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sábado, 29 de janeiro de 2011

Nos Bastidores da Obsessão-Divaldo Pereira Franco

NOS BASTIDORES DA OBSESSÃO

DIVALDO PEREIRA FRANCO

DITADO PELO ESPÍRITO MANOEL PHILOMENO DE MIRANDA


 


Exórdio

“Pululam em torno da Terra os maus Espíritos, em conseqüência da inferioridade moral de seus habitantes. A ação malfazeja desses Espíritos é parte integrante dos flagelos com que a Humanidade se vê a braços neste mundo. A obsessão, que é um dos eleitos de semelhante ação, como as enfermidades e todas as atribulações da vida, deve, pois, ser considerada como provação ou expiação e aceita com esse caráter.” (*)

A obsessão, mesmo nos dias de hoje, constitui tormentoso flagício social. Está presente em toda parte, convidando o homem a sérios estudos.

As grandes conquistas contemporâneas não conseguiram ainda erradicá-la. Ignorada propositadamente pela chamada Ciência Oficial, prossegue colhendo nas suas malhas, diariamente, verdadeiras legiões de incautos que se deixam arrastar a resvaladouros sombrios e truanescos, nos quais padecem irremissivelmente, até à desencarnação lamentável, continuando, não raro, mesmo após o traspasse... Isto, porque a morte continua triun­fando, ignorada, qual ponto de interrogação cruel para muitas mentes e incontáveis corações.

(*) “A Gênese”, de Allan Kardec, 14ª edição da FEB, capítulo 14. “Obsessões e Possessões”. — Nota do Autor espiritual.

As Disciplinas e Doutrinas decorrentes da Psicolo­gia Experimental, nos seus diversos setores, preferem continuar teimosamÉnte arregimentando teorias que não respondem aos resultados da observação demorada e das constatações de laboratório, como se a Imortalidade so­mente merecesse acirrado combate e não investigação imparcial, capaz de ensejar ao homem esperanças e con­solações, quando tudo lhe parece conspirar contra a paz e a felicidade.

Desde as honestíssimas pesquisas do Barão von de Guldenstubbé, em 1855, e as do professor Roberto Hare, in­suspeito lente de Química, na universidade de Pensil­vânia, em 1856, que concluíram, pela realidade do espí­rito preecistente ao berço e sobrevivente após o túmulo, que os cientistas conscientes das suas responsabilidades se têm entregue ao afã da verificação da Imortalidade. E todos aqueles que se dedicaram à observação e ao estudo, à experimentação e ao fenômeno, são concordes na com­provação da continuidade da vida depois da morte...

Nos Estados Unidos, se tornaram famosas as experiências psiquiátricas realizadas pelo Dr. Carlos Wickland, que, utilizando-se da argumentação espírita, conseguiu de­sobsidiar inúmeros pacientes que lhe chegavan, ator­mentados, ao consultório. Simultâneanente, em seus trabalhos especializados, utilizava-se de uma médium clarividente, sua própria esposa, que o ajudava na téc­nica da desobsessão.

Diante de Alcina incorporada pelo espírito de Ga­leno, em plena sessão da Salpetriêre, respondeu Char­cot, aos interessados no fenômeno e que o inquiriram, que lhes não convinha se adiantassem à própria época em que viviam... Sugeria que se não buscassem ra­ciocínios que aclarassem os resultados das investigações, devendo contentar-se somente com aquela «observação experimental», a que todos haviam presenciado. Tal atitude anticientífica tem sido mantida por respeitáveis investigadores, por temerem a realidade da vida imperecível.

*

Com Allan Kardec, no entanto, tiveram início os eloquentes testemunhos da imortalidade, da comunica­bilidade dos Espíritos, da reencarnação e das obsessões, cabendo ao insigne mestre lionês a honrosa tarefa de apresentar conveniente terapêutica para ser aplicada nos obsidiados como também nos obsessores. A partir da publicação de «O Livro dos Médiuns», em janeiro de 1861, em Paris, todo um conjunto de regras, com um notável esquema das faculdades mediúnicas, foi apre­sentado, a par de seguro estudo do Espírito, nas suas diversas facetas, culminando como exame das manifes­tações espiríticas, organização de Sociedades e pales­tras dos Espíritos Elevados, que traçaram rotas de se­gurança para os que ingressarem na investigação racio­nal dos fenómenos medianímicos. A bússola para o sa­dio exercício da mediunidade foi apresentada com rigo­roso equilíbrio, através da Obra magistral.

No entanto, diante dos lancinantes problemas da obsessão na atualidade, tem-se a impressão de que nada até o momento haja sido feito a fim de ser modificado esse estado de coisas.

De Kardec aos nossos dias, todavia, quantas edifi­cantes realizações e preciosos estudos em torno dos mé­diuns, da mediunidade, das obsessões e das desobses­sões têm sido apresentados! Este capítulo dos proble­mas psíquicos — «a obsessão» — tem merecido dos cris­tãos novos o mais acendrado interesse. Apesar disso, avassaladoramente vem-se mantendo em caráter epidê­mico, qual morbo virulento que se alastra por toda a Terra, hoje mais do que em qualquer época...

«Sinal dos tempos», a que se relerem os Escritos Evangélicos, prenúncia essa dor generalizada, a Era do Espírito Imortal. Milhões de criaturas, no entanto, dor­mem o sono da indiferença, entregues aos anestésicos do prazer e ao ópio da ilusão.

Por todos os lugares se manifestam os Espíritos advertindo, esclarecendo, despertando...

No entanto, o carro desatrelado da juventude corre na direção de abismos insondáveis. Os homens alcan­çam a maturidade vencidos pelos desgastes da quadra juvenil, e a velhice em desassossego padece ao aban­dono. Os altos índices da criminalidade de todos os ma­tizes e as calamidades sociais espalhadas na Terra são, todavia, alguns dos fatores predisponentes e preponde­rantes para as obsessões... Os crimes ocultos, os de­sastres da emoção, os abusos de toda ordem de uma vida ressurgem depois, noutra vida, em caráter coerciti­vo, obsessivo. É o que hoje ocorre como consequência do passado.

A Doutrina Espírita, porém, possui os antídotos, as terapias especiais para tão calamitoso mal. Repetindo Jesus, distende lições e roteiros para os que se abebe­ram das suas fontes vitais.

*

Este livro deveria ter sido escrito faz muito tempo...

Todos os fatos nele narrados aconteceram entre os anos de 1937 e 1938, em Salvador, na Bahia, quando da nossa jornada carnal, na Terra. Algumas das persona­gens aqui aparecem discretamente resguardadas por pseu­dônimo, considerando que algumas delas e seus familiares se encontram ainda reencarnados...

Como nos impressionassem as técnicas da obses­são utilizadas pelos Espíritos perseguidores e as técni­cas da desobsessão aplicadas pelos Instrutores Desencarnados, reunímos dados, fizemos verificação, e hoje apresentamos o resultado das averiguações ao leitor in­teressado em informações do Mundo Espiritual sobre o palpitante problema das perseguições espirituais.

Estes fatos transcorrem entre os dois mundos: o dos encarnados e o dos desencarnados. Estes dois mun­dos se interpenetram, já que não há barreiras que os separem nem fronteiras reais, definidas, entre ambos.

Grande parte das instruções, oriantações e socorros procederam do Mundo Espiritual, durante as sessões rea­lizadas com a participação de diversos membros da União Espírita Baiana, quando presidida por José Petitinga, o amigo incondicional do Cristo.

Diversos companheiros encarnados e nós participávamos, em desdobramento parcial pelo sono, das ativi­dades da desobsessão e das incursões no Mundo Espiri­tual sob o comando de Abnegados Mentores que nos sustentavam e conduziam, adestrando-nos nas realidades da vida eztracorpórea.

Desde vários anos, percebêramos a facilidade com que nos libertávamos parcialmente dos liames carnais, em estado de lucidez, amealhando, desde então, incom­paráveis recursos para utilização oportuna. Quando nos aconteceram as primeiras, experiências dessa ordem, no labor mediúnico em grupo, retornamos ao corpo conser­vando intactas as lembranças, o mesmo acontecendo a diversos membros daquelas atividades. Como se tornas­sem cada vez mais complexas as tarefas em curso, a bondade dos Amigos Espirituais procedeu a conveniente censura das lembranças, de modo a que a nossa vida material não fosse afetada pelas recordações de tais realizações.

Em confabulações com Petitinga, quando ainda no plano físico, conseguíamos, de certo modo, acompanhar as disposições socorristas dedicadas aos membros envolvidos nas tramas da obsessão de que nos ocupamos nes­tas páginas.

Foi, todavia, em cá chegando, após a libertação dos liames fisiológicos pela desencarnação, que pudemos reunir todos os apontamentos de que tínhamos necessidade, contando, também, com a valiosa cooperação do vene­rando amigo Petitinga e das Entidades Superiores, que nos ajudaram naquele tentame, então coroado de êxito, mercê da Divina Misericórdia.

*

Alguns dos subitems que constituem os Prolegôme­nos desta Obra apareceram oportunamente em alguns pe­riódicos espíritas. Aqui se encontram por nós próprios refundidos para melhor entrosamento no conjunto.

Reconhecemos a singeleza deste trabalho. Com ele, todavia, objetivamos cooperar de alguma forma com os nobres lidadores da mediunidade, os infatigáveis servi­dores das tarefas da desobsessão, que se dedicam con­fiantes e joviais aos trabalhos de socorro aos irmãos atribulados deste lado de cá e do lado de lá, cooperando com o Cristo na implantação do Mundo Melhor a que todos aspiramos.

Nada traz de novo, que já não tenha sido dito. Re­pete, fiel à técnica educacional de que o exercício é um dos mais eficientes métodos da aprendizagem, muitas li­ções conhecidas. Longe de ser um tratado sobre obses­são e desobsessão, é um ligeiro estudo prático, através de uma família anatematizada pelas perturbações de além­-túmulo.

Imenso e fértil campo a joeirar, a obsessão continua aguardando os estudiosos mais bem adestrados e mais capazes para mais amplos esclarecimentos e mais efi­cazes elucidações.

O nosso pálido esforço tem o escopo de chamar a atenção para o problema. Que outros, como já tem sido

feito por muitos, realizem a parte mais nobre e com­plexa da questão.

Reconhecidos e sensibilizados pelo auxílio recebido do Alto, que munca nos tem faltado com o seu socorro, exoramos as bênçãos do Senhor para todos nós, servo incompetente que reconhecemos ser, na Sua Vinha de Luz e Amor.

MANOEL PHILOMENO DE MIRANDA

Salvador, 12 de junho de 1970.


Prolegômenos

“Os Espíritos exercem incessante ação sobre o mun­do moral e mesmo sobre o mundo físico. Atuam sobre a matéria e sobre o pensamento e constituem uma das potências da Natureza, causa eficiente de uma mul­tidão de fenômenos até então Inexplicados ou mal ex­plicados e que não encontram explicação racional se-não no Espiritismo. “As relações dos Espíritos com os homens são constantes. Os bons Espíritos nos atraem para o bem, nos sustentam nas provas da vida e nos ajudam a suportá-las com coragem e resignação. Os «maus nos impelem para o mal: é-lhes um gozo ver-nos “sucumbir e assemelhar-nos a eles.” (1)

Os modernos pesquisadores da mente encarnada, fas­cinados pelas experiências de Laboratório, surpreendem, paulatinamente, as realidades do Mundo extrafísico. Li­gados, porém, aos velhos preconceitos científicos, deno­minam a faculdade através da qual veiculam tais fatos pelo nome genérico de “psi”. O “psi” é uma designa­ção que da elasticidade quase infinita aos recursos plás­ticos da mente, tais como conhecimento do passado (te­lepatia), ou acontecimentos que tiveram lugar anterior­mente e se encontram gravados nas mentes de outras pessoas; conhecimento de ocorrências no mundo exterior­

(1) “O Livro dos Espíritos”, de Allan Kardec. Introdução, página 23, da 28ª Edição da FEB. — Nota do Autor espiritual.

(clarividência), sem o contacto com impressões sen­soriais; e percepção do futuro (presciência).

Em princípio, os recursos valiosos da mente, nas experiências de transposição dos sentidos, fenômenos de profetismo e lucidez, demonstrações de insensibilidade táctil, nas alucinações, polarizações e despolarizações psí­quicas, realizadas em epilépticos e histéricos hipnotiza­dos, ensejavam conclusões apressadas que pareciam con­firmar as características do “psi”.

Comprovou-se mui facilmente, através da sugestão hipnológica, que se pode impressionar um percipiente a fim de que o mesmo assuma personificações parasitárias momentaneamente, representando vultos da História ou simples pessoas da plebe...

Considerando-se, todavia, em outras experiências, os fenômenos intelectuais, como nos casos de xenoglossia e glossolalia, especialmente entre crianças de tenra idade, ou naqueles de ordem física, tais como a pneumografia, o metafonismo, a telecinesia, a teleplasmia e os diver­sos fenômenos dentro da metergia, constata-se não ha­ver elasticidade que se ofereça à mente encarnada que os possa elucidar, senão através da aceitação tácita de uma força externa inteligente, com vontade própria, que atua no sensitivo, a este conferindo tais possibilidades.

Estudiosos do assunto, no passado, tais como Wil­liam James, acreditaram que todos vivemos mergulha­dos numa «corrente de consciência cósmica», enquanto Henrique Bergson supunha que «a mente possui um co­nhecimento de tudo, em qualquer lugar, sem limitação de tempo ou de espaço», dando ao cérebro a função de velador de tal conhecimento.

Enquanto tais fenômenos se demoram sem explica­ção definitiva, a sobrevivência do Espírito após a morte do corpo não encontra aceitação pelas Academias; dis­túrbios mentais de vária ordem aprisionam multidões em cárceres estreitos e sombrios, povoados pelos fan­tasmas da loucura, reduzindo o homem à condição pri­mitiva do passado...

Muito embora os desvarios da razão estejam pre­sentes nos fastos de todos os tempos, jamais, como na atualidade, o homem se sentiu tão perturbado.

Tratadistas estudiosos dos problemas psico-socioló­gicos do presente atribuem grande parte dos distúrbios mentais à “tensão” das horas em que se vive, elevando, cada dia, o número dos desarranjados psiquicamente e aturdidos da emoção.

Naturalmente que, além desses, afirmam os de procedência fisiológica, da hereditariedade, de vírus e ger­mens, as sequelas da epilepsia, da tuberculose, das fe­bres reumáticas, da sífilis, os traumatismos e choques que se encarregam de contribuir larga e amplamente para a loucura. Fatores outros predisponentes a que também se referem não podem ser relegados a plano secundário. Todavia, além desses, que dão origem a psi­coses e neuroses lamentáveis, outros há que somente podem ser explicados pela Doutrina Espírita, no Capí­tulo das Obsessões estudadas carinhosamente por Allan Kardec.

Fazendo-se ligeiro levantamento através da Histó­ria — e os acontecimentos têm sido registrados em todas as épocas do pensamento, mesmo nas mais recuadas —, surpreendemos, ao lado dos alienados de qualquer pro­cedência, magos e sacerdotes manipulando exorcismos e orações com que pretendiam afastar os Espíritos ator­mentadores, que se comprazem em vampirizar ou exal­tar suas vítimas em infeliz comércio entre os dois pla­nos da vida: o corporal e o espiritual.

Os livros sagrados de todos os povos, desde a mais remota antigüidade oriental, em se referindo às leis mo­rais, reportam-se à vida extraterrena. às consolações e às penalidades impostas aos Espíritos — tal como se a informação tivesse sido haurida na mesma fonte, tendo como única procedência a inspiração dos desencarnados — estudando, igualmente, as aflições e perturbações de origem espiritual, que remontam às vidas pregressas...

Considerados inicialmente como anjos maus ou demônios, ao tempo de Jesus, foram por Ele classifica­dos de (espíritos Imundos», com os quais se defrontou, reiteradas vezes, durante a jornada vivida na Terra.

Todos os grandes pensadores, artistas, escritores, fi­lósofos do passado, “psi” de religiões», “doutores da Igreja», são unânimes em atestar as realidades da vida além da carne, pelos testemunhos inconfundíveis da imor­talidade.

Aos Espíritos dos ditos mortos se referem Anaxá­gora, Plutarco, Sócrates, Heródoto, Aristóteles, Cícera, Horácio, Plínio, Ovídio, Lucano, Flávio José, Virgílio, Dionisio de Halicarnasso, Valério Máximo... que, em seus relatos, apresentam farta documentação comproba­tória do intercâmbio espiritual, citando outras não me­nos célebres personagens do seu tempo.

Ricos são os comentários sobre as aparições, as ca­sas (assombradas», os (avisos) e as consultas nos san­tuários de todas as grandes Civilizações.

Mais tarde Lactâncio, Orígenes, Ambrósio, Basílio e Arnóbio dão farto e eloquente testemunho das comuni­cações com os desencarnados.

A Escola Neoplatônica de Alexandria, através dos seus mais expressivos vultos, pregando a multiplicidade das existências (reencarnação), afirma, por intermédio de Plotino, Porfírio, Jâmblico, Próclus, a continuidade da vida concedida ao princípio espiritual.

A Idade Média foi farta em provas sobre os desen­carnados. “Anjos” e “espíritos imundos” sübitamente in­vadiram a Europa, e os “inspirados” e “endemoninhados”, os “adivinhos» e “feiticeiros” foram levados à pira crematória, sem que conseguissem extingui-los.

Das primeiras lutas entre o Empirismo e o Racio­nalismo intelectual à Era Atômica, filósofos e cientistas não ficaram indiferentes aos Espíritos... No século 19, porém, fadado pelas suas conquistas a servir de base ao futuro, no que diz respeito ao conhecimento, a sobre­vivência mereceu por parte de psicólogos e psiquistas o mais acirrado debate, inaugurando-se a época das inves­tigações controladas cientificamente.

Foi nesse período que Allan Kardec, convidado à liça da cultura e da informação, empunhando o bisturi da investigação, clareou, com uma Filosofia Científica — o Espiritismo, calcada em fatos devidamente com­provados, os escaninhos do obscurantismo, oferecendo uma terapêutica segura para as alienações torturantes, repetindo as experiências de Jesus-Cristo junto aos en­demoninhados e enfermos de toda ordem.

Classificou como obsessão a grande maioria dos distúrbios psíquicos e elaborou processos de recupera­ção do obsidiado, estudando as causas anteriores das aflições à luz das reencarnações, através de linguagem condizente com a razão, e demonstrável experimentalmente.

A Codificação Kardequiana, como um monumento granítico para os séculos porvindouros, certamente não resolveu o “problema do homem”, pois que este ao pró­prio homem é pertinente, oferecendo, todavia, as bases e direções seguras para que tenha uma vida feliz, ética e socialmente harmoniosa na família e na comunidade onde foi chamado a viver.

Psiquistas de nomeada, advertidos pelos resultados observados na Europa e na América, em torno do fas­cinante assunto — comunicabilidade dos Espíritos —, empenharam-se, então, em laboriosas experiências, criando, alguns, por mais compatível com as suas investidu­ras acadêmicas, sucedâneos para a alma, que introduzi­ram na genética da Biologia, negando àquela o direito à legitimidade. O Professor Gustavo Geley, por exemplo, criou a designação de “dínnamo-psiquismo”, Pauley, a de “consciência profunda”, Hans Driesch a de “enteléquias” e teorias metapsíquicas vieram a lume, em ferrenho an­tagonismo à imortalidade, esgrimindo as armas do so­fisma e da negação, sem conseguirem, no entanto, resultado positivo.

O célebre Professor Charles Richet, estimulado pelas experiências eminentemente científicas de Sir» William Crookes, elaborou a Metapsíquica e, ao despedir-se da sua Cátedra de Fisiologia, na Universidade de Paris, deixou ao futuro a satisfação de confirmar, de negar ou des­dobrar as suas conclusões.

Com o advento da moderna Parapsicologia, novos sucedâneos têm sido criados para o espírito imortal e, enquanto os pesquisadores se demoram no problema da designação nominativa que inspira debates e celeumas, a Doutrina Espírita, lecionando amor e fraternidade, es­tudo e conhecimento da vida sob a inspiração dos Imor­tais, distende braços e liberta das malhas vigorosas da obsessão aqueles que, por imprevidência ou provação, se deixaram arrastar aos escuros precipícios da anarquia mental, perturbados ou subjugados por forças ultrizes da Erraticidade, prescrevendo as mesmas diretrizes mo­rais insertas no Evangelho de Jesus-Cristo, vivido em es­pírito e verdade.

Examinando a obsessão

“Entre os que são tidos por loucos, muitos há que apenas são subjugados; precisariam de um trata­mento moral, enquanto que com os tratamentos corpo­rais os tornam verdadeiros loucos. Quando os médicos conhecerem bem o Espiritismo, saberão fazer essa dis­tinção e curarão mais doentes do que com as du­chas”. (2)

Com muito acerto asseverou o Codificador que «o conhecimento do Espiritismo, longe de facilitar o pre­domínio dos maus Espíritos, há de ter como resultado, em tempo mais ou menos próximo e quando se achar propagado, destruir esse predomínio, o da obsessão, dan­do a cada um os meios de se pôr em guarda contra as sugestões deles». E o iluminado mestre, não poucas ve­zes, embora profundo conhecedor do Magnetismo, con­vocado a atender obsidiados de variado jaez, utilizou-se dos eficientes métodos da Doutrina Espírita para libertá-los com segurança, através da moralização do Espí­rito perturbador e do sensitivo perturbado.

«Obsessão — segundo Allan Kardec — é o domínio que alguns Espíritos logram adquirir sobre certas pessoas.

(2, 3 e 4) “O Livro dos Médiuns”, de Allan Kardec, 24ª Edição da FEB. Página 263.

Ao tempo da publicação de “O Livro dos Médiuns” — 1861 — as duchas eram tidas como dos mais eficientes tratamentos para as enfermidades mentais. Daí a referência feita por Allan Kardec. — Nota do Autor espiritual.

Nunca é praticada senão pelos Espíritos inferio­res, que procuram dominar. Os bons Espíritos nenhum constrangimento infligem. Aconselham, combatem a in­fluência dos maus e, se não os ouvem, retiram-Se. Os maus, ao contrário, se agarram àqueles de quem podem fazer suas presas. Se chegam a dominar algum, identi­ficam-se com o Espírito deste e o conduzem como se fora verdadeira criança. » Ainda é o egrégio intérprete dos Espíritos da Luz que comenta:

«As causas da obses­são variam, de acordo com o caráter do Espírito. É, às vezes, uma vingança que este toma de um indivíduo de quem guarda queixas do tempo de outra existência. Muitas vezes, também, não há mais do que desejo de fazer mal: o Espírito, como sofre, entende de fazer que os outros sofram; encontra uma espécie de gozo em os atormentar, em os vexar, e a impaciência que por isso a vítima demonstra mais o exacerba, porque esse é o objetivo que colima, ao passo que a paciência o leva a cansar-se... »

E prossegue: «Há Espíritos obsessores sem malda­de, que alguma coisa mesma denotam de bom, mas do­minados pelo orgulho do falso saber. (3)

Obsidiados, sempre os houve em todas as épocas da Humanidade.

Repontando, vigoroso, o fenômeno mediúnico em todos os povos e em todos os tempos, oferecendo rotei­ros iluminativos para muitas Civilizações, foi, também, veículo de pungentes dramas de vultos que se celebri­zaram na História.

Nabucodonosor 2º, o Grande, rei da Caldéia, pertur­bado por Espíritos vingadores, experimentou tormentos inomináveis, obsidiado, descendo à misérrima condição de anormal...

Tibério, de mente dirigida por Espíritos impiedo­sos, atingiu alto índice de crueldade, pela desconfiança exacerbada, insuflada pelos adversários desencarnados...

Domício Nero, tristemente celebrizado, após uma existência de loucuras, avassalado por cruéis inimigos do Além-Túmulo, não poucas vezes em desdobramentos espirituais reencontrou a mãe Agripina e a esposa Otá­via, que foram assassinadas por sua ordem, pressagian­do-lhe o termo doloroso...

E, no entanto, na epopéia sublime do Evangelho, que desfilam ao lado de Jesus, em larga escala, os ator­mentados por Espíritos infelizes, que encontram nEle o Médico Divino que lhes lucila o íntimo e os liberta do sofrimento.

Os discípulos do Rabi Galileu, vezes sem conta, apli­caram o passe curativo nos inúmeros obsidiados que os buscavam, prosseguindo o ministério apostólico entre os atormentados da Terra e os perturbados do Mundo Es­piritual, como fizera o Mestre.

E depois deles os registros históricos apresentam loucos de nomenclatura variada, às voltas com Entidades atormentadoras, sofrendo na fogueira e no exílio, no poço das serpentes e nos Manicômios sombrios, o re­sultado da convivência psíquica com os que atravessa­ram o portal da Imortalidade e se demoram nas vicia­ções e nos sentimentos em que se compraziam...

Asseverou Allan Kardec: (Não foram os médiuns, nem os espíritas que criaram os Espíritos; ao contrá­rio, foram os Espíritos que fizeram haja espíritas e mé­diuns. Não sendo os Espíritos mais do que as almas dos homens, é claro que há Espíritos desde quando há homens; por conseguinte, desde todos os tempos eles exerceram influência salutar ou perniciosa sobre a Hu­manidade. A faculdade mediúnica não lhes é mais que um meio de se manifestarem. Em falta dessa faculdade, fazem-no por mil outras maneiras, mais ou menos ocul­tas.”

«Os meios de se combater a obsessão — esclarece o eminente Seareiro — variam de acordo com o cará­ter que ela reveste.» E elucida: «As imperfeições mo­rais do obsidiado constituem, frequentemente, um obs­táculo à sua libertação.» (4)

A obsessão, todavia, ainda hoje é um terrível es­colho à paz e à serenidade das criaturas.

Com origem nos refolhos do espírito encarnado, obsessões há em escala infinita e, consequentemente, obsidiados existem em infinita variedade, sendo a etio­patogenia de tais desequilíbrios, genêricamente denomi­nada distúrbios mentais, mais ampla do que a clássica apresentada, merecendo destaque aquela denominação causa cármica.

Jornaleiro da Eternidade, o espírito conduz os ger­mens cármicos que facultam o convívio com os desafe­tos do pretérito, ensejando a comunhão nefasta.

Todavia, não apenas o ódio como se poderia pen­sar é o fator causal das Obsessões e nem somente na Terra se manifestam os tormentos obsessivos... Além da sepultura, nas regiões pungentes e aflitivas de rea­justamentos imperiosos e despertamentos inadiáveis das consciências, defrontam-se muitos verdugos e vítimas, co­meçando ou dando prosseguimento aos nefandos ban­quetes de subjugação psíquica, em luta intérmina de extermínio impossível...

Obsessores há milenarmente vinculados ao crime, em estruturas de desespero invulgar, em que se demoram vo­luntàriamente, envergando indumentárias de perseguido­res de outros obsessores menos poderosos mentalmente que, perseguindo, são também escravos daqueles que se nutrem às suas expensas, imanados por forças vigorosas e crueis...

Na Terra, igualmente, é muito grande o número de encarnados que se convertem, por irresponsabilidade e invigilância, em obsessores de outros encarnados, esta­belecendo um consórcio de difícil erradicação e prolon­gada duração, quase sempre em forma de vampirismo inconsciente e pertinaz. São criaturas atormentadas, fe­ridas nos seus anseios, invariàvelmente inferiores que, fixando aqueles que elegem gratuitamente como desafe­tos, os perseguem em corpo astral, através dos proces­sos de desdobramento inconsciente, prendendo, muitas vezes, nas malhas bem urdidas da sua rede de idiossin­crasia, esses desassisados morais, que, então, se trans­formam em vítimas portadoras de enfermidades complicadas e de origem clínica ignorada...

Outros, ainda, afervorados a esta ou àquela iniqui­dade, fixam-se, mentalmente, a desencarnados que efe­tivamente se identificam e fazem-se obsessores destes, amargurando-os e retendo-os às lembranças da vida fí­sica, em lamentável comunhão espiritual degradante...

Além dessas formas diversificadas de obsessão, ou­tras há, inconscientes ou não, entre as quais, aquelas produzidas em nome do amor tiranizante aos que se de­moram nos invólucros carnais, atormentados por aque­les que partiram em estado doloroso de perturbação e egocentrismo... ou entre encarnados que mantém co-núbio mental infeliz e demorado...

*

Obsessores, obsidiados!

A obsessão, sob qualquer modalidade que se apre­sente, é enfermidade de longo curso, exigindo terapia especializada de segura aplicação e de resultados que não se fazem sentir apressadamente.

Os tratamentos da obsessão, por conseguinte, são complexos, impondo alta dose de renúncia e abnegação àqueles que se oferecem e se dedicam a tal mister.

Uma força existe capaz de produzir resultados junto aos perseguidores encarnados ou desencarnados, cons­cientes ou inconscientes: a que se deriva da conduta mo­ral. A princípio, o obsessor dela não se apercebe; no en­tanto, com o decorrer do tempo, os testemunhos de elevação moral que enseja, confirmando a nobreza da fé, que professa como servidor do Cristo, colimam por con­vencer o algoz da elevação de princípios de que se re­vestem os atos do seu doutrinador, terminando por dei­xar livre, muitas vezes, aquele a quem afligia. Além da exemplificação cristã, a oração consegue lenir as úlce­ras morais dos assistidos, conduzindo benesses de har­monia que apaziguam o desequilibrado, reacendendo nele a sede e a necessidade da paz.

Nem sempre, porém, os resultados são imediatos. Para a maioria dos Espíritos, o tempo, conforme se conta na Terra, tem pouca significação. Demoram-se, obstina­dos, com tenacidade incomparável nos propósitos a que se entregam, anos a fio, sem que algo de positivo se con­siga fazer, prosseguindo a tarefa insana, em muitos ca­sos, até mesmo depois da morte... Isto porque do pa­ciente depende a maioria dos resultados nos tratamen­tos da obsessão. Iniciado o programa de recuperação, deve este esforçar-se de imediato para a modificação radical do comportamento, exercitando-se na prática das virtudes cristãs, e, principalmente, moralizando-se. A moralização do enfermo deve ter caráter prioritário, considerando-se que, através de uma renovação íntima bem encetada, ele demonstra para o seu desafeto a eficiên­cia das diretrizes que lhe oferecem como normativa de felicidade.

Merece considerar, neste particular, que o desgaste orgânico e psíquico do médium enfermo, mesmo depois do afastamento do Espírito malévolo, ocasiona um refazimento mais demorado, sendo necessária, às vezes, com­preensivelmente, assistência médica prolongada.

Diante dos esforços que se conjugam entre o as­sistente e o assistido, os Espíritos Superiores interes­sados no progresso da Humanidade oferecem, também, valiosos recursos que constituem elementos salutares e preciosos.

Sem tal amparo, toda incursão que se intente no ministério da desobsessão será improfícua, senão peri­gosa, pelos resultados negativos que apresenta.

Um espírito lidador, devidamente preparado para as experiências de socorro aos obsidiados, é dínamo po­tente que gera energia eletromagnética, que, aplicada mediante os passes, produz distoniaa e desajustes emo­cionais no hóspede indesejável, afastando-o de momento e facultando, assim, ao hospedeiro a libertação mental necessária para assepsiar-se moralmente, reeducando a vontade, meditando em oração, num verdadeiro progra­ma evangélico bem disciplinado que, segura e lentamente, edifica uma cidadela moral de defesa em volta dele mesmo.

Por isso o Mestre, diante de determinados perseguidores desencarnados, afirmou: “contra esta casta de Es­píritos só a oração e o jejum”, e, após atender às aflições de cada atormentado que O buscava, prescrevia, invariável e incisivo: “Não voltes a pecar para que algo pior não te aconteça”.

*

Quando, você escute nos recessos da mente uma idéia torturante que teima por se fixar, interrompendo o curso dos pensamentos; quando constate, imperiosa, atuante força psíquica interferindo nos processos mentais; quan­do verifique a vontade sendo dominada por outra von­tade que parece dominar; quando experimente inquietação crescente, na intimidade mental, sem motivos reais; quando sinta o impacto do desalinho espiritual em franco desenvolvimento, acautele-se, porque você se encontra em processo imperioso e ultriz de obsessão pertinaz.

Transmissão mental de cérebro a cérebro, a obses­são é síndrome alarmante que denuncia enfermidade grave de erradicação difícil.

A princípio se manifesta como inspiração sutil, de­pois intempestivamente, para com o tempo fazer-se in­terferência da mente obsessora na mente encarnada, com vigor que alcança o climax na possessão lamentável.

Idéia negativa que se fixa, campo mental que se en­fraquece, dando ensejo a idéias negativas que virão.

Da mesma forma que as enfermidades orgânicas se manifestam onde há carência, o campo obsessivo se des­loca da mente para o departamento somático onde as im­perfeições morais do pretérito deixaram marcas profun­das no perispírito.

Tabagismo — O fumo, pelos danos que ocasiona ao organismo, é, por isso mesmo, perigo para o corpo e para a mente.

Hábito vicioso, facilita a interferência de mentes de­sencarnadas também viciadas, que se ligam em intercâm­bio obsessivo simples a caminho de dolorosas desar­monias...

Alcoolofilia — Embora necessário para o organis­mo sujeito a climas frios, o álcool em dosagens míni­mas acelera a digestão, facilitando a diurese (5). No entanto, pelas consequências sóçio-morais que acarreta, quando se perverte em viciação criminosa, simples em começo e depois aberrante, é veículo de obsessores cruéis,

(5) Alguns médicos falam sobre a desnecessidade do uso de alcoólicos mesmo nos climas frios. — Nota do Autor espi­ritual.

ensejando, a alcoólatras desencarnados, vampirismo im­piedoso, com consequentes lesões do aparelho fisiopsí­quico.

Sexualidade — Sendo porta de santificação para a vida, altar de preservação da espécie, é, também, veículo de alucinantes manifestações de mentes atormentadas, em estado de angústia pertinaz. Através dele, sintoni­zam consciências desencarnadas em indescritível aflição, mergulhando, em hospedagem violenta nas mentes en­carnadas, para se demorarem em absorções destruido­ras do plasma nervoso, gerando obsessões degradantes...

Estupefacientes — Á frente da ação deprimente de certas drogas que atuam nos centros nervosos, desbor­dam-se os registros da subconsciência, e impressões do pretérito ressurgem, misturadas às frustrações do pre­sente, já em depósito, realizando conúbio desequilibrante, através do qual desencarnados em desespero emocional se locupletam, ligando-se aos atormentados da Terra, conjugando à sua a loucura deles, em possessão sel­vagem...

Alienação mental — Sendo todo alienado, conforme o próprio verbete denuncia, um ausente, a alienação men­tal começa, muitas vezes, quando o espírito retoma o corpo pela reencarnação em forma de limitação puni­tiva ou de corrigenda, ligado a credores dantanho, em marcha inexorável para o aniquilamento da razão, quan­do não se afirma nas linhas do equilíbrio moral...

Glutoneria, maledicência, ira, ciúme, inveja, soberba, avareza, medo, egoísmo, são estradas de acesso para mentes desatreladas do carro somático em tormentosa e vigilante busca na Erraticidade, sedentas de comen­sais, com os quais, em conexão segura, continuam o en­ganoso banquete do prazer fugido...

Por essa razão, a Doutrina Espírita, em convocando o homem ao amor e ao estudo, prescreve como norma de conduta o Evangelho vivo e atuante — nobre Tra­tado de Higiene Mental — através de cujas lições haure o espírito vitalidade e renovação, firmeza e dignidade, ensinando a oração que enseja comunhão com Deus, prescrevendo jejum, ao crime e continência em rela­ção ao erro, num vade-mecum salvador para uma exis­tência sadia na Terra, com as vistas voltadas para uma vida espiritual perfeita.

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O problema da obsessão, sob qualquer aspecto con­siderado, é também problema do próprio obsidiado.

Atormentada por evocações fixadas nas telas sen­síveis do pretérito, a mente encarnada se encontra li­gada à desencarnada, sofrendo, a princípio, sutis dese­quilíbrios que depois se assenhoreiam da organização ce­rebral, gerando deplorável estágio de vampirização, no qual vítima e verdugo se completam em conjugação do­lorosa e prolongada.

A etiologia das obsessões é complexa e profunda, pois que se origina nos processos morais lamentáveis, em que ambos os comparsas da aflição dementante se deixaram consumir pelas vibrações degenerescentes da criminalidade que passou, invariàvelmente, ignorada da coletividade onde viveram como protagonistas do drama ou da tragicomédia em que se consumiram.

Reencontrando-se, porém, sob o impositivo da Lei inexorável da Divina Justiça, que estabelece esteja o verdugo jugulado à vítima, pouco importando o tempo e a indumentária que os distancia ou caracteriza, tem Início o comércio mental, às vezes aos primeiros dias da concepção fetal, para crescer em comunhão acérrima no dia-a-dia da caminhada carnal, quando não precede à própria concepção...

Simples, de fascinação e de subjugação, consoante a classificação do Codificador do Espiritismo, é sempre de difícil extirpação, porqüanto o obsidiado, em si mes­mo, é um enfermo do espírito.

Vivendo a inquietação íntima que, lenta e segura­mente, o desarvora, procede, de início, na vida em comum, como se se encontrasse equilibrado, para, nos ins­tantes de soledade, deixar-se arrastar a estados anôma­los sob as fortes tenazes do perseguidor desencarnado.

Ouvindo a mensagem em caráter telepático transmi­tida pela mente livre, começa por aceder ao apelo que lhe chega, transformando-se, por fim, em diálogos nos quais se deixa vencer pela pertinácia do tenaz vingador.

Justapondo-se sutilmente cérebro a cérebro, mente a mente, vontade dominante sobre vontade que se deixa dominar, órgão a órgão, através do perispírito pelo qual se identifica com o encarnado, a cada cessão feita pelo hospedeiro, mais coercitiva se faz a presença do hóspede, que se transforma em parasita insidioso, estabelecendo, depois, e muitas vezes em definitivo enquanto na luta carnal, a simbiose esdrúxula, em que o poder da fixação da vontade dominadora consegue extinguir a lucidez do dominado, que se deixa apagar...

Em toda obsessão, mesmo nos casos mais simples, o encarnado conduz em si mesmo os fatores predispo­nentes e preponderantes — os débitos morais a resga­tar — que facultam a alienação.

Descuidado quase sempre dos valores morais e es­pirituais — defesas respeitáveis que constroem na alma um baluarte de difícil transposição —, o candidato ao processo obsessivo é irritável, quando não nostálgico, ensejando pelo caráter impressionável o intercâmbio, que também pode começar nos instantes de parcial despren­dimento pelo sono, quando, então, encontrando o desa­feto ou a sua vítima dantanho, sente o espicaçar do remorso ou o remorder da cólera, abrindo as comportas do pensamento aos comunicados que logo advirão, sem que se possa prever quando terminará a obsessão, que pode alongar-se até mesmo depois da morte...

Estabelecido o contacto mental em que o encar­nado registra a interferência do pensamento invasor, soa o sinal alarmante da obsessão em pleno desenvolvi­mento...

Nesse particular, o Espiritismo, e somente ele, por tratar do estudo da (natureza dos Espíritos», possui os anticorpos e sucedâneos eficazes para operar a liberta­ção do enfermo, libertação que, no entanto, muito de­pende do próprio paciente, como em todos os processos patológicos atendidos pelas diversas terapêuticas médicas.

Sendo o obsidiado um calceta, um devedor, é im­prescindível que se disponha ao labor operoso pelo res­gate perante a Consciência Universal, agindo de modo positivo, para atender às sagradas imposições da har­monia estabelecida pelo Excelso legislador.

Muito embora os desejos de refazimento moral por parte do paciente espiritual, é imperioso que a renova­ção íntima com sincero devotamento ao bem lhe confira os títulos do amor e do trabalho, de forma a atestar a sua real modificação em relação à conduta passada, en­sejando ao acompanhante desencarnado, igualmente, a própria iluminação.

Nesse sentido, a interferência do auxílio fraterno, por outros corações afervorados à prática da caridade, é muito valiosa, favorecendo ao desencarnado a oportu­nidade de adquirir conhecimentos através da psicofonia atormentada, na qual pode haurir força e alento novo para aprender, meditar, perdoar, esquecer...

No entanto, tal empreendimento, nos moldes em que se fazem necessários, não é fácil.

Somente poucos Núcleos, dentre os que se dedicam a tal mister — o da desobsessão —, se encontram apa­relhados, tendo-se em vista a tarefa que lhes cabe nos seus quadros complexos...

Na desobsessão, a cirurgia espiritual se faz neces­sária, senão imprescindível, muitas vezes, para que os resultados a colimar sejam conseguidos. Além desses, trabalhos especiais requisitam abnegação e sacrifício dos cooperadores encarnados, com natural doação em larga escala de esforço moral valioso, para a manipulação das condições mínimas psicoterápicas, no recinto do socorro, em favor dos desvairados a atender...

Nesse particular, a prece, igualmente, conforme pre­coniza Allan Kardec, «é o mais poderoso meio de que se dispõe para demover de seus propósitos maléficos o obsessor».

Por isso, em qualquer operação socorrista a que você seja chamado, observe a disposição moral do seu pró­prio espírito e ore, alçando-se a Jesus, a Ele pedindo torná-lo alvo dos Espíritos Puros, por meio dos quais, e somente assim, você poderá oferecer algo em favor de uns e outros: obsessores e obsidiados.

Examine, desse modo, e sonde o mundo íntimo cons­tantemente para que se não surpreenda de um momento para outro com a mente em desalinho, atendendo aos apelos dos desencarnados que o seguem desde ontem, perturbados e infelizes, procurando, enlouquecidos, «com as próprias mãos fazer justiça», transformados em ver­dugos da sua serenidade.

Opere no bem com esforço e perseverança para que o seu exemplo e a sua luta solvam-sarando a dívida-en­fermidade que o assinala, libertando-o da áspera prova antes de você caminhar, aflito, pela senda dolorosa... e purificadora.

Em qualquer circunstância, ao exercício nobre da mediunidade com Jesus, tanto quanto ao sublime labor desenvolvido pelas sessões sérias de desobsessão, com­pete o indeclinável ministério de socorro aos padecentes da obsessão no sentido de modificarem as expressões de dor e angústia que vigem na Terra sofrida dos nossos dias.

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a) Obsessões especiais

Ninguém se equivoque! Obsessores há desencarna­dos, exercendo maléfica ínfluenciação sobre os homens, e encarnados, de mente vigorosa, exercendo pressão de­primente sobre os deambulantes da Erraticidade.

O comércio existente entre os Espíritos e as cria­turas da Terra, em regime de perseguição, é paralelo ao vigente entre os homens e os que perderam a indumen­tária física.

Obsessões especiais também identificamos, que são produzidas por encarnados sobre encarnados.

O pensamento é sempre o dínamo vigoroso que emite ondas e que registra vibrações, em intercâmbio ininterrupto nas diversas faixas que circulam a Terra.

Mentes viciadas e em tormento, não poucas vezes escravas da monoidéia obsessiva, sincronizam com outras mentes desprevenidas e ociosas, gerando pressão devas­tadora.

Aguilhões frequentes perturbam o comportamento de muitas criaturas que se sentem vinculadas ou diri­gidas por fortes constrições nos painéis mentais, inquie­tantes e afligentes... Muitos processos graves de alie­nação mental têm início quando os seres constrangidos por essa força possuidora, ao invés de a repelirem, aca­lentam-lhe os miasmas pertinazes que terminam por as-senhorear-se do campo em que se espalham.

Em casos dessa natureza, o agente opressor influen­cia de tal forma o paciente perturbado que não é raro originar-se o grave problema do vampirismo espiritual por processo de absorção do plasma mental. Quando em parcial desprendimento pelo sono, o espírito parasita busca a sua vítima, irresponsável ou coagida, prosse­guindo no nefando consórcio nessas horas que são re­servadas para edificação espiritual e renovação da pai­sagem orgânica. Produzida a sintonia deletéria mui di­ficilmente aqueles que alojam os pensamentos infelizes conseguem libertar-se.

Nos diversos problemas obsessivos, há que exami­ná-los para selecionar os que procedem do continente da alma encarnada e os que se vinculam aos quadros aflitivos do mundo espiritual.

O ódio tanto quanto o amor desvairado constituem elementos matrizes dessas obsessões especiais. O ódio, pela fixação demorada acerca da vindita, cria um con­dicionamento psíquico que emite ondas em direção se­gura, envolvendo o ser almejado que, se não se encon­tra devidamente amparado nos princípios superiores da vida, capazes de destruírem as ondas invasoras, termina por se deixar algemar. E o amor tresloucado que se con­verte em paixão acerba, devido ao tormento que se im­põe quanto à posse física do objeto requestado, conduz o espírito que está atormentado à visitação, a princípio de alma nos períodos do sono reparador, até criar a in­tercomunicação que degenera em aflitivo quadro de des­gaste orgânico e psíquico, não somente do vampirizado, como também mediante a alucinação do vampirizador.

Em qualquer hipótese, no entanto, as diretivas cla­rificantes da mensagem de Jesus são rotas e veículos de luz libertadora para ensejar a uns e outros, obsidiados e obsessores, os meios de superação.

Nesse sentido, a exortação de Allan Kardec em torno do trabalho é de uma eficácia incomum, porque o tra­balho edificante é mecanismo de oração transcendental e a mente que trabalha situa-se na defensiva. A solida­riedade é como uma usina que produz a força positiva do amor, e, como o amor é a causa motriz do Universo, aquele que se afervora à mecânica da solidariedade sin­toniza com os Instrutores da ordem, que dirigem o Orbe. E a tolerância, que é a manifestação desse mesmo amor em forma de piedade edificante, transforma-se em couraça de luz, vigorosa e maleável, capaz de destruir os petardos do ódio ultriz ou os projéteis do desejo de­sordenado, porqüanto, na tolerância fraternal, se anulam as vibrações negativas desta ou daquela proce­dência.

Assim sendo, a tríade recomendada pelo Egrégio Codificador reflete a ação, a oração e a vigilância pre­conizadas por Jesus — processos edificantes de saúde espiritual e ponte que alça o viandante sofredor da Terra ao planalto redentor das Esferas Espirituais, livre de toda a constrição e angústia.

b) Perante obsessores

Para que você atinja a plenitude da harmonia ín­tima, cultive a oração com carinho e o devotamento com que a mãe atende ao sagrado dever de amamentar o filho.

A prece é uma lâmpada acesa no coração, da­reando os escaninhos da alma.

Encarcerado na indumentária carnal, o espírito tem necessidade de comunhão com Deus através da prece, tanto quanto o corpo necessita de ar puro para pros­seguir na jornada.

Muitos cristãos modernos, todavia, descurando do serviço da prece, justificam a negligência com aparente cansaço, como se a oração não se constituísse igualmente em repouso e refazimento, oferecendo clima de paz e ensejo de renovação interior.

Mente em vibração frequente com outras mentes em vibração produz, nos centros pensantes de quem não está afeito ao cultivo das experiências psíquicas de or­dem superior, lamentáveis processos de obsessão que, lentamente, se transformam em soezes enfermidades que minam o organismo até ao aniquilamento.

A princípio, como mensagem invasora, a influência sobre as telas mentais do incauto é a idéia negativa não percebida. Só mais tarde, quando as impressões vigo­rosas se fixam como panoramas íntimos de difícil eli­minação, é que o invigilante procura o benefício dos me­dicamentos de resultados inócuos.

Atribulado com as necessidades imperiosas do «dia-

-a-dia», o homem desatento deixa-se empolgar pela ins­tabilidade emocional, franqueando as resistências fisio­psíquicas às vergastadas da perturbação espiritual.

Vivemos cercados, na Terra, daqueles que nos pre­cederam na grande jornada da desencarnação.

Em razão disso, somos o que pensamos, permu­tando vibrações que se harmonizam com outras vibra­ções afins.

Como é natural, graças às injunções do renasci­mento, o homem é impelido à depressão ou ao exalta­mento, vinculando-se aos pensamentos vulgares compa­tíveis às circunstâncias do meio, situação e progresso.

Assim, faz-se imprescindível o exercício da prece mental e habitual para fortalecer as fulgurações psíqui­cas que visitam o cérebro, constituindo a vida normal propícia à propagação do pensamento excelso.

Enquanto o homem se descuida da preservação do patrimônio divino em si mesmo, verdugos da paz acer­cam-se da residência carnal, ameaçando-lhe a felicidade.

Endividado para com eles, faz-se mister ajudá-los com os recursos valiosos da virtude, palmilhando as sen­das honradas, mesmo que urzes e cardos espalhados lhe sangrem os pés.

Todos renascemos para libertar-nos do pretérito culposo em cujos empreendimentos fracassamos.

E como a dívida se nutre do devedor, enquanto não nos liberamos do compromisso, ficamos detidos na re­taguarda...

É por esse motivo que o Apóstolo dos gentios nos adverte quanto à «nuvem) que nos acompanha, revelan­do-nos a continuada companhia dos desafetos desencar­nados.

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Exercite-se, assim, no ministério da oração, medi­tando quanto às inadiáveis necessidades de libertação e progresso.

Cultive a bondade, desdobrando os braços da indul­gência de modo a alcançar os que seguem desatentos e infelizes, espalhando desconforto e disseminando a lou­cura.

Renove as disposições íntimas e, quando aquinhoado com os ensejos de falar com esses seres de mente em desalinho, perturbados no Mundo Espiritual, una-se de amor e compreenda-os, ajudando quanto lhe seja pos­sível com a humildade e a renúncia.

E recorde que o Mestre, antes de visitado pelos ver­dugos espirituais das Zonas Trevosas, recolhia-se à ora­ção, recebendo-os com caridade fraternal, como Rei de todos os Espíritos e Senhor do Mundo.

Você não ficará indene à agressão deles...

Resguarde-se, portanto, e, firmado no ideal sublime com que o Espiritismo honra os seus dias, alce-se ao amor, trabalhando infatigàvelmente pelo bem de todos, com o coração no socorro e a mente em Jesus-Cristo, co­mungando com as Esferas Mais Altas, onde você sor­verá forças para vencer todas as agressões de que for vítima, e sentirá que, orando e ajudando, a paz con­tinuará com você.

c) Perante obsidiados

Sempre que há obsessão convém analisar em pro­fundidade a questão da perfeita sintonia que mantém o obsidiado com a entidade obsidente.

Todo problema obsessivo procede sempre da neces­sidade de ambos os espíritos em luta aflitiva, vítima e algoz, criarem condições de superação das próprias infe­rioridades para mudar de clima psíquico, transferindo-se emocionalmente para outras faixas do pensamento.

O obsessor não é somente o instrumento da justiça superior que dele se utiliza, mas também espírito pro­fundamente enfermo e infeliz, carecente da terapêutica do amor e do esclarecimento para sublimação de si mesmo.

O obsidiado, por sua vez, vinculado vigorosamente à retaguarda — assaltado, quase sempre, pelos fantas­mas do remorso inconsciente ou do medo cristalizado, a se manifestarem como complexos de inferioridade e culpa - conduz o fardo das dívidas para necessário reajusta­mento, através do abençoado roteiro carnal.

Quando jungido à expiação inadiável, por acentuada rebeldia em muitos avatares, renasce sob o estigma da emoção torturada, apresentando desde o berço os tra­ços profundos das ligações com os comensais que se lhe imantam em intercâmbio fluídico de consequências im­previsíveis.

Atendido, porém, desde o ventre materno com me­dicação salutar, traz no perispírito as condições próprias à «hospedagem», na ocasião oportuna, que se encarrega de disciplinar o verdugo não esquecido pela vida.

Outras vezes, se durante longa jornada física não reparou o carma por meio de ações edificantes, não raro é surpreendido na ancianidade pela presença incômoda daqueles a quem prejudicou, experimentando enfermida­des complicadas, difíceis de serem identificadas, ou distúrbios psíquicos que se alongarão mesmo após o decesso or­gânico.

Em qualquer hipótese, no entanto, acenda a luz do conhecimento espiritual na mente que esteja em turva­ção, nesse íntimo conturbado.

Nem piedade inoperante.

Nem palavrório sem a tônica do amor.

A terapia espírita, em casos que tais, é a do con­vite ao enfermo para a responsabilidade, conclamando-o a uma auto-análise honesta, de modo a que ele possa romper em definitivo com as imperfeições, reformulando propósitos de saúde moral e mergulhando nos rios cla­ros da meditação para prosseguir revigorado, senda a fora... Diante de um programa de melhoria íntima de­satam-se os liames da vinculação entre os dois espíritos — o encarnado e o desencarnado, e o perturbador, per­cebendo tão sincero esforço, se toca, deixando-se per­mear pelas vibrações emanadas da sua vítima, agora pensando em nova esfera mental.

Só excepcionalmente não se sensibilizam os sicários da mente melhorada. Nesse caso, a palavra esclarece­dora do evangelizador nos serviços especializados da de­sobsessão, os círculos de prece, os agrupamentos da ca­ridade fraternal, sob carinhosa e sábia administração de Instrutores Abnegados, se encarregam de consolidar ou libertar em definitivo os que antes se batiam nas liças do duelo psíquico, ou físico quando a constrição obsi­dente é dirigida à organização somática.

Quando se observam os sinais externos dessa ano­malia, já se encontra instalada a afecção dolorosa.

Assim considerando, use sempre a Doutrina Espí­rita como medida profilática, mesmo porque, se até hoje não foi afetada a sua organização fisiopsíquica, isto não isenta de, no futuro — tendo em vista que, apren­dendo e refazendo lições como é do programa da reencarnação para nós todos —, o seu «ontem» poder re­pontar rigoroso, «hoje» ou «amanhã», chamando-o ao ajuste de contas com a consciência cósmica que nos di­rige.

Perante obsidiados aplique a paciência e a compre­ensão, a caridade da boa palavra e do passe, o gesto de simpatia e cordialidade; todavia, a pretexto de bondade não concorde com o erro a que ele se afervora, nem com a preguiça mental em que se compraz ou mesmo com a rebeldia constante em que se encarcera. Ajude-o quanto possa; no entanto, insista para que ele se ajude, con­tribuindo para com a ascensão do seu próprio espírito auxiliar aquele outro ser que, ligado a ele por imposi­ção da justiça divina, tem imperiosa necessidade de evo­luir também.

d) Porta de luz

Imagine um dédalo em sombras, imensurável, hór­rido, onde se demoram emanações morbíficas provenien­tes de células em disjunção; charco miasmático carre­gado de lodo instável, tendo por céu nimbos borrascosos sacudidos por descargas elétricas; paul sombrio que aga­salha batráquios e ofídios, répteis e toda a fauna as­querosa; região varrida por ventos ululantes, longe da esperança onde uma tênue e célere perspectiva de paz não tremelha...

Considere-se relegado a esse labirinto nefasto, lon­ge de qualquer amparo, a mergulhar a mente em febre nos abismos do remorso que, fantasma incansável, as­sume proporçôes inimagináveis; sob o estrugir de recor­dações vigorosas das quais não se consegue furtar, res­sumando erros propositais e casuais com que se distan­ciou da paz; malgrado necessite de esperança ou refa­zimento, silêncio para meditar ou uma aragem fresca para renovação, escute, inerme, outros companheiros de desdita em imprecaçôes e lamentos, dominados pela pró­pria sandice; onde a razão se fez sicário impiedoso, sem entranhas, e se encarrega, ela mesma, de justiçar com azorragues em forma de cilícios que lhe são involuntá­rios; sem equilíbrio para uma evocação suave, um pai­nel de ternura, amor ou prece...

Avalie o significado de uma porta libertadora, que sübitamente se abrisse, convidativa, banhada que fosse de fraca mas significativa luz, através da qual, trans­posta a mínima distância entre você e ela, poderia ouvir consolo, chorar sem desespero, lenindo as próprias an­gústias, e repousar; além da qual, doce canto embalante ciciasse uma melopeia conhecida ou uma berceuse recon­fortante; após vencida, revisse paisagem esquecida e agradável e, dilatados os ouvidos, escutasse a pronún­cia de um terno nome, em relação a você: irmão! —depois do que, roteiro e medicamento chegassem salva­dores, inaugurando experiência feliz, transpassada a ex­piação inominável...

Você bendiria, certamente, mil vezes, esse portal de acesso.

Tal região, não muito longe de nós, entre os de­sencarnados e os encarnados, são os vales purgatoriais para os que transpõem o umbral da morte narcotiza­dos pela insânia e pelo crime.

Tal porta fascinante é a mediunidade socorrista de que você se encontra investido na tessitura física, ao alcance de um pouco de disciplina e abnegação.

Examinando quanto você gostaria de receber auxí­lio se ali estivesse, pense nos que lá estão e não demore mais em discussões inócuas ou em desculpismo injusti­ficável.

Corra ao socorro deles, os nossos companheiros na dor, iludidos em si mesmos, e abra-lhes a porta de luz da oportunidade consoladora.

Mergulhe o pensamento nos exórdios do amor do Cristo e, mesmo sofrendo, atenda a estes que sofrem mais.

Não lhe perguntarão quem você é, donde vem, como se apresenta, pois não lhes importa; antes, sim, dese­jarão saber o que você tem em nome de Jesus para lhes dar. Compreenderão mais tarde a excelência da sua fé, o valor do seu devotamento, a expressão da sua bon­dade, a extensão das suas necessidades e também es­tenderão braços na direção do seu espírito.

Agora, necessitam de paz e libertação, e Jesus pre­cisa de você para tal mister.

Não lhes atrase o socorro, nem demore sua doação. Possivelmente você já esteve ali antes, talvez seja ne­cessário estagiar por lá..

Se você conceber que o seu esforço é muito, para os ajudar, mentalize Jesus transferindo-se dos Cimos da Vida para demorar-se no Vale de Sombras por vários anos e prosseguir até agora conosco...

O Espiritismo que lhe corrige a mediunidade em nome do Cristo — Espiritismo que lhe consola e escla­rece — ensina-lhe que felicidade é moeda cujo sonido somente produz festa íntima quando retorna daquele a quem se oferece e vem na direção do doador.

Doando-se, em silêncio, longe dos que aplaudem fa­culdades mediúnicas, coloque suas possibilidades a be­nefício dos sofredores, nas sessões especializadas, e gran­jeará um crédito de bênçãos que lhe ensejará, também, liberdade e iluminação, à semelhança dAquele que, Mé­dium do Pai, se fez o doce irmão de nós todos, milê­nios a fora.

e) Reuniões sérias

As reuniões espíritas de qualquer natureza devem revestir-se do caráter elevado da seriedade.

«Não sendo os Espíritos seres outros que não as almas dos homens» que viveram na Terra, não podem eles isentar-se da comunhão imperiosa, resultante das leis da afinidade. Nesse particular, convém não esque­cer que os Espíritos desencarnados, pelo simples fato de estarem despidos da indumentária carnal, não são melhores nem piores que os homens, mas continuação destes, plasmados pelo que cultivaram, fizeram e se apra­zeram.

Elegendo como santuário qualquer lugar onde se vivam as lições incorruptíveis de Jesus, o Espiritismo ensina que o êxito das sessões se encontra na depen­dência dos fatores-objetivos que as produzem, das pes­soas que as compõem e do programa estabelecido.

Como requisitos essenciais para uma reunião séria consideremos, pois, as intenções, o ambiente, os mem­bros componentes, os médiuns, os doutrinadores.

As intenções, fundamentadas nos preceitos evangé­licos do amor e da caridade, do estudo e da aprendiza­gem, são as que realmente atraem os Espíritos Supe­riores, sem cuja contribuição valiosa os resultados decaem para a frivolidade, a monotonia e não raro para a obsessão.

Não sendo apenas o de construção material, o am­biente deve ser elaborado e mantido por meio da lei­tura edificante e da oração, debatendo-se os princípios morais capazes de criar uma atmosfera pacificadora, otimista e refazente.

Os membros componentes devem esforçar-se por manter os requisitos mínimos de conseguirem instruir-se, elevando-se moral, mental e espiritualmente, através do devotamento contínuo, incessante, para a fixação da idéia espírita de elevação que lhes deve tornar pauta de conduta diária.

Os médiuns, semelhantemente aos demais participan­tes, são convidados ao policiamento interior das emoções, dos pensamentos, das palavras e da conduta, para se tornarem maleáveis às instruções de que porventura po­derão ser instrumento. A faculdade mediúnica não os isenta das responsabilidades morais imprescindíveis àprópria renovação e esclarecimento, pois que, mais fa­cilmente, os Espíritos Puros se aprazem de utilizar aque­les instrumentos dóceis e esclarecidos, capazes de lhes facilitarem as tarefas a que se propõem.

Os doutrinadores têm igualmente a obrigação de se evangelizar, estudando a Doutrina e capacitando-se para entender e colaborar nos diversos misteres do ser­viço em elaboração. Na mesma linha de deveres dos médiuns, não se podem descurar do problema psíquico da sintonia, a fim de estabelecerem contacto com os Di­retores do Plano Espiritual que supervisionam os em­preendimentos de tal natureza.

As reuniões espíritas são compromissos graves as­sumidos perante a consciência de cada um, regulamen­tados pelo esforço, pontualidade, sacrifício e perseve­rança dos seus membros.

Somente áqueles que sabem perseverar, sem poster­garem o trabalho de edificação interior, se fazem cre­dores da assistência dos Espíritos interessados na se­menteira da esperança e da felicidade na Terra — pro­grama sublime presidido por Jesus, das Altas Esferas.

Nas reuniões sérias, os seus membros não podem compactuar com a negligência aos deveres estabeleci­dos em prol da ordem geral e da harmonia, para que a infiltração dos Espíritos infelizes não as transformem em celeiros de balbúrdia, em perfeita conexão com a desordem e o caos.

Invariàvelmente, as reuniões sérias de estudo ou so­corro mediúnico se convertem em educandários para desencarnados que são trazidos por seus mentores. São atraídos pela própria curiosidade ou interessados na sua destruição...

Sendo a sociedade do Mundo Espiritual constituída daqueles que viveram na Terra, ou como aí, não faltam os ociosos, os de mente viciada, os parasitas, os perse­guidores inveterados, os obsessores cruéis, os infelizes de todo o jaez que deambulam solitários ou em mago­tes, isolados em si mesmos ou em colônias perniciosas, buscando presas irresponsáveis e inconscientes para o comércio da vampirização...

Conseguintemente, necessárias se fazem muita vi­gilância e observação, mesmo porque grande parte desses visitadores é trazida para que o exemplo dos encarnados lhes constitua lição viva de despertamento, mudando-lhes a direção mental e interessando-os na solução dos afli­gentes problemas que os infelicitam e maceram, mesmo quando disso não se apercebem ou fingem não os expe­rimentar...

Para que uma sessão espírita possa interessar os Instrutores Espirituais, não pode abstrair do elevado pa­drão moral de que se devem revestir todos os participantes, pois que se o cenho carregado e sisudo na Terra pode apresentar um homem como sendo de bem, em ver­dade, só a exteriorização dos seus fluídos — isto é, a vibração do seu próprio espírito, que é resultante dos atos morais praticados — o distingue das diversas cria­turas, oferecendo material específico aos Instrutores De­sencarnados para as múltiplas operações que se reali­zam nos abençoados núcleos espiritistas sérios, que têm em vista o santificante programa da desobsessão espi­ritual.

f) Em oração

Senhor: — ensina-nos a respeitar a força do di­reito alheio na estrada do nosso dever.

Ante as vicissitudes do caminho, recorda-nos de que no supremo sacrifício da Cruz, entre o escárnio da mul­tidão e o desprezo da Lei, erigiste um monumento à jus­tiça, na grandeza do amor.

Ajuda-nos, assim, a esquecer todo o mal, cultivando a árvore generosa do perdão.

Estimula-nos à claridade do bem sem limites, para que o nosso entusiasmo na fé não seja igual a ligeiro meteoro riscando o céu de nossas esperanças, para apa­gar-se depois...

Concede-nos a felicidade ímpar de caminhar na tri­lha do auxílio porque, só aí, através do socorro aos nos­sos irmãos, aprendemos a cultivar a própria felicidade.

Tu que nos ensinaste sem palavras no testemunho glorioso da crucificação, ajuda-nos a desculpar incessan­temente, trabalhando dentro de nós mesmos pela trans­formação do nosso espírito, na sucessão do tempo, dia a dia, noite a noite, a fim de que, lapidado, possamos apresentá-lo a Ti no termo da nossa jornada.

Ensina-nos a enxergar a Tua Ressurreição subli­me, mas permite também que recordemos o suplício da Tua solidão, a coroa de espinhos, a cruz infamante e o silêncio tumular que a precederam, como lições incom­paráveis para nós, na hora do sofrimento, quando nos chegue.

Favorece-nos com a segurança da ascensão aos Altos Cimos, porém não nos deixes olvidar que após a jor­nada silenciosa durante quarenta dias e quarenta noi­tes, entre jejum e meditação, experimentaste a pertur­bação do mundo e dos homens, em tentações implacá­veis que, naturalmente, atravessarão também nossos ca­minhos...

Dá-nos a certeza do Reino dos Céus, todavia não nos deixes esquecer que na Terra, por enquanto, não há lugar para os que te servem, tanto quanto não o houve para Ti mesmo, auxiliando-nos, entretanto, a viver no mundo, até à conclusão da nossa tarefa redentora.

Ajuda-nos, Divino Companheiro, a pisar os espinhos sem reclamação, vencendo as dificuldades sem queixas, porque é vivendo nobremente que fazemos jus a uma desencarnação honrada como pórtico de uma ressurrei­ção gloriosa.

Senhor Jesus, ensina-nos a perdoar, ajudando-nos a esquecer todo o mal, para sermos dignos de Ti!

*

Não nos animaram a presunção e a veleidade de examinar, nos estudos do presente livro, as enfermida­des psíquicas clássicas, tais como, as esquizofrenias e as parafrenias, as psicoses e neuroses, as oligofrenias e a paranóia de multíplice manifestação, tanto quanto não cuidaremos das personalidades psicopáticas, as dos de­mentes senis e outras de que cuida a Psiquiatria, embora sem o conhecimento das causas anteriores das mes­mas e que dizem respeito, invariàvelmente, às vidas pre­gressas de tais pacientes.

Cuidaremos de convidar os interessados nos pro­blemas da obsessão e no ministério da desobsessão ao estudo paciente do Espiritismo, apresentando algumas experiências e conotações nossas ao valioso material já existente, embora ainda não suficiente para a rápida equação de tão importante questão.

Não pretendemos elaborar um tratado para a análise e a prática da desobsessão espiritual. Estes são apontamentos singelos e despretenciosos, mediante os quais trazemos o nosso pouco de fermento na espe­rança de conseguir levedar parte da massa», con­forme a autorizada palavra de Nosso Senhor Jesus-Cristo, a Quem rogamos abençoar-nos o esforço e nos so­correr pela rota da própria iluminação.

1

A família Soares

Terminados a leitura evangélica e o competente co­mentário tecido em breves considerações, o dirigente da reunião proferiu expressiva oração, através da qual, sensivelmente emocionado, rogou o auxílio das Esferas Su­periores para a tarefa da desobsessão.

Aqueles trabalhos faziam parte do programa de so­corro a que se afervorava, havia duas décadas, o irmão José Petitinga.

No santuário em que se desenvolviam os labores fraternais, o odor da caridade sempre impregnava os sofredores de ambos os lados da vida, que ali aporta­vam angustiados e afligidos.

Incorporando, o Benfeitor Saturnino ofereceu as pa­lavras de consoladora confiança com que habitualmente traçava as ligeiras diretrizes no ato da abertura da ses­são, atestando o concurso eficiente dos Obreiros da Es­piritualidade, e, dirigindo-se à irmã Amália, arrancou-a das cogitações dolorosas que a constringiam.

Experimentando singular amargura, a jovem tinha o semblante sulcado de dor e o espírito singularmente trucidado...

Através de expressões carinhosas e alentadoras, o Instrutor Espiritual esclareceu que fora programada para aquela noite a visita de indigitado perseguidor, vinculado pelo pretérito delituoso à família Soares, ali represen­tada, naquele momento, pela moçoila comovida.

— Desde às vésperas — explicou, solícito —, fora providenciado o socorro a Mariana, mais intimamente afinada com o visitante, que logo se utilizaria da me­diunidade psicofônica, em incorporação atormentada, tendo em vista as circunstâncias do drama em anda­mento, que poderia colimar numa tragédia irremissível.

Para consubstanciar o labor da noite — prosseguiu, gentil —, levaram-se em conta os títulos de amor gran­jeados por Amália e sua genitora entre os Dirigentes Espirituais da Casa.

Em verdade, Dona Rosa desde há muito experimen­tava pesado fardo de aflições sem nome, que a esma­gava lentamente. Muito jovem consorciara-se com ator­mentado moço que, invigilante e descuidado dos nobres deveres da família, permanecia ligado psiquicamente a vigorosos sicários desencarnados que o perseguiam sem trégua...

Cobradores impiedosos seduziram-no desde cedo, le­vando-o a desenfreada jogatina, premeditando, soezes, um dia assassiná-lo, através de uma sortida policial no antro em que se refugiava para o cultivo da viciação danosa com outros não menos atormentados comparsas, programa esse em andamento...

Embora as dificuldades financeiras a que se via ata­do, na condição de genitor de seis filhos necessitados de assistência e melhor orientação, deixava-se ficar, des­cuidado, noites a fio entre a expectativa de um lucro imaginoso e ilícito e a perspectiva de uma fortuna impossível e desonesta. Enquanto minguavam os recursos provenientes de modesta aposentadoria, não se esforçava ele por completar as poucas moedas com expedientes extras ou exercitando outra profissão.

Tal desequilíbrio do Sr. Mateus se manifestara des­de muito cedo, em plena juventude. Todavia, com o re­nascimento de Mariana, na condição de sua filha, es­tranha recordação como que desatrelara reminiscências semi-apagadas que o venciam implacavelmente, fazendo irrespirável a atmosfera do lar, nos breves períodos de tempo que ali passava, agravando-se, à medida que a menina crescia, e que ora culminava em ódio surdo e recíproco, a explodir com frequência crescente, em amea­ças infelizes que chegavam a graves cometimentos de parte a parte.

A mãe aflita desde algum tempo se iniciara nas li­ções consoladoras do Espiritismo, conduzindo Amélia, a mais dócil dos filhos, às fontes generosas e cristalinas do Evangelho Restaurado.

Nos ensinamentos confortadores em torno das leis de causa e efeito, as duas encontravam respostas leni­ficadoras para as ulcerações morais que dilaceravam o lar amargurado, sustentando-as nas lutas de todos os dias.

Afervoradas e humildes participavam dos serviços de socorro aos desencarnados na União Espírita Baiana sob a carinhosa direção do irmão Petitinga, que lhes minorava, também, as aflições, com mãos generosas e cristãs.

Naquela noite, todavia, Dona Rosa fora constran­gida a ficar em casa, crucificada por superlativa ago­nia, aguardando o retorno de Mariana, que após lamen­tavel atrito com o pai obsidiado se evadira, rebelde, entre azedas ameaças e injustificadas atitudes, aban­donando o calor doméstico, desfigurada pelo ódio e pela insensatez, embora os dezesseis anos de idade não com­pletos.

Orando, e tendo entregue as dores ao Senhor, a mãe se deixara ficar no lar, enquanto Amélia acorrera, sofrida e preocupada, ao serviço da caridade, sufocando as próprias lágrimas, dominada por incoercíveis pressá­gios. O Templo Espírita de comunhão com o Alto era a sua esfera de luz, abençoado reduto de consolo, no qual hauria energias para prosseguir através dos péla­gos das provações rudes, conquanto necessárias ao pró­prio burilamento.

Feito o preâmbulo elucidativo em ligeiras nótulas, o instrutor solicitou a indispensável concentração, desli­gando-se do médium Morais, por cuja faculdade psico­fônica deveria comunicar-se o inditoso perseguidor fa­miliar.

Morais era dedicado médium de psicofonia incons­ciente, que se oferecia com expressivo carinho para o socorro aos desencarnados. Aliara à mediunidade bem disciplinada excelente disposição ao trabalho da cari­dade entre os atormentados da Terra. Aprendera com os Benfeitores Espirituais que o mais eficiente caminho para o aprimoramento das faculdades mediúnicas ainda é o exercício constante das qualidades morais, através da prática do bem indiscriminado e incessante. Assim, educara-se na discrição ante as dificuldades do próximo e transformara-se em cireneu de muitos seres caídos na luta. Por essa razão, havia nele os requisitos indispen­sáveis ao exercício salutar da mediunidade, especialmente quando Saturnino trazia à doutrinação Entidades infe­lizes ou perversas.

De semblante transfigurado em máscara de esga­res agônicos, o médium incorporou atro ser que, entre blasfêmias e expressões vulgares, exprobrava o cometi­mento de o trazerem ali contra a sua vontade...

— Farei justiça — exclamou, espumejante. — A justiça sairá das minhas próprias mãos. Judeu Asavero, tenho jornadeado sem descanso, após traído, a sorver essa imensa e intérmina taça de fel e fezes que me en­venena sem aniquilar-me...

Envolvido carinhosamente pelos fluídos de Satur­nino, o doutrinador, particularmente emocionado, dirigiu-se ao comunicante, falando-lhe da renúncia e do perdão como bases para a edificação da felicidade.

— O ódio — asseverou, Petitinga, bondoso — ter­mina por vencer os que o cultivam. Tóxico letal tem sua fonte na rebeldia que o vitaliza até que o amor, nas bases em que o vivia Jesus, lhe extinga a nascente.

— Nunca perdoarei! — explodiu em atroada cons­trangedora. — O perdão é fraqueza inominavel! Para os que encontraram na vingança a única razão de exis­tir, a simples idéia do perdão é qual raio fulminante, que carboniza... Nunca perdoarei, mesmo que destruin­do seja destruído...

— Não, meu irmão — redargüiu, pausado, o ins­pirado doutrinador. — Nada se acaba. A vida não ces­sa. Encerra-se um ciclo numa faixa de evolução para reaparecer noutra e desenvolver-se mais além. Destruir é mudar a aparência de uma forma para renascer nou­tra. Embora ignorando as suas razões, as quais, toda­via, não justificam o tornar-se infeliz, distribuindo ran­cor e trucidando com tenazes de vindita aqueles que se situam sob o comando da sua mente desarvorada, encorajamo-nos a lembrá-lo da compaixão. Recorde-se daqueles que serão vítimas da sua loucura, quando de­sejando ferir o seu desafeto irá, também, por sua vez, dilacerar os sentimentos dos que amam o seu antigo ofensor... Não lhe comovem as lágrimas, as vigílias intérminas nem a vida trucidada de uma mãe por expec­tativas dolorosas? Teria você colocado no peito uma fornalha ardente em substituição ao coração que ama?

— O amor — refutou, congestionado — é poesia para os que se comprazem nas ilusões do corpo...

— O ódio, porém — considerou o evangelizador —, é nuvem que tolda a visão da paisagem, entenebrecen­do-a. Fantasma truanesco entorpece as mais altas as­pirações do espírito humano, conduzindo-o aos sombrios e intérminos corredores da loucura, sem paz nem lume... Só o amor derrama sol nas almas, penetrando de espe­ranças os seres. Experimente amar e, de pronto, per­ceberá diminuir a própria dor.

— Amar? — exclamou, alucinado — Amor? Como amar se não poderei perdoar nunca, pois que jamais conseguirei esquecer todo o mal que me fizeram os trai­dores desalmados, cuja memória abjuro! A dor que me crucia fez-me perder a noção do tempo e a realidade da vida. Meu viver transformou-se apenas no intérmino buscar daqueles que me fulminaram, impiedosos, sem me terem destruído, o que teria sido bênção em relação ao que padeço. Certamente que eles esqueceram, sim... Eu, porém, nunca esqueci, jamais esquecerei!... Desde que se acumpliciaram os dois para aniquilar-me — o que não conseguiram, sem dúvida —, que a minha vida foi destroçada para sempre. A morte, que eu esperava ser um lenitivo, quando fugi com o espírito pisoteado de vergonha e dor, em nefando suicídio, ao invés de fa­zer-me desintegrar a consciência, mais ativou-a... Te­nho chorado, e o pranto se transforma em aço derre­tido, escaldante, rasgando-me a face. Quando gritava, minha voz era recebida com doestes e zombarias inomináveis por mil seres que me perseguiam... E a dor que me despedaçava foi adicionada à dor acerba do su­plício que me impusera para fugir... Morri sem mor­rer... E enquanto a vermina me penetrava o recesso do espírito fustigado por mil dores, eles, os meus algozes, gozavam, fruíam a juventude... Como se eu esti­vesse dirigido por duendes sem entranhas, era arrasta­do, em alucinada desesperação, para junto deles, de modo a vê-los, acompanhá-los, ouvi-los, e se me lan­çava sobre ambos e lhes gritava a minha infinita des­dita, os seus ouvidos não me escutavam... Oh!, nunca poderei esquecer, perdoar, amar, nunca, nunca!...

O irmão Saturnino, semi-incorporado no venerando doutrinador, ergueu-o, e, dirigindo-se ao perturbador­-perturbado, em oração, começou a aplicar-lhe passes, de modo a diminuir-lhe as agudíssimas exulcerações e torturas.

Branda claridade envolveu o comunicante, enquan­to as mãos de Saturnino, justapostas às de Petitinga, como depósitos de radiosa energia, que também se exte­riorizava do plexo cardíaco do passista, lentamente pe­netrou os centros de força do desencarnado, como a anestesiar-lhe a organização perispiritual em desalinho.

Com voz compassiva, o diretor dos trabalhos come­çou a exortar:

Durma, durma, meu irmão... O sono far-lhe-á bem. Procure tudo esquecer para somente lembrar-se de que hoje é novo dia... Durma, durma, durma...

Banhado pela energia balsamizante e dominado pe­las vibrações hipnóticas que fluíam de Saturnino atra­vés de Petitinga, o perseguidor foi vencido por estra­nho torpor, sendo desligado do médium por devotados assessores desencarnados, que cooperavam no serviço de iluminação.

Prosseguindo os trabalhos de orientação, tendo em vista outros sofredores desencarnados e antes do térmi­no da reunião, o Mentor voltou a incorporar-se para es­clarecer que, graças às bênçãos do Senhor, a primeira etapa do programa de assistência à família Soares, na­quela noite, fora coroada de êxito. Exortava todos àoração intercessória, em benefício dos implicados naque­le processo, prometendo voltar ao problema na próxima oportunidade.

Proferida a oração gratulatória, foi encerrada a reunião.­

2

Socorro espiritual

Chegando ao lar, Amália conduzia o espírito balsa­mizado e toda ela era alegria que se desdobrava em es­peranças. A presença do antigo inimigo desencarnado que se comprazia em afligir os seus familiares, presença essa através da interferência carinhosa do Benfeitor Espiritual, prenunciava bonanças em relação ao futuro do seu lar. Era como se uma aragem houvesse de repente passado, deixando a agradavel recordação do seu ameno frescor. Pelo caminho, fitando o firmamento, tivera a impressão de que na transparência da noite leve os as­tros, luzindo ao longe, acenassem promessas de paz, em salmodias imateriais que pareciam poemas de amor em tom de confiança nos divinos desígnios.

Dona Rosa, em vigília, marcada pelos atrozes so­frimentos daquelas últimas horas, recebeu a filha trans­mitindo a notícia do retorno de Mariana, com os olhos umedecidos. A moça atormentada voltara a casa, atra­vés das mãos generosas de Dona Aurelina, a velha ex­-servidora doméstica, que era afeiçoada da família.

Sem saber o que ocorrera no Centro Espírita, a ge­nitora tinha a certeza, porém, de que a interferência do Alto, em forma de socorro inesperado, era a respon­sável pelo imprevisto acontecimento. Não se cansava de louvar o Altíssimo, enquanto a filha aturdida, que chegara com expressão de demência a desfigurar-lhe o rosto, parecia agora repousar no leito modesto e asseado.

Enquanto Amália fazia ligeiro repasto, fez breve resumo dos sucessos da noite, e com luminoso brilho nos olhos reportou-se ao ministério do esclarecimento, transcorrido minutos atrás entre o Diretor Espiritual e ó encarniçado perseguidor.

Em seguida, e antes de se recolherem ao neces­sário repouso, as duas buscaram o benefício da oração, envolvendo o Sr. Mateus que se demorava fora de casa, atado à viciação que o atormentava, roubando ao corpo combalido as horas irrecuperáveis de refazimento das fadigas do dia, em vibrações de amor e paz...

Ocorrera, porém, que, antes mesmo de iniciada a reunião socorrista, Saturnino expedira Ambrósio, efi­ciente cooperador dos trabalhos de desobsessão, para que este encaminhasse Mariana de volta à família. Infor­mado, no próprio recinto doméstico, por entidades ali residentes, quanto ao paradeiro da jovem, não lhe foi difícil encontrá-la em Praça ajardinada, no centro da cidade. Percebeu, no entanto, de imediato, que a moça se encontrava visivelmente perturbada por Entidades le­vianas, encarregadas de darem prosseguimento ao clima da obsessão, embora a ausência do verdugo responsá­vel pela enfermidade em curso.

Aturdida desde o momento do incidente com o ge­nitor, Mariana procurou as ruas da cidade, tendo em mente a idéia de encontrar em Adalberto, o rapaz com que se afinava sentimentalmente, o braço amigo de am­paro, de modo a fugir do lar que a infelicitava. Surda ira a compelia a tomar qualquer atitude, conquanto pu­desse libertar-se do jugo paterno...

O namorado, que trabalhava no comércio, somente à noite, após o serviço, poderia escutá-la com a neces­sária calma para tomar as providências que o problema exigia. Assim, combinaram o encontro para as 20 ho­ras, no local em que agora ela estava.

Supunha amar o jovem, embora reconhecendo nele os desvios habituais naqueles que são indiferentes ao dever e à dignidade. A mãe, ela o sabia, desaprovava aquela afeição, por constatar que ele era corrompido e leviano, a ponto de viver experiências comprometedo­ras... Dona Rosa sentia, quase por instinto, que aquele homem, ao invés de amar a sua filha, ainda não pre­parada para as investiduras de um lar, como sem o ne­cessário equilíbrio para acautelar-se das ciladas das emoções em desgoverno, desejava arrancá-la do carinho defensivo da família para arrojá-la nos desfiladeiros da miséria moral...

Ela, porém, o amava ou pelo menos supunha amá-lo. Aguardava-o com tormentosa expectativa.

Como primeira providência, o vigilante mensageiro procurou desviar Adalberto de buscar a sua enamorada, propiciando-lhe mal-estar súbito, através da aplicação de fluídos no centro cardíaco, acentuando repentina indi­gestão. Logo após demandou o lar de Dona Aurelina que, pelos laços de afeição à menina e aos seus, pode­ria ser-lhe fácil instrumento para os fins do projeto em andamento.

Envolvendo a velha servidora em seus fluídos, pro­curou falar-lhe com imensa ternura e forte vibração. A respeitável senhora não o escutou através dos ouvidos materiais. No entanto, em forma de intuição, sentiu imperiosa necessidade de demandar a rua, qual esti­vesse teleguiada, até à moça que, a sós, esperava o com­panheiro.

Vendo-a desfigurada, a bondosa senhora acercou-Se, assustada, e cingindo-a num abraço de espontânea afe­tividade, envolveu-a nos fluídos de Âmbrósio, incon­cientemente, estabelecendo sensível permuta de energias, de modo a arrancá-la dos liames dos Espíritos ociosos que a vitimavam...

Percebendo-a quase anestesiada, de olhar vago, a senhora, humilde e nobre, inquiriu-a:

— Que faz a menina por estas bandas? Parece-me doente. Que se passa, menina Mariana?

E como não colhesse de imediato qualquer resposta, voltou à indagação:

— Que acontece, menina? Alguém em casa está mal? Desperte, minha filha!

E sacudindo-a com carinho, encostou a cabeça da jovem no seu ombro e dispôs-se a escutá-la com tal na­turalidade que a enferma, como que retornando momen­taneamente à realidade e vendo-se envolta no carinho de que necessitava, relatou entre soluços os maus su­cessos do dia, informando do seu desejo de nunca mais retornar ao lar...

A delicada interlocutora escutou-a com serenidade e, seguramente inspirada pelo Benfeitor, concitou-a a irem à sua própria casa, onde ela providenciaria uma refeição refazente, incumbindo-se de informar a Adal­berto sobre a mudança do local de encontro.

Simultaneamente Ambrósio exprobrou com energia o comportamento dos Espíritos viciosos ali presentes, libertando a atormentada jovem das suas forças dele­térias e deprimentes.

Sem quase opor resistência, Mariana aceitou o al­vitre, e amparada generosamente por Dona Aurelina de­mandou o domicílio daquela servidora.

Feita ligeira refeição, ainda conduzida pelo assis­tente de Saturnino, Dona Aurelina falou a Mariana das preocupações maternas e suas aflições, do perigo que uma jovem poderia experimentar nas mãos de um moço apaixonado e sem o devido critério moral, das conseqüências que poderiam advir de um gesto impensado, e, como se falasse à própria filha, com lágrimas, conse­guiu convencê-la a retornar a casa, enquanto meditava planos para o futuro, filtrando, assim, o pensamento da Entidade Desencarnada.

Sentindo-se, imensamente cansada e dominada pela branda energia da amiga idosa, a jovem aceitou a su­gestão e, dessa forma, Dona Aurelina se transformou no anjo da alegria para a agoniada genitora que aguar­dava a filha de volta.

Concluída a tarefa, Anbrósio retornou ao trabalho espiritual a fim de apresentar a Saturnino os resultados da investidura.

Os trabalhos se aproximavam do encerramento.

Compreensivelmente jubiloso, o Mentor Espiritual expressou sua gratidão ao Assistente e informou que logo mais, quando todos se recolhessem ao leito, teria continuação a tarefa da desobsessão, quando ele preten­dia retomar as diretrizes do trabalho, convocando di­versos dos envolvidos no processo perturbador e os mem­bros da Casa para um encontro fora do corpo, quando as bênçãos do sono conseguissem libertar parcialmente alguns dos implicados...

Ambrósio compreendeu a magnitude do serviço e postou-se aguardando instruções.

A noite ia avançada quando Saturnino trouxe ao re­cinto das sessões, em parcial desdobramento, os irmãos Petitinga, Dona Rosa, as filhas Amália e Mariana e nós. O venerando trabalhador da Seara Espírita, habituado às incursões no Mundo Espiritual, embora ainda vin­culado à roupagem carnal, apresentava-se calmo e lú­cido, perfeitamente familiarizado com experiências de tal natureza. Dona Rosa e as filhas, no entanto, pare­ciam atemorizadas na sua semilucidez, embora o amparo vigoroso do Instrutor que delas cuidava com carinho pa­ternal. (*)

O assistente Ambrósio e os demais cooperadores de­sencarnados se encarregavam de localizar os recém-che­gados na sala de trabalhos, enquanto o Benfeitor Sa­turnino cuidava das providências finais. Concluídas as tarefas preliminares, deu entrada no recinto, em sono hipnótico, carinhosamente trazida por dois enfermeiros espirituais, a Entidade que se comunicara horas antes.

Embora o ressonar agitado, o visitante refletia a angústia em que se debatia, deixando ver as marcas profundas em ulcerações na região da glote, que se apre­sentava purulenta, assinalando os danos cruéis do au­tocídio injustificável. Localizado em leito próximo, continuou assistido pelos que o trouxeram.

Logo, porém, que Mariana o viu, conquanto não o pudesse identificar de pronto, começou a experimentar significativa inquietude que se foi transformando em desespero

(*) “401. Durante o sono, a alma repousa como o corpo?

“Não, o Espírito jamais está inativo. Durante o sono, afrou­xam-se os laços que o prendem ao corpo e, não precisando este então da sua presença, ele se lança pelo espaço e entra em re­lação mais direta com os outros Espíritos.”

“402. Como podemos Julgar da liberdade do Espírito du­rante o sono?

“Pelos sonhos. Quando o corpo repousa, acredita-o, tem o Espírito mais faculdades do que no estado de vigília. Lembra-se do passado e algumas vezes prevê o futuro. Adquire maior po­tencialidade e pode pôr-se em comunicação com os demais Es­pírintos, quer deste mundo, quer do outro. Dizes frequentemente:

Tive um sonho extravagante, um sonho horrível, mas absoluta­mente inverossimil. Enganas-te. É amiude uma recordação dos lugares e das coisas que viste ou que verás em outra existência ou em outra ocasião. Estando entorpecido o corpo, o Espírito trata de quebrar seus grilhões e de investigar no passado ou no futuro.”

(“O Livro dos Espíritos”, de Allan Kardec. 29ª Edição da FEB. Parte 2ª — Capítulo 8. Recomendamos ao leitor o exame de todo o capítulo referido para melhor compreensão da série de estudos aqui apresentados. — Nota do Autor espiritual.

e pavor. O Instrutor, no entanto, solícito, acer­cou-se dela e aplicou-lhe energias anestesiantes, de modo a deixá-la em tranquilidade suficiente para os bons re­sultados da operação em pauta.

Nesse momento, a Irmã Angélica, mentora do mé­dium Morais, trouxe-o ao cenário abençoado, que lhe parecia familiar aos olhos espirituais. Tudo nele tradu­zia a segurança e o equilíbrio de uma existência vol­tada para o bem e para o dever.

Percebi, então, a excelência do ministério mediú­nico sob a carinhosa proteção de Jesus, objetivando aten­der aos sofredores de ambos os planos da vida e reco­nheci, mais uma vez, que somente uma existência real­mente desatrelada das paixões se constitui seguro ro­teiro para uma libertação felicitadora. O espírito é o que pensa e faz; a veste carnal que o envolve tanto se pode converter em asas de angelitude como em azor­rague com grilhões que o martirizam. E a mediunidade, indubitàvelmente, faz-se a senda luminosa por onde tran­sitam aqueles que a respeitam e enobrecem.

Não havia, porém, tempo para meditações mais amplas.

O Benfeitor Saturnino, em breve alocução, explicou a finalidade da reunião, elucidando que se pretendia tra­zer à lucidez o perseguidor de Mariana para um reen­contro na esfera do espírito, de modo a tentar-se uma conciliação, esperando-se que a Misericórdia Divina amparasse os propósitos do grupo ora reunido.

Os circunstantes se recolheram a profunda medita­ção, conduzidos pela voz pausada e grave do Mentor que se encarregou de orar ao Mestre, rogando-Lhe socorro para o labor em vias de desenvolvimento. Em seguida, aproximou-se do servo vingador e, aplicando-lhe passes de dispersão fluídica, despertou-o, presto.

A Entidade, vendo-se em uso da razão, circunvagou o olhar algo esgazeado e, reconhecendo Mariana ali pre­sente, como se fora tomado de estranho horror, inten­tou precipitar-se sobre ela, brandindo os punhos cerra­dos, com os lábios em rito macabro, dos quais escorria pegajosa substância escura, nauseante. Detido no im­pulso incoercível pelos auxiliares e vigilantes, recorreu aos impropérios violentos, como se desejasse, através das palavras candentes do ódio, conseguir o desforço aca­lentado por muitos anos a fio.

— Tenho-te procurado — gritou, colérico —, como justiceiro cuja sede de punição se converte em tormento sem nome. Azucrinado, somente há poucos anos con­segui localizar-te, no mesmo antro em que o infame des­truidor da nossa paz reside. Agora que os tenho a am­bos nas mãos, não os deixarei fugir. O meu desforço se fará com terríveis consequências. Eu os farei sofrer comigo as mesmas dores que esta eternidade me tem infligido sem repouso...

Mariana, escutando aquela voz, desejou fugir, de­sorientada, no que foi obstada por Saturnino, diligente.

— Aldegundes — vociferou o indigitado sofredor

porque me desgraçaste? Que te fiz eu para sofrer o abandono ignominioso e a humilhação que me impuseste diante de todos os nossos amigos? Aldegundes, Alde­gundes, não te dei o amor honrado e puro de um ho­mem trabalhador? Porque me infelicitaste, destruindo minha vida?...

Acompanhando as palavras doridas, lágrimas gros­sas escorriam-lhe abundantes dos olhos. Em choro con­vulsivo prosseguiu:

— Construíamos a nossa felicidade entre tantos sa­crifícios e tu, apesar disso, não te apiedaste de mim, arruinando-me sem compaixão! Porquê? Oh! desgraça, não me conformo! Mesmo que escoem todas as eternidades, o teu crime me corroerá dolorosamente. Minha alma dilacerada a cada instante e o meu coração trans­formado em massa de chumbo em brasa perderam a ra­zão de ser, quando meu cérebro vencido por todas as desesperações não consegue senão pensar em vingança... Eu que tanto te amava!... Porque fugiste, louca? Não sabias que a um homem não se engana? Ignoravas que ninguém foge da consciência? Olha-me bem! Vê ao que me reduziste? Olha, olha, infeliz!...

Nominalmente convocada, Mariana desferiu terrí­vel grito e caiu dominada por estranhas convulsões. As­sistida de perto pelos assessores de Saturnino, que a esse tempo amparavam o interlocutor desvairado, to­mou o aspecto de louca e com facies de singular horror, parecendo divagar, contestou:

— Sim, recordo-me de ti e te odeio, também... Sempre infeliz, que tenho sido e que sou?! Onde estou, agora que desvairo? Porque esses fantasmas que me tor­turam e não me deixam? Porque a morte não me con­some? Oh!...

Gargalhada repulsiva estourou nos lábios da doen­te, como se a razão de todo lhe fosse retirada, enquanto prosseguia:

— Abandonei-te, sim. Fui amaldiçoada por mim mesma, mil vezes, e te amaldiçoei, também. Todos me amaldiçoaram. De todos nós não sei qual o mais des­venturado. Entretanto, odeio mais aquele que me fez consumir as esperanças de mulher e os sonhos de louca, no triste hospício de Haarlen... Não sabes que voltei a buscar-te? Agora é tarde demais... Não me recordo mais... Não sei... somente sei que agora estou perto dele e hei de fazê-lo pagar. Oh! alucinação, que digo? Onde estou ?...

Nesse momento, Saturnino acercou-se da jovem e lhe falou, bondoso:

— Estás diante da própria consciência, sem os cre­pes do olvido. Não és a Mariana de hoje, frustrada e inquieta, mas a Aldegundes de ontem, desvairada, sofredora. Aqui estamos todos para responder aos dita­mes da consciência necessitada de reparação...

— E quem pretende julgar-me? — interrompeu, irada.

— Ninguém, minha filha — elucidou, confiante

pretende julgar-te ou examinar sequer os erros alheios, erros que todos temos. Reunimo-nos, no entanto, com o fim de corrigir impressões e estabelecer nova linha de conduta, antes que postergarmos as responsabilida­des para os dias sombrios que nos aguardam.

— Mas sou infeliz — apostrofou —, ninguém o vê? Sou acusada e ninguém me escuta...

— Não nos encontramos num tribunal — acudiu, solícito, o Instrutor —, mas num santuário de orações, templo e hospital, sob a orientação de Jesus-Cristo, o Amigo Incondicional de todos nós...

Esbravejando, de inopino, o algoz voltou à carga:

— Acabemos com a farsa. Sou eu a vítima de to­dos esses cruéis verdugos da minha vida. Quem se atre­ve a interferir em meus problemas? Não necessito de ajudante nem de intermediário. Tenho carpido a dor infernal a sós e não será agora que terei urgência de que alguém me ajude, no momento em que culmino o meu plano com o êxito que logo mais terei. Façam si­lêncio para que eu possa relembrar, a essa espoliadora da felicidade alheia, todo o mal que me fez.

Acercando-se dele, Petitinga envolveu-o em sua ca­rinhosa vibração, enquanto o médium Morais, convidado pelo Instrutor, aplicou passes em Mariana, cuja aflição parecia desequilibrá-la. Envolta em fluídos negros, con­gestionada, praguejava ensurdecedoramente.

Dona Rosa e Amália, devidamente amparadas, em­bora sem compreenderem toda a extensão da ocorrên­cia, oravam em pranto silencioso. Saturnino convidou a genitora a tomar nos braços a filha aturdida, e, en­quanto o fazia, a veneranda mulher banhada de tênue luz cooperava com Morais, conseguindo acalmar a jo­vem, que lentamente recobrou a serenidade.

— Vamos à verdade — estrondou o acossador de Mariana —, quero a verdade dos fatos. Se aqui estou subjugado por demônios vingadores que ainda não sa­ciaram a sede na minha infinita desdita, apelo para as forças do Dr. Teofrastus para que elas me amparem. Justiça, quero, nada mais! A minha vingança tem a força da minha justiça. Não sou um desalmado: sou um jus­ticeiro que retorna em nome da verdade. Reitero o apelo, portanto, ao Dr. Teofrastus, o meu benfeitor. Onde se encontra ele?

— Inutilmente — esclareceu Saturnino — você ro­gará auxílio a quem vive à míngua de socorro. O irmão Teofrastus está interditado de penetrar neste recinto. Aqui somente têm acesso aqueles que vêm em nome do amor e os que são carecentes de amor, como você, meu irmão...

— Recuso seu amor e sua piedade — estrondou, rebelado. — O que desejo...

— O que você deseja — disse, sereno, o Amigo Es­piritual — é paz e amor para refazer o que destruiu; infelizmente você não sabe que também tem necessidade de perdão, devendo, antes de tudo, porém, perdoar. Al­degundes fez-se seu algoz, sem dúvida, mas sempre foi sua vítima. Você fala em deserção do lar, em honra masculina... Onde, porém, estão sua honra e sua fide­lidade ao lar? Constituiu-se a mulher apenas instru­mento para a paixão do homem ou somente o veículo do prazer ilusório? E os sentimentos femininos? Que fez você para estancar as lágrimas de soledade que ela experimentava ao seu lado? Quantas vezes parou a es­cutá-la? Que cabedal de tempo lhe ofertou? Desejava dar-lhe uma fortuna, sim, olvidando dar-lhe segurança íntima, assistência afetuosa... Não, meu amigo. Aqui não se defrontam, como você deseja fazer crer, vítima e algoz; enfrentam-se duas vítimas de si mesmas, ilu­didas nos seus loucos ideais terrenos. Os dias da Ne­erlândia passaram; no entanto, encontram-se vivas, en­cravadas na terra das lembranças, as raízes dos erros de todos vocês, erros que necessitam retificados. Pre­pare-se para refazer o caminho, não para aplicar a jus­tiça, justiça de que todos temos necessidade...

— Então, você conhece — bramiu, provocando com­paixão, o interlocutor, em soluços — o meu drama? Por­que se refere à Neerlândia? Como sabe que eu procedo do Haarlen? Saberá você, que ~ssa mulher...

— Sim, meu irmão — retrucou, o Instrutor —, eu sei... Da mesma forma, porém, que a lei de Deus está Inscrita na consciência de cada homem, os nossos atos estão gravados em nossa mente que não morre. Conhecemos, sim, a sua história e o drama de Aldegun­des, que você agora deseja destruir, tarefa essa que não conseguirá, positivamente porque o Senhor da Vida já pronunciou o: basta!

— Mas ela me traiu e me abandonou — baldoou.

— Sabemos disso — redarguiu. — Mas sabemos, também, que enquanto se preparava o pôlder (1) na Amsterdão setentrional, fascinado pelas perspectivas de adquirir largas faixas de terra para pastagens de gado, não obstante as imensas plantações de tulipas que já

(1) Pôlder — região pantanosa e baixa, conquistada ao Mar do Norte e aos lagos Interiores, na Holanda — Nota do Autor espiritual.

possuía, deixava-a quase abandonada, por longos meses, enquanto durou a dessecagem do lago que existia entre Haarlen, Amsterdão e Leida, trabalho esse que durou de 1837 a 1840... Sentindo-se só, inexperiente e sem forças para a luta contra as paixões da própria natu­reza, não resistiu às constantes investidas de Jacob, terminando por deixar-se arrastar ao rio de lama que a conduziu, mais tarde, à loucura...

— Não me traga à memória — estrilou — o nome de Jacob Van der Coppel, o infame ladrão da minha felicidade. Encontrei-o, também. A princípio tüdo me parecia estranho. Por largos anos eu sentia a presença dele e me sentia ao seu lado, embora as diferenças que apresentava. Estava metamorfoseado... Tudo me era, no começo, irreal, até que fui conduzido ao Dr. Teo­frastus, que me ofereceu excelentes explicações, eluci­dando a volta do bandido ao esconderijo do corpo, en­sinando-me, porém, como eu poderia supliciá-lo e vin­gar-me, o que venho fazendo com verdadeira infâmia...

— Realmente — acrescentou, Saturnino, sem se per­turbar — Jacob retornou à carne, revestido pela indu­mentária com que agora se identifica por Mateus. O leviano de ontem é o atormentado de hoje, caminhando pela estreita rota da autopurificação... Recebeu nos braços, pelo mesmo impositivo, aquela a quem infelici­tara, e a sua presença é-lhe desagradável suplício. Em­bora não consiga recordar, experimenta as vibrações que lhe são afins, conquanto a aversão que lhe apossa, fa­zendo-o desditoso. Ninguém engana a vida. O código da Justiça acompanha o infrator, nele plasmando a ne­cessidade de ressarcimento legal... Daí a necessidade de aquele que se crê espoliado perdoar...

— Mas eu não conseguirei perdoar — vociferou o surpreso cobrador. — Tudo aqui hoje são surpresas para mim. Atino com dificuldade o que ocorre e tenho turbado o raciocínio. Quem são os senhores, que me mo­lestam já por segunda vez? Será isso um pesadelo cruel, daqueles que de mim se apossavam anteriormente, quan­do me perdera e me desgraçava nos despenhadeiros da Alucinação...

Em se referindo à região punitiva em que se sur­preendera, após o suicídio nefando, o atônito interlo­cutor se transfigurou repentinamente, e, parecendo so­frer indescritíveis padecimentos, se pôs a debater, cho­rando copiosamente. Vendo-o alucinado, reduzido a condição de escravo de si mesmo, não havia como deixar de crer que todo perseguidor é alguém perseguido em si mesmo e que o vingador é somente um espírito ma­cerado pelas evocações da própria delinquência...

O Assessor de Saturnino, solícito, acudiu presto o indigitado sofredor, aplicando-lhe passes reconfortan­tes, de modo a desembaraçar-lhe a mente dos fantasmas da evocação dolorosa. Depois de demorada operação magnética, em que eram dispersadas as energias venenosas, elaboradas pelo baixo teor vibratório do pró­prio Espírito, este se refez paulatinamente, recobrando alguma serenidade.

A viciação mental, resultante do pensamento vi­brando na mesma onda, gera a idéia delinquente na “psi­cosfera pessoal” do seu emitente, aglutinando forças da mesma qualidade, por sua vez emanadas por Inteligên­cias desajustadas, que se transformam em energia destruidora. Tal energia é resultante do bloqueio mental pela densidade da tensão no campo magnético da aura. Ali, então, se imprimem por força da monoidéia devas­tadora as construções psíquicas que se convertem em instrumento de flagício pessoal ou instrumento de su­plício alheio, operando sempre no mesmo campo de vi­brações mentais idênticas. Quando essas energias são dirigidas aos encarnados e sintonizam pela onda do pensamento, produzindo as lamentáveis obsessões que atin­gem igualmente os centros da forma, degeneram as cé­lulas encarregadas do metabolismo psíquico ou físico, manifestando-se em enfermidades perturbadoras, de lon­go curso...

Por essa razão, felicidade ou desdita, cada um con­duz consigo mesmo, graças à direção que oferece ao pensamento, no sentido da elevação ou do rebaixamento do espírito, direção essa que é força a se transformar em alavanca de impulsão ou cadeia retentiva nas re­giões em que se imanta.

Refeito do distúrbio inesperado, o aflito espiritual inquiriu:

— Que se passa? Onde estou? Porque me vejo coa­gido a falar o que não gostaria de informar e a ouvir o que não desejo escutar? Quem são os senhores?

Dando à voz a tônica da bondade que lhe era ha­bitual, Saturnino obtemperou:

— Todos estamos, meu irmão, queiramos ou não, na Casa do Pai Celestial. Filhos do Seu amor, deixa­mo-nos arrastar pelas correntes da liberdade espiritual ou naufragamos nas ondas revoltas das paixões, dentro, sempre, porém, de algum departamento do Seu domicí­lio, que elegemos pela própria vontade para nossa ha­bitação. Aqui nos encontramos em um Templo Espí­rita, de socorro aos que já transpuseram o limiar da imortalidade e se acrisolam voluntàriamente à retaguar­da dolorosa, quando poderiam ensaiar os primeiros vôos para mais amplos tentames na vida feliz...

E procurando dar ênfase ao encadeamento das idéias para melhor explicação, esclareceu:

- Cultores das lições de Jesus-Cristo, buscamos palmilhar a rota por Ele percorrida, abrindo braços e corações aos que sofrem e ignoram os meios de se li­bertarem do jugo da desesperação, meios esses que se encontram neles mesmos, jazendo sob os escombros do próprio flagelo que a si se impõem. Trouxemos Alde­gundes, cujo corpo repousa na forma orgânica de Ma­riana, e conduzimos, também, sua genitora, sua irmã e outros companheiros da vida física, para examinarmos à luz do amor de Nosso Pai para conosco o amargor que o torna infeliz, procurando diminuir a intensidade das causas de tal mortificação.

Fez uma pausa - breve, espontânea, para considerar o efeito produzido pelas palavras no perseguidor de Ma­riana.

A jovem, por sua vez, docemente envolvida pela ge­nitora que parecia transfigurada em madona esplendente de ternura, graças às supremas dores suportadas com amor e resignação, escutava, raciocinando com dificul­dade compreensível, atenta, porém, à explanação.

— Pelo que depreendo — rugiu o neerlandês —isto é um complô para fazer-me desistir da execução da justiça que tenho aguardado.

— A justiça — retrucou Saturnino — alcança o infrator sem a necessidade de novo algoz. As divinas leis dispõem de recursos reparadores, ante as quais nada fica sem a necessária quitação. Jesus...

— Jesus, Jesus — arrebatou — deixou-se marti­rizar...

— Sim — acrescentou Saturnino — e perdoou aos seus algozes.

— Mas era um Deus — admitiu, irado —, confor­me ensina a Religião.

— Deus? — esclareceu o Mentor — somente um há. A Religião tradicional se equivoca quando assim o diz. Jesus é o Filho de Deus, lição viva de amor que todos podemos atingir, pelas oportunidades que nos en­sejou descobrir, oportunidades essas que agora lhe che­gam, concitando-o a se tornar um deus, manifestação de Deus que “está em tudo e em todos, esperando o desabrochar através da nossa inclinação para a verdade.

— Mas eu vivo num inferno — reptou, amargado —, como poderia alcançar Deus se tudo em mim são de­sejos de vingança para aplacar o ódio que me estiola a própria razão?

— O inferno é resultante do seu estado de rebel­dia. Na sua recusa ao amor, você se condena ao deses­pero sem remissão, enquanto dure o combustível da re­volta que você coloca na fornalha do ódio.

— E os devedores?

— A vida se encarregará deles, agora ou depois.

Pesado silêncio caiu sobre a sala de socorro.

Algo asserenado, ele parecia mergulhar lentamente em acurada meditação.

Fluídos muito diáfanos penetraram o recinto, como se dirigidos por Agentes Invisíveis, que suavizavam a tensão até há pouco reinante, a todos beneficiando qual aragem bendita e necessária. Estranha e refazente cal­ma a todos dominou.

3

Técnica de obsessão

Saturnino solicitou a Ambrósio que aplicasse recur­sos magnéticos nos centros coronário e cerebral de Ma­riana, de modo a despertar-lhe o passado adormecido nas telas da memória.

Ativados os chakras (*), através dos passes hàbil­mente aplicados, a paciente desdobrada parcialmente pelo sono físico pareceu sofrer um delíquio para logo modi­ficar a expressão semelhante a alguém que acorda após demorado sono, no qual pesadelos cruéis houvessem to­mado corpo destruidor... Do mal-estar momentâneo pas­sou a um aspecto de desvario, através do qual as pala­vras fluíam ora no idioma de Mariana ora na língua de Aldegundes para firmar-se nos vocábulos em que se ex­primia esta última. Parecendo reconhecer Guilherme, o vigoroso perseguidor, estremeceu, olhando-o, esgazeada, como se desejasse fugir. Lentamente se lhe transfigu­rou o semblante que adquiria as características fisionô­micas de harleniense do passado. Eram visíveis os si­nais da loucura que dela se apossara nos últimos dias da existência física. Do descontrole inicial passou à mortificação,

(*) Chakra é uma palavra sânscrita que significa roda... — Nota do Autor espiritual.

libertando-se dos braços acolhedores de dona Rosa e arrojando-se aos pés do antigo esposo, a rogar-lhe perdão, em lancinantes, agoniados apelos.

Ouvindo-a, lúcida, na forma antiga, Guilherme ad­quiriu expressão patibular e rechaçou-a, com mordaci­dade.

— Eu estava desesperada — justificou-se em pranto — quando fugi do nosso lar. Perdoa-me! Ignoras o que padeci e ainda padeço na masmorra em que agora me movimento (referindo-se ao corpo de Mariana)... Há uma dor inidentificável em minhalma e uma noite som­bria de horror me segue, sem trégua. Não consigo cho­rar, por ignorar a razão dos sofrimentos quando os pu­nhais invisíveis da justiça me alcançam. Só uma re­volta pesada me agrilhoa a um desejo incoercível de morrer, de sumir, de perder a consciência para sempre...

— Isto — retrucou o antigo companheiro — é ape­nas o início das penas que te aguardam. Agora, sim, verterás o pranto da reparação que quando, saciado, eu me possa considerar capaz de absolver-te a indignidade Sem limite.

Saturnino, Ambrósio e os demais Assessores Espiri­tuais, embora em atitude de alerta, mergulhados em pen­samentos salutares, deixavam que as duas Entidades por momentos se reencontrassem mediante o diálogo dolo­roso e azedo, que, no entanto, abriria as portas a melhor atendimento...

— Fugi do lar e reconheço o meu crime. Mas igno­ras o castigo que experimentei, logo depois. Nunca fui amada: nem por ti, nem por ele. Em tuas mãos, não passei de animal de carga e objeto de vãs emoções... Nas mãos dele não fui além de um vaso de desejos vio­lentos. É claro que a nuvem da ilusão só mais tarde me deixou ver o abismo... E era tarde demais. Voltei, então...

— Tiveste a desgraça de voltar ao Haarlen? — vo­ciferou o esposo desdenhado. — Achaste, por acaso, in­suficiente a punição indébita que me impuseste, a pon­to de retornar aos sítios em que éramos conhecidos? Que pretendias desvairada?

— Rogar-te perdão, eu que ainda supunha que me amavas.

— Amar-te, quando arruinaste minha vida? Su­punhas que a desonra pudesse ser lavada com lágrimas?

— Nada eu supunha. Esperava piedade e comi­seração, um pedaço das nossas terras para sucumbir entre as tulipas que eu mesma plantara e em cujos cam­pos conseguíramos os inigualáveis exemplares das Gesnerianas, Clucianas, Turcisas... Dilacerada pela sauda­de e pelos remorsos, acalentava como um náufrago uma tênue possibilidade de salvação.

— Ignoravas, certamente, que envergonhado e fe­rido fugi... não conseguindo morrer. Aumentando a minha desgraça, não poucas vezes forças demoníacas me punham ao teu e ao lado do desalmado ladrão, para me supliciarem com a visão alucinante sem limite. Como os odeio! Como os detesto!... É impossível, infame, qualquer tentativa de...

— Negas-me, então, ainda hoje, a gota de mise­ricórdia? E quem és tu, senão o responsável maior pela minha infelicidade? Como te atreves a ferir-me com o teu escárnio, o teu ódio? Sim, também te odeio, deixa-me dizê-lo, como te odiava antes e não o sabia. Nunca me deste oportunidade de amar. Negociaste minha vida com os meus pais, considerando a minha juventude e minha saúde, e ninguém, nem tu nem eles, jamais pro­curou saber se eu possuía um coração ou acalentava um sonho de menina...

E soluçando, comovedoramente, prosseguiu:

— Amante do dinheiro, a nada mais querias, senão qualquer coisa que se constituísse meio de possuir mais. Fizeste de mim uma igual aos teus empregados, nas lei­ras sem-fim dos bulbos, entre os canteiros de tulipas. Nelas, porém, encontrei ligeira felicidade; nas suas pétalas descobria o milagre da vida, a beleza e a cor que me roubavas... E depois? Mais velho do que eu quase 30 anos, eras verdugo cruel.

— Não te justifiques, infeliz — bradou, apoplético.

— Trar-te-ei a verdade, agora, dizendo-te o que nunca me atrevera mostrar-te antes. Sim, dir-te-ei. Eras e continuas ambicioso e frio. Quando demandaste Leider e depois Amsterdão para negociar com o governo ter­ras e terras que viriam da dessecagem do lago, deixan­do-me só, entre teus empregados e teus amigos, não ze­lavas por mim. Tornavas-me o fiscal dos teus bens, a serva que inspecionava os servos. Contrataste Jacob, que chegara fazia pouco dos primeiros Geest do golfo, acostumado aos labores no Waal (1), e que, jovem como eu, me sensibilizara o coração em constante soledade. Relutei muito, entre a fidelidade ao teu abandono e a solidão da felicidade.

A Entidade sofrida não pôde continuar. As tor­mentosas evocações alanceavam-na.

Depois de uma pausa, prosseguiu, ante a expecta­ção de Guilherme, que parecia atoleimado com as infor­mações que lhe chegavam então.

— Fugimos para Amsterdão; nunca, porém, fugi de mim mesma. Nos primeiros tempos, ainda dominada pela paixão que me enceguecera, consegui sobrepujar o

(1) O golfo referido é o de Zuiderzê, que neste século foi em grande parte escoado e dessecado, transformando-se em ter­ras cultiváveis (Geest). sendo quase substituido nos últimos quarenta anos em quatro pôldres. O Waal é um dos cursos dágua do Reno, onde há uma aldeia do mesmo nome. — Nota do Autor espiritual.

remorso. Depois... Despertei abandonada seis meses após na Cidade, em miserável condição de desprezo entre mulheres infelizes do porto. Deixara-me Jacob, que jamais me tivera qualquer afeição, fugindo para a Bél­gica, após ter-me iludido, sem retornar jamais. Compreendes o que me aconteceu? E isto não é tudo! De­pois de deambular na mais estúpida miséria, não supor­tando as humilhações que eram superiores às minhas forças, lembrei-me dos campos floridos e da terra ge­nerosa... Voltei e busquei-te. Só então eu soube... Ha­viam-se passado apenas 5 anos! Eu nem sequer fora reconhecida pelos antigos vizinhos, tal o meu estado. Informada da tragédia que eu causara, enlouqueci, e desvairada pelas ruas do Haarlen fui lançada ao hospí­cio, como um animal numa jaula, onde sorvi por lon­gos anos a própria desdita até que a morte me liber­tou... para dores muito maiores. Na minha loucura eu te via agoniado, a maldizer-me, a perseguir-me. Vês, agora!? Tudo por culpa tua, do teu egoísmo.

— Sim, eu estava ligado a ti sem o saber... E nunca mais encontraste Jacob? — indagou Guilherme.

— Nunca! Se eu o encontrasse, que não faria com esse meu outro algoz!...

— Pois eu te direi: vives novamente com ele. sua filha!

— Filha?! Deliras... Através de qual sortilégio o inimigo poderia tomar o corpo de meu pai? Não zom­bes de mim.

— Ouve, Aldegundes: morreste e voltaste a viver, esta é a verdade.

Guilherme demonstrava na voz todo o seu desprezo. Logo depois, prosseguiu:

— Deus, que é justiceiro, dele fez o teu pai, unindo os dois para que eu agora me possa vingar. Vês porque não me fugireis do guante da reparação? Mateus que é o teu pai, pai de Mariana, em cujo corpo vives pri­sioneira, é o teu ex-amante e o meu infelicitador, novamente reunidos. Agora poderei...

Nesse momento, Saturnino pousou a destra na fronte de Mariana, dominada pelas recordações do passado, e utilizando recursos magnéticos fê-la adormecer, pausa­damente.

Guilherme, aturdido, pôs-se a deblaterar, enquanto Ambrósio o socorria, diminuindo-lhe o campo de ação.

Convidando Dona Rosa, o Instrutor devolveu-lhe a filha anestesiada e em son reparador. Ambrósio foi chamado a reconduzir o grupo ao lar da família Soa­res, para onde foram levadas, pelo Assistente e um au­xiliar, a matrona e as duas filhas.

O serviço espiritual, porém, continuou o seu curso normal.

Em seguida à altercação entre os dois antagonistas do pretérito, Saturnino conseguiu sensibilizar Guilherme que, então, relatou as experiências que deveriam cul­minar naquela noite de modo inverso ao que aconte­cia. Narrou, então, que há mais de quinze anos se sentia ligado ao Sr. Mateus, o antigo verdugo por quem nutria desconhecida aversão, dispondo-se a segui-lo. Transferiu-se, por fixa, para o lar da família Soares, par­ticipando do grupo de Entidades irresponsáveis que ali faziam morada. Particular e inconscientemente vinculado ao responsável pelo clã, lentamente conseguiu infiltrar nele reminiscências amargas que o faziam fugir do lar para render-se cada vez mais à jogatina, procurando fugir. Mariana nascera havia pouco, quando o reencon­trara, e, embora não soubesse ser ela Aldegundes, foi dominado por incoercível antipatia.

O seu horror pelo Sr. Mateus era, também, incons­ciente, pois ignorava o processo do retorno ao corpo, em que este se ocultava. Vivendo em conúbio com outros sicários do grupo familiar, cedo fez amizade com ter­rível obsessor ligado a Marta, a filha mais velha da família, que se dedicava a incursões nos redutos som­brios da Magia negra, e, informando-a dos seus propó­sitos, foi aclarado do impositivo da Reencarnação, por cujo meio se assegurou de estar no rastro dos inimigos. Veio-lhe, então, o desejo de os matar de imediato. Informado da Idéia, o Inspirador de Marta sugeriu-lhe travar contacto com o Dr. Teofrastus para que este examinasse o seu problema e, de acordo com os inte­resses que lhe despertassem, tomá-lo ou não sob a sua responsabilidade.

Segundo o informante, o Dr. Teofrastus fora in­signe mago grego, quando na Terra, residente em Fran­ça, queimado pela Inquisição por volta do ano de 1470, em Ruão, após perseguição impiedosa e nefanda. Pro­fundo conhecedor, mesmo quando encarnado, de algumas das leis do Mundo Espiritual, deixou-se consumir pelo ódio aos seus algozes; logo que desencarnou, estreitou laços com terríveis vingadores do Além, a ele já vincula­dos pelas suas práticas necromânticas e reuniões de sabat, todas elas feitas sob inspiração de Mentes vigorosas e infelizes da Esfera Espiritual. Logo se identificou, após a morte do corpo físico na fogueira, com aqueles atra­vés dos quais mantinha o comércio psíquico, fez-se no­tado pela impiedade, na sede tormentosa de vingança. Paulatinamente, conseguiu imantar-se a diversos dos que a ele e a muitos outros puniram indebitamente, em in­qualificável intercâmbio espiritual obsessivo, do qual passou a locupletar-se. Portador de mente tenaz, lobri­gou através dos tempos supremacia no grupo em que vivia, passando à condição de Chefe...

Residindo, esclareceu, então, Guilherme, em estra­nho sítio, nas regiões inferiores do Planeta, comanda com outros sicários, há mais de três séculos, hordas de Entidades ferozes, responsáveis muitas delas por pro­cessoS obsessivos e calamitosos de longo curso, entre as criaturas humanas que se deixaram vencer pelas ur­diduras das suas mentes atormentadoras.

Muitos dos que se rebelam periodicamente têm ex­perimentado punições severas sob suas tenazes mentais, produzindo neles transformações perispirituais soezes, em apavorantes processos de zoantropia, por hipnose anestesiante nos centros profundos da alma, tais como hipontropia, licantropia, etc.

Verdadeiro demônio se acredita senhor de vasta Re­gião Trevosa, onde impera como autocrata acerbo.

Depois de alguns dias de expectativa, nos quais aguardava a decisão da Entidade, continuava o relato do ex-neerlandês, foi conduzido à presença do Chefe. Ouvido atenciosamente pelo antigo Mago, este se propôs examinar o problema, marcando data propícia para nova entrevista, o que ocorreu uma semana depois.

Nessa oportunidade, o insidioso e singular monarca falou-lhe da sua desencarnação como suicida, aclaran­do-lhe hórridas inquietações, minuciando-lhe os proces­sos de desencarnação e reencarnação, de modo a intei­rá-lo do que ocorrera com os seus verdugos do passado, então revestidos de novo corpo...

Elucidado por Guilherme de que desejava um des­forço imediato, que traduzisse todo o seu amargor, ex­plicou-lhe, então, que a melhor maneira de se vingar se­ria realizada através do tempo, pelo processo lento da obsessão contínua em ambos os cômpares da tragédia passada, induzindo-os ao suicídio para aumentar-lhes a aflição, no momento próprio...

Vinculando-se, desde logo e espontaneamente, aos comandados pelo Dr. Teofrastus, dele recebia orienta­ção segura e constante, conseguindo fartar-se das emanações vampirizadas provenientes da jovem obsessa que começara a subjugar, enquanto e simultaneamente alucinava o amadurecido genitor, ora alquebrado.

Compreendendo chegado o momento do golpe deci­sivo, o Dr. Teofrastus orientara-o para provocar cenas de atritos constantes entre pai e filha, de modo a que esta em momento de desespero se evadisse do lar, bus­cando no namorado leviano e irresponsável o falso am­paro de que se sentiria carecente. Nessa circunstân­cia, então, ele se reencarnaria através de Mariana, vol­tando ao lar dos Soares na condição de neto do Sr. Ma­teus, a fim de matá-lo lentamente, em longo recurso de impiedosa vindita, conforme instruído. Isto lhe seria fá­cil, evidentemente, pela hipnose na moça que se encon­trava capacitado de produzir, como intentara, logrando êxito, no primeiro .......

Consecutivamente, como relembrasse todos os lan­ces do programa infeliz que acalentava havia tantos anos, Guilherme apresentava-se transtornado pelas dores das evocações sombrias e pela imensa frustração dos planos elaborados com tanto esmero.

Embora intervindo, de quando em quando, de modo a estimulá-lo na narrativa, Saturnino animava-o com palavras generosas, a fim de que nos inteirássemos de uma dentre as inúmeras técnicas da obsessão e dos re­cursos utilizáveis para a vingança, pelos desencarnados, encetando, então, conversação mais amena com o perse­guidor de Mariana, que parecia alquebrado, vencido, sob o influxo magnético do Instrutor e os passes aplicados com carinho por Ambrósio.

Conduzido ao sono, Guilherme foi afastado do re­cinto por zelosos cooperadores desencarnados e a reu­nião foi dada por encerrada, após comovedora oração proferida pelo Instrutor.

Petitinga, o médium Morais e nós, fomos condu­zidos de volta ao lar, enquanto a Alva desenhava sobre as sombras fugidias da noite os primeiros contornos da natureza preparando-se para o festival do Dia.

4

Estudando o hipnotismo

Fôramos informados pelo irmão Saturnino de que, no processo de desobsessão, em que nos empenhávamos ao lado da família Soares, seria necessário colher me­lhores lições em torno do problema da hipnose espiri­tual praticada por Entidades Vingadoras da Erratici­dade, antes de tomarmos conhecimento detalhado das tarefas que se realizavam no Anfiteatro. Para tanto, re­ceberíamos, ao primeiro ensejo, a visita de sábio Men­sageiro Espiritual que viria aos nossos trabalhos e, uti­lizando-se da mediunidade do irmão Morais, dar-nos-ia elucidativa mensagem sobre a Hipnologia.

Anunciada a noite dos trabalhos em que recebería­mos o abençoado Instrutor, preparamo-nos convenientemente e, chegado o momento, após a abertura dos tra­balhos, que foi procedida pelo irmão Petitinga, e as ins­truções normais, o médium, em transe sonambúlico, co­meçou a falar.

Feitas as saudações iniciais e costumeiras, a Enti­dade, que irradiava bondade e simpatia, começou a ex­pressar-se com inesquecível inflexão de voz:

— Irmãos na fé restaurada: «que Jesus, o Divino Benfeitor, nos abençoe e nos guarde, dando-nos a Sua paz e inspiração!

«Desde tempos imemoriais que são conhecidas al­gumas das práticas do Hipnotismo moderno, que ocupava nas religiões dos povos da antigüidade oriental lu­gar de relevo, embora com nomenclatura diversa.

“O Egito faraônico, através dos seus sacerdotes, que pesquisavam os mais variados fenômenos psíquicos com os recursos de que dispunham, dedicou diversos templos ao sono, nos quais se realizavam as experiên­cias hipnológicas de expressivos resultados. Os taumaturgos caldeus praticavam-no com finalidades terapêu­ticas, lobrigando respeitável soma de benefícios. E as diversas literaturas referentes à hipnologia conservam ainda hoje fragmentos históricos da sua viagem multis­secular através de civilizações incontáveis que ficaram no passado...

«Deve-se, porém, a Frederico Antônio Mesmer o grande impulso que o trouxe aos tempos modernos. To­davia, merece considerado que Paracelso, autor do con­ceito e teoria do fluído, anteriormente já se interessara por experiências magnéticas, que seriam posteriormente desdobradas por Mesmer. Considerava Mesmer o fluído como sendo o meio de uma influência mútua entre os corpos celestes, a terra e os astros», afirmando que esse fluído se encontra em toda a parte e enche todos os espaços vazios, possuindo a propriedade de «receber, pro­pagar e comunicar todas as impressões do movimento». E elucidava: «O corpo animal experimenta os efeitos desse agente: e é insinuando-se na substância dos ner­vos que ele os afeta imediatamente».

«Formado pela Universidade de Viena, o ilustre mé­dico defendeu a tese que intitulou: «Influência dos as­tros na cura das doenças», através da qual expunha a sua teoria do fluído, inspirada, sem dúvida, no tradicio­nal conceito do fluidismo universal.

«Fixado em tal opinião, concluía que as enfermida­des decorrem da ausência desse fluído no organismo, fluído que passa, então, a ser a alma da vida.

“Utilizando-se de 27 proposições ou aforismos, esta­beleceu as bases do seu pensamento e transferiu-se de Viena para Paris, nos fins do século 18, dando início, conquanto o forte preconceito acadêmico então rei­nante, às suas práticas, que tinham de certo modo um caráter burlesco, tendo em vista a forma bizarra com que se apresentava, sem a preocupação de atender à seriedade de um labor de ordem científica.

“Compreensivelmente, o aparato algo teatral conse­guia influenciar os pacientes que lhe buscavam o auxílio ».

Fazendo uma pausa, como a coordenar histórica­mente os conceitos, prosseguiu, com expressiva ênfase:

— “Avançando de surpresa a surpresa, nas expe­riências magnéticas ao lado de portadores de distúrbios nervosos, criou Mesmer a (tina das convulsões» (*), em redor da qual podiam ser atendidas simultâneamente até 130 pessoas.

“Ali se reuniam paralíticos, nevropatas de classifi­cação complexa que, em contacto com o fluído magné­tico, eram acometidos de convulsões violentas das quais saíam com nervos relaxados, libertados das enfermida­des que os consumiam

(*) A “Tina das convulsões” ou baquet (em francês) se cons­tituia de ampla caixa de madeira com dimensões gigantes, de for­ma circular e entulhada de limalhas de ferro. Sobre as limalhas eram colocadas garrafas cheias de água adredemente magnetiza­das. Essas garrafas semelhavam-se a vasos comunicantes, por estarem interligadas e o líquido passar através de todas. Da tina, por aberturas assimétricas, saiam inúmeras barras delga­das e longas de ferro, móveis, que os pacientes aplicavam sobre os órgãos enfermos. Os pacientes formavam diversas fileiras em torno do baquet, de modo a poderem a um só e mesmo tempo be­neficiar-se dos resultados magnéticos. Além disso, deixavam-se atar à cintura por uma corda, uns aos outros, e se davam as mãos com a finalidade de formarem um anel de força, a fim de ampliarem a ação do fluído.

“Acatado por uns, perseguido por outros, Mesmer terminou por abandonar Paris e transferiu-se para Nurs­burg, no lago de Constança, algo combalido e despres­tigiado.

«As suas experiências, porém, chamaram a atenção de homens ilustres e interessados na busca de métodos capazes de diminuírem as aflições humanas. Entre esses, o Marquês De Puységur, (1) em 1787; enquanto mag­netizava um camponês de nome Vítor Race, foi surpreendido por estranha ocorrência: o paciente adormeceu e nesse estado apresentou admirável lucidez, sendo ca­paz de produzir eficiente diagnóstico a respeito de ma­les orgânicos que o afligiam e sugerir segura terapêu­tica. O sono era ameno, sem convulsão nem tormento, ensejando o início do período denominado então sonam­bulismo.

«O fato, digno de estudos, tornou-se de súbito ins­trumento de charlatanismo e foi denominado como ma­ravilhoso, dando margem a especulações naturalmente ridículas e indignas. Todavia, estava-se no caminho certo, apesar das veredas falsas.

A Academia, convocada a opinar através de inqué­ritos conduzidos com má fé, chegou à conclusão de que tudo não passava de burla, e cerrou, desde então, «olhos e ouvidos» aos aventureiros, relegando-os ao mais amplo desprezo.

(1) O Marquês De Puységur, dominado por sentimentos humanitários, magnetizou uma árvore em sua propriedade de Busancy com o objetivo de auxiliar os pobres que, tocando no vetusto vegetal, se diziam melhorar através dos seus recursos benéficos. Mesmer, por sua vez, interessado igualmente na mais ampla difusão do magnetismo, bem como na coleta de resulta­dos espetaculosos, instruiu um seu empregado, tornando-o seu cooperador para atender à clientela em crescimento espantoso. Além do baquet que atendia a número coletivo, havia a aplicação do magnetIsmo individualmente, feito de maneira bastante gros­seira, mas, ainda assim, de resultados surpreendentes...

“Pesquisadores conscientes, no entanto, não desani­maram e, dentre esses, o Barão Du Potet e Carlos La­fontaine se fizeram os mais notórios pelos livros que es­creveram e os espetáculos públicos em que se apresen­taram, exibindo os resultados das suas investigações, em­bora não fossem realmente cientistas.

«No entanto, a descoberta de De Puyøégur veio influenciar poderosamente o sacerdote português José Custódio de Faria, nascido em Concolim de Bardez, na África Portuguesa e residente em Paris, que, graças ao seu notável trabalho, passou a ser chamado em França l’abbé de Faria, que conseguiu, com inauditos esforços, libertar-se de todas as práticas e formas até então vi­gentes, estabelecendo que o fenômeno procedia da su­gestão, dependendo, evidentemente, do paciente. Des­considerou as apresentações ridículas, sem conseguir, no entanto, despertar a atenção dos sábios e acadêmicos...

“As experiências de De Puységur conduziram o fe­nômeno ao campo da transposição dos sentidos, visão a distância e através de corpos opacos, etc...

“Todavia, ao cirurgião inglês James Braid se deve a introdução do termo hipnotismo em lugar de magne­tismo e novas conclusões surpreendentes no setor das pesquisas, tendo-se em vista ser ele espiritualista.

Assistia ele a uma sessão de Lafontaine, para ave­riguar o que havia de real no debatido problema da magnetização, quando se sentiu despertado para alguns dos fenômenos mais modestos, o que o levou a realizar, ele mesmo, incontáveis experiências, no decurso das quais, após conseguir o sono provocado em seus «sujets», de­parou com os estados de catalepsia e letargia, encon­trando novo campo para experimentações valiosas.

Estávamos fascinados. Era uma síntese histórica do Hipnotismo, então aplicado em nossos trabalhos espi­rituais, e que hoje tem amplo curso entre médicos e odontólogos, reflexologistas e psiquiatras, constituindo preciosa disciplina credora de estudos profundos e com­plexos.

O Instrutor, após ligeira reflexão, deu curso à expo­sição fluente e clara:

— “No ano de 1878, porém, o Professor João Martinho Charcot proferiu uma série de conferências no Hos­pital da Salpêtriére, modificando na Academia a reabi­litação do desdenhado Magnetismo, agora apresentado com nomenclatura diferente: Hipnotismo, expressão com­patível, sem dúvida, com as experiências em curso. To­davia, o eminente professor Charcot, lidando exclusivamente com histéricas internadas no Hospital da Salpêtriére, chegou à conclusão apressada de que o hipnotis­mo é uma nevropatia de caráter automatista, que se ma­nifesta no enfermo através de três fases distintas: ca­talepcia, letargia e sonambulismo, relegando o fenômeno hipnótico a um plano de descrédito e mesmo de abjeção.

“Enquanto o Professor Charcot pontificava na Univer­sidade da Salpêtriére, acusado pelo Professor Pedro Janet de apenas ter hipnotizado sensitivas já condicionadas por estudantes que praticavam o sonambulismo na ausência do mestre, criando nas percipientes um estado de auto­matismo patológico lamentável (2), destaca-se na Es­cola de Nancy o Dr. Liébault, que desde 1860 aplicava os recursos hipnológicos diariamente em sua clínica, com resultados expressivos, discordando terminantemente da conceituàção histeropata dos mestres da Salpêtriére...

A Escola de Nancy reuniu homens notáveis, den­tre os quais o professor Bernheim, que fora atraído ao

(2) Esse mesmo Professor Pierre Janet publicara, em 1889, um livro Intitulado “Automatismo psicológico”, através do qual, entre diversas conclusões, tenta desmoralizar os médiuns, si­tuando-os entre os histéricos, na condição de simples automa­tistas.

Hipnotismo, através de um seu cliente para o qual fa­lharam todos os recursos, e se curara com uma única sessão de hipnose na clínica do Dr. Liébault. (3)

A partir desse momento, ficaram definitivamente estabelecidas as duas correntes preponderantes na Hip­nologia: a de que o fenômeno hipnótico encontra melhor campo e é específico nos histéricos, e aquela que afirma o oposto, estabelecendo que as pessoas portadoras de cérebro normal, capazes de melhor concentrarem nas idéias que se lhes sugiram, são as realmente hipnotizá­veis. Correntes de pensamentos diversos, padronizadas segundo os múltiplos experimentadores, têm sido apre­sentadas, criando opiniões esdrúxulas e não poucas vezes ridículas.

A verdade, porém, é que as duas Escolas france­sas, a da Salpêtriére, na qual pontificavam os conceitos da histeropatia, e a de Nancy, afirmando a legitimidade da sugestão em todos os indivíduos, mereceram da pos­teridade estudos mais acentuados e melhor consideração, embora a grande maioria dos pesquisadores haja discor­dado de Charcot, Pedro Jauet, Babinski, seus mais ilus­tres representantes.

(3) Allan Kardec, o eminente Codificador, acentuou que:

“São extremamente variados os efeitos da ação fluídica sobre os doentes, de acordo com as circunstâncias. Algumas vezes é lenta e reclama tratamento prolongado, como no magnetismo ordinário; doutras vezes é rápida como uma corrente elétrica. Há pessoas dotadas de tal poder que operam curas instantâneas nalguns doentes, por meio apenas da imposição das mãos, ou até exclusivamente por ato de vontade. Entre os dois pólos extremos dessa faculdade há infinitos matizes. Todas as curas desse gênero são variedades do magnetismo e só diferem pela intensidade e pela rapidez da ação. O princípio é sempre o mesmo: o fluído, a desempenhar o papel de agente terapêutico e cujo efeito se acha subordinado à sua qualidade e a circuns­tâncias especiais”.

A Gênese, de Allan Kardec, 14ª edição — Capitulo XIV —Item 32 — FEB. — Nota, do Autor espiritual.

«O Professor Carlos Richet, a cujo trabalho tanto de­vem as ciências fisiológicas e psicológicas, o eminente catedrático da Universidade de Paris, realizou estudos sistematizados, expôs com lealdade os resultados obti­dos e conseguiu interessar os mais eminentes estudiosos do seu tempo, entre os quais o próprio Professor Charcot, que após as conclusões do mestre fisiologista resolveu estudar em profundidade o Hipnotismo»...

E dando diversa inflexão à voz, o Benfeitor, no qual se alinhavam conhecimentos valiosos e experiências de alto realce, aduziu:

— «O que nos importa, entretanto, considerar, é o mecanismo como se efetuam as intervenções hipnológi­cas entre os indivíduos encarnados, e mais particularmente entre desencarnados e encarnados, nos processos dolorosamente obsessivos, tanto quanto na reciprocidade do intercâmbio entre os despidos da indumentária carnal.

«As ondas mentais exteriorizadas pelo cérebro man­têm firme intercâmbio em todos os quadrantes da Terra e fora dela. Pensamentos atuam sobre homens e mulhe­res desprevenidos e a sugestão campeia vitoriosa ali­ciando forças positivas ou negativas com as quais sintonizam, em lacerantes conúbios dos quais nascem pri­sões e surgem alvarás de liberdade, por onde transitam opiniões, aspirações, anseios...

«Merece relembrado o conceito do Nazareno: Onde estiver o tesouro aí o homem terá o coração», o que equivale dizer que cada ser respira o clima da provín­cia em que situa os valores que lhe servem de retentiva na retaguarda óu que se constituem asas de libertação para o futuro.

«Pensamento e vontade — eis as duas alavancas de propulsão ao infinito e, ao mesmo tempo, os dois elos de escravidão nos redutos infelizes e pestilenciais do «inferno» das paixões.

«Pensar e agir, identificando-se com os fatores da atenção, constituem a fórmula mágica do comportamento individual a princípio, e coletivo logo depois, em que, ora por instinto gregário, ora por afinidade psíquica, se reúnem os comensais desta, ou daquela idéia.

«Céu ou inferno, portanto, são dependências que construímos em nosso íntimo, vitalizadas pelas aspira­ções e mantidas a longo esforço pelas atitudes que im­primimos ao dia-a-dia da existência.

“Por tais processos, províncias de angústia e re­giões de suplício, oásis de ventura e ilhas de esperança nascem no recôndito de cada mente e se multiplicam ao império de incontáveis vontades que se reúnem, em to­dos os departamentos do planeta. Inicialmente, o ho­mem se converte no anjo ou no demônio, que ele pró­prio elabora por força da idéia superior ou viciada em que se compras, sintonizando, por um processo natural de afinidades, com outras mentes encarnadas ou não, que vibram nas mesmas faixas-pensamento, produzindo processos de hipnose profunda que se despersonalizam e se nutrem, sustentados, reciprocamente, por forças vi­tais de fácil manipulação inconsciente, que gravitam em toda a parte.

Nesse sentido, convém considerar as lições supe­riores do Espiritismo, que oferece panorama de elevada estrutura mental e moral, facultando registos de idéias superiores capazes de manterem uma higiene psíquica libertadora de toda conexão com as Entidades infelizes do Mundo Espiritual Inferior ou com as vibrações que pairam na Terra mesma, e que procedem de vigorosas mentes ainda agrilhoadas, que se imantam umas às ou­tras, realizando intercâmbio danoso, de longo curso e de imprevisíveis consequências.

«Em todo processo hipnológico, pois, convém exa­minar a questão da sintonia e da sugestão, com razões poderosas, senão imprescindíveis para a consecução dos objetivos: a fixação da idéia invasora.

«O Professor José Grasset, por exemplo, o excelente mestre de Montpeliier, inspirado nas observações rea­lizadas em torno do polígno cerebral que também ser­vira de base a Wundt e Charcot, afirmava ter desco­berto ali o centro da consciência, o núcleo da vontade, colocando, imediatamente abaixo, o centro de Broca, res­ponsável, pelos encargos da linguagem e os responsá­veis pela visão, audição, gustação, etc... Imaginava, então, um ponto de referência que passava a ser o cen­tro do psiquismo superior, encarregado dos fenômenos conscientes e no polígono propriamente dito o campo do pensamento e da vontade, encarregado de todas as ta­refas do automatismo psicológico. Elucidava, em con­sequência, que toda sugestibilidade que dimana do ope­rador se transmite inconscientemente tomando posse do campo cerebral, no polígono do hipnotizado. A vontade dominante se encarrega de conduzir a vontade domina­da, como se a alma de quem hipnotiza substituísse momentaneamente a alma do que foi hipnotizado». Dessa forma, o hipnotismo pode ser denominado, como querem alguns experimentadores, «O anestésico da razão».

“Já o psicólogo inglês Guilherme Mac-Dougall, igual­mente fascinado pelo assunto, asseverava, examinando o problema da sugestão na hipnose, que esta é um meio de transmissão do pensamento, tendo como resultado a convicta aceitação de qualquer mensagem proposta in­dependendo de análise pelo paciente com exame lógico para a sua aquiescência. Isto é: o operador impõe-se ao sujeito, que o recebe sem reação proveniente de exa­me prévio.

“Em bom vernáculo, sugestão é «o ato ou efeito de sugerir. Inspiração, estímulo, instigação. Idéia provocada em uma pessoa em estado de hipnose ou por sim­ples telepatia”.

«A sugestão é, portanto, a inspiração incidente, constante, que atua sobre a mente, provocando a acei­tação e a automática obediência.

«Por essa razão, Forel informa que os cérebros sa­dios são mais fáceis de aceitar a sugestão, e Emilio Coué, discípulo de Liébault, prefere considerar que os pacientes capazes de auto-sugestionar-se são melhores para que com eles se lobriguem resultados mais explícitos e imediatos.

«Outros autores, como é o caso do insigne Pavlov, o «pai» dos reflexos nos animais e no homem, elucidam que o sono natural hipnótico e a inibição constituem a mesma coisa, deixando transparecer que, no momento em que essa inibição se generaliza, permanecendo a cau­sa preponderante, tende a espalhar-se, facultando ao hipnotizando aceitar a sugestão que prepondera.

«Ocorre, entretanto, que todos os seres têm uma tendência ancestral, natural, para a obediência, o que se transforma num condicionamento inconsciente para aceitar toda ordem exterior, quando não se tem uma lu­cidez equilibrada e firme capaz de neutralizar as idéias externas que são sugeridas.

«No fenômeno hipnológico há outro fator de gran­de valia que é a perseverança, a constância da idéia que se sugere naquele que a recebe. Lentamente a princí­pio tem início a penetração da vontade que, se conti­nuada, termina por dominar a que se lhe submete.

«Os modernos psicanalistas e reflexologistas situam as suas observações, os primeiros nos reflexos condi­cionados, que pretendem ser um «estado de inibição di­fusa somática cortical» com a presença de um ponto de vigília, enquanto os segundos se referem a um «processo regressivo particular que pode ser iniciado por privação senso-motora ideativa ou por estimulação de uma rela­ção arcaica com o hipnotista».

Os conceitos emitidos com sabedoria e em síntese prodigiosa, considerando-Se a imensa variedade de opi­niões em torno do Hipnotismo, nos deslumbravam. Que mundo estranho e imenso, o da mente! Quantas paisa­gens desconhecidas para nós! Os próprios estudiosos dos fenômenos psíquicos, na Terra e além da vida física, encontravam-Se empenhados milenarmente na elucida­ção das questões palpitantes da vida mental, encontran­do, só agora, alguns pontos vígeis para elucidações dos processos de intercâmbio entre homens e homens, es­píritos desencarnados e encarnados. Deixava-me arras­tar em considerações, na pausa que se fizera espontanea, quando a Entidade Abnegada prosseguiu:

— «Isto posto, meus irmãos, examinemos o proble­ma das obsessões entre os desencarnados e encarnados, na esfera física.

«Em todo processo de imantação mental, do qual decorrem os sucedâneos da obsessão simples, da fasci­nação e da subjugação — conforme a classificação per­feita de Allan Kardec —, há sempre fatores predispo­nentes e preponderantes que se perdem no intrincado das reencarnações.

«Toda vítima de hoje é algoz de ontem, tomando o lugar que lhe cabe no concerto cósmico.

«Assim considerando, em quase todos os processos de loucura — exceção feita não somente aos casos or­gânicos de ataque microbiano à massa encefálica ou traumatismo por choques de objetos contundentes — de­frontamos com rigorosas obsessões em que o amor de­sequilibrado e o ódio devastador são agentes de pode­rosa atuação.

«Quando há um processo de obsessão desta ou da­quela natureza, o paciente possui os condicionamentos psíquicos — lembranças inconscientes do débito através das quais se vincula ao perseguidor —, que facultam a sintonia e a aceitação das idéias sugeridas e constrin­gentes que chegam do plano espiritual.

Se o paciente é experimentado nas disciplinas mo­rais, embora os compromissos negativos de que padece, consegue, pela conquista de outros méritos, senão con­trabalançar as antigas dívidas pelo menos granjear re­cursos para resgatá-las por outros processos que não os da obsessão.

“As Leis Divinas são de justiça, indubitàvelmente; no entanto, são também de amor e de misericórdia. O Senhor não deseja a punição do infrator, antes quer o seu reajuste à ordem, ao dever, para a sua própria fe­licidade.

«Desse modo, quando a entidade perseguidora, cons­ciente ou não, se vincula ao ser perseguido, obedece a impulso automático de sintonia espiritual por meio da qual estabelece os primeiros contactos psíquicos, no cen­tro da idéia, na região cortical inicialmente e depois nos recônditos do polígono cerebral, donde comanda as di­retrizes da vida psíquica e orgânica, produzindo ali le­sões desta ou daquela natureza, cujos reflexos apare­cem na distrofia e desarticulação dos órgãos ligados à sede atacada pela força-pensamento invasora.

«Desse centro de comando, em que o hóspede se so­brepõe ao hospedeiro, as alienações mentais e os distúr­bios orgânicos se generalizam em longo curso, que a morte do obsidiado nem sempre interrompe.

«A consciência culpada é sempre porta aberta àinvasão da penalidade justa ou arbitrária. E o remorso, que lhe constitui dura clave, faculta o surgimento de idéias-fantasmas apavorantes que ensejam os processos obsessivos de resgate das dívidas.

«Invariàvelmente, na obsessão, há sempre o apro­veitamento da idéia traumatizante — a presença do cri­me praticado —, que é utilizada pela mente que se faz perseguidora revel, apressando o desdobramento das for­ças deprimentes em latência, no devedor, as quais, desgovernadas, gravitam em torno de quem as elabora, sendo consumido por elas mesmas, paulatinamente.

Nas atividades da obsessão de espíritos a espíri­tos desencarnados, aqueles verdugos, conhecedores das limitações e dos erros dos recém-chegados da jornada carnal, após os terem acompanhado anos a fio, com si­cários implacáveis, utilizam-se de ardis com que apavo­ram os desassisados, e por processos de sugestão, apli­cados com veemência nos centros perispirituais, conse­guem produzir lamentáveis condicionamentos de altera­ção na forma das vítimas que se lhes demoram nas gar­ras, dominando-as, por fim, em demorado curso de vingança ultriz e devastadora.

«As idéias plasmadas e aceitas pelo cérebro, du­rante a jornada física, criam nos painéis delicados do pe­rispírito as imagens mais vitalizadas, de que se utili­zam os hipinotizadores espirituais para recompor o qua­dro apavorante, em cujas malhas o imprevidente se vê colhido, derrapando para o desequilíbrio psíquico total e deixando-se revestir por formas animalescas grotes­cas — que já se encontram no subconsciente da própria vítima — e que estrugem, infelizes, como o látego da justiça no necessitado de corretivo.

«No sentido oposto, as idéias superiores, alimenta­das pelo espírito em excursão vitoriosa, condicionam-no à libertação, concedendo «peso específico» ao seu peris­pírito, que pode, então, librar além e acima das vicis­situdes grosseiras do liame carnal.

«Com muita sabedoria, Allan Kardec enunciou que:

«Relativamente às sensações que vêm do mundo exterior, pode-se dizer que o corpo recebe a impressão; o perispírito a transmite e o Espírito, que é o ser sensí­vel e inteligente, a recebe. Quando o ato é de iniciativa do Espírito, pode dizer-se que o Espírito quer, o perispírito transmite e o corpo executa — elucidando, em admirável síntese, o poder do pensamento na vida or­gânica e das sensações no Espírito (4).

Amplo silêncio se espraiou pela sala. Todos mer­gulhamos em meditações, enquanto o angélico Instrutor propiciou uma pausa para reflexão dos ouvintes. E como fazendo as elucubrações para finalizar, arrematou:

— “Por essa razão, a vitalização de idéias edifi­cantes constrói o céu generoso da felicidade, tanto quan­to a mentalização deprimente gera o inferno da aflição que passa a governar o comportamento do espírito.

«É nesse particular que se avultam as lições sobe­ranas do Mestre Galileu, conclamando o homem ao ajus­tamento à vida, respeitando-lhe as diretrizes abençoa­das, através das medidas da mansuetude, da compaixão, da misericórdia, do amor indistinto e do perdão inces­sante.

«Reverenciamos hoje na Terra, felizmente, o Espi­ritismo com Jesus, verdadeira fonte de idéias superiores e enobrecidas que libertam õ espírito e o conduzem às verdadeiras causas em que devem residir os seus legí­timos interesses, fazendo que a dúvida seja banida, no que diz respeito à vida verdadeira, e trabalhando con­tra o egoísmo, fator infeliz de quase todos os males que afligem a Humanidade.

«Se alguém incide em erro, que se levante do equí­voco e recomece o trabalho da própria dignificação.

(4) “Obras Póstumas” — Allan Kardec — 11ª edição —“Manifestações dos Espíritos” — Item 11 — FEB. — Nota do Autor espiritual.

O erro representa lição que não pode constituir látego, mas ensejo de enobrecimento pela oportunidade que faculta para a reparação e o refazimento.

«O intercâmbio permanente dos Espíritos de uma com outra esfera da vida objetiva, seguramente, ofere­ce ao homem a visão porvindoura do que, desde já, lhe está reservado. No entanto, para dizer-se alguém espí­rita não basta que se tenha adentrado nos conceitos espiritistas ou participado de algumas experiências práti­cas da mediunidade... É imprescindível incorporar ao modo de vida os ensinamentos dos Espíritos da Luz, to­mando parte ativa na jornada de redenção do homem, por todos os modos e por todos os meios ao alcance, para que triunfem os postulados da paz, da justiça e do amor entre todas as criaturas.

«Nesse particular, o amor, conforme nos legou Je­sus-Cristo, possui a força sublime capaz de nos preser­var de nós mesmos, ainda jornaleiros do instinto, ensi­nando-nos que a felicidade tem as suas bases na renún­cia e na abnegação, ensejando-nos mais ampla visão de responsabilidade e dever na direção do futuro.

«Dia virá, não muito longe, em que a dor baterá em retirada, definitivamente, e o intercâmbio do bem, pela força criadora do amor que se origina nos Dínamos Mentais da Divina Providência, envolverá vigorosamente todos os seres e os conduzirá à direção da tranquili­dade plena, em cujo caminho já nos encontramos desde agora...

«Confiemos, pois, na vitória final do bem e desde logo nos entreguemos ao Sumo Bem que cuidará do nosso próprio bem».

Calou-se o Amigo Espiritual.

Suaves vibrações como que carreadas por mãos in­visíveis invadiram a sala, e ondas de imensa tranqui­lidade nos dominavam a todos.

Proferindo expressões de despedida carinhosa e dei­xando-nos com lágrimas que fluíam abundantes dos olhos, o Venerando Mentor desligou-se do médium e a sessão

foi encerrada

Um silêncio de emoções indescritíveis nos acompanhou a todos de retorno ao lar, para o necessário re­pouso, enquanto a noite serena salmodiava canções em fios estelares, estuando no Infinito.

5

Elucidações valiosas

Guilherme, adormecido, fora trasladado para local apropriado, na própria Terra, de modo a aguardar em refazimento espiritual o novo encontro com os antigos cômpares, para as bênçãos da paz e, consequentemente, desobsessão do Sr. Mateus e de Mariana.

O lúcido mentor esclareceu que oportunamente seria realizada outra entrevista com o perseguidor da faní­lia Soares, de modo a serem recolhidos esclarecimentos que facultassem as operações socorristas com o êxito que todos desejávamos. Sugeriu-nos igualmente justo repouso, e que, antes das tarefas em programação, bus­cássemos a serenidade da oração a fim de podermos co­operar com mais firmeza e melhor entendimento dos problemas que afetam a marcha da evolução espiritual dos seres, embora, ao retornarmos ao corpo, não nos re­cordássemos, com a nitidez que seria de desejar.

Antes do horário habitual, congregamo-nos na Sede da União Espírita Baiana, no recinto destinado aos la­bores mediúnicos, e seguramente inspirado por Satur­nino, o irmão Petitinga tomou de “O Evangelho segundo o Espiritismo”, iniciando a leitura de comovedora página sobre a epígrafe: “Amar o próximo como a si mesmo”, conforme se encontra no Capítulo 11.

As palavras, vibrando na tônica da compaixão, che­gavam-nos à alma como mensagem de amor que a to­dos nos irmanava em perfeita comunhão espiritual. Logo depois, a reunião teve começo. Incorporando o médium Morais, Saturnino elucidou que traria Guilherme à psicofonia para melhor mergulho nos fluídos do sensitivo de modo a diminuir-lhe a carga psíquica e o envolvimento nas faixas do ódio de que se via possuido desde há muitos anos.

Silenciada a voz do Instrutor Amigo, o médium foi dominado por estertores angustiantes e, como se des­pertasse de pesado sono, em que as imagens evocassem cenas muito dolorosas, o aflito perseguidor identificou o recinto em que se encontrava e, acometido de repen­tina ira, pôs-se a deblaterar. Acalmado com passes mag­néticos aplicados pelo Doutrinador, lentamente recobrou o equilíbrio e indagou a razão do constrangimento de que se via objeto, estando novamente ali.

Muito calmamente Petitinga explicou-lhe a neces­sidade do intercâmbio, a seu benefício mesmo, esclare­cendo a inadiável urgência de voltar-se para o exame mais ponderado dos problemas que o infelicitavam e dos quais somente o amor possui a tônica de poder conse­guir a libertação.

Guilherme esclareceu quanto à necessidade que nu­tria de retornar ao corpo, para dar prosseguimento à insidiosa cobrança, ressarcindo a injustiça de que se acreditava objeto. Elucidou que, numa das últimas reu­niões do Anfiteatro, o Dr. Teofrastus apresentara o caso dele à multidão, que o aclamara delirantemente, exal­tando a ética da “justiça com as próprias mãos”, nele vendo a vitória dos cometimentos que ali tinham curso. Como poderia, agora, recuar?

A Entidade apresentava os sinais do desespero e da frustração da criança caprichosa que se vê colhida no engodo da leviandade pela observação ponderada dos genitores.

— Ignoramos a que Anfiteatro se refere — iniciou, com habilidade e delicadeza, o Evangelizador. — Que poderia ter ocorrido num Anfiteatro, que lhe trouxesse responsabilidades, especialmente em se tratando da prá­tica inominável de crime cobarde?

— Crime? — revidou, Guilherme, visívelmente transtornado. — O relho da Justiça, que arde e fere nas mãos do regularizador de leis, passa, na sua car­tilha, a ser um crime? E o nefando suicídio a que fui levado, pela deserção do lar, o adultério infame prati­cado por aqueles a quem você chama vítimas?... Es­quece as minhas dores e...

Interrompendo-o, com muita destreza mental, re­darguiu Petitinga, a essa hora semi-incorporado por Sa­turnino que lhe apoiava a destra no centro coronário, irrigando a glândula pineal com altas doses de energia positiva:

— Não voltemos ao exame das razões do sofri­mento que o macera — falou com gentileza. — Não igno­ramos que há Leis Soberanas que se encarregam de en­contrar o devedor onde se encontre. Para tanto, porém, não se faz necessário que novos devedores ou infrato­res apareçam, criando, desse modo, um círculo de vi­ciações lamentáveis. A Lei, não desconhecemos, é de Justiça. Mas a Justiça Divina nasce nas fontes subli­mes do Amor e se manifesta por meios de misericórdia.

Ao amparo do nobre Instrutor todo o cérebro do encarnado se fazia radioso à clarividência, dando a im­pressão de que o sangue conduzia poderosa substância luminosa a impregnar-se de cores suaves que o inunda­vam de dentro para fora...

E prosseguindo, aduziu:

— A qual Anfiteatro se refere o irmão Guilherme?

— Ora, ao reduto em que nos reunimos para a aprendizagem de lições com o Dr. Teofrastus.

E estimulada a mais amplos detalhes, a Entidade, exteriorizando uma satisfação até então não revelada, elucidou:

— Surpreende-me a sua surpresa! Acredita você que nós estamos aqui desarmados? Técnicos verdadei­ramente poderosos estão organizados a serviço da Dis­ciplina, junto aos fugitivos que se escondem no corpo de carne, na Terra. É interessante observar como são ignoradas as realidades do lado de cá, mesmo por aque­les que se aventuram a excursionar além das muralhas do corpo.

— Já que somos tão ignorantes — aventou Peti­tinga — rogaríamos que você nos esclarecesse melhor.

Envaidecido, retrucou o perseguidor da família Soares:

— Ora, como narrei antes, quando na minha amar­gura solicitei ao Dr. Teofrastus a sua interferência se­gura, que me não foi negada. Paulatinamente, tomei conhecimento das suas ricas possibilidades, inclusive do espetáculo do Anfiteatro, que ele promove, semanalmente, para os que deambulam livre dos corpos, porém algema­dos à ignorância, sem saberem como revidar o mal que receberam dos seus inimigos que ainda não venceram as barreiras do túmulo. Assim, convidado por amigos, numa quinta-feira, aos primeiros minutos após zero hora, acor­ri ao local, que regorgitava de pessoas de ambos os lados para ouvirem e aprenderem com o mestre suas preciosas lições. Mais tarde, tomado como exemplo, foi o meu caso narrado püblicamente, e, após apresentadas as linhas centrais da justiça que me compete realizar, fui aclamado e, na última semana, apresentei despedi­das. Do Chefe recebi elogios, a promessa do seu auxílio e ajuda constante, durante os longos anos de afastamento do grupo, enquanto dure o meu mergulho... Ali­mentou-me a satisfação de que, embora separado pelo corpo, eu serei regularmente levado lá, mantendo os vínculos com a Organização, para não permanecer ao desamparo...

E depois de expressiva pausa, asseverou:

— Como vê, além do meu caso pessoal, conduzo agora a responsabilidade de agir em nome dos nossos, que vêem em mim uma das representações dos vigilan­tes e defensores da verdade.

Estávamos estarrecidos!

Como não poderia ser legítimo o depoimento de um membro ativo da Organização? Não havia dúvidas, sim, eu pensava. No entanto, como entender um Anfi­teatro, nos moldes dos da Terra, a funcionar além do túmulo? Havia lógica, porém. Não é o mundo físico o representante dos efeitos? Assim sendo, quanto existe do lado de cá, ôbviamente há do lado de lá. Quantas lições, todavia, Deus meu, aguardando por nós! O “orai e vigiai” sempre comandando os nossos destinos...

Com a serenidade que lhe era habitual, Petitinga não se fez surpreso; antes, referiu-se a Jesus, que prefe­rira o apupo das massas à conivência com o crime e com a discriminação do poder temporal. A Sua grandeza fora a Sua suprema humildade e o Seu revide a todo mal foi a Sua doação total aos perseguidores e afugentes, com os braços abertos na Cruz, como se transformados em asas de amor esperassem por toda a Humanidade, para amparar os infelizes e trânsfugas do dever, reno­vando-lhes as esperanças e sustentando-os na luta, amo­roso e forte até ao fim.

Os conceitos emitidos na mais pura emotividade pa­reciam sensibilizar o comunicante que, repentinamente, pareceu aflito, desejando libertar-se dos liames da incor­poração, no que foi atendido por Petitinga e Saturnino que lhe aplicaram passes balsâmicos, fazendo-o adormecer.

Os trabalhos prosseguiram normalmente até a hora do encerramento, quando o Instrutor, retornando à in­corporação, explicou que naquela noite mesmo o grupo voltaria a reunir-se, em desdobramento parcial pelo sono, para prosseguimento das tarefas.

As bênçãos da caridade e os tesouros decorrentes da comunhão fraternal, somente os conhecem aqueles que exercitam a solidariedade!

Todos demandamos o lar com o espírito lenido por esperanças consoladoras. Embora os membros da fa­mília Soares não houvessem participado do trabalho da noite, grande parte da tarefa fora desenvolvida objeti­vando a saúde e a paz daquelas pessoas.

Conforme planejado, reencontramo-nos na sala sin­gela do socorro espiritual os que participavam da assis­tência ao irmão Guilherme, conduzidos por Saturnino e os seus auxiliares. Embora parte considerável dos pre­sentes fosse constituída de encarnados parcialmente des­prendidos pelo sono, registrava-se em todos uma lucidez espiritual bem expressiva, o que facilitava o labor dos Benfeitores.

Guilherme, anestesiado pelo sono hipnótico, fora trazido antes e, no mesmo compartimento, assistido por dois enfermeiros da Esfera Maior, jazia inconsciente, velado, todavia, pelo carinho que lhe era indispensável para apaziguar as forças desconexas da ira e da decep­ção que lhe martelavam o espírito rebelde e infeliz.

Após aplicados recursos magnéticos de desperta­mento em todos os desprendidos parcialmente pelo sono físico, para melhor lucidez (lucidez relativa de que de­veriam estar possuidos os encarnados para as tarefas em programa, como explicou o Instrutor), e quando to­dos nos encontrávamos com melhores possibilidades de registro nos centros perispirituais, elucidou Saturnino que, naquela oportunidade, fora planejada uma incursão aos domínios do Dr. Teofrastus, para coleta de informes seguros, no que tangia ao processo de desobsessão dos membros da família Soares, e, mais em particular, de Mariana. Expondo quanto ao imperativo do equilíbrio e da manutenção do estado de oração, equivalente à vi­gilância e à fé, informou que somente ele, Ambrósio, Guilherme, o irmão Glauco — que já conhecíamos des­de a ocasião da mensagem sobre Hipnotismo, que tanto nos sensibilizara —, Petitinga e nós seguiríamos às observações no Anfiteatro enquanto os demais assisten­tes espirituais e o médium Morais ali se demorariam em leitura evangélica e oração, contribuindo, desse modo, para os resultados almejados.

Despertado Guilherme e esclarecido quanto ao pro­grama em pauta, este não se pôde furtar a uma expres­são de horror.

— Como se atreverão a adentrar-se no reduto do Chefe? Quais os objetivos que levarão em mente? — inquiriu, assombrado. — Ignoram que o espetáculo terá a direção pessoal do Dr. Teofrastus, que se faz acom­panhar invariavelmente de mais de uma vintena de cooperadores e guardas pessoais? Essa temeridade poderá redundar em lamentável punição para todos, inclusive eu. Não, ninguém intente a realização de idéia tão louca quanto essa. Recuso-me terminantemente à aquiescência.

— Você, no entanto, meu amigo — retrucou Satur­nino —, não se encontra em posição de escolha. As forças hipnológicas ali aplicadas não são a nós outros desconhecidas. Dispomos de larga experiência na ques­tão e nos faremos acompanhar de um técnico em recursos que tais, como eficiente cooperador para qual­quer circunstância menos feliz. Além disso, estamos a serviço de Jesus-Cristo, o Supremo Chefe da Terra, e poder algum é superior às forças que Ele nos outorga para a prática do bem e a libertação de consciências ainda mergulhadas nas sombras do crime.

Após uma pausa necessária, em que Guilherme se debatia entre as lembranças dos pensamentos que lhe eram habituais e a nobre austeridade de Saturnino, que embora amoroso sabia conduzir a questão com a ener­gia que não permitia discussão, prosseguiu:

— Como já lhe informamos, o nosso desejo é aju­dá-lo a encontrar a diretriz da paz interior...

— Recuso-a — bradou colérico. — Sinto-me per­feitamente feliz e a realização dos meus planos é o co­roamento de todos os meus esforços e sofrimentos. Esta imposição desagradável e coercitiva me surpreende e en­furece. Não conte comigo.

Como se aguardasse a explosão da revolta, Satur­nino acercou-se do revel e, orando em silêncio, se foi transfigurando diante de todos nós, enquanto uma aura de safirina e profusa claridade o envolvia. Vibrações sublimes a todos nos dominavam. Tínhamos a impres­são de que o reduto modesto se transformava em re­cinto de luz. Suave música chegava de longe e, surpre­endentemente, começamos a ver, além do que seriam as paredes materiais, diversas Entidades Espirituais que participavam das tarefas, embora sem que nós, os en­carnados, soubéssemos, mergulhadas em profunda ora­ção, ajudando Saturnino que se nos afigurava, agora, veneranda figura ancestral ressurgida das páginas co­movedoras da Boa Nova, nos seus primeiros séculos na Terra, quando homens afervorados se deixavam vencer pelas feras, em inolvidáveis testemunhos de amor a Jesus...

As lágrimas nos aljofravam abundantes e ignotas emoções nos venciam docemente.

O Mensageiro da Vida envolveu Guilherme pater­nalmente, transmitindo-lhe os suaves recursos do recon­forto e da esperança, e falou-lhe com inimitável tom de voz:

— Meu filho, Jesus é Vida, e a vida é inevitável caminho de todos nós, viandantes da evolução. Ninguém se furtará indefinidamente ao progresso, ao amor, à felicidade que a todos nós estão reservados. Só existe, soberana, no Universo, a Lei do Amor que rege os mun­dos e comanda todas as manifestações existentes, por­que o Nosso Pai é o Amor, O ódio a que muitos nos entregamos, quando inermes caímos na rebeldia, ódio sempre transitório, resulta da ausência do amor que en­torpecemos e envenenamos com as emanações mefíticas do nosso desequilíbrio. Não receie, portanto, amar. O amor oferece felicidade a quem ama, produzindo no es­pírito emoções transcendentes que o enobrecem e vitali­zam. Enquanto o ódio desagrega, macera e enlouquece, o amor sublima e liberta... Os que desrespeitam as Leis da Harmonia sofrem-lhes as consequências, sem que nos convertamos nos seus justiçadores, tornando-nos, igualmente, celerados. E ninguém fruirá de paz ou ex­perimentará alegria, vitimado em si mesmo pelo ódio. Há aqueles que na volúpia do desequilíbrio dizem não se importarem com o próprio estado... Todavia, a rea­lidade é outra. Lucigênitos, temos todos a destinação da Luz Divina...

Silenciou, momentaneamente, para dar ensejo a que Guilherme se impregnasse das sutis vibrações, deixan­do-se penetrar pelos argumentos e pelo amor que dele se irradiava.

Prosseguindo, acrescentou:

— Esqueça, filho, todo o mal, para lembrar-se do infinito bem com que Nosso Pai nos felicita as horas. O mal somente faz mal a quem o pratica, tornando-o mau. O perdão que se doa é semente de misericórdia que lançamos na direção do futuro, a benefício próprio... Não recalcitre. Não adie a oportunidade da re­novação. A vida a todos nos aguarda com a ação benig­na ou severa com que nos conduzirmos em relação ao nosso próximo. Verdadeiramente infeliz é aquele que não perdoa, não olvida o mal, não oferece oportunidade de redenção. Todo perseguido resgata e se liberta, enquanto o verdugo se amarra à dívida e se deixa arrastar aos vigorosos potros do sofrimento, vencido, mais tarde, pe­los vírus que alimentar nos escaninhos da mente ator­mentada. Recorde, desse modo, Jesus, que não carre­gava nenhuma culpa, e no entanto...

O ex-obsessor de Mariana, dominado por súbita emo­tividade, prorrompeu em copioso pranto, no qual extra­vasava toda a angústia retida por longos decênios, cau­sando compaixão a todos nós, que acompanhávamos o labor socorrista, valorizando o poder incomparável do amor.

Encolhido nos braços generosos de Saturnino, pa­recia uma criança muito crescida, porém absolutamente vulnerável. Cessada a ira, que é verdugo cruel, o espí­rito se deixara descontrair, retomando a condição dele mesmo.

— Chore, filho — acentuou, igualmente comovido, Saturnino. — As lágrimas de justo arrependimento e de necessária dor são como chuva preciosa em terra crestada, oferecendo a oportunidade para que medrem as sementes da esperança e da paz, que padecem, até então, esmagadas na esterilidade do solo. Não permita, no entanto, que o pranto refazente se transforme em tormenta ululante e destruidora... Agora começa vida nova para você, para todos nós. Jesus é sempre a porta, a nova oportunidade. Vadeemos os rios das paixões que nos retêm e avancemos na direção do porvir promis­sor. Se o passado se nos afigura fantasma que nos impossibilita a paz, o futuro, através da utilização do presente, em sabedoria e nobreza, nos enseja a bênção da alegria e a dádiva da paz. Todos nos encontramos enleados em reminiscências dolorosas. O nosso «Ontem» é qual sombra esperando o sol do «hoje» para a perene claridade do amanhã...

Silenciando, momentaneamente, o Benfeitor Espiri­tual parecia recordar longínquas lembranças, e, tomado por sublime modulação que nos parecia ter origem em distantes sítios, prosseguiu:

— Diante dos infelizes, o Mestre vez alguma teve palavras de aspereza: não os reprochou, nem os acica­tou. Envolveu-os, todos, na cariciosa esperança de me­lhores horas, oferecendo-lhes a dádiva do trabalho, nas oportunidades de mil recomeços para o burilamento ín­timo. No entanto, diante dos que se compraziam na mi­séria alheia, pseudodominadores do mundo efêmero, apli­cou o corretivo da palavra severa, advertindo-os com singular austeridade, não os poupando ao peso das res­ponsabilidades que preferiam .......

«Raros, porém, temos sabido valorizar o impositivo da informação cristã. A diretriz evangélica, ainda hoje, parece a muitos «loucura», conforme informava o após­tolo Paulo, em seu tempo.

«Tudo nos fala do amor, desde as paisagens feli­zes da Natureza às emoções superiores da vida; das sen­sações primitivas nos seres inferiores às expressões de felicidade nos homens... Todavia, o amor, para muitos de nós, não passa de arrematado egoísmo, no qual asfixiamos as esperanças dos outros nas redes estreitas e apertadas do nosso personalismo infeliz...»

Relanceou o olhar pela sala clareada fortemente pelas fulgurações que dele irradiavam, enquanto Gui­lherme, que buscava assimilar as lições com expressão de compreensível surpresa e ansiedade, se transformava em «homem novo», abandonando a carcaça sofrida do «homem velho» imanado ao ódio, agora renovado pelas sucessivas vibrações do amor. E como se desejasse fixar em todos nós os conceitos ali emitidos, continuou, lú­cido:

— Nascemos, vivemos no corpo e perdemos a indu­mentária, retornando ao palco das mesmas lutas, vezes inúmeras, sem conseguirmos melhorar as condições es­pirituais, repetindo a «roda das paixões» escravizantes em que nos comprazemos. Muitos, em incontável nú­mero, entramos na carne e dela saímos sem nos aper­cebermos do fenômeno, aferrados às vibrações mais pri­márias da vida. Todos sonhamos com os Céus, sim. Ra­ros, todavia, estamos construindo as asas da evolução com os materiais da iluminação íntima, nas linhas severas do trabalho fraterno, da renúncia, da caridade e do perdão. Semeamos pouca luz e colhemos aflições da­nosas; por essa razão, nossa arca de esperança perma­nece vazia de alento.

«Sejamos prudentes, pois, utilizando os recursos da hora presente a benefício próprio.

«Verdadeiramente felizes são aqueles que perdoam, que cedem, que doam, doando-se, também.

«Jesus é ainda e sempre a nossa lição viva, o nosso exemplo perene. Busquemo-Lo !»

Silenciou, invadido por emoções transcendentes. Tí­nhamos a impressão de encontrar-nos em outro plano vi­bratório, que não a Terra, nossa genitora sofrida e por­tadora de sofrimentos.

Recompondo-se com as características habituais, dis­se a Guilherme, que o fitava, algo atoleimado:

— E agora, filho, está disposto a seguir conosco ao recinto das experiências do irmão Teofrastus?

— Sim. Tenho medo, porém. Em toda a minha desdita, sonhei, não poucas vezes, com a paz longínqua...

As lágrimas impediram-no de prosseguir.

Pondo-lhe a destra sobre a cabeça banhada de úmido suor, Saturnino estimulou-o:

— Este é o seu momento de libertação. Não o adie.

O Senhor nos ajudará. Sigamos!

6

No anfiteatro

Ante a proximidade do momento de nos dirigirmos aos sítios em que o Dr. Teofrastus labora, voltavam-nos à mente as lições fornecidas pelo Benfeitor Glaucus, em torno da história e das realidades da hipnose.

Guilherme, amparado fraternalmente por Ambrósio, o delicado enfermeiro e assistente de Saturnino, foi in­corporado ao grupo, e assim nos acercamos da porta do velho edifício da União, para nos transferirmos até o Anfiteatro.

Saturnino, prestimoso e severo, antevendo a gravi­dade da excursão, a todos nos adestrou, quanto possí­vel, nos recursos da concentração e da prece, de modo a evitarmos qualquer desastre, no reduto inditoso para onde rumávamos.

A tarefa, de grande realce, tinha como objetivo essencial conhecer os métodos de trabalho dos «adversá­rios da Luz», de modo a elucidar os companheiros re­encarnados e aplicar, igualmente, os antídotos compatí­veis quando estes esclarecimentos viessem a lume.

Sem dúvida, desde as primeiras horas do Espiritismo, Mensageiros Eficientes têm vindo à Terra ofere­cer esclarecimentos sobre as paisagens do Mais Além... e, mesmo antes da chegada do Consolador, os informes incessantes chegavam aos ouvidos dos homens, advertindo-os sobre as realidades insofismáveis da vida.

Aguardava-nos à porta singular veículo, semelhante às velhas seges, porém de maiores proporções, à qual estavam atrelhados duas parelhas de corcéis brancos, belos espécimes equinos, conduzidos por um cocheiro de meia-idade, que nos saudou com discreta cortesia.

Adentramo-nos no coche, que partiu. As cortinas arreadas não nos permitiam a visão do exterior.

O irmão Saturnino esclareceu que conhecia o local em que estava o anfiteatro, próximo à região pantanosa da cidade, em uma área deserta e não muito distante, que atingiríamos numa hora de viagem aproximadamente. Elucidou, ainda, que a providência de utilizar o veículo se justificava, considerando a situação de alguns dos membros presentes à excursão, pouco adestrados a voos mais expressivos fora do corpo somático, como Guilher­me e qual acontecia a nós outros, algemados, ainda, às formas físicas.

Convidados à oração silenciosa, procuramos mergu­lhar no oceano sublime da prece, de modo a contribuir com os recursos possíveis para o êxito da missão.

Transcorrido mais ou menos o tempo previsto, es­cutamos bulha e altercação à nossa frente, quando, então, saltamos da condução, prosseguindo a pé. Havia uma multidão de entidades viciosas, em atitudes repelentes, que dialogavam com expressões vis e ultrajantes. En­tre elas, podiam-se notar diversos encarnados — perfei­tamente diferençáveis, graças aos vínculos do perispírito ainda ligado ao corpo físico — que pareciam algemados a alguns dos desencarnados libertinos, que os conduziam como se fossem escravos das suas paixões e de quem não se podiam libertar. Outros apareciam com caran­tonhas simiescas e o recinto tresandava putrefação. Vi­brações viscosas e sombrias carregavam os céus que tinham um tom pardacento-escuro, sem estrelas, e o solo miasmático parecia um paul insano que, todavia, não lhes chamava a atenção, acostumados como se en­contravam à paisagem triste e morta do local.

A construção, de matéria viscosa e escura, tinha a forma semicircular e fazia lembrar repentinamente os velhos circos, não fosse a substância de que se revestia. Luzes roxas e vermelhas esparramavam sombras ator­mentadas que passavam perdidas nos interesses em que se compraziam e, de quando em quando, massa compacta e atroadora, empurrando violentamente os que se encon­travam à frente, chegava em galhofa infernal. Dificil­mente se poderia ver na Terra espetáculo de tal natu­reza... E, todavia, estávamos na Terra, um pouco fora das vibrações do mundo material, dentro dele, porém.

Alguns guardas bufos e caricatos, tomavam conta da entrada ampla, onde se encontravam assestados al­guns aparelhos, que faziam lembrar os torniquetes uti­lizados entre os homens, com a diferença de que sobre eles havia uma caixa quadrangular, que Saturnino in­formou ter a finalidade de impedir a entrada de Espí­ritos que não pertencessem à malta. Era o psicovibrô­metro que tinha a capacidade de registar as ondas vi­bratórias de todos os assistentes, denunciando, assim, quaisquer intromissões dos Espíritos Superiores.

Ele, Ambrósio e Glauco, todavia, tomaram precau­ções especiais, de modo a transporem a passagem sem provocar qualquer alarme denunciador, através de um processo de imersão mental nas lembranças do passado, o que lhes diminuiria o registro vibratório. Além disso, penetrariam no recinto, logo mais, quando o número de frequentadores fosse muito expressivo, de forma a que o aparelho ficasse impregnado de fluídos de baixo teor vibratório. Quanto a nós, os encarnados, e a Guilherme, não haveria problema...

Afastando-nos um pouco do bulício, os Benfeitores e o Assistente, concentramo-nos demoradamente e ob­servamos um fenômeno singular. Lentamente o aspecto exterior se foi adensando e a forma padeceu ligeira transformação que os deformava e, como se estivessem respirando incômoda atmosfera, passaram a apresentar leves estertores e, sensívelmente modificados, convida­ram-nos a entrar.

Atravessamos as barreiras sem qualquer incidente e fomos surpreendidos por um recinto amplo, de arqui­bancadas que ficavam fronteiras a um picadeiro pouco iluminado, onde o espetáculo teria curso. A balbúrdia ensurdecedora fazia lembrar um covil de feras. Expressões profundamente vulgares e tradutoras da qualidade dos que ali se encontravam explodiam abundantes, cons­trangendo-nos.

Saturnino, com muita discrição, nos convocava àoração, de modo a que nos não distraíssemos. Esclare­ceu que Benfeitores Espirituais nos acompanhavam de longe, pelos fios invisíveis do pensamento, intercedendo por todos nós ao Senhor da Vida.

Guilherme, apavorado, estava a ponto de desequi­librar-se.

Acolitado, no entanto, por Ambrósio, que o susten­tava, manteve-se em silêncio, expectante.

Sübitamente apareceram, no recinto interno e semi­circular, estranhos sequazes que sopraram búzios esqui­sitos e anunciaram a chegada do Dr. Teofrastus.

Guilherme, ao nosso lado, entre a massa agitada que gritava, desenfreada, começou a tremer descontro­ladamente. O momento, porém, era de algazarra, en­quanto a multidão esperava ansiosa o anfitrião.

Aqui e ali, no entanto, havia muitas expressões de pavor, não só entre encarnados como entre desencar­nados, que esperavam o início da função, constrangidos e vencidos por medo atroz. Apresentando rostos pati­bulares, essas Entidades confrangiam mesmo aqueles que fossem portadores de sentimentos empedernidos, exce­ção aos que ali se encontravam, tresloucados...

O ambiente era irrespirável. Nuvens de fumo se ele­vavam, abundantes, misturadas a odores acre-fortes, como os derivados de plantas estupefacientes, e podia-se ver uma multidão espiritual, de paixões insaciáveis, açu­ladas, que habitualmente se atiravam atormentados so­bre os seus cômpares enjaulados na carne, em processos indescritíveis de vampirizações tormentosas. Esperavam, desditosos, as lições infelizes em torno das técnicas da obsessão, para continuarem o programa inferior de iman­tação psíquica nos seus antigos senhores que passavam, automàticamente, à condição dolorosa de escravos...

Não havia tempo para maiores elucubrações, pois nesse momento deu entrada no recinto singular cortejo formado por um grupo grotesco, estranhamente vestido, sustentando um sólio sob colorido pálio, em cujo assento se encontrava hedionda personagem. Trajando roupa de cor berraste, que variava do arroxeado ao negro, osten­tava grosseiro paludamento que lhe caia dos ombros e era sustido pelo braço esquerdo. O semblante aberto num sorriso que mais parecia um esgar, não ocultava a ferocidade brilhante nos dois olhos quase oblíquos, que se destacavam na face gorda e macilenta, sob uma testa larga, de raros fios de cabelos empastados... Bigodes abundantes se perdiam nas suíças extravagantes, com­pletando a visão terrificante e macabra.

O préstito bizarro voluteou por três vezes o picadeiro e se aquietou ao centro, transferindo-se o temível dou­tor Teofrastus para um palanque adredemente armado, com gestos vulgares e ridículos. Houve um súbito si­lêncio feito de expectativa e receio.

Voltando-se para a multidão, começou a falar, atra­vés de um microfone que levava a sua voz às galerias, por meio de vários projetores de som, de alta potência.

As palavras duras e impiedosas exprobravam os que se atemorizavam ante o cumprimento do «dever da vingança», explodindo ameaças e exibindo toda a prepo­tência de que se supunha possuir.

O silêncio era aterrador. Nenhum som, nenhuma galhofa, exceto, de quando em quando, alguns gritos de terror que partiam das arquibancadas...

— Temos hoje um caso de Justiça... — reticenciou.

E para fazer-se mais temerário, apostrofou:

— Julgaremos uma criminosa que chegou da Terra para os nossos presídios, há quase um ano...

Apareceram os que se poderiam chamar jurados, que tomaram lugar em assentos reservados, um acusa­dor, duas testemunhas — uma de lamentável aspecto Iacerado, e a outra, apenas uma pasta informe, perispi­ritual, estiolada, que, mantida numa cesta nauseante, foi colocada sobre uma mesa, em destaque, no centro do proscênio.

Algemada e atada a uma corrente, jovem mulher de uns quase 35 anos foi trazida, acolitada por dois guardas e conduzida ao palco da triste encenação.

O semblante desencarnado e a expressão de loucura deformavam-na em grande parte. Andrajosa e imunda, quase rastejava, minada pela ausência de forças.

O simulacro de julgamento era decerto confran­gedor.

A infeliz relanceou os olhos baços várias vezes, tra­duzindo o quanto de sofrimento lhe invadia o ser.

O acusador, empertigado e ferino, narrou:

— Esta mulher vem da Terra, após uma vida de abominação.

«Enganando-se, quanto pôde, entregou-se a toda es­pécie de prazeres, assistida de perto por diversos coope­radores da nossa Organização, após os seus primeiros crimes.

«Tendo oportunidade de fazer-se mãe, seis vezes con­secutivas, delinqüiu em todas elas, evadindo-se, pelo in­fanticídio, a qualquer responsabilidade para com os pró­prios atos.

«Na última vez, fez-se vítima da própria leviandade e desencarnou após terrível e demorada hemorragia que lhe roubou toda possibilidade de sobrevivência.

«Dentre os a quem ela impediu voltassem à carne, aqui estão duas vítimas suas, em diferentes estados: um conseguiu retomar a forma anterior, mas apresenta os sinais das lâminas que lhe romperam o corpo em formação; o outro ainda dorme, hibernado, na forma desfigurada, graças ao despedaçamento sofrido, no ato do aborto.

«Logo despertou, porém, no túmulo, alguns dias após o desenlace, acreditando-se viva no corpo — igno­rante das realidades espirituais —, um soldado nosso deu-lhe «voz de prisão» pelos crimes cometidos e, al­gemando-a, trouxe-a ao cárcere, em que tem estado até este momento.

«A sua primeira vítima, que pertencia aos nossos quadros, apresentou queixa, há muito, o que nos levou a assisti-la por alguns anos e agora nos reunimos para fazer justiça. »

O pobre espírito assistia a tudo, quase sem se aper­ceber. Parecia semidesvairado, recolhendo a muito es­forço mental algumas expressões esparsas, que no en­tanto não conseguia coordenar...

Os insultos e doestos choviam, atirados em abun­dância.

A testemunha fez chocante narração, várias vezes interrompida pelo vozerio das galerias, após o que, uma voz se destacou na bulha, anunciando o veredicto:

— Culpada!

Gargalhadas estridentes espoucaram de todos os lados.

O Dr. Teofrastus ergueu-se e, depois de receber mesuras dos comparsas, sentenciou:

— Façamos com ela, o que no íntimo sempre foi:

uma loba!

Acercou-se da sofrida entidade e, fitando-a, escar­necedor, passou a ofendê-la, vilmente.

A vítima não apresentou qualquer reação. Era como se a sua visão se encontrasse longe, a fixar as evoca­ções dos abortos delituosos a que se entregara nos dias de insensatez, que ficaram para trás, mas que não se consumiram...

Obrigando-a a ajoelhar-se, enquanto lhe estrugia no dorso longo chicote sibilante, ordenou, de voz ester­torada:

— Víbora infeliz! Devoradora dos próprios filhos! Toma a tua forma... a que já tens na mente atormen­tada.

“A tua justiça é a tua consciência... Obedece, ser­pente famélica!»

A voz, impregnada de pesadas vibrações deletérias e vigorosas, dobrava os centros de parca resistência pe­rispiritual da atormentada, e, diante dos nossos olhos, ao comando do sicário cruel, que se utilizava de proces­sos hipnóticos deprimentes, atuava no subconsciente pe­rispiritual abarrotado de remorso da infanticida, impri­mindo-lhe a tragédia da mutação da forma, num hor­rendo fenômeno de licantropia, dos mais lacerantes...

Choros convulsivos e gritos irromperam simultâ­neos das arquibancadas. A altercação foi geral. Repentinamente escutaram-se cirenes de alarme, e a pertur­bação se fez total...

Saturnino, a meia voz, buscou acalmar-nos, adu­zindo explicações:

— A visão horrenda para todos nós produziu em algumas centenas de reencarnados aqui presentes, cons­tringidos pelas forças obsessivas nas quais se encontram subjugados aos seus verdugos, choques muito profundos e violentos, que os recambiaram inopinadamente ao corpo — abençoada cidadela de defesa que a vida nos con­cede para aprender e recomeçar...

— Despertarão, ex­tremunhados, esses espíritos, mesmo os que conservam a demência nos registros da consciência retornando de estranhos e terríveis pesadelos, banhados por álgidos suores, amedrontados, chorosos, desesperados...

E desejando esclarecer-nos com as sábias lições, con­tinuou, enquanto os distúrbios prosseguiam:

— Nesse sentido, é que o conhecimento do Espiri­tismo realiza a melhor terapêutica para o espírito, hi­gienizando-lhe a mente, animando-o para o trabalho reto e atitudes corretas e sobretudo dulcificando-o pelo exercício do amor e da caridade, como medidas provi­denciais de reajustamento e equilíbrio. Não há força operante no mal que consiga penetrar numa mente as­sepsiada pelas energias vitalizadoras do otimismo, que se adquire pela irrestrita confiança em Deus e pela prá­tica das ações da solidariedade e da fraternidade.

E dando mais ênfase ao ensino, arrematou:

— Aliando o esforço que cada um deve envidar a benefício próprio, a prece é a fonte inexaurível que irriga o ser, renovando-o e aprimorando-o, ensejando também, logo após depurar-se, a plainar além dos reveses e tro­pelias, arrastado pelas sutis modulações das Esferas Su­periores da Vida, onde haure vitalidade e força para superar todos os empeços.

Paulatinamente a ordem foi restabelecida, conquanto a evasão dos encarnados fosse muito expressiva, na busca desesperada de refúgio nos corpos.

A cena estranha Continuou por mais alguns momen­tos e o atormentado espírito da mulher-lobo foi, por de­terminação do chefe, remetido ao interior para ser co­locado em defesa do anfiteatro.

Houve, ainda, algumas outras demonstrações de hip­nose elementar e grosseira, porém de efeito na multi­dão, atônita, quando o espetáculo foi encerrado, após a saída do infame séquito e do seu famanaz.

Um tanto deprimidos, saímos, também, e voltando a respirar o hálito da Natureza, quando chegamos àpraça em que se encontrava a União Espírita Baiana, depois da Jornada pelo mesmo processo, adentramo-nos, para receber energias revitalizantes e esclarecimentos finais do vigilante Benfeitor.

Recompondo o círculo e carinhosamente recebidos pelos que ficaram, fomos concitados à oração, após o que Saturnino, empenhado em esclarecer-nos, elucidou, pausado:

— Aparentemente, os infelizes companheiros que mourejam no Anfiteatro constituem segura organização a serviço do mal. Adestrados na prática da ignomínia, supõem-se preparados para investir contra os espíritos atormentados que gravitam em ambos os lados da vida, imanados às paixões que os consomem, paixões cujo comportamento facilmente sintonizam com eles e outros afins, caindo-lhes nas malhas vigorosas que, em última análise, se transformam em instrumentos de que se uti­liza a Lei Divina para corrigir os que ainda preferem os tortuosos caminhos... Muito tempo se passará até que as Leis de Amor, Leis da Vida, portanto, se esta­beleçam em definitivo entre nós... Convém considerar que só o bem tem características de perfeição, por ser obra de Deus, que é Perfeito. O mal, engendrado pelo espírito atribulado, opera por métodos de violência e, dessa forma, é falho, o que atesta a sua procedência. Não fosse isso e não nos poderíamos ter adentrado no recinto das intervenções malignas, pois que o. psicovi­brômetro ter-nos-ia denunciado... À semelhança de um contacto Geiger que detecta a radioatividade, o psicovi­brômetro obedece ao mesmo princípio, tendo, porém, as características magnéticas que registam a psicosfera dos que dele se acercam, detectando as vibrações mais sua­ves que, então, disparam a agulha que incide numa “re­lay” que, por sua vez, comanda um circuito de alarmes espalhados nas dependências adjacentes...

Como pro­curamos sintonizar com o meio ambiente em que nos en­contrávamos e aspirando os mesmos resíduos espalha­dos no ar, mergulhamos, naturalmente, em densas ondas de baixo teor vibratório que nos envolveram a todos, sendo que nós, Ambrósio e Glauco, passamos a sofrer os mal-estares compreensíveis, a que Guilherme por sin­tonia constante está habituado e os demais encarnados do Grupo, graças à condição do corpo orgânico não experimentaram maior choque, permanecendo, momenta­neamente, no mesmo teor de energias deprimentes, que impediram a oscilação da agulha de registro do aparelho... Fosse, porém, o inverso, isto é: se o aparelho detectasse vibrações de baixo tom vibratório, nenhuma Entidade das que ali se encontravam, desejando violar recintos Superiores, poderia sutilizar o padrão da sua psicosfera para criar condição mais elevada. Sem dú­vida que toda ascensão é lenta e áspera... Agradeça­mos, portanto, ao Senhor. Teremos ensejo de retornar ao

Anfiteatro, oportunamente, para prosseguir observa­ções e tarefas, quando, então, o irmão Glauco desempe­nhará função específica junto ao nosso irmão Teo­frastus...

Os trabalhos foram encerrados quando os primeiros raios da Alva venciam a teimosia da noite.

Reconduzidos ao corpo, particularmente nossa pes­soa conservou lembranças dolorosas e angustiantes. O dia nos foi de inquietação e distonia emocional, como se a noite nos houvesse ofertado cruéis pesadelos, de cuja visão confusa não nos podíamos libertar.

7

Apontamentos novos

Afastado do conúbio permanente com Mariana, gra­ças à interferência dos Benfeitores Espirituais, Guilher­me esteve todo o tempo em tratamento especializado, de modo a refazer o campo mental, secularmente aba­lado pelo ódio infeliz e destruidor.

Mariana, por sua vez, que já vivia aclimatada psi­quicamente às vibrações do seu perseguidor, sentiu-lhe a ausência desde o momento em que Saturnino reco­lhera ao aconchêgo da prece aquele que se lhe fizera verdugo inconsciente e pertinaz.

No dia imediato à primeira incorporação de Gui­lherme, a jovem, após retornar ao lar, deixara-se aba­ter por forte prostração. As emoções suportadas du­rante aquele dia, a expectativa dolorosa e frustrada quanto ao desejado colóquio com o namorado, a pre­sença da Sra. Aurelina e o reencontro com a genitora gastaram-lhe as resistências psíquicas e físicas, desde há muito vilmente vampirizadas pelo comparsa desen­carnado.

A jovem amanheceu, portanto, indisposta e per­turbada. Recordava-se de cruéis pesadelos de que fora vítima, nos quais parecia estar sempre perseguida por impiedoso assassino que lhe desejava tomar a vida, despertando transtornada e sendo acometida de constantes delíquios.

Dona Rosa e Amália desdobravam-se em angus­tiante assistência à moça atormentada, sem lograrem os resultados que desejavam. O Sr. Mateus, indiferente ao drama que se desenrolava no próprio lar, manti­nha-se apático, distante...

Ao entardecer, como Mariana continuasse em dolo­roso desconserto emocional, por alvitre de Amália foi chamado um médico relacionado com a família, que, após aplicar um sedativo, recomendou repouso e confi­denciou à mãe aflita a sua opinião de que a jovem estava com singular crise histérica, da qual poderia sair mentalmente perturbada.

A nobre senhora, banhada em lágrimas, redobrou cuidados junto ao leito da filha e de imediato solicitou a Amália fosse buscar a caridade nas mãos de José Pe­titinga, convidando-o a vir ao seu lar, em tarefa de so­corro e compaixão.

O servidor fiel do Evangelho, à hora aprazada, ten­do-nos antes convidado, compareceu, conosco, solícito, ao lar dos Soares, e fomos conduzidos ao quarto em que a moça dormia, visivelmente agitada.

Depois de demorada concentração e de sincero re­colhimento através da oração, Petitinga, amparado ca­rinhosamente pelo irmão Saturnino, fez demorada apli­cação de passes na jovem, que lentamente se foi acal­mando até que o sono se lhe fez reparador, tranqui­lizante.

Interessado em acalmar a família aflita, esclareceu, bondoso:

— Mariana, conforme verificamos nos trabalhos es­pirituais da noite passada, vinha sendo vítima de uma obsessão em grave desenvolvimento. Vinculada pelo passado culposo a atormentado companheiro que se lhe transformou em adversário vingador, absorveu durante alguns anos as energias deletérias em que se via envol­vida, criando um condicionamento psíquico, que, embora desgastando o seu organismo, lhe servia, também e si­multâneamente, de sustentação. Libertada da constrição perturbadora, conforme acompanhamos durante os tra­balhos desobseøsivos, ressente-se e padece as consequên­cias da falta dos fluídos pesados...

E desejando elucidar com mais segurança, acrescentou:

— É como alguém que, ambientado a uma região de ar viciado, repentinamente fosse trasladado para um planalto de ar rarefeito e puro, o que produziria natu­ral sensação de mal-estar, asfixia e tortura.

Depois de uma pausa mais longa, como se rebus­casse os refolhos da memória, e inspirado pelo seu Es­pírito guia, adiu:

Tenho a impressão de que os labores socorris­tas da noite se alongaram durante as horas do sono... Estão-me impressas na mente desde esta manhã diver­sas cenas que me recordam serviços espirituais junto a Mariana, seus familiares e o Espírito perseguidor... Estou certo de que o processo em estudo se alongará ainda por algum tempo e de que teremos que envidar muitos esforços no sentido de eqüacionar os problemas que se misturam no drama dessa obsessão, muito carac­terística, aliás. No momento, vejo Saturnino que, assen­tindo com gesto peculiar da cabeça, nos conclama àpaciência, à oração e à vigilância. Mariana não está desamparada, mas se faz mister carinhosa assistência e muita dedicação, até que se possa recobrar do doloroso embate, cujo pórtico de libertação somente agora vis­lumbra, tendo muito caminho a percorrer. Viremos dià­riamente aplicar-lhe passes e instruí-la espiritualmente como o caso requer, de modo a que ela aprenda a sintonizar em outras faixas do pensamento espiritual e moral, a fim de contribuir eficazmente para a própria regeneração íntima e recuperação da saúde.

Despedindo-se gentilmente dos familiares visitados, sob visível gratidão de todos, ao chegar à rua Petitinga prosseguiu explicando-me, assumindo essa atitude que lhe era habitual:

— Ocorre que despertados os centros da memória subconsciente, Mariana se vê agredida pelas próprias imagens desequilibrantes que acalentou, e que se podem transformar em infeliz processo de loucura. Loucos não são somente os que são vítimas de infecções específicas, os que têm lesões cerebrais, os que sofreram trauma­tismo craniano, os que padecem de tumores no cérebro, os esquizofrênicos e outras tantas que se apresentam sob causas outras. Não apenas os obsidiados por Entidades desencarnadas. O enfermo mental, classificado em qual­quer nomenclatura, é espírito perseguido em si mesmo, fugitivo das Leis Divinas, refugiando-se numa organi­zação psíquica que lhe não resiste aos caprichos e se desborda em alucinações, até à alienação total. Muitas recordações infelizes de existências passadas podem, repentinamente, assomar à consciência atual, libertadas dos depósitos da subconsciência, criando estados patológicos muito complexos. Essas evocações podem to­mar dois aspectos distintos: remorso inconsciente a se manifestar em forma de autopunição, como buscando re­parar o mal praticado, e recordação tormentosa, persis­tente, gerando a distonia da razão, o desequilíbrio do discernimento. No caso de Mariana, a segunda é a hipó­tese que melhor se lhe ajusta.

Fez silêncio. A noite convidava à meditação. As ruas calmas da cidade ensejavam marcha lenta e agra­dável. Interessado em clarificar o problema, aduziu:

— Como observamos durante os trabalhos já referidos, que tiveram curso demorado quando buscamos o lei­to, na noite passada — dos quais me lembro cada vez com melhor nitidez —, Mariana se defrontou, parcialmente desdobrada pelo sono, com o seu antagonista e re­cordou naturalmente da fuga ao dever, da responsabili­dade pelo sofrimento que acarreta ao atual desafeto, fi­cando desse modo vivas, na mente, as cenas revisadas pela necessidade imperiosa que se fazia do reencontro espiri­tual da vítima e do algoz, para o impositivo da pacifica­ção. Nada ocorre em nome de um protecionismo que seria injusto e indigno do Nosso Pai. Verdugo e vítima são filhos do mesmo Amor, momentaneamente separados por desconsideração ao dever ou por maneira inditosa de aca­tar os fatos e acontecimentos da vida. Daí, a inevitabi­lidade de uma existência pautada nos conceitos sempre atuais do Evangelho de Jesus.

— E terá ela probabilidade de se refazer? — inda­guei, interessado.

Sempre muito sereno, o interlocutor fitou-me com os seus olhos muito claros e brilhantes, e disse:

— Como você sabe, Miranda, a Lei é de Amor, sem dúvida; no entanto, também é de Justiça e de Misericór­dia. Muito dependerá da menina Mariana. Falou-nos Dona Rosa que o esculápio diagnosticara tratar-se o seu problema de uma «crise histérica», deixando maliciosamente a suspeição de ser o problema de ordem sexual, que não tenho autoridade técnica do assunto para con­testar. Acreditam os discípulos de Freud, que no sexo se encontram as explicações para quase todos os proble­mas que afligem o homem, na Terra. A comunhão afeti­va, inegàvelmente, vazada na excelência do amor, conse­gue sublime intercâmbio de forças e energias de variada espécie que restauram, às vezes, as organizações físicas e psíquicas em desalinho, especialmente quando de tal intercâmbio resulta a bênção de filhos, pois que os inimigos espirituais quase sempre tomam a roupagem fili­al e renascem nos braços dos seus antigos adversários, libertando-os temporàriamente das perturbações que antes experimentavam — o que dá aos materialistas a fal­sa impressão de que o problema foi resolvido pela co­munhão sexual calmante, por ignorarem, os que assim pensam, as leis das reencarnações, que são santificado­ras portas de paz! — para surgirem outras implicações, mais tarde, que somente o amor, a abnegação, o per­dão puro e a humildade, amparados na oração, podem eqüacionar. Confiemos que Mariana se liberte quanto antes da atual conjuntura e se possa preparar para o amanhã vitorioso. Há também um argumento que contraria a tese materialista que atribui ao sexo proezaz quase ilimitadas. Não poucas vezes casais perfeitamente harmonizados e sexualmente tranquilos, descambam para lamentáveis desequilíbrios, os quais não se enquadram na apressada solução do uso do sexo, como moderador para o campo emocional.

Chegáramos ao local do transporte. Tomamos as conduções e rumamos em direção diversa.

Desde então, diariamente visitávamos a paciente que, lenta, porém seguramente, dava mostras de recom­posição íntima. Dias houve mais graves, consequência natural dos encontros mantidos espiritualmente nas ta­refas em desdobramento e de que ela não se dava conta ao retomar a lucidez orgânica.

Instruída cada dia nas lições ministradas por Peti­tinga, logo depois começou a andar e pôde, então, fre­quentar as sessões de estudos e passes dirigidas pelo amoroso seareiro de Jesus.

De quando em quando, acordava agitada, revendo-se em terras distantes, experimentando tormentosas ago­nias compreensíveis...

Petitinga, inteirado do processo de obsessão, con­forme prosseguiam os serviços espirituais nas diversas reuniões especialmente convocadas por Saturnino para tal mister, quanto estávamos nós próprio, auxiliava a en­ferma, esclarecia, ministrava passes, orava, conclamava, otimista, aos serviços da esperança e do amor. Conci­tou-a vezes várias à aproximação afetiva com o Sr. Ma­teus que, sempre reservado, apresentava já alguns sin­tomas característicos da «psicose senil», ele que também estava menos azorragado pelas tenazes de Guilherme, ora em tratamento.

Graças às palestras edificantes do generoso expo­sitor, o lar dos Soares se foi transformando, não total­mente, produzindo uma atmosfera de entendimento rela­tivo, que resultava em bem geral.

O caminho a percorrer, no entanto, era ainda muito longo. Passaram-se apenas quatro semanas desde o cho­que entre filha e pai, quando tivera começo o serviço da desobsessão.

Na noite imediata ao encontro malogrado, Adal­berto, refeito do problema gastrintestinal de que fora vítima, procurou informações sobre Mariana, vindo a saber por pessoa amiga de que esta se encontrava en­ferma. Solicitou, então, logo depois, permissão a Dona Rosa para visitar-lhe a filha, no que foi atendido pela generosa matrona, embora sem atinar com a razão que o levava a este impulso.

Sem compreender o que ocorrera, Adalberto não pôde ocultar a singular surpresa que o acolheu quando visitou Mariana. Desfeita, sem vitalidade, a jovem cau­sou-lhe imediata compaixão. Fitando-a, em silêncio, re­passou pela mente pouco afeita a cogitações mais elevadas os planos que animara até quase às vésperas, deixando-se arrastar por abençoado arrependimento. Ven­do a sua quase vítima, indefesa, quase desfalecida, um sentimento novo de afeição começou a brotar no seu espírito, compreendendo a necessidade de imprimir diferente rumo às suas atitudes. A vida física, junto ao leito da namorada, lhe parecia tão rápida e enganosa! Agradecia a Deus, sem palavras, a enfermidade que o impossibilitara de ter ido ao encontro com a jovem, sem entender de como tudo fora estabelecido pelos Emissários do Bem.

A partir daquela noite, passou a visitá-la com re­gularidade, sob a aquiescência materna, e, depois, por curiosidade e para ser gentil acompanhou-a às disserta­ções espíritas, revelando-se um admirador entusiasta do Espiritismo, e de Petitinga que lhe conquistara imedia­tamente a amizade.

Quando se encerravam as exposições doutrinárias, invariàvelmente Adalberto se acercava do venerando evangelizador e lhe apresentava, em forma de pergun­tas inteligentes, problemas que o afligiam intimamente, ou relacionava os informes espíritas com os fatos e an­gústias humanas, os dramas sociais, as enfermidades irreversíveis, nas quais milhões de seres se debatem e se desesperam, e para os quais a Ciência Médica na grande maioria dos casos se apresenta impotente.

As respostas serenas, lúcidas e lógicas, oferecidas por Petitinga, dealbavam para o moço horizontes de es­perança, dantes jamais sonhados.

Mariana, conquanto muitas vezes permanecesse de semblante turbado por funda melancolia, invadida por macilenta palidez da face, registrava as lições novas nos refolhos dalma, com viva emoção. Vezes outras, en­quanto recebia o recurso do passe, deixava-se dominar por choro convulsivo e desesperador, tomando um “fa­cies” de desespero como se visões pavorosas lhe asso­massem à mente, após o que caía em prostração.

Petitinga sempre interessado em ajudar-nos com es­clarecimentos, diante da jovem adormecida, explicava:

— Essas crises procedem de visões por parte de Mariana dos seus perseguidores espirituais, pois que estes, amparados, não a inquietam no momento. Ocorre que o próprio espírito, jugulado ao remorso por muitos anos antes de reencarnar, fixou vigorosamente na sede da memória perispiritual, que mais tarde se imprimi­riam no cérebro, as cenas dolorosas que vivera no Hos­pício do Haarlen, conforme narrara ela mesma quando desdobrada pelo sono, no reencontro com Guilherme. O corpo é sempre para o espírito devedor — devedores que reconhecemos ser todos nós — sublime refúgio, por­tador da bênção do olvido momentâneo aos males que praticamos e cuja evocação, se nos viesse à Consciên­cia de inopino, nos aniquilaria a esperança da redenção. Quando viciado por indisciplina da nossa vontade, ele envia aos recônditos do espírito os condicionamentos que se transformam em flagício, passando de uma reencar­nação a outra, até que se depure, libertando os centros da vida das impressões vigorosas que os sulcaram. Na mesma ordem, os erros e os gravames praticados pelo espírito em processo evolutivo são transmitidos ao corpo que os integra na forma, assinalando nas células os im­positivos da própria reparação, a se apresentarem como limitação, frustração, recalque, complexos da personali­dade como outros problemas e enfermidades que são as mãos da Lei Divina reajustando o infrator à ordem. A semelhança de uma esponja, o corpo absorve as im­pressões que partem do espírito ou as elimina, como também se carrega da psicosfera ambiente e a envia ao íntimo, passando a viver-lhe as emanações. Abençoar, portanto, esse «doce jumentinho», como o chamava mei­gamente Francisco, o Santo de Assis, com disciplina e educação, é dever que a todos nos devemos impor a benefício próprio e que não podemos postergar.

Diante das ínformações doutrinárias oferecidas pelo preclaro Benfeitor Petitinga, quedávamo-nos comovidos, buscando pesar, cada vez mais, as responsabilidades que nos competem na condução da organização física, la­mentàvelmente tão pouco aproveitada pela imensa maio­ria das criaturas humanas.

Enquanto se desenvolviam os labores socorristas a Guilherme e simultaneamente a Mariana, os implicados mais diretamente nas malhas do sofrimento redentor, ela apresentava sinais de reequilíbrio, enquanto regis­trávamos os benefícios que a todos nós alcançavam, graças à aplicação da caridade fraternal.

8

Processos obsessivos

À medida que os serviços de socorro a Mariana pros­seguiam, fazia-se indispensável remover as raízes pro fundas da obsessão que, através das vinculações de Gui lherme a Teofrastus, se tornaram mais complexas.

Estando o lar do Sr. Mateus sob o assédio de en­tidades viciosas outras, pertencentes ao clã Teofrastus, que mantinham estreito comércio com Marta, a filha mais velha, o movimento de desencarnados era muito expres­sivo, em atividade contínua e de resultados nefastos.

Portadora de mediunidade com amplas possibilida­des, Marta reencarnara ligada a comensais do erro em que derrapara espontaneamente em existência pregressa. Aquinhoada com os recursos psíquicos do intercâmbio espiritual, deveria aplicar as forças de ordem paranor­mal ao serviço do bem e da caridade, de modo a auto-iluminar-se, iluminando por sua vez os que se lhe vin­culavam pelos fortes liames das dívidas. Conquanto houvesse conhecido o serviço da mediunidade sublimada sob as bênçãos de Jesus, na União Espírita Baiana, preferira o círculo das baixas vibrações em que se demo­rava, atendendo a vigorosa hipnose de entidades infe­lizes e impiedosas que lhe dominavam o campo mental, amplamente afetado. Dizendo-se ligada aos graves co­núbios com antigos escravos do Brasil, ainda dirigidos por ódios demorados, fascinava-a as incursões no terreno do «candomblé», inexperiente e insensata, em cujos segredos procurava aprofundar-se, penetrando lamentavelmente em grosseiras burlas, que a conduziam a dolorosos processos de possessão paulatina e segura.

Dirigida por mentes tenazes, irreversivelmente portadoras de alta dose de rancor, fazia-se dócil instrumento para as consultas da irresponsabilidade, aliciando outros cômpares para o vampirismo que grassa em larga escala nos diversos departamentos da crosta terrestre, entre os seres invigilantes e pretensiosos.

Não poucas vezes, dirigida pelos famanazes espirituais da rebeldia, adentrava-se, noite alta, pelas necrópoles da cidade em busca de despojos humanos para os infelizes serviços a que se entregava, conduzindo de volta ao lar verdadeiras legiões de sofredores revoltados que se lhe vinculavam em longo processo perturbador de que no momento não se apercebia, fascinada como se encontrava pela própria sandice.

As orações de Dona Rosa e Amália eram o único lume aceso no labirinto em que se debatiam as forças desencontradas ali operando em guerra de longo curso. O poder da oração e a vida de elevação santificante, no entanto, são capazes, embora a aparente fraqueza de que se revestem, de anular toda a treva, blindando de segurança qualquer circunstância. Embora ignorando que fosse o seu ninho de sonhos doridos um reduto de espíritos desditosos, Dona Rosa sentia a exsudação psíquica que empestava o ambiente, reservando-se maior dose de confiança no Pai, que a amparava benigno, defendendo-a e aos outros membros da família dos miasmas dominantes na atmosfera do lar. Entidades afeiçoadas igualmente, serventuárias do amor, visitavam com freqüência a família Soares, dispensando a todos socorro e assistência contínua, de modo a impedir que os sequa­zes da criminalidade ali dominassem em toda a extensão.

Não eram apenas os Espíritos perturbados da es­fera dos desencarnados. Muitos perdulários buscavam os serviços de Marta tentando, através de conciliábulos com as mentes nefandas, resultados para mil aventu­ras a que se afeiçoavam no jogo ilusório das paixões terrenas. Eram pessoas que perderam objetos de esti­mação e esperavam encontrar, nos Espíritos, interes­sados caçadores de precisão; mulheres amadurecidas que não lobrigaram consorciar-se e que desejavam transfor­mar os Espíritos em instrumentos dos seus desejos; es­posas infelizes que sofriam a falência do matrimônio, recorrendo ao concurso de entidades mentirosas que lhes modificassem a paisagem doméstica; criaturas desem­pregadas que contavam com solução para a aquisição de trabalho de remuneração expressiva; escravos do ódio que se acreditavam vitimados por este ou aquele adversário, solicitando revide e desforço imediato; men­tes desvairadas, ancilosadas pelo vício, rogando solução para problemas complexos... Atendidos no «consultó­rio» reservado de Marta, que mantinha pequeno case­bre para o seu infeliz comércio, muitas vezes, conquanto a severidade de Dona Rosa, eram recebidos clientes no próprio lar, em cuja oportunidade apresentava receitas e exigia materiais para os trabalhos por meio dos quais informava resolver qualquer situação penosa, liberando de problemas os seus consulentes.

Portadora de psicofonia sonambúlica atormentada, vidência e audiência dirigidas por cruéis verdugos de­sencarnados, a obsidiada vivia relacionada com Espíritos ociosos que lhe prestavam informes seguros sobre os seus visitadores, informações essas que surpreendiam agradà­velmente quantos a buscavam, interesseiros e levianos.

Sempre ávidos de novidades, sem o interesse de co­nhecer a realidade da vida espiritual após a sepultura, as pessoas ainda hoje preferem da realidade espírita conhecer somente o que consideram fantástico e sobrena­tural, teimando voluntariamente em permanecer no erro.

Assim se quedavam fascinadas quando a sensitiva lhes explicava os diversos problemas, pormenorizando deta­lhes e apresentando soluções fáceis quanto mágicas para eles. É certo que os Espíritos, conquanto perturbados em si mesmos, podem fazer incursões no terreno material e informar-se sobre muitas coisas do plano físico em que se demoram os homens, pois que a morte não lhes arrebatou a inteligência nem lhes anulou o raciocínio. São capazes, obviamente, de acompanhar as criaturas, dar-lhes assistência e inteirar-se das ocorrências do ca­minho humano, apresentando circunstanciados relatórios, como se houvessem podido, por sortilégios estranhos, possuir o «dom» do conhecimento. Conseguindo êxito no primeiro tentame, o da informação, produziam os de­mais planos verdadeira consagração nos invigilantes que se comprazem na «lei do menor esforço» e que ainda se reservam o direito de manter o cativeiro, que, embora desaparecido da Terra, continua em outros círculos do mundo espiritual em lastimáveis processos. Ainda hoje é muito comum escutarem-se aqueles que dizem ter «um espírito às suas ordens», que os ajuda, atendendo-os com «fidelidade de cão». Invariavelmente se ligam a antigos escravos que a desencarnação não libertou e que pros­seguem, na sua ignorância quanto às realidades da vida, no vicioso intercâmbio com as consciências da Terra, do­minados ou dominadores — o que também ocorre, mo­dificando-se então o tipo de escravidão que é o predo­mínio do desencarnado sobre o encarnado —, quase sem­pre em profunda perturbação. Vaidosos, os homens não atentam ao dever da solidariedade nem da caridade, considerando-se credores de socorros e ajudas que estão muito distantes de merecer. Asfixiados pelo «eu, domi­nador, supõem que a vida deve servi-los e que o barro orgânico é edifício para o seu supremo prazer... Nes­ses homens e mulheres desprevenidos da realidade do além-túmulo, consciências livres e ironizantes estabele­cem jugos de dominação que degeneram em enfermida­des de etiologia difícil para a medicina humana, e que não acabam sequer com o advento da desencarnação...

Aí estão, todavia, claras e puras as lições do Cris­tianismo, ora revividas na Doutrina Espírita, clamando quanto às responsabilidades de cada um em relação a si mesmo e ao próximo; vibram os pensamentos de Je­sus, arrancados do silêncio dos séculos, convidando ao amor, à santificação da vida; sublimes vozes da Imor­talidade proclamam a Era da Luz combatente contra a treva; venerandos desencarnados retornam e revivem os conceitos imortalistas da verdade, cantando a excelên­cia dos Mandamentos; ilações excelentes quanto às cau­sas e aos efeitos dos sofrimentos e das ações são apre­sentadas por antigas cerebrações que dignificariam a existência entre os homens; mortos queridos ressusci­tam do sepulcro vazio para consolarem e animarem, le­vantando o moral e estimulando ao dever; guias e condutores da Humanidade reassumem a direção do pen­samento da Terra, pregando esperanças, dirimindo dú­vidas, plasmando diretrizes de paz; obreiros da compai­xão retornam e tomam das mãos dos homens, com mãos intangíveis, para os conduzirem a retas atitudes, e uma sinfonia de bênçãos em forma de melodia de justiça, amor e caridade, envolve a Humanidade como se os an­jos da noite santa do Natal voltassem a repetir: «Glória a Deus nas alturas e paz na Terra entre os homens de boa vontade»! Os ouvidos das criaturas, porém, ante as atroadas dos desesperos, os olhos queimados pelo incêndio das paixões, os sentimentos crestados pelo vazio da volúpia e os cérebros abrasados pela sofreguidão do poder parecem não registrar tão sublime sementeira de luz, não sentir tão grandiosa epopeia de vida!...

O triunfo do Consolador prometido por Jesus, ora entre nós, ainda não atingiu o climax. Ele, porém, re­petindo as «vozes dos Céus», prosseguirá no desiderato da verdade, semeando bênçãos, embora as pequenas co­lheitas de amor, e ficará até o «fim dos tempos».

A missão do Espiritismo é a mesma do Cristianismo das primeiras e refulgentes horas do caminho e das are­nas: levantar o homem do abismo do «eu» e alçá-lo às culminâncias da fraternidade, após galgado o monte da sublimação evangélica redentora.

Transitório o período das trevas, prepara ele as consciências para o despertamento da verdade.

Saturado das vibrações ultrajantes, o espírito hu­mano buscará, invadido por incomparável sede de reno­vação, as fontes inefáveis do bem, mergulhando demo­radamente nas suas águas refrescantes...

Assim considerando e diante das esperanças e con­solações que nos aguardam, os nefandos labores da ator­mentada quimbandista nos inspiravam funda compaixão, compaixão que também nos merecem aqueles que bus­cam os desvios da leviandade para enganarem a cons­ciência, tentando a fuga espetacular às linhas do dever. Não poderão alegar desconhecimento da verdade, nem se justificarão como ignorantes do auxílio dos recursos divinos; lamentarão sem poderem fruir o consolo reser­vado aos que se esforçaram em perseverar na augusta direção do bem; chorarão sem lenitivo, por desprezo àimpostergável mensagem do «fazer ao próximo o que deseja lhe faça ele»; sofrerão demoradamente longe do recurso da prece, de que se utilizaram mecanicamente, sem qualquer respeito, fazendo-a instrumento de capricho infantil antes que veículo de comunhão com o Se­nhor... São os que se encarceram nos presídios sem pa­redes da mente desalinhada e tormentosa, O tempo, porém, que de tudo se encarrega, cuidará dos sandeus com a mesma mestria que liberta os humildes, os pacificadores, os simples de coração... herdeiros da Terra!

Ora, com o andamento das operações de socorro ao lar da família Soares, o irmão Teofrastus fora infor­mado por comparsas seus, ali residentes, dos rumos que tomavam os processos de dominação, que até então re­pousavam em suas ávidas e duras mãos.

Em face disso, o irmão Saturnino programara novo encontro espiritual, através do médium Morais, no qual se tentaria uma entrevista com o antigo mago de Ruão, que teria atividades em pauta para a madrugada do dia imediato, no Anfiteatro já nosso conhecido.

À hora aprazada, em desdobramento parcial pelo sono, encontramo-nos no recinto das tarefas mediúnicas da nossa Casa de oração, conduzidos que fôramos pelo irmão Ambrósio, lá defrontando os demais membros das tarefas em curso, com exceção do irmão Guilherme, que fora recolhido, dias antes, a local próprio de repouso e refazimento espiritual.

Após comovida oração proferida pelo irmão Satur­nino, este explicou os objetivos da reunião, que deve­riam colimar num encontro pessoal com o irmão Teo­frastus, e cuja orientação seria ministrada pelo Benfei­tor Glaucus, responsável pela empresa que se nos afigurava de grande porte, em considerando a necessidade de nos adentrarmos, novamente, no Anfiteatro para, após as exibições dolorosas, mantermos entrevista com o gê­nio das sombras.

A caravana estava constituída pelo irmão Glaucus, Saturnino, Ambrósio — mensageiros adestrados em ta­refa de tal envergadura — e por nós outros, desdobrados parcialmente pelo sono: Petitinga, o médium Mo­rais e nós.

Tomando o veículo que nos conduziu à região em que se encontra localizado o cenário das ocorrências infe­lizes, acercamo-nos de pequeno grupo agitado que dis­cutia, em altas vozes.

Indigitado obsessor informava:

— Hoje teremos um espetáculo formidando. Fui in­formado, desde as vésperas, por diligente amigo intei­rado das ocorrências daqui, e eu não podia faltar. Ne­cessito de aprender e utilizar os recursos da técnica mo­derna para fazer justiça...

Estrídula gargalhada ressoou, sarcástica.

Outro infeliz perseguidor, que assinalava no facies macilento e desfigurado a condição íntima, grunhiu:

— O caso de hoje, como outros anteriores, pertence à força da justiça. Entre nós, a lei tem função puni­tiva. Nada de correção, nem piedade. Quem fere será ferido, e acabou-se.

Uma senhora que se caracterizava pelo desleixo da aparência, com fundas olheiras, narinas arfantes e lá­bios finos, contraídos, de semblante patibular, arengou:

— Eu conheço pessoalmente o infrator que hoje começará a experimentar o rigor da justiça... Estou ansiosa. Não percamos tempo. Entremos!

Em ruidosa zombaria, rumaram na direção da porta principal e desapareceram entre a multidão agitada.

O que merece registro é que todos se referem àJustiça. Esquecidos da própria condição, tornaram-se juizes dos outros, esfaimados como se encontram de equilíbrio. Enlouquecidos nos desvarios da vindita, es­tribam-se no falso conceito da (justiça com as próprias mãos», derrapando em crimes hediondos que os surpre­enderão mais adiante, recebendo-os nas malhas da ine­xorável lei da evolução. O momento, no entanto, não comportava considerações de tal natureza. Gentilmente advertidos por Saturnino, reunimo-nos em prece e, absor­vendo as energias deletérias com que modificaríamos a «psicosfera espiritual», algo arquejantes sob o império das emanações de baixo teor vibratório, respirando a custo, com a aparência algo desfigurada para não cha­mar a atenção, acercamo-nos em grupo, da entrada, atra­vessando o torniquete em que se encontrava instalado o «psicovibrômetro».

O ambiente interno, insuportável, estava carregado de fumo e vapores nauseantes, asfixiantes. Luzes pesa­das caíam em tons fortes projetadas na direção do cen­tro em que se dariam os espetáculos. A multidão de ga­lhofeiros era considerável. Doestos e expressões vulga­res explodiam em atroada forte de todas as direções. Alguns encarnados, amedrontados uns, voluptuosos ou­tros, participavam das galerias atulhadas.

O irmão Saturnino, sempre gentil, explicou-nos ser necessário considerar que ali se encontravam muitos es­píritos encarnados, espontaneamente presentes, partici­pantes habituais que se fizeram de espetáculos daquele vulto. Espíritos aclimatados às regiões inferiores donde procediam, antes da reencarnação, no corpo carnal en­contraram elementos grosseiros para se refestelarem, mantendo a sintonia com os que ficaram na retaguarda. Outros, menos avisados, se mancomunaram com as men­tes infelizes que pululam em toda parte, e nas horas de vigília se nutrem dos pensamentos deprimentes e opres­sivos derivados dos prazeres animalizantes em que se de­moram, ali se reunindo nas breves horas de parcial des­prendimento pelo sono, para darem curso aos apetites mais brutais. Sexólatras inveterados, perturbados das funções genésicas, alcoólatras, morfinômanos, cocainô­manos, opiômanos e outros que possuem os centros da razão anestesiados pela monoidéia do gozo, em perfeita comunhão: assimilando e eliminando as vibrações vicia­das das construções mentais constantes de que se fa­zem objeto permanente (*)•

Com intervalos regulares, soaram os sinais prenun­ciadores do início da função execranda.

Com estrépito quase ensurdecedor, as sirenes anun­ciaram a aparição do Dr. Teofrastus.

Alguns clarins de sons agudos foram ouvidos e sinistro séquito, carre­gando o palanquim em que se encontrava o arguto obses­sor, deu entrada em cena. Gritos e aplausos atordoan­tes encheram o amplo recinto. Impassível, como um po­deroso rei da impiedade que visitasse larga colônia de súditos infelizes ou escravos repelentes, após o circuito em que a ovação parecia também apupos, a estranha mole que o acompanhava, em que apareciam alabardei­ros sinistramente vestidos, parou, e o mago, tomando atitude estudada, abandonou a ridícula rede adornada e com olhar brilhante de águia relanceou a visão por todos os recantos, desafiadoramente, sentando-se em ca­deira de alto espaldar, como se fora um trono, em posição central, donde poderia dirigir o cerimonial.

Silêncio tumular se abateu sobre o anfiteatro.

Ridículo mestre de cerimônias, mais parecido aos antigos bufos das cortes, de rosto duro e encovado, to­mou de pequeno microfone e começou a falar.

A voz roufenha era um arremedo de discurso lau­datório à figura do Dr. Teofrastus.

— Este é o nosso representante da Justiça — disse entre outras considerações — nos círculos em que nos

(*) Hoje, com a facilidade do uso desenfreado de estupe­facientes, barbitúricos vários e outros alucinógenos, em que expressiva quantidade de mentes se perturbam, nos estados ca­racterísticos do “transe”, esses espíritos adensam recintos como o a que nos referimos, tornando-se escravos de outras mentes viciadas que se locupletam nas suas emanações morbíficas. —Nota do Autor espiritual.

encontramos. É claro que ele não detém toda a justiça. É serventuário zeloso dos bens da vida, que não podem ser dilapidados impunemente pelos defraudadores, da

verdade.

Fez pequena pausa de efeito. As palavras justiça e verdade soavam ali muito estranhamente. Pareciam pro­feridas com o objetivo único de criarem pânico nas men­tes desavisadas, colhidas pela consciência íntima, que realmente ninguém consegue anestesiar indefinidamente.

Não somos impiedosos como afirmam muitos —prosseguiu com entonação de ira e maldade. Somos somente a consciência externa dos que escondem a cons­ciência pessoal e fraudam, esquivando-se, depois, ao acerto de contas de que ninguém se eximirá. Não condenamos quem quer que seja. Despertamos cada deve­dor para a autopunição. Não violentamos a liberdade de ninguém, nem constrangemos Espírito algum a tomar parte em nossos atos. Todos os que aqui nos encontra­mos usamos as duas alternativas normais: sintonia por afinidade de gostos — que nos congregam numa pode­rosa confraria em que uns justiçam e outros são justi­çados, e sintonia pelo medo — que requisita o material necessário para resgate dos crimes praticados, através dos processos compatíveis de que as Leis utilizam nos­sas possibilidades de punidores que nos fizemos, tam­bém espontaneamente.

«Isto posto, temos as mãos lavadas de qualquer culpa e segurança íntima de que não somos benignos com uns e severos com outros. Cada um aqui recebe conforme o seu merecimento. Dispomos de meios de tudo saber e temos uma legião de informantes que fiscalizam os que se demoram no corpo, conquanto ligados à nossa Colô­nia, para que, quando aqui trazidos, quer na roupagem física ou não, possam ouvir de testemunhas devidamente adestradas o relato das Suas desditas, como se a pró­pria consciência neles resolvesse falar.

«Dr. Teofrastus é, pois, a chibata da lei. Prepa­rai-vos!

«Consciências infelizes e corações empedernidos, es­perai!

«Temos tempo. Dispomos do milagre da supervi­vência. A morte é isto: o que cada um fez, como viveu, conforme preferiu agir. Suportai agora o resultado das vossas atitudes. »

Silenciando a voz estranha, uma quietude cruel se abateu sobre o recinto. Mesmo alguns dentre os Espí­ritos obsessores mais cínicos apresentavam no semblante estarrecido o estupor e o receio. Afinal ali estavam somente consciências ultrajadas, e as expressões vigoro­sas verdade e justiça, conquanto desvitalizadas da sua grandiosa significação, para eles representavam o inva­riável ajuste de contas de que ninguém se furtaria.

A um sinal adrede combinado, o Dr. Teofrastus ergueu pesado cetro e o bateu violentamente no palan­que que o sustinha.

O mestre de cerimônias bradou:

— Tragam o primeiro caso.

Rebuscando entre tiras de papel que mantinha nas mãos, destacou uma e leu:

— José Marcondes Effendi, 21 anos, domiciliado na Terra.

Dois ajudantes de enfermagem apareceram trazendo uma maca na qual, em sono profundo, aparecia um es­pírito reencarnado, desdobrado em corpo espiritual, que foi colocado na mesa cirúrgica situada no centro do proscênio.

Todos estávamos de olhos fixos no que ocorria.

O locutor novamente chamou:

— Apresente-se a testemunha.

Do grupo que cercava o Dr. Teofrastus, destacou-se horrenda figura, de aspecto repelente, que se acercou do paciente em repouso agitado.

— Pode falar! — impôs o sinistro apresentador do espetáculo.

Tomando do microfone para se fazer ouvido e pigar­reando asquerosamente, o mísero sofredor narrou:

— Estive na Terra há aproximadamente 60 anos, donde fui expulso por homicídio vergonhoso... Era ra­dicado no Rio de Janeiro, nos últimos dias do Segundo Império, fazendo parte da média burguesia. Acredita­va-me feliz na vida conjugal, quando, por insistência da esposa, buscara recreação, em férias de dezembro, em Petrópolis, fugindo à canícula do Rio, hábito, aliás, que se repetia cada ano. Não imaginava que a compa­nheira, de quase 15 anos de vida em comum, ligara-se a aventuras extraconjugais com um dos meus emprega­dos, que servia numa das lojas de tecidos de minha propriedade. Não tendo filhos, por minha morte todos os meus bens recairiam nas mãos da viúva.

Embargado, senão pela emoção, porém pela ira re­pentina que o dominava, fez uma pausa, que foi inter­rompida por estímulos coléricos das galerias:

— Prossegue! Narra! Nada de medo! Desejamos saber tudo...

— Instalado na serra petropolitana entre amigos folgazões, que se beneficiavam do excelente clima, fui assassinado cruelmente, sem piedade, pela esposa e o amante, que ela emboscara na intimidade da alcova, cinco dias após ali nos termos alojado. Logo depois, ofe­recendo ensejo para que o criminoso se evadisse, ela encenou um roubo de jóias e outros valores, do que resultara o hediondo crime... Hábil na arte da dissi­mulação, fez-se acreditar; e o homicídio passou impune. Embora aberto inquérito que se arrastou tristemente entre as autoridades competentes, sem testemunhas nem novos fatos que viessem justificar suspeitas, o caso foi encerrado e a sepultura silenciou sobre a tragédia pas­sional.

Novo choque da turba desesperada:

— Que aconteceu? — gritavam, em coro, as vozes desenfreadas.

— Ao despertar do lado de cá, experimentando as cruezas da imortalidade, dominado por incoercível ódio, ardendo de desejos de vingança, retornei ao lar — não posso atinar com o tempo que houvera transcorrido —e, então, o meu horror não teve limite. A traidora, pas­sado um regular período de luto, consorciara-se com o meu assassino, entrando ambos na posse dos meus bens, fruindo o resultado do crime feroz...

Transfigurado de dor e revolta, esbravejando com expressões das mais chocantes, o narrador, de olhar des­vairado, prosseguiu:

— O desespero foi-me fulminante. Tive a impres­são de morrer outra vez. Uma angústia bestial feriu-me, e a dor que sentia no peito varado pelo estilete com que me destruíram o corpo foi acrescentada à de um ftár­tico que me queimava e requeimava, até que, louco, perdi a noção de tempo, de lugar, de tudo... Refossilei em regiões indescritíveis, por quantos anos não poderia di­zê-lo com segurança, sem refrigério, sem socorro... Há poucos anos senti uma força que me arrancou do inferno em que me demorava e sübitamente recobrei alguma lucidez, descobrindo-me diante de um jovem de 10 anos apro­ximadamente, por quem de imediato nutri incomparável horror. Elos poderosos me atavam ao estranho corpo juvenil, e, vinculado ao lar em que ele vivia, comecei a compreender que aquele corpo, por sortilégio demoníaco que me escapava, ocultava a adúltera, agora revestida de forma nova, como que mascarada para continuar a fugir à sanção que merecia...

«Eu ignorava totalmente a lei de «vinda-ida-e-volta» (1) em que os criminosos são obrigados a percorrer ou­tra vez os sítios malsinados pela sua conduta vergonhosa, mas sentia que, perseverando ali, mais cedo ou mais tar­de surpreenderia a verdade. Foi o que fiz. Comecei a acompanhar aquele ser, que me inspirava a mais cho­cante revolta. Paulatinamente me fui afinando com ele e tão constante me fiz na eficiente fiscalização que um dia, em que o sono o dominou, percebi que ela, a hor­renda assassina, abandonava o corpo dele. Vendo-me, re­conheceu-me, e voltou a refugiar-se nas carnes novas, que foram sacudidas por vigoroso choque, produzindo nele o despertar apavorado. Não mais arredei pé. »

A recordação entrecortada de soluços e descontro­les produziu violenta crise na entidade, que continuou estimulada pelo auditório ávido do desfecho. Recom­pondo-se, após olhar a figura impassível do Chefe, pros­seguiu:

— No lar em que ele se ocultava travei conheci­mento com um membro desta Colônia, que ali também residia, e vim aqui trazido para uma entrevista com o Dr. Teofrastus.

Ante a citação do nome do mago, os ouvintes em desatrelada balbúrdia aplaudiram com palmas, assobios e gritos ensurdecedores. A sirene soou impondo silên­cio e a narração continuou:

— Ouvido atentamente pelo Chefe, ele recomendou-me uma vingança de longo curso.

Foi visitar pessoalmente a minha inimiga e após demorado exame chegou à conclusão de que poderíamos produzir muito em nome

(1) A entidade se refere à lei da reencarnação. — Nota do Autor espiritual.

da justiça a meu benefício, O corpo era moço, mas o espírito que o animava era o da assassina, que mere­cia severa punição. Identificando nela (em corpo de ho­mem, embora) as tendências guardadas da vida ante­rior, em que as dissipações atingiram o auge — o es­poso depois de expropriar-lhe os bens, evadiu-se para a África, deixando-a na mais chocante miséria, o que a levou a uma vida boêmia, aniquilando o corpo em imun­dos catres de perversão moral, vitimada pela tuberculo­se que contraíra ao peso de excessos de toda a natureza, fácil seria perturbar-lhe os centros genésicos, através da perversão da mente inquieta, em processo de hipnose profunda, praticada por técnicos do nosso lado.

Gargalhadas estentóricas estouraram de todos os lados.

— Viva a justiça! — Gritaram. — Muito bem! Adiante!

— Em pleno amadurecimento das faculdades sexuais, sob a rigorosa assistência de um hipnotizador destacado pelo Dr. Teofrastus, foi fácil modificar-lhe o interesse e inclinar-lhe alibido em sentido oposto ao da lei na­tural, já que o seu corpo era masculino, produzindo irreparável distonia nos centros da emoção. Daí por dian­te associei-me à sua organização física e psíquica, expe­rimentando as sensações que lhe eram agradáveis e cria­mos um condicionamento em que os nossos interesses agora passaram a ser comuns. Tão fortemente me li­guei à sua vida, que o ódio se converteu em estímulo de gozo, imanando-nos em processo de vampirização em que me locupleto e através do qual a destruo, atirando-a cada vez em charco mais vil, até que o suicídio seja sua única solução...

O auditório vibrava. Os espetáculos romanos do passado não poderiam ser mais chocantes. Era difícil saber-se se aqueles eram espíritos que habitaram corpos humanos ou primitivos seres que apenas experimen­taram o trânsito do instinto para os albores da inteligência, através de formas humanas...

Na pausa que se fez natural, Saturnino, visivelmente comovido, comentou:

— Justiça em nós mesmos! O erro acompanha sem­pre o desrespeitador da lei, enquanto ele não se modi­fica para a verdade e não se submete espontaneamente à reparação. Acreditam esses infelizes irmãos que o po­der lhes está nas mãos, teimando por ignorar que a lei que lhes concede ensejo para tais proezas não lhes per­mite o uso desregrado da impiedade nem da suprema humilhação, olvidando conscientemente a aproximação do momento deles próprios, em situação possívelmente muito mais dolorosa...

Silenciou, pois que a narrativa entre ovações e achincalhes tinha curso.

— Depois de alguns anos de convivência entre ela e mim — continuou a entidade —, percebi que curiosa tristeza a malsinava. Sentia-se dominada por mim e co­meçou a registrar-me a presença. Agora, após concluir o curso médio e iniciar-se na Universidade com maior compreensão dos problemas humanos, sabendo do dra­ma íntimo, resolveu procurar um psicanalista de renome. Submetida a diversos testes e sessões especializadas, o facultativo, que é dócil à minha sugestão — merece esclarecer que a este tempo já me enfronhara devidamente nas técnicas da sugestão, nos diversos processos hipnológicos de que me utilizo com frequência para colimar os meus desejos — e que ignora, totalmente, na sua soberbia intelectual as realidades deste lado, utili­zando-se de expressões muito em moda, por mim inspi­radas, sugeriu que o essencial na vida é a pessoa reali­zar-se como achar conveniente, e que tudo o mais são tabus que devem ser quebrados, em prol da felicidade de cada um...

Pressionando o especialista com hábil sugestão, consegui que ele a estimulasse ao prossegui­mento habitual dos seus atos, o que não me foi difícil.

Novas gargalhadas espocaram, acompanhadas dos mais chocantes verbetes da infelicidade humana.

Muito estimulado pelo consenso geral, o Espírito in­feliz culminou:

— Quando já me supunha dono absoluto da situa­ção, alguém aconselhou-a a procurar sessões espíritas, pois que isto bem poderia ser uma obsessão. Esse al­guém é um certo pregador do Espiritismo, nesta cidade, que se propôs ajudá-la com passes e outros recursos que ignoro.

— O quê? — bradou o auditório. — Onde já se viu? E a justiça? O Espiritismo é o maior inimigo da nossa Organização. Fora com o. Espiritismo; reajamos à intrujice...

Novamente o silvo das cigarras impôs silêncio.

O narrador prosseguiu:

Atônita começou a frequentar algumas sessões e eu me senti repentinamente sem possibilidades de do­miná-la como fazia até então. Sabendo-a sem resistên­cia para o que já lhe constituía um hábito, comecei a su­gestioná-la de longe. A infeliz, no entanto, ao invés de receber as minhas impressões, fez-se beata, começou a orar. Recorri então ao Dr. Teofrastus que, muito sá­bio, lhe deu assistência especializada e conseguiu induzi-la a novos compromissos, obrigando-a a reincidir, o que me ofereceu ensejo de trazê-la aqui hoje.

Saturnino, vigilante, elucidou:

— Em qualquer problema de desobsessão, a parte mais importante e difícil pertence ao paciente, que afi­nal de contas é o endividado. A este compete o difícil recurso da insistência no bem, perseverando no dever e fugindo a qualquer custo aos velhos cultos do «eu» enfermo, aos hábitos infelizes, mediante os quais volta a sintonizar com os seus perseguidores que, embora momentaneamente afastados, não estão convencidos da necessidade de os libertar. Oração, portanto, mas vigilân­cia, também, conforme a recomendação de Jesus. A prece oferece o tônico da resistência, e a vigilância o vi­gor da dignidade. Armas para quaisquer situações são o escudo e a armadura do cristão...

— O meu desejo é continuar a dominá-la — con­tinuou arengando — e, nesse sentido, nosso Chefe se pro­pôs submetê-la a uma intervenção cirúrgica, processo eficiente contra o qual os espíritas nada poderão fazer, no sentido de libertá-la.

A um sinal do Dr. Teofrastus, o Espírito silenciou.

O antigo mago de Ruão levantou-se, acolitado por dois assessores, e examinou a entidade, cujo desequilí­brio e invigilância, quanto ao culto das responsabilidades, a levara àquela dolorosa situação.

Enquanto isso ocorria, Saturnino esclareceu:

— Não duvidemos do concurso do Alto. Jesus vela! A vítima de si mesma, que os nossos olhos contemplam, não está à mercê de tão sinistros algozes, abandonada. Entidades vigilantes socorrê-la-ão logo mais. O Espiri­tismo possui antídotos para todas as surtidas das men­tes radicadas no mal, desde que os que buscam a linfa soberana e refrescante da fé restaurada, desejem assu­mir consigo mesmos os compromissos de perseverarem nos deveres superiores, a benefício pessoal. Oremos e confiemos!

Iremos fazer uma implantação — disse em tom de inesquecível indiferença o Dr. Teofrastus — de pequena célula fotoelétrica gravada, de material especial, nos centros da memória do paciente. Operando sutilmente o perispírito, faremos que a nossa voz lhe repita insis­tentemente a mesma ordem: «Você vai enlouquecer! Suicide-se! Somos obrigados a utilizar os mais avançados recursos, desde que estes nos ajudem a colimar os nos­sos fins. Este é um dos muitos processos de que nos po­demos utilizar em nossas tarefas...

Estarrecidos, vimos o cruel verdugo movimentar-se na região cerebral do perispírito do jovem adormecido, com diversos instrumentos cirúrgicos, e, embora não pu­déssemos lograr todos os detalhes, o silêncio no recinto denotava a gravidade do momento.

Transcorridos uns dez minutos, a cirurgia foi dada por concluída e o paciente foi removido.

Quantas indagações me fervilhavam na mente! A hora, porém, não comportava quaisquer esclarecimentos. Era momento significativo na história de nossa vida es­piritual e o ambiente abafado, negativo, asfixiava-nos a todos. O Dr. Teofrastus retornou ao palanque e desfi­laram mais alguns casos. Logo depois, o espetáculo foi encerrado.

A grande mole de entidades começou a debandar. Os alto-falantes declararam que a partir daquele instante o Chefe concederia entrevistas.

Era chegado o momento.

- Mantenhamos serenidade e sigamos nosso irmão Glaucus — falou, sintético, Saturnino.

— O Benfeitor desceu das galerias, acompanhado pelo grupo, e aproxi­mou-se do palco central em que estava o Dr. Teo­frastus.

9

Reencontro com o passado

Cercado por acólitos paramentados estranhamente, que se faziam secretários e selecionavam os casos para o Chefe, também se apresentava resguardado por enti­dades ferozes, em cujos semblantes, sulcados por fun­dos sinais de perturbação íntima, a hipnose produzira estados de alucinação e truculência. Incapazes de qual­quer raciocínio, tais seres exteriorizavam a acuidade do animal que resguarda o sino e agride os menos vigilan­tes.

Dentre eles se destacavam os que foram vítimas de transformações nas sedes do perispírito, ali presen­tes possivelmente com a finalidade de criarem condicio­namentos psicológicos de medo, nos consulentes menos avisados.

O irmão Glaucus, muito sereno, concitou-nos à pre­ce muda e à preservação do estado espiritual de equilí­brio, fossem quais fossem os acontecimentos que, por­ventura, viessem a ocorrer, e nos manteve imediata­mente atrás dos pequenos magotes que eram interroga­dos pelos acólitos.

O nosso grupo, unido, aguardava, enquanto o Sa­cerdote, a pequena distância, tomava atitudes e decisões, utilizando-se sempre do pavor de que se fazia fâmulo avaro para dominar e influir consulentes.

Uma Entidade de aparência cruel se destacou den­tre os fâmulos atuantes, acercou-se do irmão Glaucus e indagou dos motivos da entrevista, e quem eram os par­ticipantes do conjunto.

O venerando Benfeitor elucidou com simplicidade que se tratava de Espíritos dos dois planos da vida, ne­cessitados de ouvir o Dr. Teofrastus a respeito de grave problema de obsessão em andamento e para o qual somente ele possuía os recursos necessários. Aduziu que fora indicado por Guilherme, o moço holandês que antes era membro daquela agremiação.

Repassando o olhar de quase alucinado, fiscalizan­do-nos, como tentando descobrir além das palavras os motivos reais da entrevista, sacudido por espasmos da face, sucessivos, colocou-nos de lado, e prosseguiu no mister a que se dedicava.

Só então me foi possível reparar o Dr. Teofrastus, considerando a pequena distância que nos separava. O rosto cruel, adornado de barba rala, à oriental, em torno de lábios grossos em rito de permanente ira, nos olhos avermelhados e grandes, algo fora das órbitas, ameaça­dores, zigomas salientes, testa larga e cabeleira abun­dante, era a encarnação clássica do pavor.

Como se adivinhasse a minha observação discreta, ele desviou o olhar da chusma que atendia e cravou nos meus os seus olhos, com interrogação forte e dura, fa­zendo-me baixar a vista, perturbado. O irmão Glaucus, que observava o acontecimento, advertiu-me, delicado:

— Estamos em tarefa do Senhor. Todo o cuidado é indispensável para o êxito do empreendimento. Curio­sidade agora é, também, desconsideração ao compromisso. Tenhamos tento!

Com a oportuna observação, convocou-me, caridoso, ao recolhimento, à prece.

Atendidos os que se encontravam à frente, foi che­gada a nossa vez. Ficamos um pouco mais atrás, en­quanto o irmão Glaucus, representando a equipe, humilde e nobre, falou sem preâmbulos:

— Senhor, aqui estamos indicados por Guilherme, o neerlandês que há pouco tempo se despediu desta Or­ganização, rumando em direção do corpo.

O mago ergueu o sobrolho carrancudo e penetrou com dura expressão os olhos do Benfeitor, procurando devassar-lhe o íntimo do espírito.

Um dos asseclas aproximou-se e confidenciou al­guma observação.

A pausa oportuna, proposital, era dirigida no sen­tido de criar melhor recepção no ouvinte silencioso, de expressão ferina.

Prosseguindo, elucidou o nosso condutor:

— Ocorre que nos encontramos em perfeita iden­tificação com Guilherme, que vos tem servido com dedi­cação, buscando-vos nesta oportunidade para falar-vos sobre Henriette, que sabemos vinculada ao vosso cora­ção, desde há muito...

— Henriette Marie de Beauharnais? — Inquiriu, quase fulminado por forte raio de ódio.

— Sim, Senhor — confirmou, imperturbável o Ir­mão Glaucos.

A entidade levantou-se do trono ridículo e avançou furioso, como se fosse aniquilar o informante, que con­tinuou sereno, confiante. Em chegando ao lado do Ins­trutor, que revelava no semblante marmórea palidez, estancou o passo e, erguendo o simulacro de cetro, gol­peou o piso reiteradas vezes, ameaçando com voz soturna, atitude essa que impôs alarmante silêncio no Anfitea­tro, que ainda se mantinha com alguma algaravia. To­das as atenções se concentraram em volta dos dois parlamentadores e as Entidades mais infelizes da coorte aproximaram-se em atitude ameaçadora, cercando o Chefe dolorosamente vitimado pela irascibilidade.

— E que deseja informar-me que porventura eu não saiba? Ignora quem sou? — Esbravejou, compreensivel­mente revoltado.

— Sabemos, sim, Senhor — prosseguiu o Mensa­geiro. — Ocorre, porém, que considerando a magnitude do assunto, que viemos tratar, muito agradeceríamos se pudéssemos ser ouvidos a sós, sem os circunstantes... Somos portadores de notícias que somente à vossa au­toridade devemos confiar...

Depois de expressivo silêncio, arrematou:

— Henriette necessita do vosso socorro...

O Espírito ferido pela inesperada surpresa, estrugiu cruas exclamações e gritos, dando ordens diversas, si­multâneas, e segurando o irmão Glaucus violentamente, ordenou, rouquenho:

— Venha comigo!

O Benfeitor não opôs qualquer resistência e o seguimos.

Os demais membros do grupo foram cercados pelos sequazes do Chefe e conduzidos à parte dos fundos do Anfiteatro, para onde ele rumara com o nosso Mentor.

A sala de amplas proporções era decorada em tons fortes e sombrios em que bruxuleavam luzes de tonali­dades chocantes - Aquele era o gabinete do vigoroso es­pírito das sombras, temido e detestado.

Sentando-se em cadeira colocada em posição de des­taque, ordenou:

— Estou aguardando as informações.

Imprimindo à voz inflexão nobre, sem qualquer afe­tação, o Instrutor esclareceu:

— Dedicamo-nos ao serviço de socorro aos padecen­tes, em nome de Jesus, e...

— Jesus? Esta é minha casa — estrugiu o tru­culento Espírito. — Aqui, esse nome é maldito, detes­tado. Como se encoraja a dizer-me que se dedica a so­correr os padecentes diante do Chefe da Casa da Jus­tiça?

Avançou feroz, espumejante, como se desejasse des­truir aquele que o enfrentava, sentindo-se, no entanto, impossibilitado de fazê-lo.

— Não desejamos desafiar a força do nobre dou­tor Teofrastus, que conhecemos, e a quem aprendemos a respeitar como sendo instrumento da Vida e da Ver­dade — evidenciou o Mensageiro humilde. — Ocorre, no entanto, que não poderíamos trair os objetivos desta entrevista, se falamos ao Comandante destes sítios, em nome da Verdade mesma, sim, mas sobretudo da Mise­ricórdia e do Amor.

Erguendo o olhar lúcido, o Instrutor, concentrado em Jesus e utilizando todo o potencial das suas forças magnéticas e hipnológicas, enfrentou a vibração em cris­pas exteriorizadas pelo interlocutor, como se naquele en­trechoque de forças a corrente do amor vencesse as descontroladas energias do ódio e da animosidade, dando continuidade à narração:

— Visitando perturbados espirituais, encarcerados no corpo, identificamos, há pouco tempo, Henriette, em dolo­roso processo de vampirização, vitimada por elementos desta Organização, e por isso...

— Desta Casa? Estarei ouvindo corretamente? —Indagou, interrompendo, ab-rupto — Henriette, vítima de nossa Organização? E que o induz a pensar que me interessa a vida de qualquer pessoa, da Terra, somente porque é supostamente Henriette-Marie de Beauharnais? Quem o informou de que eu poderia ter algo a ver com essa personagem?

— Ela mesma — redarguiu o Mentor, tranquilo. —Assistindo-a com recursos magnéticos, conseguimos fazê-la recordar o passado, para fixar-lhe socorros, e, en­quanto narrava o próprio drama, evocou o imenso amor que dedicou à sua pessoa, nos idos do século 15, antes de funesto acontecimento..

O Dr. Teofrastus, colhido intempestivamente pela informação segura e indiscutível, ergueu-se outra vez, de um salto, e, apoplético, segurou com mãos de aço o narrador, indagando, descontrolado:

— Onde se encontra ela? Que lhe aconteceu? Que foi feito da sua vida? Leve-me até à sua presença ime­diatamente. Desejo averiguar.

— Não posso, amigo. Não depende de mim e sim de vós. Esta a razão da entrevista que estamos man­tendo. Desejamos concertar o meio de conciliar os obje­tivos elevados a que todos nos propomos, de modo a re­gularizar situações em desalinho, de cujo labor resultem os benefícios de que temos necessidade.

— Mas eu sou um dos Gênios do Mal, e as minhas medidas diferem das suas — estrondou, ofegante. — Represento a Justiça e odeio a Misericórdia. Desperto cada consciência criminosa para o relho da punição. Nunca defrontei nem usei a piedade ou a comiseração. Sou vítima do Cordeiro e O odeio... Não há, pois, ter­mo de conciliação entre nós. Sinto-me, portanto, obri­gado a extirpar-lhe a confissão através dos meus méto­dos, que certamente não lhe são desconhecidos.

— Sim, certamente os conhecemos — assentiu, o Benfeitor. — Convém, todavia, considerar que, antes de tomarmos a atitude de procurar-vos o local de domina­ção, examinamos as diversas possibilidades de vitória e fracasso, concluindo pela primeira hipótese, tendo em vista que não vimos aqui solicitar, mas oferecer em nome do Doador Supremo da Vida, de Quem não nos evadiremos indefinidamente. Afirma o Dr. Teofrastus que foi vítima do Cordeiro, e sabe que a informação não confere com o fato. As diretrizes do Cordeiro ja­mais foram compatíveis com os processos da Inquisição Católica, como não são concordes com os métodos da Justiça de Deus esses da justiça aplicados pelas vossas mãos. Quanto à ameaça de arrancar-me as informações que deseja, por métodos incompatíveis com os intuitos deste encontro, concluímos pela inexequibilidade, já que a nossa presença informa do interesse que temos de ofer­tar os esclarecimentos sem qualquer pugna que gere uma situação infeliz entre nós ambos.

— Mas eu posso reter os participantes da sua em­baixada nos meus domínios, nos quais sou senhor abso­luto — baldoou, soberbo.

— Não discuto a posição relativa do Chefe — cla­rificou o irmão Glaucus. — Desejamos, porém, lem­brar-vos de que o poder, de que falais, vem todo ele do Alto, de Deus, desde que ninguém é o dono da vida, senão Ele. Quanto a ficarmos retidos em vossas mãos, isto somente viria a acontecer se essa for a vontade dEle, e, sendo, submetemo-nos humildemente, tendo em vista poder servi-Lo em qualquer lugar e em toda situação, por mais embaraçosa nos pareça.

Lágrimas nos orvalharam os olhos. A linguagem desataviada e franca do Benfeitor, a atitude firme e humilde testemunhavam as mil necessidades de porfiar­mos na verdade sempre, em nome do Senhor.

O Dr. Teofrastus, vencido pela lógica irrefutável do visitante, dissimulou a ira que o empolgava e, em­bora continuasse arrogante, inquiriu:

— Que deseja, afinal, de mim?

— Que me ajudeis a libertar Henriette.

— Como eu poderia fazê-lo?

Se nos acompanhásseis ao recinto de provações e dor em que se encontra, vencida e arquejante sob im­placável revel, que a dilacera, vencedor...

— Sigamos, então, sem delongas.

— Recordamos ao nobre Dr. Teofrastus que segui­remos em missão de misericórdia e que os métodos junto ao verdugo que a infelicita serão os vigentes nas leis de amor, conforme ensinados por Jesus-Cristo...

— Não percamos tempo com discussão inútil. Adiante!

Convocando dois guardas que se encontravam pos­tados fora do recinto, confidenciou algumas instruções. As demais entrevistas foram suspensas, e, abrindo ca­minho entre os sofredores que ainda se encontravam no recinto, acompanhamos o antigo Mago na direção dos veículos que nos aguardavam à porta.

Transcorridos 15 minutos, aproximadamente, chega­mos a velho casarão, de aspecto apavorante pelo aban­dono a que se encontrava relegado, e penetramos pelo imenso portão de entrada. O trânsito de desencarnados de aparência lastimável era muito grande. Encarnados em desprendimento parcial pelo sono apresentavam-se agitados, semiloucos. Saturnino que nos assistia mais de perto, a mim, a Petitinga e ao médium Morais, infor­mou que nos encontrávamos num Lazareto, que alber­gava mais de 200 portadores do mal de Hansen. Odor nauseante e forte empestava o ar e densas nuvens ori­ginadas pelas vibrações carregadas de revolta e deses­pero ofereciam o aspecto das regiões infelizes do Mundo Espiritual Inferior, em que muitos se reeducam pelo sofrimento.

O irmão Saturnino, interessado em esclarecer-nos, explicou:

— O sofrimento, sob qualquer forma em que se apre­sente, é bênção. Para que, no entanto, beneficie aquele que o experimenta, faz-se indispensável ser acompanhado pela resignação, pela humildade, pela valorização da pró­pria dor. Não basta, portanto, sofrer, mas bem sofrer, libertando-se das causas matrizes da aflição. É muito comum encontrar-se o homem experimentando o imposi­tivo do resgate, sob nuvens de ira e desesperação, com as quais aumenta, graças à rebeldia e à queixa injusti­ficáveis, o fardo das dívidas. Por essa razão, há redu­tos de reeducação no Além da carne, como dentro das pa­redes carnais: regiões em que se aglutinam os compar­sas. dos diversos departamentos do crime para resga­tarem, em clima de afinidade, os desastres cometidos contra a Lei e a Justiça Soberanas.

E para encerrar os esclarecimentos, concluiu:

— Nesta Casa, como em outras similares, desfilam os que afrontaram o corpo, desrespeitando-lhe as fon­tes de vida; os que esmagaram outras vidas, enquanto possuíam nas mãos as rédeas do poder; os que fecha­ram ouvidos e olhos ao clamor das multidões esfaima­das e enlouquecidas de dor; mãos que ergueram o relho e dilaceraram; corações que se empedraram na indife­rença, enquanto fruía o licor da fortuna, da nobreza mentirosa, da beleza em trânsito na forma; os fomen­tadores do ódio, os soberbos, os orgulhosos, alguns suicidas calcetas inveterados, em constante tentação para desertar do fardo outra vez... Em purgatório carnal, podem transitar para as Regiões da Luz ou para os Abis­mos da Treva, dependendo da livre escolha de que dis­põem os que expungem com resignação ou com revolta...

Silenciando, aproximamo-nos de um quarto infecto, após vencer longo corredor em que duas filas de celas imundas albergavam corpos desfigurados de mulheres profundamente infelizes, carcomidas pela enfermidade destruidora.

O Dr. Teofrastus não ocultava a revolta, o deses­pero quase irrefreado.

O irmão Glaucus penetrou num dos últimos quar­tos ao fim da ala imensa, e, seguindo-o, deparamos cena confrangedora. Três mulheres hansenianas encontra­vam-se a dormir, assistidas por pequena malta de obses­sores impiedosos que as dominavam. Em vigília, mantinham-se em guarda, invectivando e atormentando os espíritos das enfermas semidesligadas do invólucro fí­sico e quase tresloucadas de angústia, ante o acicate contínuo dos perseguidores.

Os acompanhantes da guarda do Dr. Teofrastus fi­caram no corredor, à porta de entrada da cela, em ati­tude de vigilância.

Uma jovem de menos de 20 anos, em cujo corpo a doença não produzira ainda os sinais da sua presença, muito magra e desfalecida sobre infecto grabato, era a razão da visita.

Muito calmo, o irmão Glaucus elucidou, dirigindo-se ao Mago de Ruão:

— Eis aí Henriette. Tende cuidado e piedade do seu algoz. Iremos atendê-lo. Evitai, porém, o ódio.

O sicário, que se refestelava no martírio de verda­deiras multidões, contemplando a jovem desmaiada, ba­nhada por álgido suor e vencida por vampirismo ani­quilante, gritou, estertorado, blasfemando, e avançou na direção do seu êmulo, ali em posição de adversário, no que foi retido, bondosamente, pelo Instrutor.

Olhando Saturnino, o Mentor amigo transmitiu uma solicitação silenciosa e o obreiro da caridade, levantando a voz, exorou a proteção divina em compungida oração com que nos sensibilizou a todos.

O Dr. Teofrastus, insensível desde há muito às vi­brações superiores, permaneceu invadido pelos senti­mentos habituais, o que não impediu Saturnino de acer­car-se da jovem e aplicar-lhe no corpo em delíquio pas­ses longitudinais, despertando-a, após o que, libertou-lhe o espírito da segura mentalização do obsessor impla­cável.

A moça acordou no corpo inopinadamente com o olhar esgazeado, como se retornando de um pesadelo, para novamente adormecer, após ligeiros minutos de composição dos pensamentos.

Sensibilizado com a paisagem de sombra do pequeno recinto, Saturnino atendeu às demais internas, exortando os seus adversários desencarnados, que abandonaram o recinto bulhentos, obscenos, insensíveis. O perseguidor da jovem, no entanto, foi mantido ali em sono hip­nótico, enquanto o irmão Glaucus produzia o desdobra­mento da paciente e sua imediata lucidez.

A moça relanceou o olhar pelo recinto, e ao depa­rar com a figura do doutor Teofrastus foi acometida de choque, desejando evadir-se. Assistindo-a carinhosa­mente, o Instrutor vitalizou-a com fluídos calmantes e sugeriu que a Entidade se aproximasse. A antiga vítima da Inquisição avançou, visivelmente emocionada, e sem poder dominar a alma em febre, gritou:

— Henriette, Henriette, que te fizeram? Porque me abandonaste?

Choro convulsivo irrompeu, desatrelado, do verdugo de muitos.

Embora a jovem se chamasse Ana Maria, pareceu registrar aquela voz no recôndito do ser e repentinamente desperta, graças às energias vigorosas que o Ins­trutor lhe aplicava na sede da memória espiritual, res­pondeu, também, em pranto:

— Quem me chama? Que desejam de mim?

A medida que Ana Maria despertava para o pas­sado, sua forma espiritual registrava os sinais das tra­gédias que lhe sucederam através do tempo, para apre­sentar-se consideravelmente mudada, envelhecida, com as marcas da desencarnação e as características da an­tiga personalidade...

Isto é a minha Henriette-Marie? — esbravejou o Mago. Não pode ser ela, tão linda e pura! Essa som­bra é alguma megera para confundir-me.

A interrogação dolorosa ressoava no ar, quando a entidade infeliz retrucou:

— E tu, quem és? Porque me ofendes?

— Eu, se tu és Henriette-Marie, eu sou aquele que sempre te amou. Sou Teofrastus, a quem a fogueira in­quisitorial não consumiu, nem a morte pôde fazer mor­rer o amor que sempre nutri por ti.

Evocando, através da ansiedade das palavras, o amor do passado e a desencarnação imposta pela ignorância vigente no pretérito, o Chefe da Organização maléfica foi sacudido por violento e convulsivo pranto, em que as comportas da alma, longamente fechadas, pareceram romper-se de inopino, dando passagem a caudal refrea­da, em volumoso bloco.

Despertando, mui vagarosamente, Ana Maria apre­sentava-se tristemente desnudada pela realidade dos atos pretéritos, semelhando-se a fantasma de dor no qual es­trugissem todas as aflições de uma só vez. O perispí­rito cruamente assinalado por exulcerações pustulentas que denotavam os atentados sofridos no longo curso dos séculos, sem que as mãos do amor ou da redenção nela houvessem conseguido trabalhar a reorganização das células, ou modificar a estrutura do tom vibra­tório, que a infelicitava, causava compaixão.

O amante em desespero, esquecido de si mesmo, con­templava aquelas transformações que ocorriam ante os nossos olhos — ele que estava acostumado a cenas muito mais horripilantes, nas quais era hábil manipulador das forças que jazem inconscientes nos departamentos mais íntimos do espírito humano —, sem ocultar o assombro de que se fazia possuir.

A forma jovial, até há pouco na moça perseguida em espírito, assumiu expressões angustiantes, e, como se fora despertada nos centros das mais íntimas e doridas recordações, explodiu:

— Oh, Deus Misericordioso, tende piedade de mim! Porque tanto sofro, meu Pai? Piedade, piedade!

Exteriorizou um olhar de inesquecível sofrimento, e, fitando-nos, inquiriu:

— Quem sois, demônios que me perseguis implacá­veis, ou anjos que vindes salvar-me? Piedade, piedade! Não suporto mais sofrer. Teofrastus, meu amigo, por­que nos separou tão cruelmente a morte? Onde te encon­tras, que me olvidaste? Apressei a volta ao mundo dos mortos, faz tanto tempo, para buscar-te, e porque morri não te encontro nunca...

O tom de lamento e auto-recriminação feria-nos a sensibilidade.

O irmão Saturnino, sempre ativo, concitou-nos àprece intercessória, em muda atitude de compaixão.

Lentamente as densas sombras do pequeno reduto começaram a diluir-se como se vagarosa e suave ma­drugada tingisse de luz as trevas que as mentes desar­voradas ali reuniram com o passar do tempo...

O Instrutor, utilizando-se da consternação geral e da súbita anestesia psíquica de que foi possuído o dou­tor Teofrastus, envolveu a Entidade sofrida em fluídos balsâmicos e abraçou-a, afetuoso, qual genitor compa­decido, em atitude santa de assistência.

Embora Henriette-Marie desejasse libertar-se do am­plexo envolvente, para correr desvairada, a força do amor terminou por vencer-lhe as resistências e, aspirando as energias que agora saturavam o ambiente, aquietou-se, com o olhar denotando ainda as desencontradas emo­ções interiores em torvelinho de paixões.

Foi a vez, então, do Dr. Teofrastus. Vencendo a custo o estupor que o imobilizava, blasfemo e irado, pôs-se a ameaçar:

— Aquieta-te, amada! Vingar-nos-emos demorada-mente. Minha clava de ódio cairá sobre aqueles que ainda são os responsáveis pela nossa desdita. Tenho li­gações com os vingadores ínfernais, e encontraremos meios de atingir todos aqueles que nos desgraçaram ir­remissívelmente. Libertar-te-ei do fardo do corpo odiado, para que venhas reinar nos meus domínios, ao meu lado. Os séculos de soledade e ódio que me queimaram incessantemente serão, agora, saciados, no ácido da vin­gança, e acompanharemos os nossos algozes se diluírem até a destruição da forma, submetidos ao meu impla­cável “ajustar de contas”.

Iniciaremos já com esse infame que aqui te ultraja e consome. Levá-lo-ei para o meu reduto e o punirei, seviciando-o até que ele retorne ao estado de besta inconsciente...

O Instrutor, confiante, interditou a palavra do Mago em perturbação, esclarecendo, calmo:

— Aqui vimos em missão de misericórdia e amor. Fostes convidado a ajudar. O auxílio que necessita da impiedade é azorrague de loucura. A defesa que acusa faz-se crueldade. Só o perdão irrestrito e total conse­gue a suprema coroa da paz. Quem somos nós para falar em desforço? Estamos todos sob Leis rigorosas das quais não podemos fugir. O ódio ateia a centelha de destruição que somente cessa ante o amor vitorioso e forte. Não acreditemos encontrar-nos nas mãos da des­ventura, saindo de uma justa de horror para outro duelo de crime, nascendo e renascendo em roda de vidas in­feriores, sufocados pelos miasmas do desespero e da cri­minalidade. Não há porque deixar que a loucura possua a razão e a esmague, e que o sentimento seja do­minado pelas sensações da fera que ainda jas em todos nós, aguardando o momento de revelar-se implacável.

— Mas eu sou o Dr. Teofrastus — interrompeu, im­petuoso e lúrido pela cólera, esbravejando tonitroante.

— Sim, sois o irmão que agora experimenta a dor, a mesma que vos comprazíeis em infligir — redar­güiu o Mentor. — Este é um dos momentos em que o denominado “choque de retorno” realiza o seu mister. Não ignorais, através do conhecimento das «leis de for­ça», na Física, que a resistência está na razão direta do movimento produzido pelo impulso dado ao objeto ar­remessado. Toda ação, por isso mesmo, produz reações que se sucedem e avançam, chocando-se com os ditames da Sabedoria Divina e logo retornando na direção de quem as imprime. A violência, portanto, somente con­segue destruição, e como nada se aniquila, a colheita do ódio é sempre ácido e chuva de amargura.

— Não, eu não suporto vê-la nesse estado — inter­feriu, congestionado. — Não terei direito a essa mulher que a vida me negou desde os primeiros momentos? Eu que comando inúmeras mentes, a um simples gesto, meus servidores que se encontram aí fora dispõem de meios de atrair verdadeira legião de quem me deseje servir, e provocaremos um pandemônio, dominando-vos e a esses, arrebatando essa a quem desejo, a fim de que perma­neça comigo... Sei utilizar-me dos recursos que produ­zem a rutura dos vínculos que atam o espírito ao corpo. Nesse sentido, os meus conhecimentos ultrapassam os Seus.

— Não duvido — retrucou, sereno, o Benfeitor Es­piritual. — Todavia, considero a desnecessidade da vio­lência, quando possuimos recursos outros de paz, que o Senhor Jesus nos oferece e que agora podemos aplicar seguramente.

— Não me volte a falar nesse Crucificado — ar­remeteu com sarcasmo evidente. — Nem sequer se sal­vou a si mesmo; no entanto, deixou um rastro de sangue e padecimentos por onde passou a lembrança odienta da sua Cruz...

— Enganais-vos! — impugnou o Mensageiro. — O vosso sofrimento na fogueira foi injusto só aparente­mente. Bem sabeis que a vossa vida não se originou ali. Caminhante da eternidade, quantas existências ficaram sepultas nas cinzas do passado? É bem verdade que não justificamos a sanha criminosa, que durante a Ida­de Média tomou conta da História. No entanto, ainda hoje, que fazeis? Como estão as vossas mãos? Falais em justiça e clamais, desarvorado. Que direito tendes de a executar? Não foi esse o erro dos inquisidores do passado, em cuja trama caístes? Sofrestes, sim, ne­fanda atrocidade, mas não indébito justiciamento. Se fosseis humilde e se acolhêsseis o amor, ter-vos-ia li­bertado e hoje seríeis livre. No entanto, convertestes a oportunidade em fardo de horror e, enlouquecido, acre­ditastes no poder da força, sempre transitória, porque somente perene é a força do amor, que ainda desde­nhais. O próprio Mestre, mesmo perseguido e condena­do, lecionou perdão ao invés de revide, compaixão diante do ofensor, misericórdia em relação ao revel e caridade em toda circunstância... E ofereceu-se a si mesmo, Ele que é o Excelso Rei Solar, diretor dos nossos des­tinos. Reconhecei a própria fraqueza e parai a escutar, quanto ignorais. Ainda não ouvistes Henriette-Marie...

Os conceitos felizes e oportunos do irmão Glaucus e a hábil maneira com a qual desviara o tema para os problemas da sofredora, produziram o efeito dese­jado sobre o aturdido vingador.

— Conta-nos — apressou-se, quase súplice —, con­ta-nos o que te ocorreu. Procurei-te tanto, quando as labaredas deixaram de crestar-me as carnes atadas ao lenho na praça do Mercado Velho, em Ruão. O ódio que me consumia não me permitiu, porém, a serenidade de localizar-te. Fui atraído por companheiros da minha desgraça e ingressei nas hostes dos justiçadores.

Henriette-Marie que fazia compreensível esforço para acompanhar todos os lances dos cometimentos que acon­teciam naquele instante, rebuscando os refolhos da mente, com voz entrecortada e ofegante, inquiriu:

— Oh, tu és, então, o amor que me roubaram, rou­bando-me depois a mim mesma? Vê o que foi feito de mim! Contempla-me! É infelizmente impossível reco­meçar. Perdi-me na voragem de suicídio que ainda me faz contorcer as entranhas, sem oportunidade de repa­rar o gesto, jamais. Estou condenada ao Inferno.

— Mas não há Inferno — retrucou o interlocutor.

— Os demônios somos nós e um dos muitos infernos existentes, governo-o eu. Asserena-te e prossegue!

A infeliz entidade, emocionada e dorida, continuou:

— Tenho rogado a Deus, mesmo no corpo, que me conceda a dita da paz, e ignorava, nos momentos em que me encontro reclusa nessas carnes, que a minha paz adviria de encontrar-te e voltar a sentir-te ao meu lado. Ajuda-me, se me amas, a sair do labirinto tormentoso em que tenho vivido. Só o teu amor me dará lenitivo:

socorre-me Teo! Ignoras quanto tenho chorado. Minhas lágrimas se transformaram em aço derretido que me es­corre dos olhos dilacerados, ferindo sem cessar a face...

Ouvindo-a, o Dr. Teofrastus achegou-se e, de joe­lhos, vencido por emoção desesperadora, ferido como animal acuado, acudiu:

— Que não farei por ti, eu, que, desde que te perdi, me converti em chama crepitante que não se consome na voragem da própria desesperação! Aqui estou. Não sofras mais: tem paciência!

Henriette-Marie fitou-o, então, com olhar de su­prema angústia, através do qual grossas lágrimas rola­vam incessantes. Atendida pelos fluídos benéficos do ir­mão Glaucus, cujo tórax parecia uma estrela refulgente em claridades cambiantes e diáfanas, que envolviam a sofredora, ofegante, como se desejasse aproveitar-se do instante que se lhe apresentava único, para derramar o fel retido no coração, explicoü:

— Passaram-se tantos séculos já e parece-me que tudo aconteceu ainda ontem... Quando me informaram que havias sido condenado pela Inquisição ao pão da dor e à água da agonia, compreendi que passarias àJustiça infame que governava, arbitrária, caminhando para a fogueira. Tentei ver-te, sem o conseguir nunca. Não te pude dizer do amor que me estrugia nalma e dos sonhos de ventura que acalentara para fruir ao teu lado. Quando me anunciaram o teu suplício em praça pública e a tua morte, refugiei-me nas sombras do Con­vento, buscando o esquecimento e o abandono de tudo. A imaginação dos teus suplícios, amado, atormentava-me, roubando-me demoradamente a paz, e conduzindo-me à loucura em processo de longo curso. Mas não fugi ao cruel destino, que nos perseguiu implacável.

Ignoras, talvez, que o infame que presidiu ao processo em que foste envolvido, fê-lo por felonia... Só mais tarde eu o soube. Disse-me ele mesmo através da boca do confessionário, quando me quis roubar a honra e apos­sar-se de mim, que lhe parecera presa fácil aos caprichos de um homem devasso, fazendo-me serva das suas paixões. Sabendo do nosso amor — pois que eu lho nar­rara através de confissão auricular anterior — domi­nou temporàriamente a paixão, e sem que o soubesse, eu mesma lhe forneci as bases processuais, quando lhe narrei as incursões que fazias no reino dos mortos e as práticas a que te dedicavas. Pedia, então, conselhos ao nefando traidor... E ele tudo fez para afastar-te do meu caminho, acreditando, lobo que era, na possibilidade de devorar a ovelha...

Profundo suspiro se lhe escapou dos lábios, como se todos os sentidos, tensos desde há muito, relaxando-se agora, se fossem despedaçando. Ansiosa por libertar-se das hórridas recordações, prosseguiu:

— Acreditando na fé espúria que ele ensinava e di­zia viver, ouvi-lhe todas as justificações, deixando-me crer que, embora perdendo a vida, entrarias no Reino de Deus, graças à intervenção dos atos litúrgicos “post—mortem”, que se prontificou a celebrar em intenção da tua alma. Não se passara o triste outono da tragédia e relatou-me a sua furiosa paixão por mim, dizendo-me ter sido eu o móvel de toda a desgraça que o levara a assassinar-te em nome da fé e da religião... O ódio surdo que se apossou de mim foi superior a tudo que possas imaginar. Investida nos hábitos da Ordem a que me recolhera, fi-lo acreditar que me submeteria aos seus caprichos e, quando visitada pela sua infame pessoa, servi-lhe vinho ao qual adicionara violento veneno. Após ingerido, constatei os sintomas que começavam a fulmi­nar a víbora. Segura da sua destruição, contei-lhe, en­tão, enquanto se retorcia na dor, o meu desprezo e o meu horror. Vencida pela loucura, libei, ali mesmo, alta dose do vinho envenenado e sucumbi, de imediato, sem nunca morrer...

«Desgraçada de mim. Reencontrei-o logo, esperan­do-me...

“O que me aconteceu, desde então, não posso rela­tar. São sucessões de noites em que viajo ao inferno mil vezes e retorno, ora vencida por forças satânicas, dentre as quais ele se destaca, vezes outras possuída pela vermina que me vence até o olvido, para recome­çar tudo outra vez, incessantemente, doloridamente...

«Agora, amado, agora eu o sinto na sua ronda vin­gadora e o vejo devorando-me por dentro — eu que o odeio sem remorso —, enquanto a doença me destrói por fora. Encontrando-te, porém, tudo me parece tão diverso, que esqueceria o vil criminoso que nos destruiu a ambos e até o perdoaria, se não te apartasses de mim. Ouve-me, ......

— Ouço-te e providenciarei para que não sofras mais e para que venhas imediatamente para onde me encon­tro. Não te deixarei e velarei à tua porta até o mo­mento que logo virá para a nossa ventura, vencidos os últimos óbices que nos separam — esses frágeis laços de carne e sangue.

Embora semifulminado pela narração, espumejante de ódio e furibundo, o Dr. Teofrastus já denotava os si­nais do milagre do amor. A voz repassada de sofrimento indefinível, com que Henriette-Marie relatou o complexo drama em que se vira envolvida, deixava no verdugo de muitos o desejo imenso de minorar-lhe a longa e in­términa dor, suportada por tantas décadas através do passar dos tempos.

— Henriette-Marie — informou o Mago de Ruão

—, embora ignorasse todo o teu sofrer, como lenitivo quero que saibas que aqueles que nos desgraçaram expe­rimentaram nas minhas mãos o látego da justiça. Fiz-me rei de domínios em que o horror exerce predomi­nância sobre a piedade e em que a vingança é a lei de toda hora... Ferido, retornei aos sítios da nossa infe­licidade e busquei-te. Não te logrei achar. Ignorava que fugiste pelo mais cruel caminho: o do suicídio, em cujo curso não tenho meios de interferir, já que o sui­cida se depara com outras construções da justiça. A minha mão alcançou o Bispo de... e outros asseclas seus, longe, porém, eu estava de supor que o causador de tudo fora o teu confessor, o mórbido criminoso que se disfarçava com as sandálias da humildade para ocul­tar o celerado que sempre foi. Buscá-lo-emos, porém. Dir-me-ás onde se encontra, e nós dois faremos justiça.

Nesse momento, o irmão Glaucus, interferindo no diálogo dos dois Espíritos que se reencontravam após tão longa separação, elucidou:

— Não esqueçais de que só o amor pode resolver o problema do ódio. Vindes-vos arrastando pela senda do tempo, descendo à animalidade inferior, consumidos pelo desespero. Quando parareis? A queda não tem pa­tamar inferior: sempre se pode baixar mais... Tam­bém o planalto da redenção: sempre se pode ascender na direção da Vida até à glorificação imortal. Olvidai aqueles que vos maceraram e considerai a oportunidade do amor, que ora defrontais. É certo que vos separam os elos do corpo. Para quem ama, porém, não há verdadeiramnente separação.

Intervindo, o Dr. Teofrastus arremeteu:

— Não há como aceitar impositivos de amor. Para a nossa felicidade só a destruição dos inimigos...

— Enganais-vos! — retrucou, o Instrutor. — Não há destruição nem aniquilamento de vidas ou de Espí­ritos. Qualquer tentame nesse sentido somente alon­gará indefinidamente o vosso martírio. O ensaio de des­forço separar-vos-á e a loucura da suposição, quanto à desencarnação de Ana Maria, não passa de ingenuidade, que acalentais sem exame minudente e lógico. Não so­mos os arquitetos da Vida. Assim, pois, não temos o direito nem podemos interferir no seu curso, que obe­dece a planificação superior que vos escapa. Ouvi-me:

o algoz a quem odiais é, também, vossa vítima. Infeliz, espera oportunidade de perdão, para igualmente per­doar. O fel sorvido incessantennente desespera-o e, ven­cido pela própria insânia, desde há muito perdeu a fa­culdade de discernir. Escravo do ódio é vítima dele mesmo, tendo-se feito catarina por vontade própria. Fe­ri-lo mais é arrematada loucura. Já não sofre; perdeu a faculdade de experimentar a dor. Obedece a impulsos mecânicos do condicionamento demorado a que se jun­giu. Ajudá-lo é ajudar-vos; socorrê-lo com a piedade sig­nifica libertar-vos.

Embora estivesse disposto ao duelo verbal, o dou­tor Teofrastus denotava cansaço, e o reencontro, com Henriette-Marie, de certo modo conseguira feri-lo, en­sejando-lhe novas concepções sobre as Leis Divinas.

O irmão Glaucus, nesse momento, adornado de lu­zes como veneranda figura ressurgida em madrugada de imortalidade, tomando os dois seres qual se fora o genitor de ambos, disse:

— Reencontrar-nos-emos outras vezes. Desdobram-se-nos perspectivas para o amanhã. Agora se nos im­põe a momentânea separação. Ana Maria deve reassu­mir os deveres do ressarcimento a que se encontra vin­culada, e vós, amigo, necessitais pensar. O tempo ser­-vos-á conselheiro. Despeçamo-nos, e reconduzamos a nossa querida amiga aos seus compromissos humanos, que não podemos interditar nem modificar.

O Dr. Teofrastus tentou reagir, insistir. Diante, porém, do Benfeitor, cujo olhar penetrava-o docemente, o atormentado juiz e vingador baixou os olhos e silenciou.

Foram ministrados passes no obsessor de Ana Ma­ria que se encontrava ao lado e providenciada sua re­moção dali. O Dr. Teofrastus despediu-se, sendo antes informado da possibilidade de novo encontro em dia pre­viamente assinalado, quando voltaríamos ao Lazareto. Reconduzidos ao veículo que nos esperava à porta da casa, retornamos ao Templo de orações, e, após como­vida prece, fomos reconduzidos ao lar.

Um amanhecer em tons róseos e azuis vencia a Natureza em sombras, anunciando o novo dia.

10

Programação redentora

No desdobramento das tarefas habituais, através das quais eram mantidos os contactos com os Benfei­tores Desencarnados, nas sessões especiais, hebdomadá­rias, recebíamos esclarecimentos e informações, através das quais os irmãos Saturnino e Ambrósio nos davam elucidações minudentes dos acontecimentos transcorridos na Esfera Espiritual, quando dos labores abençoados de que participávamos, conquanto a nossa condição de encarnados no domicílio orgânico.

Dessa forma, inteiramo-nos dos detalhes da opera­ção fraterna junto ao Dr. Teofrastus e a Henriette-Ma­rie, assim como dos fatos precedentes. Obviamente, ao retornarmos ao corpo somático, as lembranças das rea­lizações espirituais desapareciam quase completamente, deixando-nos as evocações em impressões de sonhos que se manifestavam, ora como pesadelos dolorosos, ora como estados de comunhão elevada com as Esferas Superio­res da Vida. Nesse particular, os Instrutores se encar­regavam de ativar ou frenar os centros encarregados das lembranças, de modo a que a nossa jornada humana transcorresse com a normalidade possível, sem proble­mas que nos perturbassem as atividades de servidores da Comunidade dos homens.

A recordação detalhada situar-nos-ia entre os dois mundos, ensejando-nos um desapercebimento das reali­dades do lado físico, propiciando-nos um desvio da aten­ção, que se voltaria para as experiências e realidades da esfera espiritual.

Desde que fora iniciado o processo desobsessivo de Mariana, recebêramos advertência no sentido de man­ter as ligações psíquicas com a Espiritualidade Superior, de modo a nos acautelarmos das ciladas dos Espíritos menos felizes que, surpreendidos pelas incursões que se fariam nos seus domínios, seriam concitados à agres­são por todos os meios possíveis, numa tentativa de obstar o labor abençoado ora em execução.

Considerando as altas responsabilidades que nos di­ziam respeito, buscávamos corresponder à expectativa dos Mentores, esforçando-nos por oferecer, pelo menos, a quota da oração, do pensamento otimista e o espí­rito de abnegação, dedicando-nos ao mister espiritual com alta dose de entusiasmo e fé.

Ao primeiro ensejo, após a entrevista com o ex-Mago de Ruão, o Benfeitor Saturnino elucidou, pela psicofo­nia do médium Morais, que voltaríamos a encontrar-nos, depois de concluídos os trabalhos da noite, quando o Irmão Glaucus conduziria o terrível obsessor, ora em fase de meditação, a uma entrevista naquela Casa, num encontro que estava destinado a definir os rumos fu­turos da sua vida. Concitava-nos ao exercício e men­talização da piedade fraternal, manifestação essencial para a caridade legítima, de que nos deveríamos reves­tir para cooperar ativamente.

Em retornando ao lar, a expectativa do reencontro me inquietava, dificultando-me o necessário repouso. Orando, no entanto, e sentindo a presença dos Irmãos Maiores do Mundo Espiritual, recompusemos a paisagem mental e brando torpor nos invadiu, facilitando às Entidades vigilantes o nosso desdobramento e consequente condução à Sede da nossa Casa de Oração e Amor. Quando ali chegamos, já se encontravam os demais mem­bros participantes das tarefas socorristas.

Saturnino, sempre calmo e gentil, traduziu em sen­tida oração os anseios de todos os presentes e rogou a Jesus fosse Ele o Sublime Visitante e o Condutor dos trabalhos em desdobramento, com vistas à caridade da iluminação de consciências obnubiladas pelo orgulho e pelo egoísmo — esses dois implacáveis inimigos do es­pírito humano!

O ambiente, à medida que o Benfeitor orava, se foi saturando de perfume discreto, qual lavanda muito leve carreada por suave aragem - Pétalas de luz diáfana co­meçaram a cair, abundantes, e desfaziam-se ao tocar nos circunstantes ou nos diversos móveis e objetos. Vibra­ções muito penetrantes nos impregnavam a todos - E sem que o percebêssemos, as emoções rompiam os diques da visão e fluíam em copiosas lágrimas, no recolhimento em que nos encontrávamos.

Voltando-se para o irmão Petitinga, Saturnino so­licitou:

— Leia, meu irmão, o «Livro da Vida».

O venerando amigo acercou-se da mesa mediúnica e tomou de pequeno livro, irisado de filetes de luz, no qual vimos em tons azul-prateados as letras, em destaque:

Novo Testamento.

Abrindo-o ao sabor do momento, embargado pela emotividade superior da hora, José Petitinga leu as ano­tações do apóstolo Marcos, no Capítulo nº 9, versiculos 17 a 29:

«Mestre, eu te trouxe meu filho, que está possesso dum Espírito mudo, e este, onde quer que o apanha, o lamça por terra: ele espuma, range os dentes e vai definhando. Roguei a teus discípulos que o espelissem, e eles não puderam. «Disse-lhes Jesus: «Oh, geração incrédula! até quando estarei convosco? até quando vos sofrerei? Tra­zei-mo» Então, lho trouxeram. Ao ver a Jesus, logo o espírito o convulsionou; ele caiu por terra e se estorceu, espumando. Perguntou Jesus ao pai dele: «Há quan­to tempo acontece isto?» Respondeu-lhe: «Desde a infância; e muitas vezes o tem lançado tanto no fogo como na água, para o destruir; mas se podes alguma coisa, compadece-te de nós e ajuda-nos. » Disse-lhe Je­sus: “Se podes! tudo é possível ao que crê.» Imedia­tamente o pai do menino exclamou: «Creio! ajuda a mi­nha incredulidade.» Jesus, vendo que uma multidão afluia, repreendeu o Espírito imundo, dizendo-lhe: «Espírito mudo e surdo, eu te ordeno, saí dele, e nunca mais nele entres.» Gritando e agitando-o muito, saiu; o menino ficou como morto, de maneira que a maior parte do povo dizia: «Morreu. » Jesus, porém, tomando-o pela mão, ergueu-o, e ele ficou em pé. Depois que entrou em casa, perguntaram-lhe seus discípulos particularmente: «Como é que nós não pudemos expulsá-lo?» Respondeu-lhes: — “Esta espécie só pode sair à força de oração.»

Fechando o delicado repositório dos (ditos do Se­nhor», e, inspirado e comovido, José Petitinga, após li­geira pausa, teceu comentários vazados na mais exce­lente conceituação espírita, revivendo os feitos do Mes­tre, naquele momento em que deveríamos, aquinhoados pela mercê do Rabi, concitar à paz e ao arrependimento, um Espírito que, somente «à força da oração», poderia modificar-se.

Silenciava o apóstolo da mensagem espírita em ter­ras baianas no passado, quando deu entrada na sala o irmão Glaucus, que se fazia acompanhar do Dr. Teo­frastus e dos dois guardiães que, com permissão dos Instrutores, ficaram postados à porta do recinto, pelo lado exterior.

A Entidade visitante trazia o semblante velado por singular melancolia, Os olhos antes brilhantes, tradu­zindo estranha ferocidade, se apresentavam baços, e, como se suportasse invisível fardo, caminhava tardo, com características mui diversas daquelas que ostentava até há poucos dias.

Tratado com carinho e respeito pelo venerável Ben­feitor, foi convidado a sentar-se entre nós, na condição de convidado especial.

O irmão Glaucus, tomando a palavra, falou sussin­tamente:

— Tratamos aqui de dar prosseguimento ao exame dos problemas que dizem respeito a Henriette-Marie e ao seu perseguidor, que agora se encontra recolhido em recinto de Amor, sob guarda de devotados servidores do Bem. Não ignoramos que o irmão Teofrastus foi defrontado por surpresa dolorosa com o resultado da má aplicação do tempo, passando a experimentar desde en­tão as consequências das atitudes espontaneamente to­madas. Sabendo-o ligado por profundos laços de afei­ção à sofredora, que lhe não pôde fruir a companhia nos últimos tempos, consideramos de bom alvitre con­duzi-lo até onde ela se encontrava, de modo a concertar planos em relação ao futuro e sustar, em definitivo, as maquinações da criminalidade até agora em desdobramento.

— Mas, no momento — repostou o vingador, visivelmente conturbado —, não poderei aquiescer com quais­quer compromissos que objetivem afastar-me dos muros do meu campo de ação. Estou vinculado a uma pode­rosa Organização, e embora em posição de comando sou, por minha vez, comandado.

— Insistimos em elucidar — replicou, seguro e cal­mo, o Benfeitor — que Chefe somente um há: Jesus, o Rei Sublime das nossas vidas, a Quem devemos as dádivas oportunas da evolução e do progresso atual, em nossa nova condição de viandantes da luz. Entre­gando-nos ao Seu comando afável, nenhuma força pos­suirá meios de alcançar-nos, porque sombra alguma, por mais densa, conseguirá suplantar a luz mais insignifi­cante, submetendo-a...

— Somos, porém — revidou, algo indeciso —, doze Mentes Dominadoras, que nos encontramos submetidos a uma equipe de dez Magistrados que habitam Regiões Infernais, onde os mínimos desvios da Justiça recebem longas punições. Constituímos o grupo dos Doze... Na aplicação do nosso código selecionamos criminosos que alcançam, de nossas mãos, as primeiras correções, após o que são conduzidos para os presídios próprios, nas furnas, onde levantam as construções da Cidade da Fla­gelação... Ligamo-nos por processo mental especiali­zado e frequentemente somos convidados, por nossa vez, à prestação de contas, em minudentes relatórios verbais que são fiscalizados por técnicos competentes e apare­lhos sensíveis. Além disso, as minhas próprias razões me impedem tudo abandonar, para deixar-me arrastar por sentimentalismos mórbidos, renegando à felicidade em que me comprazo, sem conhecer, evidentemente, o que se espera de mim. Tudo me é muito fácil: bastar-me-á arrancar Henriette-Marie da masmorra carnal e retê-la comigo...

— E olvida o amigo — explicou o irmão Glaucus — que desencarnando a nossa irmã, por constrição obses­siva, ela escapará das vossas mãos, por ter sido apres­sada a sua partida, sem que se possa responsabilizá-la por isso? Ignorais exatamente as «leis de fluídos» e os processos de «sintonia»? Esqueceis-vos de que toda vítima libra acima dos seus algozes? Além disso, consi­deremos que não podemos desprezar a opção do Senhor: isolá-la da vossa interferência por processos que nos es­capam à sagacidade, mas que pertencem à sabedoria.

Sim, não ignoro — aquiesceu —, mas a conjun­tura que se me apresenta é grave... Amo-a, sempre a amei. Na impossibilidade de possuí-la, como privar-me do seu amor?

— Deixando-vos possuir — redargüiu, ameno, o Ben­feitor. — O amor é concessão que se manifesta com mil faces. Não podendo ser-lhe o esposo, conseguireis ser o amado, no seio materno, na condição de filho da alma e do coração. Fruir-lhe-eis a ternura das mãos e sugareis o leite vital do seu seio. Estareis no calor da sua devoção e os vossos olhos se demorarão mergulhados na luminosidade dos olhos que amam. Permutareis a grande noite da soledade pelo demorado meio-dia da convivência. Transfundireis todo sentimento de amargura em expres­são de dependência e fé. Derramareis o vaso do ódio, que se converterá em adubo de produção, no solo da compre­ensão e da afetividade. Por década de distância, um tempo sem fim de presença, de imorredoura constância.

— E a lepra? — argúiu.

— A lepra de que parece revestida — elucidou o Amigo Espiritual — é enfermidade simulacro, produzida pelas descargas constantes do seu perseguidor desencar­nado. Não desconheceis, amigo Teofrastus, o que conse­guem as forças fluídicas desencadeadas sob o impacto do ódio, e a absorção em longo processo obsessivo das ener­gias deletérias. De mente consumida pela perturbação que a si mesma se vem impondo, através das constantes transgressões às Leis de Justiça, nossa irmã sincronizou com o verdugo que a vítima e, amolentada pelas vibra­ções hipnóticas do seu antagonista, começou a experimen­tar as falsas impressões do Mal de Hansen — conforme desejo do seu inimigo —, sendo atirada ao presídio-hos­pitalar em que vive, em quase total abandono, para que a vindita se coroe da resolução final, que o sicário aguar­dava: o suicídio. Estamos, aliás, informados de que tal plano fora trabalhado pelo próprio amigo Teofrastus, que atenderá à. consulta que lhe formulara o algoz de Hen­riette, em espetáculo, no Anfiteatro, após ouvi-lo, em oca­sião passada, anos atrás...

— Quê? — Gritou o infortunado. — Então, serei eu, o sabujo que ofereceu ao caçador a pista da destrui­ção da vítima?

— Sim, meu amigo — afirmou, o prestimoso Men­tor. — Por isso só à Justiça Divina compete os casos da justiça. Disse Jesus: «Vós julgais segundo a carne (ou a aparência), eu a ninguém julgo», por conhecer Ele o nosso ontem e as perspectivas do nosso amanhã. Todo agressor inconsciente cai hoje ou mais tarde nas arma­dilhas da agressão.

E dando nova entonação à voz, que mantinha a se­renidade habitual, mas que se nos afigurava com expres­sões de energia, o irmão Glaucus aduziu:

— Sob carinhosa assistência de passistas especiali­zados da nossa Esfera, e afastado para tratamento o seu perseguidor, Ana Maria recobrará forças psíquicas e or­gânicas, logo mais, recuperando-se algo rapidamente. A enfermidade regridirá em caráter miraculoso e ela conhe­cerá um pouco de lenitivo e esperança através do braço amigo de alguém que, também, se lhe vincula, disten­dendo na sua direção a aliança nupcial. Mergulhareis, logo após, o amigo Teofrastus e o vosso cômpar, para, no longo caminho a percorrer através da experiência car­nal, tudo recomeçar, refazer, regularizar.

— E os meus débitos — interrogou — como me se­rão cobrados? Não posso desconhecer a extensão dos meus atos e sei das consequências que eles devem acar­retar.

— Os nossos erros — referendou o irmão Glaucus — hoje ou mais tarde nos voltam em caráter de necessá­ria reparação. Adiar o reajustamento significa, também, aumentar os gravames que o tempo lhes acrescentará, impondo-nos mais elevada dose de sacrifício. Além disso, não nos cabe a presunção de antecipar o porvir. Entre­gues ao Senhor, o Senhor cuidará de nós, abrindo-nos os depósitos do Seu amor e enriquecendo-nos com as Suas bênçãos múltiplas. Para Ele não há perseguidor nem per­seguido, mas Espíritos enfermos em estados diferentes, caminhando por vias diversas na direção do Bem Infi­nito. Não ignoramos que o mal é somente ausência do bem e que à chegada deste aquele esmaece, porqüanto só uma força existe: a do Amor triunfante!

Aqueles conceitos penetravam-nos a todos, especial­mente no Chefe do Anfiteatro, que se mostrava cada vez mais triste, mais infeliz, não ocultando o sofrimento que o libertava dele mesmo, escravo das paixões séculos a fio.

Levantando-se, sem a soberbia de antes, o Dr. Teo­frastus arremeteu:

— Mas isto aqui é uma Casa Espírita! Sou uma das Mentes encarregadas de combater a peçonha cristã, que teima em reaparecer com indumentária nova. Detes­temos esses aventureiros do corpo, que se atrevem inva­dir os domínios, que somente pertencem aos mortos.

— Equivocam-vos, amigo — obtemperou amàvelmen­te o irmão Glaucus. — Não há mortos, e sim vivos. Encar­nados ou desencarnados somos todos Espíritos imortais, transitando numa ou noutra vibração, marchando, porém, na direção da imortalidade. O Cristianismo não teima em aparecer ou reaparecer: não desapareceu nunca, conquan­to as interpolações e desrespeitos de que foi vítima atra­vés dos séculos. Refletindo o pensamento do Cristo é a es­perança dos homens e o pão das vidas. Combatê-lo é en­venenar-se; persegui-lo significa dilatar-lhe os horizontes que se perdem nas fronteiras do Sistema Solar. Vã loucura da ignorância pelejar contra o conhecimento e da estultice investir contra a sabedoria... Jesus vive e vence, meu amigo. É tudo inútil e vós sabeis.

— Não o sei — replicou, já combalido — mas o sinto. Ele me persegue inexoràvelmente. Não me deixa repousar; tortura-me em cada um a quem torturo; deses­pera-me em todos aqueles nos quais descarrego a minha sanha. Que tem Ele contra mim?

— Ou que tendes contra Ele? — retrucou o Ben­feitor. — Jesus é o amor inexaurível: não persegue: ama; não tortura: renova; não desespera: apascenta! O amigo Teofrastus, sim, arvorou-se em Seu adversário e sofre as contingências da alucinação e da procrastinação do momento de entregar-se-lhe em total doação. Não te-mais, pois. A verdadeira coragem se manifesta, também, quando o ser reconhece o que é e o que possui, refazendo o caminho por onde deseja seguir, reunindo forças para retemperar o ânimo, e, qual criança, aprender o amor desde as suas primeiras lições.

— Temo, sou constrangido a confessar.

— O temor descende da consciência em culpa.

— Tenho sido a expressão da força e da violência e aprendi a não confiar.

— Jesus, porém, é a expressão do amor e sua não-violência oferece a confiança que agiganta aqueles que O seguem em extensão de devotamento.

— Temo, porque creio... E crendo, sofro. Em todo o pelejar, mesmo odiando, nunca O bani da minha mente.

— Nem poderíeis fazê-lo. O ódio é o amor que en­louqueceu...

— Nos primeiros dias do século atual fui convocado a abandonar o solo da França para vir aqui operar, tendo em vista a transformação que se realizava neste país, ante o reverdescér do pensamento cristão, amortecido em toda a parte e revivente aqui pelo contacto com a - nossa Esfera de vida. Nosso grupo deveria encarregar-se de sitiar a mediunidade e os novos cruzados do Cristianis­mo, instaurando tribunal de punição e trazendo-os a nos­sos recintos, quando semidesligados pelo sono, para que as visões dos nossos cenários e das nossas operações di­versas pudessem infundir-lhes medo ou sedução, deixando nas suas lembranças as sementes do desejo, no culto do sexo, da ambição, no culto do dinheiro, da prepotência, no culto da vaidade. Em diversas sessões Espíritas, emis­sários nossos têm procurado penetrar, com o objetivo de semear ali a discórdia, multiplicar as suspeitas, irradiar o azedume e difundir a maledicência... E quando as circunstâncias facultam, mantemos o comércio pela in­corporação sutil ou violenta, conforme o paladar da le­viandade dos membros da Colmeia... Sem dúvida que temos conseguido boa colheita, principalmente no campo das agressões morais de vária ordem, em que os falsa-mente bons e os aparentemente honestos oferecem semi­nário favorável para as nossas mudas, que logo medram exuberantes, multiplicando-se facilmente. É evidente que o nosso acesso não se faz em todos os recintos, porque, alertados, muitos se mantêm em atitude de vigilância, coibindo-nos a interferência. Além disso, os seguidores do Cordeiro conseguem dispersar os nossos agentes, uti­lizando-se de processos muito eficientes. Como me pode­rei agasalhar numa Casa que tal? Como me liberarei dos compromissos com aqueles aos quais me encontro vinculado?

— Ouvimos-vos com atenção — respondeu o Benfei­tor, lúcido e claro. — Embora não fossemos colhidos de surpresa ante o vosso informe, porque conhecíamos as tarefas do irmão Teofrastus, elucidamos-vos que esta Casa dispõe de defesas construídas em muitas décadas de santas realizações, merecendo do Plano Divino carinhosa assistência. Resguardada das forças agressoras, é agasalho e hospedagem abertos aos que sofrem, sob a direção do Cristo. Não há porque considerar compromis­sos senão com a Verdade. Os outros não podem ser de­nominados compromissos, mas conchavos da ignorância, destituídos de qualquer valor, pelos propósitos infelizes de que se revestem. Nossa destinação, meu amigo, é a Verdade. Como Jesus é o Caminho, não mais recalci­tremos.

Todos nos encontrávamos mergulhados na mais co­movente concentração. O duelo verbal entre a impostura e a verdade convincente aclarava-nos o espírito, alargando as percepções em torno da vitória dos altos propósitos e dos superiores desígnios.

A um sinal quase imperceptível, o irmão Saturnino deixara antes o recinto, atendendo à orientação do Ben­feitor Espiritual.

Naquele momento em que o silêncio se fizera natu­ral e quando a Entidade meditava, dominada por com­preensível inquietação do espírito em febre, retornou o Guia Amigo, trazendo, adormecida, qual criança agasa­lhada no afeto paternal, Ana Maria, que foi colocada ca­rinhosamente sobre alvo leito, reservado e vazio no re­cinto, desde o começo da entrevista.

Vendo-a, de inopino, o Dr. Teofrastus foi acometido de angustiante expectativa. O Benfeitor vigilante acal­mou-o com gesto delicado, após o que se aproximou da jovem adormecida e, tocando-lhe as têmporas, despertou-a com voz amiga e confortadora.

A leprosa circunvagou o olhar em torno, e, devida-mente acalmada pelo Instrutor, reconheceu o Dr. Teo­frastus. O olhar adquiriu brilho especial, alongou os bra­ços e, ante a aquiescência do Mentor, o antigo Mago es­treitou-a, com imensa ternura, envolvendo-a em ondas de afetividade e carinho.

— Quanto esperei por este momento! — aludiu o antigo vingador.

— Também eu, também eu! — retrucou a sofredora, em lágrimas.

— Perdoa-me, Henriette...

— Perdoar-te? Nosso dorido amor é maior do que tudo e por si só anula todas as aflições antigas. Sou eu quem te roga, Teo: ajuda-me e não me abandones mais! Eu sou a esperança quase morta e tu és o hálito do meu reviver. Não me negues a migalha da tua presença, haja o que haja. Levantemo-nos do torpor que nos aniquila a longo prazo e roguemos a Deus que nos resguarde de nós mesmos e nos ajude, a partir de hoje. Não supor­taria mais viver sem ti. Sonho, Teo, isto é um sonho! Estamos numa esfera de sonho em que me apareces des­figurado e triste. Porque demoraste tanto?

— Perdoa-me! Por mais te buscasse, jamais reen­contrei-te. Não, não nos separaremos mais, nunca mais. Juro! Renunciarei a tudo, para experimentar a ternura das tuas mãos e a meiguice dos teus olhos. Ouve, Hen­riette-Marie, o que te irei falar... Escuta com atenção...

Não pôde prosseguir. O choro convulsivo desatou-lhe nalma e ele recuou, vencido, cambaleante, aos gritos, em atroada desesperadora.

O Mentor amoroso aproximou-se e exortou-o ao equi­líbrio. Falou-lhe da significação do momento e das pou­cas reservas que possuía Ana Maria, recém-libertada da constrição psíquica do seu antagonista e necessitada de estímulo para aceitar os novos encargos de esposa e não, logo se lhe refizessem os departamentos fisiomentais, com vistas ao futuro. A palavra oportuna ajudou o ator­mentado a recompor-se.

Achegando-se à jovem, em espírito, o irmão Glaucus relatou:

- Filha, hoje tem início etapa nova na jornada do teu espírito eterno. Embora o passado não esteja morto, todo ele deve ser esquecido. A construção do amanhã tem início agora. Sombras e receios, mágoas -e recrimi­nações devem ser superados e a eles se faz necessário antepor esperança e paz, fé e trabalho na reconstrução da felicidade que tem demorado. Muitas vezes, ou quase sempre, quanto nos ocorre é consequência do que reali­zamos. O nosso teto de albergue deve possuir sem dú­vida segurança e estabilidade para não ruir sobre as nos­sas cabeças. Longo tem sido o teu peregrinar e demo­rado o teu prazo de aflição corretiva. Jesus, porém, que não deseja a «morte do pecador», mas a sua redenção, faculta-nos, a todos, ensejos de resgate luminoso.

Fez uma pausa oportuna. A entidade acompanhava as palavras felizes do Benfeitor, buscando imprimi-las no imo dalma. Após breve silêncio, este prosseguiu:

— O teu sonho de amor, esperado por largo período de tempo, que agora já passou, se concretizará... O nosso Teofrastus necessita, também, de recomeçar a experiên­cia, a benefício dele mesmo. Entre ambos, porém, medeia o impedimento dos estados em que permanecem. Enquanto, filha, jornadeias no corpo carnal, o nosso ami­go se encontra libertado dos fluídos fisiológicos. Ante, pois, a impossibilidade de uma comunhão matrimonial que a vida lhes não pode oferecer de momento, solicita­mos que lhe ofertes a intimidade orgânica para que ele recomece o caminho, na condição de filho da tua devo­ção e do teu carinho...

Ana Maria, sacudida por impulso inesperado, ajoe­lhou-se e, abrindo os braços, balbuciou:

— Que se faça a vontade de Deus!

O irmão Glaucus, utilizando-se da expressiva oca­sião, prosseguiu:

— Tu, porém, filha, deverás oferecer ensejo a ou­tro ser que ama e padece, esperando compreensão e pie­dade. Trata-se de Jean Villemain, o infeliz sacerdote que, no pretérito, desencadeou todas estas aflições...

— A ele, eu me recuso ajudar —, replicou a jo­vem. — Odeio-o com todas as forças. Como lhe pode­ria ser mãe?

— O ódio, filha — considerou o Benfeitor —, somente desaparece na pira do sacrifício do amor. É certo que ele te fez sofrer em demasia; no entanto, a tua fe­licidade que agora tem início é, de certo modo, facul­tada porque ele te libera dos vínculos da rebeldia com os quais se ata a ti. Afastado para tratamento, senti­rás o benefício da saúde e da paz em retorno. Negar-lhe-ás a sublime oferta do recomeço, que a ti a Mise­ricórdia Divina, por sua vez, está concedendo? O teu seio, transformado em santuário maternal, receberá o amigo e o adversário e os terás como filhos diletos na forja do lar, sofrendo e amando, ajudando-os recíproca­mente para que transformem os floretes do duelo em arados do amanho ao solo da esperança, em cujos sul­cos sejam depositadas as sementes da paz.

A voz do Instrutor traía a emoção que o visitava. Como se recordasse serem os homens da Terra todos vítimas das paixões dissolventes, retomou a palavra e acentuou:

— Jesus, embora nossa ingratidão, continua aman­do-nos. Quando na Cruz, conquanto escarnecido, esteve amando, e agora, apesar de propositadamente ignorado por milhões de seres, prossegue amando. Sigamos-Lhe, filha, o exemplo, e transformemo-nos em célula de amor, a fim de que as nossas construções se assentem em ali­cerces de segurança.

Ana Maria, em lágrimas, fitou o antigo afeto, que permanecia atoleimado, e, inspirada pelas forças supe­riores que saturavam o recinto, concordou:

— Se o meu amor pode beneficiar o Teo e a mi­nha recusa a Jean pode ser fator de insucesso, em ho­menagem ao Amor de todos os Amores, aceito-o, tam­bém, como filho, e que Deus tenha piedade de nós...

O irmão Glaucus enlaçou a jovem mulher em terno abraço, e, tomando o Dr. Teofrastus no mesmo envol­vente gesto, rogou ao Senhor que os abençoasse, feli­citando-os com a concessão da união espiritual.

A jovem foi reconduzida de volta ao corpo, no La­zareto.

Depois de mais alguns estudos sobre a nova con­dição do irmão Teofrastus, este aproximou-se da porta e despediu os dois guardas, ficando combinado que ele se demoraria naquela Casa sob os auspícios dos Instrü­tores, até o momento em que seria encaminhado a uma Colônia preparatória para. a reencarnação futura, mes­mo porque outros trâmites no processo da desobsessão de Mariana requereriam sua presença.

Ante os sucessos daquela madrugada, o irmão Glaucus, sensivelmente comovido, orou a Jesus, em gra­tidão, e os trabalhos foram encerrados, depois do que, fomos reconduzidos ao lar.

11

As agressões

Para o espírita decidido, a tranquilidade de cons­ciência, ante o dever retamente cumprido, é o melhor prêmio que ele pode oferecer a si mesmo. Esse era o estado que nos dominava, enquanto estavam em curso as tarefas a que os problemas da família Soares nos convocaram e que, por mercê de Deus, fôramos hon­rados pela oportunidade de servir.

Não poucas vezes nos surpreendíamos empolgados pelas evocações, que, conquanto não tivessem toda a clareza que gostaríamos de experimentar, se nos apre­sentavam em painéis de recordação agradável. Mesmo quando a memória registrava os fatos com as tintas som­brias de pesadelos, em que à receio assomava incontro­lável, lembrávamo-nos do Mestre Inconfundível, do que Lhe custara descer aos homens e experimentar sem queixa a convivência com as paixões humanas, supor­tando o fardo pesado das incompreensões dos que O cer­cavam, acostumados conforme viviam com as questiún­culas do imediatismo. O estoicismo do amor de Jesus dava-nos forças e coragem para prosseguir, sentindo a felicidade de viver entre os dois mundos que se interpe­netram e cujas fronteiras mais não são do que uma fim­bria divisória, um claro-escuro de tênues colorações difí­ceis de definir e delimitar. Nesse sentido e sob outros vários aspectos o Espiritismo se nos apresenta como o roteiro de segurança para o equilíbrio do espírito do homem. Desfazendo as ilusões da matéria e vencendo as sombras transitórias que vedam as visões do Mundo Es­piritual, apresenta-nos as causas reais de cujos efeitos e somente neles, até agora, se há detido o pensamento da pesquisa tecnológica; suas asseverações rigorosamente fi­losóficas conseguiram avançar além da própria Filosofia no seu conjunto classicista, porque, em saindo da inter­rogação pura e simples, da indagação meramente vazia e das conjunturas das hipóteses, traz das realidades me­tafísicas as soluções morais e vitais para o enigma-ho­mem, que se deixa de quedar perturbado pelas incógnitas diversas, para palmilhar a senda dos fatos, de cujo con­texto extrai a realidade ontológica legítima que o capacita a avançar intimorato, embora as circunstâncias, con­dições e climas morais sob cuja constrição evolute na direção do Infinito. Sim, porque não são os homens ape­nas que realizam espontaneamente incursões no além-tú­mulo, mas, e principalmente, os vitoriosos da sepultura vencida que retornam, cantando a ressurreição da vida após a lama e a cinza do corpo, a repetirem incessantemente a lição imorredoura do Cristo, na manhã gloriosa do domingo, logo após a sua morte, como Astro fulgu­rante, atestando desse modo a indestrutibilidade do espí­rito e, consequentemente, as sucessivas transformações da vida para atingir a sublimação. Religião do amor e da esperança, pábulo eucarístico pelo qual o homem pode comungar com a imortalidade, é o lenitivo para a saudade do desconforto ante a ausência dos seres amados que o túmulo arrebatou, mas não lhes conseguiu silenciar a voz; esperança dos padecentes que sofrem as ácidas angústias de hoje, compreendendo serem elas o resultado da própria insânia do passado, porém, com os olhos fitos na esplendorosa visão do amanhã, que lhes está nas mãos apressar e construir; praia de paz, na qual repousam em dinâmica feliz os nautas aflitos e cansados do trânsito difícil no mar das lutas carnais; santuário de refazimento através da prece edificante; escola de almas, que apren­dem no estudo das suas informações preciosas e das suas lições insuperáveis a técnica de viver para fruirem a bên­ção de morrer nobremente; hospital de refazimento para os trânsfugas do dever, que nele encontram o bálsamo para a chaga física, mental ou moral; todavia, recebem a diretriz para amar e perdoar, a fim de serem perdoa­dos e amados pelos que feriram e infelicitaram; “colo de mãe” generosa é o amparo da orfandade, preparando-a para o porvir luminoso, já que ninguém é órfão do amor do Nosso Pai; abrigo da velhice, portal que logo abrirá de par-em-par a aduana da Imortalidade; oficina de re­educação onde a miséria desta ou daquela natureza en­contra a experiência do trabalho modelador de caracte­res a serviço das fortunas do amor; traço de união entre a criatura e o Criador, religando-os e reaproximando-os, até que a plenitude da paz possa cantar em cada cria­tura, à semelhança do que o Apóstolo das Gentes afir­mava: «Já não sou eu o que vivo, mas é o Cristo que vive em mim...) (Gálatas, capítulo 2, versículo 20.)

As altas responsabilidades consequentes do conheci­mento do Espiritismo forjam homens verazes, cristãos legítimos. Neles não há campo para a coexistência pací­fica do erro com a retidão, da mentira com a verdade, da dissimulação com a honestidade, da lealdade com a hipo­crisia, da maledicência com a piedade fraternal, da ira com o amor... Compreendendo que ser espírita é traçar na própria conduta o comportamento do Cristo, a exem­plo de todos aqueles que O seguiram, e consoante precei­tua o eminente apóstolo Allan Kardec, o aprendiz da li­ção espírita é alguém em combate permanente pela pró­pria transformação moral, elevação espiritual e renovação mental, com vistas à perfeição que a todos nos acena e espera.

Sem dúvida, sentíamos a fragilidade das nossas fracas forças e buscávamos na prece o refúgio, e na meditação o refazimento, haurindo energias e vitalidade para atravessar bem os dias do trabalho superior no qual nos encontrávamos, e cujo êxito, em grande parte, dependia da contribuição que pudéssemos oferecer. Com muita propriedade se assevera que a insegurança de uma muralha está na pedra que se encontre mal colocada; arrancada esta, mais fácil se faz conseguir-se deslocar outra, e assim sucessivamente.

Pairando sempre sobre todos nós o Espírito do Senhor, convinha-nos e nos convém não desfalecer na luta.

Com tais pensamentos irrigando-nos a mente, no encontro imediato à excelente entrevista mantida com o irmão Teofrastus, pela psicofonia cristalina do médium Morais, o Benfeitor Saturnino elucidou-nos de que as operações espirituais em andamento, com o consequente deslocamento do diretor do Anfiteatro, em breve se refletiriam entre os demais componentes dos diversos Grupos de Espíritos Infelizes ligados ao mal, de maneira negativa, e que, logo se refizessem do choque, arremeteriam violentos, tentando uma revanche injustificável, perniciosa e de resultados para eles sempre mais danosos. Con­vinha que nos mantivéssemos nos padrões do Cristo para, resguardados, por nossa vez resguardarmos os resultados superiores da empresa da luz.

Devidamente esclarecidos e também fortificados, con­tinuamos nas tarefas habituais, da propaganda espírita, quando, uma semana depois, começamos a experimentar, quase todos nós, os encarnados participantes do labor abençoado, singular melancolia e alguns traços de irri­tabilidade no comportamento...

Não ignorávamos que algumas das técnicas de que se utilizam os perseguidores de encarnados atormentados que buscam o concurso do Espiritismo são, em diversos casos: o aumento da agressão às suas vítimas a fim de lhes darem idéias falsas de que a frequência às sessões lhes acarretaram maior dose de sofrimento, inspirando-as a debandarem, após o que, então, cessam de inopino a constrição obsessiva, fazendo crer que a melhora decor­reu do abandono àqueles compromissos repentinos, para voltarem mais ferozes, mais cruéis, mais implacáveis quando tais pacientes, invigilantes quase sempre, lhes fa­vorecem o campo fisiológico e psíquico com recursos ade­quados à continuação dolorosa da perseguição insana. De outras vezes agem de maneira bem característica: logo que seus clientes começam a honesta participação no estudo. e na tarefa espiritista da própria libertação, seja porque a modificação no campo mental lhes impede o intercâmbio com a mesma facilidade, seja por tática de estratégia belicosa, afastam-se temporàriamente os per­seguidores, permanecendo, porém, em contínua vigília; os incautos, logo experimentam a falsa liberação, reconhe­cem a desnecessidade do conhecimento clarificador e se dizem comprometidos com programas sociais e de outra ordem, transferindo para o futuro os deveres espirituais, e partem, lépidos, a gozar... Afirmam-se reconhecidos ou consideram a coincidência da cura, exatamente quando passaram a examinar o problema sob a luz do Espiritis­mo, mas lamentam as circunstâncias que os obrigam a um temporário afastamento... Quando a questão já lhes parece vencida, sem que as dívidas tenham sido neces­sariamente resgatadas, desde que nada fizeram por cor­responder à confiança da Vida, eis que os verdugos per­severantes, que os seguem, retornam vigorosos e mais constringentes se fazem, com altas doses de fereza, sem que os obsidiados contem com quaisquer recursos a seu favor, considerando que nada providenciaram para a hora da aflição e do desconforto...

Não desconhecíamos que em todo processo de de­sobsessão, se a vigilância, a oração e o jejum moral são condições essenciais, o otimismo e o bom-humor não podem ser relegados para trás. Tristeza é nuvem nos olhos da saúde e irritabilidade é tóxico nos tecidos da paz...

Contudo, experimentávamos certas sombras psíqui­cas investindo insistentes, constantes.

Convocados a uma reunião extraordinária, a pala­vra de Saturnino, sempre pronta e luminosa, veio em nosso socorro. Como tudo são lições e a aprendizagem tem maior valor quando o aluno é co-participante do ensinamento, nele atuando, o venerável Benfeitor nos admoestou bondosamente, conclamando-nos à «resistên­cia contra o mal», do ensinamento evangélico, e corro­borando a advertência anterior, de que as investidas da Organização logo se fariam sentir, conforme era de es­perar. Levantássemos o espírito e marchássemos irmanados de maneira a nos sustentarmos uns nos outros, repetindo, ainda, cristianíssimo: «Onde quer que se en­contrem duas ou três pessoas reunidas em meu Nome, eu com elas estarei», da inesquecível lição de São Ma­teus, no Capítulo 18, versículo 20. A oração em conjunto, a reunião de pensamentos, consegue a bênção da frater­nidade e esta a do socorro recíproco. É muito fácil arrebentar-se uma vara isolada, mas não se pode fazer o mesmo a um feixe...

A família Soares, completou o amoroso Desencar­nado, estava sendo convidada a novas aflições neces­sárias à própria evolução e a melhor entendimento das responsabilidades imortalistas. Sendo a dor a melhor forma de o homem entender as realidades da vida por enquanto, era bem certo que o sofrimento faria o seu mister.

Terminada a reunião, quando já nos recolhêramos ao lar, Petitinga chamou-nos ao telefone, convidando-nos a demandar o lar dos Soares, onde infeliz acontecimento transcorrera, e Dona Rosa, muito aflita, lhe solicitara urgente visita.

Quando chegamos à residência do Sr. Mateus Soa­res, encontramos os familiares tomados de superlativa amargura. Dona Rosa e a filha Amália haviam retor­nado do Hospital do Pronto Socorro, onde se encon­trava internado o chefe do lar, que fora submetido a delicada cirurgia de emergência.

Dona Rosa, compreensivelmente aflita, esclareceu que recebera informação, de pessoa amiga, de que o Sr. Mateus fora levado à pressa para aquele nosocômio, nas primeiras horas da noite, como vítima de uma cena de sangue. Não possuía detalhes que esclarecessem a situação. O agressor, que fazia parte do grupo de ami­gos do descuidado genitor de Mariana, era frequenta­dor habitual do local em que o esposo se demora noites a dentro, na desenfreada jogatina. O delegado de Po­lícia dali saíra havia poucos minutos e se fizera su­cinto nos esclarecimentos. Dissera haver prendido o an­tagonista, que se apresentava alcoolizado, e que ficaria retido até à abertura do necessário inquérito, enquanto o estado do Sr. Mateus, inspirando cuidados no Hos­pital, se definia.

Interrogado quanto às causas da agressão, o poli­cial dissera que essas surgiram numa discussão de pe­quena monta, travada pelos dois, O Sr. Mateus acusara o adversário de estar jogando com cartas marcadas e utilizando de processos desonestos, o que dera início à acalorada discussão, que redundou no intempestivo e la­mentável golpe de punhal, que o acusado aplicara cer­teiro, como se conduzido por mão poderosa que lhe acio­nasse as forças, considerando ser, também, um homem de quase 60 anos de idade. Isso dera razões ao delegado para fechar a casa que funcionava com “jogos de azar” proibidos pela Polícia. A sua visita ao lar dos Soares tinha o objetivo de colher dados que o pudes­sem ajudar com alguns antecedentes que aclarassem di­versos ângulos da questão, tais como se era do conhe­cimento familiar alguma rixa antiga, de altercações an­teriores...

Surpreendida dolorosamente pela quase tragédia que ainda poderia colimar com a desencarnação do Sr. Ma­teus, a nobre senhora se encontrava vencida por an­gustiante expectativa. Só no dia seguinte poderia vi­sitar o esposo, agora em pós-operatório. Fora acalmada no Pronto Socorro, por gentil estudante de Medicina, interno, que acompanhara a cirurgia e lhe explicara das boas perspectivas do operado, que, embora de organi­zação fisiológica já cansada, estava até o momento rea­gindo muito bem.

Recorria a Petitinga, rogando-lhe a inspiração e o auxílio, pois que, com a notícia que lhe chegara ao lar abruptamente, Mariana fora acometida de um choque nervoso cruel e, desde então, estava inquieta, olhar des­vairado, com sintomas que lhe pareciam alarmantes. Todos se encontravam assustados com o acontecimento da agressão ao genitor e preocupados com o estado da jovem.

Conduzidos à peça em que se encontrava Mariana, bondosamente atendida por Amália, não tivemos dúvi­das em verificar a presença de agressores espirituais interessados em criar pânico e perturbação na família aturdida.

O ambiente psíquico traduzia a intoxicação violenta por fluídos de baixo teor vibratório, o que nos dava a impressão de um local asfixiante, abrasador e constrin­gente.

Muito sereno, Petitinga aproximou-se do leito em que a jovem se encontrava semidesfalecida, muito pá­lida, e, depois de alguns breves minutos de recolhimento profundo, tocou as têmporas da moça, chamando-a, pa­ternal:

— Mariana, filha, desperte... Procure reagir a esse estado, que lhe pode ser de consequências maléficas...

Não pôde continuar. A jovem, como se fora acio­nada por invisível catapulta, ergueu-se de um salto e, transfigurada pela irrupção do fenômeno mediúnico, fi­cou de pé, em atitude desafiadora, desgrenhada, e avan­çou, ameaçadora, na direção do venerando servidor do Cristo, com os punhos cerrados. Por um momento, ti­vemos a antevisão de um desforço físico, inimaginável. Muito junto ao apóstolo espírita estacou e, atirando a cabeça para trás, estrugiu ruidosa e chocante garga­lhada, em que revelava fúria e zombaria armazenadas, furiosamente libertadas.

Petitinga integérrimo, tranquilo, sem arredar-se do lugar, falou, bondoso:

— Louvado seja Nosso Senhor Jesus-Cristo! Seja bem-vindo, meu irmão. Este, como qualquer momento, é sempre precioso instante de buscar a paz. Eis-nos que aqui estamos para tal, para ajudá-lo no que nos esteja ao alcance...

— Ajudar-me? — revidou, colérico. — Não me pa­rece que seja eu aquele que neste recinto necessita da ajuda, nestas circunstâncias. Os senhores, no entanto, creio, precisam de urgente socorro, isto sim!

— Engana-se, meu amigo. Estamos socorridos pela Divina Providência, socorro esse que constatamos gra­ças à sua presença entre nós, presença esclarecedora, convincente, que nos traz o elo para entender os acon­tecimentos transcorridos nestas últimas horas, envol­vendo a família que nos agasalha no seu Lar.

— Sim, sem dúvida — assentiu, furioso. — Aqui estamos obedecendo a ordens. Trata-se de um desforço justo e esperado, não? Certamente que os senhores de­veriam estar aguardando a resposta dos nossos Chefes à intromissão nefanda que realizaram em nossos pro­gramas. Ou acreditam que tudo continuaria a correr em águas de rios tranquilos? Não é da lei, que toda ação produz uma reação equivalente? Portanto, não há por­que esperar outra coisa...

— Estamos perfeitamente esclarecidos — apostro­fou Petitinga. — Ocorre, todavia, que a direção do ata­que errou o alvo. Não somos nada, nós, as criaturas humanas. Espíritos em débito, caminhamos cansada­mente pelos impositivos do ressarcimento difícil. Com­panheiros da dor, todos nós, somos herdeiros do Amor de Nosso Pai. Obedecendo às instruções que dimanam da Vida Abundante e que nos foram lecionadas por Je­sus-Cristo, Ele deveria ser-lhes a meta e não nós ou­tros, caminheiros sofridos como você próprio, marchan­do na busca dEle.

— Nada queremos com Ele — revidou, com estri­dente desafio, em que expressões vulgares traduziam o estado primitivo de realizações morais do contendor. — Nosso compromisso é com vocês e saberemos como re­vidar à altura a ousadia de que se revestem.

Insistimos, no entanto — voltou a expor o dou­trinador valoroso —, em explicar, que nos encontramos sob o comando do Cristo e que, na impossibilidade de você se dirigir a Ele, mas chegando-se até nós, indire­tamente avança na Sua direção. Conquanto as nossas li­mitações, problemas múltiplos e ausência de mérito, não estamos à margem dos auxílios da Espiritualidade Su­perior. Neste momento mesmo em que lhe falamos, já nos sentimos amparados suficientemente para interrom­per a entrevista de violência, porqüanto nobre Mensa­geiro do Senhor prontificou-se a assisti-lo e tranqüili­zá-lo, encaminhando-o como do nosso desejo, a Jesus...

— Que petulância! — arremeteu, desassisado. —Assistir-me e tranquilizar-me. Melhor do que me encon­tro é impossível... Quanto aos senhores, sim, fazem-se necessários muitos auxílios para saírem da «enrascada» em que se envolveram. Tenham em mente que, repre­sentando a luz como pretendem, estamos dispostos àverificação...

— Mas a luz dimana do Alto — conviu, Petitinga porque tudo nos vem do Alto.

— É o que veremos desde já — explodiu, arro­gante. — Na impossibilidade de no momento atingir­mos esse Alto... ficaremos cá em baixo, e iremos der­rubar os postes que sustentam as falsas lâmpadas, ar­rebentando-as, destruindo os vasos luminosos e fazendo que a escuridão retorne aos sítios em que ela imperava, gloriosa...

Falava com sarcasmo cruel, e sem dissimular a ira chasquinava cinicamente.

Imperturbável, Petitinga, redargüiu:

— Lamento a sua situação: preferência da treva àluz, do erro à verdade, do engano à lucidez... Cada um, porém, tem o direito de viver e respirar o clima, con­templando a paisagem que melhor lhe apraz... Contudo, advertimo-lo quanto à presença do generoso Benfeitor paternal que lhe poderá ajudar com segurança. Confie nele e deixe-se conduzir tranqüilamente. Jesus fará o resto.

— Não esqueçam, senhores — ameaçou —, isto são apenas os começos. A nossa vingança não terá limite. Estejam preparados para o revide pelas portas largas da agressão.

Gargalhando, infeliz, desligou-se da médium que, inexperiente nos processos sutis da psicofonia atormen­tada como aquela, por pouco não caiu, não fosse a vi­gilância de José Petitinga, sempre atento e calmo. Con­duzida ao leito e assistida por passes calmantes, Mariana recobrou a razão e, sem compreender exatamente o que acontecera, com as idéias turbilhonadas, prorrom­peu em choro lenificador.

Dona Rosa, crucificada por amarguras contínuas, envolveu a filha num abraço de ternura e acalmou-a com a emoção de que são possuidoras as mulheres cujas vidas as transformam em sacrários através da mater­nidade enobrecida. A jovem asserenou e dormiu nos braços envolventes da mãe devotada.

Perguntei a Petitinga se não seria necessária a apli­cação de passes. Fitando a moça adormecida no seio materno, o bondoso e preclaro amigo, informou:

— Miranda, a maior transfusão de forças que se conhece é aquela que se faz através do amor. E a mais exuberante fonte de amor que vige na Terra se encon­tra no coração fervoroso de uma mãe afetuosa e cumpri­dora dos seus deveres. A menina Mariana dormirá tranqüilamente, mesmo porque a presença dos Mentores, que nos assistiram nesta casa, afastou já os comensais da perturbação e fomentadores da desordem. Estejamos confiantes.

Dona Rosa e Amália, sempre gentis, agradeceram comovidas e saímos. Petitinga prometeu retornar no dia imediato.

A noite estava muito calma e escasseava o movi­mento nas ruas. Raros veículos passavam ruidosamente e o céu se encontrava bordado de diamantes estelares. Como sopravam ventos brandos que nos chegavam do mar a regular distância, resolvemos caminhar até o lo­cal da condução que nos separaria.

— Confesso — iniciei a conversação — que receei você fosse atingido por um golpe do nosso infeliz irmão. A ameaça acompanhada do gesto ousado e fratricida assustou-me...

Sorriso espontâneo aflorou no amigo dileto. Após reflexionar um pouco, esclareceu-me:

— Miranda, a serviço de Jesus nada devemos te­mer! É claro que nós não devemos expor à temeridade, criando situações embaraçosas e perfeitamente desne­cessárias. Não ignoramos que nossos Irmãos Maiores nos esclareceram e advertiram quanto às agressões de que seríamos vítimas. Ora, convém considerar que tais arremetidas já estão em curso. Experimentamos, nós próprios, os sinais constrangedores de influenciações ne­gativas, nos últimos dias, até que. a palavra sábia do nosso Instrutor nos alertasse para a questão. É natural, portanto, que esse estado de coisas fosse tomar corpo onde as possibilidades de êxito poderiam suceder me­lhor. Não que nos consideremos em condições superio­res ao nosso próximo. Ocorre, no entanto, que na fa­mília Soares os membros que não privam dos ideais ele­vados da vida são muitos, a iniciar pelo genitor da casa, que, vinculado a cerebrações infelizes desde há muito, prefere a situação insana em que se demora à comunhão libertadora que lhe tem sido acenada inúmeras vezes. Não crê você que o problema de Mariana deveria cha­mar-lhe a atenção? O drama de Marta, a outra filha, inquieta, em conúbios de infelicidade mereciam exame? No entanto, o nosso Mateus, conturbado em si mesmo, é espírito portador de enfermidade íntima de longo curso, que caminhará demoradamente até encontrar o horizonte claro da renovação...

Silenciou por alguns momentos, e prosseguiu:

— O campo, portanto, na família, é excelente para agressões de baixo teor espiritual e vibratório. Vivendo o clima da jogatina, o nosso irmão foi vítima de Enti­dades infelizes que armaram a mão do seu opositor para lhe roubarem a vida. Assim, atingiriam a família em libertação da obsessão cruel de que padecem muitos dos seus membros, provocariam escândalo e esmagariam de dor a senhora Rosa, verdadeiro anjo de renúncia em clima de belicosidades... Depois nos atingiriam, tam­bém, emocionalmente, prejudicando grandemente os la­bores dos nossos Benfeitores Espirituais. Ante o cho­que provocado pela cena, a menina Mariana entrou em sintonia com o sicário que a espreitava, esperando, e incorporou-a, inconsequente...

Dando maior ênfase ao ensinamento, continuou:

— Como você não ignora, tudo está previsto. Me­rece considerar que o problema da desobsessão tem longo curso, O simples afastamento da entidade perseguidora não é fator de paz naquele que se lhe vinculava. Em processos obsessivos quais o de Mariana, há sempre uma mediunidade latente que oferece recursos de sintonia psíquica entre perseguidor e perseguido. Com o afasta­mento do primeiro, as possibilidades medianímicas do segundo se dilatam, sendo necessário educar, disciplinar, instruir o médium para que este adquira os recursos que o capacitem à defesa própria, aos cuidados contra as ciladas bem urdidas de outros Espíritos infelizes ou levianos, enfim, que preparem o seareiro em potencial para o labor na gleba imensa do Cristo, na qual escas­seiam, ainda agora, trabalhadores diligentes e devo­tados...

«Quanto à agressão de que parecia que eu seria a vítima, não vi razões para preocupar-me. Em tarefa do Cristo, conquanto as minhas imensas imperfeições, con­fio nEle...

«Além disso, quando estamos a serviço da verdade, geramos e emitimos vibrações que nos defendem de todo o mal.»

Chegáramos ao local de despedida. Apertamo-nos as mãos e separamo-nos.

No dia imediato, retornamos ao lar dos Soares, ànoite, e fomos informados de que o chefe da família estava com excelentes possibilidades de recuperação, em­bora Dona Rosa, acabrunhada, se referisse ao estado espiritual e moral do esposo como dos mais lastimá­veis.

Dissera-lhe, ele, que logo recuperasse a saúde sa­beria desforçar-se do agressor. Pouco se lhe dava com o que ocorresse consigo mesmo, mas lavaria em sangue o seu nome, a sua honra... Retornara, pois, do Noso­cômio, inquieta, aflita, confiando na Providência Divina que saberia encontrar solução justa para caso tão com­plexo. A veneranda senhora definhava, e seu rosto sul­cado pela dor inspirava-nos profunda piedade fraternal. Carinhosamente estimulada por Petitinga, de suas mãos recebeu a transfusão de abundante energia refazente, pelo recurso do passe.

Não padeciam dúvidas de que, vendo fracassados os seus planos de desdita, eliminando a vida física do se­nhor Mateus, os facínoras espirituais estavam a ator­mentá-lo, gerando as raízes perigosas do ódio, em cujas malhas, imprevidente e leviano, se emaranhava. Perturbado, seria presa mais fácil ainda para uma tragé­dia imprevisível, após a recuperação da saúde.

No domingo imediato, quando da reunião pública de exposição doutrinária na União Espírita Baiana, ve­rificamos mais uma vez as artimanhas de que se fazem objeto os Espíritos trevosos.

Petitinga assomara à tribuna doutrinária e prega­va. A sua palavra harmoniosa vibrava em tons de con­solo, reportando-se ao estudo de «O Evangelho segundo o Espiritismo», no Capítulo 10, Instruções dos Espíritos: PERDÃO DAS OFENSAS, a excelente mensagem de Simeão, ditada em Bordéus, em 1862.

O recinto estava saturado de emoções superiores e algumas pessoas tinham os olhos coroados de lágrimas. Num intervalo natural da expli­cação, conhecido senhor de respeitável família local, obsesso contumaz, adentrou-se pela sala pública da ses­são e, com o semblante fortemente congesto, avançou na direção da tribuna, ruidosamente, e bradou, referindo-se a Petitinga:

— Hipócrita! Quem és para pregar? Imperfeito como tu, como te atreves a falar da verdade e ensinar pureza, possuindo largas faixas de desequilíbrio íntimo, que ocultas dos que te escutam? Dize!

Todos fomos dominados por estranho constrangi­mento e um silêncio tumular se abateu sobre o audi­tório.

Petitinga, empalidecendo, levantou os olhos claros e transparentes, fitou o arrogante obsessor que tomara a boca do atormentado cavalheiro, e respondeu, humilde:

— Tens toda a razão e eu o reconheço. O tema em pauta, hoje, que o caro irmão não ouviu, se refere exa­tamente ao «Perdão das ofensas»...

— Não te evadas covardemente — descarregou o infeliz opositor. — Refiro-me às condições morais de que se devem revestir os que ensinam o que chamas a verdade, e que te faltam... Desafio-te a que abando­nes a tribuna religiosa ou abandones a vida que levas...

O assombro colocava-nos em estupor. Indubitavelmente, a entidade loquaz e enferma desejava criar con­dições de suspeição quanto à conduta ilibada, transpa­rente e nobre do Evangelizador, e o desafiava a um duelo verbal negativo e pernicioso. De fé inquebrantá­vel, no entanto, e sereno, o lecionador da Doutrina Es­pírita, sem trair na voz as emoções que o visitavam, esclareceu, com tocante sentimento da mais pura hu­mildade:

— Irmãos: o amigo espiritual tem toda a razão e não me posso furtar ao dever de necessários quão ina­diáveis esclarecimentos. Ensinou o Mestre que nos con­fessássemos uns aos outros, prática essa vigente entre os primeiros cristãos e que o tempo esmaeceu e deturpou dolosamente. Nunca me atrevi, nunca experimentei coragem para dizer aos companheiros sobre as minhas próprias dificuldades. Agora, utilizando-me do auxílio do irmão que me faculta ensejo, digo da luta intensa que travo nalma para servir melhor ao Senhor, ten­tando, cada dia, aprimorar-me intimamente, lapidando grossas arestas e duras angulações negativas da minha personalidade enferma. Depois de ter conhecido Jesus, minha alma luta denodadamente contra o passado som­brio, nem sempre logrando êxito na ferrenha batalha de superação dos velhos padrões de ociosidade e crime em que viveu, na imensa noite dos tempos. Abandonar, todavia, o arado, porque tenho as mãos impróprias, quan­do a erva má grassa e escasseiam obreiros, não o farei nunca!

«Elegi, desde há muito, a desencarnação no grabato da aflição superlativa e do abandono total; fiel, no en­tanto, à luta redentora que me facultava a Doutrina de Jesus, à partida para o Mundo da Consciência Livre, cercado de carinho e conforto, ternura e compreensão, longe, porém, do serviço libertador... Prefiro a condi­ção de enfermo ajudando doentes, a ser ocioso buscando a saúde para poder ajudar com eficiência, enquanto se desgastam corpos e almas ao relento da indiferença de muitos, que as minhas mãos calejadas podem socorrer. Miserabilidade socorrendo misérias maiores, à posição falsa daquele que recebeu o talento e o sepultou, con­forme nos fala a Parábola do Senhor. Embora imperfeito, deixo luzir minha alma quando contemplo a Gran­de Luz; vasilhame imundo, aromatizo-me ao leve rocio do perfume da fé; espírito infeliz, mas não infelicita­dor, banho-me na água lustral da esperança cristã... Perdoa-me, Senhor, na imperfeição em que me demoro e ajuda-me na redenção que persigo... »

O auditório, compungido e emocionado, atendido por vibrações superiores, chorava comovido, e lágrimas transparentes adornavam a face do servidor do Cristo, rutilando singularmente naquela manhã de sol.

Inesperadamente, o perturbador espiritual arrojou ao assoalho o seu instrumento, e, dominado por crua emotividade, bradou:

— Perdoa-me, tu! A tua humildade vence-me a braveza, velhinho bom! Deus, meu! Deus, meu! Blasfe­mo! O ódio gratuito cega-me. Perdoa-me, velhinho bom, e ajuda-me com a tua humildade a encontrar-me a mim mesmo. Infeliz que sou. Tudo mentira, mendacidade inditosa, a que me amarga os lábios. Ajuda-me, velhinho bom, na minha infelicidade...

Petitinga desceu os degraus da tribuna, aproximou-se do sofredor e, falando-lhe bondosamente, envolveu o médium com gesto de carinho, convidando-o a sentar-se.

— Perdoe-nos o Senhor de nossas vidas! — Falou em discreto pranto.

E levantando a voz, rogou:

— Oremos todos a Jesus, pelo nosso irmão sofredor, por todos nós, os sofredores.

Raras vezes na vida física presenciara cena mais comovedora. Era como se o Mundo Excelso baixasse àTerra e os homens pudéssemos transitar no rumo daquele mundo onde reside a felicidade...

Retornando à calma, o médium, ignorando o que se passara, teve um gesto de espanto por encontrar-se ali. Esclarecido em poucas palavras pelo pregador, este retornou à tribuna, e como se nada houvera ocorrido deu curso à preleção.

À hora regulamentar, os trabalhos foram encerra­dos, enquanto a cidade, lá fora, cheia de sons e músi­cas do dia e da faina dos homens, se deixava inundar da luz do sol.

12

Desobsessão e responsabilidade

As lutas prosseguiram contínuas e intensas. Am­parados, todavia, pela Misericórdia Divina, empenháva­mo-nos, igualmente, em corresponder à confiança da Es­piritualidade Superior. Certo é que o carvalho enrija fibras sob as agressões da tempestade... Também, nós outros, fortificávamo-nos na fé e no entusiasmo à medi­da que se multiplicavam os convites à árdua batalha da fidelidade ao dever espontâneamente assumido. Aqui era o irromper das paixões demoradamente subordinadas àvontade tentando desequilíbrio; ali eram as investidas da violência, através de pessoas irresponsáveis que se faziam dóceis instrumentos dos Espíritos infelizes: pa­rentes invigilantes e perturbados atiçando rebeldia; al­mas afeiçoadas pelos estreitos laços do matrimônio, in­conseqüentes, ensejando redobrada aflição, feridos pelas farpas do ciúme, da ira e da insensatez, transforman­do-se em algozes brutais...

Resistindo quanto nos fa­cultavam as forças, inspirados e socorridos como está­vamos, sentíamos, simultaneamente, a rara felicidade de nos encontrarmos nos campos da fé redentora. Evocá­vamos os mártires dos primeiros tempos do Cristianis­mo e exultávamos. Se agora a arena desaparecera dos sítios em que tinha sua construção, estendera limites, porém, partindo do mundo interior de cada um até às longes partes do pensamento... Ontem, o holocausto e o martírio público eram estímulo ao prosseguimento, e o sangue derramado se convertia em adubo nas raízes

da fé nascente. Agora, não. Os testemunhos deveriam ser silenciosos, na cruz da abnegação e da renúncia, fora dos grandes espetáculos...

Transcorriam os dias sem outras alterações, quan­do, no trabalho habitual de intercâmbio mediúnico, Sa­turnino elucidou que o irmão Glaucus viria à incorpo­ração pelo médium Morais, para instruções valiosas.

Saudando-nos em nome do Senhor, o nobre Instru­tor, de imediato, considerou:

— Conforme estão informados os caros amigos, o nosso irmão Teofrastus tem sido hóspede querido desta Casa. Desde as entrevistas que mantivemos, ora no An­fiteatro, ora no Lazareto em que se encontra Henriette­-Marie e aqui mesmo, recolheu-se o antigo mago de Ruão a meditações muito profundas e a arrependimento perfeitamente compreensível. Despertar para a verdade é, também, nascer para a responsabilidade. Conhecer o bem significa renunciar ao erro. O cego que se de­mora sem o contágio da visão por longos anos, ao des­pertar em manhã de formoso dia, sente a ardência da luz e experimenta o sofrimento que a claridade lhe pro­duz; refaz o caminho pela noite tormentosa e padece, embora embriagado de luminosidade. Identificar-se com a vida abundante pode parecer embate fácil; perseve­rar, no entanto, na comunhão com a Vida Maior repre­senta esforço sacrificial e continuado contra a aclima­tação em que se vivia. Nesse sentido, o Mestre sem­pre fora incisivo e conciso: «Não voltes a pecar para que te não aconteça algo pior» — enunciava Ele aos recém-curados.

Um intervalo natural na exposição do Amigo Es­piritual se fez espontâneo. E prosseguindo, clarificou:

— Marcado pela revolta que o consumia, lentamente, nesse largo período de tempo, desde a arbitrá­ria punição pela fogueira, de que foi vítima, nosso ami­go acalentou na mente a chama da vingança, buscando, implacável, aqueles que foram os responsáveis pelo seu sofrimento. Como, porém, o ódio enceguece e oblitera as fontes da razão, não conseguiu identificar exatamente aquele que tramou a infame tragédia, vindo a encon­trá-lo só agora, em situação ainda mais inditosa do que a sua. Conservou, no entanto, do Cristianismo, a concepção infeliz que lhe deram os seus atormentadores; dos que se locupletam à sombra da fé para usufruírem benefícios pessoais; dos que têm nos lábios mel e no coração ácido terrível; dos pastores que devoram as ove­lhas, e das ovelhas que são, em última análise, “lobos disfarçados de ovelhas”. A doçura do amor de Jesus foi-lhe apresentada entre labaredas que lhe lamberam as carnes e em fumo que o asfixiou até a morte... Ante a adulteração dos ensinos do Mestre, conforme lhe che­garam nos dias da ignorância medieva, conserva até hoje aversão pelo nome do Cristo e pela Doutrina que Ele nos legou. Invigilante, tornou-se calceta de si mes­mo e, atormentado pela ausência de lume no velador da paz, sem combustível de esperança, fez-se todo sus­peita, arrogância, inquietação, conquanto o cansaço do mal empreendido por largo espaço e o receio de que já lhe esgotavam as forças para prosseguir...

«Colhido nas malhas dos atos reprocháveis, acredi­ta-se novamente vítima das circunstâncias. Ignorando que os nossos atos nos elegem vítimas ou algozes de nós mesmos, e que, por mais cruel seja a nossa atua­ção, não fugimos ao nosso destino de felicidade, mais hoje ou mais tarde. Soou para ele o momento da re­denção necessária e difícil, que já começa, porém. Imen­so trajeto o espera, longo mergulho na carne sofredora o aguarda a benefício dele mesmo.

Depois de breves instantes de expressivo silêncio, prosseguiu:

— Enquanto se dispõe em definitivo à renovação espiritual — já que nos não cabe constrangê-lo sob qual­quer pretexto ou circunstância, a fim de ser recambiado para recinto próprio em nossa Esfera, onde se deverá preparar para as lutas da sublimação futura, observa as tarefas que aqui se desdobram, a atuação dos cris­tãos novos, a conduta real que se deriva da fé racio­cinada, o nível de amor inspirado no amor do Cristo... Acompanha as operações socorristas dirigidas aos sofredores de ambos os planos da vida, que aqui vêm tra­zidos, e, sobretudo, com a nossa assistência afetuosa, segue os lidadores da fé, servidores da semeação evan­gélica e os médiuns trabalhadores para sentir se os en­sinamentos nesta Casa ministrados são aplicados na con­duta diária pelos que os administram... Verifica a for­ma pela qual se comportam os espíritas sob a constri­ção do testemunho e da prova, da perturbação e da dor, confirmando pelos atos a sua identificação com o Cristo. Temos-lhe ensejado o conhecimento do ministério da fraternidade desenvolvido pelo nosso Templo, de modo a facultar-lhe o conhecimento do vero Cristianismo, em face das idéias que cultivou e nutriu em torno da Religião de que foi vítima no passado. Embora conhe­cedor dos objetivos do Espiritismo, habituado como se encontrava às restrições que mantinha quanto à digni­dade humana, conhecedor das fraquezas do caráter das criaturas, deixou-se arrastar pelos próprios conceitos, enveredando nos meandros das suspeitas e das descon­siderações às mais nobres florações da fé sob qualquer designação. Apesar disso, a débil chama da fé natural, da necessidade de uma sua religação com a Verdade, realizava o seu mister, deixando-o, não poucas vezes, re­ceoso quanto ao futuro, ansioso sobre o porvir... Vi­vendo a esfera imortal, de cujas realidades não podia duvidar nem fugir, acompanhando processos diários de reencarnação e desencarnação, temia ser colhido pelas teias da Lei Superior, desarmado para a consciência de si mesmo, emaranhado quanto se encontrava na trama do desgoverno íntimo pelo ódio.

Novamente o Amigo Espiritual, desejoso de resumir um destino numa narração breve, deixando traduzir àcomiseração de que se via possuido, ante o inditoso es­pírito, aduziu:

— Teofrastus, nosso irmão, necessitado de nosso auxílio , auxílio que nos vem do Alto é, também, lição viva para todos. Nenhum de nós está isento de ser vítima de circunstâncias que tais, derrapando nos abismos do desespero e da alucinação, através de cuja queda poderemos retardar em demasia o nosso progresso, a nossa dita. Muito justo que vejamos nele o nosso passado ou o que poderia ser o nosso presente, caso não tivés­semos, aquinhoados como fomos, sabido receber e acei­tar o convite de Jesus, nosso Amigo e Mestre. Desse modo, a nossa, particularmente a vossa responsabilidade é muito grande, em face da conduta que devemos viver, de forma a que a nossa mensagem lhe fale ao espírito atormentado com a excelente linguagem do amor do Cristo aplicado aos nossos atos. Testemunha da nossa vivên­cia evangélica, incorporará as lições ouvidas e vistas ao patrimônio íntimo, consoante lhas ofereçamos, adquirin­do forças ou não para doar-se Àquele que nos levanta e ampara, podendo, pelo amor, levantá-lo e ampará-lo, também. Não é inútil que o Apóstolo dos Gentios nos adverte, através da epístola aos Hebreus, no capítulo 12, versículos 1 e 2: «Portanto, também nós, visto que te­mos ao redor de nós tão grande número de testemunhas, pondo de lado todo o impedimento, e o pecado que se nos apega, corramos com perseverança a carreira que nos está proposta, fitando os olhos em Jesus, autor e consumador da fé, o qual pelo gozo que lhe foi pro­posto suportou a cruz, desprezando a ignominia...». Indubitavelmente «temos testemunhas ao redor de nós» e são muitas, em número superior ao que se pensa, estas, que são os homens, e aquelas que, do Mundo Espiritual, acompanham o que pensamos, dizemos e fazemos...

E reflexionando, com maior ênfase acrescentou:

— Em todo problema de desobsessão há que con­siderar o espírito sofredor que provoca sofrimento e le­var em conta os recursos éticos do doutrinador, ao lado da sua conduta espírita, isto é, sua responsabilidade mo­ral. Conduta e responsabilidade, essas que são essenciais na tarefa de doutrinar, porqüanto a instrução que não se faz acompanhar do exemplo não possui a tô­nica da verdade. Sem dúvida, o mérito do próprio obsi­diado, as possibilidades que se lhe podem oferecer com o retorno da saúde, no sentido de libertar-se da obses­são, constituem também pontos favoráveis para desatar o enfermo das amarras com o delito passado, de cuja cobrança o desencarnado se faz infeliz intermediário. To­davia, nas atuais realizações dos Templos Espíritas que se transformam em Hospitais-Escolas na Terra para en­carnados e desencarnados, a densa população dos ali re­sidentes, do lado de cá, acompanha a lealdade do ensino quando incorporado ou não ao «modus vivendi» ou «mo­dus-operandi» dos médiuns, dos doutrinadores, dos dire­tores das Casas. Palavras belas e sonantes, conceitos elevados são de fácil aquisição em muitos lugares. A excelência, porém, de uma idéia, de uma convicção, da Religião se constata pelo número daqueles que foram modificados, que se transformaram e que se deram à sua realidade.

«Em todo processo de desobsessão não podemos des­considerar o concurso do tempo, que nos exige alta do­sagem de paciência e perseverança. Aqueles que se pro­põem a ajudar, compreendem a necessidade de criar condições para o desiderato. Assim, portanto, assumem consciente ou inconscientemente significativa responsa­bilidade espiritual com aqueles que se perturbam re­ciprocamente nos compromissos infelizes a que se ju­gulam. Logo surjam os primeiros resultados favoráveis da saúde, não podem nem devem os lidadores do socor­ro deixar à mercê da insegurança e da distonia psíquica em reequilíbrio os que antes estavam esmagados pelas forças dissolventes da perturbação. Despertando para a compreensão dos deveres novos e amplos, impõe-se-nos ajudá-los com carinho de pais ou mestres, ministrando-lhes demoradas lições de fé e instrução contínua, para a manutenção dos requisitos básicos da saúde interior, a fim de que lhes não ocorra uma reincidência mais danosa e mais grave, portanto, do que a anterior. Al­gumas das entidades afastadas dos seus comensais nem sempre se esclarecem de imediato, ou se conformam com a situação nova. Continuam acompanhando suas anti­gas vítimas e aguardando oportunidade... Por outro lado, diversos desencarnados responsáveis por obsessões soezes prosseguem requerendo carinhosa assistência, até que se lhes firmem os propósitos superiores e sintoni­zem com o auxílio dos seus Mentores. Qualquer tarefa de desobsessão, portanto, representa nobre e elevada responsabilidade para todos os que nela se envolvem, requerendo conhecimento doutrinário seguro e vivência cristalina evangélica. »

Compreendíamos, e confirmávamos que, sem dúvi­da, o Espiritismo é lição imortalista e que as nossas responsabilidades são, verdadeiramente, muito grandes. Longe, porém, nos encontrávamos de perceber as implicações transcendentais do ensino espírita no dia-a-dia da nossa jornada à frente dos irmãos desencarnados. Acompanhávamos, pois, as elucidações do Mentor, com vivo interesse e, porque não dizer, com algum assom­bro. Muito lógicos, os conceitos penetravam-nos fundo na alma.

Depois de breve intervalo, o irmão Glaucus con­tinuou:

— Participando das reuniões caridosas de intercâm­bio com os sofredores desencarnados, o nosso amigo aprende a aquilatar o valor do amor, nas operações de toda ordem. Percebe a «não-violência» poderosa do amor, o resultado dos fluídos magnéticos manipulados pelos sentimentos dos que os orientam e, acima de tudo, a magia sublime da presença do Cristo Inconsumpto, pelos laços do intercâmbio através da oração. Tem cons­tatado nos serviços entre as duas Esferas da Vida o resultado da excelência da fraternidade e a eficiência dos métodos da caridade cristã. De apurado senso de observação e profunda acuidade mental, compreende que nos utilizamos das mesmas técnicas, algumas das quais lhe são familiares, usando as mesmas expressões de energia, aplicadas, porém, com finalidades amplas e diferentes das suas, abastecendo-nos nas Fontes Inexau­ríveis do Amor Divino. Diante dessas descobertas no­vas realizadas pelo seu espírito, ávido agora de paz ín­tima, modifica-se-lhe o panorama mental e altera-se-lhe a visão da realidade. Já experimenta a sede da liber­tação, embora reconheça a necessidade do tributo pe­sado do ressarcimento que os seus atos ora lhe impõem, com a urgência de que carece para sair do labirinto das paixões em que tem estado, em cujos sítios aspi­rava os miasmas do ódio, da alucinação, do desespero inominável.

«A consciência da verdade oferece ao ser consciên­cia lúcida, O erro já lhe não empana o raciocínio e o Espírito não mais se conforma com engodos nem aceita ilusões. Impõe-se a si mesmo o imposto do resgate como impositivo do próprio êxito. Sente que não merece felicidade desonesta e estatuída à base da astúciá, o que representaria impedimento à paz. »

Refletindo mais demoradamente, exteriorizando pela face do médium a nobreza de linhas da sua face e a harmonia do seu espírito em sublimação, o Sábio Ins­trutor concluiu:

— Quando abrimos pequeno orifício num obstáculo que nos impede a visão, desdobra-se exuberante, além do impedimento, o campo largo dos acontecimentos. Pe­netrando-o com observação cuidadosa, descortinamos um quase horizonte sem fim, mais além... Assim são os nossos atos: produzem orifícios nas paredes das dificul­dades. Uma ação negativa, dirigida contra alguém, tal­vez não lhe produza danos imediatamente; aquele, no en­tanto, que foi nossa vítima, pode tomar o petardo e atirá-lo mais adiante, ferindo, desequilibrado, quantos se lhe encontrem ao alcance. Era já um enfermo, sim, esperando alguém que lhe desse o impulso para a prá­tica de desmandos inesperados. Ai, de nós, porém! É se­melhante à lição do escândalo: «Ai de quem o pratique»; conquanto necessário, não nos devemos tornar instrumento dele, conforme asseverou Jesus. Também assim atuam o gesto nobre, o pensamento elevado, a palavra edificante. Socorrendo este alguém que está à mercê da ignorância, ou sob a constrição do desespero, ou às por­tas da loucura, quanto produza ele de futuro em paz e alegria, cheio de esperança e ânimo, deve-o ao Senhor da Vida, certamente, e, também, àquele alguém que lhe ofertou o socorro recebido. Estará viajando o impulso da nossa doação através deste ou daquele. Uma agressão de qualquer natureza faz-se antecipar da vibração selvagem do ódio, da ira, da perversão que envolve o que lhe cai nas malhas, predispondo-o à reação compa­tível ao atentado que venha a experimentar. O plano do socorro e da caridade também exterioriza energia en­volvente que permeia o ser a quem objetiva, e quando o ato o alcança eis que ele já está investido da reserva favorável ao registro e aceitação da oferta de amor.

Mudando de acento, o Amigo Espiritual reportou-se à família Soares, elucidando que os processos de desob­sessão aos diversos membros do clã nos exigiriam ainda por algum tempo larga faixa de labor, de forma a doar­mos um auxílio mais eficiente.

— Ante a aflição de alguém — fez-se explícito —, costumamos interrogar à cata de esclarecimentos. Pa­recem-nos injustos os sofrimentos de pessoas que se eno­brecem pelo trabalho e que alçam vôo às regiões do amor; apresentam-se-nos como indébitos ou severamente fortes os tributos de dor a que muitos são convocados, quando estão em renovação, na esfera de trabalhos edi­ficantes; Espíritos em santificação surgem-nos carrega­dos de contínuas provas e elas nos parecem demasia­das... Todos esses Espíritos, porém, rogaram a opor­tunidade do resgate no passado, quando se acreditavam capazes. Nem sempre, todavia, quando o solicitaram possuíam as necessárias resistências para produzi-los. Vindo as aflições somente agora, quando amam e ser­vem, produzem e ajudam, dispõem do largo patrimônio do amor e da resignação, do conhecimento e da espe­rança para diminuir-lhes o peso do fardo... A prova chega quando o aluno realizou o curso, ôbviamente, como consequência natural para a verificação da aprendizagem na seleção dos mais aptos e valorosos. Noutros casos, porém, a enfermidade e a dor são medidas preventivas impeditivas de danos maiores na economia do progresso. O próprio amor, após examinar os recursos e possibi­lidades de determinados pacientes da alma, aprofundan­do neles a observação demorada e comprovando-lhes o pouco aproveitamento das lições da reencarnação com os agravantes dos planos maléficos que acalentam, impos­sibilita-os de caírem em danos mais graves, comprome­timentos mais ásperos para eles mesmos, resolvendo que, por enquanto, para a melhora das suas aquisições, só a doença, o agravamento do seu estado, ensejando, desse modo, enquanto presos ao leito, tempo de meditar e transformar idéias, de buscar o pensamento divino e re­novar-se... Diante, pois, dos sofredores deste ou daquele jaez, não nos apressemos em revelações aventureiras quanto às suas causas, para não corrermos o perigo de errar. Em toda e qualquer situação valorizemos a bên­ção do resgate, a lição viva para aprendizagem valio­sa, e submetamo-nos, tranquilos, aos impositivos da Lei. Pacientes há, rebeldes de tal monta, que o melhor me­dicamento para a saúde deles é a continuação do sofrimento em que se encontram...

«Cientificados e esclarecidos, seguros de que tudo obedece a Planificação Superior, sejamos o irmão da ca­ridade, do amor, da compaixão, e envolvamos os sofredores que nos buscam nos tecidos da nossa prece e dos nossos sentimentos bons, ajudando e passando. A Lei a todos nos alcançará... Predisponhamo-nos pelo bem para o momento do nosso exame, na abençoada escola do progresso. »

Despedindo-se, o Amorável Benfeitor deixou-nos em esfera de paz e raciocínios preciosos, que nos capacita­riam a entender com segurança e em profundidade os acontecimentos futuros, bem como a logicar com valor em torno de ocorrências passadas, tranquilizando-nos com as revelações sobre a Divina Justiça e o Sublime Amor.

13

Solução inesperada

Após quinze dias de internamento no Hospital do Pronto Socorro, o Sr. Mateus foi trasladado para o lar com expressivos sinais de breve recuperação orgânica.

Visitando-o na primeira oportunidade com Petitin­ga, ouvimos a narrativa dos antecedentes do grave de­lito de que se fizera vítima, impressionando-nos obser­var a carga de ódio acumulada na mente que destilava, prestes a explodir com revolta e desassossego.

O Sr. Mateus era um homem de quase sessenta anos, sanguíneo, voluntarioso. Perturbado em si mesmo, atravessava a existência carnal saltando de leviandade em leviandade, muitas vezes esquecido dos deveres de esposo e pai, fascinado pelo pano verde, em que se aventurava, atirando fora os parcos recursos que, se apli­cados no lar, seriam de alta valia para o bem da família constituída de seis filhas. Em compensação, Dona Rosa se desdobrava nos deveres domésticos e na costu­ra, até altas horas da noite, para suprir, com o esforço de algumas das filhas, as necessidades domésticas.

Irreligioso por temperamento rebelde, sempre des­curara dos deveres espirituais para consigo mesmo. Em tempos idos fora excelente artista, recebendo agora uma parca pensão do Montepio a que se vinculara antes, por ter sido considerado inapto a prosseguir na profissão.

À medida que a decrepitude das forças se avizinhava e temeroso da desencarnação, fazia-se mais azedo, quase insuportável...

Por ocasião do retorno de Mariana ao lar e impres­sionado com as informações e esclarecimentos de Peti­tinga sobre a obsessão e os cuidados que todos nos de­vemos impor para evitar-lhe as tramas infelizes, pare­ceu modificar o comportamento, por alguns dias... De­pois, como se ficasse alucinado, entregou-se a desman­dos, e não poucas vezes, açulado pelos desencarnados afins, ameaçava expulsar do lar, quando necessitava de dinheiro para as aventuras, a esposa abnegada e as fi­lhas. O ambiente doméstico, com a sua presença, se fa­zia pestilencial pelas emanações fluídicas abundantes, que ali campeavam desordenadas.

Petitinga, ameno e cortês, após escutar as promes­sas de desforço do infortunado agredido, relatou-lhe a experiência de Jesus-Cristo e as Suas lições, sem lograr, de imediato, qualquer resultado. De mente viciada por longos anos de desequilíbrios contínuos, o esposo de Dona Rosa sintonizava na faixa do despautério moral e se per­mitia o conúbio com os seus antigos comparsas, apre­sentando-se irredutível nos pontos de vista, na conduta, nas atitudes.

Dizia aceitar o concurso do Espiritismo, conquanto fosse apenas para libertá-lo mais facilmente do leito, de modo a facultar-lhe de pronto o retorno aos sítios da sua humilhação, retomando a pureza da sua honra...

Solícito, utilizando-se do ensejo, o zeloso amigo con­vidou-nos a orar e, em sentida peroração, exorou os re­cursos divinos para aquela família, mas principalmente para o genitor enfermo, rogando a interferência do Mé­dico Divino que nunca falta, de modo a que o lar dos Soares não fosse arrastado a drama mais grave e a consequências imprevisíveis. As palavras ungidas de emoção vibravam doces no quarto singelo qual música delicada, envolvendo-nos em consoladora esperança. A sintonia natural, espontânea, com as Altas Esferas se fez imediata, e Saturnino, o abnegado Mentor, toman­do o comando mental da Verdade, proferiu expressiva quão valiosa dissertação sobre os deveres do perdão, como normativa de comportamento para a própria fe­licidade.

— “Felizes são os que perdoam — enunciou, cons­ciente —, porqüanto conferem paz a si mesmos e por sua vez liberam da dívida os que os ofenderam, entre­gando-os, desse modo, às Soberanas Leis encarregadas da evolução dos homens. Os que perdoam e ajudam con­seguem ainda maior galardão, porque amparam os maus e os vencem com a luz da misericórdia. No entanto, aqueles que conservam as mágoas intoxicam-se, enve­nenam-se, dando causa a graves enfermidades que se desatrelam rigorosas, transformando-se em suplícios de­morados, cujos responsáveis, no entanto, são os que cultivam os pensamentos inditosos e se comprazem na semeação da ira e do ódio, absorvendo as próprias ema­naçoes tóxicas da mente desalinhada. E os que revi­dam mal por mal, agressão por agressão, estes já se encontram descambando na direção do abismo, em po­sição quase irreversível..

«O amor é pólen que fecunda a vida, enquanto o ódio é gás que a interrompe...»

A advertência vazada em termos suaves fazia-se se­vera, não dando margem a controvérsias ou mal-enten­dimentos de natureza alguma.

Conclamou-nos, ainda, o Sábio Instrutor ao cultivo das boas idéias, à vivência da paz íntima, mediante a elaboração de pensamentos enobrecedores, estimulando-nos à correção mental, de cuja fonte — o pensamento — procedem os elos da escravidão ou as asas da liberdade que fixamos às nossas vidas.

Antes de afastar-se aplicou, generoso, demorado pas­se longitudinal no paciente, exortando-o:

— Mude a idéia do mal em você, meu amigo, antes que a raiva o vença; e esqueça a vingança antes que a vingança o esqueça em situação dolorosa e lamentá­vel... Jesus nos ensinou que: «quando estivéssemos orando e mantivéssemos alguma coisa contra alguém, perdoássemos» (*). Ore e perdoe para ter saúde e paz.

Dona Rosa, Mariana e Amália, de pé ao nosso lado, orando muito comovidas, deixavam-se arrastar pelas on­das da Espiritualidade momentânea no ambiente, banha­das por discreto pranto, qual ocorria com nós mesmos.

Terminado o intercâmbio inesperado e benéfico, Pe­titinga sem delongas encerrou o trabalho de socorro e, após as despedidas, saímos na direção dos nossos lares.

— Pressinto que — informou-me o amigo — o nosso Mateus experimentará, em benefício dele mesmo, ines­timável lição que o convidará a demorada reflexão so­bre o destino e a vida que lhe tem transcorrido sem maiores consequências. Todos esses que se dizem «indi­ferentes» com referência ao problema da fé, acobardam-se dolorosamente ante as realidades da desencarnação. Acomodados à irresponsabilidade como vivem, quando neles irrompem os clarões prenunciadores do novo dia, ou chegam as primeiras sombras da travessia pelo vale da morte, debatem-se aflitos, esbravejam, fazem promes­sas, negociam...

— Como suporta Dona Rosa — indaguei — tão pe­sada carga em ombros frágeis quais os seus?

— Pelo que estou informado — explicou prestimoso — pelos nossos Benfeitores Espirituais, ela foi-lhe mãe

(*) Marcos, capítulo 9, versículo 25. — Nota do Autor espiritual.

descuidada em vida próxima, no pretérito. Acompanhan­do-o da Espiritualidade, de queda em queda, acumpli­ciado com os pesados débitos da última existência, após a fuga para a Bélgica, que redundou em homicídio ne­fando, do qual deve ter sido vítima aquele que ora lhe ergueu a mão fratricida e em cuja reencarnação escapou à justiça por se ter evadido do país, ela, apiedada, rogou a oportunidade de ser-lhe esposa, recebendo nos braços como filhos os inimigos de ambos, para, então, pelo exemplo da paciência, da humildade e da submis­são, ressarcir o crime da irresponsabilidade junto a ele, e chamá-lo à observância dos deveres de que se des­cura acintosamente. Como podemos observar, o caráter exaltado de que dá mostras, o mau-humor contínuo de que se reveste, atestam o fogoso espírito encarce­rado, sem possibilidades de revelar-se em toda a pujança do seu primitivismo. Ela, no entanto, avança vitoriosa, e creio mesmo que o seu sacrifício e a sua fidelidade aos postulados que abraça no Espiritismo terminarão por vencer galhardamente o opositor, conduzindo-o à retidão de princípios. Vale considerar que a sua folha de méritos é igualmente apreciável. O martírio mater­nal que tem experimentado na atual conjuntura consa­gra-a nesta vida, reabilitando-a da negligência de equi­valente compromisso no pretérito.

«Carinhosamente amparada pelos seus afeiçoados no Plano Espiritual, ela adquire forças para compensar os desgastes na luta ferrenha do lar atormentado, invadido por infelizes visitadores espirituais, que ali teimam por fazer morada, graças aos demais familiares residentes. De certo modo isolada, tanto quanto as meninas Mariana e Amália, dos miasmas fluídicos do ninho doméstico, criaram já sua própria «psicosfera pessoal», que as isen­ta das agressões dos desencarnados menos afortunados. Como você observa, Mariana tem-se revelado dedicada cooperadora da nossa Casa e, logo mais, estará devo­tada ao exercício da mediunidade socorrista, conforme esperamos, adquirindo valiosos recursos para a manu­tenção da saúde e da paz. Amália, cumpridora dos seus deveres de filha e irmã, é excelente servidora, ganhando fora do lar em trabalho modesto e honrado o pão, me­diante cuja cooperação ajuda a manutenção das demais irmãs. A Contabilidade Divina dispõe, também, dos mé­todos de correção benéfica dos depósitos a favor dos titulados nos seus Livros. »

Reflexionando, verifiquei a legitimidade e o acerto dos conceitos emitidos, ao nos despedirmos.

Os dias transcorriam absorvendo-nos nas ativida­des múltiplas a que nos filiáramos, quando Petitinga voltou a convidar-nos a retomar ao lar da família Soa­res, atendendo à aflita apelação de Dona Rosa.

Quando lá chegamos, a veneranda Senhora recebeu­-nos macerada de sofrimento. O esposo encontrava-se quase agonizante. O médico saíra havia pouco do lar, informando que o prognóstico era desalentador. Ficara hemiplégico, apresentando o doloroso aspecto do desastre orgânico. Todo um lado estava paralisado e os es­tertores agônicos de que dava mostras, semidesfalecido, confrangiam a alma. O próprio médico se dizia sem es­peranças. Muito mais entristecedor era o quadro afliti­vo do lar... A sofrida matrona, com a imensa carga das noites indormidas e os esforços sobre-humanos para manter a família, definhava sob a aspereza das rudes provações...

Petitinga ouviu-a demoradamente, com paciência, enquanto, na sala de refeição, a esposa e mãe narrava a quase tragédia que resultara no não menos danoso problema que agora defrontávamos.

Conquanto a sua humildade e carinho, fora cons­trangida a admoestar a filha Marta, que continuava nas arriscadas aventuras de feticismo.

Às vésperas, quando chegara, noite avançada, a ge­nitora lhe reprochara o comportamento, advertindo-a quanto à cooperação que deveria oferecer para a paz do lar e a recuperação do pai enfermo, que vencia o pri­meiro mês da agressão com ótimos resultados, quase recuperado. Rogou-lhe a ajuda espiritual, através da prece e da mudança de atitude em relação à fé, a fim de que os Mensageiros Invisíveis pudessem renovar a atmosfera da vida familiar, modificando o carreiro das provações que todos experimentavam como consequência funesta dos erros passados. Suplicava-lhe não se adentrasse mais no emaranhado labirinto de trevas por onde seguia...

Fora o bastante. A filha, possessa, desrespeitosa, agrediu-a moralmente com palavras fortes e azedas, transformando em altercação violenta o que não pas­sava de sereno convite materno à reflexão, à dignidade, ao equilíbrio. Furiosa, tentou agredir físicamente a mãe que lhe estava em frente, não conseguindo o intento, graças à interferência providencial de Amália e Maria­na, que lhe correram em auxílio .

As forças negativas de que se fazia habitualmente instrumento irromperam intempestivas e o Sr. Mateus, acordado sübitamente, ouvindo o clamor e a balbúrdia, levantou-se do leito precipitadamente, marchando revol­tado, colérico, armado com uma acha ameaçadora. A poucos passos, cambaleou e tombou ao solo...

Fora indescritível a cena. A ferida cirúrgica, ainda não cicatrizada de todo, voltou a sangrar e, tomadas providências de imediato, retornou ao Pronto Socorro. Lá, foram aplicados os recursos compatíveis ao caso e, no momento, se encontrava na «tenda de oxigênio», lu­tando pela sobrevivência do corpo, com diagnóstico de embolia cerebral.

Receava a nobre senhora não suportar as últimas dores. Encontrava-se enferma, e embora não desfale­cesse na fé, em circunstância alguma, acusava-se cansa­da, receosa, desalentada...

Vencida por choro convulsivo, apoiou-se no intimo­rato espírita e, sob a sua aura fortificante, dele recebeu a energia revigorante de que necessitava. Paulatina-mente foi-se acalmando, recompondo-se.

Além do esposo nesse estado de desespero, Marta recolhera-se ao quarto, possessa pelo ódio surdo, recusan­do-se a sair. Mesmo sabendo do que acontecera ao pai, reagia contra ele, continuando na tônica da revolta.

Depois de alguns instantes de reflexão, Petitinga convidou-nos a acompanhá-lo à peça em que Marta se demorava, e, com a autoridade moral que o aureolava, saudou-a. Conquanto não fosse correspondido, o seu verbo correto advertiu-a:

— Marta, minha filha, o dever da solidariedade in­duz-me a procurá-la, em nome de sua aflita mãe e do seu pai agonizante... Não nos animam quaisquer pro­pósitos de invectivá-la, tecendo considerações injuriosas ou censuráveis aos últimos acontecimentos que abalaram este lar. Nutrimos o são desejo de lutar para que não se acumulem danos sobre novos danos numa avalanche de gravames mais desesperadores, cada vez piores... Você sabe por experiência pessoal que a morte é entrada na vida, reexame de atos, reencontro com a consciên­cia, mesmo quando esta jaz entorpecida pela ignorância ou anestesiada pelo crime... Todos sabemos que a vida nos dá o de que temos necessidade para o nosso pro­gresso espiritual e, consequentemente, pai, mãe, familia­res e amigos são peças importantes, indispensáveis para a nossa evolução. Como nos comportamos em relação a eles, oneramo-nos ou não de responsabilidades nega­tivas novas, que atiramos na direção do futuro... Por isso e por muitas outras razões, você não se pode man­ter na posição em que se refugia agora, na qual se vem sustentando até aqui...

A filha mais velha dos Soares continuava silencio­sa, emitindo raios de surda dólera refreada a custo.

Perfeitamente senhor da situação, Petitinga propôs:

- Se você nos permite, filha, aplicar-lhe-emos pas­ses magnéticos para ajudá-la na difícil decisão e sus­tentá-la nas provas que lhe advirão como resultado da sua teimosia. Oraremos juntos, encontraremos Jesus que nos oferecerá braço amigo para prosseguir e venceremos o caminho da reforma íntima sob o divino amparo.

Vencendo o mórbido silêncio, Marta rugiu:

— Agradeço o seu interesse. Encontro-me muito bem e estaria melhor se não fosse perturbado o meu sos­sego com a sua presença...

Demonstrando a perícia em lidar com obsessos e obsessores, o então Presidente da União Espírita Baiana, muito calmo, respondeu:

— Deixá-la-íamos no sossego a que você se refere, caso as suas atitudes não fossem fatores de perturba­ção e desordem neste lar. Aqui estamos em nome de sua genitora, que arca com o ônus de pesados sofrimentos, exercendo a função de mãe e pai para que o lar não padeça miséria econômica nem moral. Onde o seu de­ver de filha, de irmã, que tudo recebeu e nada retri­bui? Já que você não ajuda, não tem qualquer direito de criar dificuldades. Você é adulta e tem responsa­bilidades perante a Vida. Não deslustre mais a sua cons­ciência, teimando em perseverar no erro espontâneamen­te aceito. Ajude-nos, filha, a ajudá-la.

— Não necessito do senhor. Eu tenho os meus Guias... Poderosos, eles são as forças atuantes da Natureza; indestrutíveis, governam o mundo; rigorosos, sa­bem fazer e desfazer...

— E porque não lhes roga auxílio para ser útil e nobre, socorrer e amparar quem lhe ofereceu a roupa carnal? Porque não a seguraram ontem, impedindo o desfecho deplorável que a sua atitude violenta gerou?

— Porque eles são violentos, vingadores e conse­guem imediatamente o que a tolerância e o amor não lobrigam. Estivesse a mim entregue a solução dos pro­blemas daqui e já os teria resolvido desde há muito... Crê o senhor que eu não me sinto magoada, verificando que as forças de que sou possuidora, na minha casa, não merecem consideração? Tenho clientes que logra­ram resultados muito bons com os meus recursos e os meus Guias me prometem: ou o meu povo se lhes sub­mete ou eles os acabam...

— Tais Espíritos, minha filha, não são Guias: são cegos arrastando cegos ao abismo em que todos se pre­cipitarão. Abastardados pela ignorância demoram-se na animalidade, exigindo retribuições materiais por se com­prazerem nos fluídos densos e grosseiros de que se não podem libertar. Odiando-se a si mesmos, estabelecem o clima do ódio e, revoltados nos recônditos do ser, es­palham rebeldia, ameaçadores, para governarem sob as nuvens sombrias do medo... Fracos, procuram dividir para imperar... Dizendo-se temíveis, vivem temerosos, fugindo à consciência e descendo cada vez a vexames maiores nos quais se enredem, infelizes. Não, filha, não são poderosos, nem indestrutíveis, nem rigorosos; são primitivos que a vampirizam e se nutrem do plasma mental dos que, como você, caem presas fáceis dos seus ardis e mancomunações.

— Pois saiba que eles podem fazer o que os se­nhores jamais conseguiriam. Libertam as vítimas da obsessão pela força, arrancando os seus perseguidores com os poderes que possuem. E os senhores, que fazem?

— A violência não liberta e a força não convence. A vitória do poder da força é ilusório, porque ela mesma gera a força da reação que a destrói. O que você diz ser libertação em caso de obsessão, invariàvelmente são ardis de que se utilizam os benfeitores com os agresso­res: vivendo o mesmo tônus vibratório, combinam uma libertação falsa, dando a sensação de liberdade àqueles que lhes estão nas tenazes, para voltarem depois mais violentos, perturbados e perturbadores... Outras vezes investem com recursos próprios de que se utilizam, e, odientos, apavoram os outros perseguidores, transferin­do o pagamento do enredado na obsessão para clima mais danoso e mais difícil, portanto... Não se iluda:

a sombra sobre a sombra não produz claridade. Uma gota de luz vence a treva; todavia, a abundância da segunda nada consegue em relação à primeira... A im­piedade nada produz. A única força eficiente é a que se deriva das reservas morais, a do espírito superior, a que produz a emissão vibratória de alta frequência, que atua como força realmente poderosa, capaz de influir decisivamente na esfera das causas e, pois, consequen­temente, no campo dos efeitos.

«Recorde-se de Jesus ante o endemoninhado Gada­reno; o moço que sofria de ataques; as febres da sogra de Pedro; o cego de Jericó; o paralítico de Cafarnaum.... seria necessário ir adiante? Lembre-se da Sua força diante dos maus, dos falsos poderosos da Terra. O amor é o pão da vida e, como escasseia, a esperança da Humanidade cambaleia nas sombras da violência temporária, pois que o Reino do Amor logo advirá.

«Unamo-nos desde já, minha filha, no mesmo ideal de serviço, e liberte suas forças psíquicas das constrições que a infelicitam, oferecendo-as a Jesus, enquanto urge o tempo, iniciando vida nova a seu próprio bene­fício. Não olvide, neste momento, que o seu genitor agonizante entre a vida e a morte, ou como também poderíamos dizer entre a morte e a vida nova, em par­tindo, poderá deixar em você pesados crepes de remorso, de arrependimento tardio, improdutivo, inquietador. Ago­ra é o momento: é tempo de reabilitar-se... Saia da noite e rume na busca do dia. Ore e inunde-se de re­conforto. Não transfira o seu instante de felicidade... Iremos convidar sua mãe a acompanhar-nos na oração e dê começo, já agora, à sua ressurreição, a um renas­cimento espiritual... »

O poder dos argumentos e a força moral do velho doutrinador acalmaram a atormentada e, a um sinal, dis­pusemo-nos a buscar Dona Rosa, que esperava do lado de fora, sendo introduzida no recinto em que estávamos.

Solicitado à oração, procurei erguer-me ao Senhor e suplicar-Lhe o concurso. Enquanto isso, o Apóstolo da caridade espiritual ministrava recursos fluídicos e magnéticos na sensitiva comprometida. Depois da cui­dadosa operação espiritual, levantou-se e, visívelmente emocionada, agradeceu, comprometendo-se a visitar o ge­nitor e meditar nas novas diretrizes que se lhe depa­ravam naquelas dolorosas circunstâncias.

O poder da oração! Quando os homens compre­enderem e se utilizarem realmente dos recursos da pre­ce, em muito se modificarão os cenários da vida moral na Terra!...

Cumpridos os deveres no lar dos Soares, demanda­mos o Hospital do Pronto Socorro para uma visita ao Sr. Mateus, considerando ser aquele o dia permitido. Conquanto se encontrasse em repouso absoluto, em câ­mara separada, Petitinga conseguiu do médico de plan­tão, com quem mantinha relações de amizade, permissão para orar em silêncio junto ao leito do paciente, no que foi atendido.

Conforme descrevera o médico amigo da família, o estado do pai de Mariana era deplorável. A respira­ção entrecortada por esgares dolorosos, as marcas da paralisia de todo um lado do corpo, denotavam a gravidade do problema.

Embora compungido, Petitinga, tranquilo, recolheu-se em oração, no que o acompanhamos silenciosamente. Transcorridos alguns minutos, retiramo-nos, fiéis ao compromisso de evitar perturbar o enfermo.

Já na rua o admirável sensitivo esclareceu-nos que notara a presença de Saturnino e a do Irmão Glaucus que ali estavam amparando o paciente e o assistindo, tendo registrado a intuição de que ele se recuperaria paulatinamente, através do tempo. Aquele era um su­blime recurso de que se utilizava a Lei para ajudar o ancião temperamental na construção da própria felici­dade eterna...

Não havia como duvidar da Divina Providência!

14

O Cristo consolador

Ante a impossibilidade de o Sr. Mateus continuar no Hospital do Pronto Socorro e a família não o poder manter num Nosocômio particular, após transcorridos vinte dias do acidente que o prostrara, foi recambiado ao lar. Embora o quadro se apresentasse pouco animador, ele conseguia falar com muita dificuldade, de­notando perfeita lucidez.

Dona Rosa, fatigada pelas tarefas costumeiras, ago­ra adicionaria ao labor normal o encargo de enfermagem difícil, junto ao companheiro prostrado pela embolia ce­rebral, que exigia imenso repouso, ambiente de calma e refazimento, assistência contínua e devotada.

Simultaneamente, porém, o socorro divino não tardou.

O refazimento psíquico de Mariana fê-la reconside­rar as atitudes íntimas de animosidade mantidas contra o genitor, e, à medida que o conhecimento espírita lhe penetrava a mente e o coração, renovava-se-lhe a pai­sagem interior; o contacto com as lições sublimes do Cristo fazia-a modificar-se inteiramente. Desde as pri­meiras horas da chegada do Sr. Mateus ao lar, tornou-se voluntariamente a companhia generosa, ajudando-o na higiene, mantendo os horários dos medicamentos, substituindo a mãe ao lado dele, enquanto esta cuidava do ministério do lar. Adalberto, por sua vez, que já frequentava a casa, desde os dias mais difíceis da en­fermidade da namorada, interessado cada vez mais pela Doutrina dos Espíritos, foi-se transformando em filho do hemiplégico que, ante o carinho perseverante dos que lhe cercavam o leito, começou a apresentar sinais co­movedores de renovação espiritual. Amália, fiel aos deve­res do lar e dentro deste, era as mãos que traziam as moedas para as aquisições imediatas, enquanto Marta, que passara a uma atitude de maior reflexão, depois da entrevista com Petitinga se pôs a ajudar a genitora nas costuras, no lar e na arte do bordado, aumentando a receita doméstica de forma expressiva.

Na próxima visita que fizemos à família Soares, o ambiente se encontrava significativamente modificado. Dona Rosa nos confessou a sua alegria, embora a soma de preocupações que a martirizavam ante a enfermidade do esposo e os problemas naturais, disso decorrentes.

Desde os primeiros momentos mais aflitivos, porém, as mãos da caridade, através de Petitinga, começaram a doar o socorro material, em nome do círculo dos ir­mãos da fé, de forma a diminuir a crueza das prova­ções naquela casa.

Na oportunidade da nossa visita, o amoroso amigo dos sofredores interrogou Marta, quanto à reaproxima­ção com o genitor. Esta, muito constrangida, respondeu:

— Sinto-me nervosa, agitada interiormente... —falou, encabulada. — Receio um novo atrito, no mo­mento de fazer as pazes, caso papai não me receba como de direito... Encontro-me conflitada em relação à prá­tica infeliz a que me vinculei por largos anos. Tudo me parece, agora, um despertar de cruel pesadelo, no qual eu jornadeasse atada a cordas grossas que me conduziam, inexoravelmente cega, trôpega, de mente açulada por alu­cinações indescritíveis... (*)

A ex-quimbandista começou a chorar, O corpo foi tomado por contrações constrangedoras, e, mesmo re­freando a aflição, sentia-se-lhe a dor selvagem que a despedaçava interiormente.

Petitinga envolveu-a em ondas de carinho e ternu­ra, acercando-se dela e buscando acalmá-la com palavras de esperança.

— Marta, minha filha, o Evangelho — afirmou con­victo — é porta de luz para os que gemem na escuri­dão. Caminho redentor que se abre em oportunidades múltiplas para todos nós, os trânsfugas dos deveres sublimes,

(*) O desconhecimento do Espiritismo por parte de alguns adeptos, na atualidade, que lhe não penetraram as lições pre­ciosas, ou que se ligaram às lides espiritistas para atendimento de Interesses imediatos, materiais — confirmando desse modo a ausência do estudo e da meditação das bases da Doutrina —vem gerando inomináveis confusões. Expõem, por exemplo, al­guns desses adeptos, que diante de Entidades muito infelizes, perseguidores violentos, obsessores vigorosos, são necessárias pro­vidências fora dos arraiais da Doutrina, em cujos sítios são submetidos tais Espíritos a processos de terror, de força, e a práticas estranhas, que os atemorizam, e por meio das quais os prendem longe das suas vítimas... Arrematada loucura! A severidade das Leis de Causa e Efeito são elucidação imediata a essa informação descabida. Em toda obsessão há cobrador, porque há devedor. Libertar este e prejudicar aquele seria puni-lo outra vez, a ele que foi vítima anteriormente; seria in­vestir contra o Estatuto da Divina Justiça: punir o ignorante ao invés de instrui-lo, libertar um mediante o aprisionamento de Outro, defender alguém prejudicando outrem. A soberana Lei de Amor é a força capaz de modificar a estrutura da vida e penetrar na furna odienta do “eu” atormentado para felicitá-lo. Em qualquer obsessão, portanto, em que o amor e o esclare­cimento não realizem os seus misteres, as medidas humanas da temeridade e da violência somente poderão agravar o mal, adian­do-o para ocasião em que as reservas do paciente sejam meno­res e, pois, consequentemente, menos favoráveis à cura, à li­bertação.

O preclaro Codificador Allan Kardec elucida que se “chama obsessão à ação persistente que um Espírito mau exerce sobre um Individuo.” E adverte: “Assim como as enfermidades resul­tam das imperfeições físicas que tornam o corpo acessível às perniciosas influências exteriores, a obsessão decorre sempre de uma Imperfeição moral, que dá ascendência a um Espírito mau. A uma causa física, opõe-se uma força física; a uma causa mo­ral preciso é se contraponha uma força moral.” Considera, todavia, veemente: “Nos casos de obsessão grave, o obsidiado fica como que envolto e impregnado de um fluído pernicioso, que neutraliza a ação dos fluídos salutares e os repele. É daquele fluído que importa desembaraçá-lo. Ora, um fluído mau não pode ser eliminado por outro igualmente mau. Por meio de ação idêntica à do médium curador, nos casos de enfermidade, PRE­CISO SE FAZ EXPELIR UM FLUÍDO MAU COM O AUXÍLIO DE UM FLUÍDO MELHOR.

“Nem sempre, porém, basta esta ação mecânica. Cumpre, sobretudo, atuar sobre o ser inteligente, ao qual é preciso se possua o direito de falar com autoridade, que, entretanto, fa­lece a quem não tenha superioridade moral. Quanto maior esta for, tanto maior também será aquela.”

E, por fim, observa: “Em todos os casos de obsessão, a prece é o mais poderoso meio de que se dispõe para demover de seus propósitos maléficos o obsessor.

Tais são as anotações constantes de “A Gênese”, de Allan Kardec, Capítulo 14, “Obsessões e possessões”, 14ª edição da FEB, dos quais extraimos estes tópicos que merecem, como os de­mais do oportuno estudo, acuradas meditações.

Outros, militantes apressados, também Informam que, para um bom processo de desenvolvimento ou educação mediúnica, se faz concorde a aplicação de determinadas e esquisitas prá­ticas, a fim de que a faculdade irrompa de uma vez, com re­sultados benéficos, como se a mediunidade fõsse algo elástico que atendesse à travão da força, dilatando-se de imediato. Como qualquer outra faculdade psicológica ou função fisiológica, a mediunidade requer cuidados especiais, atendimento a requisi­tos próprios e condições específicas que lhe facultem a educa­ção e o desdobramento de recursos, para atender às finalidades a que se destina. Nesse sentido “O Livro dos Médiuns”, de Allan Kardec, é, ainda, o melhor roteiro para médiuns e pessoas que desejem conhecer as faculdades medianímicas do homem, como conduzi-las e com elas operar, os perigos da má prática me­diúnica, etc...

O que ocorre normalmente nesses chamados desenvolvimen­tos instantâneos, em grupos, mecãnicos, pertence aos capítulos da Sugestão, do Animismo, dos Condicionamentos psicológicos e até mesmo aos estados de nevrose.

Resguardem-se, no cuidadoso estudo e na carinhosa obser­vação vigilante, os que desejam reais e proveitosos resultados da mediunidade e da sua prática, sem precipitação, sem exigên­cias, melhorando-se moral e espiritualmente, os médiuns e os experimentadores honestos, a fim de se credenciarem à assistên­cia dos Bons Espíritos. — Nota do Autor espiritual.

oferecendo-nos recomeço em qualquer situação e em todo tempo. Para quem realmente deseja elevação, não há tempo perdido, nem oportunidade malbaratada que não traga preciosos ensinos, que podemos aprovei­tar de futuro. Reanime-se, minha filha! O momento de renovação ocorre como instante de dor: o ar que pene­tra no pulmão do recém-nascido, ensejando-lhe a vida extra-uterina, provoca-lhe, também, a sensação da dor... Assim também, o ar balsâmico do Cristo, em lhe pene­trando a alma, rompe a couraça de sombra que a envolvia e a claridade rutilante da vida nova lhe produz, com­preensivelmente, angústia passageira e passageira apre­ensão.

— Tenho medo — conseguiu extravasar. — Receio o revide daqueles com os quais me demorava comprome­tida. Eles são terríveis!... Há muito tempo desejava fugir-lhes ao cerco implacável; mas não tinha forças; não sabia como fazer. Tenho-lhes sido escrava obedien­te... Vejo-os, dizendo-se meus amigos, porém, cruéis para com muitos. Por Deus, eu os temo! Não sei se su­portarei manter esta decisão e se conseguirei a liber­dade. Como anseio por ser livre para tentar vida nova, novas aspirações que acalento e não tenho podido fruir!...

— «Deus é Nosso Pai» — referiu-se, Petitinga, de face ruborizada, iluminada por transcendente fulguração —, disse Jesus. Assim, Ele é o Pai de todos. Examine essa confortadora informação: Nosso Pai! Ele cuida, por­tanto, dos filhos mais fracos que Lhe entregam a vida, como dos mais rebeldes que tramam dificultar a vida dos seus irmãos. Diga como Jesus em agonia, e tranquili­ze-se: «Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito!», e deixe-se arrastar pelas correntes invisíveis e poderosas do Seu amor.

Depois de uma pausa muito expressiva, concluiu:

— Inicie desde hoje a fase nova, aproximando-se do seu pai, rogando-lhe perdão. Uma atitude honesta faz-se acompanhar de fluídos convincentes, que envolvem, poderosos, aqueles a quem nos dirigimos. Humilhe-se ante aquele que lhe concedeu, em nome do Pai de todos, a indumentária física, e faça-o sentir-se honrado na con­dição de chefe da prole. Ajude-o no transe abençoado que ele vive e a força dos seus sentimentos falará mais alto do que as palavras mais brilhantes que lhe escapem dos lábios. Passe, logo depois, a frequentar nossa Casa; estude as Obras do insigne mestre Kardec, bebendo nas fontes augustas da informação espírita a água lustral, lenificadora e nutriente do conhecimento que liberta, e, de alma tocada pela suave brisa do Evangelho, distri­bua esperança... Quem sabe? Em breve as suas possibilidades medianímicas, colocadas a serviço do Cristo, depois de necessàriamente disciplinadas, poderão ampa­rar e socorrer esses mesmos irmãos que a jugularam na ignorância por tantos anos, transformando-os em amigos e companheiros de jornada... Não há força que tenha mais força do que a força do amor...

Com permissão de Dona Rosa rumamos, ato contí­nuo, na direção da alcova onde se encontrava o enfermo.

Mariana, sentada a uma cadeira ao lado do leito, assistia-o para qualquer necessidade. Carinhosa, saudou-nos iluminada por amplo e generoso sorriso.

Entregando-lhe o «Livro da Vida», Petitinga solicitou-lhe que o abrisse e lesse o texto sobre o qual os seus olhos incidissem. A menina cerrou as pálpebras e abriu o exemplar de «O Evangelho segundo o Espiritis­mo» que tinha nas mãos, e leu, do Capítulo 6 — O Cristo Consolador —, item 7:

«Sou o grande médico das almas e venho trazer-vos o remédio que vos há de curar. Os fracos, os sofredores e os enfermos são os meus filhos prediletos. Venho salvá-los. Vinde, pois, a mim, vós que sofreis e vos achais oprimidos, e sereis aliviados e consolados. Não busqueis alhures a força e a con­solação, pois que o mundo é impotente para dá-las. Deus dirige um supremo apelo aos vossos corações, por meio do Espiritismo. Escutai-o. Extirpados se­jam de vossas almas doloridas a impiedade, a men­tira, o erro, a incredulidade. São monstros que su­gam o vosso mais puro sangue e que vos abrem chagas quase sempre mortais. Que, no futuro, hu­mildes e submissos ao Criador, pratiqueis a sua lei divina. Amai e orai; sede dóceis aos Espíritos do Senhor; invocai-o do fundo de vossos corações. Ele, então, vos enviará o seu Filho bem-amado, para vos instruir e dizer estas boas palavras: Eis-me aqui, venho até vós porque me chamastes. O Espírito de Verdade. (Bordéus, 1861.)»

Mariana concluiu a leitura emocionada, O Alto, ins­pirando-nos e conduzindo-nos, respondia, às inquietações de todos nós, com o Cristo Consolador. Conquanto a ex­pressão alterada na face do Sr. Mateus, notámos-lhe lá­grimas nos olhos. Marta, visívelmente sensibilizada, to­mou a mão direita do genitor, que não fora afetada pela embolia, ajoelhou-se ao lado do corpo semimorto no leito, e, osculando-a, pediu-lhe perdão... A voz, debilitada na garganta intumescida pelo pranto, saía a custo. Pensá­vamos em Jesus naquele momento supremo de redenção, rogando-Lhe forças e socorros para nós todos, especial­mente para o pai sofredor que nunca supusera experi­mentar tão significativo atestado de amor filial.

O Sr. Mateus com muito esforço tornou-se digno do gesto da filha. Cingiu nos seus os dedos de Marta, abençoando-a em silêncio e emotividade com o esquecimento do mal e a esperança do bem. Era, aquela, uma cena evangélica, evocativa, em todo o seu impacto, dos primeiros dias da Boa Nova nascente...

Inspirado por Saturnino, Petitinga ergueu a voz e, numa eloquente oração, traduziu os sentimentos de to­dos, ao Cristo de Deus, o Excelso Benfeitor e Guia da Humanidade.

Com a alma túmida de emoções, retiramo-nos da alcova, para poupar o paciente de novos choques emo­cionais, e retornamos à sala de refeições.

Mariana, que tinha sede de luz, perguntou sem preâmbulos a Petitinga:

— Ante essa prova do socorro dos nossos Guias Es­pirituais, eu não poderia, sempre que possível, estando ao lado do papai, ler-lhe «O Evangelho segundo o Es­piritismo», de modo a nos ir instruindo lentamente nas lições da fé? É claro que procurarei não cansá-lo. Uma boa leitura, além de edificar, também distrai, não é mesmo?

Petitinga fitou-a, admirado, e concordou pronta­mente:

— De pleno acordo. É evidente que a messe de luz muito favorece a riqueza da arca que a recebe. Muito bom esse alvitre, essa lembrança. A palavra evangeli­zante dirigida a ele atenderá, também, aos sofredores espirituais que porventura se lhe vinculem por esta ou aquela razão. Numa casa onde se acende a claridade do Evangelho, erguem-se defesas poderosas, impedindo a in­vasão das forças desagregadoras da erraticidade infe­rior. Quando um grupo ora, unido nos liames da comu­nhão pela prece, estabelecem-se resistências capazes de suportar as descargas da agressão da maldade originada num ou noutro plano da vida. A prece e a lição edificante transformam-se em potentes ondas de energia vi­vificadora que beneficia todos os que delas participam.

E para deixar muito bem esclarecido o valor do no­bre tentame, argumentou:

— Ainda não conhecemos, devidamente, na Terra, o poder do pensamento. A mente atua dentro e fora do cérebro pelo qual se manifesta, atraindo ou repelindo forças compatíveis ou antagônicas. Todos sofremos os reflexos uns dos outros, na carne, como também da­queles que estagiam fora do invólucro material, com os nossos recursos possíveis de assimilação ou desassimi­lação. Nenhum homem consegue estacionar, livre das ondas de intercâmbio dessa ou de outra ordem, que nos envolvem incessantemente. Absorvemos como eliminamos as imagens que nos são peculiares, é caminhando com elas e atando-nos às suas amarras ou delas nos libertando, na direção da felicidade. Isto quer dizer que somos o que produzimos mentalmente, vivendo imanados aos nos­sos como aos pensamentos que recebemos dos outros...

O Universo todo são permutas. A idéia que o homem plasma e cultiva, exterioriza e difunde, traduz o seu es­tado, a sua altura moral e espiritual. Ora, sintonizados com a idéia da Vida Excelsa, plasmaremos imagens su­periores e viveremos emoções vitalizantes que nos esbo­çarão os pródromos da paz interior que, por fim, nos dominará.

Marta, animada pela excelente explicação, indagou:

— E no meu caso, meu amigo? Como o senhor não ignora, há mais de dez anos me encontro anestesiada pelo ópio das forças brutalizantes do Mundo Espiritual Infe­rior. No círculo de ação em que tenho labutado, agimos com as “forças da Natureza” e, ao recebermos o alicia­mento de muitas Entidades, assumimos também compromissos para com elas. Poderei desfazer tudo isso, pura e simplesmente, sem sofrer danos e sem as desequilibrar?

Após ligeira e necessária meditação, Petitinga elu­cidou:

— Todo compromisso que assumimos espontaneamente merece consideração. No entanto, só um compro­misso nos parece verdadeiro, irreversível: o que temos para nós próprio, para com a nossa evolução. Esse é intransferível, inderrogável. As Entidades que se nos vinculam ou com as quais nos imanamos tornam-se co-mensais das nossas emanações psíquicas, nutrindo-se das nossas forças, como ocorre nas obsessões. Aliás, em todo processo em que há uma vinculação constringente de um desencarnado sobre um encarnado, ou vice-versa, deparamo-nos com uma obsessão em curso ou, quando menos, com uma fascinação a caminho do desastre obses­sivo. A expressão «desfazer os vínculos» deve ser subs­tituída por «modificar as vinculações», porque em ver­dade você não deseja abandoná-los, mas libertar-se do erro em que eles se demoram, para jornadear na busca da harmonia que lhe faz falta.

E após reflexão mais demorada, arrematou:

— As «forças da Natureza» são os Espíritos, que podem ser definidos segundo Allan Kardec como: «Os seres inteligentes da Criação. Povoam o universo, além do mundo material.» Ora, assim sendo, estagiam em di­versos graus de evolução, desde os mais primitivos até aqueles mais elevados.. Naturalmente que uma organiza­ção fisiopsíquica aclimatada às emanações fluídicas mais grosseiras se ressentirá, em se afastando do conúbio ha­bitual de que se nutria. Jesus, porém, é o pão da vida e resolverá o problema. Não há porque recear. Ele a nutrirá com superior alimento. Acreditamos, também, que tomada a resolução de avançar noutra direção, não há como nem porque olhar para trás, demorando-se em receios, mantendo a sintonia com intuições deprimentes e superstições vulgares, que não merecem consideração, senão quando se deseja esclarecê-las. Sem dúvida, mui­tas vezes você experimentará dificuldades... Confie, po­rém, e avance!

— Face ao exposto — afirmou Marta, convicta, sem titubeios —, pretendo, ainda hoje, libertar-me de ta­lismãs e amuletos, objetos e indumentárias, cerrando, em definitivo, as portas do meu antigo «consultório» e abrin­do a alma à luz do Senhor.

E porque ainda estivesse compreensivelmente acli­matada aos hábitos dos cultos externos, extravagantes, ajoelhou-se, e, em tom patético, rogou a proteção dos Céus.

Muito gentil, Petitinga ergueu-a e falou com bom-humor:

— O servo fiel e vigilante está sempre de pé, espe­rando o serviço que lhe destina o Senhor...

Todos sorrimos com a feliz interferência.

Dona Rosa, que estava exultante, abraçou a filha demoradamente.

Paulatinamente a paz vencia no lar da família Soa­res, O panorama, conquanto conservasse ainda algumas leves sombras, se apresentava alvissareiro. O hoje res­pondia já às aflições do passado e o amanhã se dese­nhava benéfico, respondendo às inquietações de agora.

Esse, sem dúvida, é o ministério do Espiritismo: tra­zer de volta Jesus-Cristo aos corações sofridos da Ter­ra; repetir as experiências memoráveis de quando Ele esteve entre nós; consolar os infelizes do Além-Túmulo, libertando-os da suprema ignorância das realidades es­pirituais; desatar os laços constritores que ligam de­sencarnados em perturbação a encarnados que se per­turbam; cuidar dos obsessos e iluminar a consciência de obsidiados e obsessores; semear o amor em todas as modalidades, através das mãos da caridade, em to­das as dimensões.... por ser o Espiritismo o CONSO­LADOR prometido por Jesus.

15

Enfermidade salvadora

Havia um mês que o Sr. Mateus retornara ao lar, após a crise que o conduzira inconsciente ao Pronto So­corro, vítima de embolia cerebral. O ambiente espiritual na residência dos Soares era sensivelmente melhor. Ha­via mesmo uma atmosfera de paz inabitual naquele do­micílio longamente sacudido por tempestades de vária ordem. O genitor de Mariana, carinhosamente assistido pela esposa e filhas, dava mostras de confortadora re­cuperação orgânica. Já conseguia falar com menor dose de esforço e as lições consoladoras do Espiritismo, a que se acostumara paulatinamente, mediante a leitura de “O Evangelho Segundo o Espiritismo” realizada pela ex-obsidiada, penetravam-no fundo, fazendo-o reformular conceitos e modifi­car disposições íntimas...

O Delegado de Polícia, que continuava à espera de poder ouvir o depoimento da vítima contra o Sr. Marcondes Pereira, o agressor, visitou o enfermo para to­mar por termos a queixa-crime contra o desafeto, e, para surpresa geral, o Sr. Mateus esteve à altura da situação. Pediu que tudo fosse esquecido, em conside­rando a própria leviandade, causadora do acontecimento, pois que ele não pretendia apresentar qualquer acusa­ção. Germinava já naquele terreno, antes sáfaro, a se­mente do Evangelho Redentor.

O responsável pela ordem saiu agradecido e igual­mente feliz com a decisão do Sr. Mateus, em conside­rando, afinal, os danos não terem sido de grande monta e que o tempo tudo regularizaria.

Dias depois, acompanhado do mesmo Policial, o ci­dadão Marcondes veio visitar a sua vítima e lhe solicitou escusas, considerando a circunstância de se co­nhecerem de há muito, conquanto a pouca afinidade es­piritual existente entre ambos. Que fossem esquecidos os incidentes lutuosos que poderiam ter culminado na desgraça de dois chefes de família e na consequente des­dita dos seus descendentes. Aquilo lhes serviria a am­bos de lição preciosa.

Foi com essas noticias alvissareiras que nos reuni­mos para os trabalhos ordinários de desobsessão, após ouvi-las dos lábios de Dona Rosa e Amália que, serena­das as dificuldades no lar, retomavam os deveres do culto espiritual e da caridade aos desencarnados.

As operações socorristas estavam no término, quan­do Saturnino, incorporando o médium Morais, teceu al­gumas considerações em torno dos labores desobsessi­vos junto aos Soares.

— As nossas palavras de hoje — falou com in­flexão de muita ternura e bondade, como lhe era habi­tual — são dirigidas à irmã Rosa, cujo exemplo de re­signação nos comove e nos felicita. Convidada ao res­gate em caudaloso rio de sofrimentos, a irmã querida tem sabido honrar a confiança do Senhor. Desde cedo requisitou a bênção da renúncia pessoal, reunindo no lar velhos compromissos que se complicavam e aceitou a incumbência de labutar infatigável até o fim da ta­refa, sem desânimo nem rebeldia. É justo que lhe seja conferido o salário pela fidelidade no posto do dever retamente atendido. E o salário do servo devotado é a esperança de melhores horas, com a paz de todos os instantes, para a continuação do empreendimento de luz interior, ao qual se encontra nobremente vinculada.

E desejando, talvez, demonstrar a elevação dos mé­ritos da mãe de Amália, acrescentou:

— Tínhamos em mãos o dilema de como conduzir o Sr. Mateus, em face das dores que pesavam sobre o seu lar e a sua irreverente deslealdade para com os de­veres espontâneamente assumidos junto ao altar da fa­mília. Logo após o lamentável incidente de que se fez merecedor, reunimo-nos, aqueles que assumimos a res­ponsabilidade do socorro a Mariana e posteriormente à família, para examinar o transcurso das tarefas futu­ras no seu lar, chegando à conclusão de que o remédio mais eficaz e mais bem aplicado para o nosso irmão seria o de demorada permanência no leito, a fim de que a limitação das forças e o constrangimento da enfermi­dade lhe pudessem despertar o espírito atormentado para as questões vitais da reencarnação, da imortalidade... Sabemos, por experiência e observação, que os mais cal­cetas e inveterados adversários da razão, do siso, dos sentimentos espirituais, modificam os conceitos logo se deparam com as perspectivas próximas da desencarna­ção e, embora não acreditando na continuação da vida, como fazem crer, rogam, desesperados, tempo para refazer o caminho e preparar-se... Assim, concluímos pela hipótese de retê-lo, no leito, dependendo das mãos da família, à queda espetacular e irreversível no despenha­deiro da delinquência para onde marchava sob poderoso comando de insensíveis inimigos com os quais se iman­tava desde há muito. Dessa forma, após o delíquio no atrito com Marta, igualmente perturbada, recorremos a providencial socorro, aplicando-lhe recursos magnéticos que libertaram a bolha de ar que se alojou em circuito especial do cérebro, gerando a embolia de que foi aco­metido... Como o Divino Benfeitor dispõe de recursos e terapêutica especializada para todos os problemas e enfermidades, a dor, que agora lhe é mestra e mãe gen­til, abre-lhe, também, as portas da compreensão da fa­mília e da paz no lar, ajudando-o a descobrir o mundo novo do espírito para a própria felicidade.

Silenciou por breves momentos e, logo depois, pros­seguiu:

— Certamente que há muito ainda por fazer. Ele mesmo deverá desatar inúmeros liames a que se deixou prender, na retaguarda. Inclinado, no entanto, a obser­vações mais prudentes e valiosas, poderá refazer muito dos danos antes gerados, iniciando novos cometimentos em prol de si mesmo. Seus verdugos se aquietam na encruzilhada das tramas soezes e aguardam ensejo. Al­guns sitiam-no durante os momentos da libertação pelo sono, pois que de mente fortemente fascinada pelas dis­sipações, por cujos caminhos enveredou, sintoniza livre­mente com os antigos comparsas e deles recebe suges­tões negativas, abundantes, e altas doses de energia deletéria, retornando à organização física acabrunhado, saudoso, rebelde... A providencial e inspirada interfe­rência de Mariana, quando se prontificou à leitura do Evangelho junto ao seu leito, lentamente lhe modifica os painéis mentais, permitindo-lhe deslocar o centro de interesse, antes monoideado pelo jogo, para a elevação dos deveres, fazendo-o considerar a perda de tempo até então e a desvalia das suas aspirações, ante a vida car­nal que se extingue com a enfermidade, a idade, o aci­dente... Impossibilitado de falar com a clareza desejá­vel, não pode reagir nem discutir a temática espírita, e, semi-imobilizado, sente-se constrangido à reflexão dos conceitos ouvidos. Vagarosamente se lhe acalmam os cen­tros desordenados dos raciocínios, impondo-se-lhe neces­sários novos comentários íntimos sobre as belezas da reencarnação, até então despercebidos... Concomitantemente, a união da família em torno dos estudos ele­vados e das meditações salutares granjeia simpatias enobrecidas do Mundo Espiritual e o reduto doméstico se transforma num pouso de refrigério para os lidadores desencarnados afeitos ao bem e, porque não dizer, uma escola viva para aprendizagem, na qual as lições são vi­das que se rearmonizam em torno da Excelsa Vida de Jesus. Frutificam já, nos ramos do arvoredo da fé, as doações do amor e da caridade, transformadas em seiva sadia e produtora.

Quando o Benfeitor silenciou, havia uma saturação de paz e alegria geral, que parecia carreada por mãos invisíveis e poderosas ali presentes.

Dirigiu-se, ainda, generoso e calmo, a alguns ou­tros companheiros, quando, então, os trabalhos da noite foram encerrados.

Por alvitre do próprio Saturnino diretamente a Pe­titinga, feito anteriormente, e vencendo inúmeras difi­culdades, procedemos a uma visita ao Lazareto, no bair­ro das Quintas, para tentar alguma assistência a Ana Maria, a antiga noiva atormentada e inditosa do irmão Teofrastus.

Solicitamente atendidos por um enfermeiro de plan­tão, e com o documento de autorização do serviço de Saúde Pública, percorremos várias dependências da Casa, até localizarmos a jovem, cuja presença nos fez evocar, como em sonho bom e agradável, a recordação da vi­sita anterior que fizéramos àquele reduto de sofrimento, em espírito, sob a segura condução do Irmão Glaucus. A moça, singularmente desfeita, com alguns sinais de arroxeamento na face e nos hélices e lóbulos das orelhas, comoveu-nos pela tristeza que refletia nos olhos angus­tiados e no rosto melancólico.

Petitinga, portador de nobre persuasão, conseguiu manter ligeira palestra com ela, emoldurando-a no halo da sua cordial simpatia envolvente. Poeta sensível, fa­lou-lhe ligeiramente do Cristo Jesus e das Suas curas... Motivou-a à saúde, à esperança, bem assim às duas com­panheiras que lhe dividiam a acanhada cela, quase uma masmorra nauseante e infecta, prometendo retornar sem­pre que se nos permitissem os compromissos.

Naquele tempo, as medidas sanitárias impeditivas de contacto com os portadores do «mal» de Hansen eram muito rigorosas, conquanto aqueles pacientes vivessem entregues ao quase total abandono, cuidados com medi­camentos tais Alofam (um preparado de caroteno), o Chaulmoosan (feito com os ésteres etílicos do óleo de chalmugra), a termoterapia, as sulfas... As experiên­cias em todo o mundo em que havia Leprosários ainda não ultrapassaram essa terapêutica, com algumas ligei­ras variações sem grande significado. As tentativas para a cura se sucediam inócuas e de resultados desespera­dores. Os pacientes, porém, eram muitas vezes caçados como animais e, em alguns países, conduziam-nos aos Lazaretos, acorrentados, com armas coladas à nuca... Em lugares mais atrasados, viviam como nos tempos bí­blicos, mendigando, com a face semicoberta, considera­dos selvagens e malditos, esfarrapados, dormindo nas matas ou nas rochas próximas dos caminhos onde es­molavam...

Assim, era muito difícil conseguir-se permissão para visitas regulares a pacientes internados. O fantasma da enfermidade era tão poderosamente inculcado em todas as mentes e o «perigo» do contágio tão fortemente di­fundido, que nós mesmos sentíamos o constrangimento decorrente da ignorância.

Petitinga, no entanto, conseguiu, utilizando-se de amizades múltiplas, atingir o desiderato e passou a vi­sitar Ana Maria uma que outra vez, oferecendo-lhe, ao primeiro ensejo, um exemplar de «O Evangelho segundo o EspIritismo», dizendo-lhe que ali, naquela fonte de luz e água Viva», ela encontraria paz e reconforto.

Ocorria, também, um admirável fenômeno: quando das nossas visitas e enquanto conversávamos, Saturnino, em espírito, utilizando-se das nossas forças ectoplásmi­cas, aplicava recursos salutares na paciente e nas suas companheiras, continuando a assistência, espiritualmente, nos dias subsequentes. Seu antigo obsessor fora deslo­cado desde a primeira visita que fizemos com o irmão Teofrastus, recolhido logo após pelos irmãos Glaucus e Ambrósio a Hospital especializado da Esfera Espiritual, para posterior tratamento. Dessa forma, a tristeza e a melancolia foram desaparecendo paulatinamente da en­ferma e as manchas da intoxicação fluídica igualmente foram esmaecendo até o total desaparecimento.

Por insistência, ainda, de Petitinga, seis meses de­pois da nossa primeira visita, a enferma foi submetida a rigoroso exame e considerada curada. Ora, sabíamos que a sua doença era uma enfermidade simulacro, pro­vocada pelos fluídos maléficos do seu obsessor, que con­seguira levá-la àquele Lazareto para culminar com a sugestão de suicídio nefando, que a enrodilharia em teias fortes de desgraça, caindo-lhe nas garras odientas para o longo processo de vampirização espiritual, de demo­rado curso, nas regiões dolorosas das esferas infelizes...

Graças, também, à interferência de Petitinga, este conseguiu localizar a afilhhada em casa de família espí­rita que, conquanto soubesse do local donde a mesma procedia, não recusou a mão caridosa dirigida à sua recuperação total. A família informada do drama da obsessão de que padecera a jovem, o que motivara o seu ingresso naquele expurgadouro material, e cientifi­cada do não perigo de contágio por inexistência da en­fermidade, recebeu a moça que passou a experimentar vida nova, comprometida, no entanto, a apresentar-se regularmente cada seis meses, no Lazareto, para exa­mes de verificação médica necessária.

Enquanto isto ocorria, Marta, recém-libertada dos ve­lhos conceitos vazados na mais chã superstição, bus­cava manter a resolução firme de perseverar nas gãs idéias do Espiritismo.

Graças, porém, ao longo conví­vio psíquico com Entidades muito grosseiras, o que originara uma certa interdependência entre a sensitiva in­cauta e os seus comensais, começou a experimentar de­sequilíbrios perfeitamente compreensíveis.

Vidente com boas possibilidades de registro e per­cepção, que, conquanto ultrajada pelo uso, captava as mensagens dos desencarnados, passou a sofrer-lhes o cer­co nefando, a que fazia jus, pela própria leviandade.

A simples mudança de clima impõe ao organismo adaptação necessária. Assim, a alteração da “psicosfe­ra” se faz, também, acompanhar de esforço muito gran­de, para elaboração de outras condições íntimas e con­veniente sintonia.

Embora o esforço para vincular-se aos ideais re­novadores, via as entidades antigas, ameaçadoras, es­carnecendo dos seus propósitos e provocando injustifi­cáveis temores, o que gera, normalmente, a crença de que as pessoas que abandonam tais compromissos so­frem até à desencarnação o assédio dos antigos compar­sas. Perfeitamente compreensível que tais vínculos, muito profundos, não podem ser desfeitos pura e sim­plesmente com uma atitude. Há que edificar, novos la­ços e organizar resistências convenientes.

Possuidora, no entanto, de muita força de vontade, passou a estudar o Espiritismo com interesse, instruin­do-se nas suas lições preciosas, através do que armaze­nava argumentação para uso próprio, Confiança ilimi­tada no auxílio divino.

Submeteu-se a carinhoso tratamento de passes mag­néticos, aplicados por médiuns adestrados e educados, fazendo-se membro atuante dos trabalhos doutrinários, nos quais as lições confortadoras da fé renovada lhe pe­netravam, sendo, por fim, convidada a atuar nas expe­riências mediúnicas, e se tornando, vagarosamente, um instrumento disciplinado, por cuja mediunidade diversos dos membros das suas anteriores crenças receberam a luz esclarecedora da razão, desertando dos propósitos acalentados e iniciando nova trajetória, como que re­nascendo para a verdadeira vida (*).

(*) Chamamos a atenção do leitor para o que esclarece Allan Kardec, em “O Livro dos Espíritos”, Parte 2ª, Capítulo 9 (29ª edição da FEB):

“551. Pode um homem mau, com o auxílio de um mau Espírito que seja dedicado, fazer mal ao seu próximo?

“Não; DEUS NÃO o permitiria.”

552. Que se deve pensar da crença no poder, que certas pessoas teriam, de enfeitiçar?

“Algumas pessoas dispõem de grande força magnética, de que podem fazer mau uso, se maus forem seus próprios Espíritos, caso em que possível se torna serem secundados por ou­tros Espíritos maus. Não creias, porém, num pretenso poder má­gico, que só existe na imaginação de criaturas superticiosas, Ignorantes das verdadeiras leis da Natureza. Os fatos que ci­tam, com prova da existência desse poder, são fatos naturais, mal observados e sobretudo mal compreendidos.”

555. Que sentido se deve dar ao qualificativo de feiticeiro?

“Aqueles a quem chamais feiticeiros são pessoas que, quan­do de boa-fé, gozam de certas faculdades, como sejam a força magnética ou a dupla vista. Então, como fazem coisas geral­mente incompreensíveis, são tidas por dotadas de um poder so­brenatural. Os vossos sábIos não têm passado muitas vezes por feiticeiros aos olhos dos. “ignorantes?”

O Espiritismo e o magnetismo nos dão a chave de uma imen­sidade de fenômenos sobre os quais a Ignorância teceu um sem número de fábulas, em que os fatos se apresentam exagerados pela imaginação. O conhecimento lúcido dessas duas ciências que, a bem dizer, formam uma única, mostrando a realidade das coisas e suas verdadeiras causas, constitui o melhor pre­servativo contra as idéias superticiosas, porque revela o que é possível e o que é Impossível, o que está nas leis da Natureza e o que não passa de ridícula crendice.” — Nota do Autor es­piritual.

As demais filhas da família Soares, sem problemas de relevo, ante exemplos comoventes que tais, passa­ram a cooperar efetivamente no lar, que se transfor­mava em escola de fé viva sob as luzes exuberantes do Espiritismo consolador.

16

Compromissos redentores

As atividades absorviam-nos e o tempo transcorria generoso, ensejando-nos o aproveitamento das suas lições, gemas que incorporávamos ao patrimônio imorredouro do espírito.

A família Soares organizara singela recepção para a tarde de domingo, quando Adalberto, jubiloso com o aniversário de Mariana, assumiria o compromisso do noivado, pedindo à sua mão ao Sr. Mateus:

Era natural, portanto, que nos reuníssemos naquele lar, participando das justas alegrias que chegavam como resposta divina às dores terrenas.

O genitor da família, após cinco meses de repouso e assistência médica no lar, recuperava-se maravilhosa­mente. Já se conseguia pôr de pé, auxiliado pelas filhas e apoiado a uma bengala, com perspectivas de refazi­mento próximo. O reequilíbrio orgânico, no entanto, era de pouca significação, em se considerando as modificações reais, operadas no seu íntimo.

Se o seu passado era assinalado por descaso e desconsideração aos deve­res, justo é se lhe reconheça o esforço para demonstrar o arrependimento que o afligia. Tornara-se meigo e tratava os familiares com o necessário afeto. Lamentava a perda de tempo e a idade já avançada, que lhe não permitiria refazer os caminhos percorridos para a rea­bilitação. O Evangelho, em lhe penetrando o espírito, rasgara visões esplendorosas de luz e vida. Emociona­va-se, quando em palestras íntimas se reportava às con­solações que tão tardiamente conseguira aceitar. Em­bora desconhecesse outros informes mais elucidativos dos dramas que abalaram os alicerces do seu lar, encontrara na reencarnação resposta às angústias e rebeldias ín­timas, que tanto o atormentaram a vida inteira. Dizia-se dominado durante quase todos os anos de vida, por ódio surdo, que, semelhante a instrumento de percussão, reboava interiormente, despedaçando-o inexorável... To­davia, o tempo lhe ensejava recomposição íntima, me­lhor visão das coisas e dos acontecimentos, sentindo-se em preparativos para a partida. Já não receava a de­sencarnação. O conhecimento do Espiritismo lhe matara o temor da morte.

Por sua vez Adalberto, que procedia do interior do Estado e residia em Casa de Pensão, sem o arrimo de uma fé segura e nobre, deixava-se conduzir por uma vida de frivolidades comuns aos da sua idade, passou tam­bém a se transformar interiormente, fascinado imensa­mente pelo conhecimento da Doutrina dos Espíritos. O moço, que já armazenara suficiente depósito de praze­res nas experiências da leviandade, era ardente e apai­xonado. Embora não fosse portador de cultura, era es­clarecido e possuidor de lúcido tirocínio intelectual. Pas­sou a estudar a Codificação Kardequiana, e, depois, os romances mediúnicos lhe tomaram os sentimentos. A ló­gica da reencarnação e a programação dos destinos, obe­decendo a um roteiro adrede traçado, com as naturais concessões ao livre arbítrio de cada um, era para ele especial tema de conversações. Compreendendo as respon­sabilidades da vida, apressou-se em abandonar os ve­lhos hábitos, e, ante os infortúnios, que se transforma­ram em bênçãos no lar dos Soares, aproximou-se da família desde a enfermidade de Mariana, e fez-se quase o filho do sexo masculino que faltava naquele domicí­lio. Suas mãos e braços vigorosos se tornaram inúmeras vezes no socorro eficiente ao velho doente, e sua pres­teza e generosidade foram alavancas de salvação por ocasião dos diversos acontecimentos...

Acreditando-se necessitado de construir o próprio lar, resolvera consorciar-se com Mariana, a quem se en­contrava fortemente vinculado pelo amor. O décimo sé­timo natalício da moça era ocasião oportuna para o compromisso oficial do noivado, que deveria culminar com o matrimônio, logo estivessem em condições de fa­zê-lo.

Assim, a modesta e honrada família convidou os poucos amigos para o ato oficial, que estava sendo a razão da alegria de todos, desde os dias anteriores.

Fomos Petitinga, Morais e nós, encontrando a fa­mília Soares com alguns poucos convidados, e mais Adal­berto e o seu genitor que viera para a ocasião.

Após o pedido feito pelo seu ao pai de Mariana, fo­ram apresentadas as alianças representativas do com­promisso e servido singelo e bem cuidado lanche.

Os sorrisos falavam das emoções daquele entarde­cer. Marta e Mariana, Dona Rosa e as demais filhas pareciam crianças gárrulas, esfuziantes. O Sr. Mateus, bastante feliz, tinha, porém, o semblante velado por dis­creta tristeza. Era por se recordar do passado e se sen­tir impossibilitado de reconstruí-lo.

Por nossa vez, lembrava-me dos acontecimentos que ali tiveram palco e considerava a misericórdia de Deus, nas suas sutilezas e sabedoria infinita, que nos escapa e que não podemos de pronto compreender. O milagre da dor produzira a bênção da misericórdia da união de todos.

Adalberto, que se encontrava muito emocionado, tra­çando planos para o futuro, considerou a sua posição de espírita e perguntou a Petitinga qual a solenidade reli­giosa que deveria haver por ocasião do seu consórcio com Mariana. Compreendia que não seria lícito subme­ter-se a um ato sacramental da Igreja Romana, tendo em vista o comportamento dos profitentes daquela fé, que se situava muito distante dos ensinos e práticas do vero Cristianismo. Não seria justo, porém, que houves­se no Espiritismo uma cerimônia qualquer, lavrada nas lições evangélicas, para comemorar os grandes aconte­cimentos da vida? — inquiriu, interessado.

Petitinga, prudente e lúcido, sorriu e esclareceu:

— Foi por adotar as práticas do Paganismo em crepúsculo que o Cristianismo nascente sofreu as adul­terações que redundaram na sua paulatina extinção. Nas práticas externas e no culto luxuoso da atualidade, que encontramos das lições vivas e puras do Cristo? Onde e quando vimos Jesus praticando atos que tais? Muitos se referem à cena do batismo do Senhor, por João, como sendo aceitação tácita e concorde de um culto. Não foi isso, todavia, o que ocorreu. Deixando-se identificar pe­los sinais das profecias e pelos ditos» antigos que caracterizariam o Messias, o Enviado, Ele se permitiu receber de João, diante de todos, aquele ato, para que se soubesse ser Elle o Esperado, fenômeno confirmado pelo que todos ouviram, naquele momento em que cla­mava uma voz: “Este é o meu Filho dileto, em quem me agrado”, conforme anotaram os Evangelistas e que João acrescenta: “Ele é o Filho de Deus”, definindo-O como o Messias... Nunca, porém, batizou. Em toda a Sua vida não O vemos em conivência com os que se nutrem da ignorância e se permitem o abuso da fé a benefício próprio.

Delicado e sóbrio, fez breve silêncio, no qual os seus olhos claros se iluminaram, e logo prosseguiu:

— O Espiritismo é a Doutrina de Jesus, em Espírito e verdade, sem fórmulas nem ritos, sem aparências nem representantes, sem ministros. É a religião do amor e da verdade, na qual cada um é responsável pelos pró­prios atos, respondendo por eles, conforme o conheci­mento que tenha da Imortalidade, dos deveres. «É a re­ligião da Filosofia, a Filosofia da Ciência e a Ciência da Religião, conforme predicou Vianna de Carvalho em nos­sa Casa, com justas razões. Não se firma em enuncia­dos estranhos à Boa Nova e tudo quanto os Espíritos informaram ao Missionário Allan Kardec se encontra fundamentado nos Evangelhos. Alguns adversários gra­tuitos dizem que os Espíritos nada trouxeram de novo. E me permito indagar, repetindo o filósofo antigo: (Que há de novo sob o Sol? Novidade é também sinal de leviandade. O que nos parece novo é atualização do que acontecia e ignorávamos.

«Os Espíritos sempre se comunicaram e falaram dos renascimentos, das Leis de Causa e Efeito, conhecidas desde remotíssimas civilizações, sob a designação sâns­crita de Carma. Em todos os tempos encontramos os chamados “mortos” falando aos chamados “vivos”... O que os sábios conseguiram nestes tempos foi constatar a legitimidade da existência post-mortem e comprovarem a preexistência do Espírito, antes do corpo, com a con­sequente sobrevivência após a morte do corpo. Allan Kardec, o Enviado para os tempos modernos, teve o incomparável mérito de codificar os ensinos esparsos, dan­do-lhes uma ordem filosófica, extraindo o significado mo­ral e eterno das lições contínuas dos Imortais. Dotado de raras faculdades de inteligência e razão, acolitado por Legião de Benfeitores e por eles fortemente inspi­rado, propõe questões do conhecimento, indagou sobre assuntos não devidamente esclarecidos até então. Não há, porém, em toda a Codificação um só item que se não alicerce nos ensinos do Cristo, ora confirmados univer­salmente pelos Espíritos. O próprio Mestre, na sua as­sertiva da promessa do Consolador, informou claro e conciso que o Paracleto diria muito mais do que Ele dis­sera.

E dando melhor ênfase aos ensinos, concluiu:

— Não, não há qualquer culto externo no Espiri­tismo e se houvera teríamos a sua morte anunciada já para breve. Sendo Doutrina dos Espíritos, revive o Cris­tianismo, repitamos: em espírito e verdade!

— E não poderíamos — retornou interessado, Adal­berto — formular uma oração de ação de graças em mo­mentos que tais?

— Sim, orar, podemos fazê-lo, porém, na intimida­de dos corações, no silêncio do quarto. Uma oração pú­blica requer sempre alguém mais bem adestrado, de ver­bo fácil e inspirado. Assim, iremos transferindo para outrem o que nos cabe fazer. E como orar é banhar-se de luz e penetrar-se de paz, pela decorrente comunhão com o Alto, devemos fazê-lo, nós mesmos, cada um, em particular. Que os compromissados o façam, está muito bem; que os nubentes o realizem, na intimidade da al­cova, é de necessidade; que os aniversariantes o produ­zam, no altar da alma, é muito justo. Mas evitemos hoje que a nossa emoção e a nossa festividade sejam transformadas amanhã num culto exterior, que tenha­mos começado... Cada um de nós, aqui presente, deve estar em oração silenciosa de bons pensamentos, em ati­tude de prece pela sobriedade dos atos, mediante o res­peito moral e fraternal que nos devemos todos uns aos outros... O Espiritismo é a religião que religa, permi­tam-nos a redundância, a criatura ao Criador, interiormente... Que tenhamos mais atitudes do que palavras!...

A frase final enunciada com um toque de bom-hu­mor a todos nos fez sorrir, terminando, assim, a mara­vilhosa aula que o noivo conseguira motivar.

Todos nos despedimos jubilosos, e meditativos, quan­to às nossas responsabilidades espiríticas em relação a nós mesmos, ao próximo e ao porvir. Os nossos atos fazem escola e a nossa escola pode transformar-se, por incúria nossa, num mau Educandário.

Naquela noite, viemos a saber pelo Mentor Saturnino, durante o repouso físico, em desdobramento, que fomos reunidos na sede da União Espírita Baiana para um encontro provocado pelos Instrutores.

Ali nos encontramos Petitinga, nós, o médium Mo­rais, os Soares: Dona Rosa, Sr. Mateus, Marta, e Ma­riana, Adalberto, Ana Maria, e os Benfeitores Espiri­tuais. Alguns dos encarnados se apresentavam mais lú­cidos; outros, menos acostumados às incursões no Mun­do Espiritual para tal finalidade, pareciam sonâmbu­los em inquietação. Após a recepção de passes, todos se mostravam tranquilos.

A reunião foi presidida pelo Irmão Glaucus, o no­bre Mentor que comandara os socorros e estudos desde o Anfiteatro, incorporado aos labores de desobsessão da família Soares por determinação superior. Depois de formosa oração e de alocução muito elevada, explicou as finalidades e objetivos do encontro.

Terminava o seu prazo de estada entre nós, para aquele mister. Os serviços transcorriam com o êxito es­perado. Fazia-se necessário, porém, definir roteiros para o futuro. Ultimavam-se os preparativos socorristas para os diversos desencarnados envolvidos nos dramas das personagens ali presentes. Alguns já haviam recebido o conveniente tratamento e encontravam-se amparados em círculos fraternos do Mundo Espiritual, onde conseguiam o auxílio e o esclarecimento de que se ressentiam. Ha­via, no entanto, algo mais a fazer.

Terminada a explicação, foram trazidos de outro recinto da Casa o irmão Teofrastus e Guilherme, por enfermeiros gentis, que os acomodaram em assentos re­servados para ambos.

Adalberto, ao lado de Mariana, automàticamente lhe deu a mão, como a evitar qualquer sofrimento des­necessário à noiva. Ana Maria, reconhecendo o antigo amor, fez-se lívida. O Sr. Mateus, ante a inesperada presença de Guilherme, contanto não estivesse no uso da plena lucidez, pareceu inquieto...

O Irmão Glaucus retomou a palavra, esclarecendo:

— Aqui estamos vários desafetos de há pouco, amo­res do passado, irmãos do futuro e de sempre, no cami­nho da evolução. Ódios e paixões, anseios e ternuras são etapas a vencer na rota do grande amor que um dia nos unirá a todos como irmãos verdadeiros. Não nos importem as sombras, considerando a luz soberana que brilha sobre nós, concitando-nos ao avanço. Esque­çamos as mágoas que são nuvens perturbadoras, abramos o coração e a mente à esperança que é semente de vida germinando no solo dos nossos espíritos a be­nefício nosso, O verdadeiro amor não se enclausura em determinadas expressões do sentimento, que desenvolvem o egoísmo e a posse anestesiante; antes se dilata em múltiplas manifestações encarregadas de ampliar os re­cursos entesourados da afeição, jornadeando nas mani­festações do sangue, através da família, em posições di­versas: filhos, pais, irmãos, parentes, ou, fora dela, na condição de amores que se abraçam em novas comunhões e efusões, experimentando, aprendendo, valorizando opor­tunidades. As circunstâncias e os locais são bancos e lições da Grande Escola da Evolução. Todos nascemos e renascemos para sublimar até à libertação. Não nos aflijamos, pois. Valorizemos o ensejo e aceitemos o im­positivo evolutivo como diretriz abençoada para nós mes­mos. Jesus é a nossa porta: atravessemo-la, seguindo-Lhe as pegadas...

Todos nos mantínhamos expectantes, comovidos. A vida ata e desata, escrevendo nas páginas do li­vro de cada um de nós os próprios atos que nos espe­ram depois, inapelavelmente.

Convidando Mariana e Adalberto, que se levanta­ram seguidos por Ambrósio, o Assistente amoroso, o Irmão Glaucus apresentou Guilherme ao moço, solici­tando-lhe a receptividade fraterna, pois que aquele de­veria renascer no seu lar, por necessidade imperiosa da sua evolução. Vítima que fora da leviandade de si mes­mo e de Mariana, algoz que se fizera da moça e de si próprio, renasceria nos seus braços na condição de fi­lho sofredor, necessitado de imenso carinho e proteção afetuosa...

Visivelmente atormentado, Guilherme baixou os olhos e, trémulo, não conseguiu dominar as lágrimas abun­dantes.

Mariana avançou e o envolveu em abraço de pura ternura.

Sübitamente adornada de tênue luz que se lhe ori­ginava do plexo solar, com coloração opalina, emoldu­rou o antigo esposo suicida e falou, igualmente como­vida:

— Aproveitemos a lição, meu amigo. Unamos nos­sas dores numa só dor e reorganizemos nosso passado num futuro promissor. Brilha-me hoje diferente luz no espírito; conduz-me nova ética de vida; animam-me ou­tros propósitos no coração; aquece-me a esperança um sol diverso... Se o nosso hoje foi marcado por abun­dantes lágrimas, o nosso futuro nos espera com sorri­sos... Incapaz de ser-te esposa vigilante, tentarei ser-te mãe cuidadosa. Ajuda-me com o teu perdão e favo­rece-me com esta oportunidade. O nosso Adalberto, con­forme pressinto, não aparece em nosso destino como um estranho, um aventureiro que nos roube as melhores en­sanchas da vida. É velho amigo que tem com o nosso o seu destino entrelaçado. Desejavas nascer nas minhas carnes, recordo-me, como resultado da ilicitude para atormentar, vingar, e atormentar-te... Jesus nos permite a realização do teu desejo, não como gostarias, mas como de dever. Serás nosso filho num matrimônio honrado e voltarás aos braços de papai, como o neto que o ama­rá e dele receberá muito amor. Também ele mudou. Tu também mudaste. Todos nós mudamos. Agora tudo é diferente, muito diferente...

Guilherme deixou-se conduzir por aquela voz de ter­na bondade e se rendeu ante a força do amor verda­deiro.

Ambrósio foi tomar Dona Rosa e o Sr. Mateus e os trouxe ao grupo em confabulação.

A veneranda senhora fitou o Irmão Glaucus, que lhe compreendeu o desejo íntimo, assentindo, com um leve sorriso.

A matrona tocou o futuro neto com mãos delica­das e disse:

— Serás, meu filho, a alegria da nossa velhice, como foste a preocupação dos nossos dias já passados. Eu terei em ti o sorriso do meu coração fatigado e Mateus encontrará na tua irrequietude juvenil os motivos de jú­bilos que por muitos anos o seu coração dorido não experimentou. Também ele tem sofrido muito e espera que as tuas mãos, quando pequeninas no corpo, lhe en­xuguem os suores e as muitas lágrimas que verterá. Ver-te-á como alguém que irrompe de um passado longín­quo, sedento de amor e amoroso também...

O Sr. Mateus, sem palavras, meio acanhado, ca­nhestramente tocou o antigo adversário e permaneceu mudo.

O Irmão Glaucus interveio:

— Todos se reencontrarão mais tarde, como chega­dos de um sonho impreciso, de contornos confusos; no entanto, com lembranças queridas desta madrugada ain­da imersa em trevas, em que confabulamos e delineamos nosso porvir redentor. Guilherme será conduzido a ne­cessário tratamento em Organização especializada, do lado de cá, e receberá preparação para o tentame pró­ximo.

Foram separados, retornando aos seus lugares.

O Irmão Glaucus tomou o antigo Mago de Ruão, que se apresentava desfeito, contraído, com indizível so­frimento estampado na face, e o aproximou de Ana Ma­ria. Tocando a jovem, falou-lhe:

— Devolvo-te o amor não fruido. Tê-lo-ás no seio materno e nos braços da ternura. Amamentá-lo-ás e lhe fornecerás a forma orgânica. Ele, porém, terá incontá­veis limitações de muita natureza, exigindo-te sacrifícios e vigílias. Talvez não consiga firmar-se na primeira tentativa de renascimento. Os seus fluídos possivelmente intoxicarão venenosamente a forma débil do feto... Mas voltará, sim, aos teus anelos, às tuas ansiedades. An­tes dormirá demorado sono em nossa Esfera de ação, para esquecer e recomeçar sem o peso das lembranças causticantes... Teu amor ajudá-lo-á a carregar o fardo das próprias dores. Não seguirás a sós: teus Amigos Espirituais te ajudarão, todos oraremos por ti e por ele.

Ana Maria tocou a face do inditoso afeto. Mistu­rou as suas nas lágrimas dele, que fluiam silenciosas e doloridas.

— Ajuda-me, amado Teo — disse lenta, lacônica­mente. — Ajuda-me com o teu vigor, o teu entusiasmo e a tua sabedoria, tu que sempre foste mais eloquente do que eu. Socorre-me com a tua presença e não me deixes mais sozinha... pois eu não suportaria, agora que te reencontrei.

— Pede-o a Deus — respondeu, lamentoso e débil —, não a mim. Eu sou um infeliz, já que tu não caíste tanto, não te comprometeste tanto quanto eu... Sou agora muito fraco, vencido por mim mesmo. Roga-Lhe, tu, que serás mãe e a mãe é sempre abençoada. Roga, por nós dois.

Ana Maria recebia o influxo mental do Irmão Glaucus, que a inspirava poderosamente. Comovida, a ex-leprosa retrucou:

— Se somos fracos em forças, nosso amor é forte em esperança. Nossa fraqueza será nossa resistência, porque nos dependeremos e, assim, nos ajudaremos.

Seu rosto se descontraiu e ela quase sorriu. Afa­gou a fronte suada do seu amor e concluiu:

— Tudo quanto não tivemos, até agora, o amanhã nos ajudará a possuir. Estaremos mais entrelaçados do que em qualquer ocasião. Por ti, receberei também, nos braços, a Jean...

— Jean? — interrogou, surpreso, o Espírito.

— Sim, Jean Villemain, recordas? Comprometi-me a ajudá-lo, também, e assim nossa felicidade não terá manchas. Ajudando-o, ajudar-nos-emos. Ele foi mau por­que deixou que o seu amor por mim o enlouquecesse. Guardadas as proporções não foi, também, de loucura, o nosso amor? Desse modo nos refaremos e marchare­mos juntos.

Fortemente impressionada pela inspiração do Emis­sário da Luz, arrematou:

— Aprendi, quando estudava o Evangelho, em crian­ça, em Ruão, este conceito que nunca esqueci: «Quando eu buscava Deus fora de mim, não O achava; quando o procurava dentro de mim, tinha-O perdido; resolvi amar e ajudar o meu próximo e deparei-me comigo, com Deus e com o meu irmão. Buscando Jean e o aju­dando, achar-nos-emos os três na felicidade...

O irmão Teofrastus assentiu, cansado, com a ca­beça caída sobre o ombro da noiva antes infortunada.

O Benfeitor Glaucus, carinhoso, elucidou:

— Jean não poderia participar desta reunião, pois que se encontra em tratamento... Os nossos compro­missos redentores nos desenham, também, aflições e res­gates. Não serão incursões românticas ao jardim das delícias ou aos oásis do repouso. Serão tarefas e responsabilidades que assumimos perante nós mesmos. Po­deremos lograr êxito, poderemos falhar, dependendo exclusivamente de como refaçamos a senda. O amor nos ajudará, sem dúvida. Convém recordar, também, que não temos sabido valorizar devidamente as concessões do amor verdadeiro e, assim, o nosso sonho de amor será, também, ministério de sacrifício e renunciação, pe­sados tributos de dor redentora. Tenhamos em mente a necessidade da oração e do trabalho como meios de sustentação da fé, nos momentos ásperos que surgirão in­dubitàvelmente. Repontarão à nossa frente outros amo­res e outros desafetos. O nosso pretérito não está aqui todo representado, definido... Fortaleçamo-nos no bem, pois que só o bem nos fortalecerá devidamente para os embates porvindouros.

«Roguemos ao Pai que abençoe os nossos propósi­tos de luz e respeitemos no porvir a glória da nossa felicidade.

Concentrando-se, demoradamente, o Benfeitor co­meçou a refletir luz prateada que lhe fluía do cérebro, vestindo-o totalmente. A sala humilde fez-se brilhante e tínhamos a impressão de que sutil aroma perfumava o ar.

Transfigurado, o Mensageiro orou:

Senhor Jesus, Amigo Excelente:

Chegamos cansados dos caminhos percorridos,

Trazendo poeira transformada em lama nos pés da alma,

Sedentos e feridos, de mãos vazias e dilaceradas;

Tombada, a nossa fronte não se levamta para olhar o amanhã;

Os ombros arriados não suportam o fardo das pró­prias dissipações.

Socorre-nos, Celeste Benfeitor!

Não é a primeira vez que te esquecemos, envol­vendo-nos no crime.

Não é a primeira tentativa que fazemos com in­sucesso.

Não é a primeira oportunidade que perdemos, acoi­mados pela loucura do «eu».

Apiada-te ainda mais de nós!

Fitamos o céu e nossos olhos não vêem as estrelas, olhamos o dia e o sol nos enceguece, seguimos a rota e tropeçamos sem a visão do solo...

Pensamos em ti e brilha em nosso espírito a Tua luz.

Ampara-nos, Construtor da Vida! Amanhece o dia do novo ensejo e logo mais mergulharemos no caudaloso rio da reencarnação.

Reencontraremos as dívidas chamando por nós e as dores reclamando-nos;

Defrontaremos o ódio ultrajando nossas aquisições de amor e o sofrimento dificultando nosso avanço.

Dá-nos a Tua mão protetora!

Somos o que fomos, ajuda-nos a ser o que devemos!

A Ti entregamos nossas vidas:

Salva-nos, Jesus, através do trabalho redentor!

Quando o Mensageiro silenciou, nossos olhos esta­vam deslumbrados. Recebêramos a visita dos Céus para termos força de prosseguir nos deveres da Terra.

Chegou o momento das despedidas.

De coração túmido abraçamos o nobre Irmão Glaucus.

Ele sorria gentil e confiante para todos nós.

O grupo foi sendo reconduzido aos seus lares.

Os irmãos que se reencarnariam foram atendidos por Assistentes Espirituais diversos que participaram das inúmeras tarefas e transferidos para o Mundo Maior.

Saturnino e Ambrósio conduziram-nos ao lar, assim como os demais membros do labor desobsessivo.

O manto da noite estava sendo erguido pelo ouro do sol e as nuvens brincavam de sombra e claridade na festa do Dia.

O perene amanhã com Jesus esperava por nós.

Fim