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quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

50 Anos Depois-Parte1-Francisco Cândido Xavier

Nota do Blog: Apesar de estar integralmente apresentado. Esse livro ainda não está totalmente formatado nesse blog, para uma leitura mais prazerosa.

CARO AMIGO:

Se você gostou deste livro e tem condições de comprá-lo, faça-o pois assim estarás ajudando a diversas instituições de caridade.
Que Jesus o abençoe.
Muita Paz

Ir: 50 Anos Depois-Parte2-Francisco Cândido Xavier

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

EPISÓDIOS DA HISTÓRIA DO CRISTIANISMO NO SÉCULO II

Romance ditado pelo Espírito EMMANUEL

FEDERAÇÃO ESPÍRITA BRASILEIRA

DEPARTAMENTO EDITORIAL

Rua Souza Valente, 17

20941 - Rio-RJ - Brasil

e

Av. L-2 Norte - Q. 603 - Conjunto F

70830 - Brasília-DF - Brasil

ÍNDICE

Carta ao leitor

PRIMEIRA PARTE

1 - Uma família romana

2 - Um anjo e um filósofo

3 - Sombras domésticas

4 - Na Via Nomentana

5 -A pregação do Evangelho

6 - A visita ao cárcere

7 - Nas festas de Adriano

SEGUNDA PARTE

1 - A morte de Cneio Lucius

2 - Calúnia e sacrifício

3 - Estrada de amargura

4 - De Minturnes a Alexandria

5 - O caminho expiatório

6 - No horto de Célia

7 - Nas Esferas Espirituais

CARTA AO LEITOR

Meu amigo, Deus te conceda paz.

Se leste as páginas singelas do "Há Dois Mil Anos...", é possível que

procures aqui, a continuação das lutas intensas, vividas pelas suas

personagens reais, na arena de lutas redentoras da Terra.

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

É por esse motivo que me sinto obrigado a explicar-te alguma coisa,

com respeito ao desdobramento desta nova história.

Cinqüenta anos depois das ruínas fumegantes de Pompéia, nas

quais o Impiedoso senador Públio Lentulus se desprendia novamente do

mundo, para aferir o valor de suas dolorosas experiências terrestres, vamos

encontrá-lo, nestas páginas, sob a veste humilde dos escravos, que o seu

orgulhoso coração havia espezinhado outrora. A misericórdia do Senhor

permitia-lhe reparar, na personalidade de Nestório, os desmandos e

arbitrariedades cometidos no pretérito, quando, como homem público,

supunha guardar nas mãos vaidosas, por injustificável direito divino, todos

os poderes. Observando um homem cativo, reconhecerás, em cada traço

de seus sofrimentos, o venturoso resgate de um passado de faltas

clamorosas.

Todavia, sinto-me no dever de esclarecer-te a curiosidade, com

referência aos seus companheiros mais diretos, na nova romagem terrena,

de que este livro é um testemunho real.

Não obstante estarem na Terra, pela mesma época, os membros da

família Severus, Flávia e Marcus Lentulus, Saul e André de Gioras, Aurélia,

Sulpicio, Fúlvia e demais comparsas do mesmo drama, devo esclarecer-te

que todos esses companheiros de luta mourejavam, na ocasião, em outros

setores de sofrimentos abençoados, não comparecendo aqui, onde o

senador Públio Lentulus aparece, aos teus olhos, na indumenta de escravo,

já na idade madura, como elemento integrante de um quadro novo.

De todas as personagens do "Há Dois Mil Anos. . . ", um

contínuo aqui se encontra, junto de outras figuras do mesmo tempo, como

Policarpo, embora não relacionado nominalmente no livro anterior,

companheiro esse que, pelos laços afetivos, se lhe tornara um irmão

devotado e carinhoso, pelas mesmas lutas Políticas e sociais. A Roma de

Nero e de Vespasiano. Quero referir-me a Pompilio Crasso, aquele mesmo

irmão de destino na destruição de Jerusalém, cujo coração palpitante lhe

fora retirado do peito por Nicandro, às ordens severas de um chefe cruel e

vingativo.

Pompílio Crasso é o mesmo Helvídio Lucius destas páginas,

ressurgindo no mundo para o trabalho renovador e, aludindo a um amigo

dedicado e generoso, quero dizer-te que este livro não foi escrito de nós e

por nós, no pressuposto de descrever as nossas lutas transitórias no

mundo terrestre.

Este livro é o repositório da verdade sobre um coração sublime de

mulher, transformada em santa, cujo heroísmo divino foi uma luz acesa na

estrada de numerosos Espíritos amargurados e sofredores.

No "Há Dois Mil Anos. . ." buscávamos encarecer uma época de

luzes e sombras, onde a materialidade romana e o Cristianismo disputavam

a posse das almas, num cenário de misérias e esplendores, entre as

extremas exaltações de César e as maravilhosas edificações em Jesus-

Cristo. Ali, Públio Lentulus se movimenta num acervo de farraparias morais

e deslumbramentos transitórios; aqui, entretanto, como o escravo Nestório,

observa ele uma alma.

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

Refiro-me a Célia, figura central das páginas desta história, cujo

coração, amoroso e sábio, entendeu e aplicou todas as lições do Divino

Mestre, no transcurso doloroso de sua vida. Na seqüência dos fatos, dentro

da narrativa, seguirás os seus passos de menina e de moça, como se

observasses um anjo pairando acima de todas as contingências da Terra.

Santa pelas virtudes e pelos atos de sua existência edificante, seu

Espírito era bem o lírio nascido do lodo das paixões do mundo, para

perfumar a noite da vida terrestre, com os olores suaves das mais divinas

esperanças do Céu.

Podemos afirmar, portanto, leitor amigo, que este volume não

relaciona, de modo integral, a continuação das experiências purificadoras

do antigo senador Lentulus, nos círculos de resgate dos trabalhos

terrestres. É a história de um sublime coração feminino que se divinizou no

sacrifício e na abnegação, confiando em Jesus, nas lágrimas da sua noite

de dor e de trabalho, de reparação e de esperança. A Igreja Romana lhe

guarda, até hoje, as generosas tradições, nos seus arquivos envelhecidos,

se bem que as datas e as denominações, as descrições e apontamentos se

encontrem confusos e obscuros pelo dedo viciado dos narradores humanos.

Mas, meu irmão e meu amigo, abre estas páginas refletindo no

turbilhão de lágrimas que se represa no coração humano e pensa no

quinhão de experiências amargas que os dias transitórios da vida te

trouxerem. É possível que também tenhas amado e sofrido muito. Algumas

vezes experimentaste o sopro frio da adversidade enregelando o teu

coração. De outras, feriram-te a alma bem intencionada e sensível a calúnia

ou o desengano. Em certas circunstâncias, olhaste também o céu e

perguntaste, em silêncio, onde se encontrariam a Verdade e a Justiça,

invocando a misericórdia de Deus, em preces dolorosas. Conhecendo,

porém, que todas as dores têm uma finalidade gloriosa na redenção do teu

Espírito, lê esta história real e medita. Os exemplos de uma alma

santificada no sofrimento e na humildade, ensinar-te-ão a amar o trabalho e

as penas de cada dia; observando-lhe os martírios morais e sentindo, de

perto, a sua profunda fé, experimentarás um consolo brando, renovando as

tuas esperanças em Jesus-Cristo.

Busca entender a essência deste repositório de verdades

confortadoras e, do plano espiritual, o Espírito purificado de nossa heroína

derramará em teu coração o bálsamo consolador das esperanças sublimes.

Que aproveites do exemplo, como nós outros, nos tempos

recuados das lutas e das experiências que passaram, é o que te deseja um

irmão e servo humilde.

EMMANUEL

Pedro Leopoldo, 19 de dezembro de 1989.

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

PRIMEIRA PARTE

I - UMA FAMÍLIA ROMANA

Varando a multidão que estacionava na grande praça de Esmirna,

em clara manhã do ano 131 da nossa era, marchava um troço de escravos

jovens e atléticos, conduzindo uma liteira ricamente ataviada ao gosto da

época.

De espaço a espaço, ouviam-se as vozes dos carregadores,

exclamando :

- Deixai passar o nobre tribuno Caio Fabrícius ! Lugar para o nobre

representante de Augusto. Lugar!... Lugar!...

Desfaziam-se os pequenos grupos de populares, formados à

pressa em torno do mercado de peixes e legumes, situado no grande

logradouro, enquanto o rosto de um patrício romano surdia entre as cortinas

da liteira, com ares de enfado, a observar a turba rumorosa.

Seguindo a liteira, caminhava um homem dos seus quarenta e

cinco anos presumíveis, deixando ver nas linhas fisionômicas o perfil

israelita, tipicamente características, e um orgulho silencioso e

inconformado. A atitude humilde, todavia, evidenciava condição inferior e,

conquanto não participasse do esforço dos carregadores, adivinhava-se-lhe

no semblante contrafeito a situação dolorosa de escravo.

Respirava-se, à margem do golfo esplêndido, o ar embalsamado

que os ventos do Egeu traziam do grande Arquipélago.

O movimento da cidade crescera de muito naqueles dias

inolvidáveis, seqüentes à última guerra civil que devastara a Judéia para

sempre . Milhares de peregrinos invadiam-na por todos os flancos, fugindo

aos quadros terrificantes da Palestina, assolada pelos flagelos da última

revolução aniquiladora dos derradeiros laços de coesão das tribos

laboriosas de Israel, desterrando-as da pátria.

Remanescentes de antigas autoridades e de numerosos

plutocratas de Jerusalém, de Cesareia, de Betel e de Tiberíades, ali se

acotovelam famélicos, por subtraírem-se aos tormentos do cativeiro, após

as vitórias de Júlio Sexto Severo sobre os fanáticos partidários do

famoso Bar-Coziba.

Vencendo os movimentos instintivos da turba, a liteira do tribuno

parou à frente de soberbo edifício, no qual os estilos grego e romano se

casavam harmoniosamente .

Ali estacionando, foi logo anunciado no interior, onde um patrício

relativamente jovem, aparentando mais ou menos quarenta anos, o

esperava com evidente interesse.

- Por Júpiter! - exclamou Fabrícius, abraçando o amigo Helvídio

Lucius - não supunha encontrar-te nessa plenitude de robustez e elegância,

de fazer inveja aos próprios deuses!

- Ora, ora! - replicou o interpelado, em cujo sorriso se podia ler a

satisfação que lhe causavam aquelas expansões carinhosas e amigas - são

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

milagres dos nossos tempos. Aliás, se há quem mereça tais gabos, és tu, a

quem Adônis sempre rendeu homenagens.

Neste ínterim, um escravo ainda moço trazia a bandeja de prata,

onde se alinhavam pequenos vasos de perfume e coroas da época,

adornadas de rosas.

Helvídio Lucius serviu-se cuidadosamente de uma delas,

enquanto o visitante agradecia com leve sinal de cabeça.

- Mas, ouve! - continuava o anfitrião sem dissimular o

contentamento que lhe causava a visita - há bastante tempo aguardamos

tua chegada, de maneira a partirmos para Roma com a brevidade possível.

Há dois dias que a galera está à nossa disposição, dependendo a partida tão

somente da tua vinda!...

E batendo-lhe amistosamente no ombro, rematava :

- Que demora foi essa?.

- Bem sabes - explicou Fabrícius – que sumariar os estragos da

última revolução era tarefa assaz difícil para realizar em poucas semanas,

razão pela qual, apesar da demora a que te referes, não levo ao Governo

Imperial um relatório minucioso e completo, mas apenas alguns dados

gerais.

- E a propósito da revolução da Judéia, qual a tua impressão

pessoal dos acontecimentos?

Caio Fabrícius esboçou um leve sorriso, acrescentando com

amabilidade:

- Antes de dar a minha opinião, sei que a tua é a de quem encarou

os fatos com o maior otimismo .

- Ora, meu amigo - disse Helvídio, como a justificar-se -, é verdade

que a venda de toda a minha criação de cavalos da Induméia, para as forças

em operações, me consolidou as finanças, dispensando-me de maiores

cuidados quanto ao futuro da família; mas isso não impede considere a

penosa situação desses milhares de criaturas que se arruinaram para

sempre. Aliás, se a sorte me favoreceu no plano de minhas necessidades

materiais, devo-o principalmente à intervenção de meu sogro, junto do

prefeito Lólio Tirbico.

- O censor Fábio Cornélio agiu assim tão decisivamente, a teu

favor? - perguntou Fabrícius, algo admirado.

- Sim.

- Está, bem - disse Caio já despreocupado -, eu nunca entendi

patavina da criação de cavalos da Induméia ou de bestas da Ligúria. Aliás, o

êxito dos teus negócios não altera a nossa velha e cordial amizade . Por

Pólux ! . . . Não há necessidade de tantas explicações nesse sentido.

E depois de sorver um trago de Falerno solicitamente servido,

continuou, como que analisando as próprias reminiscências mais íntimas :

- O estado da Província é lastimável e, na minha opinião, os judeus

nunca mais encontrarão na Palestina o benefício consolador de um lar e de

uma pátria. Em diversos recontros, morreram mais de cento e oitenta mil

israelitas, segundo o conhecimento exato da situação. Foram destruídos

quase todos os burgos. Na zona de Betel a miséria atingiu proporções

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

inauditas. Famílias inteiras, desamparadas e indefesas, foram covardemente

assassinadas. Enquanto a fome e a desolação ofereceram a ruína geral,

chega também a peste, oriunda da exalação dos cadáveres insepultos.

Nunca supus rever a Judéia em tais condições...

- Mas, a quem deveremos inculpar do que ocorre? O governo de

Adriano não se tem caracterizado pela retidão e pela justiça? – perguntou

Helvídio Lucius com grande interesse.

- Não posso afirmá-lo com certeza – revidou Fabrícius, atencioso -;

todavia, considero pessoalmente que o grande culpado foi Ticneio Rufus,

legado pró-pretor da Província. Sua incapacidade política foi manifesta

em todo o desenvolvimento dos fatos. A reedificação de Jerusalém com o

nome de Elia Capitolina, obedecendo aos caprichos do Imperador,

apavora os israelitas, desejosos todos de conservar as tradições da cidade

santa. O momento requeria um homem de qualidades excepcionais, à frente

dos negócios da Judéia. Entretanto, Ticneio Rufus não fez mais que

exacerbar o ânimo popular com imposições religiosas de todos os matizes,

contrariando a clássica tradição de tolerância do Império nos territórios

conquistados.

Helvídio Lucius ouvia o amigo, com singular interesse, mas,

como se desejasse afastar de si mesmo alguma reminiscência amarga,

murmurou :

- Fabrícius, meu caro, tua descrição da Judéia me apavora o

espírito... Os anos que passamos na Ásia Menor me devolvem a Roma com o

coração apreensivo. Em toda a Palestina campeiam superstições totalmente

contrárias às nossas tradições mais respeitáveis, e essas crenças estranhas

invadem o próprio ambiente da família, dificultando-nos a tarefa de instituir a

harmonia doméstica...

- Já sei - replicou o amigo solicitamente -, queres aludir, com

certeza, ao Cristianismo, com as suas inovações e os seus asseclas.

Mas . . . - ajuntou Caio, evidenciando uma atenção mais íntima -,

acaso Alba Lucínia teria deixado de ser a segurança vestalina de tua casa?

Seria possível ?

- Não - replicou Helvídio ansioso por se fazer compreendido -,

não se trata de minha mulher, sentinela avançada de todos os feitos da

minha vida, há longos anos, mas de uma das filhas que, contrariamente a

todas previsões, imbuiu-se de semelhantes princípios, causando-nos os

mais sérios desgostos.

- Ah ! lembro-me de Helvídia e de Célia, que, em meninas, eram bem

dois sorrisos dos deuses na tua casa. Mas tão jovens e dadas, assim, a

cogitações filosóficas?

- Helvídia, a mais velha, não se impregnou de tais bruxarias; mas a

nossa pobre Célia parece bastante prejudicada pelas superstições

orientais, tanto que, regressando a Roma, tenciono deixá-la em companhia

de meu pai, por algum tempo . Suas lições de virtude doméstica hão-de

renovar-lhe o coração, segundo cremos.

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

- É verdade - concordou Fabrícius -, o venerando Cneio Lucius

reformaria para as tradições romanas os sentimentos mais bárbaros de

nossas Províncias.

Fizera-se ligeira pausa na conversação, enquanto Caio tamborilava

com os dedos, dando a entender a sua preocupação, como se evocasse

alguma dolorosa lembrança.

- Helvídio - murmurou o tribuno fraternalmente -, teu regresso a

Roma é de causar apreensões aos teus verdadeiros amigos. Recordando teu

pai, lembro-me instintivamente de Silano, o pequeno enjeitado que ele

chegou quase a adotar oficialmente como próprio filho, desejoso de libertarte

da calúnia a ti imputada no albor da mocidade..

- Sim - disse o anfitrião, como se houvera repentinamente

desgertado -, ainda bem que não desconheces ser caluniosa a acusação

que pesou sobre mim. Aliás, meu pai não ignora isso.

- Apesar de tudo, teu venerável genitor não hesitou em cumular a

criança, a ele encaminhada, com o máximo de carinhos...

Depois de passar nervosamente a mão pela fronte, Helvídio

Lucius acentuou:

- E Silano ? . . Sabes o que é feito dele ?

- As últimas informações davam-no como incorporado às nossas

falanges que mantêm o domínio das Gálias, como simples soldado do

exército.

- As vezes - ajuntou Helvídio preocupado tenho pensado na sorte

desse rapaz, pupilo da generosidade de meu pai, desde os tempos de minha

juventude. Mas, que fazer? Desde que me casei, tudo fiz por trazê-lo à

nossa companhia. Minha propriedade da Induméia poderia proporcionarlhe

uma existência simples e liberta de maiores cuidados, sob as minhas

vistas atentas; todavia, Alba Lucínia se opôs terminantemente aos meus

projetos, não só recordando os comentários caluniosos de que fui alvo no

passado, como também alegando seus direitos exclusivos à minha afeição,

pelo que, fui compelido a conformar-me, levando em conta as nobres

qualidades da sua alma generosa.

Bem sabes que minha esposa deve receber as minhas atenções

mais respeitosas. Não tenho remédio senão aceitar de bom grado as suas

afetuosas imposições .

- Helvídio, bom amigo - exclamou Fabrícius, demonstrando

prudência -, não devo nem posso interferir na tua vida íntima. Problemas

há, na vida, que somente os cônjuges podem solucionar, entre si, na

sagrada intimidade do lar; mas, não é apenas pelo caso de Silano que me

sinto apreensivo, relativamente ao teu regresso.

E fixando o amigo bem nos olhos, rematou:

- Lembras-te de Cláudia Sabina?. .

- Sim . . . - respondeu vagamente .

- Não sei se estás devidamente informado a seu respeito.

Cláudia é hoje a esposa de Lólio Úrbico, o prefeito dos pretorianos. Não

deves ignorar que esse homem é a personalidade do dia, como depositário

da máxima confiança do Imperador.

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

Helvídio Lucius passou a mão pela fronte, como se desejasse

afugentar uma penosa recordação do passado, revidando, afinal, para

tranqüilidade de si mesmo :

- Não desejo exumar o passado, visto ser hoje um outro

homem; mas, se houver necessidade de ser prestigiado na Capital do

Império, não podemos esquecer, igualmente, que meu sogro é pessoa de

toda a confiança, não só do prefeito a que aludes, como de todas as

autoridades administrativas.

- Bem o sei, mas não ignoro também que o coração humano tem

escaninhos misteriosos...

Não acredito que Cláudia, hoje elevada às esferas da mais alta

aristocracia, pelos caprichos do destino, haja olvidado a humilhação do seu

amor violento de plebéia, espezinhado em outros tempos.

- Sim - confirmou Helvídio Lucius com os olhos parados no abismo

de suas recordações mais íntimas -, muitas vezes tenho lamentado o haver

nutrido em seu coração uma afetividade tão intensa; mas, que fazer? A

juventude está sujeita a caprichos numerosos e, a maior parte das vezes,

não há advertência que possa romper o véu da cegueira. . .

- E estarás hoje menos moço para que te sintas completamente

livre dos caprichos multiplicados da nossa época?

O interpelado compreendeu todo o alcance daquelas observações

sábias e prudentes, e como se não lhe prouvesse o exame das

circunstâncias e dos fatos, cuja lembrança penosa o atormentaria, replicou

sem perder o aparente bom humor, embora os olhos evidenciassem uma

preocupação amargurosa:

- Caio, meu bom amigo, pelas barbas de Júpiter! não me faças

voltar ao pélago escuro do passado. Desde que chegaste, nada me

disseste além de assuntos penosos e sombrios. De início, é a miséria da

Judéia, de arrepiar os cabelos, com os seus quadros de desolação e ruína

e, depois, eis-te voltado para o passado escabroso, como se não nos

bastassem as atuais amarguras.. . Fala-me antes de algo que me consolide o

repouso íntimo . Embora não saiba explicar o motivo, tenho o coração

apreensivo quanto ao futuro. A máquina de intrigas da sociedade romana

aborrece-me o espírito, que nunca encontrou ensejos de lhe fugir ao

ambiente detestável. Meu regresso a Roma inquina-se de perspectivas

dolorosas, embora não ouse confessá-lo!...

Fabrícius ouviu-o, atento e compungido. As palavras do amigo

denunciavam o profundo temor de retornar ao passado tão cheio de

aventuras.

Aquela atitude súplice atestava que a recordação dos tempos idos

ainda lhe palpitava no peito, apesar de todos os esforços para esquecer.

Reprimindo os próprios receios, falou, então, afetuosamente :

- Pois bem, não falaremos mais nisso.

E acentuando a alegria que lhe causava aquele encontro, continuou

comovidamente :

- Então, poderia acaso esquecer-me de algo que me pedisses?

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

Sem mais delonga, encaminhou-se para o átrio onde os serviçais

de confiança lhe esperavam as ordens, regressando à sala acompanhado

pelo desconhecido que lhe seguira a liteira, na atitude humilde de escravo.

Helvídio Lucius surpreendeu-se, ao ver a personagem interessante

que lhe era apresentada.

Identificara, imediatamente, a sua condição de servo, mas o

espanto lhe provinha da profunda simpatia que aquela figura lhe inspirava.

Seus traços de israelita eram iniludíveis, porém, no olhar havia

uma vibração de orgulho nobre, temperado de singular humildade. Na

fronte larga, notavam-se cãs precoces, se bem que o físico denunciasse a

pletora de energias orgânicas da idade madura. O aspecto geral, contudo,

era o de um homem profundamente desencantado da vida. No rosto,

percebia-se o sinal de macerações e sofrimentos indefiníveis,

impressões dolorosas, aliás compensadas pelo fulgor enérgico do olhar,

transparente de serenidade.

- Eis a surpresa - frisou Caio Fabrícius alegremente : - comprei,

como lembrança, esta preciosidade, na feira de Terebinto, quando alguns de

nossos companheiros liquidavam o espólio dos Veneidos .

Helvídio Lucius parecia não ouvir, como que procurando

mergulhar fundo naquela figura curiosa, ao alcance de seus olhos, e cuja

simpatia lhe impressionava as fibras mais sensíveis e mais íntimas.

- Admiras-te ? - insistiu Caio desejoso de ouvir as suas apreciações

diretas e francas. - Quererias porventura, que te trouxesse um Hércules

formidando? Preferi lisonjear-te com um raro exemplar de sabedoria.

Helvídio agradeceu com um sinal expressivo, acercando-se do

escravo silencioso, com um leve sorriso .

- Como te chamas? - perguntou solícito.

- Nestório.

- Onde nasceste ? Na Grécia ?

- Sim - respondeu o interpelado com um doloroso sorriso.

- Como pudeste alcançar Terebinto ?

- Senhor, sou de origem judia, apesar de nascido em Efeso . Meus

antepassados transportaram-se à Jônia, há alguns decênios, em virtude das

guerras civis da Palestina. Criei-me nas margens do Egeu, onde mais

tarde constituí família. A sorte, porém, não me foi favorável. Tendo perdido

minha companheira, prematuramente, devido a grandes desgostos, em

breve, sob o guante de perseguições implacáveis, fui escravizado por

ilustres romanos, que me conduziram ao antigo país de meus

ascendentes.

- E foi lá que a revolução te surpreendeu?

- Sim .

- Onde te encontravas?

- Nas proximidades de Jerusalém.

- Falaste de tua família. Tinhas apenas mulher ?

- Não, senhor. Tinha também um filho.

- Também morreu ?

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

- Ignoro. Meu pobre filho, ainda criança, caiu, - como seu pai, na

dolorosa noite do cativeiro. Apartado de mim, que o vi partir com o coração

lacerado de dor e de saudade. Foi vendido a poderosos mercadores do sul

da Palestina.

Helvídio Lucius olhou para Fabrícius, como a expressar a sua

admiração pelas respostas desassombradas do desconhecido, continuando,

porém, a interrogar:

- A quem servias em Jerusalém ?

- A Calius Flavius.

- Conheci-o de nome. Qual o destino do teu senhor...

- Foi dos primeiros a morrer nos choques havidos nos arredores

da cidade, entre os legionários de Ticneio Rufus e os reforços judeus

chegados de Betel.

- Também combateste?

- Senhor, não me cumpria combater senão pelo desempenho das

obrigações devidas àquele que, conservando-me cativo aos olhos do

mundo, há muito me havia restituído à liberdade, junto de seu magnânimo

coração. Minhas armas deviam ser as da assistência necessária ao seu

espírito leal e justo. Calius Flavius não era para mim o verdugo, mas o amigo

e protetor de todos os momentos. Para meu consolo íntimo, pude provar-lhe

a minha dedicação, quando lhe fechei os olhos no alento derradeiro.

- Por Júpiter! - exclamou Helvídio, dirigindo-se em alta voz ao amigo

- é a primeira vez que ouço um escravo abençoar o senhor.

- Não é só isso - respondeu Caio Fabrícius bem humorado,

enquanto o servo os observava ereto e digno -, Nestório é a

personificação do bom-senso. Apesar dos seus laços de sangue com a Ásia

Menor, sua cultura acerca do Império é das mais vastas e notáveis.

- Será possível? - tornou Helvídio admirado.

- Conhece a História Romana tão bem quanto um de nós.

- Mas chegou a viver na capital do mundo?

- Não. Ao que ele diz, somente a conhece por tradição.

Já convidado pelos dois patrícios, sentou-se o escravo para

demonstrar os seus conhecimentos.

Com desembaraço, falou das lendas encantadoras que envolviam o

nascimento da cidade famosa, entre os vales da Etrúria e as deliciosas

paisagens da Campânia. Rômulo e Remo, a lembrança de Acca Larentia, o

rapto das Sabinas, eram imagens que, na linguagem de um escravo,

broslavam-se de novos e interessantes matizes. Em seguida, passou a

explanar o extraordinário desenvolvimento econômico e político da cidade.

A história de Roma não tinha segredos para o seu intelecto. Remontando à

época de Tarquínio Prisco, falou de suas construções maravilhosas e

gigantescas, detendo-se, em particular, na célebre rede de esgotos, a

caminho das águas lodosas do Tibre. Lembrou a figura de Sérvio Túlio,

dividindo a população romana em classes e centúrias. Numa Pompílio,

Menênio Agripa, os Gracos, Sérgio Catilina, Cipião Nasica e todos os

vultos famosos da República foram recordados na sua exposição, onde os

conceitos cronológicos se alinhavam com admirável exatidão.

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

Os deuses da cidade, os costumes, conquistas, generais intrépidos e

valorosos, eram com detalhes indelevelmente gravados na sua memória.

Seguindo o curso dos seus conhecimentos, rememorou o Império nos seus

primórdios, salientando as suas realizações portentosas, desde o faustoso

brilho da Corte de Augusto. As magnificências dos Césares, trabalhadas

pela sua dialética fluente, apresentavam novos coloridos históricos, em vista

das considerações psicológicas, acerca de todas as situações políticas e

sociais.

Por muito tempo falara Nestório dos seus conhecimentos do

passado, quando Helvídio Lucius - sinceramente surpreendido o interpelou

:

- Onde conseguiste essa cultura, radicada em nossas mais remotas

tradições?. .

- Senhor, tenho manuseado todos os livros da educação

romana, ao meu alcance, desde moço. Além disso, sem que me possa

explicar a razão, a Capital do Império exerce sobre mim a mais singular de

todas as seduções.

- Ora - ajuntou Caio Fabrícius satisfeito - Nestório tanto conhece

um livro de Salústio, como uma página de Petrônio. Os autores gregos,

igualmente, não têm segredos para ele. Considerada, porém, a sua

predileção pelos motivos romanos, quero acreditar haja ele nascido ao pé

de nossas portas .

O escravo sorriu levemente, enquanto Helvídio Lucius esclarecia:

- Semelhantes conhecimentos evidenciam um interesse

injustificável da parte de um cativo.

E depois de uma pausa, como se estivesse arquitetando um

projeto íntimo, continuou a falar, dirigindo-se ao amigo :

- Meu caro, louvo-te a lembrança. Minha grande preocupação,

no momento, era obter um servo culto, que pudesse incumbir-se de

enriquecer a educação de minhas filhas, auxiliando-me, simultaneamente, no

arranjo dos processos do Estado, a que agora serei compelido pela força do

cargo.

O anfitrião mal havia concluído o seu agradecimento, quando

surgiram na sala a esposa e as filhas, num gracioso cromo familiar.

Alba Lucínia, que ainda não atingira os quarenta anos, conservava

no rosto os mais belos traços da juventude, a iluminarem o seu perfil de

madona. Junto das filhas, duas primaveras risonhas, seu aspecto de

mocidade ganhava um todo de nobres expressões vestalinas, confundindose

com as duas, como se lhes fora irmã mais velha, ao invés de mãe

extremosa e afável.

Helvídia e Célia, porém, embora a semelhança profunda dos traços

fisionômicos, deixavam transparecer, espontaneamente, a diversidade de

temperamentos e pendores espirituais. A primeira entremostrava nos

olhos uma inquietação própria da idade, indiciando os sonhos

febricitantes que lhe povoavam a alma, ao passo que a segunda trazia no

olhar uma reflexão serena e profunda, como se o espírito de mocidade

houvera envelhecido prematuramente .

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

Todas as três exibiam, graciosamente, os delicados enfeites do

"peplum" em sua feição doméstica, presos os cabelos em preciosas rédeas

de ouro, ao mesmo tempo que ofereciam a Caio Fabrícius um sorriso de

acolhimento.

- Ainda bem - murmurou o hóspede com vivacidade própria do

seu gênio expansivo, avançando para a dona da casa -, o meu grande

Helvídio encontrou o altar das Três Graças, entronizando-as egoisticamente

no lar. Aliás, aqui estamos nas plagas do Egeu, berço de todas as

divindades!...

Suas saudações foram recebidas com geral agrado.

Não somente Alba Lucínia, mas também as filhas se regozijavam

com a presença do carinhoso amigo da família, de muitos anos.

Em breve, todo o grupo se animava em palestra amena e sadia. Era

o burburinho das notícias de Roma, de mistura com as impressões da

Induméia e de outras regiões da Palestina, onde Helvídio Lucius estagiara

junto da família, enfileirando-se as opiniões encantadoras e íntimas, acerca

dos pequeninos nadas de cada dia.

Em dado instante, o dono da casa chamou a atenção da

esposa para a figura de Nestório, encolhido a um canto da sala,

acrescentando entusiasticamente :

- Lucínia, eis o régio presente que Caio nos trouxe de Terebinto.

- Um escravo ? ! . . - perguntou a senhora com entonação de

piedade .

- Sim. Um escravo precioso. Sua capacidade mnemônica é um dos

fenômenos mais interessantes que tenho observado em toda a vida. Imagina

que tem dentro do cérebro a longa história de Roma, sem omitir o mais

ligeiro detalhe. Conhece nossas tradições e costumes familiares como se

houvera nascido no Palatino. Desejo sinceramente tomá-lo a meu serviço

particular, utilizando-o ao mesmo tempo no apuro da instrução de nossas

filhas.

Alba Lucínia fitou o desconhecido tomada de surpresa e simpatia.

Por sua vez, as duas jovens o contemplavam admiradas .

Saindo, contudo, da sua estupefação, a nobre matrona ponderou

refletidamente:

- Helvídio, sempre considerei a missão doméstica como das

mais delicadas de nossa vida.

Se esse homem deu provas dos seus conhecimentos, tê-las-ia dado

também de suas virtudes para que venhamos a utilizá-lo, confiadamente, na

educação de nossas filhas ?

O marido sentiu-se embaraçado para responder à pergunta tão

sensata e oportuna, mas, em seu auxílio veio a palavra firme de Caio, que

esclareceu:

- Eu vo-la dou, minha senhora: se Helvídio pode abonar-lhe a

sabedoria, posso eu testificar as suas nobres qualidades morais.

Alba Lucínia pareceu meditar por momentos, acrescentando,

afinal, com um sorriso satisfeito:

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

- Está bem, aceitaremos a garantia da sua palavra. Em seguida, a

graciosa dama fitou Nestório com caridade e brandura, compreendendo

que, se o seu doloroso aspecto era, incontestavelmente, o de um escravo,

os olhos revelavam uma serenidade superior, saturada de estranha firmeza.

Depois de um minuto de observação acurada e silenciosa, voltouse

para o marido dizendo-lhe algumas palavras em voz quase

imperceptível, como se pleiteasse a sua aprovação, antes de dar

cumprimento a algum de seus desejos. Helvídio, por sua vez, sorriu

ligeiramente, dando um sinal de aquiescência com a cabeça.

Voltando-se, então, para os demais, a nobre senhora falou

comovidamente:

- Caio Fabrícius, eu e meu marido resolvemos que nossas filhas

venham a utilizar a cooperação intelectual de um homem livre.

E, tomando de minúscula varinha que descansava no bojo de

um jarrão oriental, a um canto da sala, tocou levemente a fronte do escravo,

obedecendo às cerimônias familiares, com as quais o senhor libertava os

cativos na Roma Imperial, exclamando :

- Nestório, nossa casa te declara livre para sempre ! . .

Filhas - continuou a dizer sensibilizada, dirigindo-se às duas jovens

-, nunca humilheis a liberdade deste homem, que terá toda a independência

para cumprir os seus deveres!...

Caio e Helvício entreolharam-se satisfeitos . Enquanto Helvídia

cumprimentava de longe o liberto, com um leve aceno de cabeça, altiva,

Célia aproximou-se do alforriado, que tinha os olhos úmidos de lágrimas e

estendeu-lhe a mão aristocrática e delicada, numa saudação sincera e

carinhosa.

Seus olhos encontravam o olhar do ex-escravo, numa onda de afeto e

atração indefiníveis. O liberto, visivelmente emocionado, inclinou-se e beijou

reverentemente a mão generosa que a jovem patrícia lhe oferecia.

A cena comovedora perdurava por momentos, quando, com

surpresa geral, Nestório se levantou do recanto em que se achava e,

caminhando até o centro da sala, ajoelhou-se ante os seus benfeitores,

osculando humildemente os pés de Alba Lucínia.

II - UM ANJO E UM FILÓSOFO

O palácio residencial do prefeito Lólio Úrbico demorava numa das

mais belas eminências da colina em que se erguia o Capitólio.

A fortuna do seu dono era das mais opulentas da cidade, e a sua

situação política era das mais invejáveis, pelo prestígio e respectivos

privilégios.

Embora descendente de antigas famílias do patriciado, não

recebera vultosa herança dos avoengos mais ilustres e todavia, bem cedo o

Imperador tomara-o a seu cuidado.

Dele fizera, a princípio, um tribuno militar cheio de esperanças

e perspectivas promissoras, para promovê-lo em seguida aos postos mais

eminentes. Transformara-o, depois, no homem de sua inteira confiança. Fez50

ANOS DEPOIS Emmanuel

lhe doações valiosas em propriedades e títulos de nobreza, espantando-se,

porém, a aristocracia da cidade, quando Adriano lhe recomendou o

casamento com Cláudia Sabina, plebéia de talento invulgar e de rara

beleza física, que conseguira, com o seu favoritismo, as mais elevadas

graças da Corte.

Lólio Úrbico não vacilou em obedecer à vontade do seu protetor e

maior amigo.

Casara-se, displicentemente, como se no matrimônio devesse

encontrar uma salvaguarda total de todos os seus interesses particulares,

prosseguindo, todavia, em sua vida de aventuras alegres, nas diversas

campanhas de sua autoridade militar, fosse na Capital do Império ou nas

cidades de suas Províncias numerosas.

Por outro lado, a esposa, agora prestigiada pelo seu nome,

conseguia no seio da nobreza romana um dos lugares de maior evidência.

Pouco inclinada às preocupações de matrona, não tolerava o ambiente

doméstico, entregando-se aos desvarios da vida mundana, ora seguindo o

plano delineado pelos amigos, ora organizando festivais célebres, afamados

pela visão artística e pela discreta licenciosidade que os caracterizava.

A sociedade romana, em marcha franca para a decadência dos

antigos costumes familiares, adorava-lhe as maneiras livres, enquanto o

espírito mundano do Imperador e a volúpia dos áulicos se regozijavam com

os seus empreendimentos, no turbilhão das iniciativas alegres, nos

ambientes sociais mais elevados.

Cláudia Sabina conseguira um dos postos mais avançados nas

rodas elegantes e frívolas. Sabendo transformar a inteligência em arma

perigosa, valia-se da sua posição para aumentar, cada vez mais, o próprio

prestígio, elevando, às culminâncias do meio em que vivia, criaturas de

nobreza improvisada, para satisfazer facilmente os seus caprichos.

Assim que, em torno de seus preciosos dotes de beleza física,

borboleteavam todas as atenções e todos os desvelos.

Entardece.

No elegante palácio, próximo do templo de Júpiter Capitolino, paira

um ambiente pesado de solidão e quietude .

Recostada num divã do terraço, vamos encontrar Cláudia Sabina

em palestra reservada com uma mulher do povo, em atitudes de grande

intimidade.

- Hatéria - dizia ela, interessada e discretamente -, mandei chamarte

a fim de aproveitar a tua velha dedicação numa incumbência.

- Ordenai - respondia a mulher de aspecto humilde, com o

artificialismo de suas maneiras aparentemente singelas. - Estou sempre

pronta a cumprir as vossas ordens, sejam quais forem.

- Estarias disposta a servir-me cegamente, em outra casa ?

- Sem dúvida .

- Pois bem, eu não tenho vivido senão para vingar-me de terríveis

humilhações do passado.

- Senhora, lembro-me das vossas amarguras, no seio da plebe .

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

- Ainda bem que conheceste os meus sofrimentos. Escuta -

continuava Cláudia Sabina baixando a voz intencionalmente -, sabes quem

são os Lucius, em Roma?

- Quem não conhece o velho Cneio, senhora? Antes de me falardes

de vossas mágoas, devo esclarecer que sei também dos vossos desgostos,

devidos à ingratidão do filho.

- Então, nada mais preciso dizer-te a respeito do que me compete

fazer agora. Talvez ignores que Helvídio Lucius e sua família chegarão a

esta cidade dentro de poucos dias, de regresso do Oriente. Tenciono

colocar-te no serviço de sua mulher, a fim de poderes auxiliar a execução

integral dos meus planos.

- Ordenai e obedecerei cegamente .

- Conheces Túlia Cevina?

- A mulher do tribuno Máximo Cunctator?

- Ela mesma. Ao que fui informada, Túlia Cevina foi encarregada,

por sua antiga companheira de infância, de arranjar duas ou três servas de

inteira confiança e habilitadas a satisfazer os imperativos da atualidade

romana. Assim, importa que te apresentes, quanto antes, como candidata a

esse cargo.

- Como ? Achais provável que a esposa do tribuno venha a

aceitar o meu simples oferecimento, sem referência que me recomende ao

seu critério ?

- Precisamos muita ponderação neste sentido. Túlia jamais deverá

saber que és pessoa da minha intimidade. Poderias apresentar referências

especiais de Grisótemis ou de Musônia, minhas amigas mais íntimas;

todavia, essa medida não ficaria bem, igualmente. Suscitaria, talvez,

qualquer suspeita, quando eu tivesse mais necessidade de tua intervenção

ou de teus serviços.

- Que fazermos, então?

- Antes de tudo, é necessário te capacites da utilidade dos teus

próprios recursos, em benefício dos nossos projetos. A aquisição de uma

serva humilde é coisa preciosa e rara. Apresenta-te a Túlia com a mais

absoluta singeleza. Fala-lhe das tuas necessidades, explica-lhe os teus

bons desejos. Tenho quase certeza de que bastará isso para vencermos

nossos primeiros passos. Em seguida, conforme espero, serás admitida ao

ambiente doméstico de Alba Lucínia, a usurpadora da minha ventura. Servila-

ás com humildade, submissão e devotamento até conquistar-lhe

confiança absoluta. Não precisarás procurar-me amiúde para não despertar

suspeitas em torno de nossas combinações . Virás a esta casa um dia em

cada mês, a fim de estabelecermos os acordos necessários. A princípio,

estudarás o ambiente e me cientificarás de todas as novidades e

descobertas da vida íntima do casal. Mais tarde, então, veremos a natureza

dos serviços a executar.

Posso contar com a tua dedicação e com o teu silêncio?

- Estou inteiramente às ordens e cumprirei as vossas

determinações com absoluta fidelidade.

- Confio nos teus esforços.

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

E, assim dizendo, Cláudia Sabina entregou à comparsa algumas

centenas de sestércios, em penhor de mútuos compromissos.

Hatéria guardou o preço da primeira combinação, avidamente,

lançando um olhar cúpido à bolsa e exclamando atenciosa:

- Podeis estar certa de que serei vigilante, humilde e discreta.

Caíam as sombras da noite sobre os Montes Albanos, mas a

emissária de Cláudia procurou Túlia Cevina, daí a algumas horas, para os

fins conhecidos.

A esposa do tribuno Máximo Cunctator, patrícia de coração

bondoso e afável, recebeu aquela mulher do povo, com generosidade e

doçura. As solicitações insistentes de Hatéria confundiam-na. Havia

comentado o pedido de sua amiga Alba Lucínia num círculo reduzidíssimo

de amizades mais íntimas; entretanto, aquela serva desconhecida não lhe

trazia recomendação alguma dos amigos com quem se entendera a respeito

. Atribuiu, porém, o fato à tagarelice de alguma escrava que houvesse

conhecido o assunto, indiretamente, através de qualquer palestra

despreocupada.

A humildade e singeleza de Hatéria pareceram-lhe adoráveis.

Suas maneiras revelavam extraordinária capacidade de submissão,

desvelada e carinhosa.

Túlia Cevina aceitou-a e, apiedada da sua situação, recolheu-a

naquela mesma noite, acomodando-a entre as suas fâmulas.

Daí a dias, a Porta de Óstia apresentava singular movimento.

Luxuosas viaturas encaminhavam-se para o porto, onde a galera dos

nossos conhecidos já havia ancorado.

Nas edificações da praia ensolarada, estalavam os ditos alegres e

carinhosos. Uma chusma de amigos e de representações sociais e políticas

vinha receber Helvídio e Caio, num dilúvio de abraços carinhosos.

Lólio Úrbico e a esposa chegavam, igualmente, ao lado de Fábio

Cornélio e sua mulher Júlia Spinter, velha patrícia, conhecida por suas

tradições de orgulhosa sinceridade. Túlia Cevina e Máximo Cunctator lá se

encontravam, também, ansiosos pelo amplexo fraternal dos amigos, que,

por largos anos, se haviam ausentado. Numerosos parentes e afeiçoados

disputavam, entre si, o instante de estreitar nos braços amigos os

queridos recém-chegados, mas, dentre toda a multidão, destacava-se o vulto

venerando de Cneio Lucius, aureolado pelos cabelos brancos, que as

penosas experiências da vida haviam santificado. Uma atmosfera de amor e

veneração fazia-se em torno da sua personalidade vibrante de cultura e

generosidade, que setenta e cinco anos de lutas não conseguiram empanar.

A sociedade romana havia seguido o curso de todos os seus passos,

conhecendo, de longe, as suas tradições de nobreza e lealdade e

respeitando nela um dos mais sagrados expoentes da educação antiga,

cheia da beleza de Roma, em seus princípios mais austeros e mais simples.

Cneio Lucius soubera desprezar todas as posições de domínio,

compreendendo que o espírito do militarismo operava a decadência do

Império, esquivando-se a todas as situações materiais de evidência, de

modo a conservar o ascendente espiritual que lhe competia. No acervo dos

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

seus serviços à coletividade, contavam-se as providências desenvolvidas

pelo Governo Imperial a favor dos escravos que ensinavam as primeiras

letras aos filhos de seus senhores, além de muitas outras obras de

benemerência social, a prol dos mais pobres e dos mais humildes, a quem a

sorte não favorecera.

Seu nome era respeitado, não somente nos círculos aristocráticos do

Palatino, mas também na Suburra, onde se acotovelavam as famílias

anônimas e desventuradas.

Naquela manhã, o rosto do velho patrício deixava entrever o júbilo

sereno que lhe palpitava na alma .

Estreitou os filhos longamente de encontro ao coração, chorando

de alegria ao abraçá-los; osculou as netas com paternal contentamento,

mas, enquanto as mais festivas saudações eram trocadas entre todos no

turbilhão de expressivas demonstrações de afeto e carinho, Cneio Lucius

notou que Lólio Úrbico contemplava, com insistência, o perfil de sua nora,

enquanto Cláudia Sabina, fingindo absoluto olvido do passado, concentrava

a sua atenção em Helvídio, em furtivos olhares que lhe diziam tudo à

experiência do coração, cansado de bater entre os caprichosos desenganos

do mundo. Nestório, por sua vez, desembarcado em Óstia, por satisfazer velho

sonho, qual o de conhecer a cidade célebre e poderosa, sentia estranhas

comoções a lhe vibrarem no íntimo, como se estivesse a rever lugares

amigos e queridos. Guardava a convicção de que o panorama, agora

desdobrado aos seus olhos ansiosos, lhe era familiar, dos mais remotos

tempos. Não podia precisar a cronologia de suas recordações, mas

conservava a certeza de que, por processo misterioso, Roma estava inteira

na tela de suas mais entranhadas reminiscências .

Naquele mesmo dia, enquanto Alba Lucínia e as filhas se retiravam

para a cidade, ao lado de Fábio Cornélio e de sua mulher, Helvídio Lucius

tomava lugar ao lado do velho genitor, encaminhando-se ao perímetro

urbano, sem observarem as horas ou as perspectivas suaves do caminho,

plenamente mergulhados, como se encontravam, em suas confidências mais

íntimas.

Helvídio confiou ao pai todas as impressões que trazia da Ásia

Menor, rememorando cenas ou evocando carinhosas lembranças,

salientando, porém, as suas intensas preocupações morais a respeito da

filha, cujos conhecimentos prematuros em matéria de religião e filosofia o

assombravam, desde que, acidentalmente, se dera ao prazer de ouvir os

escravos da casa, sobre perigosas superstições da crença nova que invadia

os setores do Império, em todas as direções. Esclareceu, assim, ante o

delicado e generoso mentor espiritual de sua existência, toda a situação

familiar, apresentando-lhe os pormenores e circunstâncias, em torno do

assunto.

O velho Cneio Lucius, depois de ouvi-lo atentamente, prometeu-lhe

auxílio moral, no que se referia à questão, a cuja solução o seu

experimentado tirocínio educativo prestaria o mais proveitoso concurso.

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

Em poucos dias, instalavam-se os nossos amigos na sua magnífica

residência do Palatino, iniciando um novo ciclo de vida citadina.

Helvídio Lucius estava satisfeito com a sua nova posição,

salientando-se que, como substituto imediato do sogro nas funções de

Censor, estava-lhe reservado um papel relevante na vida da cidade, sob as

vistas generosas do Imperador. Quanto a Alba Lucínia, graças aos seus

inatos pendores artísticos, auxiliada por Túlia, transformou as perspectivas

da velha propriedade, imprimindo-lhes o gosto da época e edificando em

cada recanto um fragmento de harmonia do lar, onde o marido e as filhas

pudessem repousar das largas inquietações da vida.

Desnecessário dizer que, abonada por Túlia, Hatéria foi admitida

no lar, impondo-se a todos por sua humildade habilidosa e conquistando

dos amos confiança plena, em poucos dias.

Na semana seguinte, a pretexto de repousar algum tempo junto

do avô, que a idolatrava, foi Célia conduzida pelos pais à residência do

mesmo, na outra margem do Tibre, nas faldas do Aventino.

Cneio Lucius habitava confortável palacete de apurado estilo

romano, em companhia de duas filhas já idosas, que lhe enchiam de afeto a

estrelejada noite da velhice.

Recebeu a neta carinhosa, com as mais inequívocas provas de

contentamento.

No dia imediato, pela manhã, mandou preparar a liteira particular

para, em sua companhia, oferecer um sacrifício no templo de Júpiter

Capitolino.

Célia acompanhou-o calma e prazerosa, embora reparasse os

olhares expressivos com que o ancião a observava, ansioso, talvez, por lhe

identificar os sentimentos mais íntimos.

Cneio Lucius não estacionou tão somente no santuário de Júpiter,

dirigindo-se, igualmente, ao templo de Serápis, onde procurou palestrar com

a neta a respeito das mais antigas tradições da família romana. A jovem

não lhe contradisse as palavras nem interrompeu a carinhosa preleção,

submetendo-se à maior obediência no que se referia à ritualística dos

templos, conforme os regulamentos instituídos em Roma pelos padres

flamíneos .

A tarde já caía, quando o generoso velhinho deu por terminada a

peregrinação através dos edifícios religiosos da cidade. O Sol escondia-se

no poente, mas Cneio Lucius desejava conhecer toda a intensidade dos

novos pensamentos da neta, conduzindo-a, para esse fim, ao altar

doméstico, onde se alinhavam as soberbas imagens de marfim dos deuses

familiares.

- Célia, minha querida - disse ele por fim, descansando num largo

divã à frente dos ídolos -, levei-te hoje aos templos de Júpiter e de Serápis,

onde ofereci sacrifícios em favor da nossa felicidade; mais que a nossa

ventura, porém, cara filha, eu desejo a tua própria . Notei que acompanhavas

os meus gestos e, todavia, não demonstravas devoção sincera e ardente.

Acaso, trouxeste da Província alguma idéia nova, contrária às nossas

crenças?!...

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

Ouviu a palavra do venerando avô, com a alma perdida em

profundas cismas . Compreendeu, de relance, a situação, e, afeita às

rigorosas tradições da família, adivinhou que seu pai solicitara tal

providência, no intuito de reformar-lhe os pensamentos, bem como as

convicções mais íntimas.

- Querido avô - respondeu de olhos úmidos, nos quais transparecia

sublimada inocência -, eu sempre vos amei de toda a minhalma e vós me

ensinastes a dizer toda a verdade, em quaisquer circunstâncias.

- Sim - exclamou Cneio Lucius admirado, adivinhando as emoções

da adorada criança -, estás no meu coração a todos os instantes. Fala,

filhinha, com a maior franqueza! Eu não aprendi outro caminho que o da

verdade, junto às nossas tradições e aos nossos deuses..

- De antemão devo esclarecer-vos que foi certamente meu pai quem

vos solicitou a reforma de meus atuais sentimentos religiosos .

O venerável ancião fez um gesto de espanto em face daquela

observação inesperada.

- Sim - continuou a jovem -, talvez meu pai não me pudesse

compreender inteiramente... Ele jamais poderia ouvir-me satisfatoriamente,

sem um protesto enérgico de sua alma; entretanto, eu continuaria a amá-lo

sempre, ainda que o seu coração não me entendesse.

- Então, filhinha, porque negaste a Helvídio as tuas mais íntimas

confidências?. ..

- Tentei fazer-lhas um dia, quando ainda nos encontrávamos na

Judéia, mas compreendi, imediatamente, que meu pai julgaria mal as minhas

palavras mais sinceras, percebendo, então, que a verdade para ser

totalmente compreendida precisa ser tratada entre corações da mesma idade

espiritual.

- Mas, filha, onde colocas, agora, os laços sagrados da família?

- No amor e no respeito com que sempre os cultivei; entretanto,

avozinho, no campo das idéias os elos do sangue nem sempre significam

harmonia de opinião entre aqueles que o Céu uniu no instituto familiar.

Venerando e estimando a meu pai, no meu afeto filial e no respeito às

tradições do seu nome, esposei idéias que ao seu espírito não é possível

aderir, por enquanto...

- Mas, que queres traduzir por idade espiritual ? . .

- Que a mocidade e a velhice, quais as vemos no mundo, não

podem significar senão expressões de uma vida física que finda com a

morte. Não há moços nem velhos e sim almas jovens no raciocínio ou

profundamente enriquecidas no campo das experiências humanas.

- Que queres dizer com isso? – perguntou o ancião altamente

admirado. - Tens tão vasta leitura dos autores gregos?! Isso é de estranhar,

quando teu pai só há pouco obteve um escravo culto, especialmente

destinado a enriquecer a tua e a educação de tua irmã.

- Vovô bem sabe da ânsia de aprender, que sempre me impeliu,

desde pequenina. Embora jovem, sinto em meu espírito o peso de uma

idade milenária. Em todos estes anos de ausência, na Província, gastei

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

todo o tempo disponível em devorar a biblioteca que meu pai não podia

levar consigo para as suas atividades na Induméia.

- Filhinha - exclamou o respeitável ancião sinceramente

consternado -, não terias agido à moda dos enfermos que, à força de

buscarem a virtude de todos os medicamentos ao alcance da mão, acabam

lamentavelmente intoxicados?!...

- Não, querido avô, eu não me envenenei. E se tal coisa houvera

acontecido, há mais de dois anos tenho no coração o melhor dos antídotos à

influência corrosiva de todos os tóxicos deste mundo .

- Qual ? - interrogou Cneio Lucius sumamente surpreendido.

- Uma crença fervorosa e sincera.

- Colocaste teus pensamentos, neste sentido, sob a invocação dos

nossos deuses?. .

- Não, querido avô, pesa-me confessar-vos, mas, sinto em vosso

íntimo a mesma capacidade de compreensão que vibra em minhalma e devo

ser sincera. Os deuses de nossas antigas tradições já me não satisfazem...

- Como assim, querida filha? A que entidade dos céus confias hoje

a tua fé sublimada e fervorosa?. .

Como se nos seus grandes olhos vibrasse estranha luz, Célia

respondeu calmamente:

- Guardo agora a minha fé em Jesus-Cristo, o Filho de Deus Vivo.

- Declaras-te cristã? - perguntou o velho avô empalidecendo.

- Só me falta o batismo.

- Mas, filha - disse Cneio Lucius emprestando à voz uma doce

inflexão de carinho -, o Cristianismo está em contradição com todos os

nossos princípios, pois elimina todas as noções religiosas e sociais,

basilares da nossa concepção de Estado e de Família. Além disso, não

sabes que adotar essa doutrina é caminhar para o sacrifício e para a morte

? . . .

- Vovô, apesar dos vossos longos e criteriosos estudos, acredito

que não chegastes a conhecer as tradições de Jesus e a claridade suave

dos seus ensinamentos. Se tivésseis o conhecimento integral da sua

doutrina, se ouvísseis diretamente aqueles que se saturaram da sua fé,

teríeis enriquecido ainda mais o tesouro de bondade e compreensão do

vosso espírito.

- Mas não se compreende uma idéia tão pura, a encaminhar seus

adeptos para a condenação e para o martírio, há quase um século .

- Entretanto, avozinho, ainda não atentastes, talvez, para a

circunstância de partir do mundo essa condenação, ao passo que Jesus

prometeu as alegrias do seu reino a todos os que sofressem na Terra, por

amor ao seu nome .

- Desvairas, minha querida, não pode haver divindade maior que

o nosso Júpiter, nem pode existir outro reino que ultrapasse o nosso

Império. Além disso, o profeta nazareno, ao que sou informado, pregou

uma fraternidade impossível e uma humildade que nós outros não

poderemos compreender.

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

Pousou sobre a neta os olhos plácidos, cheios de caridade

misteriosa, sentindo, porém, uma comoção mais intensa ao encontrar os

dela serenos, piedosos, transparentes de candura indefinível.

- Avozinho - continuou a dizer com o olhar abstrato, como se o

espírito voejasse em recordações queridas e longínquas -, Jesus-Cristo é o

Cordeiro de Deus, que veio arrancar o mundo do erro e do pecado. Porque

não lhe compreendermos os divinos ensinamentos, se temos fome de amor

em nossa alma? Aparentemente sou uma jovem e vós um homem velho,

para o mundo ; no entanto, sinto que nossos pensamentos são gêmeos

na sede de conhecimento espiritual...

Da Terra inteira nos chegam clamores de revolta e gritos de

batalha... Misturam-se o fel dos oprimidos e as lágrimas de todos os que

padecem na humilhação e no cativeiro ! . . .

Tendes conhecimento de todos esses tormentos insondáveis que

campeiam em todo o mundo! Vossos livros falam das angústias indefiníveis

do vosso espírito sensível e carinhoso. Esses brados de sofrimento

chegam até aos vossos ouvidos, a todos os momentos!

Onde estão os nossos deuses de marfim, que não nos salvam da

decadência e da ruína?! Onde Júpiter que não vem ao cenário do mundo

para restabelecer o equilíbrio da maravilhosa balança da justiça divina?!

Poderemos aceitar um deus frio, impassível, que se compraz em endossar

todas as torpezas dos poderosos contra os mais pobres e os mais

desgraçados? Será a Providência do Céu igual à de César, para cujo poder o

mais dileto é aquele que lhe traz as mais ricas oferendas? Entretanto, Jesus

de Nazaré trouxe ao mundo uma nova esperança. Aos orgulhosos advertiu

que todas as vaidades da Terra ficam abandonadas no pórtico de sombras

do sepulcro; aos poderosos deu as lições de renúncia aos bens transitórios

do mundo, ensinando que as mais belas aquisições são as que se

constituem das virtudes morais, imperecíveis valores do Céu; exemplificou,

em todos os seus atos de luz indispensáveis à nossa edificação espiritual

para Deus Todo-Poderoso, Pai de misericórdia infinita, em nome de quem

nos trouxe a sua doutrina de amor, com a palavra de vida e redenção .

Além de tudo, Jesus é a única esperança dos seres desamparados

e tristes, da Terra, porquanto, de acordo com as suas doces promessas,

hão-de receber as bem-aventuranças do Céu todos os desventurados do

mundo, entre as bênçãos da simplicidade e da paz, na piedade e na prática

do bem .

Cneio Lucius ouvia a neta, em comovido silêncio, sentindo-se

tocado de uma inquietação mesclada de encanto, qual a que devesse

sentir um filósofo do mundo, que ouvisse as mais ternas revelações da

Verdade pela boca de um anjo.

A jovem, por sua vez, dando curso às sagradas inspirações que lhe

rociavam a alma, continuou a falar, revolvendo o tesouro de suas

lembranças mais gratas ao coração:

- Por muito tempo estivemos em Antipátris, em plena Samaria,

junto à Galiléia... Ali, a tradição de Jesus ainda está viva em todos os

espíritos. Conheci de perto a geração de quantos foram beneficiados pelas

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

suas mãos misericordiosas, fiquei conhecendo a história dos leprosos,

limpos ao toque do seu amor; dos cegos em cujos olhos mortos fluiu uma

vibração nova de vida, em virtude da sua palavra carinhosa e soberana; dos

pobres de todos os matizes, que se enriqueceram da sua fé e da sua paz

espiritual.

Nas margens do lago de suas pregações inesquecíveis, pareceu-me

ver ainda o sinal luminoso dos seus passos, quando, alma em prece, rogava

ao Mestre de Nazaré as suas bênçãos dulcificantes ! . ..

- Mas Jesus Nazareno não era um perigoso visionário ? - perguntou

Cneio Lucius, profundamente surpreendido. - Não prometia um outro reino,

menosprezando as tradições do nosso Império ?

- Vovô - respondeu a donzela sem se perturbar -, o Filho de Deus

não desejou jamais fundar um reino belicoso e perecível, qual o possuem os

povos da Terra. Nem se cansou jamais de esclarecer que o seu reino ainda

não é deste mundo, antes ensinou que a sua fundação se destina às almas

que desejem viver longe do torvelinho das paixões terrestres.

Revolucionária a palavra que abençoa a todos os aflitos e

deserdados da sorte? Que manda perdoar o inimigo setenta vezes sete

vezes? Que ensina o culto a Deus com o coração, sem a pompa das

vaidades humanas? Que recomenda a humildade como penhor de todas

as realizações para o Céu ? .

O Evangelho do Cristo, que tive ocasião de ler em fragmentos

de pergaminho, nas mãos dos nossos escravos, é um cântico de

sublimadas esperanças no caminho das lágrimas da Terra, em marcha,

porém, para as glórias sublimes do Infinito.

O respeitável ancião esboçou um sorriso complacente, exclamando,

bondoso:

- Filha, para nós a humildade e o desprendimento são dois

postulados desconhecidos. Nossas águias simbólicas jamais poderão

descer dos seus postos de domínio e nem os nossos costumes são

passíveis de se acomodarem ao perdão, como norma de evolução ou de

conquista...

Tuas considerações, porém, interessam-me sobremaneira. Mas

dize-me: onde hauriste semelhantes conhecimentos ? Como pudeste banhar

o espírito nessa nova fé, a ponto de argumentares fervorosamente em

desfavor das nossas tradições mais antigas?... Conta-me tudo com a

mesma sinceridade que sempre reconheci no teu caráter!. .

- Primeiramente, vim a conhecer os ensinamentos do Evangelho,

ouvindo, curiosamente, as conversas dos escravos de nossa casa...

Após haver pronunciado essas palavras reticenciosas, Célia

pareceu meditar gravemente, como se experimentasse uma dificuldade

indefinível para atender aos bons desejos do querido avô, naquelas

circunstâncias .

Em seguida, como se travasse consigo mesma um diálogo

silencioso, entre a razão e o sentimento, ruborizou-se, como receosa de

expor toda a verdade.

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

Cneio Lucius, todavia, identificou-lhe imediatamente a atitude

mental, exclamando :

- Fala, filha! Teu velho avô saberá entender o teu coração.

- Direi - respondeu ela ruborizada, dirigindo-lhe os olhos súplices,

na sua timidez de menina e moça. - Vovô, será pecado amar?!

- Certo que não - respondeu o velhinho, adivinhando um mundo

de revelações no inopinado da pergunta.

- E quando se ama a um escravo ?

O venerável patrício sentiu constritiva emoção, ao ouvir a penosa

revelação da neta adorada; respondeu, contudo, sem hesitar:

- Filhinha, estamos muito distantes da sociedade em que a filha de

um patrício possa unir seu destino ao de algum dos seus servos.

Todavia - acrescentou depois de ligeira pausa - chegaste a querer

tanto a um homem sujeito a tão dolorosas circunstâncias?

Mas, vendo que os olhos da jovem se umedeciam e adivinhandolhe

as comoções penosas e constrangedoras em face daquelas

confidências, atraiu-a num beijo, de encontro ao coração, murmurando-lhe

ao ouvido em tom carinhoso :

- Não temas os julgamentos do avozinho, inteiramente devotado ao

teu bem-estar. Revela-me tudo sem omitir detalhe algum da verdade, por

mais dolorosa que ela seja. Saberei compreender a tua alma, acima de tudo.

Ainda que as tuas aspirações amorosas e os teus sonhos áureos de menina

hajam pousado no ser mais abjeto e desprezível, não te amarei menos por

isso, e, confiando em ti mesma, saberei respeitar a tua dor e a tua dedicação!

Confortada com aquelas palavras, que deixavam transparecer

generosidade e sinceridade absolutas, Célia prosseguiu :

- Faz dois anos que papai nos levou em uma de suas excursões

encantadoras, pelo lago extenso, na região onde possuímos a nossa casa.

Além de mim, da mamãe e da Helvídia, ia conosco um jovem escravo

adquirido na véspera e o qual, em vista da sua perícia nos remos,

auxiliava a tarefa de abrir caminho ao longo das águas.

Ciro, chama-se esse escravo de vinte anos, que a vontade do Céu

deliberou fosse parar em nossa casa.

Íamos todos alegres, observando a linha do horizonte e o

recorte das nuvens no claro espelho das águas marulhantes.

De vez em quando, Ciro me dirigia o olhar lúcido e calmo, que

me produzia uma emoção cada vez mais intensa e indefinível.

Quem poderá explicar esse mistério santo da vida ? Dentro desse

divino segredo do coração, basta, às vezes, um gesto, uma palavra, um

olhar, para que o espírito se algeme a outro para sempre...

Fez uma pausa na exposição de suas reminiscências, e,

observando-lhe a emotividade a desbordar dos olhos úmidos, Cneio Lucius

animou-a :

- Continua, filhinha. Faço questão de ouvir e sentir a tua história

toda.

- Nosso passeio - prosseguiu ela com os olhos da alma

mergulhados no painel de suas mais íntimas recordações - corria sereno e

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

sem tropeços, quando, em dado instante, se levantou uma onda larga,

impelida pelo vento forte . Um abalo mais violento, justamente no ponto

onde me instalara, fez-me cair, absorta nos meus pensamentos, de borco no

seio espesso das águas..

Ainda ouvi os primeiros gritos de mamãe e da irmãzinha,

supondo-me perdida para sempre; mas, quando me debatia, inutilmente,

para vencer o peso enorme que me oprimia o peito, sob a massa líquida,

senti que dois braços vigorosos me arrancavam do fundo lodoso do lago,

trazendo-me à tona, mercê de um desesperado e imenso esforço.

Era Ciro que me salvara da morte, com o seu espírito de

sacrifício e lealdade, conquistando com esse ato espontâneo a gratidão sem

limites de meu pai, e de todos nós um reconhecimento carinhoso e sincero .

No dia imediato, meu pai concedeu-lhe a liberdade, muito comovido

pelos sucessos da véspera.

No instante da sua emancipação, o jovem liberto beijou-me as

mãos com os olhos úmidos, na sua gratidão profunda e sincera,

conservando-o meu pai em nossa casa, como serviçal prestimoso e livre,

quase um amigo, se outras fossem as condições do seu nascimento .

Ciro, porém, não me conquistou somente gratidão e estima a toda

prova, como também o meu afeto dalma, espontâneo e profundo .

Em tardes serenas e claras, sob as árvores do pomar, contou-me

a sua história singular, cheia de episódios interessantes e comovedores.

Em tenra idade, vendido a um rico senhor que o conduziu desde

logo ao país do Ganges – terra misteriosa e incompreensível para os

romanos -, ali teve ocasião de conhecer os princípios populares de

consoladoras filosofias religiosas.

Nessa região do Oriente, cheia de segredos confortadores, ele

aprendeu que a alma não tem apenas uma existência, mas vidas numerosas,

mediante as quais adquire novas faculdades, purificando-se ao mesmo

tempo dos erros passados, em outros corpos, ou redimindo-se das aflições,

no doloroso resgate dos crimes ou desvios do seu passado.

Todavia, após a aquisição desses conhecimentos, foi levado à

Palestina, onde se saturou dos ensinos cristãos, tornando-se adepto

fervoroso do Messias de Nazaré ! . .

Então, era de ver-se como a sua palavra se impregnava de

inspiração divina e luminosa!. .

Apaixonado pelas idéias generosas que trouxera do ambiente

religioso da Índia, acerca dos formosos princípios da reencarnação, sabia

interpretar com simplicidade e clareza de raciocínio, para mim, muitas

passagens evangélicas, algo obscuras para o meu entendimento, qual

aquela em que Jesus afirma que "ninguém poderá atingir o reino do Céu sem

nascer de novo"!. .

Fosse ao crepúsculo langoroso da Palestina, fosse ao luar

caricioso das suas noites estreladas, quando descansava das fadigas do

trabalho diuturno, falava-me ele das ciências da vida e da morte, das coisas

da Terra e do Céu, com os dons divinos da sua inteligência, mantendo o meu

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

espírito suspenso entre as emoções da vida física e as gloriosas esperanças

na vida espiritual.

Enlevada pela doce carícia de suas expressões e gestos de ternura,

afigurava-se-me ele a alma gêmea do meu destino, reservada por Deus a me

estimar e compreender, desde as vidas mais remotas.

Durante um ano a vida nos correu em mar de rosas, porque nos

amávamos intensamente. Em nossos idílios calmos, falávamos de Jesus e

de suas glórias divinas, e, quando eu lhe suscitava a possibilidade da nossa

união à face deste mundo, Ciro ensinava-me que deveríamos esperar a

felicidade no Reino do Senhor, alegando que, na Terra, não era ainda

possível um matrimônio feliz, entre um escravo miserável e uma jovem

patrícia.

Por vezes, entristecia-me com as suas palavras despidas de

esperanças terrenas, mas as suas inspirações eram tão elevadas e tão puras

que, num relance, sabia o seu coração levantar o meu para as jornadas da fé,

que levam a tudo esperar, não da Terra ou dos homens, mas do Céu e do

amor infinito de Deus .

O valoroso ancião tudo ouvia, sem um reproche, embora sua

atitude mental se caracterizasse pela mais funda consternação.

Observando que a neta fizera uma pausa na encantadora e triste

narrativa, Cneio Lucius interrogou-a com benevolência:

- Qual a atitude desse rapaz para com teu pai ?

- Ciro admirava-lhe a generosidade franca e espontânea, revelando

no íntimo a mais santa gratidão pelo seu ato de fraternidade, quando o

alforriou para sempre . A todo propósito, ensinava-me a respeitá-lo cada vez

mais e a lhe realçar as qualidades mais elevadas; falava-me,

constantemente, de suas atitudes generosas, com entusiasmo, admirandolhe

a dedicação ao trabalho e a singular energia.

- E Helvídio nunca soube do teu amor? - perguntou o avô admirado.

- Soube, sim - respondeu Célia humildemente. - Contar-vos-ei tudo,

sem omitir um só detalhe.

Em nossa casa havia um chefe de serviço, que dirigia as atividades

de todos os servos da família. Pausanias era um coração amigo do

escândalo e nada sincero . Meu pai, atendendo à necessidade de viajar

constantemente, conservava-o quase como mandatário de sua vontade, em

função dos seus numerosos interesses, e Pausanias, muita vez, abusou

dessa confiança generosa para estabelecer a discórdia em nosso lar.

Observando a minha intimidade com o jovem liberto, cujos dotes

morais tão fortemente me haviam impressionado o coração, esperou, certa

feita, o regresso de meu pai, de uma viagem à Induméia, envenenando-lhe

então o espírito com insinuações caluniosas da minha conduta.

- E que fez Helvídio ? - interrogou o velhinho bruscamente,

cortando-lhe a palavra, como se adivinhasse o desenrolar de todas as cenas

ocorridas a distância.

- Repreendeu minha mãe, asperamente, inculpando-a, e chamou-me

à sua presença, de maneira que lhe recebesse as admoestações e conselhos

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

necessários, sem jamais permitir que eu lhe expusesse tudo, com a

sinceridade e franqueza com que o faço agora.

- E quanto ao liberto?. . - perguntou Cneio Lucius ansioso por

conhecer o desfecho do caso.

- Mandou pô-lo a ferros, ordenando a Pausanias lhe aplicasse a

punição que julgasse necessária e conveniente.

Atado ao tronco, Ciro foi açoitado várias vezes, pelo crime de me

haver ensinado a amar pelo coração e pelo espírito com o mais carinhoso

respeito a todas as tradições do mundo e da família, no altar do devotamento

silencioso e do sacrifício espiritual .

No segundo dia de seus indizíveis padecimentos, consegui avistálo,

apesar da vigilância extrema que todos resolveram exercer sobre os

meus passos.

Como nos dias de nossa tranqüilidade feliz, Ciro recebeu-me com

um sorriso de ventura, acrescentando que eu não deveria alimentar

nenhum sentimento de amargor pela decisão de meu pai, considerando que

o seu espírito era bom e generoso e que, se não podíamos quebrar

preconceitos milenários da Terra, também não deveríamos dar guarida a

pensamentos de ingratidão .

O sofrimento, porém - prosseguia a jovem, enxugando as lágrimas

de suas reminiscências -, era dilacerante para minha alma.

Reconhecendo a situação penosa daquele que polarizava todas as

minhas esperanças, cheguei a maldizer sinceramente da minha posição de

afortunada. Que me valiam os mimos da família e as prerrogativas do nome

que me felicitava, se a alma gêmea do meu destino estava encarcerada em

pavorosa noite de sofrimentos?. .

Expus-lhe, então, minha tortura íntima e os meus amargurados

pensamentos. Ciro ouviu-me com resignação e brandura, respondendo-me,

depois, que ambos tínhamos um modelo, um mestre, que não era deste

mundo, e que o Salvador nos guardaria no Céu um ninho de ventura, se

soubéssemos sofrer com resignação e simplicidade, à maneira dos bemaventurados

de sua palavra sábia e doce. Acrescentou que o Cristo também

amara muito e, entretanto, perlustrou os caminhos da incompreensão

terrestre, sozinho e abandonado; se éramos vítimas de um preconceito ou

de perseguições, tais sofrimentos deviam ser justos, por certo, dados os

desvios do nosso passado espiritual, de eras prístinas, acrescentando que

Jesus se sacrificara pela Humanidade inteira, embora de coração

imaculado como o lírio e manso como cordeiro.

- Que valem nossos sofrimentos comparados aos dEle, no alto da

cruz da impiedade e da cegueira humanas? - dizia-me valorosamente. - Célia,

minha querida, levanta os olhos para Jesus e caminha ! . . Quem melhor que

nós poderá compreender esse doce mistério do amor pelo sacrifício ? . .

Sabemos que os mais felizes não são os que dominam e gozam neste

mundo, mas os que compreendem os desígnios divinos, praticando-os na

vida, ainda que nos pareçam as criaturas mais desprezíveis e mais

desventuradas. . . Além disso, querida, para os que se amam pelos laços

sacrossantos da alma, não existem preconceitos nem obstáculos, no espaço

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

e no tempo. Amar-nos-emos, assim, constantemente, esperando a luz do

Reino do Senhor. Soa, agora, o penoso instante da separação, mas, aqui ou

além, estarás sempre viva em meu peito, porque hei-de amar-te toda a vida,

como o verme desprezado que recebeu o suave sorriso de uma estrela...

Poderão, acaso, separar-se os que caminham com Jesus através das névoas

da existência material? Não prometeu o Mestre o seu reino ditoso a quantos

sofressem de olhos voltados para o amor infinito do seu coração? Sejamos

conformados e tenhamos coragem!... Além destes espinhais, desdobram-se

estradas floridas, onde repousaremos um dia sob a luz do Ilimitado . Se

sofremos agora, deve haver uma causa justa, oriunda de tenebroso

passado, em sucessivas existências terrenas. Mas a vida real não é esta, e

sim a que viveremos amanhã, no ilimitado plano da espiritualidade

radiosa!...

- Enquanto as suas expressões consoladoras me retemperavam o

ânimo combalido, via-lhe o rosto macerado e os cabelos empastados de

copioso suor, que me deixavam entrever um sofrimento físico

martirizante e infinito.

Embora a sua palidez extrema, Ciro me sorria e confortava. Sua

lição de paciência e fé embalsamou-me o coração e aquela corajosa

serenidade deveria constituir, para mim, precioso incitamento à fortaleza

moral, em face das provas.

Consolei-o, então, do melhor modo, testemunhando-lhe minha

compreensão funda e sincera, quanto ao sentido daquelas palavras de

bondade e ensinamento, compreensão que eu guardaria no imo, para

sempre.

Prometemo-nos, reciprocamente, a mais absoluta calma e

confiança em Jesus, bem como eterna fidelidade neste mundo, para nos

unirmos, um dia, nos céus.

Terminados os rápidos minutos que consegui para falar ao

encarcerado, reconstituí as energias interiores da minha fé, enxugando

corajosamente as próprias lágrimas.

Procurei minha mãe, implorei sua intercessão afetuosa, de modo

a cessarem as cruéis punições que Pausanias impusera ao bem-amado de

minhalma, dando-lhe ciência dos quadros penosos que presenciara.

Ela comoveu-se profundamente com a minha narrativa e obteve

de meu pai a ordem para que Ciro fosse libertado, sob certas condições,

que, apesar de penosas, constituíram para mim um brando alívio !

- Que condições ? - perguntou Cneio Lucius, admirado, ante o

romance comovedor da neta, cujos dezoito anos atestavam a mais profunda

intensidade de sofrimento.

- Meu pai acedeu, sob a condição de que não mais avistasse o

jovem liberto para qualquer despedida, providenciando, na mesma noite,

para que ele fosse, escoltado por dois escravos de confiança, até Cesareia,

em cujo porto deveria ser internado numa galera romana, desterrado a

critério dos que a comandavam ! . .

- E chegaste, filha, a alimentar algum rancor contra Helvídio, em

face da sua atitude?

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

- Não - respondeu com espontânea sinceridade. - Se tivesse de

alimentar qualquer rancor, seria contra o meu próprio destino .

Aliás, Ciro ensinava-me sempre que não podem caminhar para

Jesus aqueles que não honrarem pai e mãe, de acordo com os preceitos

divinos.

Cneio Lucius encontrava-se eminentemente surpreendido. Quando

Helvídio lhe solicitara a intervenção moral junto da neta, longe estava de

presumir tão doloroso romance de amor num coração de dezoito anos, cheio

de juventude e de piedade.

Seu espírito, que conhecia o vírus destruidor que operava a

decadência da sociedade mergulhada num abismo de sombras, extasiava-se

com aquela narrativa simples de um amor doce e cristão, que aguardava,

pacientemente, o céu para todas as suas realidades divinas. Nenhuma voz

da mocidade ainda lhe falara, assim, com tanta pureza à flor dos lábios.

Admirado e enternecido, descansou a face enrugada na mão direita

meio trêmula, entregando-se a uma longa pausa para coordenar idéias.

Ao cabo de alguns minutos, notando que a neta aguardava

ansiosa a sua palavra, perguntou com a mesma benevolência:

- Minha filha, esse jovem escravo jamais abusou da tua confiança

ou da tua inocência?

Ela fixou nele os olhos serenos, em cujo fulgor cristalino podiam

ler-se uma candidez e sinceridade a toda prova, exclamando sem hesitar:

- Nunca! Jamais Ciro permitiu que os meus próprios sentimentos

pudessem tisnar-se de qualquer tendência menos digna. Para demonstrarvos

a elevação de seus pensamentos, quero contar-vos que, um dia, quando

conversávamos à sombra de velha oliveira, notei que sua mão pousara

levemente em meus cabelos, mas, no mesmo instante, como se nossos

corações se deixassem levar por outros impulsos, retirou-a, dizendo-me

comovido :

- Célia, minha querida, perdoa-me. Não guardemos qualquer emoção

que nos faça participar das inquietações do mundo, porque, um dia, nos

beijaremos no céu, onde os clamores da malícia humana não poderão

atingir-nos.

Cneio Lucius contemplou de frente a neta, cuja sinceridade

diamantina lhe irradiava dos olhos cândidos e valorosos, exclamando :

- Sim, filha, o homem a quem te consagras possui um coração

generoso e diferente do que se poderia presumir no peito de um escravo, ao

inspirar-te um amor tão distante das concepções da mocidade atual.

E acentuando as palavras, como se quisesse imprimir-lhes nova

força, com vistas a si mesmo, continuou após ligeira pausa:

- Além disso, essa nova doutrina, qual a aceitaste, deve conter uma

essência profunda, dado o maravilhoso elixir de esperança que destila nas

almas sofredoras. Acredito, agora, que Helvídio não sondou bastante o

assunto para conhecer a questão nas suas facetas numerosas.

- É verdade, avô - respondeu confortada, como se houvesse

encontrado um bálsamo para as suas feridas mais íntimas -, meu pai, a

princípio, não receava que analisássemos os estudos evangélicos,

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

considerando-os perigosos; somente depois das intrigas de Pausanias,

supôs que as doutrinas do Cristo me houvessem acarretado qualquer

deficiência mental, em virtude da minha inclinação pelo jovem liberto .

- Sim, teu pai não poderia entender um sentimento dessa

natureza, no teu espírito de moça afortunada.

Mas, ouve: já que me falaste com uma ponderação que não admite

reprovações ou corretivos, quais são as tuas perspectivas de futuro?

Sobre tua irmã teus pais já me falaram dos planos assentados. Daqui a

alguns meses, depois de completar sua educação, na atualidade romana,

Helvídia esposará Caio Fabrícius, cuja afeição a conduzirá a um dos postos

de maior relevo social, de acordo com os nossos méritos familiares. Mas, a

teu respeito? Perseverarás, porventura, nesses sentimentos ? ! . .

- Meu avô - respondeu com humildade - , Caio Fabrícius com os

seus trinta e cinco anos maturados, cheio de delicadeza e generosidade, há

de fazer a ventura de minha irmã, que bem o merece . . Perante Deus,

Helvídia fez jus às sagradas alegrias da constituição de um lar e de uma

família.

Junto do seu coração pulsará um outro, que lhe enfeitará a

existência de mimos e ternuras...

Quanto a mim, pressinto que não obterei a felicidade como a

sonhamos nesta vida!

Desde a infância, tenho sido triste e amiga da meditação, como

se a misericórdia de Jesus estivesse a preparar-me, em todos os ensejos,

para não faltar aos meus deveres espirituais no instante oportuno .

E, fixando no ancião o olhar percuciente e calmo, prosseguiu:

- Sinto pesar-me no coração muitos séculos de angústia... Devo

ser um Espírito muito culpado, que vem a este mundo de maneira a remirse

de passados tenebrosos!. .

Desde a Palestina, minhas noites estão povoadas de sonhos

estranhos e comovedores, nos quais ouço vozes carinhosas que me

exortam à submissão e ao sacrifício.

Acusada de cristã no seio da família, sinto que todos os meus

carinhos ficam sem retribuição e todas as minhas palavras afetuosas

morrem sem eco! Dou-me, porém, por imensamente venturosa em

acreditar que o vosso coração vibra com o meu, compreendendo-me as

intenções e os pensamentos.

Como se lobrigasse melancolicamente o caminho de sombras do

porvir, desdobrado ante seus olhos espirituais, Célia continuou a falar

para o coração enternecido do velho avô, que a idolatrava :

- Sim!. . nos meus sonhos proféticos, tenho visto uma cruz a que

me devo abraçar, com resignação e humildade ! . . Experimento no coração

um peso enorme, avozinho ! . . . Por vezes inúmeras vislumbro à minha

frente quadros penosos, que devem radicar nas minhas existências

pregressas.

Pressinto que nasci neste mundo para resgatar e redimir-me. Quando

oro e medito, chegam-me ao raciocínio as ponderações da alma ansiosa!. .

Não devo aguardar primaveras risonhas nem flores de ilusão, que me fariam

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

esquecer a via dolorosa do Espírito, destinado à redenção; mas, sim,

invernias de dor e provas ríspidas, em dias de lutas ásperas, que me hão de

reconduzir a Jesus, com a divina claridade da experiência!. .

Cneio Lucius tinha os olhos molhados de lágrimas, ante as

palavras comovedoras da neta, que, desde criança, lhe conquistara

adoração.

- Filha - exclamou com bondade -, não posso compreender tamanho

desalento num coração da tua idade. O nome de nossa família não permitirá

tal abandono de ti mesma...

- Entretanto, caro avô, não desdenharei a realidade dolorosa do

sacrifício, sabendo, de antemão, que a sua taça me está reservada...

- E nada esperas da Terra no que se refere a possível felicidade

neste mundo ? ! . .

- A felicidade não pode estar onde a colocamos, com a nossa

cegueira terrestre, mas no compreendermos a Vontade Divina, que saberá

localizar a ventura para nós, como e quando oportuna. Não temos uma só

vida. Teremos muitas.

O segredo da alegria reside em nossa realização para Deus, através

do Infinito. De etapa em etapa, de experiência em experiência, nossa alma

caminhará para as glórias supremas da espiritualidade, como se fizéssemos

a laboriosa ascensão de uma escada rude e longa. . . Amar-nos-emos

sempre, meu avô, através dessas numerosas existências. Elas serão como

anéis na cadeia de nossa união ditosa e indestrutível. Então, mais tarde,

vereis que a vossa neta, dentro da sua realidade espiritual, se encontrará

convosco, com a mesma compreensão e com o mesmo amor imperecível, na

região da felicidade real que a morte nos descerrará, com os seus sepulcros

de cinzas dolorosas ! .

Atualmente, aos vossos olhos serei, talvez, sempre triste e

desventurada; mas, no íntimo, guardo a certeza de que as minhas dores

constituem o preço da minha redenção para a luz da Eternidade.

Segundo me falam os augúrios do coração em suas vozes

silenciosas e secretas, não terei um lar constituído, especialmente, para a

minha ventura nesta vida!. . Viverei incompreendida, de coração dilacerado

no caminho acerbo das lágrimas remissoras! O sacrifício, porém, será

suave, porque, na sua exaltação, sinto que encontrarei a estrada luminosa

para o reino da Verdade e do Amor, que Jesus prometeu a todos os

corações que confiassem no seu nome e na sua misericórdia bendita!

Os olhos de Célia elevaram-se para o Alto, como se o espírito

aguardasse, ali mesmo, junto do velho avô, as graças divinas vislumbradas

pela sua crença cheia de luminosidade e de esperança.

Cneio Lucius, todavia, aconchegou-a de mansinho ao coração,

como se o fizesse a uma criança, falando-lhe com acentuada ternura:

- Filhinha, estás cansada! Não te justifiques por mais tempo.

Conversarei com Helvídio a respeito dos teus mais íntimos pensamentos,

elucidarei a tua situação perante o seu conceito.

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

E chamando Márcia, a filha mais velha, que representava junto da

sua velhice confortada o papel de anjo-tutelar e carinhoso, o respeitável

patrício acentuou:

- Márcia, nossa pequena Célia precisa de tranqüilidade e repouso

físico. Conduze-a ao teu quarto e fá-la descansar.

A neta beijou-lhe ternamente a fronte, retirando-se com a tia, amável

e generosa, que quase a tomou nos braços, conduzindo-a para o interior.

A noite ia já adiantada, enchendo o céu romano de caprichosas

fulgurações.

Cneio Lucius, absorto em profundos cismares, abismou-se num

mar de conjeturas.

Seu velho coração estava exausto de palpitar, na incompreensão

dos arcanos do mundo. Também fora jovem e também nutrira sonhos. Na

juventude longínqua, muita vez aniquilara as aspirações mais nobres e os

propósitos mais generosos, ao tumultuoso embate das paixões

materializadas e violentas.

Somente as brisas caridosas da reflexão, na idade madura, lhe

haviam sazonado as concepções espirituais, a caminho de uma

compreensão cada vez maior da vida e de suas leis profundas.

Desde que se habituara a meditar sinceramente, assombravam-lhe

o espírito os fantasmas da dor e os espantosos contrastes dos destinos

humanos. Apesar de arraigado às tradições mais puras dos antepassados e

não obstante havê-las transmitido, com fidelidade e amor, aos

descendentes, seu coração não podia aceitar toda a verdade divina

encarnada em Júpiter, símbolo antigo que consubstanciava todas as velhas

crenças.

Desejoso de propiciar uma lição àquela criança, na sua freima

educativa, fora o seu espírito que se abalara e comovera ante as novas

concepções que lhe provinham dos lábios puros de um anjo. Ele que se

habituara a investigar as causas profundas da dor e a sentir os

padecimentos de quantos soluçavam no cativeiro, acabava de receber uma

chave maravilhosa para solucionar os caprichosos enigmas do destino. A

visão das existências sucessivas, a lei das compensações, as estradas do

resgate espiritual pela expiação e pelo sofrimento, eram agora patentes

ao seu raciocínio, como soluções providenciais.

Sua cultura dos autores gregos fazia-lhe sentir que o assunto

não lhe era totalmente estranho, mas a palavra carinhosa e convincente

da neta, testemunhando-lhe a verdade com os seus próprios padecimentos

prematuros, abria-lhe à mente nova senda para todas as cogitações em tal

sentido.

Reclinado no divã da ara doméstica, seus olhos contemplavam a

imagem soberba de Júpiter Stator, talhada em marfim, no centro dos outros

deuses de sua família e de sua casa, com o coração tomado de angústia.

Levantou-se e andou pausadamente, em torno dos nichos

adornados de luzes e flores.

A imagem de Júpiter já lhe não despertava os mesmos sentimentos

de piedosa veneração, como nas noites anteriores.

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

Ante as revelações suaves e profundas de Célia, experimentava no

íntimo a amargurosa suspeita de que todos os deuses dos seus ascendentes

respeitáveis estavam rolando dos altares, confundindo-se no torvelinho de

desilusões das velhas crenças. De alma opressa, o patrício venerando

observava que novas equações filosóficas e religiosas apossavam-se,

precipitadamente, do seu coração . . . Em seguida, receoso e aturdido, Cneio

Lucius escutava no íntimo o doce rumor de uns passos divinos... Parecialhe

que a figura suave e enérgica do profeta de Nazaré, cuja filosofia de

perdão e de amor conhecia através das pregações então correntes, surgia

no mundo para estilhaçar todos os ídolos de pedra, a assenhorear-se do

coração humano para sempre ! . . .

O respeitável ancião, se era amigo da verdade, não o era menos do

sagrado depósito das tradições austeras.

No compartimento consagrado às divindades do lar, sentiu que o

ambiente lhe asfixiava o coração e o raciocínio. Instintivamente, abriu uma

das amplas janelas mais próximas, por onde o ar da noite penetrou em

rajadas, refrescando-lhe a fronte atormentada.

Debruçou-se para contemplar a cidade quase adormecida. Sua

conversa com a neta pareceu-lhe haver durado um tempo indefinido, tão

grande fora o efeito das suas asserções profundas e empolgantes. .

De olhos úmidos, contemplou o curso do Tibre em toda a paisagem

que o olhar abrangia, descansando o pensamento abatido nos efeitos de luz

que a claridade lunar operava caprichosamente sobre as águas.

Por quantas horas contemplou as constelações fulgurantes,

sondando os mistérios divinos do firmamento ?

Somente muito depois, aos albores da madrugada, a voz cariciosa

de Márcia veio despertá-lo de suas cogitações graves e intensas,

convidando-o a recolher-se.

Cneio Lucius dirigiu-se, então, para o quarto, a passos vagarosos,

a fronte vincada de angústia, olhos fundos e tristes, como alguém que

houvesse chorado amargamente.

III - SOMBRAS DOMÉSTICAS

A vida das nossas personagens, em Roma, reiniciou-se sem

grandes acontecimentos nem surpresas.

Helvídio Lucius, apesar do amor à Província, experimentava a

agradável sensação de haver voltado ao antigo ambiente, a ocupar um cargo

mais elevado, no qual haveria de enriquecer, sobremaneira, os valores de

sua vocação política ao serviço do Estado.

Concedendo liberdade a Nestório, fizera questão de admiti-lo nos

trabalhos do seu cargo e da sua casa, como cidadão culto e independente,

que era.

Foi assim que o antigo escravo, alugando um cômodo de

habitação coletiva nas imediações da Porta Salária, tornou-se professor de

suas filhas e auxiliar de trabalho, durante oito horas diárias, com

vencimentos regulares.

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

Fora disso, o liberto ficava inteiramente livre para cuidar dos seus

interesses particulares.

E soube aproveitar essas folgas, valendo-se da oportunidade para

consolidar a melhoria de situação. Assim é que, à noite, ensinava primeiras

letras a discípulos humildes, que lhe contratavam os serviços, facultando-se

um vasto campo de relações e dando expansão aos seus pendores afetivos,

em reuniões carinhosas que lhe propiciavam novas energias ao coração.

Bastou um mês para que ficasse conhecendo os centros mais

importantes da cidade, seus homens ilustres, monumentos, classes sociais,

fazendo amizades sólidas na esfera humilde em que vivia.

Apaixonado pelo Cristianismo, circunstância que Helvídio Lucius

desconhecia, não se furtou à satisfação de conhecer os companheiros de

ideal, de modo a cooperar com o seu contingente na tarefa abençoada de

edificar as almas para Jesus, naqueles sombrios tempos que o

pensamento cristão atravessava, entre ondas largas de incompreensão e

de sangue.

A palavra fácil de Nestório, aliada à circunstância de suas relações

pessoais com o Presbítero Johanes, discípulo dileto de João Evangelista

na igreja de Éfeso, circunstância que lhe facultava o mais amplo

conhecimento das tradições de Jesus, proporcionou-lhe, imediatamente,

um lugar destacado entre os companheiros de fé, que, duas vezes na

semana, se reuniam à noite, no interior das catacumbas da Via Nomentana,

para estudar as passagens do Evangelho e implorar a assistência do Divino

Mestre .

O reinado de Adriano, embora liberal e justo, de início,

caracterizou-se pela perseguição e pela crueldade, depois dos terríveis

acontecimentos da guerra civil da Judéia.

Posteriormente a 131, todos os cristãos se viram compelidos a

buscar novamente o refúgio das catacumbas, para as suas preces .

Perseguição tenaz e implacável era movida pela autoridade imperial a todos

os núcleos de idéias ou de personalidades israelitas. Os adeptos de Jesus

apenas se reconheciam, entre si, na cidade, por um vago sinal da cruz, que

os identificava fraternalmente onde quer que se encontrassem.

Nestório não desconhecia o perigoso ambiente, buscando adaptarse

à situação, quanto possível, de maneira a continuar servindo o Cristo na

sua fé íntima, sem trair o cumprimento dos seus deveres, em consciência.

Votava a Helvídio Lucius e à sua família extremado respeito e

sincera estima. Jamais poderia esquecer que recebera de suas mãos

generosas a liberdade plena. Era assim que se desobrigava de suas

responsabilidades, com satisfação e devotamento.

Em pouco tempo, chegava à conclusão de que ambas as jovens

estavam devidamente preparadas para a vida, dado o seu grande cabedal de

conhecimentos, através da leitura; mas, Helvídio Lucius, cultivando a sua

simpatia da primeira hora, conservara-o no seu gabinete de trabalho, onde o

liberto teve ocasião de lhe testemunhar o seu reconhecimento e admiração,

fortalecendo-se, cada vez mais, os laços de amizade recíproca.

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

Fazia já um mês que os nossos amigos tinham regressado a Roma,

quando o censor Fábio Cornélio fez questão de abrir o seu palácio para

apresentação dos filhos a todas as figuras destacadas do patriciado .

A essa festa de larga projeção social, compareceu o próprio

Adriano, com o prefeito e Cláudia Sabina, enaltecendo o esplendor do

acontecimento .

Nessa noite memorável para os destinos das nossas personagens,

tudo era um deslumbramento de luz e flores, na suntuosa residência do

antigo bairro das Carinas.

Nos jardins luxuosos brilhavam tochas artisticamente dispostas,

enquanto no lago improvisado graciosas embarcações se pejavam de

músicos e cantores. As melodias das harpas misturavam-se os sons das

flautas, dos alaúdes e atabales, junto dos quais, escravos esbeltos e jovens

erguiam vozes cariciosas e cristalinas.

Mas não era só.

Fábio Cornélio e Júlia Spinter, movimentando todos os recursos

materiais, apresentaram uma festividade a rigor, de cujas características a

aristocracia romana haveria de guardar indelével lembrança.

Luzes em profusão, mesas lautas, flores preciosas, extravagantes

adornos do Oriente, cantores e bailarinos famosos, apresentação de

antílopes gigantescos que lutariam com escravos atléticos, na arena

preparada a capricho, para os fins a que se destinava. Gladiadores e artistas

mesclavam-se com a legião de convivas, em soberbo painel de maravilhosa

alacridade.

Cláudia Sabina, depois de algum esforço, conseguiu atrair a

atenção de Helvídio Lucius, que se lhe mostrava arredio, interessando a

palavra direta do Imperador por sua figura e feitos. De vez em quando, uma

referência carinhosa e vaga, que o patrício recebia alarmado, receoso de

voltar à recordação dos tempos inquietos da juventude.

Enquanto isso, Lólio Úrbico, oferecendo o braço a Alba Lucínia,

conduzia-a, de leve, às alamedas extensas e floridas em derredor do lago

artificial, que brilhava à luz da noite, num como deslumbramento .

Retido propositadamente por Cláudia, junto do Imperador, Helvídio

ouvia a palavra generosa de César, a demonstrar evidente interesse pela

sua pessoa:

- Helvídio Lucius - exclamava Adriano com sorriso afável e

atencioso -, folgo muito de revê-lo em nosso ambiente.

E designando Cláudia Sabina, de pé, a seu lado, acrescentava:

- Nossa amiga falou-me de sua preciosa capacidade de trabalho

e eu o felicito. Tenho, agora, numerosas obras de importância, em Tibur,

onde necessito do concurso de um homem operoso e inteligente, que traga

consigo a volúpia da atividade.

É certo que essas construções chegam, no momento, a seu termo,

mas, determinadas instalações requerem a contribuição de alguém com

altos conhecimentos de nossas realidades práticas. Confiei a Cláudia a

solução de numerosos problemas de arte, em que prima a sua sensibilidade

feminina, mas preciso de cooperação como a sua, dedicada e perseverante,

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

no concernente à parte administrativa. Ser-lhe-ia agradável colaborar com a

nossa amiga, por algum tempo, em Tibur?

Helvídio compreendeu a situação difícil que lhe fora preparada.

Em consciência, não poderia aceitar com satisfação semelhante

encargo, mas César não precisava expressar uma ordem, além da

manifestação de seus desejos.

- Augusto - replicou o interpelado com reverência -, vossa gentileza

honra os meus esforços. A deferência de tais responsabilidades constitui

para mim um grato dever do coração.

Cláudia Sabina esboçou um sorriso bem humorado, dirigindo-se,

satisfeita, ao Imperador:

- Obrigada, César, pela escolha de colaborador tão precioso. Sinto

que as obras de Tibur serão a maravilha inultrapassável do Império.

Adriano sorriu, lisonjeado, exclamando, carinhoso, como quem

estivesse dispensando um favor raro :

- Está bem ! cuidaremos do assunto no momento oportuno.

E alongando o olhar enigmático pelas avenidas harmoniosas e

floridas, onde pares numerosos se enfileiravam em alegrias francas,

acrescentou:

- Mas, que fazeis aqui, tão jovens, presos à minha palavra cheia de

rotina e de austeridade?. . Diverti-vos! A vida romana deve ser um formoso

jardim de prazeres!. .

Helvídio Lucius, compelido pelas circunstâncias, deu o braço à

sedutora favorita, retirando-se vagarosamente em sua companhia, sob as

vistas generosas e complacentes de Augusto.

Cláudia Sabina não conseguiu dissimular a incoercível emoção

que intimamente a afligia, em face da situação que a conduzira ao braço

do homem que polarizava as suas aspirações de mulher, e, dados alguns

passos, foi a primeira a romper o constrangido silêncio :

- Helvídio - disse em voz quase súplice -, reconheço, agora, a linha

de responsabilidades sociais que nos separam, mas será possível que me

houvesses esquecido?

- Senhora - respondeu o patrício, emocionado e respeitoso -, dentro

do nosso foro íntimo, todo o passado deve estar morto. Se vos ofendi no

passado, confesso-me agradecido pelo vosso esquecimento. De outro

modo, qualquer aproximação entre nós representaria uma fórmula de

existência odiosa e impossível.

A favorita de Adriano sentiu fundo a firmeza daquelas palavras, que

lhe gelavam o coração inquieto e sôfrego, retorquindo, todavia, sem vacilar:

- A mulher conquistada jamais poderá considerar-se mulher

ofendida. As mãos que amamos nunca nos chegam a ferir, e eu, em tempo

algum, consegui olvidar tua afeição.

Imprimindo à voz uma inflexão de humildade, acrescentava:

- Helvídio, tenho sofrido muito, mas, tenho-te esperado em toda a

vida. Vencida e humilhada na juventude, não sucumbi ao desespero para

aguardar, confiante, o teu regresso ao meu amor. Quererias, porventura,

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

aniquilar-me agora que te venho oferecer, humildemente, todos os tesouros

da vida amontoados com zelo para te ofertar?

As últimas palavras foram sublinhadas de profundo desencanto, à

face de si mesma, e Helvídio Lucius, compreendendo o seu

desapontamento, prosseguiu sem hesitar:

- Precisais considerar que jurei fidelidade e dedicação a uma

criatura generosa e leal, além de estardes, também vós, comprometida com

um homem nobre e digno . Acaso desejaríeis quebrar um voto contraído

perante os nossos deuses?...

- Nossos deuses? - repetiu a interpelada com uma ponta de ironia. -

E chegam eles a impedir os divórcios numerosos de tantas

personalidades da Corte? E esses exemplos, porventura, não nos chegam

de cima, dos altos postos onde domina a autoridade direta do Imperador?

Não cogito de situações, para, antes de tudo, satisfazer minha sensibilidade

feminina.

- Bem se vê - replicou Helvídio irônico - que desconheceis a

tradição de um nome de família. Os que desejam continuar os valores dos

séculos que passaram, não podem aventurar-se com as novidades da época,

de maneira a permanecerem fiéis ao patrimônio recebido de seus

ascendentes.

Cláudia Sabina mordeu os lábios, nervosamente, recebendo

aquela alusão direta à sua antiga situação de plebéia, murmurando com

altivez:

- Não concordo contigo, neste particular. Os triunfadores não

podem ser os tradicionalistas, que recebem um nome feito para brilhar no

mundo e, sim, os que, triunfando da própria condição e do meio ambiente,

sabem elevar-se às culminâncias sociais, como águias da inteligência e do

sentimento, obrigando o mundo a lhes reverenciar as conquistas e os

méritos.

O orgulhoso romano sentiu a azedia da resposta, sem encontrar

recursos imediatos para revidar com as mesmas armas, porém, a antiga

plebéia acrescentou com sorriso enigmático :

- Apesar da tua impassibilidade, continuarei guardando as minhas

esperanças. Acredito que não deixarás de aceitar a honrosa incumbência de

Augusto para conclusão das obras de Tibur, que, atualmente, constituem a

sua preocupação de todos os instantes.

- Sim - murmurou o patrício algo contristado -, terei de cumprir as

determinações de César.

Preparava-se a favorita para retorquir, quando Publício Marcelo,

companheiro de Lólio Úrbico em seus notáveis feitos de armas, se

aproximou ruidosamente, roubando-lhes a possibilidade de prosseguir na

confidência e atirando-lhes um convite amável :

- Amigos - exclamou esfuziante de alegria -, acerquemo-nos do lago

! Vergílio Prisco vai cantar uma das suas mais belas composições em

homenagem a César!

Helvídio e Cláudia, colhidos numa onda de chamamentos alegres,

separaram-se involuntariamente, para atender aos convites afetuosos.

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

Com efeito, nas bordas da grande piscina rodeada de árvores

frondosas, toda a massa de convidados se comprimia sôfrega. Mais alguns

instantes e a voz aveludada de Vergílio enchia o ambiente de sonoridades,

entre as quais se destacavam as notas melodiosas das cítaras e dos

alaúdes que o acompanhavam .

Do alto do trono improvisado, Adriano ouvia-o embevecido,

recebendo a homenagem dos súditos fiéis às suas vaidades imperiais.

Em ligeiro retrospecto acompanhemos, contudo, Alba Lucínia e

Lólio Úrbico através de pequeno giro pelas alamedas claras e floridas.

A nobre senhora guardava a severidade graciosa dos seus traços

de madona, enquanto o companheiro se mostrava eminentemente

emocionado.

Em palestra aparentemente despreocupada, o prefeito dos

pretorianos parecia distanciar-se, intencionalmente, dos grupos

numerosos, desejoso de manifestar os pensamentos secretos que lhe

atormentavam o íntimo desolado .

Em dado instante, muito pálido, exclamou em atitude quase súplice

:

- Senhora, eu vos vi pela primeira vez há mais de vinte anos...

Celebravam-se os vossos esponsais com um homem digno e eu lamentei,

sinceramente, não haver chegado mais cedo para disputar-vos ! . . . Acredito

que vosso coração se alarme com estas minhas revelações inoportunas,

mas, que fazer, se o homem apaixonado é sempre a mesma criança de todos

os tempos, que não mede situações nem circunstâncias para ser sincero ? .

. Perdoai-me se vos ofendo a suscetibilidade superior e generosa, mas,

tenho necessidade inelutável de vos afirmar de viva voz o meu amor...

Alba Lucínia escutava-o, penosamente impressionada com aquelas

declarações sinceras e peremptórias. Desejou responder-lhe com a

austeridade dos seus elevados princípios, como esposa e mãe, mas,

amarga comoção parecia paralisar-lhe as cordas vocais, naquelas difíceis

circunstâncias.

Retomando a palavra e tornando-se mais veemente, Lólio Úrbico

prosseguia:

- Desperdicei a mocidade com os mais dolorosos pesares íntimos...

Minha alma procurou, em vão, por toda parte, alguém que se parecesse

convosco. Resvalei por aventuras escabrosas, nas minhas tristes empresas

militares, ansioso de encontrar o coração que adivinho em vosso peito!

Minha existência, posto que fortunosa, está saturada de amarguras

infinitas... Será que me não concedereis o lenitivo de uma esperança? Terei

de morrer, assim, estranho e incompreendido?. . Displicentemente, dei meu

nome e posição social a uma mulher que me não pode satisfazer as

expressões elevadas do espírito . Dentro do lar, somos dois

desconhecidos... entretanto, senhora, nunca pude esquecer o vosso perfil

de madona, esse olhar divino e calmo, onde leio agora as páginas de luz da

vossa virtude soberana!...

No meu ambiente social tenho tudo que a um homem é lícito

desejar: fortuna, privilégios políticos, fama e nome, degraus que escalei

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

facilmente entre as classes mais nobres; o coração, porém, vive em

desalento irremediável, aspirando a uma felicidade inatingível. . . Enquanto

vos conserváveis na Província, possível me foi contemporizar com os

próprios amargores ; mas, depois que, vos revi, experimento nalma um

desencadeado Vesúvio de chamas!... Tenho as noites povoadas de

inquietações e amarguras, quais as de um náufrago, vendo além a ilha da

sua ventura, distante e inatingível .

Dizei que vosso coração há-de acolher-me as súplicas; que me

vereis com simpatia ao vosso lado. Se não puderdes retribuir esta paixão,

enganai-me ao menos com a vossa amizade honrosa e enobrecedora,

reconhecendo em mim algum de vossos servos...

A nobre senhora tornara-se lívida, o coração, lhe pulsava alarmado,

em ritmo violento :

- Senhor Prefeito - conseguiu balbuciar, quase desfalecente -,

lamento bastante haver inspirado sentimentos dessa natureza e não posso

honrar-me com a vossa homenagem afetiva, porquanto vossas palavras

evidenciam a violência de paixão insensata e desastrosa. Meus deveres

sagrados, de, esposa e mãe, impedem-me de considerar quanto acabais de

dizer. Mantenho sincero propósito de vos considerar o cavalheiro ilustre e

digno, o amigo dedicado e honesto de meu pai e de meu marido, a cujo

destino, por afeição natural, estou ligada para sempre.

Lólio Úrbico, habituado às transigências femininas da Corte, em

face da sua posição e predicados, empalideceu de súbito, ao ouvir a recusa

nobre e digna. Avaliou num relance o quilate espiritual da criatura

ardentemente cobiçada há tantos anos. No seu íntimo, de mistura com o

amor, próprio humilhado, havia igualmente um ressaibo de vergonha para

consigo mesmo.

Baixando, todavia, o olhar despeitado, falou quase súplice :

- Não desejo passar a vossos olhos como um espírito grosseiro e

incompreensivo! A verdade, porém, é que continuarei a vos amar da

mesma forma. Vossa formal e delicada recusa agrava a minha ambição de

possuir-vos. Por quanto tempo, ó deuses do Olimpo, prosseguirei assim,

incompreendido e torturado?

Erguendo os olhos, notou que Alba Lucínia chorava,

contristada. Aquela dor serena e justa penetrou-lhe o coração qual o

gume de uma espada.

Lólio Úrbico sentiu, pela primeira vez, que a materialidade de sua

paixão produzia sentimentos de angústia e piedade.

- Senhora - exclamou aflito -, perdoai se vos fiz chorar com as

expressões mal-avisadas dos meus tristes padecimentos. Quero-vos muito,

muito... Desposastes um homem honesto e digno e acabo de cometer a

loucura de vos propor a sua desonra e desventura... Perdoai-me! Fui

vítima de um instante penoso de criminosa insânia... Apiedai-vos de mim,

que tenho vivido até agora abatido e desolado.

Um mendigo do Esquilino é mais feliz do que eu, embora estenda

as mãos à caridade pública! Sou um desgraçado . . . tende compaixão

do meu padecer angustioso. Por muitos anos guardei no íntimo estas

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

emoções rudes e penosas e vós sabeis que a alma do soldado tem de ser

cruel e impassível, recalcando os pensamentos mais generosos!.. Jamais

encontrei um coração que compreendesse o meu, razão por que não

hesitei em vos ofender a dignidade irrepreensível ! . .

Alba Lucínia escutava-lhe as súplicas sem compreender os

contrastes daquela alma violenta e sensível. Houve um silêncio penoso para

ambos, quando alguém, atravessando as filas de arvoredos, exclamava

em voz cheia, rente de seus ouvidos:

- Vinde ouvir Vergílio Prisco ! Associemo-nos às homenagens a

César!. .

Lólio Úrbico verificou a impossibilidade de prosseguir em suas

confidências e oferecendo o braço à nobre senhora, que o acompanhou com

um sorriso triste, seguiram em direção ao lago, onde, momentos antes,

víramos chegar Helvídio e Cláudia Sabina.

Em torno do cantor reuniam-se todos os convivas, numa

assembléia compacta e distinta, atentos à homenagem que o Imperador

recebia, sereno e envaidecido.

A canção encomendada pelos anfitriões era um longo poema no

estilo da época, onde os feitos de Adriano excederam, glorificados, a todas

as realizações precedentes do Império . Nas expressões bajuladoras do

artista, herói algum o havia excedido nos feitos brilhantes de Roma.

Generais e poetas, cônsules e senadores célebres ficavam aquém do que

tivera a ventura de ser filho adotivo de Trajano.

No alto do trono ali erguido a caráter, o Imperador dava largas à

sua vaidade pessoal, com francos sorrisos.

Todos o rodeavam. Numerosas autoridades lá estavam, associandose

ao honroso preito de Fábio Cornélio e família.

Não podemos esquecer que Helvídia e Caio Fabrícius lá se viam

juntos e embevecidos na sua risonha primavera de amor, enquanto Cneio

Lucius, obrigado pelas circunstâncias a comparecer, amparava-se ao braço

de Célia, meio trêmulo na sua avançada velhice e desejoso de patentear

aos filhos que o seu coração também participava do júbilo geral.

Emudecidos os alaúdes, uma legião de jovens despetalou centenas

de róseas coroas trazidas por escravos em grandes bandejas prateadas;

envolvendo o trono em nuvem de pétalas odorantes.

Vibraram novas harmonias e o coro dos dançarinos exibiu novos

bailados, cheios de figurações interessantes e estranhas.

O vinho transbordou, enchendo quase todas as frontes de

fantasia e, com a caçada dos antílopes fabulosos, terminou a festa que ficou

gravada, para sempre, na mente de todo o patriciado.

Helvídio Lucius e Alba Lucínia volveram ao lar, sob o peso de

indefinível angústia.

Surpreendidos pelos acontecimentos inesperados, quanto às

penosas emoções de que haviam sido vítimas, observava-se em ambos o

recíproco efeito de uma confidência desagradável e dolorosa.

Voltando, todavia, à intimidade doméstica, a nobre senhora disse

ao esposo em tom de amargura:

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

- Helvídio, muitas vezes desejei ardentemente retornar a Roma,

saudosa das nossas amizades e do incomparável ambiente citadino; mas

hoje compreendo melhor a calma do campo, onde vivíamos sem cuidados

penosos. Os anos da Província me desacostumaram das intrigas da Corte e

essas festividades, de agora, como que me cansam profundamente o

coração.

Helvídio ouviu-a, sentindo que o seu estado dalma era bem

aquele, tal o tédio que se apossara dele, depois dos espetáculos que lhe fora

dado observar, considerando também as penosas emoções que aquela

noite lhe proporcionara.

- Sim, querida - replicou algo confortado -, tuas palavras fazem-me

grande bem ao coração. Regressando a Roma, reconheço que estou

também farto dos ambientes de convenção e hipocrisia. Temo a cidade

com os seus perigos numerosos para esta nossa ventura, que desejamos

imperecível!

E, recordando mais detidamente as dolorosas comoções

experimentadas horas antes, com as confidências de Sabina, atraiu a

esposa ao coração, acrescentando com o olhar incendiado de súbito

clarão :

- Lucínia, uma idéia nova aflora-me ao espírito ! Que me dirias da

nossa volta ao campo acolhedor e tranqüilo ? Lembremo-nos, querida, de

que a revolução terminou e não será difícil readquirir-mos as antigas

propriedades da Palestina.

Reataríamos assim a nossa tranqüila existência na Província, sem

as preocupações exaustivas e dolorosas que aqui nos assaltam . Cuidarias

das tuas flores e eu continuaria zelando pelos interesses de nossa casa.

Prometo-te que farei tudo por te fazer a vida menos triste, longe de

teus pais! Conservaria conosco somente os escravos da tua predileção e

buscaria aconselhar-me constantemente contigo, no desdobramento de

todos os trabalhos!..

Levar-te-ia comigo, em todas as viagens... nunca mais te deixaria

isolada em casa, preocupada e saudosa...

Helvídio Lucius imprimia à voz um tom singular e fundamente

expressivo, como se estivesse desdobrando, ante o olhar lacrimoso da

esposa, as perspectivas cariciosas de um quadro primaveril.

- Quem sabe - continuava de olhos brilhantes - poderíamos voltar à

Judéia, para sermos ainda mais alegres e mais felizes?! Nossa Helvídia tem

o futuro assegurado com o enlace próximo e ficaria Célia para enriquecer a

felicidade doméstica ! . . De volta, percorreríamos toda a Grécia, a fim de

visitar o mais antigo jardim dos deuses, e, quando em Samaria e na

Induméia, haverias de ver os milagres do meu coração no afã de fazer-te

risonha e venturosa! Passearemos, então, juntos como outrora, pelas

estradas enluaradas, no silêncio das noites calmosas, para melhor

sentirmos a extensão do nosso amor venturoso.

Aqui, sinto a nossa paz doméstica ameaçada a cada passo . . . As

intrigas da Corte me atormentam o coração ! . . Entretanto, somos ainda

moços e temos diante de nós um futuro promissor.

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

Acredita, querida, que alimento o maior desejo de voltar ao nosso

remanso de paz, no seio da Natureza calma e generosa!. .

Alba Lucínia ouvia-o, aliviada das próprias angústias. Uma lágrima

lhe brilhava à flor dos olhos, tinha o coração alvoroçado com a risonha

expectativa de regressar à tranqüilidade da vida provinciana.

Não obstante o júbilo dessas esperanças, sua atitude mental se

caracterizava pela mais funda reflexão .

- Helvídio - exclamou confortada -, essa perspectiva de voltarmos ao

ambiente campestre, com a nossa ventura e o nosso amor, consola-me o

espírito abatido. Mas, ouve-me: e os nossos deveres? Que dirá meu pai da

nossa atitude, depois de haver lutado tanto para reajustar tua situação à

política administrativa do Império? Enfim, desejo saber se não chegaste a

assumir qualquer compromisso mais sério .

Em lhe ouvindo as serenas ponderações, o patrício recordou,

subitamente, o compromisso com o Imperador, concernente às

construções de Tibur, e sentiu-se gelado, depois da eclosão de suas

entusiásticas esperanças.

Informou, então, à companheira, da solicitação do César,

respondendo-lhe ela com um suspiro de pesar.

- Neste caso - exclamou Alba Lucínia com uma ponta de

contrariedade nas expressões familiares -, é tarde para cogitarmos do nosso

imediato regresso à Província.

O marido reconheceu, com mágoa, a justeza da ponderação, mas,

acrescentou:

- Em última análise, falarei amanhã a Fábio Cornélio, expondo-lhe

as minhas apreensões a respeito e, mesmo que ele não aprove nosso

regresso, mantenhamos esperanças, pois os deuses hão-de permitir

nossa volta mais tarde!.

Embora a profunda intimidade daquele desabafo, nem um nem

outro se sentiu com a coragem precisa para revelar as penosas emoções

daquela noite .

E, no dia seguinte, ambos ainda se ressentiam do primeiro embate

das lutas sentimentais que os aguardavam no ambiente da grande

metrópole.

Procurando o sogro, Helvídio Lucius expôs-lhe, sem reservas, seus

planos e desejos. Além de manifestar o propósito de voltar à Palestina,

falou igualmente da pretensão imperial de lhe utilizar os préstimos pessoais

nas obras de Tibur.

Fábio Cornélio recebeu aquelas alegações tomado de surpresa,

reprovando os projetos do genro e encarecendo-lhe que semelhante alvitre

demonstrava muita infantilidade da sua parte, em tais circunstâncias.

Não estava com a posição financeira consolidada? Não representava um

fator de paz a sua permanência em Roma, ao lado de toda a família? Não

conseguira as graças de Adriano, a ponto de se integrar no mecanismo

político-administrativo com todas as honras de um tribuno militar ?

Em face da recusa obstinada, em voz baixa e em tom discreto,

Helvídio relatou ao sogro as suas aventuras da mocidade, dizendo-lhe das

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

novas pretensões de Cláudia Sabina e da sua difícil situação doméstica, no

sagrado aconchego da família.

O velho censor ouviu-lhe a confidência um tanto surpreso, mas

obtemperou :

- Meu filho, compreendo os teus escrúpulos; entretanto, devo falarte

com a mesma franqueza com que te confessas, esclarecendo que, na

minha atual situação, dependo inteiramente do apoio de Lólio Úrbico e de

sua mulher, no mundo da política e dos negócios. Minha posição financeira,

infelizmente, é agora assaz precária, em vista dos numerosos gastos

impostos pelas circunstâncias. Se te for possível, auxilia-me nestas

contingências.

Não recuses a oportunidade que Adriano te oferece em Tibur, e faze

o possível por não desgostares o espírito vingativo de Cláudia,

principalmente nas atuais circunstâncias de nossa vida.

Helvídio compreendeu a impossibilidade de abandonar o velho

sogro e sincero amigo, em tais conjunturas, e buscou prover-se de energias

íntimas, de modo a não deixar transparecer qualquer constrangimento .

- Ao demais - exclamou o censor tentando fazer humorismo para

dissipar as sombras do ambiente sentimental criado entre ambos -,

espero não te percas em receios pueris nas situações mais difíceis... Não

tenhas medo, filho, dessa ou daquela circunstância!.

E esboçando um sorriso benévolo, acrescentava:

- Sabes o que dizia Lucrécio há mais de cem anos? - "que a mulher

é o animalzinho santo dos deuses!"

Entre ambos esboçou-se, então, um riso franco e otimista, embora

no íntimo continuasse Helvídio Lucius a guardar as suas apreensões.

Por sua vez, Alba Lucínia, na manhã daquele mesmo dia, procurou

aconselhar-se com sua mãe acerca de suas amarguradas reflexões; mas

Júlia Spinter, após ouvir-lhe a exposição dos episódios da véspera, com o

coração tocado de pressentimentos angustiosos pela situação da filha,

replicou com os olhos úmidos, sem perder, todavia, a sua fortaleza moral:

- Filhinha - disse, beijando-a -, atravessamos uma fase de lutas

amargas, em que somos obrigados a demonstrar toda a nossa capacidade

de resistência. Sei avaliar tua angústia íntima, porque, na mocidade, também

experimentei essas emoções penosas, no torvelinho das atividades sociais.

Se me fosse possível, romperia com a situação e com todos, em benefício da

tua tranqüilidade, mas. .

Aquelas reticências significavam tal desalento que Alba Lucínia se

comoveu, interpelando-a.

- Que dizes, mamãe? Esse "mas" tem tanta amargura que chega a

surpreender-me, como que adivinho em teu espírito preocupações

porventura mais graves que as minhas.

- Ora, filha, como mãe, sou levada a interessar-me pela tua como

pela minha própria felicidade. .. Entretanto, inteirada dos negócios de teu pai

e dos laços que o prendem à política do prefeito dos pretorianos, colijo que

Fábio não poderia desligar-se, no momento, de Lólio Úrbico, sem graves

prejuízos financeiros. Ambos se encontram profundamente vinculados na

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

situação atual, de modo que, apesar da franqueza com que sempre assinalei

minhas palavras e atos, sou levada a aconselhar-te a máxima prudência a

prol da tranqüilidade de teu pai, que deve merecer os nossos sacrifícios.

As palavras da nobre matrona eram ditas em tom de amargurada

tristeza.

Quanto a Alba Lucínia, muito pálida, após receber-lhe as penosas

confidências, perguntou:

- Mas a situação financeira de meu pai é assim tão precária? A

festividade de ontem dava-me a entender o contrário...

- Sim - esclareceu Júlia Spinter resignada - infelizmente os fatos

vêm justificar os meus íntimos desgostos. Conheces o temperamento de teu

pai e sabes da minha necessidade em lhe acompanhar os caprichos. Não

consideraria necessária uma festa como a de ontem, para dar a entender que

te estimo. Julgo que essas comemorações devem ser feitas na

intimidade do coração e da família; mas teu pai pensa de modo contrário e

devo acompanhá-lo. Só as despesas dessa noite elevaram-se a muitos

milhares de sestércios. E não é só. Teus irmãos têm dissipado quase todo

o patrimônio da família, assumindo compromissos de toda espécie, que teu

pai é compelido a resgatar com os mais sérios prejuízos para a nossa casa.

Como já sabes, os escândalos de Lucília Veinto obrigaram Asínio a

ausentar-se para a África, onde prossegue, ao que sabemos, na mesma rota

dos prazeres fáceis. Quanto a Rútrio, foi preciso que teu pai lhe conseguisse

uma comissão na Campânia, a fim de tentar a restauração do nosso

equilíbrio financeiro. No entanto, filha, não ignoras como a sociedade nos

exige a máscara da ventura... Em princípio, não aprovo a atitude de Fábio,

realizando festas como a de ontem, mas, ao mesmo tempo, sou forçada a

lhe dar razão, porquanto, um censor tem de andar em dia com as

convenções sociais.

Alba Lucínia, ouvindo aquelas confidências, encheu-se de

compaixão pela genitora, exclamando :

- Basta, mamãe ! Eu sei compreender-te. Este assunto deve ficar

entre nós e eu saberei conduzir-me através de todas as dificuldades. Ainda

ontem, eu e Helvídio cogitávamos de regressar à Província, mas vejo que o

papai requer agora o nosso concurso e reconheço que teu coração

necessita do meu para enfrentar as circunstâncias da vida!. .

Júlia Spinter, comovida, abraçou a filha, reparando-lhe o olhar

brilhante, como se pressentisse algo perigoso para a sua felicidade.

- Que os deuses te abençoem, filhinha! - exclamou quase

radiante - ficarás comigo, sim, pois aqui tenho vivido muito incompreendida

e muito só ! . . Apenas a nossa querida Túlia se conserva fiel à minha antiga

afeição, vendo em mim a mãe adotiva que a Providência lhe concedeu!... Os

filhos, desde cedo, afastaram-se do lar para enveredar por maus

caminhos e teu pai está sempre ocupado em conferências e negócios do

Estado...

Por algum tempo, ainda mãe e filha se entretiveram em palestra

confidencial e carinhosa.

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

A situação geral continuou inalterável. Alba Lucínia e o esposo,

abandonando os propósitos de voltar ao ambiente provinciano, tudo fizeram

por atender às necessidades domésticas, permanecendo na Capital do

Império.

Daí a pouco tempo, deixando Nestório como auxiliar do sogro,

Helvídio Lucius retirava-se para Tibur, de modo a cumprir as determinações

imperiais, ali encontrando Cláudia Sabina instalada em posição de destaque.

Fosse pelo desejo de salientar-se aos olhos do patrício, graduando-se no

seu conceito, ou fosse anuindo à expansão de suas vocações inatas, a

esposa do prefeito fazia-se notável por suas providências na administração

das obras artísticas confiadas à sua sensibilidade feminina.

Helvídio Lucius foi compelido pelas circunstâncias a aproximar-se

dela, conhecendo-lhe de perto a surpreendente aptidão e admirando-lhe os

feitos com sinceridade, embora conservasse o espírito precavido contra

qualquer tentativa de retorno ao passado. Cláudia Sabina, entretanto,

apesar da modificação tática das suas operações sentimentais, guardava

no íntimo as mesmas pretensões de sempre.

Enquanto isso, Alba Lucínia começava a experimentar, em Roma,

uma longa série de padecimentos morais. Lólio Úrbico não cedeu em seus

propósitos, não obstante estar cônscio das suas elevadas virtudes

conjugais, tendo, porém, moderado os impulsos. A sociedade romana, de

então, amava os desportos e fazia questão de conservar as tradições de

liberdade no mecanismo das relações familiares, circunstância que lhe

facultava visitar a casa do patrício ausente, sob as vistas benévolas de Fábio

Cornélio, que via no seu carinhoso interesse um motivo de honrosa

distinção para a família. Contudo, a nobre senhora, que conhecia as

necessidades paternais, não se sentia com a precisa coragem para confiar

ao velho censor os seus justos receios, sujeitando-se, desse modo, a tolerar

a amizade que o prefeito lhe oferecia, aceitando-a com a intangibilidade do

seu caráter.

Helvídio Lucius vinha ao lar quinzenalmente. Todavia, essas

surtidas a Roma eram excessivamente rápidas para poder combinar

devidamente, com a esposa, a solução de todos os assuntos que os

preocupavam.

E o tempo corria, carregando sempre as suas reservas preciosas.

Alguém havia que se interessava a fundo pela situação do prefeito,

espionando-lhe facilmente os menores passos. Esse alguém era Hatéria,

que, na própria casa dos amos, podia observar-lhe o interesse, ouvir-lhe as

impressões e as palestras, acompanhando as suas atitudes sentimentais.

Dois longos meses haviam transcorrido nessa situação, quando,

um dia, vamos encontrar Lucínia e Túlia na maior intimidade, em palestra

amena e confortadora.

Após as pequeninas bagatelas sociais, a esposa de Helvídio falou

confidencialmente das suas amarguradas impressões íntimas, expondo à

amiga da infância os seus receios em face da prolongada separação do

esposo, que, obedecendo a caprichosas determinações do destino, parecia

continuar indefinidamente na cidade da predileção imperial .

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

Túlia Cevina olhou-a fixamente, murmurando em tom discreto :

- Sei justificar as tuas apreensões, ainda mais continuando Helvídio

junto de Cláudia!. .

- Porque ligas tanta importância a essa circunstância? - interrogou

Alba Lucínia admirada.

- Nunca soubeste, então ?

- Quê? - disse a outra duplamente curiosa.

Túlia compreendeu que a amiga, longe dos ruídos da Corte, por

muitos anos, não chegara a conhecer o passado em suas minudências.

- Há muito ouvi dizer que Cláudia Sabina e Helvídio Lucius tiveram

o seu romance de amor na mocidade. Creio que não ignoras ter sido essa

criatura portadora de beleza singular, em outros tempos, muito antes que

o destino a arrancasse da pobreza de sua condição social..

- Nunca cheguei a sabê-lo - murmurou Alba Lucínia visivelmente

sobressaltada -, mas, conta-me tudo que sabes a respeito.

- Nunca ouviste, também, a história de Silano? - perguntou ainda

Túlia Cevina, aumentando o interesse provocado por suas palavras.

- Sim, sei que Silano é um rapaz que meu sogro adotou como seu

próprio filho, sabendo, igualmente, que, quando ele nasceu, muita gente

acreditou fosse filho de Helvídio com uma criatura do povo, nas suas

aventuras da mocidade.

- Mas, conheces toda a história nos seus pormenores mais

íntimos?

- Sei apenas que o pequenino foi enjeitado à porta de Cneio

Lucius, que o acolheu com a sua habitual generosidade.

- Muito bem, minha amiga, mas não faltou quem visse Cláudia

Sabina, ainda jovem e plebéia, abandonar a criança, alta madrugada, no local

a que te referiste, endereçando a Cneio Lucius um bilhete expressivo .

- Em qualquer hipótese - esclareceu Alba Lucínia, apesar de

impressionada com aquela revelação -, eu acredito que Helvídio foi vítima de

uma calúnia infame.

- Não digo o contrário - volveu a amiga -, mesmo porque Sabina, ao

que se diz, era dessas criaturas que vivem cercadas por ansiedades

diferentes...

A esposa de Helvídio experimentava uma dor imensa no íntimo.

Desejou chorar, desabafando as mágoas que lhe azorragavam o peito, mas,

sua fortaleza moral superava, em seu espírito, todos os sentimentos. Não

lhe foi possível, contudo, dissimular o sofrimento, diante da carinhosa irmã

espiritual dos primeiros anos, deixando transparecer, de olhos úmidos, suas

amarguras e receios.

Túlia Cevina beijou-a longamente, dizendo-lhe à meia voz :

- Querida Lucínia, também eu já sofri essas angústias que vens

experimentando, mas encontrei

um remédio eficaz. Queres experimentá-lo?

- Sem dúvida. Onde encontrar esse recurso?

- Ouve-me - exclamou a amiga com as características da sua

bondade confiante e quase infantil -, certamente já ouviste falar de Lucília

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

Veinto e de seus escândalos na Corte. Certa feita, Máximo deu mostras de

sua inclinação por essa mulher, chegando a abalar profundamente a nossa

felicidade doméstica; mas Sálvia Súbria ensinou-me a procurar uma reunião

cristã, onde pedi as preces

de um venerando ancião que ali pontifica como um

sacerdote. Desde que me vali desse recurso, meu

marido voltou ao remanso do lar, aumentando o

quinhão da nossa ventura conjugal.

- Mas, foste obrigada a qualquer compromisso? - interrogou

Alba Lucínia eminentemente interessada no assunto .

- Nenhum.

- Mas os cristãos praticaram algum sortilégio em teu benefício?

- Também não . Informaram-me de que a virtude da prece está na

circunstância de ser dirigida a um novo deus, a quem os crentes

denominam Jesus de Nazaré.

- Ah ! - disse Alba Lucínia lembrando-se da Judéia e das

convicções da filha - a doutrina cristã não me é estranha, mas meu marido

não lhe tolera as expressões contrárias aos nossos deuses. Julgo, pois, que

antes de tomar uma resolução dessa natureza, será conveniente ouvir

minha mãe, a fim de lhe seguir os conselhos.

- Isso não.

- Porquê?

- Porque, ao receber o conselho de Sálvia, também procurei tua

mãe para falar-lhe do assunto, mas, dentro do seu espírito formalista e da

sua franqueza intransigente, mostrou-se hostil aos meus desejos, alegando

que a mulher romana dispensa novos deuses para ser a matrona

incorruptível perante a sociedade e a família. Apesar de tudo, resolvi tentar o

recurso e obtive os melhores resultados.

- Minha mãe deve estar com a razão – falou Alba Lucínia convicta. -

Além disso, não posso conformar-me com a promiscuidade desses

ajuntamentos plebeus.

Túlia ouvia-lhe as ponderações, sinceramente desejosa de

colaborar na reedificação de sua ventura doméstica, objetando

delicadamente:

- Ouve Lucínia: sei que o teu temperamento não se compadece com

as reuniões dessa natureza, mas, se quiseres, irei por ti, como fui por mim...

A essas assembléias, preside um homem santo, chamado Policarpo . Sua

palavra nos fala do novo deus com uma fé tão pura e uma sinceridade tão

grande, que não há coração que se não renda à beleza espiritual das suas

afirmativas... Suas expressões arrebatam nossa alma para um reino de

felicidade eterna, onde Jesus Nazareno deve estar à frente de todos os

nossos deuses, aguardando-nos, além desta vida, com as bênçãos de uma

bem-aventurança eterna...

Não sou cristã, como sabes, mas fui beneficiada pelas suas

orações e, ao contrário do que afirmam, posso testificar que os adeptos

de Jesus são pacíficos e bons!. .

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

A esposa de Helvídio recebia-lhe as carinhosas sugestões com o

coração imensamente sensibilizado .

- E irás sozinha, sem a proteção de uma guarda? - perguntou com

admiração.

- Porque mo perguntas? Os cristãos são vítimas de medidas

vexatórias por parte das autoridades governamentais; porém, irei ter com

eles confiadamente, uma vez que se trata da tua felicidade pessoal.

- Tens uma fé assim tão grande nessa providência?! . - interrogou

Lucínia com interesse e reconhecimento.

- Confiança total.

E, fazendo um gesto expressivo, como se houvera recordado um

recurso novo, acrescentou:

- Ouve, querida: já que me falaste das predileções de Célia por essa

doutrina, apesar do nosso segredo familiar sobre o assunto, porque não me

permites o prazer da sua companhia? Essas reuniões se verificam nas

velhas catacumbas da Via Nomentana e o local é muito distante. Tenho plena

confiança no êxito dessas orações e bastará uma só vez para que a paz volte

a felicitar tua casa e teu coração.

Alba Lucínia sentia-se confortada com as promessas da amiga,

considerando-lhe a fé profunda e contagiosa, na grata perspectiva da

felicidade doméstica, e acrescentou:

- Vou pensar e depois combinaremos. Mas, se necessitares de

uma companhia, é a mim que compete acompanhar-te .

Separaram-se, então, com um beijo afetuoso, enquanto o vulto

esguio de Hatéria se afastava lesto de uma ampla cortina oriental, depois de

ouvir a singular entrevista.

Dentro de uma sociedade como aquela, onde todas as classes,

desde os primórdios, em virtude das influências etruscas, recorriam ao

invisível e ao sobrenatural, nas mais diversas contingências da vida,

Alba Lucínia passou a meditar na preciosa oportunidade sugerida pela

amiga de infância.

Embora encontrasse conforto na expectativa do empreendimento,

passou o resto do dia entre a indecisão e o sofrimento moral.

Teve ímpetos de ir a Tibur para arrancar o esposo de todas as

perigosas situações em que se encontrava, mas o raciocínio preponderou

em todas as suas inquietações angustiosas.

A noite, enquanto todos dormiam, dirigiu-se ao santuário

doméstico e, prosternando-se junto ao altar de Juno, suplicou à deusa,

entre lágrimas, que lhe amparasse o espírito nos caminhos ásperos do

dever e da virtude.

IV - NA VIA NOMENTANA

Uma semana depois do que vimos de narrar, vamos encontrar

Cláudia Sabina, à noite, no terraço de sua casa, em Roma, palestrando com

Hatéria na mais franca intimidade.

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

- Então, Hatéria - dizia à surdina, depois de longa exposição da

cúmplice -, meu esposo, assim, parece querer facilitar a realização de meus

projetos. Nunca o supus capaz de apaixonar-se por alguém, fora do

ambiente de suas armas.

- Entretanto, senhora, em cada gesto seu, em cada palavra,

inferem-se perfeitamente os sentimentos que lhe vão na alma.

- Está bem - exclamou a antiga plebéia como se o assunto a

enfadasse, - meu marido não é o homem que me interessa. Tuas notícias

de hoje significam que o acaso também coopera a meu favor.

- Além de tudo - lembrou Hatéria, acentuando o caráter secreto

daquelas revelações -, Lucínia e Túlia combinaram solicitar uma bênção na

reunião cristã, a fim de que Helvídio Lucius volte imediatamente de Tibur, a

reintegrar-se na harmonia doméstica.

Cláudia deixou escapar um riso nervoso, mas interrogou com

avidez:

- Sim? E como o soubeste?. .

- Há uma semana elas trocaram confidências e ontem, à noite,

assentaram o plano, embora a patroa se encontre bastante abatida,

acreditando eu que venham a realizá-lo nestes quatro dias.

- Convém estares vigilante para acompanhá-las, sem que o

percebam, de modo a prosseguires ciente dos acontecimentos.

E, esboçando um gesto de malícia, sentenciou:

- Essas senhoras desconhecerão, porventura, os editos imperiais

que visam à eliminação do Cristianismo? Que descaso das leis?. . . Enfim,

contribuiremos também, de algum modo, para que as autoridades fixem

esse novo foco doutrinário. Depois dos teus informes, falarei com Quinto

Bíbulo a respeito.

Hatéria e Cláudia palestraram ainda algum tempo, examinando

os detalhes de suas intenções criminosas e assentando os projetos

nefandos e adequados ao caso.

Pela manhã do dia imediato, uma liteira modesta saía do palácio do

prefeito, conduzindo alguém que se ausentava de casa com a máxima

discrição.

Era Cláudia Sabina, que, em trajes muito simples, mandava seguir

para a Suburra.

Após exaustivo trajeto, mandou que os escravos de confiança a

esperassem em local convencionado e internou-se, sozinha, por vielas

ermas e pobres.

Atingindo um quarteirão de casas humildes e pequeninas, parou

subitamente como se desejasse certificar-se do local, fixou à pequena

distância uma casa esverdeada, de feição característica, que a diferenciava

de todas.

A esposa de Lólio Úrbico esboçou um sorriso de satisfação e,

estugando o passo, bateu à porta com visível interesse.

Daí a momentos, uma mulher velhíssima e de má estatura, cabelos

desgrenhados e largos vincos a lhe enrugarem o rosto, veio atendê-la com

expressão de curiosidade nos olhos empapuçados e pequeninos.

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

Observando a visitante, que ostentava uma toga simples, mas rica,

além da rede dourada a prender-lhe a cabeleira graciosa e abundante, a

velha sorriu satisfeita, farejando a boa situação financeira da cliente que

lhe buscava os serviços.

- É aqui - perguntou Cláudia com mal disfarçada modéstia - que

reside Plotina, antiga pitonisa de Cumas?

- Sim, senhora, sou eu mesma, para vos servir. Entrai. Minha

choupana honra-se com a vossa visita.

A esposa do prefeito sentiu-se bem com a recepção bajuladora e

fingida.

- Necessitando de sua cooperação - disse a visitante, penetrando

o interior com desembaraço -, vim procurá-la, em vista da recomendação

de uma das minhas amigas de Tibur.

- Muito grata, minha senhora, espero corresponder à vossa

confiança.

- Disseram-me que não precisaria expor o objeto de minha

consulta. Será, de fato, assim?. .

- Perfeitamente - esclareceu Plotina com a sua voz enigmática -,

meus poderes ocultos dispensam qualquer explicação da vossa parte.

Sentando-se num velho divã, Sabina reparou que a feiticeira

buscara uma trípode e colocara junto da mesma numerosos amuletos, nos

quais se esbatia a mortiça claridade de pequena tocha, acesa para atender

às necessidades do momento. Em seguida, depois de atitude contemplativa

e descansada, Plotina deixou pender a cabeça entre as mãos, ostentando

uma palidez cadavérica, como se a sua vidência misteriosa estivesse a

devassar as mais sinistras miragens nos planos invisíveis.

Cláudia Sabina seguia-lhe os mínimos movimentos com singular

interesse, entre o temor e a surpresa do desconhecido, mas, dentro em

pouco, a fisionomia da intermediária entre o mundo e as forças do plano

invisível normalizava-se, atenuando-se-lhe as contrações nervosas do rosto

e extinguindo-se as expressões de profundo cansaço, que lhe escapavam

dos lábios intumescidos.

De semblante sereno e curioso, como se a alma houvera

regressado de misteriosas paragens com as mais vastas revelações, tomou

as mãos aristocráticas de Cláudia, exclamando em tom discreto:

- Disseram-me as vozes que amais a um homem, preso a outra

mulher pelos laços mais santos desta vida. Porque não evitar a tempo uma

tempestade de amarguras que recairá, mais tarde, sobre o vosso próprio

destino? Viestes até aqui em busca de um conselho que vos oriente as

pretensões, mas seria melhor abandonardes todos os projetos que tendes

em mente . . .

Cláudia Sabina ouvia-a, assustada, mas obtemperou com

veemência :

- Plotina, conheço a elevação da tua ciência e venho recorrer aos

teus conhecimentos com uma confiança absoluta! Se a tua visão pode

devassar o passado, procura fixar no presente a única preocupação da

minha vida... Ajuda-me! Recompensarei regiamente os teus serviços!

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

A consulente abriu a bolsa repleta, deixando cair grande porção de

moedas na trípode, como se despejasse ali uma catadupa de sestércios,

enquanto a velha bruxa arregalava os olhos, na cupidez e na ambição dos

seus baixos sentimentos.

- Senhora - disse ela desejosa de alcançar os proventos de tão

grandes recursos financeiros -, já vos dei o primeiro conselho, que é o da

sabedoria que me assiste; mas também sou humana e quero corresponder à

vossa generosidade. Conheço os projetos que vos animam e procurarei

auxiliar-vos, a fim de que possais levá-los a bom termo !... Cumpre-me,

porém, esclarecer que a vossa rival está assistida por uma figura angélica,

embora eu não possa saber se essa criatura vive na Terra ou no Céu. No

meu poder oculto, vi a mulher que odiais nimbada pela aura intensa de um

anjo, junto dela.

E, como se estivesse travando um duelo de consciência, em face

da invejável situação financeira da consulente, acrescentou:

- Precisamos muito cuidado, senhora. . . Essa criatura celeste pode

defender a vossa rival de todos os sofrimentos estranhos ao seu destino...

- Mas, como pode ser isso ? ! - perguntou Cláudia Sabina

profundamente impressionada.

- Não terá filhos a vossa rival e, entre eles, não existirá algum de

coração puro e piedoso?

- Sim - exclamou a interpelada algo contrafeita -, embora não

saiba se alguma de suas filhas se encontra em tais condições. Entretanto,

não venho aqui para cuidar desse assunto e sim do meu próprio interesse

passional. Porque me falas, pois, dessa defesa angélica incompreensível

para mim?-

Senhora, hei-de ajudar-vos com todas as minhas forças, pois

tenho necessidade de dinheiro para atender a necessidades numerosas e

prementes, mas devo afiançar-vos que correremos o risco de perder nosso

esforço, porque um anjo de Deus pode aparar os golpes do mal, visto não

existir o sofrimento qual o entendemos, para os seus corações purificados.

Enquanto a inquietação e a dor podem arrastar as almas vulgares ao

torvelinho das paixões e padecimentos do mundo, o Espírito que se redimiu

realizou em si a edificação da fé, que o liga a Deus Todo-Poderoso. Para

esses corações imaculados, senhora, a Terra não pode engendrar o

tormento ou o desespero !

Cláudia escutava-lhe as ponderações, eminentemente

impressionada, mas, observou com o seu espírito expedito :

- Plotina, eu prefiro não acreditar nessa defesa, aceitando a

cooperação dos teus poderes ocultos, plenamente confiada no êxito de

minhas pretensões. Não me faças andar contigo em digressões filosóficas,

pois quero viver a minha própria realidade. Dize-me! Que sugeres a favor

da minha felicidade ?

- Em face da vossa decisão, temos de recorrer aos fatos mais

concretos.

- Acreditas que deva cogitar da eliminação da mulher que odeio ?

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

- Na vossa situação e em vosso caso, não devereis pensar no

aniquilamento do seu corpo, mas na flagelação da alma, considerando que a

única morte que se deve aplicar a um inimigo é a que se impõe a uma

criatura fora do sepulcro e em plena vida.

- Tens razão - murmurou Sabina interessada. - Teus argumentos

são mais inteligentes e mais práticos. Quais os teus conselhos a meu

favor?

Plotina fez longa pausa, como se fora formular nova consulta

íntima, ante a luz da tocha pequenina e bruxuleante, acrescentando em

seguida:

- Senhora, já tivestes o poder de transportar provisoriamente para

Tibur o homem amado... Devo informar-vos de que o Imperador Élio Adriano,

antes de retirar-se para os seus palácios em construção, na cidade aludida,

onde deverá aguardar o fim da existência, há-de fazer uma última viagem

pelas Províncias, obedecendo à sua conhecida vocação... Sereis compelida

a acompanhar-lhe o séquito, entrevendo-se aí a oportunidade de seguir,

igualmente, o homem da vossa dileção.

- Sim? - perguntou Cláudia visivelmente satisfeita. - E que me

aconselhas?

Plotina inclinou-se, então, colando os lábios rente aos seus

ouvidos, sugerindo-lhe um plano terrível e criminoso, que a consulente

acolheu com um sorriso significativo.

Palestraram ainda, largo tempo, como se as suas mentes se

casassem com absoluta sintonia de princípios, dentro das mesmas

intenções e fins, notando-se que, ao despedir-se, Cláudia averbou as

necessidades da sua nova cúmplice, prometendo-lhe providências

confortadoras, depois de lhe entregar todo o dinheiro que trazia.

Daí a algumas horas, a mesma liteira modesta regressava ao

palácio de Lólio Úrbico, pela porta dos fundos.

Dois dias depois, vamos encontrar, em casa de Helvídio Lucius,

Alba Lucínia e sua amiga fiel, em conversação discreta no apartamento

mais recôndito da casa.

Túlia Cevina apresentava as melhores disposições físicas, apesar

da preocupação que lhe vagava nos olhos, não acontecendo o mesmo à

esposa de Helvídio que, reclinada no leito, dava mostras do mais fundo

abatimento.

- Lucínia, minha querida - exclamou Túlia afetuosa -, já estou

avisada de que a reunião se efetuará esta noite. Estou à tua disposição para

irmos sem receio. Poderemos sair às primeiras horas da tarde.

- Impossível - replicou a pobre senhora, visivelmente enferma e

acentuando as palavras com dolorosa melancolia -, sinto-me profundamente

cansada e abatida! . . Entretanto, decidi no coração que recorrerei a essas

preces!... Necessito de algo sobrenatural que me devolva a paz do espírito. É

impossível prosseguir nesta angústia moral que me inutiliza todas as forças.

Lágrimas amargas lhe cortaram a palavra entristecida.

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

- Irei de qualquer modo - disse Túlia abraçando-a -, tenho fé em

que o novo deus nos valerá na situação de penosa incerteza em que te

encontras!. .

Observando-lhe a dedicação meiga e constante, Alba Lucínia

advertiu:

- Querida, não me conformaria em saber que foste só. Pedirei a

Célia que te acompanhe.

Túlia esboçou um sorriso de satisfação, enquanto a amiga ordenou

a uma jovem escrava fosse chamar a filha.

Daí a instante, surgia a donzela com o seu perfil gracioso.

- Célia - disse-lhe a genitora, sensibilizada e melancólica -, poderás

ir hoje à noite, em companhia de Túlia, a uma reunião cristã, a fim de fazeres

uma prece pela tranqüilidade de tua mãe?. .

A moça teve um gesto de surpresa, mas amplo sorriso de

satisfação lhe aflorou aos lábios.

- Que não faria por ti, mãezinha? E beijou-a.

Alba Lucínia sentiu o conforto imenso daquela ternura,

acrescentando:

- Filhinha, sinto-me cansada, doente e deliberei recorrer a Jesus

de Nazaré, com as tuas orações. Sabes, porém, da necessidade de não nos

externarmos com pessoa alguma a esse respeito, compreendes ?

A jovem fez um gesto expressivo, como quem se recordava das

próprias mágoas, exclamando:

- Sim, minha mãe. Fica tranqüila. Irei com Túlia, seja aonde for, de

modo a fazer as preces necessárias! Rogarei a Jesus que te faça ditosa

e espero que a sua infinita bondade derramará em teu coração o bálsamo

suave do seu amor, que nos enche de vida e de alegria. Então, verás como

energias novas hão-de felicitar o teu íntimo..

Túlia Cevina ouvia, muito interessada, aqueles conceitos,

admirando os conhecimentos da jovem, o que Lucínia logo esclareceu,

abraçando a filha ternamente :

- Célia conheceu intimamente, na Judéia, os assuntos atinentes ao

Cristianismo. Minha filhinha, apesar de muito nova, tem sofrido bastante..

Célia, no entanto, percebendo que a palavra materna entraria em

pormenores do seu doloroso romance de amor, exclamou com ternura:

- Ora, mãezinha, que poderia eu sofrer se tenho sempre o teu afeto

comigo?

E cortando o assunto relativo ao seu caso pessoal, obtemperou :

- A que horas deveremos sair?

- A tarde - informou Túlia -, porquanto a caminhada não será

pequena; a reunião é além da Porta Nomentana.

- Estarei preparada a tempo .

As três combinaram, então, todas as providências que lhes

pareceram indispensáveis e, ao cair da noite, envoltas em togas muito

simples, Túlia e Célia tomaram uma liteira, que lhes evitou o cansaço em

grande parte do caminho, através dos pontos mais freqüentados da cidade.

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

Descendo junto à Porta Viminal e dispensando os carregadores,

empreenderam a caminhada corajosamente .

A noite desdobrava o seu leque de sombras ao longo da planície.

Fazia frio, mas as duas amigas agasalharam-se nas capas de lã que levavam,

ocultando a cabeça na peça grossa e escura.

Era noite fechada quando atingiram as ruínas da antiga muralha,

que fortificara a região em outros tempos, mas avançavam sem desânimo,

através das estradas extensas. .

Franqueada a Porta Nomentana, viram-se à frente das colinas

próximas, ao longo das quais se alinhavam cemitérios desertos e tristes,

onde o luar se derramava em tons pálidos .

A medida que se aproximavam do local das pregações,

observavam um número cada vez maior de viandantes, que se aventuravam

pelas mesmas trilhas com idênticos fins. Eram vultos embuçados em longas

túnicas escuras, que passavam de flanco, a passo apressado ou vagaroso,

uns silenciosos, outros mantendo diálogos quase imperceptíveis.

Muitos empunhavam lanternas pequeninas, auxiliando a visão dos

companheiros, onde a claridade fraca do astro noturno não conseguia

espancar as sombras espessas.

As duas patrícias, vestidas com simplicidade extrema e

envergando os pesados mantos, não podiam ser identificadas na sua

posição social, pelos companheiros que se dirigiam ao mesmo destino, os

quais as consideravam cristãs como eles próprios, agermanados na fé e no

mesmo idealismo .

Defrontando os muros lodosos que circundavam grandes

monumentos em ruínas, Túlia certificou-se do local que dava acesso ao

recinto, fazendo um sinal da cruz característico a dois cristãos que, nos

pórticos, recebiam a senha de todos os prosélitos, senha que se constituía

desse mesmo sinal traçado com a mão aberta, de modo especialíssimo, mas

de imitação muito fácil. Ambas passaram, então, ao interior da necrópole,

sem pormenores dignos de menção .

No interior, toda uma multidão se acomodava em bancos

improvisados, salientando-se que, de um modo geral, todos traziam os

capuzes levantados, ocultando o rosto, alguns receando o frio intenso da

noite, outros temendo os lobos da traição, que ali poderiam comparecer com

a máscara de ovelhas.

A claridade lunar que banhava o recinto era auxiliada pela luz de

tocheiros e lanternas, mormente em torno de um monte de ruínas fúnebres,

de onde deveria falar o apóstolo daquele grupo de seguidores do Cristo.

Aqui e ali, alguém balbuciava uma prece, baixinho, como se

estivesse falando ao Cordeiro do Céu, no altar do coração ; mas, do centro

da massa, elevavam-se hinos cheios de sublimada exaltação religiosa.

Eram cânticos de esperança, tocados de singular desalento do mundo,

exteriorizando o sonho cristão de um reino maravilhoso além das nuvens .

Em cada verso e em cada tonalidade das vozes em conjunto,

predominavam as notas de uma tristeza dolorosa, de quem havia

abandonado todas as ilusões e fantasias terrestres, entregando-se à

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

renúncia de todos os prazeres, de todos os bens da vida, para esperar as

recompensas luminosas de Jesus, nas bem-aventuranças celestes. ..

Nos bancos improvisados, de madeira tosca ou de pedras

esquecidas, acomodavam-se centenas de pessoas, concentradas em

absoluto recolhimento.

Silêncio profundo reinava entre todos, quando um estrado

carcomido foi transportado para o local onde se centralizavam quase todas

as luzes.

Célia e Túlia tomaram o lugar que lhes pareceu mais conveniente,

mas, daí a minutos, novo cântico se elevava ao Infinito, em vibrações de

beleza indefinível... Era o hino de agradecimento ao Senhor pela sua

misericórdia inesgotável; cada estrofe falava dos exemplos e martírios de

Jesus, com sentimento repassado da mais alta inspiração.

Qual não foi a admiração de Túlia Cevina, quando viu a

companheira erguer também a voz, acompanhando o canto dos cristãos

como se o soubera de cor com sua garganta cristalina. A mulher de Máximo

Cunctator não sabia dissimular a emoção, contemplando Célia a cantar,

qual se fosse uma ave exilada do Paraíso ! . . . Seus olhos calmos estavam

fixos no firmamento, onde parecia divisar o país da sua bem-aventurança,

entre as estrelas que lucilavam no alto, como sorrisos carinhosos da noite, e

aqueles versos, inspirados na música que lhes era peculiar, escapavam-se

dos seus lábios com tal riqueza melódica, que a amiga se comoveu até às

lágrimas, sentindo-se transportada a uma região divina. . .

Sim, Célia conhecia aquele cântico que lhe enchia o coração de

brandas reminiscências. Ciro lho havia ensinado sob as árvores frondosas

da Palestina, para que a sua alma soubesse interpretar o reconhecimento a

Deus, nas horas de alegria.

Naquele instante, em comunhão com todos aqueles espíritos que

vibravam também a sua fé, ela sentia-se distante da Terra, como se a alma

fosse tocada de um júbilo divino . . .

Fazendo-se silêncio novamente, um homem do povo, de nome

Sérgio Hostílio, assomou à tribuna improvisada, exclamando, comovido,

após abrir um rolo de pergaminhos:

- Meus irmãos, estudaremos ainda hoje os ensinamentos do

Mestre, nos capítulos de Mateus, versando a lição desta noite : "aqueles

que são os verdadeiros irmãos do Messias!..." E, desenrolando a folha

que o tempo desbotara, Sérgio Hostílio leu pausadamente :

"Estando Jesus a pregar ainda para a multidão, sua mãe e seus

irmãos de fé, do lado de fora, procuravam falar-lhe. Então alguém lhe

observou: - "tua mãe e teus irmãos encontram-se aí fora, procurando-te".

Respondendo a quem o advertira, disse o Mestre : "Quem é minha mãe e

quem são os meus irmãos?" E, estendendo a mão para todos os seus

discípulos e seguidores, exclamou : - "Eis aqui minha mãe e meus irmãos,

porquanto, quem quer que faça a vontade de meu Pai que está nos

céus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe." Terminada a leitura

evangélica, o mesmo companheiro de crença, que ocupava a tribuna, falou

sensibilizado :

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

- Meus amigos, falta-me o dom da eloqüência para ministrar o

ensinamento; convido, pois, a algum dos nossos irmãos presentes para que

desenvolva os precisos comentários desta noite...

Todos os olhares, inclusive o de Túlia Cevina, se alongaram,

ansiosos, buscando a venerável figura de Policarpo, o abnegado apóstolo de

todas as reuniões. Túlia Cevina verificava a sua ausência com grande

desapontamento, em vista da fé nas suas orações e nas suas palavras

sábias e benevolentes; mas Sérgio Hostílio explicou com a voz tocada de

amargura :

- Irmãos, vossos olhos procuram Policarpo, ansiosamente, mas,

antes de vos fornecer notícias dele, elevemos o coração até Aquele que não

desdenhou o ultraje e o sacrifício...

O apóstolo da nossa fé, apesar da sua velhice santificada, por

ordem do Subprefeito Quinto Bíbulo, foi recolhido na manhã de ontem aos

cárceres do Esquilino !

Imploremos a misericórdia de Jesus para que possamos aceitar o

cálice de nossas dores, com resignação e humildade.

Muitas mulheres começaram a chorar a ausência daquele

grande varão, a quem amavam como pai, e, depois de alguns minutos, em

que ninguém se abalançou a substituir-lhe o ensinamento sábio e amoroso,

um homem da plebe caminhou até à tribuna e descobriu-se, fazendo o

sinal da cruz, tomado de fervorosa religiosidade.

A claridade das tochas iluminou-lhe os traços fisionômicos, ao

mesmo tempo que Célia e a companheira lhe identificaram o semblante

humilde e decidido.

Aquele homem era Nestório, o liberto de Helvídio, que, embora

auxiliando o censor Fábio Cornélio no próprio gabinete da Prefeitura dos

pretorianos, não se envergonhava de dar o público testemunho da sua fé.

V - A PREGAÇÃO DO EVANGELHO

Saudado pelo olhar ansioso e confiante de todos, Nestório

começou a falar, com a sua sinceridade comovida:

- Irmãos, sinto que a minha indigência espiritual não pode

substituir o coração de Policarpo nesta tribuna, mas o fogo sagrado da fé

precisa manter-se nas almas!

Assumindo a responsabilidade da palavra, esta noite, recordo a

minha infância para vos dizer que vi João, o apóstolo do Senhor, que, por

longos anos, iluminou a igreja de Éfeso!

O grande evangelista, nos seus arroubos de fé, falava-nos do céu e

de suas visões consoladoras... Seu coração estava em permanente contacto

com o do Mestre, de quem recebia a inspiração divina, como derradeiro

discípulo na Terra, santificando-se as suas lições e as suas palavras com

o sopro sublimado das verdades celestes!. .

Invoco estas reminiscências longínquas, para recordar que o

Senhor é a misericórdia infinita. Na minha pobreza material e moral, não

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

tenho vivido senão pela sua bondade inesgotável e quero invocar a sua

assistência caridosa para o meu coração, neste momento.

Desde criança, tenho os olhos voltados para os sublimes

ensinamentos do seu amor e parece-me, também, havê-lo visto no seu

apostolado de luz, pela nossa redenção, na face escura da Terra. As vezes,

como que impulsionado por um mecanismo de emoções maravilhosas,

tenho a doce impressão de ainda o estar vendo junto ao Tiberíades, a

ensinar a verdade e o amor, a humildade e a salvação!. . Figura-se-me,

freqüentemente, que aquelas águas claras e sagradas cantam-me no

coração um hino de eterna esperança e, apesar dos véus espessos da

minha cegueira, sinto que o contemplo em Nazaré ou em Cafarnaum, em

Cesareia ou em Betsaida, arrebanhando as ovelhas desgarradas do seu

aprisco.

Sim, irmãos, o Mestre nunca nos abandonou, no seu apostolado

divino. Seu olhar percuciente vai buscar o pecador no mais recôndito

socavão da iniqüidade, e é pela sua ternura infinita que conseguimos

caminhar indenes nos desfiladeiros do crime e do infortúnio ! . . .

Por muito tempo, falou Nestório das suas lembranças mais gratas

ao coração.

Sua infância na Grécia, as descrições suaves de João Evangelista

aos discípulos queridos; as pregações e exemplos do Senhor, suas visões

nos planos celestiais, as reminiscências do Presbítero Johanes, a quem o

inesquecível apóstolo havia confiado os textos manuscritos do seu

evangelho, era tudo exposto à assembléia pelo liberto, com as cores mais

vivas e impressionantes.

Ouvia-lhe o auditório a palavra, comovido, como se os Espíritos,

transportados ao pretérito nas asas da imaginação, estivessem

contemplando todos os acontecimentos relacionados com a narrativa .

A própria Túlia Cevina, que não conhecia o Cristianismo senão

pela rama, mostrava-se profundamente sensibilizada. Quanto a Célia,

acolhia-o alegremente, admirando-lhe a coragem e a fé, em face da sua

futurosa posição material junto de seu pai, e meditando, ao mesmo tempo,

na circunstância de ele nunca haver revelado suas crenças, nem mesmo nas

aulas que lhe ministrara, evidenciando assim o respeito que lhe mereciam as

crenças alheias.

Depois de relatadas as reminiscências de Efeso com os seus

vultos mais eminentes, falou para comentar a leitura da noite:

- Para tanger o ponto evangélico desta noite, lembremos que

Jesus não podia condenar os laços humanos e sacrossantos da família,

mas suas palavras, proferidas para a Eternidade, abrangem e abrangerão

todas as situações e todos os séculos vindouros, de modo a demonstrar que

a fraternidade é o seu alvo e que todos nós, homens e grupos, coletividades

e povos, somos membros de uma comunidade universal, fraternidade, essa,

que um dia nos integrará a todos como irmãos bem-amados, e para sempre.

Seus ensinamentos referiam-se àqueles que, cumprindo a

vontade soberana e justa do Pai que está nos céus, marcham na vanguarda

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

dos caminhos humanos, em demanda do seu reino de amor, cheio de

belezas imperecíveis!

Os que sabem acatar, neste mundo, os desígnios de Deus, com

humildade e tolerância, com resignação e com amor, chegarão mais

depressa junto daquele que se nos revelou há cem anos como Caminho,

Verdade e Vida! Esses Espíritos amorosos e justos, que se iluminaram

interiormente pela compreensão e aplicação dos ensinos em toda a vida,

estarão mais perto do seu coração misericordioso, cujas pulsações

sagradas repercutem em nosso próprio ser, pela magnanimidade infinita que

sentimos em torno de nossa alma, em todos os passos desta vida ! . . Tais

criaturas são desde já seus irmãos mais próximos, pela iluminação

evangélica no cumprimento das leis do amor e do perdão.

Dentro, pois, dessas luzes prodigiosas da Verdade, sentimo-nos

compelidos a dilatar o conceito de família no plano universalista, alijando o

criminoso egoísmo que, por vezes, nos toma de assalto o coração, criando

os germes da discórdia e do sofrimento no próprio lar.

Se um homem é a partícula divina da coletividade, o lar é a célula

sagrada de todo o edifício da civilização. Um homem divorciado do bem e

um lar envenenado pelos desvios do sentimento, operam os

desequilíbrios singulares que atormentam os povos!. .

Jesus conhecia todas as nossas necessidades e ajuizou de nossa

situação, não apenas em vista da época que passa, mas de todos os séculos

do futuro.

Acredito que o Evangelho não poderá ser integralmente

compreendido em nossos tempos amargos de devassidão e decadência;

todavia, enquanto as forças mais poderosas do mundo se concentram neste

Império cheio de orgulho e impiedade, outras energias profundas trabalham

o seu organismo atormentado, preparando o advento das civilizações do

porvir.

Até agora, as águias romanas dominam todas as regiões e todos os

mares; mas dia virá em que esses símbolos de ambição e tirania hão-de rolar

dos seus pedestais, numa tempestade de cinzas e de sombras!. . Outros

povos serão chamados a dirigir os movimentos do mundo . Mas,

enquanto o espírito agressivo da guerra permanecer entre os homens,

qual monstro de ruína e de sangue, é sinal de que as criaturas não se

realizaram interiormente para serem os irmãos do Mestre, puros e pacíficos.

A Terra viverá as suas fases evolutivas de dor e de experiências

dolorosas, até que a compreensão perfeita do Messias floresça em todo

o mundo, para as almas.

Até agora, o Cristianismo tem medrado com as lágrimas e o

sangue de seus mártires; mas os Espíritos do Senhor, cujas vozes ouvi na

mocidade nas sagradas reuniões da igreja de Efeso, asseveravam aos

discípulos de João que, não levará muito tempo, o proselitismo do Cristo

será chamado a colaborar nas esferas políticas do mundo, para dissipar a

treva e a confusão da sua rede de enganos..

Nessa época, meus irmãos, talvez que a doutrina do Mestre venha a

sofrer o insulto daqueles que navegam no vasto oceano dos poderes

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

terrestres cheios de vaidade e despotismo. É possível que espíritos

turbulentos e endurecidos tentem subverter os valores da nossa fé,

desvirtuando-a com as exterioridades do politeísmo, mas, ai dos que

operarem semelhante atentado, em face das verdades que nos orientam e

consolam ! . .

Nos esforços da fé, jamais esqueçamos a exortação do Senhor às

mulheres de Jerusalém, que pranteavam ao vê-Lo avergado sob o madeiro

infamante: - "Filhas de Jerusalém, não choreis por mim ! Chorai por vós

mesmas e por vossos filhos, porque dias virão em que se dirá: - Ditosas as

estéreis, ditosos os ventres que nunca geraram e os seios que nunca

amamentaram! Por-se-ão todos os homens a dizer aos montes: Caí sobre

nós! E às colinas: Cobri-nos! Porque, se assim procedem com o lenho

verde, que se fará, então, com o lenho seco ? !"

Ai de quantos abusarem em nome dAquele que nos assiste do

Céu e conhece nossos mais recônditos pensamentos, pois, mais tarde,

conforme o prometeu, a luz do Alto se derramará sobre toda a carne e a voz

dos céus será ouvida na Terra, através dos mais doces ensinamentos e das

mais elevadas profecias! Se falharem os homens, hão-de vir até nós os

exércitos de seus anjos, atestando a sua misericórdia...

E que, meus irmãos, o reino de Jesus deve ser fundado sobre os

corações, sobre as almas, e não poderá conciliar-se nunca, neste mundo,

com qualquer expressão política de egoísmo humano ou de doutrinas de

violência, que estruturam os Estados da Terra!

O reino do Senhor sofrerá, por muito tempo, "a abominação do

lugar santo", pela falsa interpretação dos homens, mas chegará a época em

que a Humanidade, hoje decadente e corrompida, se sentirá a caminho

de uma Jerusalém gloriosa e libertada!...

Guardemos na mente a convicção de que o reino de Jesus não

está nos templos ou nos manuscritos materiais que o Tempo se incumbirá

de aniquilar em sua passagem incessante e, sim, que os alicerces divinos

têm de ser construídos no íntimo do homem, de modo que cada alma possa

edificá-lo por si mesma, à custa de esforços e lágrimas, a caminho das

moradas gloriosas do Infinito, onde nos aguardarão, depois da jornada, as

bênçãos do Cordeiro de Deus, que se imolou na cruz, para nos redimir do

infortúnio e do pecado!...

Depois de uma prece, Nestório terminava sob o olhar carinhoso e

comovido de quantos lhe acompanharam a palavra fluente, através das

considerações de ordem evangélica.

Alguns assistentes choravam, sensibilizados, casando as

impressões do orador com as suas próprias.

Nessas assembléias primitivas, quando o messianismo doutrinário

estava saturado de ensinamentos puros e simples, o expositor da Boa Nova

era obrigado a elucidar os pontos evangélicos em relação com a vida

prática de alguém que estivesse em dúvida.

Assim foi que, após a elocução, numerosos confrades se

acercaram do prolator, solicitando-lhe a opinião fraterna e simples.

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

- Meu amigo - perguntava um dos estudiosos presentes -, como

explicar a diferença sensível entre os evangelhos de Mateus e de João, ou

entre as narrações de Lucas e as epístolas de Paulo? Não foram todos

apóstolos do ensinamento cristão e inspirados do Espírito Santo?

- Sim - esclareceu o interpelado -, mas convenhamos que a cada

trabalhador concedeu Jesus uma tarefa. Se Lucas e Mateus nos

mostraram o pastor de Israel encaminhando as ovelhas tresmalhadas ao

aprisco da verdade e da vida, Paulo e João nos revelaram o Cristo Divino,

Filho do Deus Vivo, na sua sublimada missão universalista, a redimir o

mundo .

- Nestório - obtemperava outro, pouco zeloso da paz interior pela

meditação e pelo estudo -, que será de mim, vitimado pelas intrigas e

calúnias dos vizinhos?. . Quero aprender e progredir na fé, mas a

provocação da maledicência não mo permite .

- E, acaso poderás ir a Jesus, deixando-te encarcerar pelas

opiniões do mundo?! – explicava solícito o liberto de Helvídio. - A ciência do

bem-viver não está somente em nos não incomodarmos com os

pensamentos e atos de quem quer que seja, mas em deixar, também, que os

outros se importem constantemente com a nossa própria vida.

- Mestre - exclamava ainda uma senhora de semblante idoso e

triste, dirigindo-se ao ex-escravo -, meus sofrimentos extravasam do cálice !

. . . Rogai por mim para que Jesus me atenda às rogativas! .

- Irmã - respondia Nestório algo veemente -, esquecestes que

Jesus recomendou jamais nos chamássemos "mestres" uns aos outros?

Não sou senão servo humilde dos seus servos, indigno de sacudir o pó das

sandálias do único e divino Mestre . Não vos entregueis a tristezas e

lamentações, porque, no problema da fé, somente vós mesma podereis

dar a Jesus o testemunho do vosso amor e da vossa confiança. Ao demais,

importa lembrar que a Terra não é o Paraíso, atentos à recomendação do

Messias de que, para atingir a ventura celestial, é preciso tomar com

humildade a nossa cruz, e segui-Lo .

Nesse instante, rompendo a multidão de crentes em redor, Nestório

reconheceu Célia e Túlia, que se acercavam atenciosamente . O liberto

saudou-as tomado de surpresa, enquanto a jovem lhe dirigia palavras de

júbilo e simpatia .

- Nestório - exclamou Célia, radiante -, porque nunca me falaste

das tuas convicções, da tua fé?

- Filha, nada obstante o meu fervor cristão, não podia

menosprezar os princípios da família que me concedeu a liberdade.

Ambos estavam alegres e felizes, experimentando o

contentamento da mútua comunhão na mesma fé, quando uma surpresa

maior lhes abalou o espírito.

Enquanto a maioria dos companheiros se punha a caminho, de

regresso à cidade, pois que a madrugada se avizinhava, destacou-se de

todos os grupos um jovem forte e simpático, que se aproximou da tribuna

com os olhos fulgurantes de ansiedade e alegria. Acercou-se de Nestório e

de Célia, com os braços estendidos, ao mesmo tempo que o liberto e a

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

jovem patrícia exclamavam, com a mesma voz, tocada de emoção e

profundo júbilo :

- Ciro ! . . Ciro ! . .

- Meu pai ! Célia !

E o mancebo quase os reuniu no mesmo amplexo de amor e

felicidade.Túlia Cevina contemplava a cena comovedora, com o coração em

sobressalto. Alba Lucínia já lhe falara do drama íntimo da filha e a mulher

de Máximo custava a conformar-se com a circunstância de haver conduzido

a jovem àquele encontro de conseqüências imprevisíveis.

A ausência de Policarpo, que a inibia de solicitar a prece pela

ventura doméstica da amiga, segundo a sua fé; o fato de se haverem

avistado com Nestório, quando preferia o segredo de sua presença ali e o

encontro inesperado de Ciro, eram acontecimentos que a contrariavam

profundamente, mas Célia, radiante, sem poder traduzir o seu júbilo com o

saber que Nestório era pai do seu noivo espiritual, apresentou-lhe o jovem

que a patrícia foi obrigada a saudar atenciosamente, em virtude das

circunstâncias.

O ex-cativo abraçava o filho com os olhos úmidos de pranto,

enviando a Jesus o seu íntimo reconhecimento e manifestando a sua real

surpresa ao saber que o filho era também um liberto de Helvídio Lucius,

aumentando, assim, o seu reconhecimento pelos seus libertadores.

E, enquanto todos se retiravam, o grupo palestrava com crescente

interesse.

A uma pergunta de Célia, o jovem explicou que no porto de

Cesareia fora entregue ao comandante Quinto Vetus, que, amigo pessoal

de Helvídio, fizera absoluta questão de lhe conservar a liberdade,

conduzindo-o às costas da Campânia, com excepcional gentileza. Dali, uma

embarcação o trouxera até Óstia, entre o pessoal da equipagem, deliberando

ele então permanecer em Roma, na vaga esperança de obter notícias do pai

ou daquela que lhe enchia o coração de lembranças carinhosas e perenes.

Célia sorria, satisfeita, sentindo-se, naquele cemitério ermo e triste,

a mais ditosa das criaturas.

O luar, porém, já havia desaparecido. Apenas as estrelas, no manto

escuro do firmamento, brilhavam com cintilações mais intensas, preludiando

o dealbar da aurora.

Túlia Cevina lembrou, então, a conveniência de regressarem

quanto antes.

Nestório sentia-se possuído do imenso desejo de ouvir o filho a

respeito de todos os fatos do passado, de modo a conhecer os mais íntimos

pormenores da sua separação dolorosa e longa, mas, observando a sua

intimidade com a jovem patrícia, abstinha-se de muitas palavras, guardando

atitude expectante e calma, embora adivinhasse o romance de amor

daquelas duas criaturas mal saídas da adolescência. O ex-escravo

mantinha a sua atitude reservada e, enquanto Túlia Cevina se mostrava

apreensiva, os dois jovens falavam, em todo o trajeto, de suas

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

reminiscências ou de suas esperanças em Jesus, à claridade amiga das

estrelas que empalideciam no firmamento.

De mistura com os regressantes, vinham, agora, campônios

descuidados e felizes, que se dirigiam ao pequeno perímetro urbano nas

primeiras horas da madrugada, levando os produtos do seu campo para as

feiras. Todavia, no grupo das nossas personagens, ninguém observou que

dois vultos as seguiam de perto com insistente atenção, embora

irreconhecíveis, em razão dos capuzes que lhes cobriam o rosto.

Nestório e Ciro acompanharam as duas patrícias até às

proximidades da residência de Helvídio Lucius onde Túlia Cevina se

recolheu, em identidade de circunstâncias, obedecendo ao plano préestabelecido

voltando pai e filho pelos mesmos caminhos, até próximo da

Porta Salária, onde se acomodaram no apartamento do primeiro.

Foi aí que Nestório, absolutamente insone, em virtude das

emoções daquela noite, ouviu a narrativa do filho até ao amanhecer,

canacitando-se de que uma nova fase de sacrifícios lhe seria imposta pelas

circunstâncias em jogo.

O Sol já havia espalhado seus raios de ouro por toda parte, quando

o liberto de Helvídio, algo acabrunhado, apesar do júbilo de rever o filho

estremecido, falou-lhe, abraçando-o com ternura:

- Meu filho, regozijo-me no Senhor pela alegria de te encontrar livre

e salvo, com o pensamento iluminado pelas nossas profundas esperança

em Jesus-Cristo, mas temo por ti, doravante, como pai extremoso e

desvelado.

Acredito que, apesar da fé que me testemunhas, não soubeste

dominar o coração moço e idealista, no momento oportuno, pois, já que

entendias a vida qual a compreendes agora, estavas apto a reconhecer a

inutilidade de qualquer fantasia no que se refere às venturas transitórias do

mundo !..

Mas, por outro lado, louvo-te a conduta honesta e me rejubilo com

o teu esforço na santificação do teu afeto.

Sou de opinião que seremos agora chamados aos mais penosos

testemunhos de coragem moral, porquanto a família de Célia não toleraria,

jamais, uma pretensão tua...

Mas, descansa, filho ! Precisas de energia e de repouso ! Quanto a

mim, o sono agora ser-me-ia impossível. . . Aproveitarei o tempo para ir

ao Velabro, onde me guiarei por tuas informações, a fim de transportar para

aqui os objetos que te pertencem e, ao mesmo tempo, avisarei o censor

Fábio Cornélio da impossibilidade de trabalhar hoje.

E, acentuando as palavras com um sorriso de satisfação, rematava:

- Doravante, estaremos sempre juntos para a mesma tarefa e

aqui permaneceremos até quando Jesus no-lo permita.

Ciro, em resposta, beijou-lhe as mãos comovidamente .

Antes de se dirigir ao Velabro, que era um dos bairros mais

pobres e mais populares de Roma, o liberto procurou a Prefeitura dos

pretorianos, ali se avistando com o lictor Domítio Fulvius, pessoa de

confiança dos seus chefes, solicitando-lhe cientificasse o censor do seu

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

impedimento naquele dia e providenciando, em seguida, para que a

mudança do filho para sua casa se efetuasse com a possível presteza.

Sentia o coração apreensivo e amargurado em face dos

acontecimentos e, todavia, colocava a fé acima de tudo, rogando a Jesus lhe

concedesse a inspiração devida, para o aclaramento de todos os problemas.

Quanto a Túlia Cevina, algo desapontada, informou a amiga, pela

manhã, dos fatos singulares que haviam ocorrido. Alba Lucínia ouvia-a,

assaz surpreendida, experimentando o coração pejado de amargas

expectativas. Chamou a filha ao seu gabinete de repouso, mas, notando-lhe

a serenidade e recebendo-lhe a promessa de guardar inteira observância às

recomendações paternas, buscou tranqüilizar-se a si mesma, de modo a

minorar as próprias mágoas.

Chegando ao seu gabinete, manhã alta, Fábio Cornélio foi

procurado com insistência por Pausanias, que, ainda em Roma, guardava a

chefia dos servos da casa de seu genro, e que lhe falou, depois de

respeitosa reverência:

- Ilustre Censor, aqui venho obedecendo a um desígnio sagrado

dos deuses, a fim de vos informar de graves acontecimentos ocorridos esta

noite.

- Mas, como? graves acontecimentos? - perguntou o sogro de

Helvídio, visivelmente impressionado .

E Pausanias relatou-lhe, então, todo o ocorrido asseverando haver

seguido as duas senhoras, dado o seu zelo carinhoso por todos os assuntos

atinentes ao nome e à posição de seu amo, saturando as suas afirmativas

de expressões bajuladoras ou exageradas, para melhor impressionar a sua

autoridade e o seu prestígio.

- Mas Nestório é cristão? - interrogou o censor, admirado. -

Custa-me a acreditá-lo .

- Senhor, pelas graças de Júpiter, estou afirmando a verdade! -

respondeu Pausanias com a sua atitude humilde à frente do mais poderoso

.

- Helvídio agiu muito precipitadamente - falou o orgulhoso patrício

como se estivesse falando para si mesmo - conferindo a tal homem tamanha

responsabilidade em nossa esfera de trabalho; todavia, tomarei ainda hoje

todas as providências que o caso requer e agradeço os teus bons serviços.

Pausanias retirou-se, enquanto Fábio Cornélio que também não

ignorava o romance de Ciro e da neta, tomava-se de cólera contra os dois

ex-escravos, que lhe vinham perturbar a tranqüilidade doméstica.

Considerando a ausência do genro que ainda se conservava em

Tibur, deu todas as providências julgadas indispensáveis, sem vacilar no

cumprimento de suas íntimas decisões, em relação ao assunto.

Nas primeiras horas da tarde, um destacamento de pretorianos

chegava à habitação coletiva, onde se alojavam pai e filho, em cumprimento

das ordens emanadas da justiça imperial.

Chamados, os dois libertos compreenderam a gravidade da

situação, concluindo que alguém os houvera denunciado e traído.

Abraçaram-se em prece mútua, como se desejassem renovar os protestos

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

de confiança e de fé na Providência Divina, prometendo-se um ao outro o

máximo de coragem e resignação nos transes angustiosos que

entreviam à frente.

Junto dos soldados, perguntou Nestório, com serenidade, ao lictor

que os chefiava:

- Que me queres, Pompônio?

- Nestório - retrucou o chefe do destacamento, seu conhecido

pessoal e seu amigo -, venho da parte do censor Fábio Cornélio, que

ordenou tua prisão, bem como a de teu filho, recomendando-nos o máximo

cuidado para que não fugissem.

Em seguida, mostrou-lhes a ordem manuscrita, desenrolando o

pergaminho, ao que o liberto retrucou:

- Porventura chegaste a supor que te resistiríamos? Guarda a

ordem e não te preocupes com a espada, pois a melhor arma não é a de

quem ordena, mas de quem sabe obedecer.

Isso posto, os prisioneiros se colocaram à frente dos soldados, em

direção à Prefeitura, onde o censor fazia questão de interrogar, a sós, o

ex-auxiliar do seu cargo.

Separado de Ciro, recolhido a uma ante-sala sob a vigilância dos

pretorianos, foi Nestório conduzido a um compartimento amplo, onde,

minutos após, chegava o velho romano, evidenciando no olhar a cólera

dos seus brios ofendidos.

- Nestório - exclamou rudemente -, fui informado de graves

ocorrências verificadas esta noite. Não posso compreender a situação sem

te ouvir de perto, de maneira a inutilizares, negativamente, as denúncias

trazidas à minha autoridade.

- Interrogai, senhor - disse o ex-cativo com respeitosa tranqüilidade

-, e vos responderei com a sinceridade do meu caráter.

- És Cristão ? - perguntou o censor com profundo interesse.

- Sim, pela graça de Deus.

- Que absurdo ! - revidou Fábio Cornélio escandalizado. - E

porque nos enganaste dessa forma? Consideras razoável zombar da

consideração que nos é dispensada? É assim que retribuis a estima e

confiança a ti dispensadas?

- Senhor - retrucou o ex-cativo, penalizado -, sempre pautei

minhas atitudes no maior respeito às posições e crenças alheias; quanto a

vos haver iludido, peço vênia para esclarecer melhor as vossas afirmativas,

pois ninguém, até hoje, me exigiu, aqui, qualquer declaração concernente

às minhas convicções religiosas.

Fábio Cornélio compreendeu a serenidade do homem que tinha à

sua frente, considerando inútil apelar para essa ou aquela circunstância, a

fim de lhe arranjar uma negativa, como remédio à situação delicada entre

ambos, e, mirando-o de alto a baixo com profunda altivez, acentuou com

energia:

- Considero as tuas afirmações afrontosas à minha autoridade, além

de estar recebendo, simultaneamente, da tua parte o máximo de ingratidão

para com quem te ofereceu a mão de benfeitor e amigo .

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

- Mas, senhor, será insulto, porventura, o dizer-se a verdade ? -

perguntou Nestório ansioso por se fazer compreendido.

- E sabes a punição que te espera? - revidou o velho censor malhumorado.

- Não posso temer os castigos do corpo, tendo a consciência

tranqüila e edificada.

- Isso é demais! Tua palavra será sempre a de um escravo

intratável e odioso ! . . Basta ! Cientificarei Helvídio do teu detestável

procedimento .

E chamando Pompônio Gratus para ouvir-lhe as declarações, o

orgulhoso patrício retirou-se do recinto, pisando forte, enquanto Nestório

era obrigado a relatar a sua condição de adepto e propagandista do

Cristianismo, reafirmando ser pai de Ciro e fornecendo outros informes, de

maneira a satisfazer a autoridade com a exposição dos seus antecedentes.

- Nestório - exclamou Pompônio Gratus, assumindo ares de

importância, na qualidade de inquiridor para o caso no momento -, não

ignoras que as tuas afirmativas constituirão a base de um processo,

cujo resultado será a tua condenação. Sabes que o Imperador tem sido

justo e magnânimo para todos os que se arrependem a tempo de

atitudes como a tua, desarrazoadas e infelizes. Porque não renuncias,

agora, a semelhantes bruxedos?

- Negar a fé cristã seria trair a própria consciência - replicou o

liberto calmamente. – Além disso, nada fiz que me pudesse induzir ao

arrependimento.

- Mas não eras um escravo ? Se vieste de condição penosa e

miseranda, porque não transigir com as tuas idéias pessoais em sinal de

gratidão para com aqueles que te deram a independência?

- No cativeiro nunca deixei de cultivar a verdade, como a melhor

maneira de honrar os meus senhores; mas, ainda assim, sempre tive um

outro jugo, suave e leve - o de Jesus. E agora, acredito que o Divino Senhor

me convoca ao testemunho !..

- Cavas o abismo de teus males com as próprias mãos - disse o

lictor com indiferença.

E acentuando as palavras, com o mais fundo interesse,

acrescentou:

- Agora, faz-se mister digas onde se reúnem essas assembléias,

para que as autoridades se orientem na campanha de expurgar a cidade dos

elementos mais perigosos.

- Pompônio Gratus - replicou Nestório altivamente -, não posso

esclarecer-te neste particular, pois o sincero adepto de Jesus não conhece a

delação nem sabe fugir à responsabilidade da sua fé, acusando seus irmãos.

O lictor irritou-se, revidando com acrimônia:

- E não temes os castigos que te forçarão a fazê-lo em tempo

oportuno?

- De modo algum. Chamados ao testemunho de Jesus-Cristo, não

podemos temer conveniências mundanas.

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

Pompônio, contudo, esboçou um gesto expressivo, como quem se

havia lembrado de uma providência nova, e acentuou:

- Aliás, temos outros recursos para encontrar esses conspiradores

idiotas. Ouviremos, ainda hoje, nesta chefia, os que prestaram as devidas

informações a teu respeito.

- Sim - replicou o liberto sem se perturbar -, esses poderão

esclarecer melhor a justiça do Império.

Em seguida, um grupo de soldados armados a caráter saía da

Prefeitura, escoltando os dois acusados até à Prisão Mamertina, onde

foram alojados num dos mais úmidos calabouços.

Não bastaram somente os novos informes de Pausanias, que o

lictor Pompônio Gratus, conforme autorização do censor Fábio Cornélio,

fizera questão de convocar para lhe facilitar as investigações.

Nesse mesmo dia um vulto penetrava na residência de Lólio

Úrbico, ao cair das sombras do crepúsculo, para dar idêntica denúncia.

Era Hatéria, que, independentemente de Pausanias, também fora

às catacumbas, em descargo das suas atividades odiosas, pondo em jogo a

sua habilidade e astúcia para trazer Cláudia Sabina inteirada de quanto

ocorria.

Assim que, antes de regressar a Tibur, após uma semana de

repouso no lar, a antiga plebéia notificou a Quinto Bíbulo os ajuntamentos

do Cristianismo além da Porta Nomentana, pintando-lhe quadros

terroristas, de feição a exacerbar o receio das conjuras, que caracterizava os

administradores políticos da época.

Numerosos destacamentos de pretorianos compareceram ao

cemitério abandonado, na reunião subseqüente.

Centenas de prisões foram efetuadas. Os calabouços escuros do

Capitólio e os cárceres do Esquilino ficaram repletos e a circunstância mais

grave é que, entre os prisioneiros, figuravam pessoas de todas as classes

sociais.

Irritado, o Imperador mandou que se instaurassem processos

individuais, a fim de apurar todas as responsabilidades isoladas, designando

numerosos dignitários da Corte para a devassa imprescindível.

Élio Adriano nunca procedeu como Nero, que ordenava o

extermínio dos cristãos sem cogitar da culpa de cada indivíduo, de

conformidade com os dispositivos legais, conforme a evolução jurídica

do Estado Romano; mas também não perdoou, jamais, aos adeptos do

Cristo que tivessem a coragem moral de não trair a sua fé, perante a sua

autoridade, ou de seus prepostos.

O inquérito começou terrível e sombrio.

Famílias desesperadas de dor acorriam às prisões, implorando

piedade aos algozes.

Quantos abjurassem da crença em Jesus, diante da imagem de

Júpiter Capitolino, jurando-lhe eterna fidelidade, podiam regressar

livremente ao lar, retomando os bens da liberdade e da vida; os que se não

prosternassem ante o ídolo romano, mantendo inabalável a fé cristã,

podiam contar com o flagício e, quiçá, com a morte.

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

Entre mais de três centenas de criaturas, apenas trinta e cinco

reafirmaram a sua fé em Jesus-Cristo, com sinceridade e fervor irredutíveis .

Para essas, as portas do cárcere se fecharam, sem piedade e sem

esperança. Entre os condenados, estavam Nestório e seu filho, que, fiéis a

Jesus, repousavam nos seus desígnios misericordiosos, convictos de que

qualquer sacrifício, em favor da sua causa, era uma porta aberta para a luz e

para a liberdade .

VI - A VISITA AO CARCERE

A notícia desses acontecimentos repercutiu na residência de

Helvídio Lucius, originando as mais tristes inquietações e angustiosas

expectativas.

Apesar da fé que lhe fortalecia o coração, a jovem Célia sentiu-se

tocada de profunda amargura e a sua única consolação era a possibilidade

de ouvir o avô paterno, que, a esse tempo, já lia avidamente os Evangelhos e

as Epístolas de Paulo, agasalhando no íntimo a mesma fé que iluminava já

tantos heróis e mártires.

Ambos, horas a fio, em confidências cariciosas, deixavam-se ficar

no terraço palaciano do Aventino, a observar a fita extensa e clara do

Tibre, ou embevecendo-se na contemplação do céu. O venerando Cneio

Lucius reconfortava-lhe o espírito abatido, com a sua palavra conceituosa e

experiente. Citavam agora os mesmos textos evangélicos, exteriorizando,

simultaneamente, análogas impressões .

Quanto a Alba Lucínia, depois de ouvir as mais enérgicas

exprobrações do velho pai, concernentes às denúncias de Pausanias, sentiase

mais confortada com a certeza de que o marido regressaria breve e

definitivamente ao lar, obedecendo a inesperadas ordens do Governo

Imperial.

A pobre senhora atribuía esse júbilo às preces de Túlia e da filha,

agradecendo ao novo deus, na intimidade de seu espírito, porquanto o

regresso de Helvídio era um bálsamo para o seu coração atormentado .

Com efeito, decorridos poucos dias, o tribuno voltava aos penates

com um suspiro de satisfação e de alívio, depois de cumprir integralmente

todas as obrigações que o prendiam ao recanto das predileções do César.

Informado a respeito de Nestório e da sua atitude, o patrício se

surpreendeu penosamente, desejando com sinceridade desviar o ex-cativo

da situação delicada em que se encontrava; mas, logo que soube que era

também o pai de Ciro, ressurgido em Roma para lhe agravar as

preocupações morais, Helvídio Lucius fez um gesto de espanto e de

incredulidade . Entretanto, ouviu, até ao fim, a narrativa do sogro,

molestando-se profundamente com a conduta da esposa em permitir que a

filha comparecesse a uma reunião condenável, ao seu ver.

Alba Lucínia, todavia, soube acatar todas as reprimendas com a

humildade necessária à harmonia doméstica e, longe de o desgostar ainda

mais com qualquer lamentação, calou as próprias mágoas, ocultando-lhe

o procedimento odioso de Lólio Úrbico, bem como os seus receios a

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

respeito de Cláudia Sabina, em vista das confidências de Túlia que lhe

haviam ferido profundamente o coração.

A nobre senhora, nas suas elevadas qualidades de devotamento ao

lar e de reflexão nos problemas gerais da vida, operou verdadeiros

milagres de afeto e dedicação, para que a tranqüilidade espiritual voltasse ao

íntimo do esposo amado.

No dia seguinte ao seu regresso, Helvídio Lucius tomou todas as

providências para avistar-se com Nestório na Prisão Mamertina.

O aparecimento de Ciro, na Capital do Império, representava para

ele um fato inverossímil. Não podia crer que o seu liberto de confiança,

cujas atitudes lhe haviam conquistado a maior simpatia, pudesse ser o pai

de um homem que o seu coração detestava. Queria, assim, certificar-se da

verdade por si mesmo . Além do mais, se os acontecimentos não fossem

verdadeiros, empenharia todo o seu prestígio pessoal junto do Imperador,

a fim de evitar o martírio e a morte do prisioneiro.

A realidade, porém, haveria de contrariar esse intuito, sem

resquícios de fantasia.

Chegado ao presídio, conseguiu de Sixto Plócio, oficial que

superintendia o estabelecimento, uma licença incondicional, de modo a se

avistar com o prisioneiro como bem entendesse.

Dentro em pouco, varava corredores e descia escadas

subterrâneas, ladeando celas imundas, onde a luz era de uma escassez

terrível e clamorosa, e não tardou a encontrar Nestório ao lado do filho.

Ambos estavam magros, desfigurados, a tal ponto que o patrício, fosse

pelo abatimento físico do rapaz, fosse pelas sombras que os cercavam, não

reconheceu Ciro de pronto, dirigindo-se ao liberto nestes termos, que

profundamente o comoveram :

- Nestório, já sei os motivos que te trouxeram ao cárcere, mas não

hesitei em vir até aqui para ouvir-te pessoalmente, tal a estranheza que

me causou a relação das ocorrências!

Havia nas suas palavras um tom de sensibilidade e de simpatia

feridas, que o ex-escravo recebeu como bálsamo dulcificante para o seu

coração.

- Senhor - respondeu respeitosamente - agradeço do íntimo

dalma o vosso impulso generoso... Nestas celas jazem também loucos e

leprosos, e, contudo, não vacilastes em trazer ao vosso mísero escravo a

palavra de exortação e de conforto!. .

- Nestório - continuou Helvídio com generosa deferência -, meu

sogro relatou-me, a teu respeito, certos fatos que me custa acreditar, a

despeito de sua honorabilidade de homem público e do seu paternal

interesse para comigo.

Nesse ínterim, pai e filho contemplavam, ansiosos, aquele de quem

poderia depender a sua liberdade, notando-se que Ciro se encolhera a um

canto, temendo a atitude de ansiedade suspeitosa com que Helvídio Lucius

o observava.

O tribuno prosseguiu :

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

- Não pude aceitar, integralmente, o que me disseram e vim

certificar-me, por mim mesmo, com o teu depoimento pessoal.

E, acentuando as palavras, perguntou, abruptamente :

- És de fato cristão?

- Sim, senhor - murmurou o interpelado, como se respondesse

constrangidamente, em face de tão grande generosidade. - Prometi a Jesus,

no sacrário da consciência, que não renegaria a minha fé em tempo algum.

O tribuno esfregou o rosto, num gesto muito seu, quando

contrariado, acrescentando em tom de mágoa :

- Nunca pensei que houvera colocado um cristão na intimidade do

meu lar e, no entanto, vim até aqui sinceramente desejoso de pleitear a tua

liberdade.

- Agradeço-vos, senhor, de todo o meu coração e jamais

esquecerei o vosso alvitre – ajuntou Nestório com dolorosa serenidade.

- Interessando-me pela tua sorte - prosseguiu Helvídio

constrangidamente -, procurei o senador Quirino Brutus, incumbido pela

autoridade imperial da instrução do processo atinente aos agitadores do

Cristianismo, vindo a saber, ainda ontem, que treze dos implicados

receberam a sentença de banimento perpétuo e vinte e dois foram

condenados à morte pelo suplício.

Apesar do seu fervor religioso, ambos os prisioneiros ficaram

lívidos.

Helvídio Lucius, porém, continuou imperturbável.

- Entre estes últimos, vi o teu nome e o de um rapaz que me

disseram ser teu filho . Que me dizes a tudo isso ? Não desejarás,

porventura, abjurar uma fé que nada te facultará a não ser a morte infamante

pelos suplícios mais atrozes? E esse homem que te acompanha? será de

fato teu filho? Dize uma palavra que me esclareça ou me proporcione

elementos para uma defesa justa...

- Senhor - acudiu o liberto invocando todas as suas energias para

não fracassar no testemunho -, minha gratidão pelo vosso interesse

generoso há-de ser eterna! Vossas palavras me sensibilizam todas as fibras

do coração!. . Ouvindo-vos, sinto que deveria seguir vossos passos com

humildade e submissão, através de todos os caminhos; mas, é também por

amor que não posso ceder em minha fé, à própria tentação da liberdade !...

Jesus exerce em mim um jugo divino e suave... Embora vos ame, senhor,

não posso trair a Jesus nas atuais circunstâncias de minha vida... Se o

Mestre de Nazaré deixou que o imolassem na cruz, puro e inocente, pela

redenção de todos os pecadores deste mundo, porque me haveria de

escusar ao sacrifício, quando me sinto cheio da lama do pecado?

Jamais poderei, em consciência, abjurar uma fé que constituiu a luz de

minhalma, por toda a vida!.. A morte não me atemoriza, porque, além do

martírio e do sepulcro, esplende uma alvorada imortal para o nosso espírito !

Helvídio Lucius ouvia, surpreso, aquela demonstração de

esperança numa vida espiritual, que sua mentalidade estava longe de

compreender, enquanto Nestório continuava a falar, pousando, então, no

rapaz que o acompanhava, os olhos úmidos e ternos :

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

- Entretanto, senhor, sou pai e, como pai, sou ainda muito

humano! Não vos interesseis por mim, imprestável e doente, para quem a

condenação à morte pela causa de Jesus deve representar uma bênção

divina!. . Mas, se vos for possível, salvai meu filho, de modo que ele viva

para vos servir!. .

Ciro acompanhava a atitude paterna com idêntico espírito de fervor

e decisão, como que desejoso de protestar contra aquela rogativa,

demonstrando também preferir o sacrifício; mas o liberto continuava entre

lágrimas mal contidas, dirigindo-se ao tribuno, que o ouvia eminentemente

impressionado:

- Agora, senhor, sei de todo o pretérito amargurado e doloroso e

lamento o proceder de meu filho na vossa casa de Antipátris! . . Mas peçovos

perdão para as inquietudes da sua mocidade ! . . . Meu pobre Ciro

obedeceu à impulsividade do coração, sem dar ouvidos ao raciocínio,

com que se deveria aconselhar, mas, na amargura destas masmorras

sombrias, deu-me a sua palavra de que, se volver à liberdade, nunca mais

erguerá os olhos para a criança adorável, que é um arcanjo do céu no âmbito

do vosso lar... Se assim o exigirdes, senhor, Ciro poderá sair de Roma para

sempre, de maneira a nunca mais vos perturbar a felicidade doméstica! . .

Helvídio Lucius, porém, fechara o semblante, em atitude de

quem tomara implacável decisão.

Da generosidade mais pura, passara à negativa mais violenta, dada

a presença do seu ex-cativo de Antipátris, a quem os seus princípios não

poderiam tolerar, nunca.

- Nestório - exclamou em tom quase rude -, sabes da simpatia que

sempre me inspiraste, mas, se nunca te supus cristão e conspirador, muito

menos chegaria a pensar que pudesses ter engendrado um homem como

esse. Como vês, não posso intervir a favor de ambos. . . Certas árvores

morrem, às vezes, pelo apodrecimento dos galhos ! . . Vim aqui para

socorrer-te, mas encontrei uma realidade intolerável para o meu espírito.

Destarte, preferirei esquecê-los, antes de tudo.

- Senhor... - murmurou ainda o liberto, como se desejasse reter a

sua amizade, pedindo-lhe perdão, para morrer com a certeza de que o

tribuno lhe havia reconhecido o sincero agradecimento.

Helvídio Lucius, contudo, lançando a ambos um olhar

contrafeito, ajustava a toga para retirar-se quanto antes, exclamando

impulsivamente :

- É impossível !

Dito isso, deu costas aos prisioneiros e, chamando os dois guardas

que o acompanhavam, retirou-se apressado, enquanto os dois condenados

alongavam o olhar para fixar-lhe o porte firme e austero, e aguçavam o

ouvido para escutar os seus derradeiros passos nas lajes da prisão, como

se percebessem, pela última vez, a esperança que os poderia reconduzir à

liberdade.

Nestório sentia-se sufocado, mas a nuvem de suas lágrimas, como

que se rompera para atenuar-lhe as amarguras, enquanto Ciro se lhe

lançava aos pés, beijando-lhe as mãos, a murmurar:

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

- Meu pai ! meu pai ! . .

Ambos desejavam retornar ao sol claro da vida, sentir as emoções

da Natureza, mas o ambiente abafado do cárcere asfixiava.

Todavia, na tarde imediata, Sixto Plócio, recebendo as ordenações

da justiça imperial, separava os treze prisioneiros destinados ao exílio

perpétuo, reunindo os demais numa cela menos triste e largamente

espaçosa.Os dois libertos foram retirados do cubículo em que se

encontravam, transportados para junto dos demais condenados.

A nova cela também demorava na parte subterrânea, mas, de um

dos seus lados, podia ver-se o céu através de reforçadas grades.

Descera o crepúsculo, entornando sobre a cidade as suas tintas

maravilhosas, mas todos aqueles corações atormentados contemplaram o

casario e o horizonte, tomados de infinita alegria.

Ao longe, no firmamento, acendiam-se, na tela muito azul, as

primeiras estrelas!...

Policarpo, o venerável pregador da Porta Nomentana, transportado

do Esquilino para o Capitólio, a fim de reunir-se aos companheiros, traçou

no ar uma cruz com a mão calosa e encarquilhada.. Então, todos os

irmãos de fé, em cujo número se contavam algumas mulheres, se

prosternaram e, contemplando o céu romano, formoso e constelado,

começaram a cantar hinos de devoção e de alegria. Esperanças versificadas,

que deviam subir a Jesus, traduzindo o amor e a confiança daqueles

corações resignados, que viviam embevecidos nas suaves promessas do

seu Reino...

Aos poucos, as vozes se elevavam, harmoniosas e argentinas, nas

estrofes de hosana e de esperança! Seres espirituais, imperceptíveis,

ajoelhavam-se junto dos condenados, a cujos ouvidos chegavam os ecos

suaves das cítaras do invisível...

Então, alguns pretorianos que lhes montavam guarda, escutandolhes

os cânticos de fé, compararam a voz daqueles corações angustiados

a soluços de rouxinóis apunhalados em pleno luar, na vastidão do espaço.

Enquanto os prisioneiros aguardam o dia reservado ao sacrifício,

acompanhemos nossas personagens no desdobramento de sua vida

cotidiana.

Depois de uma visita a Tibur, Élio Adriano certificou-se do

valioso concurso de Helvídio Lucius às suas caprichosas edificações,

convidando-o a visitá-lo com a família, a fim de lhe testemunhar o seu

reconhecimento.

No dia aprazado, com exceção de Célia, que não podia dissimular

o seu abatimento, compareciam ao ágape, que o Imperador lhes oferecia, o

tribuno e sua família, acompanhado de Caio Fabrícius e Fábio Cornélio.

Adriano os recebeu com amabilidade extrema, versando as

palestras da tarde os mais variados assuntos atinentes à vida social e

política do Império .

Em dado instante, após as libações habituais, Adriano dirigiu-se a

Helvídio Lucius, nestes termos:

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

- Meu amigo, o principal escopo do meu convite é agradecer-te a

preciosa colaboração prestada aos meus planos em Tibur. Francamente, as

tuas realizações excederam a minha expectativa mais otimista !

- Obrigado, Augusto ! - respondeu o patrício, emocionado e

satisfeito.

E como se houvera transportado a sua palavra a objetivos

diferentes, o Imperador obtemperou com evidente interesse:

- Quando se efetua o enlace de tua filha ? Pretendo fazer uma

viagem demorada pela Grécia, antes de me recolher a Tibur de modo

definitivo, mas não desejaria partir sem contemplar a felicidade dos

nubentes. Designando Caio, que experimentava a maior alegria à vista do

interesse imperial pela sua situação, Helvídio replicou:

- Augusto, muito nos honramos com a vossa generosa atenção. O

enlace de minha filha depende tão somente do noivo, que está aliciando a

experiência da vida, antes de atender aos reclamos do amor.

- Que é isso, Caio? - perguntou o Imperador num largo sorriso. -

Que esperas ainda? Se Vênus ainda não te bateu fortemente às portas da

alma, não podes entreter com promessas o coração que te aguarda em

primaveras de amor.

- Vossa palavra, ó César - respondeu o interpelado como um

perfeito augustino -, conforta-me o espírito como os raios do Sol; entretanto,

tendo de substituir Vênus por Juno em meu santuário doméstico, aguardo a

oportunidade propícia à minha tranqüilidade futura.

Élio Adriano fez um gesto expressivo, fixando em Helvídio Lucius o

seu olhar enigmático, e acrescentando:

- O ensejo esperado deve estar chegando agora. Afirmava a

sabedoria dos antigos que melhor fala aos pais o bem que se faz aos filhos,

razão por que tomo o dote da jovem Helvídia ao meu cuidado. Resolvi doarlhe

uma propriedade deliciosa nas imediações de Cápua, ao pé do Vulturno,

onde o fruto das vinhas e das oliveiras bastaria para entreter a felicidade de

uma família durante cem anos de existência, sem outras preocupações de

ordem material.

Um sopro de alegria animou todos os semblantes, desenhando-se,

com especialidade, nos de Helvídio Lucius e sua mulher, que se

entreolharam felizes, tomados de sincero reconhecimento pela espontânea

generosidade do Imperador, a quem Fábio Cornélio se dirigiu com a mais

respeitosa cortesia, agradecendo em nome de todos a régia dádiva.

Caio Fabrícius, não podendo conter a sua alegria, apertou as mãos

da noiva, exclamando :

- Depois da palavra de Fábio, queremos confirmar nosso

reconhecimento à vossa magnanimidade, ó Augusto! Vossa lembrança

expressa a generosidade e o poder do senhor do mundo!... E já que

depende de mim a fixação do matrimônio, marcá-lo-emos para o mês

próximo, como vos apraz!. . Todo o nosso desejo é que nos honreis com a

vossa presença, porquanto, em face de vossa paternal proteção, sentimos

que os deuses nos abençoam e guiam!...

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

- Sim - ponderou Adriano pensativo -, no mês vindouro pretendo

realizar minha última viagem pela Itália e pela Grécia. Prometi aos amigos de

Atenas que não me recolheria a Tibur antes de levar-lhes a minha visita

derradeira! Antes de me ausentar, pretendo comemorar com festejos

públicos a inauguração dos novos edifícios da cidade (1) . Aproveitaremos,

então, a oportunidade para que se efetive a tua ventura .

(1) Entre as numerosas edificações de Adriano, durante o seu reinado, contase,

como das mais modernas, o famoso castelo de Santo Angelo. - Nota do

Emmanuel.

Alba Lucínia tinha os olhos úmidos, abraçando a filha alegremente,

e assim terminava o banquete com júbilo inexcedível.

No dia imediato, o Imperador ordenou todas as providências para a

doação e, enquanto Helvídio Lucius e família se preparavam

convenientemente para o evento familiar, Caio Fabrícius dirigia-se à

antiga "Terra da Lavoira", a fim de conhecer a região em que ficava a sua

futura vivenda.

Todavia, a par dos grandes júbilos, persistiam as graves

preocupações e as grandes dores.

Helvídio e sua mulher não podiam forrar-se à contrariedade que

os martirizava intimamente, ao verem que Célia definhava, apesar dos

esforços que ela mesma fazia, mercê das energias poderosas da sua fé, a

fim de não amargurar o coração dos genitores .

Comparando a filha a uma flor mirrada e triste, o tribuno

aumentava o seu ódio às idéias cristãs, recordando Ciro com aversão e

rancor. O doloroso contraste do destino de suas filhas era-lhe objeto de

profundas meditações. Interessava-se por ambas, com o mesmo afeto;

contudo, mau grado à boa intenção, a mais nova parecia afastada da sua

devoção paternal. Não sabia freqüentar os ambientes sociais, nem se

integrava convenientemente no ritmo doméstico, como fora de desejar.

Seus olhos jamais haviam manifestado qualquer interesse pelas fantasias

da juventude e, mergulhados em cismas constantes, pareciam fixar-se

noutros rumos, que o seu espírito paternal jamais pudera definir com

acerto. Ao seu conceito, ela era vítima de umas tantas fraquezas que, no seu

zelo, atribuía à influência dos princípios cristãos, no convívio dos escravos,

lá na Palestina... Ainda bem que Helvídia seria ditosa e isso, de algum modo,

o consolava! . . Quanto a Célia, ele e a esposa mais tarde levá-la-iam a

terras estranhas, onde a sua sensibilidade doentia pudesse modificar-se a

contento.

Enquanto o tribuno desenvolvia todos os esforços por dissimular

tais conjeturas, multiplicavam-se no lar os júbilos festivos.

Mas, ao passo que aumentavam as esperanças e as alegrias

familiares, Célia verificava que os seus padecimentos morais lhe

superavam as próprias forças.

A notícia da condenação de Ciro, como conspirador, acabrunhavalhe

profundamente o coração. Além disso, bastaria uma palavra só, do

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

Imperador, para que os terríveis suplícios se consumassem. Aquelas

perspectivas angustiosas lhe anulavam todas as esperanças. Ao seu lado, o

enxoval da irmãzinha cobria-se de pérolas e de flores! Por si, não lhe

invejava a ventura, mas desejava conservar a vida do eleito do seu destino .

Orava sempre, mas as suas preces estavam eivadas das angústias

terrenas, sem a leveza suave de outros tempos, que as fazia

ascenderem ao céu. Agora, as vibrações espirituais mesclavam-se de

ansiedades amargas e dolorosas!. . Desejava ver Ciro, ouvir-lhe a palavra,

saber da sua boca que o seu coração continuava forte e resignado diante da

morte, a fim de que a sua alma haurisse ânimo na coragem dele, mas não

podia pensar nisso. Os pais não lho consentiriam nunca. Tão penosas

reflexões foram-lhe invadindo o cérebro, enfraquecendo-o.

Em poucos dias, o organismo não se mantinha de pé. Todavia,

Alba Lucínia, com o bom-senso que lhe caracterizava as iniciativas,

lembrou a conveniência de transportá-la para o Aventino, onde se trataria

convenientemente junto do velho avô e de Márcia, que a adoravam.

Aceito o alvitre, Cneio Lucius veio buscá-la pessoalmente, com

paternal solicitude.

Em sua casa a jovem melhorara do estado febril que tanto a

debilitava, mas o singular abatimento moral zombava de todos os cuidados

do venerável ancião, que inventava mil modos de restabelecer a alegria da

netinha adorável.

Certo dia, pondo em jogo os seus processos psicológicos

cheios de ternura, acercou-se da neta, exclamando com profunda bondade :

- Célia, minha querida, pesa-me o coração ver-te assim abatida e

doente, apesar de todos os esforços do nosso amor desvelado.

E como lhe visse as lágrimas brilhando à flor dos olhos, continuou

carinhoso :

- Também eu, minha filha, no imo da consciência, sou hoje um

adepto do Cristianismo, com todo o fervor do meu espírito! Conheço a

essência dos Evangelhos, levado pelas afetuosas sugestões da tua alma

cândida e generosa!... Para mim, não valem mais, agora, os sacrifícios

aos nossos velhos deuses, silenciosos e frios, mas tão somente as ofertas

do nosso próprio coração àquele que vela por nossos destinos, do seu

trono das Alturas! Mas ouve, filhinha: não sabes que Jesus não quer a morte

do pecador? Não lhe conheces o ensinamento, cheio de vida e de alegria?

E como se adivinhasse as mágoas que laceravam aquele coração

afetuoso e crente, tinha também os olhos úmidos.

A neta recebeu-lhe as palavras como se fossem um bálsamo

suave, respondendo :

- Sim, compreendo tudo isso e rogo a Jesus me conceda forças,

a fim de encontrar nos seus exemplos a razão da minha própria vida...

Essa resposta, porém, ficava a meio, uma onda de lágrimas

invadia-lhe os olhos grandes, serenos, como se hesitasse em confessar ao

venerando velhinho a sua preocupação dolorosa e incessante.

Cneio Lucius, contudo, abraçou-a ternamente, ao mesmo tempo

que ela murmurava em voz súplice :

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

- Avozinho, prometo ter fé e triunfar de todos os sofrimentos, mas

desejava ver Ciro antes da sua morte.

O respeitável ancião compreendeu quão difícil seria satisfazer tal

desejo, mas respondeu sem pestanejar:

- Vê-lo-ás comigo, amanhã pela manhã. Falarei a teus pais, ainda

hoje, a esse respeito.

A jovem lançou-lhe um olhar jubiloso e profundo, no qual se podia

ler a mais terna de todas as alegrias, misto de amor e gratidão .

A tarde, uma liteira saía do Aventino, conduzindo o venerável

patrício à casa do filho, que, ao lado da esposa, lhe recebeu a rogativa com o

mais fundo constrangimento a lhe transparecer no rosto.

Alba Lucínia, na sua sensibilidade de mulher, compreendeu de

pronto que a concessão aos desejos da filha era justa, convindo atender

àquela súplica ansiosa.

O tribuno, porém, relutava consigo mesmo e, se não opunha uma

negativa formal, era tão somente em atenção ao interventor, que, em lhe ser

pai, era também seu mestre e o melhor amigo de toda a vida.

- Mas, meu pai - obtemperou depois de longa meditação -, esse

pedido articulado pela sua boca me surpreende profundamente. Tal

medida, posta em prática, atrairá sobre nossa casa e nome numerosos

comentários e suspeitas. Que diriam os administradores do cárcere se

vissem minha filha a interessar-se por um condenado ?

- Filho - replicou Cneio Lucius imperturbável -, compreendo e

justifico os teus escrúpulos, mas precisamos considerar que Célia pode

piorar, fatalmente, se lhe recusarmos a satisfação desse desejo. Além

disso, sou eu próprio que me proponho acompanhá-la. Quanto à nossa

entrada na prisão, livre da curiosidade maledicente, já pensei no melhor

meio de conseguí-la. Levarei minha neta na qualidade de pupila da minha

casa, como se fora filha de um sentenciado, pois bem sabemos que os

prisioneiros não vão morrer como cristãos, mas como conspiradores e

revolucionários. Com as prerrogativas de que disponho, penetrarei no

cárcere em sua companhia, sem a presença importuna dos funcionários ou

dos pretorianos, de modo que somente eu presenciarei o que venha a

ocorrer entre ambos !

Helvídio ouvia-o, silencioso. Mas o venerável patrício, sem desistir

dos seus propósitos, tomou-lhe as mãos entre as suas, murmurando

humildemente:

- Concorda! Não negues à tua filha, enferma, a satisfação de um

desejo tão justo!. . Além disso, filho, recorda-te que se trata de um simples

encontro pela última vez . . .

Ao espírito do tribuno repugnava a idéia de que a filha fosse visitar

o servo odiado, com o seu consentimento; mas, havia tamanha ternura

nas palavras paternas que o seu coração cedeu de chofre àquela atitude de

carinho e de humildade.

Fixando o generoso velhinho, como se estivesse anuindo tão só

por consideração a ele, seu pai e maior amigo, murmurou um tanto

contrafeito:

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

- Pois bem, meu pai, que se faça a sua vontade! Deixo a seu critério

a solução do caso.

E dando a entender que o assunto lhe desagradava, falou de outras

coisas, levando o ancião para o interior, onde se intensificavam os

preparativos para os esponsais de Helvídia.

Cneio Lucius, que entendia a alma do filho desde pequeno,

gabou-lhe todos os empreendimentos com bom humor e alegria, opinando

com otimismo sobre todos os seus feitos e regozijando-se,

simultaneamente, com as suas iniciativas, a evidenciar no semblante

uma satisfação espontânea e sincera, como se nenhuma preocupação lhe

povoasse a mente.

Nas primeiras horas do dia imediato, a liteira do venerável patrício

estacionava junto à Prisão Mamertina, enquanto ele e a neta, que se

disfarçara em trajes muito simples, dentro de um largo peplo que lhe

dissimulava os próprios traços fisionômicos, entravam no tenebroso

edifício, salientando-se que Sixto Plócio, previamente avisado, vinha receber

Cneio Lucius e aquela que ele apresentava como filha adotiva de sua casa,

facultando-lhes a máxima liberdade para tratar com os prisioneiros.

Na cela espaçosa onde se aglomeravam os vinte e dois

sentenciados, penetravam os primeiros clarões do Sol como se fossem uma

bênção.

Nestório e Ciro, reunidos aos demais, estavam profundamente

desfigurados. A alimentação deficiente, as perspectivas angustiosas, os

castigos aplicados no cárcere, tudo se conjugava para lhes abater as forças

físicas. Todavia, nos olhos serenos de todos os condenados havia um

clarão sublimado e ardente, exteriorizando energias misteriosas. Viviam da

fé e pela fé, colocando todas as esperanças naquele Reino divino que Jesus

lhes prometera em cada ensinamento.

Volúsio e Lépido, dois pretorianos de plena confiança dos

administradores do presídio, conduziram os visitantes ao apartamento dos

condenados.

Um grito de júbilo escapou-se do peito de Ciro ao avistar a figura

de Célia, que caminhava para ele com um sorriso carinhoso, embora

amargo. Nestório não sabia expressar o reconhecimento que lhe inundava a

alma, pois que, embora não se revelasse um companheiro de convicção,

Cneio lhes estendia os braços generosos.

A princípio, a emoção e alegria emudeceu uns e outros; mas a

jovem patrícia, num impulso natural e muito feminino, observando a penosa

situação do bem-amado de sua alma, desatara em pranto convulsivo,

enquanto o velho avô murmurava com benevolência e carinho :

- Chora, filha! . . as lágrimas fazem-te bem ao coração!. .

E, bondosamente, como se deferisse ao moço liberto a tarefa de

consolá-la, afastou-se com Nestório para outro ângulo da cela,

apresentando-lhe o ex-cativo os demais condenados.

Quase a sós, os dois jovens podiam trocar as suas impressões

derradeiras.

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

- Célia, como te entregas ao sofrimento desse modo? - perguntou

o mancebo invocando todas as suas forças para revelar coragem e

serenidade. - Não será melhor morrer pelo Mestre, a quem tanto amamos?

Estou muito reconhecido a Jesus, ao receber tua visita nesta cela erma e

triste . Desde que fui preso, tenho suplicado fervorosamente à sua

misericórdia não me permitisse morrer sem consolar-te!...

Ainda esta noite, querida, sonhei que havia chegado ao Reino

do Senhor, aí vendo muitas luzes e muitas flores.. Chegando aos pórticos

desses paraísos indefiníveis, lembrei-me do teu coração e senti uma

saudade profunda!... Queria encontrar-te para penetrar no Céu, contigo. . .

Sem a tua companhia, as moradas de luz me pareceram menos belas,

mas um ser divino, desses a quem deveremos chamar anjos de Deus,

acercou-se, esclarecendo-me com estas palavras: - Ciro, breve baterás a

estas portas, livre de qualquer laço dos que ainda te prendem ao corpo

perecível ! Manifesta a tua gratidão a esse Pai de misericórdia que te

concede tantas graças, mas não penses em repouso quando as lutas apenas

começam! Terás de ressarcir, ainda, muitos séculos de erro e treva, de

ingratidão e impenitência!... Reconforta o espírito abatido, na contemplação

dos planos sublimados da Criação, para que possas amar a Terra com as

suas experiências mais penosas, que valem também por divino aprendizado,

na escola do amor de Deus!...

Então, querida, pedi àquela entidade pura e carinhosa que,

depois da morte, me auxiliasse a renascer junto de ti, fosse com a

responsabilidade das riquezas terrestres, ou na condição da maior miséria. E

sei que Jesus, tão poderoso e tão bom, há-de conceder-me essa graça. Não

chores mais! Desanuvia o coração nas promessas divinas do Evangelho ! .

Suponhamos que vou fazer uma longa viagem, imposta pelas

circunstâncias... mas, se Deus permitir, estarei de volta ao mundo, no dia

imediato, a fim de nos encontrarmos novamente. Como será esse

reencontro? Não importa sabê-lo, porque, de qualquer forma, sempre nos

amamos pelo espírito, dentro de nossas realidades imortais!

Promete-me que serás alegre e forte, esperando a minha volta. Não

permitas que energias destruidoras te maculem o coração!. .

E presumindo que a jovem pudesse, mais tarde, enfarar-se do

próprio destino, acentuou:

- Confio no teu valor, espero que jamais estranhes a posição social

que o Senhor te haja concedido. Nas horas angustiadas da vida, recorda-te

que, depois do amor de Deus, deveremos honrar pai e mãe acima de

todas as coisas, sacrificando-nos por eles com a melhor das nossas

energias ! . . .

Ela deixara de chorar, mas uma névoa de tristeza lhe invadira os

olhos desencantados. Contemplava-o à sua frente, com uma ternura que o

coração não saberia jamais definir. Noivo ou irmão? Por vezes, sentia no

íntimo que ele deveria também ser filho. As almas gêmeas amam-se em

curso de eternidade, confundindo-se na alternativa contingente dos elos

do espírito. Aspiram a uma felicidade pura e imortal e só vivem felizes

quando integradas na união eterna e indissolúvel.

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

Na fortaleza moral que lhe ocultava as mais dolorosas emoções, o

mancebo continuava:

- Dize-me, Célia, que amarás sempre a vida, que terás muita fé e me

esperarás, cheia de confiança.. Quero enfrentar o sacrifício com a certeza

de que prosseguirás, como sempre, forte na luta e conformada com os

desígnios do Criador ! . . .

- Sim - murmurou ela com uma cintilação de fé a lhe brilhar nos

olhos -, por ti, nunca odiarei a vida! Através da minha confiança nas

promessas do Cristo, rejubilarei quando chegares... tornarei a sentir a

branda carícia da tua presença carinhosa, pois meu coração identificará o

teu entre mil criaturas, porque te tenho amado como Jesus nos ensinou,

com dedicação celestial.

- Assim, querida - murmurou o jovem confortado -, foi sempre

assim que idealizei o teu coração humilde e generoso.

- Ciro - disse a donzela candidamente -, rogo a Jesus que nos

conserve a fé nas angústias desta hora! Esperarei a tua volta, cheia de

confiança em ti, sabendo que me quiseste sempre, tal como te amei ! . .

Depois de uma pausa, olhos umedecidos, continuou emocionada:

- Sabes? lembro-me agora de nossa excursão ao lago de

Antipátris... Recordas-te? Eu estava surpresa por te ver, quando a onda me

colheu, impelida pelo vento... Hoje, pergunto se não seria melhor ter

morrido. Aprenderia a amar a Jesus, fora de um mundo como este, e haveria

de esperar-te na outra vida com o meu amor grande e santo!... Ainda sinto a

emoção do minuto em que me salvaste, trazendo-me à tona ! . . .

- É verdade - atalhou o rapaz fazendo o possível por não trair a

emoção daquelas reminiscências -, mas, recordando tudo isso, não somos

levados a crer que Jesus, desejava, como ainda deseja, a tua vida? Não fui

eu quem te salvou, mas o Mestre Divino, que te queria na Terra.

- Sim - obtemperou comovida -, continuarei implorando a Jesus que

te permita voltar, conforme prometes! O mundo, Ciro, é sempre um lago

revolvido pelo vento das paixões e, no fundo das águas, há sempre vasa que

sufoca as mais nobres aspirações do espírito. Que Jesus não me falte

com a tua companhia no futuro, pois quero viver para servi-lo na claridade

de tua memória, que honrarei em toda a vida!. .

- Célia, não duvides do Senhor nem descreias da minha volta .

Pensarei sempre em ti, como nunca te esqueço...

E para dissipar as amargas expectativas do momento, voltou-se

para trás, revolvendo um colchão imundo, ali colocado à guisa de cama, de

lá retirando um pedaço de pergaminho que ofereceu à jovem,

acrescentando:

- Ainda anteontem escrevemos aqui um hino para glorificar o

Mestre no dia do sacrifício. Lembrei que deveria sugerir aquela música que

te ensinei, sob os cedros de tua casa, sendo aceita a minha idéia. Desde

esse instante, querida, minha grande preocupação foi conseguir os

recursos precisos para deixar-te uma cópia, pois tinha convicção de que

Jesus me concederia a dita de rever-te.

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

Há aqui um pretoriano chamado Volúsio, bastante simpático ao

Cristianismo, que me facultou os elementos precisos para a grafia destes

versos.

Entregando-lhe o fragmento de pergaminho, acentuava:

- Guarda este hino que constitui a minha lembrança antes da

partida! Todos nós colaboramos na formação do poema, mas, lembrandome

da nossa eterna afeição, encaixei aí algumas rimas, nas quais traduzi

minhas esperanças. Dedico-as a ti, para confirmar-te a dedicação de todos

os momentos!

- Deus te abençoe e te proteja! – exclamou a jovem patrícia,

guardando a preciosa lembrança.

Ambos se entreolharam com a poderosa atração dos seus

sentimentos purificados, mas Cneio Lucius, depois de haver conversado

longamente com Nestório e seus companheiros, examinando todos os

detalhes da prisão, aproximava-se com um sorriso complacente .

Conhecendo a sentimentalidade da neta, dirigiu-lhe a palavra

nestes termos:

- Filha, as horas voam, estou à tua disposição para quando desejes

regressar. Ela acercou-se do respeitável ancião, que se fazia acompanhar

pelo liberto de seu filho, pousando em Nestório o olhar melancólico, mas

o ex-cativo veio-lhe ao encontro com estas palavras :

- Célia, tua vinda a este cárcere representa para nós a visita de um

anjo. Não te impressione a nossa condenação, que aos olhos de Deus deve

ser útil e justa. Dizia a inspiração de Paulo que a morte é o nosso último

inimigo. Venceremos, pois, mais essa etapa, com Jesus e por Jesus. Apesar

disso, não te esqueças de que a dádiva da vida é um bem precioso que o

Céu nos confia. Para a alma fervorosa, o melhor sacrifício ainda não é o da

morte pelo martírio, ou pelo infamante opróbrio dos homens, mas aquele

que se realiza com a vida inteira, pelo trabalho e pela abnegação sincera,

suportando todas as lutas na renúncia de nós mesmos, para ganhar a vida

eterna de que nos falava o Senhor em suas lições divinas!

Célia sentiu que a sua fé atingia um grau superior, mediante

aquelas exortações amigas e carinhosas, e voltando-se para Ciro, que, com

o olhar, parecia recomendar-lhe que as ouvisse, respondeu, comovida :

- Sim, guardarei tuas palavras com o respeitoso amor de uma filha.

Acercando-se do avô, pediu-lhe permissão para despedir-se de

ambos os condenados, e, aproximando-se do jovem, que ocultava a

comoção no imo dalma, guardou-lhe as mãos entre as suas por um

momento, beijando-as levemente.

- Deus te proteja! - disse em voz baixa, quase imperceptível.

Em seguida, acercou-se de Nestório, a quem abraçou

respeitosamente, depositando-lhe um ósculo na fronte.

Ambos os sentenciados desejavam agradecer, mas não o

puderam . Uma força poderosa parecia embargar-lhes a voz . Ficaram

imóveis, silenciosos, enquanto Cneio Lucius, tocado pela cena

comovedora, se despedia com um leve aceno.

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

Contudo, até o fim, Ciro mostrava no rosto uma expressão de

fortaleza, num sorriso carinhoso que consolava profundamente a alma

gêmea da sua...

Mais um gesto de adeus naquele silêncio que as palavras

profanariam, e a porta do cárcere rangeu de novo nos seus gonzos sinistros

e terríveis. Nesse instante, o sorriso do moço cristão desapareceu-lhe do rosto

desfigurado. Dirigiu-se para as grades da prisão, agarrando-se aos varões

como um pássaro sedento de luz e liberdade. Seus olhos ansiosos

espraiaram-se pelo exterior, buscando ver, pela última vez, a liteira que

deveria reconduzir a sua amada.

Mas, aos poucos, sua juventude inquieta voltava-se para Jesus,

com todo o fervor de suas aspirações apaixonadas. Desprendeu-se dos

varões rígidos e ajoelhou-se. A luz do Sol, que esplendia na manhã alta,

banhou-lhe as faces e os cabelos.

Orava, rogando a Jesus fortaleza e esperança. A claridade solar

parecia inundar-lhe a fronte com as graças do Céu, mas, mesmo assim,

deixando pender a cabeça, escondeu o rosto nas mãos emagrecidas, para

chorar humildemente .

VII - NAS FESTAS DE ADRIANO

Cneio Lucius notou que a visita da neta aos condenados produzira

efeitos grandemente benéficos. Apesar do abatimento, Célia mostrava-se

corajosa na fé, mais calma e bem disposta. Contudo, o velho avô,

considerando a sensibilidade do seu afetuoso coração de menina,

providenciou junto dos filhos para que ela ficasse em sua companhia até a

passagem das festas do casamento de Helvídia.

Neste ínterim, não podemos esquecer que a esposa de Lólio

Úrbico, novamente em Roma, ia freqüentes vezes à Suburra, onde mantinha

os mais íntimos colóquios com a vendedora de sortilégins, já conhecida.

Horas a fio, Cláudia e Plotina trocavam idéias à surdina,

assentando providências criminosas ou arquitetando planos sinistros,

salientando-se que Hatéria, havendo conquistado o máximo da estima dos

patrões, trazia a antiga plebéia informada de todos os fatos atinentes à

vida íntima do casal.

Nas vésperas do enlace de Helvídia, vamos encontrar a Capital do

Império na agitação característica das épocas festivas.

Preparando-se para a sua derradeira romagem a um dos centros

mais antigos do mundo, Adriano deseJava brindar o povo romano com

espetáculos inesquecíveis.

Em tais ocasiões, as autoridades políticas aproximavam-se do

sentimento popular, alimentando-lhe as vibrações de extravagância e de

alegria. A inauguração de novos edifícios, os preparativos da viagem e a

adesão do povo ao programa oficial justificavam os mais altos caprichos da

magnanimidade imperial. Por toda parte verificava-se o frêmito dos

trabalhos extraordinários, enchendo a cidade de improvisações

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

transformadoras. Construções de novas arcadas, pontes ou aquedutos

provisórios, distribuições de trigo e vinho, organização de préstitos

religiosos, homenagens a templos especializados, loterias populares e, por

fim, o circo com as suas novidades inexcedíveis.

O povo esperava sempre tais manifestações, com júbilo

incontido.

Instalado no Palatino, Élio Adriano cogitava de distrair as

massas romanas, organizando comemorações dessa natureza,

movimentando as autoridades e induzindo a guardar, porém, intimamente,

o objetivo principal de todas as atividades, que era o de sua viagem à

Grécia, cujas graças já lhe haviam conquistado a mais ampla simpatia. O

grande Imperador, classificado na História como o maior benfeitor das

cidades antigas, onde se havia erguido o berço da cultura e da civilização,

projetava as melhores construções para Atenas, bem como o estudo

especializado das ruínas de toda a Hélade, de modo a beneficiar o

patrimônio grego na medida de todos os seus recursos.

No limiar dos acontecimentos, vamos encontrar o soberano na

intimidade de Cláudia Sabina e de Flegon, seu secretário de confiança,

analisando os pormenores do cruzeiro que as galeras imperiais haveriam

de fazer pelas águas mediterrâneas.

A certa altura, Adriano interpela o secretário:

- Senécio, já cumpriste minhas ordens concernentes à expedição

dos convites?

- Por Júpiter! - exclamou Flegon satisfeito - nunca me esqueceria

de cumprir, a preceito, uma determinação de Augusto .

- Como vê - disse o Imperador, dirigindo-se a Cláudia -, tudo está

pronto e em ordem de marcha. Entretanto, necessito de alguém que me

acompanhe, não tanto com o senso de arte ou de crítica, mas com o

propósito de trabalho, atento ao meu desejo de transportar para Tibur

algumas colunas célebres e outras soberbas relíquias das ruínas de Fócida e

Corinto. Tenciono ornar os nossos edifícios com os tesouros do mundo

antigo. Não poderei dispensar, no meu retiro de Tibur, as visões do jardim

dos deuses, com as suas sugestões preciosas ao meu espírito.

A mulher do prefeito ouviu-o com particular atenção e,

aproveitando a oportunidade para realizar seus projetos, aventou, fingindo o

maior desinteresse:

- Divino, o filho de Cneio figura na lista dos vossos convidados?

- Não. Helvídio Lucius seria um excelente companheiro, mas,

abstive-me de incomodá-lo, atento as suas condições especialíssimas de

homem casado e chefe de família.

- Ora - replicou displicentemente a antiga plebéia -, haveis de

permitir discorde um tanto do vosso pensar, a respeito . Acaso não tenho

também um lar a exigir dedicação e cuidados? Não vou separar-me do

esposo, que aqui ficará retido pelos deveres do seu cargo? No entanto,

considero-me honrada em vos acompanhar, obedecendo à circunstância de

representardes, para nós outros, o soberano e o chefe magnânimo. Acredito

que o genro de Fábio pensará comigo, sem discrepância. Daqui a dois dias,

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

realizam-se os esponsais da sua filha mais velha, sob as vossas vistas

magnânimas. Ele que recebeu tantos favores de vossas mãos generosas,

poderia desdenhar o ensejo de vos ser útil em alguma coisa?

Depois de uma pausa em que seus olhos fixaram profundamente o

Imperador, de modo a recolher o íntimo efeito de suas palavras, continuou :

- Conhecendo pessoalmente as obras de Tibur, que tanto seduzem

o gosto artístico, penso que só um esteta como Helvídio poderia operar o

milagre de escolher o precioso material e superintender o seu transporte

para Tibur. Além do mais, Divino, creio que essa viagem, ausentando-nos

de Roma por mais de um ano, seria sobremaneira agradável ao seu ânimo de

patrício!. . Novas possibilidades, novas realizações e novas perspectivas,

penso, lhe granjeariam vantagens para a própria família, visto que o Império,

representado em vossa magnanimidade, saberia recompensar-lhe todos os

méritos.

Elio Adriano meditou um instante, enquanto o secretário tomava

alguns apontamentos.

A seguir, levando em conta as observações de Cláudia, que o

fixava ansiosa, respondeu solícito :

- Tens razão. Helvídio Lucius é o homem que procuro.

Sabina fez um gesto expressivo de satisfação, enquanto o

Imperador incumbia Flegon de levar em seu nome o respectivo convite.

Colhido pelo mensageiro no meio das atividades festivas do lar, o

tribuno surpreendeu-se grandemente. Não esperava um ato daquela

natureza. Outrem poderia honrar-se com a gentileza; ele, porém, sentimental

por índole, preferia a paz doméstica, longe do turbilhão de bagatelas

frívolas da Corte. A viagem à Grécia, em tais condições, afigurava-se-lhe

aborrecida e inoportuna. Além disso, deveria partir dentro de uma semana.

E quem poderia pensar no regresso? O soberano estava habituado a

fazer excursões longas e freqüentes, através do mundo antigo. Na viagem de

124, estivera ausente de Roma por mais de três anos consecutivos, e tanto

se apaixonara por Atenas que chegara ao extremo de se iniciar,

pessoalmente, nos mistérios de Elêusis.

Todavia, antes que as reflexões penosas lhe anulassem de

todo o ânimo, chamou a esposa ao tablino, onde examinaram atentamente o

assunto.

- Por mim - exclamou o tribuno com o seu espírito resoluto -,

procurarei esquivar-me, desistir do convite. Essas ausências de Roma, com

a separação da família, transtornam-me o pensamento. Sinto-me deslocado,

aborrecido, insatisfeito.

Alba Lucínia ouvia-lhe as afirmativas com o coração alarmado .

Para o seu espírito sensível, semelhantes perspectivas eram assaz

amargas e perturbadoras. Certo, Cláudia Sabina iria também à Hélade

distante, e por tempo que ninguém poderia precisar. Anuir à viagem do

esposo era entregá-lo às seduções inferiores daquela mulher, cujos

sentimentos inconfessáveis a sua intuição feminina pressentia. Mas não só

isso a preocupava. A sua situação em Roma tornar-se-ia novamente penosa

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

durante a ausência do companheiro . Lólio, sem dúvida, voltaria a assediá-la

com mais veemência e teimosia.

Pensou em falar a Helvídio, cientificá-lo de todos os fatos

ocorridos na sua ausência, expor-lhe com sinceridade os seus escrúpulos,

mas, logo, à mente lhe veio a figura paterna. Fábio Cornélio dependia,

absolutamente, do prestígio e do apoio do prefeito, e do seu velho genitor

dependiam sua mãe e seus irmãozinhos inexperientes.

Num relance, a nobre senhora compreendeu a impossibilidade de

manifestar suas queixas diretas, em tais circunstâncias da vida, e,

recordando-se ainda da gentileza do Imperador para com a filha,

assegurando-lhe generosamente o futuro, sentiu que a voz da gratidão

deveria falar mais alto que as conveniências pessoais.

- Helvídio - murmurou ela depois de viver intensamente as suas

lutas íntimas -, ninguém mais que eu poderá sentir a tua ausência. Sabes

que a tua presença no lar constitui a minha proteção e a de nossa família,

mas o dever, querido. Onde fica o dever nas atuais circunstâncias de nossa

vida? O convite do Imperador não deverá representar para nós uma

prova de confiança? E a generosidade de Adriano para conosco? A

dádiva de Cápua não se verificou de modo a cativar-nos para sempre?

- Tudo isso é verdade - confirmou o tribuno calmamente -, mas eu

odeio esse totalitarismo do Império, que nos rouba a autonomia individual e

nos anula a própria vontade.

- Contudo, precisamos refletir para nos adaptarmos às

circunstâncias - obtemperou a esposa, de maneira a confortar o espírito

abatido do companheiro .

- Não é somente a política que me impressiona desagradavelmente

- disse Helvídio desabafando -, é também a perspectiva da nossa separação

por tempo indefinido! Longe do teu coração ponderado e carinhoso, sintome

passível de esmorecimento ante o assédio das tentações de toda

espécie, que me dificultam as iniciativas necessárias. Além do mais, terei de

partir em companhia de pessoas que me não são simpáticas, e cujas

relações sociais detesto sem restrições.

Alba Lucínia compreendeu as alusões indiretas do companheiro

exacerbado e, tomando-lhe as mãos afetuosamente, exclamou com

meiguice :

- Helvídio, muita vez quem odeia é que não soube amar

convenientemente. Façamos por manter a harmonia e a paz na esfera de

nossas relações. Como a concepção do dever fala mais alto nas tradições

do nosso nome, acredito que partirás sem te deixares perder nos

sentimentos inferiores!. . Sê calmo e justo, certo de que ficarei orando por

ti, amando-te e esperando-te. Essa doce perspectiva não te será um

consolo de todas as horas?

Depois de uma pausa meditativa das ponderações da

companheira, o tribuno atraiu-a ao coração, beijando-a agradecido.

- Sim, querida, os deuses hão-de ouvir-te as preces pela nossa

ventura. Também sinto que o dote de Helvídia exige mais este sacrifício;

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

contudo, ao regressar, tomaremos as providências indispensáveis à

modificação de nossa vida.

Alba Lucínia experimentou um brando alívio ao reconhecer que

suas palavras haviam tranqüilizado o companheiro, mas, voltando ao seu

pequeno mundo doméstico, passou a refletir na sua amargurada situação

pessoal, considerando as penosas provações que o destino lhe reservava

no curso da vida. Debalde insulava-se no santuário do lar, nos intervalos de

suas atividades intensas, implorando a proteção das divindades que lhe

haviam presidido ao matrimônio. Apesar do fervor com que o fazia, os

deuses de marfim pareciam-lhe frios, implacáveis, e, no torvelinho das

alegrias domésticas, o sorriso ocultava muitas lágrimas silenciosas, que não

lhe borbulhavam dos olhos, mas escaldavam o coração.

Entre as clarinadas do júbilo geral, surgiram as festas adrianinas e,

com elas, a data auspiciosa dos esponsais da filha de Helvídio Lucius.

As cerimônias nupciais constituíram um dos acontecimentos

mais notáveis para a sociedade de então, a elas concorrendo o que Roma

possuía de mais distinto nas camadas do patriciado .

Fábio Cornélio, desejando comemorar a ventura da neta de sua

predileção, fora fértil em inventar os mais belos jogos de iluminação, no

parque da residência de seus filhos.

Por toda parte, aroma de flores maravilhosas, em todos os

recantos cantigas e trovas apaixonadas a confundirem-se com os sons das

cítaras e atabales, tangidos por mãos de mestres exímios... Enquanto os

escravos se cruzavam apressados em satisfazer o capricho dos convivas,

dançavam bailarinos famosos ao estribilho melodioso dos alaúdes.

Pequenos lagos, improvisados à guisa de aquários naturais, ostentavam

plantas soberbas do Oriente e peixes exóticos provocavam a admiração de

quantos se deliciavam com as alegrias da noite .

Todo o cenário festivo fora preparado a caráter, com previsão e

requintes de bom gosto, salientando-se a piscina, onde barcos graciosos e

leves se pejavam de ninfas e trovadores, e a arena na qual, de remate à

festa, dois escravos jovens e atléticos perderam a vida sob os gládios

poderosos de lutadores mais fortes.

Nenhuma lacuna se observava, exceto a ausência de Cneio Lucius,

que, segundo informavam os anfitriões, permanecia no Aventino, ao lado da

outra neta enferma.

No dia seguinte, enquanto Helvídia e Caio partiam para Cápua sob

uma chuva de flores e se bem estivessem no zênite as festividades do povo,

Alba Lucínia não conseguia dissipar a onda de receios que lhe assaltara o

coração. Sua consciência sentia-se tranqüila em relação ao que alvitrara ao

marido, considerando que a gratidão de ambos, ao Imperador, não

admitia tergiversações quanto à viagem à Grécia. Mas Helvídio Lucius lhe

falara dos próprios temores, com respeito às tentações... Suas mãos ainda

sentiam o calor das dele, ao terminar as confidências amargurosas. Estaria

certa, incitando-o a aceitar os novos encargos impostos pelo Império? Não

deveria, igualmente, defender o esposo de todas as situações difíceis,

determinadas pela política com as suas inquietações perversoras ? . .

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

Nasceu-lhe, então, a idéia de procurar Cláudia Sabina e pedir, com

humildade, a sua interferência. Semelhante atitude não se compadecia com

as tradições de orgulho da sua estirpe, mas o desejo do bem, aliado à

vibração da sinceridade pura, poderia, a seu ver, modificar as intenções

bastardas que, porventura, vivessem no coração daquela criatura fatal.

Desde que percebera a indecisão de Helvídio, sentiu a necessidade

de cooperar ativamente para a sua tranqüilidade moral, desviando dele todos

os perigos, com a mobilização das forças poderosas do seu afeto, que

chegava a vencer os imperativos do orgulho inato.

Assim foi que, depois de muito meditar, no dia imediato ao

casamento de Helvídia deliberou procurar Cláudia Sabina, pela primeira

vez, no seu palácio do Capitólio .

Sua liteira foi recebida no átrio com geral alegria, mas a mulher

do prefeito, não obstante o esforço sobre-humano para dissimular a

contrariedade que lhe causava a visita inesperada, recebeu-a com enfado e

altivez.

A mulher de Helvídio, contudo, apesar do orgulho que a hierarquia

do nascimento lhe avivara no coração, mantinha-se serena e digna na sua

atitude de sincera humildade .

- Senhora - explicou a filha de Júlia Spinter após as saudações

usuais -, venho até aqui solicitar seus bons ofícios para nossa

tranqüilidade doméstica .

- As suas ordens! - retrucou a antiga plebéia assumindo ares de

superioridade e cortando a palavra da interlocutora. - Terei o máximo prazer

em lhe ser útil.

Não lhe sendo possível devassar os sentimentos mais íntimos da

esposa de Lólio Úrbico, a seu respeito, a nobre senhora prosseguiu com

simplicidade :

- Acontece que o Imperador, com o cavalheirismo e a

magnanimidade que lhe marcam as atitudes, convidou meu marido para

acompanhá-lo à Grécia, onde talvez se demore mais de um ano.

Helvídio, porém, tem numerosos trabalhos em perspectiva e que dizem

com a nossa tranqüilidade futura. A referida excursão, com a honrosa

incumbência que lhe foi confiada, representa para nós um motivo de honra

e alegria, e, contudo, resolvi apelar para o seu prestígio generoso junto

do César, a fim de que dispense meu marido dessa comissão .

- Oh ! mas isso iria transtornar completamente os planos de

Augusto - disse Cláudia Sabina com visível ironia. - Então a esposa de

Helvídio não se alegrará de compartilhar com ele a sagrada confiança do

Império? Não me consta que uma patrícia de nascimento fugisse, algum dia,

de comungar com o marido nos esforços preciosos que elevam o homem às

culminâncias do serviço oficial.

Alba Lucínia escutava-a, surpreendida, entendendo integralmente

aqueles conceitos irônicos e atrevidos.

- Atender a um pedido dessa natureza é humanamente impossível

- prosseguiu com expressões fisionômicas quase brutais. - Helvídio Lucius

não poderá esquivar-se ao programa administrativo, julgando, desse

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

modo, que o seu coração de mulher venha a conformar-se com as

circunstâncias.

A filha de Fábio Cornélio ouvia-lhe as palavras mordentes,

recordando as confidências de Túlia relativamente ao passado do esposo.

Atentava para os gestos da antiga plebéia, elevada pelo destino às melhores

posições nos círculos da nobreza, e sentia, no todo de suas expressões

contrafeitas e estranhas, um vasto complexo de odiosos sentimentos

recalcados. Somente o ciúme poderia transformá-la de tal modo, a ponto de

modificar os traços mais graciosos da fisionomia.

Não contavam elas a mesma idade, mas possuíam ambas os

mesmos atrativos físicos da mulher formosa que ainda não chegou ao

outono da vida e guarda as melhores prendas da primavera. Ao passo que

Alba Lucínia atingira os trinta e oito anos, Cláudia chegara aos

quarenta e dois, apresentando as duas as mesmas disposições de

mocidade refletida.

Notando que Alba Lucínia lhe reparava todos os gestos,

analisando-lhe as mínimas expressões com a sua observação inteligente e

guardando toda a sua superioridade em face dos seus conceitos

apressados, a esposa de Úrbico irritou-se profundamente .

- Afinal - exclamou quase ríspida, para a patrícia que a escutava em

silêncio -, a senhora pede-me o inexeqüível. Pois fique sabendo que

atravessamos uma época difícil em que as mulheres são obrigadas a

abandonar os companheiros ao sabor da sorte. Eu mesma, possuindo o

prestígio para o qual vem apelar, não consigo ladear semelhantes

contingências. Casada com o prefeito dos pretorianos, já lhe ouvi dos

próprios lábios a dolorosa afirmativa de que não poderá querer-me nunca.

Assim falando, fixou na interlocutora os olhos chamejantes de

cólera, enquanto Alba Lucínia sentia o coração pulsar, precípite.

-E sabe a senhora quem é a mulher que detém as preferências

de meu marido? - perguntou a antiga plebéia com expressão odienta,

indefinível .

A nobre patrícia recebeu-lhe a alusão atrevida, de olhos úmidos,

nos quais transparecia a dignidade dalma.

-O seu silêncio - murmurou Sabina arrogante - dispensa maiores

explicações.

Alba Lucínia levantou-se de faces purpureadas, exclamando com

dignidade:

- Enganei-me lamentavelmente, supondo que a sinceridade de uma

esposa honesta e mãe dedicada lhe comovesse o coração. Em troca de

meus sentimentos leais, recolho insultos de uma ironia mordaz e

injustificável. Não a condeno. A educação não é a mesma para todas as

pessoas de uma comunidade social e temos de subordiná-la ao senso da

relatividade. Além do mais, cada qual dá o que tem.

E, sem mesmo despedir-se, caminhou desassombradamente até

o átrio, onde a liteira a esperava, cercada de servos atenciosos, enquanto

Cláudia Sabina como que petrificada no seu ódio, ante a lição de

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

superioridade e desprezo recebida, esboçava um riso nervoso que

explodiria logo após em saraivada de impropérios contra as escravas.

Na intimidade do lar, Alba Lucínia orou, suplicando aos deuses

fortaleza e proteção. A viagem do marido se efetuaria sem delongas e ela

não julgava oportuna qualquer revelação a Helvídio, acerca das suas

contrariedades íntimas. Conformada com os fatos, ficaria em Roma, crente

de que mais tarde poderiam florir as suas esperanças de paz e felicidade no

ambiente doméstico. Urgia conservar a harmonia e a coragem moral do

companheiro, de modo que o seu coração pudesse suportar todas as

dificuldades e vencer galhardamente as situações mais penosas. Ocultando

as lágrimas íntimas, a pobre senhora lhe preparou todos os petrechos

de viagem com o máximo carinho. Helvídio partiria com o seu amor e com a

sua confiança e isso lhe devia bastar ao coração sensível e generoso.

Entretanto, o último dia das festividades adrianinas alvorecera e os

protocolos da Corte obrigavam Alba Lucínia a acompanhar o esposo,

nas derradeiras exibições do circo, onde Nestório e o filho deveriam ser

sacrificados.

A perspectiva de semelhante espetáculo gelava-lhe o sangue,

antevendo o horror das cenas brutais do anfiteatro, organizadas por

espíritos insensíveis.

Recordou-se de que, na antevéspera, acompanhara Helvídia e Caio

Fabrícius ao Aventino para as despedidas do avô e de Célia, notando que

a pobrezinha estava profundamente desfigurada pelas amarguras do seu

grande e infortunado amor. O coração materno experimentava, ainda, o

calor do abraço afetuoso da filha, que lhe dissera ao ouvido, em voz quase

imperceptível: no último espetáculo, Ciro morrerá. Revia-lhe os olhos

úmidos ao dar-lhe, resignada, semelhante notícia, lembrando, ao mesmo

tempo, a generosidade com que Célia acolhera a ventura da irmã, que,

sorridente, feliz, partia para as delícias de Cápua, com os seus votos

fraternos de felicidade e de paz .

Alba Lucínia meditou longamente os dolorosos problemas que

lhe atormentavam o espírito, ponderando a necessidade de ocultá-los, dia

a dia, sob o véu das alegrias disfarçadas e mentirosas, e demorando-se

amargurada nos porquês do sofrimento e nos contrastes da sorte.

Era, porém, imprescindível que buscasse modificar as suas

disposições espirituais.

Com efeito, daí a poucas horas Helvídio lhe recordava as

obrigações protocolares e não foi sem emoções penosas que ajustou a

túnica de gala, entregando-se às escravas para as bizarrias expressões do

penteado em voga.

A tarde, observada à risca a tradição dos cortejos, as alegrias

populares desbordavam no circo, entre ditérios e gargalhadas.

A caravana do César já havia chegado sob uma chuva de aplausos

ensurdecedores.

Num palanque dourado, Élio Adriano cercava-se dos patrícios e

dos augustinos de maior nomeada, entre os quais as personagens

aristocráticas desta narrativa. Em torno da tribuna de honra estavam as

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

vestais, formando um quadro magnífico, e as fileiras hierárquicas dos mais

altos representantes da Corte. Senadores de mantos purpurinos, chefes

militares com as suas armaduras prateadas e brilhantes, dignitários

imperiais, confundiam-se em linhas ordenadas simetricamente, sobre

verdadeiro oceano de cabeças humanas – a plebe que dava expansão à sua

alegria.

Na tribuna imperial sucediam-se as libações, quando o soberano

se dirigiu a Lólio Úrbico nestes termos:

- Decretei o suplício e a execução dos conspiradores para a tarde

de hoje, em atenção aos belos serviços com que a prefeitura dos pretorianos

vem ilustrando os feitos do Império.

- Aliás, Divino - retrucou o prefeito com um sorriso -, devemos

esse grande esforço a Fábio Cornélio, cuja dedicação extrema aos

serviços do Estado se vem tornando cada vez mais notória nos círculos

administrativos.

O velho censor agradeceu com um aceno a referência direta ao

seu nome, enquanto Adriano obtemperava:

- Tive o cuidado de excluir da sentença todos os elementos

reconhecidamente romanos, que figuravam entre os agitadores entregues

à justiça. Mandei libertar a maioria no período das primeiras providências

processuais, exilando definitivamente para as Províncias os treze

elementos mais exaltados, restando apenas vinte e dois estrangeiros, ou

sejam, judeus, efésios e colossenses.

- Divino, vossas deliberações são sempre justas - exclamou o

censor Fábio Cornélio, ansioso por desviar o assunto, de modo a não

recordar o caso de Nestório que, garantido por seu genro, trabalhara nos

próprios serviços de pergaminhos da Prefeitura.

Aproveitando a pausa natural, o orgulhoso patrício acentuou:

- Mas, a grandeza do espetáculo de hoje é verdadeiramente digna

do César! Ainda não havia terminado a frase quando todos os presentes

alongaram o olhar para o centro da arena, onde, após os coleios exóticos

dos dançarinos, iam iniciar-se as caçadas fabulosas. Atletas jovens

começaram a lutar com tigres ferozes, apresentando-se igualmente elefantes

e antílopes cães selvagens e auroques de chifres pontiagudos.

De quando em quando, um caçador caía ensangüentado, sob

aplausos delirantes, seguindo-se todos os números da tarde ao som de

hinos que exacerbavam o instinto sanguinário da multidão.

Por vezes, os gritos de "cristãos às feras" e "morte aos

conspiradores", explodiam sinistramente da turba enfurecida.

Ao fim da tarde, quando os últimos raios do Sol caíam sobre as

colinas do Célio e do Aventino, entre as quais se ostentava o circo famoso,

os vinte e dois condenados foram conduzidos ao centro da arena. Negros

postes ali se erguiam, aos quais os prisioneiros foram atados com

grossas cordas presas por elos de bronze.

Nestório e Ciro confundiam-se naquele pequeno grupo de seres

desfigurados pelos mais duros castigos corporais. Ambos estavam

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

esqueléticos e quase irreconhecíveis. Apenas Helvídio e sua mulher,

extremamente compungidos em face do suplício infamante, notaram a

presença dos seus antigos libertos entre os mártires, fazendo o possível por

esconder o mal-estar que a cena cruel lhes causava.

Os condenados, com exceção de sete mulheres que se trajavam de

"indusium", estavam quase nus, munidos somente de uma tanga que

lhes cobria a cintura, até os rins. Cada qual foi colocado a um poste

diferente, enquanto trinta atletas negros da Numídia e da Mauritânia

compareciam na arena ao som das harpas que se casavam estranhamente

com os gritos da plebe.

Havia muito que Roma não presenciava aquelas cenas, dado o

caráter morigerado e tolerante de Adriano, que sempre fizera o possível

por evitar os atritos religiosos, vendo-se, então, um espetáculo espantoso.

Enquanto os gigantes africanos preparavam os arcos,

ajustando-lhes flechas envenenadas, os mártires do Cristianismo

começaram a entoar um cântico dulçoroso. Ninguém poderia definir

aquelas notas saturadas de angústia e de esperança.

Debalde, as autoridades do anfiteatro mandaram intensificar o

ruído dos atabales e os sons estrídulos das flautas e alaúdes, a fim de

abafar as vozes intraduzíveis do hino cristão. A harmonia daqueles versos

resignados e tristes elevava-se sempre, destacando-se de todos os ruídos,

na sua majestosa melancolia.

Nestório e Ciro também cantavam, dirigindo os olhos para o céu,

onde o Sol dourava as derradeiras nuvens crepusculares.

As primeiras setas foram atiradas ao peito dos mártires com

singular mestria, abrindo-lhes rosas de sangue que se transformavam,

imediatamente, em grossos filetes de sofrimento e morte, mas o cântico

prosseguia como um harpejo angustiado, que se estendia pela Terra

obscura e dolorosa... Na sua melodia misturavam-se, indistintamente, a

saudade e a esperança, as alegrias do céu e os desenganos do mundo,

como se aquele punhado de seres desamparados fosse um bando de

cotovias apunhaladas, libando-se nas atmosferas da Terra, a caminho do

Paraíso :

Cordeiro Santo de Deus,

Senhor de toda a Verdade,

Salvador da Humanidade,

Sagrado Verbo de Luz!...

Pastor da Paz, da EsPerança,

De Tua mansão divina,

Senhor Jesus, ilumina

As dores de nossa cruz!...

Também tiveste o Calvário

De dor, de angústia, de apodo,

Ofertando ao mundo todo

As luzes da redenção;

Tiveste a sede, o tormento,

mas, sob o fel, sob as dores,

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

Redimiste os pecadores

Da mais triste escravidão!

Se também sorveste o cálice

De amargor e de ironia,

Nós queremos a alegria

De padecer e chorar...

Pois, ovelhas tresmalhadas,

Nós somos filhos do erro,

Que no mundo do desterro

Vivemos a Te esperar.

Dá, Senhor, que nós possamos

Viver a felicidade

Nas bênçãos da Eternidade

Que não se encontram aqui;

O júbilo de reencontrar-Te

Nos últimos padeceres,

Acende em nós os prazeres

De bem morrermos por Ti!..

Senhor, perdoa os verdugos

De tua doutrina santa!

Protege, amPara, levanta

Quem no mal vive a morrer. .

A caminho do Teu reino,

Toda a dor se transfigura,

Toda a lágrima é ventura,

O bem consiste em sofrer!...

Consola, Jesus amado,

Aqueles que nós queremos,

Que ficarão aos extremos

Da saudade e do amargor;

Dá-lhes a fé que transforma

Os sofrimentos e os prantos

Nos tesouros sacrossantos

Da vida de Teu amor!...

Outras estrofes elevaram-se ao céu como soluços de resignação e

de esperança...

Com o peito crivado de setas que lhe exauriam o coração, e

contemplando o cadáver do filho que expirara antes dele, dada a sua

fraqueza orgânica, Nestório sentiu que um turbilhão de lembranças

indefiníveis lhe afloravam ao pensamento já vacilante, confuso, nas vascas

da agonia . Com os olhos sem brilho pelas ânsias da morte arrebatando-lhe

as forças, percebeu a multidão que os apupava, escutando-lhe ainda os

alaridos animalescos.. . Fitou a tribuna imperial, onde, certo, estariam

quantos lhe haviam merecido afeição pura e sincera, mas, dentro de

emoções intraduzíveis, viu-se também, nas suas recordações confusas, na

tribuna de honra, com a toga de senador, enfeitado de púrpura... Coroado de

rosas (1) aplaudia, também ele, a matança de cristãos que, sem os

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

postes do suplício nem flechas envenenadas a lhes traspassarem o peito,

eram devorados por feras hediondas e insaciáveis... Desejou andar, moverse,

porém, ao mesmo tempo sentia-se ajoelhado junto de um lago

extenso, diante de Jesus Nazareno, cujo olhar doce e profundo lhe

penetrava os recônditos do coração... Genuflexo, estendia as mãos para o

Mestre Divino, implorando amparo e misericórdia... Lágrimas ardentes

queimavam-lhe as faces descarnadas e tristes...

(1) Nestório era a reencarnação do orgulhoso senador Públio Lentulus Cornélio.

(Vide "Há Dois Mil Anos...".)

Aos seus olhos moribundos, as turbas furiosas do circo haviam

desaparecido...

Foi quando um vulto de anjo ou de mulher (2) caminhou para ele,

estendendo-lhe as mãos carinhosas e translúcidas. . . O mensageiro do

céu ajoelhara-se junto do corpo ensangüentado e afagou-lhe os cabelos,

beijando-o suavemente. O antigo escravo experimentou a carícia daquele

ósculo divino e seu espírito cansado e enfraquecido adormeceu de leve,

como se fora uma criança.

(2) Lívia. (Vide "Há Dois Mil Anos...".) - Notas de Emmanuel.

Em toda a arena vibraram radiações invisíveis, dos mais

elevados planos da espiritualidade . . . Seres abnegados e resplandecentes

estendiam fraternalmente os braços para os companheiros que

abandonavam o invólucro perecível, nos testemunhos da fé, pela injúria e

pelo sofrimento.

Daí a minutos, enquanto os serviçais do anfiteatro retiravam

dos postes de martírio os despojos sangrentos, aos gritos de aplauso da

turba ensandecida, Helvídio Lucius, na tribuna de honra, apertava

nervosamente as mãos da esposa, dando-lhe a entender as comoções

inexplicáveis que lhe vagavam no íntimo, enquanto ela, obrigada a manter

as atitudes protocolares, cravava no companheiro os olhos molhados.

Mas, no palácio do Aventino, naquela tarde límpida e serena, o

espetáculo fora talvez mais comovente pela sua majestade dolorida e

silenciosa. Recolhidos a uma sala de repouso, Cneio Lucius e a neta

observavam todos os movimentos externos das festividades adrianinas,

reparando que a onda de povo se represara no circo para os derradeiros

números do programa.

Ao empalecer do céu romano, a jovem buscou o fragmento de

pergaminho em que Ciro escrevera as oitavas rimadas do último hino,

exclamando para o velhinho, suavemente:

- Avô, a esta hora Nestório e Ciro devem estar caminhando para

o sacrifício!

Acreditas, vovô, que os nossos amados podem voltar do Céu para

nos suavizar o destino?

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

- Como não, minha filha? Pois se Jesus prometeu vir ao encontro

de quantos se reúnam, neste mundo, em seu nome, como não permitirá

voltarem seus mensageiros, que nos amam já desta vida?

Célia ergueu para o ancião os grandes olhos tristes, iluminados por

uma candidez maravilhosa.

Em seguida, levantou-se muito serena, dirigindo-se à larga janela

que dava para o Tibre, cujas águas refletiam os matizes da hora

crepuscular.

Fixando o pergaminho, leu todo o conteúdo, silenciosamente,

cantando depois em voz quase imperceptível todos os versos do hino

cristão e detendo-se, de modo particular, na última estrofe, relendo-a

com uma lágrima e procurando adivinhar nela o pensamento do seu eleito.

O venerando patrício ouvia-lhe a voz terna, como se escutasse

uma ave implume, abandonada e só, entre os invernos do mundo, sem poder

exteriorizar as emoções que lhe assaltaram o íntimo dolorido .

As mais tristes meditações povoavam-lhe o cérebro, sentia o

coração bater acelerado, num ritmo assustador.

De alma confrangida, observava a neta que se voltava agora

para o céu, como se buscasse entre as nuvens do azul vespertino o

coração que idolatrava .

Alguns minutos rolaram, longos e penosos para o seu pensamento

exausto e magoado.

Em dado instante, quando o firmamento já havia de todo

desmaiado, a jovem fixou no Alto, com mais atenção, os olhos ternos e

profundos, como se estivesse vislumbrando alguma visão que a extasiasse.

Parecia abstraída de todas as sensações do mundo exterior, de

todos os objetos que a rodeavam, figurando-se não perceber a presença do

próprio avô, que lhe acompanhava o êxtase, comovidamente .

Decorridos instantes, todavia, os braços moviam-se de novo,

como se as expressões que lhe eram características retomassem o curso

da realidade e da vida.

- É verdade ! - suspirou Cneio Lucius num quase murmúrio .

- Vovô - disse então com uma placidez divina a lhe brilhar nos

olhos -, vi um bando de pombas alvas, no céu, como se houvessem saído do

circo do martírio ! . .

- Sim, filha - respondeu Cneio Lucius angustiado, depois de

levantar-se para contemplar o azul sereno -, devem ser as almas dos

mártires, remontando à Jerusalém celeste ! . .

Profundo silêncio fizera-se entre ambos.

A ansiedade de seus corações, na grandeza melancólica do

momento, falava mais que todas as palavras.

Célia, porém, rompeu aquela divina quietude, interrogando:

- Vovô, já leste o Sermão da Montanha, em que Jesus abençoa

todos os que sofrem ?!. .

- Sim . . - respondeu o ancião amargurado.

- Certamente - retornou a jovem com a sua inocência carinhosa e

desvelada - Jesus preferiu que eu ficasse no mundo, sem o amor de Ciro, a

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

sofrer o sacrifício da separação e da saudade, a fim de me salvar um dia,

para o Céu, onde se reúnem todos os seus bem-aventurados!. .

Cneio Lucius sentiu profundamente a doce resignação daquelas

palavras. Desejou responder, exortando-a à sublime perseverança daquele

sacrifício, mas tinha o velho peito sufocado. Atraiu, contudo, a neta de

encontro ao coração, beijando-lhe a fronte enternecidamente. Seus cabelos

brancos misturavam-se com a farta cabeleira jovem, como se a sua velhice

veneranda fosse uma noite estrelada osculando uma aurora.

Ao longe, ouviam-se ainda as últimas algazarras do povo, mas o

firmamento de Roma tocara-se de beleza sublimada e misteriosa. A imensa

tranqüilidade do crepúsculo parecia povoar-se de sagrados apelos do

Infinito.

Então, os dois, fitando o Tibre e o Céu, em prece silenciosa,

começaram a chorar...

SEGUNDA PARTE

I - A MORTE DE CNEIO LUCIUS

Dois meses havia que o Imperador e seus áulicos preferidos

tinham deixado Roma.

Naquele fim de primavera do ano 133, a vida das nossas

personagens, na Capital do Império, corria em aparente serenidade.

Alba Lucínia concentrava na filha e nos carinhos paternos a sua

vida diuturna, sentindo-se, porém, muito combalida, devido às intensas

preocupações morais, não somente pela ausência do marido, como pela

atitude de Lólio Úrbico, que, vendo-se senhor do campo e abusando da

autoridade de que dispunha na ausência do César, redobrava os seus

assédios com mais empenho e veemência.

A nobre senhora tudo fazia para ocultar uma situação tão amarga e,

todavia, o conquistador prosseguia, implacável, nos seus propósitos

desvairados, mal suportando o adiamento indefinido de suas esperanças

inconfessáveis.

Anteriormente, a esposa de Helvídio tinha em Túlia Cevina a

amizade de uma irmã carinhosa e desvelada, que sabia reconfortá-la nos

dias de provações mais ásperas ; mas, antes da viagem do César, o

tribuno Máximo Cunctator fora designado para uma demorada missão

política na Ibéria distante, levando a esposa em sua companhia.

Alba Lucínia via-se quase só, na sua angústia moral, porquanto não

podia revelar aos velhos pais, tão extremosos, as lágrimas ocultas do seu

coração atormentado.

Freqüentemente, deixava-se ficar, horas a fio, a conversar com a

filha, cuja simplicidade de espírito e cujo fervor na crença a encantavam,

mas, por maiores que fossem os seus esforços, não conseguia dominar a

fraqueza orgânica que começava a preocupar o círculo da família.

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

Um fato viera perturbar, ainda mais, a existência aparentemente

tranqüila dos nossos amigos, na Capital do Império. Cneio Lucius adoecera

gravemente do coração, o que para os médicos, de um modo geral, era coisa

natural, atento à idade.

Debalde foram empregados elixires e cordiais, tisanas e panacéias.

O venerável patrício dia a dia se mostrava mais debilitado. Entretanto, Cneio

desejava viver ainda um pouco, até o regresso do filho, a fim de apertá-lo

nos braços, antes de morrer.

Nos seus extremos de afeição paternal, queria recomendar-lhe o

amparo às duas irmãs Publícia e Márcia, esclarecendo a Helvídio todos os

seus desejos. Mas, o experiente conhecimento das obrigações políticas

forçava-o a resignar-se com as circunstâncias. Élio Adriano, de acordo

com os seus hábitos, não regressaria antes de um ano, na melhor das

hipóteses. E uma voz íntima lhe dizia que, até lá, o corpo esgotado deveria

baixar, desfeito em cinzas, à paz do sarcófago. Algo triste, nada obstante os

valores da sua fé, o venerável ancião alimentava no cérebro meditações

graves e profundas, acerca da morte.

Célia, apenas, com as suas visitas, lograva arrancá-lo, por

algumas horas, dos seus dolorosos cismares .

Com um sorriso de sincera satisfação, abraçava-se à neta,

dirigindo-se ambos para a janela fronteira ao Tibre, e, quando a jovem lhe

falava da alegria do seu espírito, com o poder orar num local tão belo, Cneio

Lucius costumava esclarecer:

- Filha, outrora eu sentia a necessidade do santuário doméstico com

as suas expressões exteriores... Não podia dispensar as imagens dos

deuses nem prescindir da oferta dos mais ricos sacrifícios; hoje, porém,

dispenso todos os símbolos religiosos para auscultar melhor o próprio

coração, recordando o ensino de Jesus à Samaritana, ao pé do Garizim, de

que há-de vir o tempo em que o Pai Todo-Poderoso será adorado, não nos

santuários de pedra, mas no altar do nosso próprio espírito . . . E o homem,

filhinha, para encontrar-se com Deus no íntimo de sua consciência, jamais

encontrará templo melhor que o da Natureza, sua mãe e mestra...

Conceitos que tais eram expendidos a cada instante, nos

colóquios com a neta.

Ela, por sua vez, transformava as esperanças desfeitas em

aspirações celestiais, convertendo o sofrimento em consolo para o

coração do idolatrado velhinho. Seu espírito fervoroso, com a sublime

intuição da fé que lhe ampliava a esfera de compreensão, adivinhava que o

adorado avô não tardaria muito a ir-se também a caminho do túmulo .

Lamentava antecipadamente a ausência daquela alma carinhosa e amiga,

convertida em refúgio do seu pensamento desiludido, mas, ao mesmo

tempo, rogava ao Senhor coragem e fortaleza.

Num dia de grande abatimento físico, Cneio Lucius viu que Márcia

abria a porta do quarto, de mansinho, com um sorriso de surpresa. A filha

mais velha vinha anunciar-lhe a chegada de alguém muito caro ao seu

espírito generoso. Era Silano, o filho adotivo, que regressava das Gálias. O

patrício mandou-o entrar, com o seu júbilo carinhoso e sincero. Levantou50

ANOS DEPOIS Emmanuel

se, trêmulo, para abraçar o rapaz que, na juventude sadia dos seus

vinte e dois anos completos, o apertou também nos braços, quase chorando

de alegria.

- Silano, meu filho, fizeste bem em vir! - exclamou serenamente. -

Mas, conta-me ! vens a Roma com alguma incumbência de teus chefes?

O rapaz explicou que não, que havia solicitado uma licença para

rever o pai adotivo, de quem se sentia muito saudoso, acrescentando os

seus propósitos de se fixar na Capital do Império, caso consentisse

esclarecendo que o seu comandante nas Gálias, Júlio Saulo, era um

homem grosseiro e cruel, que o submetia a constantes maus tratos, a

pretexto de disciplina. Rogava ao pai que o protegesse junto das

autoridades, impedindo-lhe o regresso.

Cneio Lucius ouviu-o com interesse e retrucou :

- Tudo farei, na medida dos meus recursos, para satisfazer teus

justos desejos.

Em seguida, meditou profundamente, enquanto o filho adotivo lhe

notava o grande abatimento físico.

Saindo, porém, dos seus austeros pensamentos, Cneio Lucius

acrescentou:

- Silano, não desconheces o passado e, um dia, já te falei das

circunstâncias que te trouxeram ao meu coração paternal.

- Sim - respondeu o rapaz em tom resignado -, conheço a história

do meu nascimento, mas os deuses quiseram conceder ao mísero enjeitado

do mundo um pai carinhoso e abnegado, como vós, e não maldigo o destino.

O ancião levantou-se e, depois de abraçá-lo comovido,

caminhou pelo quarto, apoiando-se com esforço. Em dado instante, deteve

os passos vagarosos, diante de um cofre de madeira decorado de acanto,

abrindo-o cuidadosamente.

Dentre os pergaminhos dessa caixa-forte, retirou um pequeno

medalhão, dirigindo-se ao rapaz com estas palavras:

- Meu filho, os enjeitados não existem para a Providência Divina.

Nem mesmo remontando ao pretérito, deves alimentar, no íntimo, qualquer

mágoa, em razão da tua sorte. Todos os destinos são úteis e bons, quando

sabemos aproveitar as possibilidades que o Céu nos concede em favor da

nossa própria ventura...

E, como se estivesse mergulhando o pensamento no abismo

das recordações mais longínquas, prosseguiu depois de uma pausa:

- Quando Márcia te beijou pela primeira vez, nesta casa, encontrou

sobre o teu peito de recém-nascido este medalhão, que guardei para

entregar-te mais tarde. Nunca o abri, meu filho. Seu conteúdo não podia

interessar-me, pois, fosse qual fosse, terias de ser para mim um filho muito

amado . . . Agora, porém, sinto que é chegada a ocasião de to entregar. Dizme

o coração que não viverei muito tempo. Devo estar esgotando os últimos

dias de uma existência, de cujos erros peço o perdão do Céu, com todas as

minhas forças. Mas, se me encontro próximo do túmulo, tu estás moço e

tens amplos direitos à existência terrestre... Possivelmente, viverás em

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

Roma doravante, e é bem possível chegue o momento em que terás

necessidade de uma lembrança como esta... Guarda-a, pois, contigo .

Silano estava profundamente tocado nas fibras mais sensíveis do

coração.

- Meu pai - exclamou comovido, recolhendo o medalhão

zelosamente -, guardarei a recordação sem que o conteúdo me interesse .

Também eu, de qualquer modo, não reconheceria outro pai senão vós

mesmo, em cuja alma generosa encontrei o próprio carinho maternal que

me faltou nos mais recuados dias da vida.

Ambos se abraçaram com ternura, continuando a palestra

afetuosa, sobre fatos interessantes da Província ou da Corte.

Nessa mesma noite, o venerável patrício recebeu a visita de

Fábio Cornélio, de quem solicitou as providências favoráveis às pretensões

do filho adotivo .

O censor, muitíssimo sensibilizado em vista das solenes

circunstâncias em que o pedido era feito, examinou o assunto com o

máximo interesse, de modo que, em pouco tempo, obtinha a transferência de

Silano para Roma, utilizando-lhe os serviços na própria esfera de sua gestão

administrativa e fazendo do rapaz um funcionário de sua inteira

confiança. Considerando o ingresso daquela nova personagem na esfera de

suas relações familiares, Alba Lucínia recordou as confidências de Túlia,

mas procurou arquivar, com cuidado, as suas impressões íntimas,

aceitando de bom grado a amizade respeitosa que Silano lhe demonstrava.

No lar de Helvídio Lucius, contudo, a situação moral se complicava

cada vez mais, em face das arremetidas de Lólio Úrbico, que, de modo

algum, se decidia a abandonar as suas criminosas pretensões.

Certo dia, à tarde, quando Alba Lucínia e Célia regressavam de um

dos habituais passeios ao Aventino, receberam a visita do prefeito dos

pretorianos, cuja fisionomia torturada demonstrava inquietação e profundo

abatimento.

A jovem recolheu-se ao interior, enquanto a nobre patrícia

iniciava a sua conversação amistosa e digna. O prefeito, porém, depois de

alguns minutos, a ela se dirigiu, quase desvairadamente, nestes termos :

- Perdoe-me a ousadia reiterada e impertinente, mas não me

posso furtar ao imperativo dos sentimentos que me avassalam o coração.

Será possível que a senhora não me possa conceder uma leve esperança ?

! . . . Debalde tenho procurado esquecê-la... A lembrança dos seus atrativos

e peregrinas virtudes está gravada em meu espírito com caracteres

poderosos e indeléveis!. . O amor que a senhora em mim despertou é uma

luz indestrutível, ardente, acesa em meu peito para toda a eternidade!. .

Alba Lucínia escutava-lhe as declarações amorosas tomada de

temor e espanto, sentindo-se incapaz de traduzir a repugnância que aquelas

afirmativas lhe causavam.

Enceguecido, porém, na sua paixão, o prefeito dos pretorianos

continuava:

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

- Amo-a profunda e loucamente... De há muito, e bem jovem,

tudo tenho feito para esquecê-la, em obediência às linhas paralelas dos

nossos destinos; mas o tempo mais não fez que aumentar essa paixão, que

me invade e anula todos os meus bons propósitos. Confio, agora, na sua

magnanimidade e quero guardar no peito mísero uma tênue esperança ! . .

Atenda às minhas súplicas ! Conceda-me um olhar! Sua indiferença me

fere o coração com a perspectiva dolorosa de nunca realizar meu sonho

divino de toda a vida... Adoro-a! sua imagem me persegue por toda parte,

como uma sombra... Porque não corresponder a essa dedicação sublime

que vibra em minhalma? Helvídio Lucius não poderia ser, nunca, o coração

destinado ao seu, no que se refere à compreensão e ao amor ! . .

Quebremos o arganel das convenções que nos separam, vivamos os

anseios de nossa alma. Sejamos felizes com a nossa união e o nosso

amor!...

Estupefata, Alba Lucínia calava-se, sem atinar com as respostas

precisas, na tortura de suas emoções .

Todavia, por detrás das cortinas, uma cena significativa se

verificara. Dirigindo-se distraidamente, para a sala de recepções, Célia

surpreendera as atitudes de Hatéria, que, qual sombra, se detinha no

corredor, à escuta das palavras do prefeito, proferidas em voz alta e

imprudente .

Acercando-se do local, ouviu, também ela, as últimas frases

apaixonadas do marido de Cláudia, fazendo-se pálida de surpresa dolorosa.

Apesar de ouvir, distintamente, quanto o prefeito houvera

pronunciado, notou que sua mãe se mantivera em estranho silêncio. Seria

possível uma tal afeição sob aquele teto? O coração inocente não

desejava dar guarida aos pensamentos inferiores e injuriosos à castidade

materna. Desejou orar, antes de tudo, a fim de que o seu espírito não

cedesse aos julgamentos precipitados e menos dignos; mas urgia dali

afastar a criada antes que a situação se complicasse, a ponto de incidir na

maledicência e na curiosidade dos próprios servos.

- Hatéria, que fazes aqui? - perguntou bondosamente.

- Vim trazer as flores da patroa – respondeu fingindo

despreocupação -; entretanto, temia perturbar a tranqüilidade da senhora e

do senhor prefeito, que tanto se estimam.

A cúmplice de Cláudia Sabina frisou as últimas palavras com

tamanha simplicidade, que a própria Célia, na santa ingenuidade da sua alma

carinhosa, não percebeu qualquer malícia.

- Está bem . Dá-me as flores que eu mesma as entregarei à mamãe.

Hatéria retirou-se imediatamente, para evitar suspeitas, enquanto

Célia, colocando as rosas num jarrão da ante-sala, recolhia-se ao quarto,

de coração opresso, extravasando na prece sincera as lágrimas dolorosas

da sua alma intranqüila.

O silêncio da mãe a impressionara profundamente . Seria possível

que ela amasse aquele homem? Teriam surgido divergências íntimas, tão

profundas, entre seus pais, para que uma hecatombe sentimental viesse

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

desabar naquela casa sempre bafejada de afeições tão puras?. . Não

ouvira a palavra materna responder ao conquistador com a energia

merecida. Aquele mutismo lhe apavorava o coração. Seria crível que as

paixões do mundo houvessem dominado a genitora, tão digna e tão sincera,

na ausência de seu pai ? As mais dolorosas conjeturas lhe povoavam a

mente super excitada e dolorida .

Todavia, fez o propósito íntimo de não deixar transparecer as suas

dúvidas e inquietações. O coração de filha recusava-se a crer na falência

materna, mas, mesmo assim, raciocinava no seu foro cristão que, se Alba

Lucínia prevaricasse algum dia, seria chegado o momento de, como filha,

testemunhar-lhe o mais santificado amor, com as sublimes demonstrações

de uma renúncia suprema.

Agasalhando essas disposições, seu espírito carinhoso sentiu-se

confortado, relembrando os preciosos ensinamentos de Jesus.

No entanto, a esposa de Helvídio, sem que a filha chegasse a

ouvir-lhe as palavras indignadas, depois de longa pausa, revidara com

energia:

- Senhor, tenho tolerado sempre os vossos insultos com

resignação e caridade, não somente pelos laços que vos ligam a meu pai,

como pela expressão de cordialidade entre vós e meu esposo; mas a

paciência também tem os seus limites.

Onde a vossa dignidade de patrício adquiriu tão baixo nível,

inconcebível nos mais vis malfeitores do Esquilino?! Lá no ambiente

provinciano, nunca supus que em Roma os homens de governo se valessem

de suas prerrogativas para humilhar mulheres indefesas, com a hediondez

de paixões inconfessáveis.

Não vos envergonhais da vossa conduta, tentando nodoar a

reputação de uma casa honesta e de uma mulher que se honra em cultivar

as mais elevadas virtudes domésticas? Em que condições tentais esse

crime inaudito! Vossas incríveis declarações, na ausência de meu marido,

valem por vergonhosa traição e a mais torpe das covardias ! . . .

Atentai bem para o vosso procedimento inacreditável ! As portas

acolhedoras desta casa, que se abriram constantemente para vos receber

como amigo, estão abertas para vos expulsar como a um monstro ! . .

De faces incendidas, Alba Lucínia manifestava o seu ânimo

resoluto, em tão angustiadas circunstâncias. Indignada, apontava a porta ao

conquistador, convidando-o a retirar-se.

- Senhora, é assim que se recebe uma afeição sincera? -

resmungou Lólio Úrbico em voz surda.

- Não conheço o código da prevaricação e nunca pude

compreender a amizade pelo caminho da injúria - esclareceu a nobre

senhora com o heroísmo da sua energia feminina.

Ouvindo-a e percebendo-lhe a virtude indomável, o prefeito dos

pretorianos abriu a porta para retirar-se, exclamando colérico:

- Há-de ouvir-me com mais benevolência noutra ocasião. Tenho

paciência inesgotável!

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

E saiu precipitadamente, para as sombras da noite, que já se havia

fechado sob o céu pardacento.

Vendo-se só, a patrícia deu expansão às lágrimas amargas que se

lhe represavam no íntimo. A saudade do marido, as preocupações morais,

os insultos do conquistador impiedoso, a falta de um coração amigo que lhe

pudesse recolher e compartilhar as amarguras, tudo contribuía para adensar

as nuvens que lhe toldavam o raciocínio.

Debalde buscou a filha consolá-la em suas angustiosas

inquietações. Três dias passaram, amargurados e tristes.

Célia podia, apenas, avaliar a angústia materna, mas não

conseguia estabelecer a causa dos seus pesares, sentindo-se ainda

atormentada e confusa com as declarações do prefeito. Abstraindo-se,

todavia, de qualquer pensamento que pudesse infirmar a dignidade

materna, buscou esquecer o assunto, multiplicando os testemunhos

carinhosos.

Alba Lucínia, a seu turno, ponderava com amargura a nefasta

influência que Lólio Úrbico e sua mulher exerciam nos destinos de sua

família, rogando com fervor aos deuses-lares compaixão e misericórdia.

A situação prosseguia com as mesmas características dolorosas,

quando, um dia, o velho servo Belisário, pessoa da confiança de Cneio

Lucius e de seus familiares, veio avisar que o estado de saúde do ancião

se agravara inesperadamente. Márcia lhes dava ciência do fato, esperando

fossem ao Aventino com a urgência possível.

Dentro de uma hora a liteira de Helvídio estava a caminho.

Em pouco tempo, Célia e sua mãe defrontavam o bondoso velhinho,

que as recebeu com um largo sorriso, não obstante o visível abatimento

orgânico. A cabeça encanecida repousava nos travesseiros, de onde não se

podia mais erguer, mas as mãos enrugadas e alvas acariciaram a nora e a

neta com inexcedível ternura. Alba Lucínia notou-lhe o esgotamento geral,

surpreendendo-se com seu aspecto. A fulguração estranha dos olhos

dava ensejo às mais tristes perspectivas.

As primeiras perguntas, respondeu o enfermo com serenidade e

lucidez:

- Nada houve que justificasse tantos temores de Márcia... Acredito

que, amanhã mesmo, terei recuperado o ritmo normal da vida. O médico já

veio e providenciou o necessário e oportuno...

E notando o profundo abatimento da esposa de Helvídio,

acrescentou:

- Que é isso, minha filha? Vens atender a um doente, mais enferma

e abatida que ele próprio ? . . . Tua fraqueza dá-me cuidados . . . Tens os

olhos fundos e as faces descoradas e tristes ! ...

A esse tempo, percebendo que o avô desejava dirigir-se mais

particularmente a sua mãe, Célia retirou-se para junto de Márcia, que lhe

confiava as suas apreensões sobre o estado de saúde do venerável

ancião.

Alba Lucínia, sentando-se à beira do leito, beijou a destra do

enfermo com amor e enternecimento .

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

Queria desculpar-se da impressão que lhe causara, pretextar uma

enxaqueca ou alegar outro motivo banal com que pudesse justificar o

seu abatimento, mas, soberana tristeza apoderara-se do seu espírito. Além

de todos os pesares, algo lhe segredava ao coração que o velho sogro,

amado como pai, estava a partir para as névoas do túmulo. Diante dessa

dolorosa perspectiva, seus olhos o contemplavam com a ternura piedosa

do seu coração feminino. Em vão procurou um pretexto, no íntimo, para

não incomodá-lo com as suas realidades amargas e, todavia, o olhar

estranho e fulgurante de Cneio Lucius parecia perscrutar a verdade em si

mesma.

- Calas-te, filha?. . - murmurou ele, depois de esperar por minutos

a resposta às carinhosas interpelações. - Alguém chegou a ferir-te o coração

afetuoso e desvelado ? Teu silêncio dá-me a entender uma dor moral

muito grande . . .

Sentindo que o enfermo lhe identificara o angustioso estado dalma,

Alba Lucínia deixou rolar uma lágrima, filha do seu coração dilacerado .

- Meu pai - não vos preocupeis comigo nem vos assuste esta

lágrima! Sinto-me presa dos mais estranhos e torturantes pensamentos... A

ausência de Helvídio, os problemas do lar e agora a vossa saúde abalada,

constituem para mim um complexo de pensamentos amargos e indefiníveis

! ...

Mas os deuses hão-de apiedar-se da nossa situação, protegendo

Helvídio e restituindo-vos a saúde preciosa ! ...

- Sim, filha, mas não é só isso o que te acabrunha - retrucou Cneio

Lucius com o seu olhar sereno e percuciente -, outras mágoas te

constringem o coração ! . . Há muito venho meditando no contraste da vida

que levavas na Província, com a que experimentas aqui, no báratro das

nossas convenções sociais. . . Teu espírito sensível, por certo, vem ferindose

nos espinhos das estradas ásperas dos nossos tempos de decadência e

contrastes dolorosos!...

E, como se a sua análise sondasse mais fundo, acrescentou:

- Sinto, ainda, que determinadas pessoas do nosso círculo social

hão dilacerado teu coração profundamente... Não é verdade?. .

Fixando-lhe os olhos calmos e luminosos, cuja transferência não

admitia subterfúgios, a esposa de Helvídio replicou com um suspiro de

angústia:

- Sim, meu pai, não vos iludis ; contudo, espero que confieis em

mim, pois dentro da grandeza dos nossos códigos familiares saberei

cumprir os deveres de esposa e mãe, acima de quaisquer circunstâncias.

O venerável patrício meditou longamente como se buscasse, no

íntimo, uma solução para consolo da nora, sempre considerada como filha

extremosa e digna.

Em seguida, como se houvera escutado as vozes silenciosas do

próprio coração, acrescentou :

- Já ouviste dizer que temos várias vidas terrenas?

- Como, meu pai ? Não compreendo .

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

- Sim, alguns filósofos mais antigos nos deixaram no mundo essas

verdades consoladoras. Lutei contra elas desde os estudos da mocidade,

fiel às nossas tradições mais respeitáveis; contudo, a velhice e a

enfermidade possuem também as suas grandes virtudes!. . As experiências

humanas ensinaram-me que precisamos de várias existências para

aprender e nos purificarmos. . . Agora que me encontro no limiar do

sepulcro, as mais profundas meditações me visitam a mente . A questão

das vidas sucessivas aclarou-se, com toda a beleza de suas prodigiosas

conseqüências. A velhice faz-me sentir que o Espírito não se modifica tão

só com as lições ou com as lutas de um século, e a enfermidade me fez

reconhecer no corpo uma vestimenta pobre, que se desfaz com o tempo.

Viveremos além-túmulo com as nossas impressões mais vivas e mais

sinceras, e retornaremos à Terra para continuar as mesmas experiências, em

favor de nossa evolução espiritual.

Percebendo que a nora lhe ouvia a palavra filosófica, tomada de

profunda surpresa, o venerando ancião acentuou:

- Estas considerações, filha, vêm-me do íntimo para esclarecer-te

que, apesar da decrepitude portadora da morte, tenho o espírito vivaz e

repleto das mesmas disposições e esperanças. Sem a certeza da

imortalidade, a vida terrestre seria uma comédia estúpida e dolorosa. Mas

eu sei que além do túmulo outra vida floresce e novas possibilidades

felicitarão o nosso ser.

Por essa razão, vibro com as tuas dores de agora, crendo, porém,

que no futuro a Providência Divina nos concederá novas experiências e

caminhos novos... Os que hoje nos odeiam ou nos perseguem, poderão ser

convertidos ao bem com o nosso amor desvelado e compassivo. Quem

sabe? Após esta vida, poderemos voltar, resgatando os nossos corações

para o Céu e auxiliando a redenção dos inimigos. Tenhamos fé, piedade e

esperança, considerando que o tempo deve ser para nós um patrimônio

divino ! . . De acordo com o elevado princípio das vidas múltiplas, os

laços do sangue ensejam as mais sublimes possibilidades de

transfundirmos a torpeza do ódio, ou dos sentimentos inconfessáveis, em

algemas cariciosas de abnegação e de amor...

Sem forças físicas para defender os filhos queridos das ciladas e

perigos do mundo, guardo as minhas esperanças afetuosas para o porvir

ainda longínquo, sem descrer da sabedoria que rege os trabalhos e

provações da existência terrena.

Cneio Lucius estava fatigado. As palavras sábias e inspiradas

saíam-lhe da garganta, com dificuldade indefinível. Além disso, Alba Lucínia

não lhe compreendeu as exortações carinhosas e transcendentes. Atribuiuas,

intimamente, a possíveis alterações mentais, decorrentes do seu

estado físico. Mostrando-se mais forte, em face das próprias amarguras, fez

sentir ao ancião que o seu estado requeria repouso e deveria abster-se de

esforços prolongados e inadequados ao momento.

O sábio patrício percebeu a incompreensão da nora esboçando um

sorriso carinhoso e resignado.

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

Daí a momentos, a esposa de Helvídio confiava aos de casa as

suas impressões, relativamente ao estado mental do enfermo, o que,

conforme esclarecera Márcia, não era surpresa, desde que o generoso

velhinho manifestara as suas simpatias pelas doutrinas cristãs.

Somente Célia compreendeu a situação, correndo a consolá-lo .

Com a sua ternura imensa, abraçou-se ao avô, enquanto ele lhe advertiu:

- Sei porque assim me beijas e abraças... É pena que todos os

nossos não possam compreender os princípios que nos esclarecem e

consolam o coração! . . Aos outros, não deverei falar com a franqueza com

que permutamos nossos pensamentos. . . A ti, portanto, cumpre-me

confessar que meu corpo está vivendo as derradeiras horas. Daqui a pouco,

terei partido para o mundo da verdade, onde cessam todos os

convencionalismos humanos. Em vez de confiar-te a teus pais, confio os

meus filhos ao teu coração ! . . Sinto que Helvídio e Lucínia experimentam

muitas amarguras no ambiente de Roma, do qual, há muito, se

desabituaram... Sacrifica-te por eles, filhinha.. . Se sobrevierem situações

difíceis, ama-os ainda mais... Tu que me levaste ao Evangelho, deverás

recordar que Jesus afirmava-se como remédio dos enfermos e pecadores . . .

Sua palavra misericordiosa não vinha para os sãos, mas para os doentes, e

as mãos para salvar as ovelhas tresmalhadas do seu aprisco divino... Não

temas a renúncia ou o sacrifício de todos os bens do mundo. . . A dor é o

preço sagrado de nossa redenção... Se Deus apiedar-se de minha indigência

espiritual, virei do mistério do túmulo para te fortalecer com o meu amor, se

tanto for preciso. . .

Enquanto a neta lhe ouvia a palavra, altamente emocionada,

mas serena em sua fé, o venerando patrício continuava, depois de longa

pausa:

- Desde ontem, sinto que vou penetrando em uma vida nova e

diferente... Ouço vozes que me chamam ao longe, e seres luminosos e

imperceptíveis para os outros me cercam o leito, desolados... Pressinto

que o corpo não tardará a cair na agonia... mas, antes disso, quero dizer-te

que estarás sempre no coração do avozinho, seja onde e como for.

Sua palavra tornava-se morosa e arquejante, mas a jovem,

compreendendo a situação do querido enfermo, amparou-lhe a cabeça alva

de neve, com mais cuidado e maior ternura.

- Célia - murmurou com dificuldade-, todos os meus desejos

referentes à vida... material... estão expressos... em carta a Helvídio. No

cofre de minhas... lembranças... Minha consciência de pecador... está em

preces e sei... que Jesus não desprezará minhas súplicas. . . Mas desejaria. ..

recitasses a oração do Senhor, nesta hora extrema.. .

Seus lábios moviam-se ainda, como se a queda súbita das energias

impedisse a elocução, mas a neta, alma temperada na fé ardente e nas

grandes emoções das angústias terrestres, compreendeu o olhar calmo e

profundo do agonizante, e começou a murmurar, retendo as próprias

lágrimas:

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

- Pai nosso, que estais no Céu, santificado seja o vosso nome,

venha a nós o vosso reino, seja feita a vossa vontade, assim na Terra, como

nos Céus...

Tranqüilamente, terminou, como se as suas palavras houvessem

alcançado o Paraíso.

O ancião fixou nela o olhar carinhoso, como se, no silêncio da hora

extrema, houvesse concentrado na sua afeição os derradeiros pensamentos.

Cheia de cuidados, Célia ajeitou-lhe os travesseiros, depois de um

beijo molhado de pranto, dirigindo-se em seguida ao interior, onde

cientificou sua mãe do que ocorria.

Cneio Lucius havia caído em abatimento profundo. A dispnéia

implacável interceptara-lhe de todo a palavra e ele entrou em agonia lenta,

que devia durar mais de setenta horas..

De nada valeram os recursos médicos do tempo, com as suas

fricções e beberagens. O moribundo perdia o "tônus vital", aos poucos, em

meio das mais dolorosas aflições.

As lágrimas de Márcia e Publícia misturaram-se às de Alba

Lucínia e filha, ante os rudes padecimentos do velhinho adorado. Um

servo foi expedido a toda pressa para Cápua, requisitando a presença de

Caio Fabrícius e sua mulher, que poderiam, talvez, chegar a Roma para as

derradeiras homenagens.

Na manhã do terceiro dia de agonia dolorosa, como sói acontecer

com as pessoas de idade avançada, Célia percebeu que o avô estava nas

derradeiras impressões da existência terrestre... a respiração era quase

imperceptível, um frio intenso começava a invadir-lhe os pés e as mãos.

Todos os familiares compreenderam que chegara o instante

supremo... Márcia, nas suas expressões de amargura resignada, sentouse

junto do venerando genitor, aconchegando-lhe a cabeça entre os joelhos,

carinhosa, enquanto Célia lhe segurava as mãos frias e enrugadas... com a

alma em prece fervorosa, suplicando a Jesus recebesse o avô na luz de

sua misericórdia, a jovem cristã, no êxtase da sua fé, sentiu que a câmara

espaçosa se enchia de claridades estranhas e indefiníveis. Figurou-se-lhe

divisar seres luminosos, aéreos, a cruzarem a alcova em todas as

direções... Por vezes, chegava a lhes fixar os traços fisionômicos, embora

não os identificasse, surpreendendo-se com a visão de túnicas alvinitentes,

semelhantes a largos peplos de neve translúcida...

Todavia, entre aqueles seres radiosos entreviu alguém que lhe era

conhecido. Era Nestório, que a confortava com um afetuoso sorriso.

Compreendeu, então, que os bem-amados que nos precedem no túmulo vêm

dar as boas-vindas aos que atingiram o último dia na Terra.. Naquele

minuto luminoso, seu coração enchia-se de carinhoso júbilo e de radiosas

esperanças... Desejou falar ao vulto de Nestório, perguntando-lhe por Ciro,

mas absteve-se de pronunciar qualquer palavra, receosa de que a sua

abençoada visão se desfizesse... Contudo, como se os pensamentos mais

íntimos fossem ouvidos pelo amigo desencarnado, percebeu que o exescravo

lhe falava, ouvindo a sua voz, estranhamente, como se o

fenômeno obedecesse a um novo meio de audição intracerebral.

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

- Filha - parecia-lhe dizer o Espírito Nestório, afetuosamente -, Ciro

já veio e vê-lo-ás breve ! . . Acalma o coração e guarda a tua fé sem

desdenhar o sacrifício ! . . . Adeus ! . . . Junto de alguns amigos desvelados,

aqui viemos buscar o coração de um justo ! . .

Com os olhos marejados de pranto, a filha de Helvídio notou que

Nestório abraçara-se ao moribundo, enquanto uma força invencível a

arrancava do êxtase, fazendo-a voltar à vida comum.

Como se houvera chegado de outro plano, ouviu que Márcia e sua

mãe pranteavam e certificou-se de que o moribundo deixara escapar o

último suspiro.

Cneio Lucius, com a consciência edificada nos largos

padecimentos de uma longa vida, partira ao amanhecer, quando o

maravilhoso Sol romano começava a dourar as eminências do Aventino com

os primeiros beijos da aurora...

Então, um luto pesado se abateu sobre o palácio que, por tantos

anos, havia servido de ninho aos seus grandes sentimentos. Durante oito

dias, seus despojos ficaram expostos à visitação pública, na qual se

confundiam nobres e plebeus, por lhe trazerem, todos, um pensamento

agradecido.

A notícia do infausto acontecimento foi mandada a Helvídio pelo

correio do próprio Imperador, enquanto Caio e a esposa chegavam da

Campânia, a fim de assistir às derradeiras homenagens ao morto ilustre

e querido. Cneio Lucius não tivera o conforto da presença de Helvídio, mas

Cornélio fez questão de tomar todas as providências para que não lhe

faltassem as honras do Estado. Assim, o venerando patrício, justamente

conhecido e estimado por suas virtudes morais e cívicas, antes de baixar ao

túmulo, recebeu as homenagens da cidade em peso.

Helvídio Lucius encontrava-se entre a Tessália e a Beócia, quando

lhe chegou a notícia do falecimento do pai. Inútil cogitar de uma visita a

Roma, com o fim de confortar o coração desolado dos seus, não somente

porque muitos dias já se haviam escoado, como também devido aos seus

labores intensos, no cargo a ele confiado pelos caprichos do Imperador.

Entre os mármores e preciosidades da antiga Fócida, em cujas

ruínas era obrigado a utilizar os seus talentos na escolha de material

aproveitável às obras de Tibur, sentiu no coração um vácuo imenso. O

genitor era para ele um amparo e um símbolo. Aquela morte deixava-lhe

nalma uma saudade imorredoura.

Os longos meses de separação do ambiente doméstico

decorriam pesadamente.

Debalde atirava-se ao trabalho para fugir ao desalento que, amiúde,

lhe invadia o coração.

Embora a comitiva imperial permanecesse em Atenas, junto de

Adriano, ele nunca estava livre das convenções sociais e políticas, no

ambiente de suas atividades diuturnas. Sobretudo Cláudia Sabina nunca o

abandonava na faina do esforço comum, cooperando na sua tarefa com

decisão e com êxito, reconquistando-lhe a simpatia e amizade de outros

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

tempos. Helvídio Lucius, porém, se lhe admirava a capacidade de trabalho,

não poderia transigir no tocante aos sagrados deveres conjugais, guardando

a imagem da esposa no santuário de suas lembranças mais queridas, com

lealdade e veneração. Recebia as suas cartas afetuosas e confiantes. como

um estímulo indispensável aos seus feitos e acariciava a esperança de

regressar a Roma em breve tempo, como alguém que aguardasse ansioso o

dia de paz e liberdade .

Desde muito, porém, o generoso patrício trazia o íntimo onusto de

preocupações e de sombras.

A esposa de Lólio Úrbico, modificando os processos de sedução,

apresentava-se agora, a seus olhos, como amiga devotada e fiel, irmã dos

seus ideais e de suas preocupações. No fundo, a antiga plebéia conservava

a paixão desvairada de sempre, acompanhada dos mesmos propósitos de

vingança para com Alba Lucínia, considerada como usurpadora da sua

ventura.

O tribuno, entretanto, observando-lhe as dedicações reiteradas e

aparentemente sinceras, começou a acreditar no seu desinteresse,

verificando a confortadora transformação dos sentimentos da sua profunda

capacidade para o artificialismo. Cláudia Sabina, contudo, continuava a

querê-lo desvairadamente. O constante adiamento de suas esperanças

represava-lhe a paixão com mais violência. No íntimo, experimentava os

padecimentos de uma leoa ferida, mas a verdade é que, a cada investida do

seu afeto, Helvídio lhe fazia perceber o caráter sagrado das obrigações

matrimoniais de ambos, indiferente ao seu olhar ansioso e às suas

aspirações inconfessáveis. A mulher de Lólio Úrbico desejava ser amada,

assim, com tanta fidelidade e devotamento, mas os sentimentos grosseiros

do coração não lhe deixavam perceber as vibrações mais nobres do

espírito. Sabia, tão somente, que amava Helvídio Lucius com todos os

impulsos do seu temperamento lascivo. Para realizar os seus propósitos

inconfessáveis, não recuaria. Odiava Alba Lucínia e não trepidaria em lhe

impor a vingança mais cruel, desde que conseguisse voltar às delícias do

antigo amor, feito de exclusividade e violência.

Cláudia percebeu que o tribuno, apegado às concepções do dever,

poderia ser vencido tão somente por uma dissimulação a toda prova, e por

isso cercava Helvídio de atenções carinhosas e constantes dedicações.

Quando, acidentalmente, se referia à esposa ausente, tinha o cuidado de

elogiá-la, esforçando-se por colorir os conceitos com o melhor tom de

sinceridade.

Desse modo, o filho de Cneio Lucius se foi prendendo,

novamente, na teia de encantos daquela mulher, concedendo-lhe uma

atenção indevida, sensibilizado nas fibras mais íntimas do coração, embora

nunca chegasse a olvidar as suas obrigações mais sagradas.

Cláudia Sabina, contudo, afagava novas esperanças. Aos seus

olhos, bastaria afastar do caminho a figura incômoda de Alba Lucínia, para

assegurar a sua bastarda felicidade.

Certo dia, a esposa do prefeito, fingindo distração nas palavras,

como de costume, asseverou a Helvídio, em íntima palestra:

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

- A última carta de uma das minhas amigas, de Roma, dava-me a

conhecer um pormenor curioso da vida de meu marido. Musônia avisa-me

de que Úrbico passa em sua casa quase todo o tempo de que dispõe nos

seus labores de Estado.

- Em minha casa? - perguntou o tribuno, ruborizado, adivinhando

a malícia de semelhante informação .

- Sim - respondeu Cláudia, aparentando a maior indiferença -,

sempre notei em meu marido singular predileção por sua família. Lucínia e

sua filha sempre foram alvo de suas gentilezas especiais. Aliás, isso não nos

pode surpreender. Fábio Cornélio, desde muitos anos, tem sido o seu

melhor amigo .

- Sim, isso é incontestável - exclamou Helvídio algo desapontado

com semelhantes alusões ao seu lar.

Sabina percebeu que aquele instante era favorável para iniciar o

tenebroso plano e, fingindo interesse pela paz doméstica de Helvídio

Lucius, acrescentou sem piedade :

- Meu amigo, aqui entre nós, devo dizer-lhe que meu marido não é

um homem que justifique os mais preciosos costumes do ambiente

romano. Avalie quanto me custa fazer-lhe esta confidência, mas desejo zelar

pela paz do seu lar, acima de tudo . Hipócrita e impulsivo por índole, Lólio

Úrbico tem feito numerosas vítimas, no campo de suas aventuras de

conquistador inveterado. Temo-lhe a freqüência à sua casa, por sua mulher

e por sua filha.

Helvídio fez-se pálido, mas Cláudia, percebendo o efeito de suas

palavras, prosseguia impiedosamente :

- Vivemos uma época de surpresas temerosas, na qual as mais

sólidas reputações baqueiam imprevistamente... Desde que me casei com o

prefeito, venho experimentando uma série de provações. Suas aventuras

amorosas têm-me acarretado grandes dissabores, dado o clamor das

vítimas, a me repercutirem no coração...

- Por Júpiter! - murmurou o tribuno fortemente impressionado - não

posso contestar as suas apreciações, mas quero crer que Fábio Cornélio

não se poderia enganar por tantos anos, elegendo no prefeito um de seus

melhores amigos.

- Sim, esse argumento parece forte à primeira vista - respondeu

Sabina com argúcia -, mas convém lembrar que o meu amigo recomeça a

sua vida na Capital do Império, depois de muitos anos acostumado à

tranqüilidade da Província. O tempo demonstrará que o censor e o prefeito

se identificaram muito em uns tantos negócios do Estado. Ambos são

compelidos a se respeitarem e a se quererem mutuamente, mas, quanto à

conduta individual, sabem os deuses da realidade de minhas afirmativas .

Helvídio Lucius desviou a palestra para outros assuntos,

reconhecendo a delicadeza daquelas observações sobre a honorabilidade

de outrem e a propósito do seu lar; mas, quando Sabina se retirou, sentiuse

envenenado de preocupações injustificáveis e profundas. Que

significariam as visitas reiteradas do Lólio Úrbico a sua casa? Porventura

Alba Lucínia ter-se-ia esquecido dos seus sagrados deveres? Fábio Cornélio

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

prender-se-ia tanto aos interesses materiais, a ponto de olvidar o nome e as

respeitáveis tradições da família? Na mente do tribuno, as numerosas

cogitações íntimas se baralhavam em tormenta. Ainda bem que aquela

ausência dolorosa estava prestes a findar. Élio Adriano já expedira as

ordens para que largassem da Itália as galeras para o regresso.

Em Roma, porém, a situação de Alba Lucínia e da filha chegava ao

auge do sofrimento moral. Várias vezes, Célia percebera os colóquios de sua

mãe com o impiedoso conquistador, mas, dada a sua timidez, não podia

perceber a repulsa da genitora, diante da infâmia e da cruel ousadia.

Lucínia, a seu turno, algumas vezes deparara com o prefeito dos pretorianos

em visita à sua casa, quando de suas curtas ausências junto das amigas,

encontrando o implacável perseguidor em conversação com a filha, que

o acolhia com a tolerância dos seus bons sentimentos, de modo a não ferir o

coração materno, salientando-se que a esposa de Helvídio temia,

sinceramente, a presença daquele homem cruel, transformado em demônio

do seu lar.

A nobre senhora, abatida e doente, pensou em expor a situação ao

velho pai e, todavia, considerou que o censor já deveria ter percebido, de

longa data, a sua posição angustiosa, do ponto de vista moral, supondo,

portanto, que, se ele silenciava, é que lhe sobravam ponderosas razões para

fazê-lo.

Muitas vezes tentou falar à filha sobre tão delicado assunto,

supondo-a também vítima das perseguições insidiosas do inimigo da sua

paz; todavia, Célia, com a sua natural pudicícia, jamais deu ensejo às

confidências maternais, desviando o curso das conversações e

multiplicando os carinhos para com ela, em cujo coração adivinhava as mais

angustiosas inquietações.

Afinal, quando faltavam dois meses para o regresso definitivo

de Helvídio, Alba Lucínia acamou-se, extremamente abatida.

Mais de um ano fazia que o Imperador se ausentara.

Foram catorze meses de angústias para a filha de Fábio Cornélio,

cuja saúde não pudera resistir ao embate das provações mais penosas.

Célia, igualmente, tinha as faces descoradas e tristes. Através dos seus

traços, podia observar-se o enfraquecimento orgânico. As preocupações

filiais se traduziam por longas noites de insônia, que acabaram por lhe

arruinar a saúde, antes vigorosa . Com a sua ternura inata, ela tudo fazia por

consolar a mãezinha combalida.

Dos portos da Itália foram enviadas quatro grandes galeras para o

regresso de Adriano e sua comitiva . A primeira embarcação, chegada ao

litoral da Atica, foi disputada pelos elementos mais ávidos de retornar ao

ambiente romano, entre os quais Cláudia Sabina, que pretextava a

necessidade de voltar quanto antes, considerando os apelos do seu círculo

doméstico.

Helvídio Lucius estranhou aquela pressa, mas não podia adivinhar

o alcance de seus planos. Ele também desejaria regressar, urgentemente,

mas era obrigado a atender ao convite do Imperador, para fazer-lhe

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

companhia na embarcação de honra, que chegaria a Óstia oito dias depois

das primeiras galeras .

Daí a alguns dias, a mulher do prefeito dos pretorianos chegava à

Capital do Império, com o avanço de uma semana, de molde a cogitar da

realização dos sinistros projetos de vingança que lhe trabalhavam a mente .

O marido recebeu-a com a frieza habitual e os servos da casa, com a

angústia que a sua presença lhes facultava.

Cláudia Sabina teve meios de fazer chegar a Hatéria a notícia de sua

volta, esclarecendo-lhe a visita com a possível urgência.

Em frente de sua cúmplice, a quem dispensava o máximo de

generosidade, a antiga plebéia disse-lhe ansiosamente:

- Hatéria, chegou o momento de jogar a última cartada na minha

partida. Realizarei meu projeto sem vacilar nas minhas atitudes, e, quanto a

ti, receberás agora o prêmio da tua dedicação.

- Sim, senhora - retrucava a serva com o olhar cúpido, considerando

a propina.

- Como vai a mulher de Helvídio?

- A patroa vai muito abatida, e doente .

- Ainda bem - murmurou Sabina satisfeita - isso favorece a

execução dos meus planos.

E depois de fixar na companheira os olhos ansiosos, acentuou de

maneira singular:

- Hatéria, estás preparada para o que possa acontecer ?

- Sem dúvida, minha senhora. Entrei em casa do patrício Helvídio

Lucius, para vos servir, exclusivamente .

- Não te arrependerás por isso - disse Sabina com decisão. - Ouveme

: estamos ao termo da missão que te retém junto de Alba Lucínia.

Espero do teu esforço o último serviço de colaboração na minha tarefa de

amplo desagravo do passado doloroso. Tenho sido generosa contigo, mas

desejo assegurar o teu futuro pelos bons serviços que me hás prestado.

Que desejas para descanso da tua velhice no seio da plebe desamparada ?

Depois de pensar um momento, a velha serva murmurou satisfeita,

como se já houvesse realizado, no íntimo, todos os cálculos

imprescindíveis a uma resposta mais exata.

- Senhora, sabeis que tenho uma filha casada, cujo marido vem

arcando com a maior miséria nos seus dias de tormento e de pobreza.

Valério, meu genro, teve sempre grande amor à vida do campo; mas, em

sua penosa condição de liberto pobre, jamais conseguiu amealhar o

suficiente para adquirir um trato de terra, onde pudesse fazer a felicidade da

família. Meu ideal, portanto, é possuir um sítio longe de Roma, onde me

recolhesse junto dos filhos e dos netos que me estimarão, como hoje, nos

dias próximos da decrepitude e da invalidez para o trabalho.

- Teus desejos serão satisfeitos – exclamou a mulher do prefeito,

enquanto Hatéria a escutava, cheia de alegria -; vou indagar o custo de um

sítio aprazível e, no momento oportuno, dar-te-ei a quantia necessária.

- E que devo fazer agora para lograr semelhante ventura?

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

- Escuta - disse Cláudia com gravidade -, de hoje a uma semana

Helvídio Lucius deverá estar de volta. Na tarde de sua chegada, deverás

procurar-me para receber instruções. Nesse mesmo dia, terás o dinheiro

necessário para realizar teus desejos. Por agora, vai-te em paz e confia em

mim.

Hatéria estava radiante com as perspectivas do futuro, sem levar

em conta os meios criminosos que haveria de empregar para atingir seus

fins.

No dia seguinte, pela manhã, uma liteira modesta saía da residência

de Lólio Úrbico, em direção à Suburra.

Será inútil esclarecer que se tratava de Cláudia Sabina, dirigindo-se

à conhecida casa da vendedora de sortilégios, com quem haveria de concluir

os seus projetos sinistros.

A feiticeira de Cumas recebeu-a sem surpresa, como se estivesse à

sua espera.

Depois de mergulhar as mãos ávidas na aluvião de sestércios que

Cláudia lhe trazia, Plotina concentrou-se diante da trípode que já

conhecemos, falando em seguida:

- Senhora, o momento é único ! Deveremos cuidar de todos os

pormenores, quanto ao que vos cumpre fazer, a fim de que se não percam os

nossos melhores esforços.

Cláudia Sabina pôs-se a meditar num plano minucioso que a

feiticeira submetia ao seu critério.

Plotina falava em voz muito baixa, como se receasse as próprias

paredes, tal a ignomínia das sugestões criminosas.

Finda a longa exposição, a consulente retrucou pensativa:

- Mas, não seria melhor exterminar a rival ? Tenho alguém em sua

casa que se poderá incumbir do último golpe. Sei que conheces os filtros

mais violentos e que mos podes fornecer hoje mesmo.

- Senhora - as vossas ponderações são razoáveis, mas deveis

recordar que a morte do corpo só aproveita aos assuntos de ordem

material ; e, em nosso caso, eles são de ordem espiritual, tornando-se

indispensável um golpe infalível. Quem nos dirá que o homem amado

voltará aos vossos braços se a companheira descer às cinzas de um túmulo

? Os que partem para o Além costumam deixar uma saudade duradoura,

alimentando sempre uma paixão inextinguível.

E enquanto a esposa do prefeito considerava as estranhas

insinuações como certas e justas, Plotina continuava :

- É preciso instilar o ódio no coração do homem desejado

para que a vossa ventura seja efetiva. Para atingirmos esse fim,

necessária se torna flagelar a alma, abatendo-a e destruindo-a.

- Sim, as tuas advertências são assaz judiciosas e não devo

desprezá-las, mas, de conformidade com o teu plano, meu marido deverá

desaparecer..

- E que vos importa isso, se a sua morte se faz necessária? Não

forçais o destino para gozar a felicidade possível com outro homem ?

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

- Sim, teu projeto é o melhor, porquanto chegaste a prever todas as

conseqüências.

E, como se apostrofasse a figura imaginária da rival, vítima da sua

insânia e do seu ódio, acentuou com os olhos perdidos no vácuo:

- Alba Lucínia deverá viver!.. Relegada a uma plana inferior, com a

sua vergonha, padecerá o desprezo e a execração que tenho padecido!...

Plotina levantara-se. De um armário esquisito, retirou frascos e

pacotes que entregou à cliente, com observações especializadas.

Aceitando de alma aberta o plano odioso, Cláudia Sabina saiu,

prometendo voltar.

Daí a dias, Elio Adriano com a sua imponente comitiva entrava pela

Porta Óstia, aclamado pela onda espessa do patriciado e do povo.

O Imperador, com a sua predileção pelas relíquias da antiguidade,

recomendou a Helvídio superintendesse todo o serviço de descarga das

peças curiosas da Fócida, destinadas a Roma. O tribuno, porém, delegando

a incumbência a um dos seus prepostos de confiança, dirigiu-se à

cidade, para abraçar a esposa e a filha.

Lucínia e Célia receberam-no com transportes de júbilo indizível.

O tribuno, porém, abraçou-as tomado de enorme surpresa. Ambas

se encontravam desfiguradas e doentes. Nada obstante, trocaram-se

impressões carinhosas, cheias do encantamento e do júbilo de se reverem.

Assinalando essa comovedora alegria, o generoso patrício, amante do lar,

retirou de pequena caixa um soberbo bracelete de pedras preciosas, que

entregou à esposa como lembrança de Atenas e deu à filha uma formosa

pérola adquirida na Acaia, como recordação da Grécia longínqua.

Depois, foi um longo desfiar de reminiscências amigas e doces,

Alba Lucínia teve de confiar ao marido todas as peripécias da enfermidade,

agonia e morte de Cneio Lucius.

Enquanto a cidade se repletava de espetáculos para ilustrar o

regresso do Imperador, Helvídio Lucius e os seus entretinham-se em

palestra cariciosa, matando as saudades recalcadas.

Todavia, quando os derradeiros clarões do Sol preludiavam o

crepúsculo, o patrício disse à esposa, com grande ternura:

- Agora, querida, regressarei a Óstia, onde sou obrigado a pernoitar

ainda hoje. Amanhã estarei definitivamente reintegrado em casa, a fim de

organizarmos a nossa vida nova. Já me avistei com Fábio Cornélio, que

acompanhou o Imperador ao lado do prefeito, mas somente amanhã poderei

estar com Márcia, para ouvi-la acerca de meu pai e dos seus últimos

desejos.

- Mas, as responsabilidades em Óstia são assim tão imperiosas? -

perguntou Alba Lucínia preocupada. - Para os serviços do Imperador não

teria bastado a ausência de mais de um ano?

- Sim, querida, faz-se mister cumprirmos o dever nas suas

características mais severas. Adriano incumbiu-me da verificação de todas

as relíquias transportadas da Grécia e não posso confiar tão somente no

trabalho dos servos, dado o valor considerável da carga em apreço. Mas,

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

não te amofines com isso !... Lembra-te de que amanhã aqui estarei para

concertar os nossos planos familiares.

Alba Lucínia aquiesceu com um sorriso triste, como se estivesse

em face do inevitável. Seu coração, porém, desejava a presença do

companheiro para confiar-lhe, imediatamente, os seus íntimos

dissabores.

Ao cair da tarde, a liteira de Helvídio saía de casa apressadamente.

Alba Lucínia recolhia-se ao leito, cheia de novas esperanças,

enquanto a filha voltava às suas meditações.

Alguém, contudo, saía da residência do tribuno, cautelosa e

apressadamente, sem despertar a curiosidade dos serviçais domésticos.

Era Hatéria que se dirigia para o Capitólio.

Cláudia Sabina recebeu-a sôfrega, fazendo-a entrar num gabinete

mais discreto e falando-lhe nestes termos:

- Ainda bem que vieste mais cedo! Tenho de tomar muitas

providências.

- Aguardo as vossas ordens - respondeu a criatura na sua fingida

humildade.

- Hatéria - volveu Sabina com voz quase imperceptível -, estou

vivendo horas decisivas para o meu destino. Confio em ti como se

confiasse em minha própria mãe.

E entregando-lhe pesada bolsa, com o preço da traição,

acrescentava:

- Aqui está o prêmio da tua dedicação em favor da minha

felicidade. São economias com que poderás adquirir um sítio, longe de

Roma, conforme desejas.

Hatéria, cúpida, recebia a pequena fortuna, deixando

transparecer estranha alegria nos olhos fulgurantes.

A mulher de Lólio Úrbico, todavia, continuava em tom discreto :

- Em troca da minha generosidade, exijo-te, contudo, segredo

tumular, ouviste?

- Essa exigência me é muito grata, creia - dizia a cúmplice.

- Confio na tua palavra.

E depois de uma pausa, olhos perdidos no vácuo, como a

antever os seus feitos horríveis, acentuou:

- Conheces a coluna lactária, no mercado de legumes? (1)

(1) A coluna lactária no mercado de legumes, ou Forum Olitorium, era o

local onde se expunham, diariamente, os recém-nascidos enjeitados.

- Sim, não fica longe do Pórtico de Otávia. Há muitos anos, por ali

perambulei, a fim de observar as criancinhas abandonadas.

- Neste caso não me será difícil explicar-te o que pretendo.

Começou a falar com a velha serva em voz muito baixa, expondolhe

os seus projetos, enquanto Hatéria a ouvia muito admirada, mas

aquiescendo a todas as sugestões.

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

Cláudia Sabina parecia alucinada. Olhar abstrato, a expressão

fisionômica tinha um quê de sinistro. Como que concentrada no só

propósito de efetivar os seus planos, dirigia-se à velha serva maquinalmente

:

- Hatéria - disse, entregando-lhe um pequenino frasco -, esse filtro

dá repouso físico e sono prolongado... Ao ministrá-lo, é preciso que Alba

Lucínia descanse tranqüilamente...

Confiando-lhe outro frasco, afoitamente acrescentava:

- Leva também este ! Terás necessidade de tudo isso...

E, enquanto a serva guardava os elementos do crime,

acentuava:

- Que os deuses da minha vingança nos protejam... Até que enfim,

chegou o instante da desforra... Sim, Hatéria, amanhã Helvídio Lucius saberá

para todos os efeitos, que a esposa lhe foi infiel, apresentando-lhe o fruto de

um crime... A escolha da criança ficará ao teu critério... Poderei contar

absolutamente contigo ?

- Pela fé no poder de Júpiter, podeis confiar em mim, senhora.

Irei à coluna lactária, depois da meia-noite, e levarei comigo a criança. Os

recém-nascidos são ali abandonados diariamente, às dezenas...

Assentada a combinação sinistra, a noite já havia desdobrado

sobre Roma o seu manto de sombras espessas.

Todavia, enquanto Hatéria retornava à casa dos amos, Cláudia

Sabina privava-se das festas noturnas do Imperador, encaminhando-se à

Porta de Óstia apressadamente..

Encontrando-se lá com o filho de Cneio Lucius, solicitou-lhe o

favor de uma palavra em particular, no que foi imediatamente atendida.

- Helvídio - falou a perversa criatura com a sua facilidade de

dissimulação -, aqui estou para prevenir-te, reservadamente, de graves

acontecimentos, aliás, já por mim previstos, quando na Grécia.

- Mas, que acontecimentos? - interrogou o patrício com ansiedade.

- Deves estar preparado para ouvir-me, pois acredito que o prefeito

dos pretorianos, com a bruteza dos seus sentimentos, chegou a macular a

honra da tua casa.

- Impossível ! - exclamou o tribuno com veemência.

- Entretanto, deves ouvir Alba Lucínia imediatamente, verificando

até que ponto conseguiu Lólio Úrbico introduzir-se no teu lar.

- Eu não posso duvidar de minha mulher sequer um minuto -

revidou com sinceridade.

- Queres ou não ouvir-me até o fim, para conheceres os

pormenores do fato? - perguntou Sabina encolerizada.

- Ouvi-la-ei com prazer, desde que o assunto não se refira à minha

família e à honra da minha casa.

- É possível que tua opinião amanhã se modifique.

E, despedindo-se bruscamente do homem de suas paixões, que

sabia defender as tradições do lar e da família, a antiga plebéia regressava

ao Capitólio, mais que nunca interessada no desdobramento dos seus

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

sinistros desígnios. O gênio do mal, que lhe falava no coração, preparava

para aquela noite os acontecimentos mais terríveis.

Enquanto a vemos, pela madrugada, a examinar documentos e

pergaminhos no gabinete de Lólio Úrbico, acompanhemos Hatéria até o

mercado de legumes.

A sociedade romana já se havia habituado a ver junto da coluna

lactária os míseros enjeitadinhos. Esse local de triste memória, onde

muitas mães abnegadas acolhiam pobres crianças abandonadas, constituía

como que os primórdios das famosas "rodas-de-expostos", nos

estabelecimentos de caridade cristã, que floresceriam mais tarde para o

mundo.

A claridade mortiça da Lua, antes do amanhecer, a velha serva

verificou a presença de três míseros pequeninos. Um deles, porém,

chamou-lhe a atenção pelos seus suaves vagidos de recém-nato. Era uma

criancinha de traços delicados e nobres, que a cúmplice de Cláudia pode

examinar, minuciosamente, à luz de uma tocha. O enjeitadinho, com

roupas muito pobres, parecia nascido de poucas horas. Hatéria tomou-o nos

braços, quase com enlevo, considerando intimamente: esta criança deve ser

um digno rebento de patrícios romanos!.. Que penoso romance não se

ocultará no seu vestidinho roto e ordinário...

Levou-o consigo, penetrando na casa dos amos com todo o

cuidado.

Amanhecia...

À noite, a criminosa adicionara o narcótico aos remédios de sua

senhora.

Entrou no quarto onde a esposa de Helvídio repousava,

tranqüilamente, depôs a criança ao seu lado, envolvendo-a no ambiente

tépido das coberturas. Em seguida, preparou ali toda a encenação

necessária, sem que a pobre vítima do filtro que a mergulhara em longo e

pesado sono pudesse perceber o que se passava.

Todavia, o pequenino começou a chorar fracamente, embora a

serva criminosa fizesse o possível por acalmá-lo.

No quarto contíguo ao de sua mãe, dado o ruído insólito, Célia

despertava.

Acordou aturdida e sensibilizada. Acabava de sonhar que se

encontrava, novamente, no cemitério triste da Porta Nomentana, como na

memorável noite em que pudera rever o bem-amado de sua alma.

Figurou-se-lhe contemplar Ciro a seu lado, enquanto Nestório mantinha a

mesma atitude das suas antigas prédicas, perguntando : - quem é minha

mãe e quem são os meus irmãos? Tinha o cérebro ainda preso de

emoções carinhosas, e as mais ternas lembranças no coração de

menina e moça...

Nesse instante, o ruído insólito chegava-lhe aos ouvidos.

Vagidos de criança? Que significaria aquilo ?

Levantou-se, apressada, com o pensamento ansioso, mergulhado

em dolorosas perspectivas.

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

Notando o movimento de alguém que se aproximava, Hatéria fez

menção de retirar-se à pressa, mas a jovem já havia transposto a porta,

verificando-lhe a presença.

Contemplando a criança ao lado de sua mãe adormecida e os

sinais evidentes de quanto caracteriza o lugar de um parto, presumiu

adivinhar o drama com as amargas suspeitas do seu coração filial.

Um turbilhão de pensamentos penosos surpreendeu-lhe o cérebro

enfraquecido. Sim, aquela criancinha deveria ter nascido ali, como

conseqüência fatal de uma tragédia inesquecível.

- Hatéria - exclamou num gemido -, que significa tudo isso?

- Vossa mãe, esta noite, minha boa menina - respondeu a serva