevitáveis da consulta livre, às farsas mediúnicas de todos os tempos. Você está informado de que cientistas inúmeros examinaram as fraudes dos mais célebres aparelhos do mediunismo, na Europa e na América. Ora, que esperar de uma doutrina confiada a mistificadores continentais?

Bentes respondeu, muito sereno e ponderado:

— Está enganado, meu amigo. Estaríamos laborando em erro grave, se colocássemos toda a responsabilidade doutrinária nas organizações me­diúnicas. Os médiuns são simples colaboradores do trabalho de espiritualização. Cada um responderá pelo que fêz das possibilidades recebidas, como tam­bém nós seremos compelidos a contas necessarias, algum dia. Não poderíamos cometer o absurdo de atribuir a concentração de todas as verdades divi­nas sômente na cabeça de alguns homens, candi­datos a novos cultos de adoração. A doutrina, Dr. Fidélis, é uma fonte sublime e pura, inacessí­vel aos pruridos individualistas de qualquer de nós, fonte na qual cada companheiro deve beber a água da renovação própria. Quanto às fraudes mediúni­cas a que se refere, é forçoso reconhecer que a pre­tensa infalibilidade científica tem procurado conver­ter os mais nobres colaboradores dos desencarnados em grandes nervosos ou em simples cobaias de la­boratório. Os pesquisadores, atualmente batizados como metapsiquistas, são estranhos lavradores que enxameiam no campo de serviço sem nada pro­duzirem de fundamentalmente útil. Inclinam-se para a terra, contam os grãos de areia e os vermes invasores, determinam o grau de calor e estudam a longitude, observam as disposições climáticas e anotam as variações atmosféricas, mas, com grande surpresa para os trabalhadores sinceros, desprezam a semente.

O interlocutor deixou de sorrir e observou:

— Vamos ver, vamos ver... Espero a men­sagem dos meus com os sinais iniludíveis da sobre­vivência, após a morte...

Aniceto nos tocou de leve, e falou:

— Repararam como este homem traz a mente enfermiça? É um dos curiosos doentes, encarna­dos. Tem vasta cultura e, todavia, como traz o sentimento envenenado, tudo quanto lhe cai nos raciocínios participa da geral intoxicação. É pes­quisador de superfície, como ocorre a muita gente. Tudo espera dos outros, examina seu semelhante, mas não ausculta a si mesmo. Quer a realização divina sem o esforço humano; reclama a graça, formulando a exigência; quer o trigo da verdade, sem participar da semeadura; espera a tranqüili­dade pela fé, sem dar-se ao trabalho das obras; estima a ciência, sem consultar a consciência; pre­fere a facilidade, sem filiar-se à responsabilidade, e, vivendo no torvelinho de continuadas libações, agarrado aos interesses inferiores e à satisfação dos sentidos físicos, em caráter absoluto, está aguar­dando mensagens espirituais...

Estávamos admirados, ante as conclusões inte­ressantes do instrutor amigo.

Vicente, que se mantinha sob forte impressão, perguntou:

— Afinal de contas, que deseja este homem?

Aniceto sorriu e respondeu:

— Também ele teria imensas dificuldades para responder. Para nós outros, Vicente, o Dr. Fidélis é um desses enfermos que ainda não se dispuseram a procurar o alivio, pelo demasiado apego à sen­sação.


46

Aprendendo sempre

Segundo informações de Aniceto, faltava mais de uma hora para o início da preleção evangélica, sob a responsabilidade do senhor Bentes, na esfera dos freqüentadores encarnados, mas o movimento de serviço espiritual tornara-se intensíssimo.

Reuniam-se ali, para olhos humanos, trinta e cinco individualidades terrestres e, no entanto, em nosso círculo, o número de necessitados excedia de duas centenas, porqüanto, agora, a assembléia es­tava acrescida de muitas entidades que formavam o séquito perturbador da maioria dos aprendizes ali congregados. Para elas, organizou-se uma di­visão especial, que me pareceu constituída por ele­mentos de maior vigilância, visto chegarem, quase obrigatóriamente, acompanhando os que buscavam o socorro espiritual, sem a indicação dos orienta-dores em serviço nas vias públicas.

A movimentação era enorme e o tempo era escasso para qualquer observação, sem movimento ativo. Todos os servidores da casa se mantinham a postos, desenvolvendo a melhor atenção.

Reparei que num ângulo da grande mesa havia numerosas indicações de receituário e assistência. Os mais variados nomes ali se enfileiravam. Muitas pessoas pediam conselhos médicos, orientação, assis­tência e passes. Quatro facultativos espirituais se moviam diligentes, e, secundando-lhes o esforço hu­manitário, quarenta cooperadores diretos iam e vinham, recolhendo informações e enriquecendo por­menores.

Aproximamo-nos do grande número de papéis nominados, e, enquanto curiosamente buscava exa­miná-los, Aniceto explicou:

— Temos aqui a indicação das pessoas que se afirmam necessitadas de amparo e socorro ime­diato.

— Mas recebem elas tudo quanto pedem? —indagou Vicente, curioso.

Nosso mentor sorriu e respondeu:

— Recebem o que precisam. Muitos solicitam a cura do corpo, mas somos forçados a estudar até que ponto lhes podemos ser úteis, no particularismo dos seus desejos; outros reclamam orientações vá­rias, obrigando-nos a equilibrar nossa cooperação, de modo a lhes não tolher a liberdade individual. A existência terrestre é um curso ativo de prepara­ção espiritual e, quase sempre, não faltam na escola os alunos ociosos, que perdem o tempo ao invés de aproveitá-lo, ansiosos pelas realizações mentirosas do menor esforço. Desse modo, no capítulo das orientações, a maior parte dos pedidos são desas­sisados. A solicitação de terapêutica para a manu­tenção da saúde física, pelos que de fato se inte­ressem pelo concurso espiritual, é sempre justa; todavia, no que concerne a conselhos para a vida normal, é imprescindível muita cautela de nossa parte, diante das requisições daqueles que se negam voluntàriamente aos testemunhos de conduta cristã.

O Evangelho está cheio de sagrados roteiros espi­rituais e o discípulo, pelo menos diante da pró­pria consciência, deve considerar-se obrigado a co­nhecê-los.

O instrutor amigo fêz pequena pausa, mudou a inflexão de voz, como para acentuar fortemente as palavras, e considerou:

— Possivelmente, vocês objetarão que toda pergunta exige resposta e todo pedido merece solução; entretanto, nesse caso de esclarecer determi­nadas solicitações dos companheiros encarnados, devemos recorrer, muitas vezes, ao silêncio. Como recomendar humildade àqueles que a pregam para os outros; como ensinar a paciência aos que a acon­selham aos semelhantes, e como indicar o bálsamo do trabalho aos que já sabem condenar a ociosidade alheia? Não seria contra-senso? Ler os regulamen­tos da vida para os cegos e para os ignorantes é obra meritória, mas, repeti-los aos que já se encon­tram plenamente informados, não será menosprezo ao valor do tempo? Alma alguma, nas diversas confissões religiosas do Cristianismo, recebe noti­cias de Jesus, sem razão de ser. Ora, se toda con­dição de trabalho edificante traduz compromisso da criatura, todo conhecimento do Cristo traduz responsabilidade. Cada aprendiz do Mestre, portanto, está no dever de observar a consciência, conferin­do-lhe os alvitres profundos com as disposições evangélicas.

Vicente, que escutava com grande interesse, aventou:

— No entanto, ousaria lembrar os que formu­lam semelhantes pedidos levianamente...

— Sim — elucidou Aniceto, sorrindo —, mas nós não poderemos copiar-lhes o impulso. Os desen­carnados e os encarnados, que ainda abusam das possibilidades do intercâmbio entre as esferas visí­veis e invisíveis ao homem comum, pagarão alto preço pela invigilância.

— Neste caso — perguntei, respeitoso —, como corresponder aos pedidos de orientação?

— Alguns, raros — esclareceu nosso orienta­dor —, merecem o concurso da nossa elucidação ver­bal, na hipótese de se referirem aos interesses eternos do espírito, quando isso nos seja possível; entretanto, quase sempre é indispensável nada res­ponder de maneira direta, auxiliando os interessa­dos na pauta de nossos recursos, em silêncio, mesmo porque, não temos grande tempo para relembrar a irmãos encarnados certas obrigações que lhes não deviam escapar da memória, para felicidade de si mesmos.

Calou-se por momentos o bondoso instrutor, considerando em seguida, interessado em nos sub­trair quaisquer dúvidas:

— Muitas entidades desencarnadas estimam o fornecimento de palpites para as diversas situações e dificuldades terrestres, mas esses pobres amigos estacionam desastradamente em questões subalter­nas, incapazes de uma visão mais alta, em face dos horizontes infinitos da vida eterna, convertendo-se em meros escravos de mentalidades inferiores, en­carnadas na Terra. Esquecem que o nosso interesse imediato, agora, deve ser, acima de todos, aquele que se refira à espiritualidade superior. Nossos irmãos inquietos, que forneçam palpites a preguiço­sas mentes encarnadas, sobre assuntos referentes à responsabilidade justa e necessária do homem, de­vem fazê-lo de própria conta.

— Que acontece, então? — perguntou Vicente, curioso.

Nosso mentor, contudo, respondeu com outra pergunta:

— Que acontece ao homem de responsabilidade que se põe a brincar?

Nesse instante, um dos clínicos espirituais, aproximando-se, foi gentilmente saudado por Aniceto, que lhe disse, depois de apresentar-nos:

— Disponha da nossa colaboração humilde. Aqui estamos na qualidade de médicos itinerantes, prontos ao concurso ativo.

— Vêm de “Nosso Lar”? — indagou o novo companheiro, respeitosamente.

— Sim — respondeu Aniceto, prestativo.

— Pois bem — considerou ele —‘ se possível, estimarei receber-lhes o auxílio, após a reunião, para dois casos urgentes. Trata-se de uma jovem desencarnada hoje e de um agonizante, meu amigo.

— Sem dúvida — acentuou nosso orientador, solícito —, aguardaremos suas indicações.


47

No trabalho ativo

A interpretação de Bentes, obedecendo à ins­piração de um emissário de nobre posição, presente à assembléia, era recebida com respeito geral, no circulo das entidades desencarnadas.

Na esfera dos encarnados, porém, não se no­tava o mesmo traço de harmonia. Observava-se apreciável instabilidade de pensamento. A expecta­tiva ansiosa dos presentes perturbava a corrente vibratória. De quando em quando, surpreendiamos determinados desequilíbrios, que afetavam, parti­cularmente, a organização mediúnica de Dona Isabel e a posição receptiva do comentarista, que pare­cia perder “o fio das idéias”, tal qual se diria na linguagem comum. Colaboradores ativos restabe­leciam o ritmo, quanto possível. Reparamos que alguns irmãos encarnados se mantinham irrequie­tos, em demasia. Mormente os mais novos em conhecimentos doutrinários exibiam enorme irres­ponsabilidade. A mente lhes vagava muito longe dos comentários edificantes. Viam-se-lhes, distintamente, as imagens mentais. Alguns se prendiam aos quefazeres domésticos, outros se impacientavam por não lograrem a realização imediata dos propó­sitos que os haviam levado até ali.

Aniceto, que não perdia ocasião de prestar-nos esclarecimentos novos, considerou, discreto:

— Muitos estudiosos do Espiritismo se preo­cupam com o problema da concentração, em traba­lhos de natureza espiritual. Não são poucos os que estabelecem padrão ao aspecto exterior da pessoa concentrada, os que exigem determinada atitude corporal e os que esperam resultados rápi­dos nas atividades dessa ordem. Entretanto, quem diz concentrar, forçosamente se refere ao ato de congregar alguma coisa. Ora, se os amigos encarnados não tomam a sério as responsabilidades que lhes dizem respeito, fora dos recintos de prática espiritista, se, porventura, são cultores da levian­dade, da indiferença, do erro deliberado e inces­sante, da teimosia, da inobservância interna dos conselhos de perfeição cedidos a outrem, que pode­rão concentrar nos momentos fugazes de serviço espiritual? Boa concentração exige vida reta. Para que os nossos pensamentos se congreguem uns aos outros, fornecendo o potencial de nobre união para o bem, é indispensável o trabalho preparatório de atividades mentais na meditação de ordem supe­rior. A atitude íntima de relaxamento, ante as lições evangélicas recebidas, não pode conferir ao crente, ou ao cooperador, a concentração de forças espirituais no serviço de elevação, tão só porque estes se entreguem, apenas por alguns minutos na semana, a pensamentos compulsórios de amor cris­tão. Como vêem, o assunto é complexo e demanda longas considerações e ensinamentos.

Reparei com mais atenção os circunstantes en­carnados. Não fosse o devotamento dos colabora­dores do nosso plano, tornar-se-ia impossível qual­quer proveito concreto.

Isidoro e outros amigos devotados trabalhavam com ardor, despertando alguns dorminhocos e rea­justando o pensamento dos invigilantes, para neu­tralizar determinadas influências nocivas.

Eu reconhecia que os benefícios imediatos da doutrinação de Bentos eram muito mais visíveis entre os desencarnados. No grupo destes, não havia um só que não recebesse consolações diretas e sublime conforto.

Finda a interpretação, pouco antes de se en­tregar Dona Isabel ao trabalho do receituário, observei que uma senhora desencarnada se apro­ximara de Isidoro, pedindo, emocionada:

— Ser-lhe-á possível, meu irmão, entender-se por mim com os nossos orientadores quanto à pos­sibilidade de me comunicar diretamente com a mi­nha filha, presente à reunião? Estou certa de que, com a permissão devida, nossa Isabel me atenderá a angústia materna.

O interpelado mostrou sincero desejo de ser útil, mas, depois de trocar algumas palavras com

o instrutor mais graduado da reunião, que se co­locara entre a médium e o doutrinador, veio trazer

a resposta, algo constrangido, com grande surpresa para mim:

— Minha irmã — disse ele —, o nosso nobre Anselmo não julga viável o seu pedido. Asseverou que sua filhinha ainda não está em condições de receber essa bênção. Ela tem necessidade de teste­munhar, agora, o que aprendeu do seu exemplo, no mundo, e precisa permanecer no campo da opor­tunidade, sem repousar indevidamente nos seus braços.

E como a senhora. denotasse tristeza, Isidoro continuou em tom fraternal:

— Não somente por isso, minha amiga, nosso instrutor se vê forçado a desatender. A medida traria inconveniente grave para o seu Sentimento maternal. No estado evolutivo em que se encontra, e considerando o velho hábito adquirido, a filhinha se agarraria excessivamente ao seu auxílio. Pren­der-se-ia à mãezinha afetuosa e sensível, e talvez a irmã se visse perturbada em sua nova carreira espiritual. Ela precisa estar mais livre para tes­temunhar, enquanto o seu coração deve perma­necer em liberdade, por nobre merecimento conquistado ao preço do seu suor e lágrimas, quando na Terra. Considerando, embora, o caráter sagrado do amor em sua feição maternal, nossos orienta-dores não podem conceder à sua filha o direito de perturbá-la. Compreende? Não se atormente com esta impossibilidade transitória. Lembre-se de que todos somos filhos de Deus. O Senhor terá recur­sos para atender à jovem, em seu lugar. Quanto ao mais, alegremo-nos em nossos serviços. Recorde que o auxílio não se verificará pelo processo direto, mas podemos recorrer ao método indireto. Quem sabe? Amanhã, possivelmente, poderá encontrar-se com sua filha, em sonho.

A interpelada sorriu, confortada, e obtemperou:

— É verdade. Devo compreender a nova si­tuação.

Nesse instante, acercou-se de Isidoro uma en­tidade amiga, que solicitou:

— Meu caro, estimaria suas providências junto dos receitistas, para que forneçam novas indicações ao Amaro. Meu sobrinho necessita de amparo à saúde física.

O esposo espiritual de Isabel tomou uma ex­pressão significativa e respondeu:

— Não posso, meu amigo, não posso. Se Amaro pedir e os receitistas cederem, tudo estará muito bem; mas você não ignora que o nosso doente émuito rebelde. Já lhe providenciei a obtenção de conselhos médicos do nosso plano, por cinco vezes, sem que ele correspondesse aos nossos esforços. Não se resolve a adquirir os remédios indicados, e quando os obtém, por obséquio de amigos, despreza os horários e julga-se superior ao método. Critica mordazmente as indicações obtidas e serve-se delas com desprezo. Naturalmente não estou agastado com isso, como adulto que se não aborrece com as brincadeiras de uma criança; mas você compreende que estamos lidando com um material muito sa­grado e não há tempo para conviver com os que estimam a brincadeira. Além disso, não será cari­dade o ato de dar aos que não querem receber.

Isidoro falava com uma inflexão de bondade fraternal, que afastava todos os característicos da franqueza contundente. Compreendi que, para aten­der a tanta gente e movimentar-se entre tantos pro­pósitos heterogêneos, não seria possível tratar os assuntos de outro modo.

O serviço prosseguia com enorme demonstra­ção educativa para Vicente e para mim. O esforço dos clínicos espirituais, aliado à abnegação da inter­mediária, comovia-me o coração. Era necessário, de fato, grande renúncia para atender ao trabalho compacto e numeroso, no setor de assistência aos encarnados, porque poucos freqüentadores do grupo pareciam manter atitude correspondente à sublime dedicação fraternal em nome do Mestre.

Aniceto, porém, adivinhando meus pensamen­tos, falou com bondade:

— Um dia, André, você compreenderá, com Jesus, que melhor é servir que ser servido; mais belo é dar que receber.


48

Pavor da morte

Numerosas explicações do orientador aten­diam-me às indagações naturais; no entanto, res­tava aprender alguma coisa. Por que motivo se reuniam ali tantos desencarnados? Já que recebiam assistência espiritual, não poderiam congregar-se em lugares igualmente espirituais?

Respeitosamente, interroguei Aniceto nesse sen­tido.

- De fato, André — respondeu o generoso mentor —, a maioria dos desencarnados recebe es­clarecimentos justos em nossa esfera de ação. Você mesmo, nos primórdios da nova experiência espi­ritual, não foi conduzido ao ambiente de nossos amigos corporificados para o necessário encami­nhamento. Grande número de criaturas, porém, na passagem para cá, sentem-se possuidas de “doentia saudade do agrupamento”, como acontece, noutro plano de evolução, aos animais, quando sentem a mortal “saudade do rebanho”. Para fortalecer as possibilidades de adaptação dos desencarnados des­sa ordem ao novo “habitat”, o serviço de socorro é mais eficiente, ao contacto das forças magnéticas dos irmãos que ainda se encontram envolvidos nos círculos carnais. Esta sala, em momentos como este, funciona como grande incubadora de energias psíquicas, para os serviços de aclimação de certas organizações espirituais à vida nova.

E, designando a grande assembleia de necessi­tados, continuou:

— Os irmãos, nas condições a que me refiro, ouvem-nos a voz, consolam-se com o nosso auxilio, mas o calor humano está cheio dum magnetismo de teor mais significativo, para eles. Com seme­lhante contacto, experimentam o despertar de for­ças novas. Por isso, o trabalho de cooperação, em templos desta espécie, oferece proporções que você, por agora, não conseguiria imaginar. Não observou os preguiçosos, os dorminhocos e invigilantes que vieram colher benefícios nesta casa? Pois eles tam­bém deram alguma coisa de si... Deram calor magnético, irradiações vitais proveitosas aos ben­feitores deste santuário doméstico, que manipulam os elementos dessa natureza, distribuindo-os em valiosas combinações fluídicas às entidades com­balidas e inadaptadas.

E, sorrindo, concluiu, bondoso:

— Tudo tem algum proveito, André. Nosso Pai nada cria em vão.

Terminada a reunião com benefícios gerais, que não me cabe descrever pormenorizadamente, aten­deu Aniceto ao facultativo desejoso de aproveitar-lhe o concurso nobre, junto aos clientes.

— Grande número de vezes — exclamou o re­ceitista do grupo de Dona Isabel, como a prestar informações a Vicente e a mim — não só ministra­mos medicação aos corpos doentes, mas também orientamos os desencarnados que, no curso da mo­léstia, se encontram sob nossa assistência.

— E são sempre muitos? — indaguei.

— Número crescente — elucidou, atencioso. Há ocasiões em que contamos com a cooperação de amigos ou parentes espirituais dos enfermos; mas, na maioria dos casos, somos forçados a agir por nós mesmos. Felizmente, quase nunca estamos sem auxiliares dedicados e ativos. Há companheiros que se consagram a cuidar de tuberculosos, cegos, aleijados, leprosos, perturbados e moribundos, isolada-mente. São eles nossos devotados colaboradores em todas as situações.

Puséramo-nos a caminho e, a breves minutos, estacionávamos diante dum edifício de vastas pro­porções.

O colega, gentil, conduziu-nos ao interior de espaçoso necrotério, onde defrontamos um quadro interessante, O cadáver de uma jovem, de menos de trinta anos, ali jazia gelado e rígido, tendo a seu lado uma entidade masculina, em atitude de zelo. Com assombro, notei que a desencarnada es­tava unida aos despojos. Parecia recolhida a si mesma, sob forte impressão de terror. Cerrava as pálpebras, deliberadamente, receosa de olhar em torno.

— Terminou o processo de desligamento dos laços fisiológicos — exclamou o facultativo aten­to —, mas a pobrezinha há seis horas que está dominada por terrível pavor.

E apontando o cavalheiro desencarnado, que permanecia junto dela, cuidadoso, o receitista escla­receu:

— Aquele é o noivo que a espera, há muito.

Aproximamo-nos um tanto e ouvimo-lo excla­mar carinhosamente:

— Cremilda! Cremilda! vem! abandona as ves­tes. rotas. Fiz tudo para que não sofresse mais... Nossa casinha te aguarda, cheia de amor e luz!...

A jovem, todavia, cerrava os olhos, demons­trando não querer vê-lo. Notava-se, perfeitamente, que seu organismo espiritual permanecia totalmente desligado do vaso físico, mas a pobrezinha conti­nuava estendida, copiando a posição cadavérica, tomada de infinito horror.

Aniceto, que tudo pareceu compreender num abrir e fechar de olhos, fêz leve sinal ao rapaz desencarnado, que se aproximou comovido.

— É preciso atendê-la doutro modo — disse o nosso orientador, resoluto —, vejo que a pobre­zinha não dormiu no desprendimento e mostra-se amedrontada por falta de preparação espiritual. Não convém que o amigo se apresente a ela já, já... Não obstante o amor que lhe consagra, ela não poderia revê-lo sem terrível comoção, neste instante em que a mente lhe flutua sem rumo...

— Sim — considerou ele, tristemente —, há seis horas chamo-a sem cessar, identificando-lhe o terror.

Redargüiu Aniceto, conselheiral:

— Ausência de preparação religiosa, meu ir­mão. Ela dormirá, porém, e, tão logo consiga repou­so, entregá-la-emos aos seus cuidados. Por enquan­to, conserve-se a alguma distância.

E fazendo-se acompanhar do facultativo, que assistira espiritualmente a jovem nos últimos dias, aproximou-se da recém-desencarnada, falando com inflexão paternal:

— Vamos, Cremilda, ao novo tratamento.

Ouvindo-o, a moça abriu os olhos espantadiços e exclamou:

— Ah, doutor, graças a Deus! que pesadelo horrível! Sentia-me no reino dos mortos, ouvindo meu noivo, falecido há anos, chamar-me para a Eternidade!...

— Não há morte, minha filha! — objetou Aniceto, afetuoso — creia na vida, na vida eterna, profunda, vitoriosa!

— É o senhor o novo médico? — indagou, confortada.

— Sim, fui chamado para aplicar-lhe alguns recursos em bases magnéticas. Torna-se indispensável que durma e descanse.

— É verdade... — tornou ela de modo como­vente —, estou muito cansada, necessitando de re­pouso...

Recomendou-nos o instrutor, em voz baixa, prestássemos auxílio, em atitude íntima de oração, e, depois de conservar-se em silêncio por instantes, ministrou-lhe o passe reconfortador. A jovem dor­miu quase imediatamente.

Deslocou-a Aniceto, afastando-a dos despojos, com o zelo amoroso dum pai, e, chamando o noivo reconhecido, entregou-a carinhosamente.

— Agora, poderá encaminhá-la, meu irmão.

O rapaz agradeceu com lágrimas de júbilo e vi-o retirar-se de semblante iluminado, utilizando a volitação, a carregar consigo o fardo suave do seu amor.

Nosso mentor fixou um gesto expressivo e falou:

— Pela bondade natural do coração e pelo espontâneo cultivo da virtude, não precisará ela de provas purgatoriais. É de lamentar, contudo, não se tivesse preparado na educação religiosa dos pensamentos. Em breve, porém, ter-se-á adaptado à vida nova, Os bons não encontram obstáculos insuperáveis.

E, desejoso talvez de consubstanciar a síntese da lição, rematou:

— Como vêem, a ideia da morte não serve para aliviar, curar ou edificar verdadeiramente. É necessário difundir a ideia da vida vitoriosa. Aliás, o Evangelho já nos ensina, há muitos séculos, que Deus não é Deus de mortos, e, sim, o Pai das criaturas que vivem para sempre.


49

Máquina divina

Não se passaram muitos minutos e estávamos ao lado do agonizante, cuja situação preocupava o clínico espiritual.

Era um cavalheiro de sessenta anos presumí­veis, que a leucemia aniquilava morosamente.

— Há muitos dias se encontra em coma — explicou o facultativo —, mas temos necessidade de mais forte auxílio magnético, para facilitar o desprendimento.

No aposento, além de duas senhoras desencar­nadas — a mãe do agonizante e uma parenta próxi­ma —, viam-se familiares encarnados, dando mos­tras de grande aflição.

Nosso orientador examinou o enfermo detida­mente e sentenciou:

— Nada resta senão a necessidade de con­curso para o desligamento final.

Aniceto, a seguir, recomendou observássemos o moribundo com atenção.

Concentrando todas as minhas possibilidades, fixei o enfermo prestes a desencarnar. Notei, com minúcias, que a alma se retirava lentamente atra­vés de pontos orgânicos insulados. Assombrado, verifiquei que, bem no centro do crânio, havia um foco de luz mortiça, candelabro aceso às ondulações brandas do vento. Enchia toda a região encefálica, despertando-me profunda admiração.

— A luz que você observa — disse o instrutor amigo — é a mente, para cuja definição essencial não temos, por agora, conceituação humana.

Notando minha estranheza, Aniceto colocou-me a destra na fronte, transmitindo-me vigoroso in­fluxo magnético, e acentuou:

— Repare a máquina divina do homem, o ta­bernáculo sagrado que o Senhor permitiu Se for­masse na Terra para sublime habitação temporária do espírito. Agora, André, não está você diante duma demonstração anatômica da ciência terrestre, examinando carne morta e músculos enrijecidos. Observe agora! O olho mortal não poderá contem­plar o que se encontra à sua vista neste instante. O microscópio é ainda pobre, não obstante repre­sentar uma nobre conquista para a limitada visão humana.

A cooperação magnética do querido mentor modificara a cena e fui compelido a concentrar todas as minhas energias, a fim de não inutilizar a observação pelo golpe do espanto.

A luz mental, embora fosca, tornara-se mais nítida e o corpo do moribundo agigantou-se, ofere­cendo-me espetáculo surpreendente aos olhos ansio­sos. Parecia-me o corpo, agora, maravilhosa usina nos mais íntimos detalhes. O quadro científico era simplesmente estupefativo. Identificava, em gran­des proporções, os nove sistemas de órgãos da máquina humana; o arcabouço ósseo, a muscula­tura, a circulação sangüínea, o aparelho de puri­ficação do sangue consubstanciado nos pulmões e nos rins, o sistema linfático, o maquinismo diges­tivo, o sistema nervoso, as glândulas hormonais e os órgãos dos sentidos. Tal revelação histológica era diferente de tudo que eu poderia sonhar nos meus trabalhos de medicina. A circulação do San­gue semelhava-se a movimento de canais vitali­zadores daquele pequeno mundo de ossos, carne, água e resíduos. Milhões de organismos microscó­picos iam e vinham na corrente empobrecida de glóbulos vermelhos. Presenciava a passagem de formas esquisitas, à maneira de minúsculas embarcações carregadas de bactérias mortíferas. Ele­mentos maiores da flora microbiana transforma­vam-se em pequeninos barcos hospedando feras minúsculas, às centenas. Invadiam todos os núcleos organizados. Os órgãos, como os pulmões, o fígado e os rins, estavam sendo assaltados, irremediável-mente, por incalculável quantidade de sabotadores infinitesimais. E à medida que se consolidavam os micróbios invasores, em determinadas regiões celu­lares, alguma coisa se destacava, lentamente, da zona atacada, como se um molde sempre novo fôsse expulso da forma gasta e envelhecida, reconhecen­do eu, desse modo, que a desencarnação se operava através de processo parcial, facultando-me ilações preciosas. Reparei que algumas glândulas faziam desesperado esforço para enviar aos centros inva­didos determinadas porções de hormônioS, que eram incontinenti absorvidos pelos elementos letais. O plasma sanguíneo figurava-se líquido estranho e gangrenoso.

Pela excessiva movimentação da onda mental, observei que o moribundo tentava readquirir a direção dos fenômenos orgânicos, mas em vão. Todos os complexos celulares atritavam entre si e as bactérias pareciam gozar o direito de multiplica­ção crescente e festiva.

— Está vendo a máquina divina, formada pelo molde espiritual preexistente? — perguntou Aniceto, compreendendo-me a profunda admiração. O corpo do homem encarnado é um tabernáculo e uma bênção. Nesta hecatombe angustiosa de uma exis­tência, pode você reparar que todos os movimentos do corpo estão subordinados à administração da mente. O organismo vivo, André, representa uma conquista laboriosa da Humanidade terrestre, no quadro de concessões do Eterno Pai. Pode você, agora, identificar os movimentos da matéria viva. Cada órgão é um departamento autônomo na esfera celular, subordinado ao pensamento do homem. Cada glândula é um centro de serviços ativos. Há muita afinidade entre o corpo físico e a máquina moderna. São ambos impulsionados pela carga de combustível, com a diferença de que no homem a combustão química obedece ao senso espiritual que dirige a vida organizada. É na mente que temos o governo dessa usina maravilhosa. Não possuímos, aí, tão sômente o caráter, a razão, a memória, a direção, o equilíbrio, o entendimento; mas, também, o controle de todos os fenômenos da expressão cor­pórea. Na sede mental e, conseqüentemente, no cé­rebro, temos todos os registros de distribuição dos principios vitais aos núcleos celulares, inclusive a água e o açúcar, Os centros metabólicos são gran­des oficinas de trabalho incessante. A mente huma­na, ainda que indefinível pela conceituação científica limitada, na Terra, é o centro de toda manifestação vital no planeta. Cada órgão, cada glândula, meu amigo, integra o quadro de serviço da máquina sublime, construída no molde sutil do corpo espi­ritual preexistente e, por isso mesmo, chegará o tempo em que a ciência reconhecerá qualquer abuso do homem como ofensa causada a si mesmo. A usina humana é repositório de forças elétricas de alto teor construtivo ou destrutivo. Cada célula éminúsculo motor, trabalhando ao impulso mental.

Aniceto calou-se por momentos, e, enquanto eu via, aterrado, os mais estranhos fenômenos mi­crobianos no corpo do moribundo, volveu ele à pa­lavra educativa:

— Vemos aqui um irmão no momento da reti­rada. Repare a incapacidade dele para governar as células em conflito. Á corrente sangüínea trans­formou-se em veículo de invasores mortíferos, que não encontraram qualquer fortificação na defensiva. Observe e identificará milhões de unidades da tu­berculose, da lepra, da difteria, do câncer, que até agora estavam contidos nos porões da atividade fisiológica, pela defesa organizada, e que se multiplicam assustadoramente, de par com outros mi­cróbios tão prolíferos quão terríveis. A nutrição foi interrompida. Não há possibilidade de novos suprimentos hormonais. O agonizante retrai-se aos poucos e ainda não abandonou totalmente a carne, por falta de educação mental. Vê-se pelo excesso de intemperança das células, sobre as quais não exerce nem mesmo um controle parcial, que este homem viveu bem distante da disciplina de si mesmo. Seus elementos fisiológicos são demasiadamente impul­sivos, atendendo muito mais ao instinto que ao movimento da razão concentrada. A falar verdade, este nosso amigo não se está desencarnando, está sendo expulso da divina máquina, onde, pelo que vemos, não parece ter prezado bastante os sublimes dons de Deus.


50

A desencarnação de Fernando

Quando Aniceto retirou a destra da minha fronte, perdi a possibilidade de prosseguir nas observações do infinitesimal. Minha visão abrangia minúcias muito importantes ao interesse comum; entretanto, estava longe daquele poder de apreen­são que me transmitira o mentor amigo, ao contacto do seu elevado potencial magnético.

Centralizando minhas energias visuais, anali­sava ainda o sistema ósseo, o sangue, os tecidos, os humores, mas aquelas batalhas microscópicas ha­viam desaparecido como por encanto. De qualquer modo, porém, minha surpresa era enorme, porque agora identificava, em mim mesmo, a potencialldade do “raio X.”

Aniceto, depois de proporcionar a Vicente o mesmo estudo, movimentava providências novas.

No aposento, conservava-se determinado nú­mero de parentes aflitos. Um médico encarnado examinava o moribundo, com atenção.

Foi aí que as duas entidades que se mantinham no quarto, e que apenas nos haviam dispensado a usual saudação, se aproximaram do nosso instrutor, solicitando-lhe uma cooperação mais enérgica.

— Por favor, nobre amigo — disse a irmã que havia sido genitora do moribundo —, ajude-nos a retirar meu pobre filho do corpo esgotado. Há muitas horas, estamos à espera de alguém que nos possa auxiliar neste transe. Tenho procurado confortá-lo, mas em vão! — acentuou a nobre senhora em tom lastimoso — ele continua num estado de incompreensão dolorosa e terrível. Está absoluta­mente preso às sensações de sofrimento físico, como esteve ligado, no curso da existência, às satisfações do corpo.

Aniceto concordou, acrescentando:

— Notam-se, de fato, grandes lacunas na ex­pressão mental do moribundo. Vê-se que atravessou a vida humana obedecendo mais ao instinto que à razão. Observam-se-lhe no mundo celular gestos complexos de indisciplina. Poderemos, contudo, aju­dá-lo a desvencilhar-se dos laços mais fortes, no que se refere ao círculo carnal.

— Será um caridoso obséquio — redargüiu a genitora, aflita.

— A irmã está incumbida de encaminhá-lo? —perguntou o instrutor, compreendendo a magnitude da tarefa. — Precisamos ponderar, quanto a isto, porque o desprendimento integral se verificará den­tro de poucos minutos.

Ela esboçou um gesto triste e respondeu:

— Desejaria sacrificar-me ainda um pouco por meu desventurado Fernando, mas apenas obtive permissão para socorrê-lo nos seus últimos instan­tes. Meus superiores prometem ajudá-lo, mas acon­selharam-me a deixá-lo entregue a si mesmo du­rante algum tempo. Fernando precisa reconsiderar o passado, identificar os valores que, infelizmente, desprezou. As lágrimas e os remorsos, na solidão do arrependimento, serão portadores de calma ao seu espírito irrefletido. Grande é o meu desejo de conchegá-lo ao coração, regressando aos dias que já se foram; todavia, não posso prejudicar, com a minha ternura materna, a marcha do serviço di­vino. Fernando, em verdade, é filho do meu afeto; contudo, tanto ele como eu, temos contas com a Justiça do Eterno e, no que respeita a mim, estou cansada de agravar os meus débitos. Não devo contrariar os desígnios de Deus.

A essa altura do diálogo, interveio o clínico espiritual que nos encaminhara até ali, informando, atencioso:

— Nossa amiga tem razão. Fernando não poderá acompanhá-la, mas tão nobre tem sido a intercessão materna que tenho instruções para conduzi-lo a lugar seguro, a uma casa de socorro, onde poderá colher o melhor proveito do sofrimento, porqüanto será asilado em zona vibratória inaces­sível às influências inferiores e criminosas, embora situada em regiões baixas.

— Já sei — murmurou Aniceto com grave entono —, trata-se de medida muito acertada.

Em seguida, acentuou como quem não tinha tempo a perder:

— A aflição dos familiares encarnados, aqui presentes, poderá dificultar-nos a ação. Observem como todos eles emitem recursos magnéticos em benefício do moribundo.

De fato, uma rede de fios cinzentos e fraca­mente iluminados parecia ligar os parentes ao en­fermo quase morto.

— Tais socorros — tornou Aniceto — sãO agora inúteis para devolver-lhe o equilíbrio orgânico. Precisamos neutralizar essas forças, emitidas pela inquietação, proporcionando, antes de tudo, a possível serenidade à família.

E, aproximando-se ainda mais do agonizante, tomou a atitude do magnetizador, exclamando:

— Modifiquemos o quadro do coma.

Após alguns minutos em que nosso mentor operava, secundado pelo nosso respeitoso silêncio, ouvimos o médico encarnado anunciar aos parentes do moribundo:

— Melhoram os prognósticos. A pulsação, inexplicavelmente, está quase normal. A respiração tende a calmar-se.

Três senhoras suspiraram aliviadas.

— Dona Amanda — dirigiu-se o assistente àesposa do moribundo —, convém que vá repousar, levando as suas cunhadas. O senhor Fernando está muito tranqüilo e a situação é francamente favorável. Ficaremos velando, o senhor Januá­rio e eu.

As senhoras e mais dois cavalheiros, que se prontificavam a retirar, agradeceram satisfeitos e comovidos. Permaneceram no aposento sômente o médico e um irmão do agonizante. A melhora sú­bita tranqüilizara a todos. E, aos poucos, os fios cinzentos que se ligavam ao enfermo desapareceram sem deixar vestígios.

— Abramos a janela — disse o médico satis­feito —, o ar talvez acelere as melhoras do nosso amigo.

O senhor Januário atendeu, abrindo a ampla vidraça.

Fundamente espantado, reparei que três rostos horríveis pela expressão diabóllca surgiram, de re­pente, no peitoril, e interrogaram em voz alta:

— Como é? Fernando vem ou não vem?

Ninguém respondeu. Notei, porém, que Aniceto lhes dirigiu significativo olhar, compelindo-os, tão só com essa medida, a desaparecer.

Meia hora passou, dentro da qual o médico e o senhor Januário, quase despreocupados do agoni­zante, pelas melhoras havidas, encetaram uma con­versação animada, relativamente a problemas do mundo.

Aproveitou Aniceto a serenidade ambiente e começou a retirar o corpo espiritual de Fernando, desligando-o dos despojos, reparando eu que ini­ciara a operação pelos calcanhares, terminando na cabeça, à qual, por fim, parecia estar preso o mori­bundo por extenso cordão, tal como se dá com os nascituros terrenos. Amceto cortou-o com esforço. O corpo de Fernando deu um estremeção, chamando o médico humano ao novo quadro. A operação não fora curta e fácil. Demorara-se longos minutos, du­rante os quais vi o nosso Instrutor empregar todo o cabedal de sua atenção e talvez de suas energias magnéticas.

A família do morto, informada pelo senhor Januário, aflita penetrou no quarto, ruidosamnente.

A genitora do desencarnado, porém, auxiliada por Aniceto e pelo facultativo espiritual que nos levara até ali, prestou ao filho os socorros neces­sarios. Daí a instantes, enquanto a família terrena se debruçava em pranto sobre o cadáver, a pequena expedição Constituída por três entidades, as duas senhoras e o clínico, saía conduzindo o desencar­nado ao instituto de assistência, reparando eu, con­tudo, que não saíam utilizando a volitação, mas caminhando como simples mortais.

Sentia-me fortemente impressionado. Intriga­va-me, sobretudo, o aparecimento daqueles rostos satânicos quando se abrira a janela. Porque seme­lhante menosprezo a um agonizante?

Retirando-nos da residência, o Instrutor me fitou atento, e, antes que formulasse qualquer pergunta, esclareceu:

— Não se preocupe tanto, André, com os va­gabundos que esperavam nosso irmão infeliz - Só não penetraram na câmara de dor porque a nobre presença maternal impedia tal assédio.

E, depois de calar-se por momentos, acres­centou:

— Cada criatura, na vida, cultiva as afeições que prefere. Fernando estimava os companheiros desregrados. Não é, pois, estranhável, que tenham vindo esperá-lo na estação de volta à existência real. Paulo de Tarso, no capitulo 12 da Epístola aos Hebreus, afirma que o homem está cercado de uma grande “nuvem de testemunhas”. Ora, essa informação foi endereçada ao espírito humano há quase vinte séculos. Cada um, pois, tem o séquito invisível a que se devota na Terra. Mais tarde, quando a coletividade apreender a grandeza das lições evangélicas, todo homem terá cuidado na escolha de suas testemunhas.


51

Nas despedidas

Depois de outras atividades espirituais nume­rosas, findou a semana de serviço a que Aniceto nos admitira em sua companhia.

Seguíramos o nobre instrutor, através de tare­fas variadas e complexas. Sediados no templo acolhedor de Isabel, atendêramos a considerável número de doentes, bem como a irmãos outros perturbados, abatidos, transviados e moribundos. Nosso orientador tinha, para todos os casos, mara­vilhosos recursos de improvisação, sempre aten­cioso e otimista.

Aqueles poucos dias de trabalho novo enche­ram-me o cérebro de raciocínios novos e o coração de sentimentos que até então desconhecera.

Ao contacto das revelações de Aniceto, nos do­mínios da eletricidade e do magnetismo, reformara todos os meus antigos conhecimentos de medicina. A ascendência mental no equilíbrio orgânico, as forças radioativas, o campo das bactérias, a visão mais ampla da matéria organizada, compeliam-me a nova conceituação científica na arte de curar os corpos enfermos.

Alargara-se, sobretudo, em minhalma, o enten­dimento acerca do Médico Divino que restabelece a saúde do Espírito imortal. A claridade extensa, que me felicitava agora o espírito, fornecia mais largo conhecimento de Jesus. Compreendi, então, que a fé não constitui uma afirmativa de lábios, nem uma adesão de ordem estatística. Procurá-la-ia, em vão, na esfera sectária, nas disputas vulgares, nos cultos exteriores alteráveis todos os dias. Era, sim, uma fonte dágua viva, nascendo espontânea-mente em minha alma. Traduzia-se em reverência profunda, aliada ao mais alto conceito de serviço e responsabilidade, diante das sublimes concessões do Eterno Pai. Encontrara um tesouro inacessível à destruição e um bem Intransferível, por nascido e consolidado em mim mesmo.

Quando o instrutor nos convidou a regressar, sentia-me positivamente outro. Guardava a impres­são de haver encontrado as notícias diretas do Senhor Jesus, na descoberta do meu próprio mundo interior.

Como poderia pagar ao prestimoso Aniceto se­melhante capitalização de bens imortais?

Havia terminado o serviço de orações, na úl­tima reunião semanal da residência de Isidoro e Isabel.

Os trabalhos, sempre ativos, haviam represen­tado esfera de observações e experiências sempre novas.

Grande número de amigos de Aniceto acerca­ram-se do instrutor, ansiosos por partilharem a luz da conversação de despedidas.

O devotado orientador oferecia a todos a sua palavra de bom ânimo, otimismo, alegria e confian­ça no Senhor, como um príncipe de legenda, cuja boca fôsse fonte inesgotável de ouro espiritual.

Vicente e eu tínhamos os olhos úmidos, dese­josos de externar-lhe verbalmente nosso reconhecimento pelas bênçãos recolhidas; mas, ao nos aproximarmos, o abnegado orientador sorriu e an­tecipou:

— Agradeçam a Jesus pelo muito que nos tem dado.

E tomando a Bíblia, como Interessado em fixar o assunto geral no amor às coisas santificadas, leu em voz alta, no capítulo segundo dos Provérbios de Salomão:

— “Filho meu, se aceitares as minhas pala­vras e guardares contigo os meus mandamentos, para fazeres atento à sabedoria o teu ouvido e para inclinares o teu coração ao entendimento; e se clamares por entendimento, e por inteligência al­çares a tua voz, se como a prata a buscares e como a tesouros ocultos a procurares, então entenderás o temor do Senhor, e acharás o conhecimento de Deus.” (1)

Deixou em seguida o livro sagrado sobre a mesa, e sentenciou:

— Lembremo-nos do Senhor em nossas despe­didas. Ratifiquemos, irmãos, nossos compromissos de trabalho e testemunho. Em tão pequeno trecho dos Provérbios encontramos muitos verbos que in­teressam os espíritos cristãos. Aceitar os man­damentos divinos e guardá-los, tornar o ouvido atento e o coração esclarecido, pedir entendimento e inteligência alçando a voz acima dos objetivos inferiores, buscar os tesouros do Cristo e procurar-lhe o programa de serviços, representa o esforço nobre daquele que, de fato, deseja a Divina Sabe­doria. Não esqueçamos esses deveres.

Como a pausa se fizesse. mais longa, um Irmão rogou ao querido amigo prosseguisse na interpre­tação do texto, mas Aniceto replicou em tom fra­ternal:

— Por agora, meu irmão, não é mais possível. Outras obrigações nos chamam de longe.

E, dirigindo-se particularmente a Vicente e a mim, acentuou:

(1) Provérbios, 2:1-5. — (Nota do Autor espiritual.)

— Já que voltaremos pela estrada comum, po­deremos esperar por nossa amiga Isabel, para apre­sentar-lhe nossos agradecimentos e despedidas.

Daí a momentos, a nobre companheira de Isi­doro, abandonando o corpo ao repouso do sono, veio até nós, junto do esposo espiritual, atendendo ao convite mental do nosso dedicado orientador. Aniceto exprimiu-lhe profundo reconhecimento, fa­lou-lhe da nossa alegria, das oportunidades santas do serviço que a bondade divina nos havia pro­porcionado.

Dona Isabel agradeceu, comovidamente, dei­xando transparecer as lágrimas da gratidão que lhe dominava o espírito.

— Nobre Aniceto — disse enxugando os olhos —, se for possível, voltai sempre ao nosso mo­desto lar. Ensinai-me a paciência e a coragem, gene­roso amigo! Quando puderdes, não me deixeis trans­viar nos deveres de mãe, tão difíceis de cumprir na carne, onde os interesses menos dignos se entre­chocam com violência. Amparai-me as obrigações de serva do Evangelho de nosso Senhor! Por vezes, profundas saudades da família espiritual me dila­ceram o coração... desejaria arrebatar meus filhos à esfera superior, incliná-los ao bem, para que a nossa união divina não tarde nos planos mais altos da vida. E essas saudades de “Nosso Lar” me pungem a alma, ameaçando, por vezes, minha tarefa humilde na Terra. Nobre Aniceto, não vos esque­çais desta amiga pobre e imperfeita. Sei que Isi­doro me segue passo a passo, mas ele e eu preci­samos de amigos fortes na fé, como vós, que nos reavivem o bom ânimo na jornada dos deveres cristãos!...

A irmã Isabel não pôde continuar, porque o pranto lhe embargara a voz. Aniceto, de olhos brilhantes e serenos, enlaçou-a como pai e falou, brandamente:

— Isabel, segue em teus testemunhos e não temas. Estaremos contigo, agora e sempre. Muitas criaturas admiráveis tiveram a tarefa, mas não es­queçamos, filha, que Jesus teve a tarefa e o sacrifício no mundo. Não nos faltará no caminho re­dentor o terno cuidado do Guia Vigilante. Tem bom ânimo e caminha!

Em seguida, olhando-nos a todos, de frente, o nobre amigo exclamou:

— Agora, irmãos, auxiliem-me a orar!

E conservando Isabel e Isidoro, unidos ao seu coração, Aniceto fixou os olhos no alto e falou com sublime beleza:

“Senhor, ensina-nos a receber as bênçãos do ser­viço! Ainda não sabemos, Amado Jesus, compreender a extensão do trabalho que nos confiaste! Permite, Senhor, possamos formar em nossa alma a convicção de que a Obra do Mundo te pertence, a fim de que a vaidade não se insinue em nossos corações com as aparências do bem!

Dá-nos, Mestre, o espirito de consagração aos nos­sos deveres e desapego aos resultados que pertencem ao teu amor!

Ensina-nos a agir sem as algemas das paixões, para que reconheçamos os teus santos objetivos!

Senhor Amorável, ajuda-nos a ser teus leais ser­vidores, Amoroso, concede-nos, ainda, as tuas lições, Juiz Reto, conduze-nos aos caminhos direitos,

Médico Sublime, restaura-nos a saúde,

Pastor Compassivo, guia-nos à frente das águas vivas,

Engenheiro Sábio, dá-nos teu roteiro,

Administrador Generoso, inspira-nos a tarefa,

Semeador do Bem, ensina-nos a cultivar o campo de nossas almas,

Carpinteiro Divino, auxilia-nos a construir nossa casa eterna, Oleiro Cuidadoso, corrige-nos o vaso do coração,

Amigo Desvelado, sê Indulgente, ainda, para com as nossas fraquezas,

Príncipe da Paz, compadece-te de nosso espírito frágil, abre nossos olhos e mostra-nos a estrada de teu Reino!”

Aniceto calou-se comovido, e, de olhos úmi­dos, contendo a custo as lágrimas do meu reconhecimento, incorporei-me à nobre caravana que seguiria conosco de regresso a “Nosso Lar”.

Fim