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sábado, 29 de janeiro de 2011

No Mundo Maior-Francisco Cândido Xavier

NO MUNDO MAIOR

FRANCISCO CÂNDIDO XAVIER

DITADO PELO ESPÍRITO ANDRÉ LUIZ

(5)


Série André Luiz

1 - Nosso Lar

2 - Os Mensageiros

3 - Missionários da Luz

4 - Obreiros da Vida Eterna

5 - No Mundo Maior

6 - Agenda Cristã

7 - Libertação

8 - Entre a Terra e o Céu

9 - Nos Domínios da Mediunidade

10 - Ação e Reação

11 - Evolução em Dois Mundos

12 - Mecanismos da Mediunidade

13 - Conduta Espírita

14 - Sexo e Destino

15 - Desobsessão

16 - E a Vida Continua...


ÍNDICE

Na jornada evolutiva

CAPÍTULO 1 = Entre dois planos

CAPÍTULO 2 = A preleção de Eusébio

CAPÍTULO 3 = A Casa Mental

CAPÍTULO 4 = Estudando o cérebro

CAPÍTULO 5 = O poder do amor

CAPÍTULO 6 = Amparo fraternal

CAPÍTULO 7 = Processo redentor

CAPÍTULO 8 = No Santuário da Alma

CAPÍTULO 9 = Mediunidade

CAPÍTULO 10 = Dolorosa perda

CAPÍTULO 11 = Sexo

CAPÍTULO 12 = Estranha enfermidade

CAPÍTULO 13 = Psicose afetiva

CAPÍTULO 14 = Medida salvadora

CAPÍTULO 15 = Apelo cristão

CAPÍTULO 16 = Alienados mentais

CAPÍTULO 17 = No limiar das cavernas

CAPÍTULO 18 = Velha afeição

CAPÍTULO 19 = Reaproximação

CAPÍTULO 20 = No lar de Cipriana


Na jornada evolutiva

Dos quatro cantos da Terra diariamente partem viajores humanos, aos milhares, demandando o país da Morte. Vão-se de ilustres centros da cultura européia, de tumultuárias cidades americanas, de ve­lhos círculos asiáticos, de ásperos climas africanos. Procedem das metrópoles, das vilas, dos campos ...

Raros viveram nos montes da sublimação, vin­culados aos deveres nobilitantes. A maioria cons­titui-se de menores de espírito, em luta pela ou­torga de títulos que lhes exaltem a personalidade. Não chegaram a ser homens completos. Atraves­saram o “mare magnum” da humanidade em con­tínua experimentação. Muita vez, acomodaram-se com os vícios de toda a sorte, demorando volunta­riamente nos trilhos da insensatez. Apesar disso, porém, quase sempre se atribuíam a indébita con­dição de “eleitos da Providência”; e, cristalizados em tal suposição, aplicavam a justiça ao próximo, sem se com penetrarem das próprias faltas, esperan­do um paraíso de graças para si e um inferno de intérmino tormento para os outros. Quando perdi­dos nos intrincados meandros do materialismo cego, fiavam, sem justificativa, que no túmulo se lhes encerraria a memória; e, se filiados a escolas reli­giosas, raros excetuados, contavam, levianos e incon­seqüentes, com privilégios que jamais nada fizeram por merecer.

Onde albergar a estranha e infinita caravana? como designar a mesma estação de destino a viajan­tes de cultura, posição e bagagem tão diversas?

Perante a Suprema Justiça, o malgache e o inglês fruem dos mesmos direitos. Provavelmente, porém, estarão distanciados entre si, pela conduta Individual, diante da Lei Divina, que distingue, in­variavelmente, a virtude e o crime, o trabalho e a ociosidade, a verdade e a simulação, a boa vontade e a indiferença. Da contínua peregrinação do sepulcro, participam, todavia, santos e malfeitores, homens diligentes e homens preguiçosos.

Como avaliar por bitola única recipientes hete­rogêneos? Considerando, porém, nossa origem co­mum, não somos todos filhos do mesmo Pai? E por que motivo fulminar com inapelável condenação os delinqüentes, se o dicionário divino inscreve a letras de logo as palavras “regeneração”, “amor” e “mise­ricórdia”? Determinaria o Senhor o cultivo compul­sório da esperança entre as criaturas, ao passo que Ele mesmo, de Sua parte, desesperaria? Glorificaria a boa vontade, entre os homens, e conservar-se-ia no cárcere escuro da negação? O selvagem que haja eliminado os semelhantes, a flechadas, teria recebi­do no mundo as mesmas oportunidades de aprender que felicitam o europeu supercivilizado, que exter­mina o próximo à metralhadora? estariam ambos preparados ao ingresso definitivo no paraíso de bem-aventurança infindável tão sÔmente pelo ba­tismo simbólico ou graças a tardio arrependimento no leito de morte?

A lógica e o bom-senso nem sempre se com­padecem com argumentos teológicos imutáveis. A vida nunca interrompe atividades naturais, por im­posição de dogmas estatuídos de artifício. E, se mera obra de arte humana, cujo termo é a bolorenta placidez dos museus, exige a paciência de anos para ser empreendida e realizada, que dizer da obra sublime do aperfeiçoamento da alma, destinada a glórias imarcescíveis?

Vários companheiros de ideal estranham a co­operação de André Luiz, que nos tece informações sobre alguns setores das esferas mais próximas ao comum dos mortais.

Iludidos na teoria do menor esforço, inexistente nos círculos elevados, contavam com preeminência pessoal, sem nenhum testemunho de serviço e dis­tantes do trabalho digno, em um céu de gozos con­templativos, exuberante de conforto melifico. Pre­feririam a despreocupação das galerias, em beatitude permanente, onde a grandeza divina se limitaria a prodigioso. espetáculos, cujos números mais sur­preendentes estariam a cargo dos Espíritos Superio­res, convertidos em jograis de vestidura brilhante.

A missão de André Luiz é, porém, a de revelar os tesouros de que somos herdeiros felizes na Eter­nidade, riquezas imperecíveis; em cuja posse jamais entraremos sem a Indispensável aquisição de Sabe­doria e de Amor.

Para isto, não lidamos em milagrosos laboratórios de felicidade improvisada, onde se adquiram dotes de vil preço e ordinárias asas de cera. Somos filhos de Deus, em crescimento. Sela nos campos de forças condensadas, quais os da luta física, seja nas esfe­ras de energias sutis, quais as do plano superior, os ascendentes que nos presidem os destinos são de ordem evolutiva, pura e simples, com indefectível justiça a seguirmos de perto, à claridade gloriosa e com passiva do Divino Amor.

A morte a ninguém propIciará passaporte gra­tuito para a ventura celeste. Nunca promoverá com­pulsoriamente homens a anjos. Cada criatura trans-porá essa aduana da eternidade com a exclusiva bagagem do que houver semeado, e aprenderá que a ordem e a hierarquia, a paz do trabalho edifican­te, são característicos imutáveis da Lei, em toda parte.

Ninguém, depois do sepulcro, gozará de um descanso a que não tenha feito jus, porque “o Reino do Senhor não vem com aparências externas”.

Os companheiros que compreendem, na expe­riência humana, a escada sublime, cujos degraus há que vencer a preço de suor, com o proveito das bênçãos celestiais, dentro da prática Incessante do bem, não se surpreenderão com as narrativas do mensageiro interessado no servir por amor. Sabem eles que não teriam recebido o dom da vida para matar o tempo, nem a dádiva da’ fé para confundir os semelhantes, absorvidos, que se acham, na exe­cução dos Divinos Desígnios. Todavia, aos crentes do favoritismo, presos à teia de velhas ilusões, ainda quando se apresentem com os mais respeitáveis tí­tulos, as afirmativas do emissário fraternal provo­carão descontentamento e perplexidade.

É natural, porém: cada lavrador respira o ar do campo que escolheu.

Para todos, contudo, exoramos a bênção do Eterno: tanto para eles, quanto para nós.

EMMANUEL

Pedro Leopoldo, 25 de março de 1947.


1

Entre dois planos

Esplendia o luar, revestindo os ângulos da pai­sagem de intensa luz. Maravilhosos cúmulos a Oeste, espraiados no horizonte, semelhavam-se a castelos de espuma láctea, perdidos no imenso azul; confi­nando com a amplidão, o quadro terrestre contras­tava com o doce encantamento do alto, deixando entrever a vasta planície, recamada de arvoredo em pesado verde-escuro. Ao Sul, caprichosos cir­ros reclinavam-se do Céu sobre a Terra, simboli­zando adornos de gaze esvoaçante; evoquei, nesse momento, a juventude da Humanidade encarnada, perguntando a mim mesmo se aquelas bandas al­vas do firmamento não seriam faixas celestiais. a protegerem o repouso do educandário terrestre.

A solidão imponente do plenilúnio infundia-me quase terror pela melancolia de sua majestosa e indizível beleza.

A idéia de Deus envolvia-me o pensamento, arrancando-me notas de respeito e gratidão, que eu, entretanto, não chegava a emitir. Em plena casa da noite, rendia culto de amor ao Eterno, que lhe criara os fundamentos sublimes de silêncio e de paz, em refrigério das almas encarnadas na Crosta da Terra.

O luminoso disco lunar irradiava, destarte, ma­ravilhosas sugestões. Aos seus reflexos, iniciara-se a evolução terrena, e numerosas civilizações ha­viam modificado o curso das experiências humanaS. Aquela mesma lâmpada suspensa clareara o cami­nho dos seres primitivos, conduzira os passos dos conquistadores, norteara a jornada dos santos. Tes­temunha impassível, observara a fundação de cida­des suntuosas, acompanhando-lhes a prosperidade e a decadência; contemplara as incessantes renova­ções da geografia política do mundo; brilhara sobre a testa coroada dos príncipes e sobre o cajado de misérrimos pastores; presenciava, todos os dias, há longos milênios, o nascimento e a morte de milhões de seres. Sua augusta serenidade refletia a paz di­vina, Cá em baixo, desencarnados e encarnados, possuidores de relativa inteligência, podíamos pro­ceder a experimentos, reparar estradas, contrair compromissos ou edificar virtudes, entre a esperan­ça e a inquietação, aprendendo e recapitulando sem­pre; mas a Lua, solitária e alvinitente, trazia-nos a idéia da tranquilidade inexpugnável da Divina Lei.

— A região do encontro está próxima.

A palavra do Assistente Calderaro interrom­peu-me a meditação.

O aviso fazia-me sentir o trabalho, a respon­sabilidade; lembrava, sobretudo, que não me encontrava só.

Não viajávamos, ambos, sem objetivo.

Em breves minutos, partilharíamos os traba­lhos do Instrutor Eusébio, abnegado paladino do amor cristão, em serviço de auxílio a companheiros necessitados.

Eusébio dedicara-se, de há muito, ao ministé­rio do socorro espiritual, com vastíssimos créditos em nosso plano. Renunciara a posições de realce e adiara sublimes realizações, consagrando-se intei­ramente aos famintos de luz. Superintendia pres­tigiosa organização de assistência em zona inter­mediária, atendendo a estudantes relativamente espiritualizados, pois ainda jungidos ao círculo car­nal, e a discípulos recém-libertos do campo físico.

A enorme instituição, a que dedicava direção fulgurante, regurgitava de almas situadas entre as esferas inferiores e as superiores, gente com imen­sidão de problemas e de indagações de toda a es­pécie, a requerer-lhe paciência e sabedoria; entre­tanto, o indefesso missionário, mau grado ao cons­tante acúmulo de serviços complexos, encontrava tempo para descer semanalmente à Crosta Plane­tária, satisfazendo interesses imediatos de apren­dizes que se candidatavam ao discipulado, sem re­cursos de elevação para vir ao encontro de seu ver­bo iluminado, na sede superior.

Não o conhecia pessoalmente. Calderaro, po­rém, recebia-lhe a orientação, de conformidade com o quadro hierárquico, e a ele se referira com o entusiasmo do subordinado que se liga ao chefe, guardando o amor acima da obediência.

O Assistente, a seu turno, prestava serviço ativo na própria Crosta da Terra, a atender, de modo direto, aos irmãos encarnados. Especializa­ra-se na ciência do socorro espiritual, naquela que, entre os estudiosos do mundo, poderíamos chamar «psiquiatria iluminada», setor de realizações que há muito tempo me seduzia.

Dispondo de uma semana sem obrigações de­finidas, dentre os encargos que me diziam respeito, solicitei ingresso na turma de adestramento, da qual se fizera Calderaro eminente orientador, ten­do-me ele aceito com a gentileza característica dos legítimos missionários do bem e propondo-se con­duzir-me carinhosamente. Encontrava-se em opor­tunidade favorável aos meus propósitos de apren­der, pois a equipe de preparação, que lhe recebia ensinamentos, excursionava em outra região, a la­butar em atividades edificantes; à vista disso, po­deria dispensar-me toda a atenção, auxiliando-me os desejos.

Os casos que lhe eram atinentes, explicou-me solícito, não apresentavam continuidade substan­cial: desdobravam-se; constituíam obra de impro­viso, obedeciam ao inopinado das ordens de serviço ou das situações. Noutros campos de ação, fazia-se imprescindível o roteiro, previstas as condições e as circunstâncias. No quadro de responsabilidades, porém, que lhe estavam afetas, diferiam as normas; importava acompanhar os problemas, quais impre­vistas manifestações da própria vida. Em virtude de tais flutuações, não traçava, a rigor, programas quanto a particularidades. Executava os deveres que lhe competiam, onde, como e quando determi­nassem os desígnios superiores. O escopo funda­mental da tarefa circunscrevia-se ao socorro ime­diato aos infelizes, evitando-se, quanto possível, a loucura, o suicidio e os extremos desastres morais. Para isto, o missionário atuante era compelido a conhecer profundamente o jogo das forças psíqui­cas, com acendrado devotamento ao bem do pró­ximo. Calderaro, neste particular, não deixava perceber qualquer dúvida. A bondade espontânea lhe era indício da virtude, e a inquebrantável sereni­dade revelava-lhe a sabedoria.

Não lhe gozava o convívio desde muitos dias. Abraçara-o na véspera pela primeira vez; bastou, no entanto, um minuto de sintonia, para que se estabelecesse entre nós sadia intimidade. Embora lhe reconhecesse a sobriedade verbal, desde o mo­mento do nosso encontro permutávamos impres­sões como velhos amigos.

Seguindo-lhe, pois, os passos, afetuosamente, de alma edificada na fraternidade e na confiança, vi-me a reduzida distância de extenso parque, em plena natureza terrestre.

Em torno, árvores robustas, de copas farfa­lhantes, alinhavam-se, à maneira de sentinelas adrede postadas para velar-nos pelos serviços.

O vento passava cantando, em surdina; no recinto iluminado de claridades inacessíveis à faculdade receptiva do olhar humano, aglomeravam-se algumas centenas de companheiros, temporà­riamente afastados do corpo físico pela força li­berativa do sono.

Amigos de nossa esfera atendiam-nos com des­velo, mostrando interesse afetivo, prazer de servir e santa paciencia. Reparei que muitos se manti­nham de pé; outros, contudo, se acomodavam nas protuberâncias do solo alcatifado de relva macia, em palestra grave e respeitosa.

Ambientando-me para aquela hora de extrema beleza espiritual, Calderaro avisou-me:

— Na reunião de hoje o Instrutor Eusébio receberá estudantes do espiritualismo, em suas correntes diversas, que se candidatam aos serviços de vanguarda.

— Oh! — exclamei, curioso — Não se trata, pois, de assembleia, que agrupe indivíduos filia­dos indiscriminadamente às escolas da fé?

O Assistente esclareceu, de pronto:

— A medida não seria aconselhável no círculo de nossa especialidade. O Instrutor afeiçoou-se ao apostolado de assistência a criaturas encarnadas e a recém-libertas da zona física, em particular, pre­cisando aproveitar o tempo com as horas de pre­leção, para o máximo de aproveitamento. A hete­rogeneidade de princípios em centenas de indivi­duos, cada qual com sua opinião, obrigaria a di­gressões difusas, acarretando condenáveis desper­dícios de oportunidades.

Fixou a multidão demoradamente, e acres­centou:

— Temos aqui, em cálculo aproximado, mil e duzentas pessoas. Deste número oitenta per cento se constituem de aprendizes dos templos espiritua­listas, em seus ramos diversos, ainda inaptos aos grandes vôos do conhecimento, conquanto nutram fervorosas aspirações de colaboração no Plano Di­vino. São companheiros de elevado potencial de virtudes. Exemplificam a boa vontade, exercitam-se na iluminação interior através de esforço louvável; contudo, ainda não criaram o cerne da confiança para uso próprio. Tremem ante as tempestades naturais do caminho e hesitam no círculo das pro­vas necessárias ao enriquecimento da alma, exigindo de nós particular cuidado, pois que, pelos seus tes­temunhos de diligência na obra espiritualizante, são os futuros instrumentos para os serviços da frente. Apesar da claridade que lhes assinala as diretrizes, ainda padecem desarmonias e angústias, que lhes ameaçam o equilíbrio incipiente. Não lhes falece, porém, a assistência precisa. Instituições de restauração de forças abrem-lhes as portas acolhe­doras em nossas esferas de ação. A libertação pelo sono é o recurso imediato de nossas manifestações de amparo fraterno. A princípio, recebem-nos a in­fluência inconscientemente; em seguida, porém, for­talecem a mente. devagarinho, gravando-nos o con­curso na memória, apresentando idéias, alvitres, sugestões, pareceres e inspirações beneficentes e salvadoras, através de recordações imprecisas.

Fez breve pausa e concluiu:

— Os demais são colaboradores de nosso pla­no em tarefa de auxílio.

A organização dos trabalhos era digna de sin­cera admiração. Estávamos num campo substan­cialmente terrestre. A atmosfera, impregnada de aromas que o vento espargia em torno, recorda­va-me o lar na Terra, contornado de seu jardim, em noite cálida.

Que teria eu realizado no mundo físico se re­cebesse, em outro tempo, aquela bendita oportuni­dade de iluminação? Aquele punhado de mortais, sob os raios da Lua, afigurou-se-me assembleia de privilegiados, favorecidos por celestes numnes. Mi­lhões de homens e mulheres a dormir em cidades Próximas, algemados aos interesses imediatoS e ansiando a permuta das mais vis sensações, nem de longe suspeitariam a existência daquela original aglomeração de candidatos à luz intima, convoca­dos à preparação intensiva para incursões mais lon­gas e eficientes na espiritualidade superior. Teriam a noção do sublime ensejo que lhes aprazia? apro­veitariam a dádiva com suficiente compreensão dos valores eternos? marchariam desassombrados para a frente, OU estacionariam ao contacto dos primei­ros óbices, no esforço iluminativo?

Calderaro percebeu-me as silenciosas perquiri­ções e acrescentou:

— Nossa comunidade de trabalho se dedica, essencialmente, à manifestação do equilíbrio. Não ignoras que a. codificação do plano mental das criaturas ninguém jamais a impõe: é fruto de tem­po, de esforço, de evolução; e o edifício da socie­dade humana, em o atual momento do mundo, vem sendo abalado nos próprios alicerces, compelindo imenso número de pessoas a imprevistas renova­ções. Certo, não te surpreenderás se eu disser que, em face do surto da inteligência moderna, que em­bate na paralisia do sentimento, periclita a razão. O progreSsO material atordoa a alma do homem desatento. Grandes massas, há séculos, permane­cem distanciadas da luz espiritual. A civiliZaçãO puramente científica é um Saturno devorador, e a humanidade de agora se defronta com implacá­veis exigências de acelerado crescer mental. Daí o agravo de nossas obrigações no setor da assistên­cia. As necessidades de preparação do espírito in­tensificam-se em ritmo assustador.

Nesse instante, alcançamos a multidão pacífica.

Meu interlocutor sorriu, frisando:

— O acaso não opera prodígios. Qualquer rea­lização há que planejar, atacar, por a termo. Para que o homem físico se converta em homem espi­

ritual, o milagre exige muita colaboração de nossa parte.

Lançou-me olhar significativo e concluiu:

— As asas sublimes da alma eterna não se expandem nos acanhados escaninhos de uma cho­cadeira. Há que trabalhar, brunir, sofrer.

Nesse momento, aproximou-se alguém dirigin­do-nos a palavra: era um solícito companheiro, informando-nos que Eusébio penetrara o recinto. Efetivamente, em saliência próxima, comparecia o missionário, ladeado por seis assessores, todos envoltos em halos de intensa luz.

O abnegado orientador não exibia os traços de venerável senectude com que em geral imagi­namos os apóstolos das revelações divinas; mos­trava-se-nos com a figura dos homens robustos, em plena madureza espiritual; os olhos escuros e tranquilos pareciam fontes de imenso poder mag­nético. Contemplava-nos sorridente, qual simples colega.

A presença dele impusera, porém, respeitoso silencio. Cessaram todas as conversações que aqui e ali se entretinham, e ante os fios de luz que os trabalhadores de nosso plano teciam em derredor, isolando-nos de qualquer assédio eventual das for­ças inferiores, apenas o vento calmo erguia a voz, sussurrando algo de belo e misterioso à folhagem.

Sentamo-nos todos, à escuta, enquanto o Ins­trutor se mantinha de pé; observando-o, quase frente a frente, eu podia agora apreciar-lhe a fi­gura majestosa, respirando segurança e beleza. Do rosto imperturbável, a bondade e a compreensão, a tolerância e a doçura irradiavam simpatia inexce­dível. A túnica ampla, de tom verde-claro, emitia esmeraldinas cintilações. Aquela vigorosa persona­lidade infundia veneração e carinho, confiança e paz.

Consolidada a quietude no ambiente, elevou a destra para o Alto e orou com inflexão comove­dora:

Senhor da Vida,

Abençoa-nos o propósito

De penetrar o caminho da Luz!...

Somos Teus filhos,

Ainda escravos de círculos restritos,

Mas a sede do Infinito

Dilacera-nos os véus do ser.

Herdeiros da imortalidade,

Buscamos-Te as fontes eternas

Esperando, confiantes, em Tua misericórdia.

De nós mesmos, Senhor, nada podemos.

Sem Ti, somos frondes decepadas

Que o fogo da experiência

Tortura ou transforma...

Unidos, no entanto, ao Teu Amor,

Somos condicionadores gloriosos

De Tua Criação interminável.

Somos alguns milhares

Neste campo terrestre;

E, antes de tudo,

Louvamos-Te a grandeza

Que não nos oprime a pequenez...

Dilata-nos a percepção diante da vida,

Abre-nos os olhos

Enevoados pelo sono da ilusão

Para que divisemos Tua glória sem fim!...

Desperta-nos docemente o ouvido,

A fim de percebermos o cântico

De tua sublime eternidade.

Abençoa as sementes de sabedoria

Que os teus mensageiros esparziram

No campo de nossas almas;

Fecunda-nos o solo interior,

Para que os divinos germens não pereçam.

Sabemos, Pai,

Que o suor do trabalho

E a lágrima da redenção

Constituem adubo generoso

A floração de nossas sementeiras;

Todavia,

Sem Tua bênção,

O suor elanguesce

E a lágrima desespera...

Sem Tua mão compassiva,

Os vermes das paixões

E as tempestades de nossos vícios

Podem arruinar-nos a lavoura incipiente.

Acorda-nos, Senhor da Vida,

Para a luz das oportunidades presentes;

Para que os atritos da luta não as inutilizem,

Guia-nos os pés para o supremo bem;

Reveste-nos o coração

Com a Tua serenidade paternal,

Robustecendo-nos a resistência!

Poderoso Senhor,

Ampara-nos a fragilidade,

Corrige-nos os erros,

Esclarece-nos a ignorância,

Acolhe-nos em Teu amoroso regaço.

Cumpram-se, Pai Amado,

Os Teus desígnios soberanos,

Agora e sempre.

Assim seja.

Finda a comovente rogativa, o orientador bai­xou os olhos nevoados de pranto, e então vi, domi­nado de júbilo, que da incognoscível altura uma claridade diferente caía sobre nós, em jorros cris­talinos.

Partículas semelhantes a prata eterizada cho­viam no recinto, infiltrando-se nas raízes das ár­vores mais próximas, lá fora.

Ignoto encantamento fizera-se em minhalma. Ao contacto dos eflúvios divinos, reparei que minhas forças gradualmente serenavam, em receptivi­dade maravilhosa. Em torno, pairavam as mesmas notas de alegria e de beleza, pois a calma e a ven­tura transpareciam de todos os rostos, voltados, extáticos, para o Instrutor, em redor do qual se mostravam mais intensas as ondas de luz celeste.

Sublime felicidade inundava-me todo o ser, mer­gulhara-me em indefinível banho de energias re­novadoras.

Meus olhos foram impotentes para conter as lágrimas felizes que as formosas cintilações me destilavam das fontes ocultas do espírito. E, antes que o nobre mentor retomasse a palavra, agradeci em silêncio a resposta do Céu, reconhecendo na prece, mais uma vez, não só a manifestação da re­verência religiosa, senão também o recurso de aces­so aos inesgotáveis mananciais do Divino Poder.


2

A preleção de Eusébio

Erecto, incendido o tórax de suave luz, falou o Instrutor, comovedoramente:

— «Dirigimo-nos a vós, irmãos, que tendes, por enquanto, ensejo de aprender na bendita escola carnal.

«Tangidos pela necessidade, na sede de ciên­cia ou na angústia do amor que transpõe abismos, vencestes pesadas fronteiras vibratórias, encontran­do-vos na estaca zero do caminho diferente que se vos antolha. Enquanto vossa organização fisioló­gica repousa a distância, exercitando-se para a morte, vossas almas quase libertas partilham co­nosco a fraternidade e a esperança, adestrando faculdades e sentimentos para a verdadeira vida.

«Naturalmente, não podereis guardar plena re­cordação desta hora, em retomando o envoltório carnal, em virtude da deficiência do cérebro, inca­paz de suportar a carga de duas vidas simultâ­neas; a lembrança de nosso entendimento persis­tirá, contudo, no fundo de vosso ser, orientando­-vos as tendências superiores para o terreno da elevação e abrindo-vos a porta intuitiva para que vos assista nosso pensamento fraternal».

O orador fez breve pausa, fixando-nos o olhar calmo e lúcido, e, sob a leve e incessante chuva de raios argênteos, continuou:

— Enfastiados das repetidas sensações no pla­no grosseiro da existência, intentais pisar outros domínios. Buscais a novidade, o conforto desco­nhecido, a solução de torturantes enigmas; todavia, não olvideis que a chama do próprio coração, con­vertido em santuário de claridade divina, é a única lâmpada capaz de iluminar o mistério espiritual, em nossa marcha pela senda redentora e evolutiva. Ao lado de cada homem e de cada mulher, no mundo, permanece viva a Vontade de Deus, rela­tivamente aos deveres que lhes cumprem. Cada qual tem à sua frente o serviço que lhe compete, como cada dia traz consigo possibilidades especiais de realização no bem. O Universo enquadra-se na ordem absoluta. Aves livres em limitados céus, interferimos no plano divino, criando para nós pri­sões e liames, libertação e enriquecimento. Insta, pois, nos adaptemos ao equilíbrio divino, atendendo à função insulada que nos cabe, em plena colmeia da vida.

“Desde quando fazemos e desfazemoS, termi­namos e recomeçamos, empreendemos a viagem re­paradora e regressamos, perplexos, para o reinício? Somos, no palco da Crosta planetária, os mesmos atores do drama evolutivo. Cada milênio é ato breve, cada século um cenário veloz. Utilizando corpos sagrados, perdemos, entretanto, quais des­preocupadas crianças, entretidas apenas em jogos infantis, o ensejo santificante da existência; des­tarte, fazemo-nos réprobos das leis soberanas, que nos enredam aos escombros da morte, como náu­fragos piratas por muito tempo indignos do retor­no às lides do mar. Enquanto milhões de almas desfrutam bons ensejos de emenda e reajusta­mento, de novo entregues ao esforço regenerativo nas cidades terrestres, milhões de outras deploram a própria derrota, perdidas no atro recesso da de­silusão e do padecimento.

(Não nos reportamos aqui aos missionários heróicos que suportam as sangrentas feridas dos testemunhos angustiosos, por espírito de renún­cia e de amor, de solidariedade e de sacrifício; são luzes provisoriamente apartadas da Luz Divina e que voltam ao domicilio celeste, como o trabalha­dor fiel regressa ao lar, finda a cotidiana tarefa.

«Referimo-nos às bastas multidões de almas indecisas, presas da ingratidão e da dúvida, da fra­queza e da dissipação, almas formadas à luz da razão, mas escravizadas à tirania do instinto».

E num rasgo de humildade cristã, Eusébio continuou:

- «Falamos de todos nós, viajores que ex­travagamos no deserto da própria negação; de nós, pássaros de asas partidas, que tentamos voar ao ninho da liberdade e da paz, e que, no entanto, ainda nos debatemos no chavascal dos prazeres de ínfima estofa. Porque não represar o curso das paixões corrosivas que nos flagelam o espírito? porque não sofrear o ímpeto da animalidade, em que nos comprazemos, desde os primeiros laivos de raciocínio? Sempre o terrível dualismo da luz e das trevas, da compaixão e da perversidade, da inteligência e do impulso bestial. Estudamos a ciência da espiritualidade consoladora desde os pri­mórdios da razão, e, todavia, desde as épocas mais remotas, consagramo-nos ao aviltamento e ao mor­ticínio.

«Cantávamos hinos de louvor com Krishna, aprendendo o conceito da imortalidade da alma, à sombra das árvores augustas que aspiram aos cimos do Himalaia, e descíamos, logo depois, ao vale do Ganges, matando e destruindo para gozar e possuir. Soletrávamos o amor universal com Sidarta Gautama, e perseguíamos os semelhantes, em aliança com os guerreiros cingaleses e hindus. Fomos herdeiros da Sabedoria, nos tempos distan­tes da Esfinge, e, no entanto, da reverência aos mistérios da iniciação passávamos à hostilidade san­guissedenta, nas margens do Nilo. Acompanhando a arca simbólica dos hebreus, reiteradas vezes lía­mos os mandamentos de Jeová, contidos nos rolos sagrados, e, desatentos, os esquecíamos, ao pri­meiro clangor de guerra aos fiisteus. Chorávamos de comoção religiosa em Atenas, e assassinávamos nossos irmãos em Esparta. Admirávamos Pitágoras, o filósofo, e seguíamos Alexandre, o conquista­dor. Em Roma, conduzíamos oferendas valiosas aos deuses, nos maravilhosos santuários, exaltando a virtude, para desembainhar as armas, minutos de­pois, no átrio dos templos, disseminando a morte e entronizando o crime; escrevíamos formosas sen­tenças de respeito à vida, com Marco Aurélio, e ordenávamos a matança de pessoas limpas de culpa e úteis à sociedade. Com Jesus, o Divino Crucifi­cado, nossa atitude não tem sido diferente. Sobre os despojos dos mártires, imolados nos circos, ver­temos rios de sangue em vindita cruel, armando fo­gueiras do sectarismo religioso. Suportamos admi­nistradores arbitrários e ignominiosos, de Nero a Diocleciano, porque tínhamos fome de poder, e quando Constantino nos abriu as portas da domi­nação política, convertemo-nos de servos aparente­mente fiéis ao Evangelho em criminosos árbitros do mundo. Pouco a pouco esquecemos os cegos de Jericó, os paralíticos de Jerusalém, as crianças do Tiberíades, os pescadores de cafarnaum, para afagar as testas coroadas dos triunfadores, embora soubéssemos que os vencedores da Terra não po­dem fugir à peregrinação ao sepulcro. Tornou-se a ideia do Reino de Deus fantasia de ingênuos, pois não largávamos o lado direito dos príncipes, sequio­sos de fastígio mundano. Ainda hoje, decorridos quase vinte séculos sobre a cruz do Salvador, ben­zemos baionetas e canhões, metralhadoras e tan­ques de assalto, em nome do Pai Magnânimo, que faz refulgir o sol da misericórdia sobre os justos e sobre os injustos.

«É por esta razão que nossos celeiros de luz permanecem vazios. O vendaval das paixões fulminantes de homens e de povos passa ululante, de um a outro pólo, a semear maus presságios.

«Até quando seremos gênios demolidores e per­versos? Ao invés de servos leais do Senhor da Vida, temos sido soldados dos exércitos da ilusão, deixando à retaguarda milhões de túmulos, abertos sob aluviões de cinza e fumo. Debalde exortou-nos o Cristo a buscar as manifestações do Pai em nosso próprio Intimo. Cevamos e expandimos üni­camente o egoísmo e a ambição, a vaidade e a fantasia na Crosta Planetária. Contraímos pesa­dos débitos e escravizamo-nos aos tristes resulta­dos de nossas obras, deixando-nos ficar, indefini­damente, na messe dos espinhos.

«Foi assim que atingimos a época moderna, em que a loucura se generaliza e a harmonia mental do homem está a pique de soçobro. De cérebro evolvido e coração imaturo, requintamo-nos, pre­sentemente, na arte de esfacelar o progresso es­piritual. »

O excelso orientador deu à oração mais longo intervalo, durante o qual observei companheiros em torno. Homens e mulheres, segurando alguns for­temente as mãos uns dos outros, exibiam extrema palidez no semblante estarrecido. Alguns deles, por certo, compareciam ali pela primeira vez, como eu, dado o extático assombro que se lhes estampava no rosto.

Fixando na assembléia o olhar percuciente, o Instrutor prosseguiu:

— (Nos séculos pretéritos, as cidades flores­centes do mundo desapareciam pelo massacre, ao gládio dos conquistadores sem entranhas, ou esta­cionavam sob a onda mortífera da peste desconhe­cida e não atacada. Hoje, as coletividades huma­nas ainda sofrem o assédio da espada homicida, e chuvas de bombas arremetem contra populações indefesas; no entanto, a febre amarela, a cólera e a varíola foram dominadas; a lepra, a tuberculose

e o câncer experimentam combate sem tréguas. Existe, porém, nova ameaça ao domicílio terrestre:

o profundo desequilíbrio, a desarmonia generali­zada, as moléstias da alma que se ingerem, sutis, solapando-vos a estabilidade.

«Vossos caminhos não parecem percorridos por seres conscientes, mas semelham-se a estranhas veredas, ao longo das quais tripudiam duendes alu­cinados. Como fruto de eras sombrias, caracteriza­das pela opressão e maldade recíprocas, em que temos vivido, odiando-nos uns aos outros, vemos a Terra convertida em campo de quase intérminas hostilidades. Homens e nações perseguem o mito do ouro fácil; criaturas sensíveis abandonam-se aos distúrbios das paixões; cérebros vigorosos perdem a visão interior, enceguecidos pelos enganos da per­sonalidade e do autoritarismo. Empenhados em disputas intermináveis, em duelos formidandos de opinião, conduzidos por desvairadas ambições infe­riores, os filhos da Terra abeiram-se de novo abis­mo, que o olhar conturbado não lhes deixa perce­ber. Esse hiante vórtice, meus irmãos, é o da alie­nação mental, que não nos desintegra só os patri­mônios celulares da vida física, senão também nos atinge o tecido sutil da alma, invadindo-nos o cerne do corpo perispiritual. Quase todos os quadros da civilização moderna se acham comprometidos na estrutura fundamental. Precisamos, pois, mobili­zar todas as forças ao nosso alcance, a serviço da causa humana, que é a nossa própria causa.

«O trabalho salvacionista não é exclusividade da religião: constitui ministério comum a todos, porque dia virá em que o homem há de reconhecer a Divina Presença em toda a parte. A realização que nos compete não se filia ao particularismo: é obra genérica para a coletividade, esforço do servidor honesto e sincero, interessado no bem de todos.

“Se visuais a nossa companhia buscando orien­tação para o trabalho sublime do espírito, não vos esqueça vossa luz própria. Não conteis com archo­tes alheios para a jornada. Em míseros planos de sofrimento regenerador, nas vizinhanças da carne, choram amargamente milhões de homens e de mu­lheres que abusaram do concurso dos bons, preci­pitando-se nas trevas ao perder no túmulo os olhos efêmeros com que apreciavam a paisagem da vida à luz do Sol. Displicentes e recalcitrantes, esqui­varam-se a todas as oportunidades de acender a própria lâmpada. Aborreciam os atritos da luta, elegeram o gozo corporal como objetivo supremo de seus propósitos na Terra; e, quando a morte lhes cerrou as pálpebras saciadas, passaram a co­nhecer uma noite mais longa e mais densa, referia de angústias e de pavores.»

Nesse momento, Eusébio interrompeu-se por mais de um minuto, como a recordar cenas como­vedoras que as imagens de seu verbo evocavam, demonstrando certa vaguidade no olhar.

Notei a ansiedade com que a assembléia aguar­dava o retorno de sua palavra. Damas sensibiliza­das ressumbravam forte impressão nas fisionomias transfiguradas, e todos nós, ante a exposição leal e comovente, nos mantínhamos quedos e aturdidos.

Decorridos longos segundos, o orador prosse­guiu com inflexão enérgica e patriarcal:

- «Procurais conosco a precisa orientação para os trabalhos que vos tangem presentemente na Crosta da Terra. Seduzidos pela claridade da Esfera Superior, fascinados pelas primeiras noções do amor universal, desejais a graça da cooperação na sementeira do porvir. Reclamais asas para os surtos sublimes, tendes em mira coadjuvar no es­forço de elevação.

Indubitavelmente, a intenção não pode ser mais nobre; é, entretanto, indispensável conside­reis a vossa necessidade de integração no dever de cada dia. Impossível é progredir no século, sem atender às obrigações da hora - Torna-se impres­cindível, na atualidade, recompor as energias, rea­justar as aspirações e santificar os desejos.

- Não basta crer na imortalidade da alma. Ina­diável é a iluminação de nós mesmos, a fim de que sejamos claridade sublime. Não basta, para o arro­jado cometimento da redenção, o simples reconhe­cimento da sobrevivência da alma e do intercâmbio entre os dois mundos. Os levianos e os maus, os ignorantes e os estultos, podem corresponder-se igualmente a distância, de país a país. Antes de mais nada importa elevar o coração, romper as muralhas que nos encerram na sombra, esquecer as ilusões da posse, dilacerar os véus espessos da vaidade, abster-se do letal licor do personalismo aviltante, para que os clarões do monte refuljam no fundo dos vales, a fim de que o sol eterno de Deus dissipe as transitórias trevas humanas.

«Vanguardeiros da fé viva, que o desejais ser doravante no mundo, não obstante os percalços que se nos defrontam, exige-se de vós a cabal demons­tração de estardes certos da espiritualidade divina.

«O Plano Superior não se interessa pela incor­poração de devotos famintos de um paraíso beati­fico. Admitiríeis, porventura, vossa permanência na Crosta Planetária, sem finalidades específicas? se a erva tenra deve produzir consoante objetivos superiores, que dizer da magnífica inteligência do homem encarnado? que não há que esperar da razão iluminada pela fé! Receberíamos tão sagra­dos depósitos de conhecimento edificante para um sacrifício por nada? teríamos o aljôfar de tais ben­çãos para fortalecer o propósito egoístico de al­cançar o céu sem escalas preparatórias, sem ati­vidades purificadoras?

«Nossa meta, meus amigos, não se compadece com o exclusivismo ególatra. A Porta Divina não se abre a espiritos que se não divinizaram pelo trabalho incessante de cooperação com o Pai Al­tíssimo. E o solo do Planeta, a que vos prendeis provisôriamente, representa o abençoado círculo de colaboração que o Senhor vos confia. Recolhei o orvalho celeste no escrínio do coração sedento de paz; contemplai as estrelas que nos acenam de longe, como sublimes ápices da Divindade; toda­via, não olvideis o campo de lutas presentes.

«O espiritualismo, nos tempos modernos, não pode restringir Deus entre as paredes de um tem­plo da Terra, porque a nossa missão essencial é a de converter toda a Terra no templo augusto de Deus.

«Para a nossa vanguarda de obreiros decidi­dos e valorosos passou a face de experimentação fútil, de investigações desordenadas, de raciocínios periféricos. Vivemos a estruturação de sentimentos novos, argamassando as colunas do mundo vindou­ro, com a luz acesa em nosso campo íntimo. Na­tural é que os aprendizes recém-chegados experi­mentem, examinem, operem sondagens e evoquem teorias brilhantes, em que as hipóteses concorram ao lado da exibição personalista: compreensível e razoável. Toda escola caracteriza-se pelos diversos cursos, que lhe formam os quadros e as disciplinas. Não nos dirigimos aqui, porém, aos que ainda so­nham na clausura do «eu», enredados nos mil obs­táculos da fantasia que lhes cristaliza as impres­sões. Falamos a vós outros, que sentis a sede de universalismo, anônimos companheiros da humani­dade que se esforça por emergir das trevas para a luz. Como aceitardes a estagnação como princípio e a felicidade exclusivista como fim?

«Alimentemos a esperança renovadora. Não invoqueis Jesus para justificar anseios de repouso indébito. Ele não atingiu as culminâncias da Res­surreição sem subir ao Calvário, e as suas lições referem-se à fé que transporta montanhas.

Não reclamemos, pois, ingresso em mundos felizes, antes de melhorar o nosso próprio mundo. Esquecei o velho erro de que a morte do corpo constitui milagrosa imersão da alma no rio do encantamento. Rendamos culto à vida permanente, à justiça perfeita, e adaptemo-nos à Lei que nos apreciará o mérito sempre de conformidade com as nossas próprias obras.

«Nosso ministério é de iluminação e de eter­nidade.

«O Governo Universal não nos circunscreveu as atividades à guarda de altares perecíveis. Não fomos convocados a velar no círculo particular duma interpretação exclusivista, senão a cooperar na libertação do espírito encarnado, abrindo hori­zontes mais claros à razão humana, refazendo o edifício da fé redentora que as religiões literalistas esqueceram.

«Sopros imensos da onda evolucionista varrem os ambientes da Terra. Todos os dias ruem prin­cípios convencionais, mantidos a titulo de inviolá­veis durante séculos. A mente humana, perplexa, écompelida a transições angustiosas. A subversão de valores, a experiência social e o processo acelerado de seleção pelo sofrimento coletivo perturbam os timidos e os invigilantes, que representam esma­gadora maioria em toda parte... Como atender a esses milhões de necessitados espirituais, se não receberdes a responsabilidade do socorro fraterno? como sanar a loucura incipiente, se não vos trans­formardes em ímãs que mantenham o equilíbrio? Sabemos que a harmonia interior não é artigo de oferta e procura nos mercados terrestres, mas aqui­sição espiritual só acessível no templo do Espírito.

«Faz-se, pois, mister acendamos o coração em amor fraternal, à frente do serviço. Não bastará, em nossas realizações, a crença que espera; indis­pensável é o amor que confia e atende, transforma e eleva, como vaso legítimo da Sabedoria Divina.

«Sejamos instrumentos do bem, acima de ex­pectantes da graça. A tarefa demanda coragem e suprema devoção a Deus. Sem que nos convertamos em luz, no círculo em que estivermos, em vão acometeremos a sombra, aos nossos próprios pés. E, no prosseguimento da ação que nos com­pete, não nos esqueçamos de que a evangelização das relações entre as esferas visíveis e invisíveis é dever tão natural e tão inadiável da tarefa quan­to a evangelização das pessoas.

Não busqueis o maravilhoso: a sede do mi­lagre pode viciar-vos e perder-vos.

“Vinculai-vos, pela oração e pelo trabalho cons­trutivo, aos planos superiores, e estes vos propor­cionarão contacto com os Armazéns Divinos, que suprem a cada um de nós segundo a justa neces­sidade.

“As ordenações que vos ajoujam na paisagem terrena, por mais ásperas ou desagradáveis, representam a Vontade Suprema.

«Não galgueis os obstáculos, nem tenteis con­torná-los pela fuga deliberada: vencei-os, utilizan­do a vontade e a perseverança, ensejando cresci­mento aos vossos próprios valores.

«Cuidai em não transitar sem a devida pru­dência nos caminhos da carne, em que, muita vez, imitais a mariposa estouvada. Atendei as exigên­cias de cada dia, rejubilando-vos por satisfazer as tarefas mínimas.

«Não intenteis o voo sem haver aprendido a marcha.

Sobretudo, não indagueis de direitos prová­veis que vos caberiam no banquete divino, antes de liquidar os compromissos humanos.

Impossível é o título de anjos, sem serdes, antes, criaturas ponderadas.

«Soberanas e indefectíveis leis nos presidem aos destinos. Somos conhecidos e examinados em toda parte.

«As facilidades concedidas aos espíritos san­tificados, que admiramos, são prodigalizadas a nós, por Deus, em todos os lugares. O aproveitamento, porém, é obra nossa. As máquinas terrestres podem alçar-vos o corpo físico a consideráveis alturas, mas o voo espiritual, com que vos libertareis da animalidade, jamais o desferireis sem asas próprias.

A consolação e a amizade de benfeitores en­carnados e desencarnados enriquecer-vos-ão de con­forto, quais suaves e abençoadas flores da alma; entretanto, fenecerão como as rosas de um dia, se não fertilizardes o coração com a fé e o entendi­mento, com a esperança inquebrantável e o amor imortal, sublimes adubos que lhes propiciem o de­senvolvimento no terreno do vosso esforço sem tréguas.

“Não cobiceis o repouso das mãos e dos pés; antes de abrigar semelhante propósito, procurai a paz interior na suprema tranquilidade da cons­ciência.

«Abandonai a ilusão, antes que a ilusão vos abandone.

«Empolgando a chefia da própria existência, deixai plantado o bem na esteira de vossos passos.

«Somente os servos que trabalham gravam no tempo os marcos da evolução; só os que se banham no suor da responsabilidade conseguem cunhar novas formas de vida e de ideal renova­dor. Os demais, chamem-se monarcas ou príncipes, ministros ou legisladores, sacerdotes ou generais, entregues à ociosidade, classificam-se na ordem dos sugadores da Terra; não chegam a assinalar sua permanência provisória na Crosta do Planeta; ade­jam como insetos multicores, tornando à poeira de que se alçaram por alguns minutos.

(Regressando, pois, ao corpo de carne, valei-vos da luz para as edificações necessárias.

Participemos do glorioso Espírito do Cristo.

«Convertamo-nos em claridade redentora.

“O desequilíbrio generalizado e crescente in­vade os departamentos da mente humana. Combatem-se, desesperadamente, as nações e as ideo­logias, os sistemas e os princípios. Estabelecida a trégua nas lutas internacionais, surgem deplorá­veis guerras civis, armando irmãos contra irmãos. A indisciplina fomenta greves, a ânsia de liberta­ção perturba o domicílio dos povos. Guerreiam-se as esferas de ação entre si; encarnados e desen­carnados de tendências inferiores colidem feroz-mente, aos milhões. Inúmeros lares transformam-se em ambientes de inconformação e desarmonia. Duela o homem consigo mesmo no atual processo acelerado de transição.

«Equilibrai-vos, pois, na edificação necessária, convictos de que é impossível confundir a Lei ou trair-lhe os ditames universais!»

Perorando, Eusébio proferiu bela e sentida prece, invocando as bênçãos divinas para a assembléia. Sublimes manifestações de luz fizeram-se, então, sentir sobre nós.

Encerrados os trabalhos, os companheiros ainda presos ao círculo carnal começaram a reti­rar-se em respeitoso silêncio.

Calderaro conduziu-me à presença do Instru­tor e apresentou-me. O alto dirigente recebeu-me com afabilidade e doçura, cumnulando-me de pala­vras de incentivo. Precisávamos servir, explicou ele, encarecendo as necessidades de assistência es­piritual amontoadas em toda a parte, reclamando cooperadores abnegados e fiéis.

Quando Calderaro se referiu aos meus proje­tos, mostrou-me Eusébio paternal sorriso e, expon­do-nos providências diversas a tomar, recomendou nos pusessemos em contacto com o grupo socor­rista a que o Assistente emprestava ativa cola­boração.

Logo após, ao retirar-se, ladeado pelos asses­sores que lhe compunham a comitiva, o nobre men­tor confortou-me, bondoso:

— Sê feliz!

Dirigindo a Calderaro expressivo olhar, acres­centou:

— Dado ensejo, conduze-o ao serviço de as­sistência às cavernas.

Tomado de curiosidade, agradeci sensibiliza­do e dispus-me a esperar.


3

A Casa Mental

Retomando a companhia de Calderaro, na ma­nhã luminosa, absorvia-me o propósito de enrique­cer noções pertinentes às manifestações da vida próxima à esfera física.

Admitido à colônia espiritual, que me recebera com extremado carinho, conhecia de perto alguns instrutores e fiéis operários do bem.

Inquestionavelmente, vivíamos todos em inten­so trabalho, com escassas horas reservadas a excursões de entretenimento; demais, fruíamos am­biente de felicidade e alegria a favorecer-nos a marcha evolutiva. Nossos templos constituíam, por si sós, abençoados núcleos de conforto e de revi­goramento. Nas associações culturais e artísticas encontrávamos a continuidade da existência terres­tre, enriquecida, porém, de múltiplos elementos educativos, O campo social regurgitava de oportu­nidades maravilhosas para a aquisição de inesti­máveis afeições. Os lares, em que situávamos o serviço diuturno, erguiam-se entre jardins encan­tadores, quais ninhos tépidos e venturosos em frondes perfumadas e tranquilas.

Não nos faltavam determinações e deveres, or­dem e disciplina; entretanto, a serenidade era nosso clima, e a paz, nossa dádiva de cada dia.

Arremessara-nos a morte a atmosfera estra­nha à luta física. A primeira sensação fora o choque. Empolgara-nos o imprevisto. Continuávamos vivendo, apenas sem a máquina fisiolõgica, mas as novas condições de existência não significavam sub­tração da oportunidade de evolver. Os motivos de competição benéfica, as possibilidades de cresci­mento espiritual haviam lucrado infinitamente. Po­díamos recorrer aos poderes superiores, entreter relações edificantes, tecer esperanças e sonhos de amor, projetar experiências mais elevadas no setor reencarnacionista, aprimorando-nos no trabalho e no estudo e dilatando a capacidade de servir.

Em suma, a passagem pelo sepulcro conduzi­ra-nos a uma vida melhor; mas... e os milhões que transpunham o estreito limiar da morte, per­manecendo apegados à Crosta da Terra.

Incalculáveis multidões desse gênero manti­nham-se na fase rudimentar do conhecimento; ape­nas possuíam algumas informações primárias da vida; exoravam amparo dos Espíritos Superiores, como as tribos primitivas reclamam o concurso dos homens civilizados; precisavam de desenvolver fa­culdades, como as crianças de crescer; não perma­neciam chumbadas à esfera carnal por maldade, senão que se demoravam, hesitantes, no chão ter­reno, como os pequeninos descendentes dos homens se conchegam ao seio materno; guardavam da exis­tência apenas a lembrança do campo sensitivo, reclamando a reencarnação quase imediata quando lhes não era possível a matrícula em nossos edu­candários de serviço e aprendizado iniciais. Por outro lado, verdadeiras falanges de criminosos e transviados agitavam-se, não longe de nós, depois de haverem transposto as fronteiras do túmulo; consumiam, por vezes, inúmeros anos entre a re­volta e a desesperação, personificando hórridos gê­nios da sombra, como ocorre, nos círculos terre­nos, com os delinqüentes contumazes, segregados da sociedade sadia; mas sempre terminavam a cor­rida louca nos desvios escuros do remorso e do so­frimento, penitenciando-se, por fim, de suas perver­sidades. O arrependimento é, porém, caminho para a regeneração e nunca passaporte direto para o céu, razão pela qual esses infelizes formavam qua­dros vivos de padecimento e de horror.

Em várias experiências, via-os conturbados e aflitos, assumindo formas desagradáveis ao olhar.

Nos casos de obsessão convertiam-se em recí­procos algozes, ou, então, em verdugos frios das vítimas encarnadas; quando errantes ou circuns­critos aos vales de punição, aterravam sempre pe­los espetáculos de dor e de miséria sem limites.

No entanto, era forçoso convir, eles, os des­venturados, e nós outros, que continuávamos trabalhando em ritmo normal, atravessáramos por­tas idênticas. Talvez, em muitos casos, houvésse­mos abandonado o invólucro material sob o assé­dio de doenças análogas. Isto considerando, e por desejar conhecer a Divina Lei, que não concede paraísos de favor, nem estabelece infernos eternais, confrangia-me o contemplar as imensas filei­ras de infortunados.

Efetivamente, identificara numerosos deles em câmaras retificadoras, através de múltiplas instituições de beneficência; todavia, esses, situados na zona de amparo fraterno, apresentavam a seu fa­vor sintomas de melhora quanto ao reconhecimento das próprias falhas ou aos créditos espirituais de que gozavam, mercê de certas forças intercessoras.

Os infelizes, a que aludimos, provinham, po­rém, de outras origens. Eram os ignorantes, os revoltados, os perturbadores e os impenitentes, de alma impermeável às advertências edificantes, os enfatuados e os vaidosos dos mais vários matizes, perseverantes no mal, dissipadores da energia aní­mica, em atitudes perversas diante da vida.

Meu contacto com eles, em diversas ocasiões, fora simples encontro fortuito, sem maior signifi­cação para meu esclarecimento.

Por que motivo se demoravam tanto no he­misfério obscuro da incompreensão? adiavam, deliberadamente, a recepção da luz? não lhes doeria a condição de seres condenados, por si mesmos, a longas penas? não experimentariam vergonha pela perda voluntária de tempo? Muita vez, surpreen­dia-me a contemplá-los... Os traços fisionômicos de muitos desses desventurados pareciam monstruo­so desenho, provocando ironia e piedade. Que lei regeria a estereotipação de suas formas? Tê-los-ia olvidado a mãe-natureza, pródiga de bênçãos em todos os planos, ou recebiam eles esses traços de apresentação pessoal como castigo imposto por su­periores desígnios?

Tais interrogações que me esfervilhavam no cérebro me punham aflito por viver a possibilidade que se me oferecia.

Aproximei-me de Calderaro, naquela manhã, sedento de saber. Expus-lhe minhas indagações ín­timas, relatei-lhe aos ouvidos tolerantes minha expectativa ansiosa, longamente sofreada; preten­dia conhecer os que se entretinham na maldade, no crime, na inconformação.

Meu amigo escutou calmo, sorriu benévola-mente e começou por esclarecer:

— Antes de mais nada, André, modifiquemos o conceito. Para transformar-nos em legítimos ele­mentos de auxílio aos Espíritos sofredores, desen­carnados ou não, é-nos imprescindível compreen­der a perversidade como loucura, a revolta como ignorância e o desespero como enfermidade.

Ante a minha perplexidade, acrescentou, fra­ternal:

- Entendeste? Estas definições, em verdade, não são minhas. Aprendemo-las do Cristo, em seu trato divino com a nossa posição de inferioridade, na Crosta Terrestre.

Julguei que o Instrutor se estendesse em lon­ga exposição verbalista, relativa ao assunto, trazendo referênéias preciosas e comentando expe­riências pessoais. Nada disto; Calderaro infor­mou-me simplesmente:

— A cegueira do espírito é fruto da espessa ignorância em manifestações primárias ou do obnu­bilamento da razão nos estados de aviltamento do ser. Nosso interesse, no socorro à mente desequi­librada, é analisar este último aspecto da sombra que pesa sobre as almas; assim sendo, faz-se mis­ter saberes alguma coisa da loucura no âmbito da civilização. Para isto, convém estudarmos, mais detidamente, o cérebro do homem encarnado e o do homem desencarnado em posição desarmônica, por situarmos aí o órgão de manifestação da ati­vidade espiritual.

Desejaria continuar ouvindo-o nas explicações claras e convincentes, a lhe fluírem dos lábios, mas Calderaro silenciou para afirmar, passados alguns instantes:

— Não disponho de muito tempo para discre­tear de matéria estranha aos meus serviços; toda­via, lidaremos juntos, convictos de que, trabalhan­do nas boas obras, aprenderemos sempre a ciência da elevação.

Sorriu, fraternal, e rematou:

— O verbo gasto em serviços do bem é ci­mento divino para realizações imorredouras. Conversaremos, pois, servindo aos nossos semelhantes de modo substancial, e nosso lucro será crescente.

Calei-me, edificado.

Daí a minutos, acompanhando-o, penetrei vasto hospital, detendo-nos diante do leito de certo en­fermo, que o Assistente deveria socorrer. Abatido e pálido, mantinha-se ele unido a deplorável enti­dade de nosso plano, em míseras condições de infe­rioridade e de sofrimento. O doente, embora quase imóvel, acusava forte tensão de nervos, sem per­ceber, com os olhos físicos, a presença do compa­nheiro de sinistro aspecto. Pareciam visceralmente jungidos um ao outro, tal a abundância de fios tenuíssimos que mutuamente os entrelaçavam, des­de o tórax à cabeça, pelo que se me afiguravam dois prisioneiros de uma rede fluídica. Pensamen­tos de um deles com certeza viveriam no cérebro do outro. Comoções e sentimentos seriam permutados entre ambos com matemática precisão. Espi­ritualmente, estariam, de contínuo, perfeitamente identificados entre si. Observava-lhes, admirado, o fluxo de comuns vibrações mentais.

Dispunha-me a comentar o fenômeno, quando Calderaro, percebendo-me a intenção, se adiantou, recomendando:

— Examina o cérebro de nosso irmão encar­nado.

Concentrei-me na contemplação do delicado aparelho, centralizando toda a minha capacidade visual, de modo a analisá-lo interiormente.

O envoltório craniano, ante meus poderes vi­suais intensificados, não apresentava resistência. Como reparara de outras vezes, ali estava o com­plicado departamento da produção mental, semelhando-se a laboratório dos mais complexos e me­nos acessíveis. As circunvoluções separadas entre si, reunidas em lobos, igualmente distanciados uns dos outros pelas cissuras, davam-me a idéia de um aparelho elétrico, quase indevassado pelos homens. Comparando os dois hemisférios, recordei as de­signações da terminologia clássica, e demorei-me longos minutos reparando as especiais disposições dos nervos e as características da substância cin­zenta.

A voz do meu orientador quebrou o silêncio, exclamando inopinadamente:

— Observa a sinalização.

Assombrado, notei, pela primeira vez, que as irradiações emitidas pelo cérebro continham dife­renças essenciais. Cada centro motor assinalava-se com peculiaridades diversas, através das forças radiantes. Descobri, surpreso, que toda a província cerebral, pelos sinais luminosos, se dividia em três regiões distintas. Nos lobos frontais, as zonas de associação eram quase brilhantes. Do córtex mo­tor, até a extremidade da medula espinhal, a cla­ridade diminuía, para tomar-se ainda mais fraca nos gânglios basais.

Já despendia alguns minutos na contemplação das células nervosas, quando o Assistente me acon­selhou:

— Examinaste o cérebro do companheiro que ainda se prende ao veículo denso; observa, agora, o mesmo órgão no amigo desencarnado que o influencia de modo direto.

A entidade, que não se dava conta de nossa presença, em virtude do círculo de vibrações gros­seiras em que se mantinha, fixava toda a atenção no doente, lembrando a sagacidade de um felino vigiando a presa.

Observei-lhe estranha ferida na região torá­cica, e dispunha-me a investigar-lhe a causa, sondando os pulmões, quando Calderaro me corrigiu sem afetação:

— Trataremos da chaga no trabalho de assis­tência. Concentra as possibilidades da visão no cérebro.

Decorridos alguns momentos, concluí que, àparte a configuração das peças e o ritmo vibratório, tinha sob os olhos dois cérebros quase idênticos. Diferia o campo mental do desencarnado, revelando alguma superioridade no terreno da substância, que, no corpo perispiritual, era mais leve e menos obs­cura. Tive a impressão de que, se lavássemos, por dentro, o cérebro do amigo estirado no leito, es­coimando-o de certos corpúsculos mais pesados, seria ele quase igual, em essência, ao da entidade que eu mantinha sob exame. As divisões lumino­sas, porém, eram em tudo análogas. Mais luz nos lobos frontais, menos luz no córtex motor e quase nenhuma na medula espinhal, onde as irradiações se faziam difusas e opacas.

Interrompi o estudo comparativo, depois de acurada perquirição, e fixei Calderaro em silenciosa interrogativa.

O prestimoso mentor argumentou, sorridente:

— Depois da morte física, o que há de mais surpreendente para nós é o reencontro da vida. Aqui aprendemos que o organismo perispirítico que nos condiciona em matéria mais leve e mais plás­tica, após o sepulcro, é fruto igualmente do pro­cesso evolutivo. Não somos criações milagrosas, destinadas ao adorno de um paraíso de papelão. Somos filhos de Deus e herdeiros dos séculos, con­quistando valores, de experiência em experiência, de milênio a milênio. Não há favoritismo no Tem­plo Universal do Eterno, e todas as forças da Cria­ção aperfeiçoam-se no Infinito. A crisálida de cons­ciência, que reside no cristal a rolar na corrente do rio, aí se acha em processo liberatório; as ár­vores que por vezes se aprumam centenas de anos, a suportar os golpes do Inverno e acalentadas pe­las carícias da Primavera, estão conquistando a memória; a fêmea do tigre, lambendo os filhinhos recém-natos, aprende rudimentos do amor; o símio, guinchando, organiza a faculdade da palavra. Em verdade, Deus criou o mundo, mas nós nos con­servamos ainda longe da obra completa. Os seres que habitam o Universo ressumbrarão suor por muito tempo, a aprimorá-lo. Assim também a in­dividualidade. Somos criação do Autor Divino, e devemos aperfeiçoar-nos integralmente. O Eterno Pai estabeleceu como lei universal que seja a per­feição obra de cooperativismo entre Ele e nós, os seus filhos.

O mentor silenciou por instantes, sem que me acudisse ânimo suficiente para trazer qualquer co­mentário aos seus elevados conceitos.

Logo após, indicou-me a medula espinhal e continuou:

— Creio ociosa qualquer alusão aos trabalhos primordiais do nosso longo drama de vida evolu­tiva. Desde a ameba, na tépida água do mar, até o homem, vimos lutando, aprendendo e selecionan­do invariàvelmente. Para adquirir movimento e músculos, faculdades e raciocínios, experimenta­mos a vida e por ela fomos experimentados, mi­lhares de anos. As páginas da sabedoria hinduísta são escritos de ontem, e a Boa-Nova de Jesus-Cris­to é matéria de hoje, comparadas aos milênios vi­vidos por nós, na jornada progressiva.

Depois de fazer com a destra significativo ges­to, prosseguiu:

— No sistema nervoso, temos o cérebro ini­cial, repositório dos movimentos instintivos e sede das atividades subconscientes; figuremo-lo como sendo o porão da individualidade, onde arquiva­mos todas as experiências e registramos os meno­res fatos da vida. Na região do córtex motor, zona intermediária entre os lobos frontais e os nervos, temos o cérebro desenvolvido, consubstanciando as energias motoras de que se serve a nossa mente para as manifestações imprescindíveis no atual mo­mento evolutivo do nosso modo de ser. Nos planos dos lobos frontais, silenciosos ainda para a inves­tigação científica do mundo, jazem materiais de or­dem sublime, que conquistaremos gradualmente, no esforço de ascensão, representando a parte mais nobre de nosso organismo divino em evolução.

Os esclarecimentos singelos e admiráveis em­polgavam-me. Calderaro era educador da mais ele­vada estirpe. Ensinava sem cansar, sabia conduzir o aprendiz a conhecimentos profundos sem nenhum sacrifício da parte do aluno.

Apreciava-lhe eu a nobreza, quando prosseguiu, findo breve intervalo:

— Não podemos dizer que possuímos três cé­rebros simultâneamente. Temos apenas um que, porém, se divide em três regiões distintas. Tome­mo-lo como se fora um castelo de três andares: no primeiro situamos a «residência de nossos impulsos automáticos», simbolizando o sumário vivo dos ser­viços realizados; no segundo localizamos o «domi­cílio das conquistas atuais», onde se erguem e se consolidam as qualidades nobres que estamos edi­ficando; no terceiro, temos a «casa das noções su­periores», indicando as eminências que nos cumpre atingir. Num deles moram o hábito e o automatis­mo; no outro residem o esforço e a vontade; e no último demoram o ideal e a meta superior a ser alcançada. Distribuimos, deste modo, nos três an­dares, o subconsciente, o consciente e o supercons­ciente. Como vemos, possuímos, em nós mesmos, o passado, o presente e o futuro.

Verificando-se pausa mais longa, dei curso às ponderações íntimas, segundo antigo vezo de inquirir.

As preciosas explicações que ouvira não pode­riam ser mais simples, nem mais lógicas. Entre­tanto, perquiria a mim mesmo: o cérebro de um desencarnado seria também suscetível de adoecer? Sabia eu que a substância cinzenta, no mundo car­nal, podia ser acometida pelos tumores, pelo amo­lecimento, pela hemorragia; mas na esfera nova, a que a morte me conduzira, que fenômenos mór­bidos assediariam a mente?

Calderaro registrou-me as indagações e escla­receu:

- Não discutiremos aqui as moléstias físicas prôpriamente ditas. Quem acompanha, como nós, desde muito tempo, o ministério dos psiquiatras ver­dadeiramente consagrados ao bem do próximo, co­nhece, à saciedade, que todos os títulos de gratidão humana permanecem inexpressivos ante o aposto­lado de um Paul Broca, que identificou a enfer­midade do centro da palavra, ou de um Wagner Jauregg, que se dedicou à cura da paralisia, em perseguição ao espiroqueta da sífilis, até encon­trá-lo no recesso da matéria cinzenta, perturban­do as zonas motoras. Diante de fenômenos como estes, é compreensível a quebra da harmonia cerebral em consequência de compulsôriamente se arre­darem das aglutinações celulares do campo fisio­lógico os princípios do corpo perispiritual; essas aglutinações ficam, então, desordenadas em sua estrutura e atividades normais, qual acontece ao violino incapacitado para a execução perfeita dum trecho melódico, por trazer uma ou duas cordas desafinadas. Não devemos, nem podemos ignorar as leis que regem os domínios da forma... Daí a impossibilidade de querermos «psicologia equili­brada» sem «fisiologia harmoniosa», na esfera da ciência humana: isto é caso pacífico. Referir-nos-emos tão só às manifestações espirituais em sua essência. Indagas se a mente desencarnada pode adoecer... Que pergunta! cuidas que a maldade deliberada não seja moléstia da alma? que o ódio não constitua morbo terrível? supões, porventura, não haja «vermes mentais» da tristeza e da incon­formação?

Embora tenhamos a felicidade de agir num corpo mais sutil e mais leve, graças à natu­reza de nossos pensamentos e aspirações, já dis­tantes das zonas grosseiras da vida que deixamos, não possuímos ainda o cérebro dos anjos. Consti­tui-nos incessante trabalho a conservação de nossa forma atual, a caminho de conquistas mais alcan­doradas; não podemos descansar nos processos ilu­minativos; cumpre-nos purificar sempre, selecionar pendores e joeirar concepções, de molde a não in­terromper a marcha. Milhões vivem aqui, na po­sição em que nos achamos, mas outros milhões permanecem na carne ou em nossas linhas mais bai­xas de evolução, sob o guante de atroz demência. É para esses que devemos cogitar da patologia do espírito, socorrendo os mais infelizes e interferindo fraternal e indiretamente na solução de problemas escabrosos em cujos fios negros se enredam. São duendes em desespero, vítimas de si mesmos, em terrível colheita de espinhos e desilusões. O corpo perispiritual humano, vaso de nossas manifesta­ções, é, por ora, a nossa mais alta conquista na Terra, no capítulo das formas. Para as almas es­clarecidas, já iluminadas de redentora luz, repre­senta ele uma ponte para o campo superior da vida eterna, ainda não atingido por nós mesmos; para os espíritos vulgares, é a restrição indispensável e justa; para as consciências culpadas, é cadeia in­traduzível, pois, além do mais, registra os erros cometidos, guardando-os com todas as particulari­dades vivas dos negros momentos da queda. O gênero de vida de cada um, no invólucro carnal, determina a densidade do organismo perispirítico após a perda do corpo denso.

Ora, o cérebro é o instrumento que traduz a mente, manancial de nos­sos pensamentos. Através dele, pois, unimo-nos àluz ou à treva, ao bem ou ao mal.

Percebendo à atenção com que lhe seguia os preciosos esclarecimentos, Calderaro sorriu signifi­cativamente e perguntou:

— Compreendeste?

Indicando os dois sofredores, ao nosso lado, prosseguiu:

— Examinamos aqui dois enfermos: um, na carne; outro, fora dela. Ambos trazem o cérebro intoxicado, sintonizando-se absolutamente um com o outro. Espiritualmente, rolaram do terceiro an­dar, onde situamos as concepções superiores, e, en­tregando-se ao relaxamento da vontade, deixaram de acolher-se no segundo andar, sede do esforço próprio, perdendo valiosa oportunidade de reerguer-se; caíram, destarte, na esfera dos impulsos ins­tintivos, onde se arquivam todas as experiências da animalidade anterior. Ambos detestam a vida, odeiam-se reciprocamente, desesperam-se, asilam ideias de tormento, de aflição, de vingança. Em suma, estão loucos, embora o mundo lhes não vis­lumbre o supremo desequilíbrio, que se verifica no íntimo da organização perispiritual.

Dispunha-me a desfiar longa lista de pergun­tas alusivas às duas personagens em foco, mas o interlocutor iniciou o serviço de assistência direta, e, impondo a destra no lobo frontal esquerdo do doente encarnado, falou-me, afável:

— Cala, meu amigo, tuas ansiosas indagações. Acalma-te. No transcurso de nossos trabalhos ex­plicar-te-ei quanto estiver ao alcance de meus co­nhecimentos.


4

Estudando o cérebro

Com a mão fraterna espalmada sobre a fronte do enfermo, como a transmitir-lhe vigorosos flui­dos de vida renovadora, Calderaro esclareceu-me, bondoso:

— Há vinte anos, aproximadamente, este ami­go pôs fim ao corpo físico do seu atual verdugo, num doloroso capitulo de sangue. Iniciei o serviço de assistência a ele, só há três dias; no entanto, já me inteirei da sua comovente história.

Dirigiu compassivo olhar ao algoz desencar­nado e prosseguiu:

— Trabalhavam juntos, numa grande cidade, entregues ao comércio de quinquilharias. O homi­cida desempenhava funções de empregado da víti­ma, desde a infância, e, atingida a maioridade, exi­giu do chefe, que passara a tutor, o pagamento de vários anos de serviço. Negou-se o patrão, ter­minantemente, a satisfazê-lo, alegando as fadigas que vivera para assisti-lo na infância e na juven­tude. Propiciar-lhe-ia vantajosa posição no campo dos negócios, conceder-lhe-ia interesses substan­ciais, mas não lhe pagaria vintém relativamente ao passado. Até ali, guardara-o à conta de um filho, que lhe reclamava continua assistência. Estalou a contenda. Palavras rudes, trocadas entre vibrações de cólera, inflamaram o cérebro do rapaz, que, no auge da ira, o assassinou, dominado por selvagem fúria. Antes, porém, de fugir do local, o criminoso correu ao cofre, em que se amontoavam fartos pa­cotes de papel-moeda, retirou a importância vul­tosa a que se supunha com direito, deixando intacta regular fortuna que despistaria a polícia no dia imediato. Efetivamente, na manhã seguinte ele próprio veio à casa comercial, onde a vítima per­noitava enquanto a pequena família fazia longa estação no campo, e, fingindo preocupação ante as portas cerradas, convidou um guarda a segui-lo, a fim de violarem ambos uma das fechaduras. Em poucos momentos, espalhava-se a notícia do crime; no entanto, a justiça humana, emalhada nas habi­lidades do delinqüente, não conseguiu esclarecer o problema na origem. O assassino foi pródigo nos cuidados de salvaguardar os interesses do morto. Mandou selar cofres e livros. Providenciou arrola­mentos laboriosos. Requisitou amparo das autori­dades legais para minucioso exame da situação. Foi verdadeiro advogado da viúva e dos dois filhinhos do tutor falecido, os quais, mercê de seu devota­mento, receberam substanciosa herança. Pranteou a ocorrência, como se o desencarnado lhe fôsse pai. Terminada a questão, com a inanidade do apare­lho judiciário diante do enigma, retirou-se, discreto, para grande centro industrial, onde aplicou os re­cursos econômicos em atividades lucrativas.

O mentor estampou diferente brilho no olhar, fêz pequena pausa e acrescentou:

— Conseguiu ludibriar os homens, mas não pôde iludir a si mesmo. A entidade desencarnada, concentrando a mente na ideia de vingança, passou, perseverante, a segui-lo. Aferrou-se-lhe à organi­zação psíquica, à maneira de hera sobre muro vis­coso. Tudo fêz o homicida para atenuar-lhe o assé­dio constante. Desdobrou-se nos empreendimentos materiais, ansiando esquecimento de si mesmo e pondo em prática iniciativas que lhe fizeram afluir ao cofre enormes quantias, valorizando-lhe os títulos bancários. Observando, entretanto, que os altos patrimônios econômicos não lhe arrefeciam a intranquilidade e o sofrimento inconfessáveis, deu-se pressa em casar, aflito por sossegar o próprio in­timo. Desposou uma jovem de alma extremamente elevada à zona superior da vida humana, a qual lhe deu cinco filhinhos encantadores. No clima espiritual da mulher escolhida, conseguiu de certo modo equilibrar-se, conquanto a vítima nunca o largasse. Ocasiões houve em que se engolfava nas mais cruéis depressões nervosas, assaltado por es­tranhos pesadelos aos olhos dos familiares; mas sempre resistia, amparado, até certo ponto, pelas afeições de que a esposa, desde muito, dispõe em nossos planos. Se as leis humanas, todavia, cor­respondem à falibilidade dos homens encarnados, as leis divinas jamais falecem. Conservando as forças tenebrosas acumuladas em seu destino, desde a noite do assassínio, nosso desventurado amigo manteve enclausuradas, no porão da personalidade, todas as impressões destruidoras recolhidas no instante da queda. Repugnava-lhe uma confissão pública do crime, a qual, de certo modo, lhe mitigaria a an­gústia, libertando energias nefastas, que arquivara.

A essa altura da narrativa, Calderaro inter­rompeu-si.

Tocou a zona do córtex e prosseguiu:

— A mente criminosa, assediada pela presença invariável da vítima, a perturbar-lhe a memória. passou a fixar-se na região intermediária do cére­bro, porque a dor do remorso não lhe permitia fácil acesso à esfera superior do organismo peris­pirítico, onde os princípios mais nobres do ser er­guem o santuário de manifestações da Consciência Divina. Aterrorizado pelas recordações, transia-o irreprimível pavor em face dos juízos conscienciais. Por outra parte, cada vez mais interessado em asse­gurar a felicidade da família, seu único oásis no deserto escaldante das escabrosas reminiscências, o infeliz, então respeitado por força da posição so­cial que o dinheiro lhe conferia, embrenhou-se em atividade febril e ininterrupta. Vivendo mentalmen­te na região intermediária do cérebro, em caráter quase exclusivo, só sentia alguma calma agindo e trabalhando, de qualquer maneira, mesmo desordenadamente. Intentava a fuga através de todos os meios ao seu alcance. Deitava-se, extenuado pela fadiga do corpo, levantando-se, no dia seguinte, abatido e cansado de inútilmente duelar com o per­seguidor invisível, nas horas de sono. Em conse­quência, provocou o desequilíbrio da organização perispirituai, o que se refletiu na zona motora, im­plantando o caos orgânico.

Fez característico movimento com o indicador e acentuou:

— Repara os centros corticais.

Contemplei, admirado, aquele maravilhoso mun­do microscópico. As células piramidais, distinguin­do-se pelo tamanho, diziam da importância das fun­ções que lhes impendiam no laboratório das ener­gias nervosas. Observando atentamente o quadro, não me parecia que estivesse a examinar o tecido vivo da substância branco-cinzenta: tive a impres­são de que o córtex fôsse um robusto dínamo em funcionamento. Não estaríamos diante dalgum apa­relho elétrico de complicada estrutura? Mau grado essas impressões, reparei que a matéria cerebral ameaçava amolecimento.

Continuava perplexo, sem saber como formular os comentários cabíveis, quando o Assistente me veio em socorro, esclarecendo:

— Estamos diante do órgão perispiritual do ser humano, adeso à duplicata física, da mesma for­ma que algumas partes do corpo carnal têm estreito contacto com o indumento. Todo o campo nervoso da criatura constitui a representação das potências perispiríticas, vagarosamente conquistadas pelo ser, através de milênios e milênios. Em renascendo en­tre as formas perecíveis, nosso corpo sutil, que se caracteriza, em nossa esfera menos densa, por ex­trema leveza e extraordinária plasticidade, subme­te-se, no plano da Crosta, às leis de recapitulação, hereditariedade e desenvolvimento fisiológico, em conformidade com o mérito ou demérito que trazemos e com a missão ou o aprendizado neces­sários. O cérebro real é aparelho dos mais com­plexos. em que o nosso «eu» reflete a vida. Atra­vés dele, sentimos os fenômenos exteriores segundo a nossa capacidade receptiva, que é determinada pela experiência; por isto, varia ele de criatura a criatura, em virtude da multiplicidade das posi­ções na escala evolutiva. Nem os símios ou os antropóides, a caminho da ligação com o gênero humano, apresentam cérebros absolutamente iguais entre si. Cada individualidade revela-o consoante o progresso efetivo realizado. O selvagem apresen­ta um cérebro perispiritual com vibrações muito diversas das do órgão do pensamento no homem civilizado. Sob este ponto de vista, o encéfalo de um santo emite ondas que se distinguem das que despede a fonte mental de um cientista. A escola acadêmica, na Crosta Planetária, prende-se à con­ceituação da forma tangível, em trânsito para as transformações da enfermidade, da velhice ou da morte. Aqui, porém, examinamos o organismo que modela as manifestações do campo físico, e reco­nhecemos que todo o aparelhamento nervoso é de ordem sublime. A célula nervosa é entidade de natureza elétrica, que diariamente se nutre de com­bustível adequado. Há neurônios sensitivos, moto­res, intermediários e reflexos. Existem os que re­cebem as sensações exteriores e os que recolhem as impressões da consciência. Em todo o cosmo celular agitam-se interruptores e condutores, ele­mentos de emissão e de recepção. A mente é a orientadora desse universo microscópico, em que bilhões de corpúsculos e energias multiformes se consagram a seu serviço. Dela emanam as corren­tes da vontade, determinando vasta rede de estímulos, reagindo ante as exigências da paisagem externa, ou atendendo às sugestões das zonas in­teriores. Colocada entre o objetivo e o subjetivo, é obrigada pela Divina Lei a aprender, verificar, escolher, repelir, aceitar, recolher, guardar, enri­quecer-se, iluminar-se, progredir sempre. Do plano objetivo, recebe-lhe os atritos e as influências da luta direta; da esfera subjetiva, absorve-lhe a inspiração, mais ou menos intensa, das inteligências desencarnadas ou encarnadas que lhe são afins, e os resultados das criações mentais que lhe são peculiares. Ainda que permaneça aparentemente estacionária, a mente prossegue seu caminho, sem recuos, sob a indefectível atuação das forças visí­veis ou das invisíveis.

Verificando-se pausa natural nas elucidações, ocorreram-me inúmeras e ininterruptas associações de ideias.

Como interpretar todas as revelações de Cal­deraro? As células do acervo fisiológico não se revestiam de característicos próprios? Não eram personalidades infinitesimais, aglomeradas sob dis­ciplina nos departamentos orgânicos, mas quase livres em suas manifestações? seriam, acaso, du­plicatas de células espirituais? como conciliar tal teoria com a liberação dos micro-organismos, em seguida à morte do corpo? E, se assim fora, não devera a memória do homem encarnado, eximir-se do transitório esquecimento do passado?

O instrutor percebeu minhas perquirições inar­ticuladas, porque prosseguiu, sereno, como a res­ponder-me:

— Conheço-te as objeções e também as for­mulei noutro tempo, quando a novidade me feria a observação. Posso, contudo, dizer-te hoje, que, se existe a química fisiológica, temos também a química espiritual, como possuímos a orgânica e a inorgânica, existindo extrema dificuldade em defi­nir-lhes os pontos de ação independente. Quase impossível é determinar-lhes a fronteira divisória, porqüanto o espírito mais sábio não se animaria a localizar, com afirmações dogmáticas, o ponto onde termina a matéria e começa o espírito. No corpo físico, diferençam-se as células de maneira surpre­endente. Apresentam determinada personalidade no fígado, outra nos rins e ainda outra no sangue. Modificam-se infinitamente, surgem e desaparecem, aos milhares, em todos os domínios da química or­gânica, prôpriamente dita. No cérebro, porém, ini­cia-se o império da química espiritual. Os elemen­tos celulares, aí, são dificilmente substituíveis. A paisagem delicada e superior é sempre a mesma, porque o trabalho da alma requer fixação, aprovei­tamento e continuidade. O estômago pode ser um alambique, em que o mundo infinitésimo se revele, em tumultuária animalidade, aproximando-se dos quadros inferiores da vida, porqüanto o estômago não necessita recordar, compulsoriamente, que subs­tância alimentícia lhe foi dada a elaborar na vés­pera, O órgão de expressão mental, contudo, re­clama personalidades químicas de tipo sublimado, por alimentar-se de experiências que devem ser registradas, arquivadas e lembradas sempre que oportuno ou necessário. Intervém, então, a química superior, dotando o cérebro de material insubs­tituível em muitos departamentos de seu laborató­rio íntimo.

Interrompeu-se o Assistente por alguns segun­dos, como a dar-me tempo para refletir.

Em seguida, continuou, atencioso:

— Na verdade, não há nisso mistério algum. Voltemos aos ascendentes em evolução, O princípio espiritual acolheu-se no seio tépido das águas, atra­vés dos organismos celulares, que se mantinham e se multiplicavam por cissiparidade. Em milhares de anos, fêz longa viagem na esponja, passando a dominar células autônomas, impondo-lhes o espíri­to de obediência e de coletividade, na organização primordial dos músculos. Experimentou longo tem­po, antes de ensaiar os alicerces do aparelho ner­voso, na medusa, no verme, no batráquio, arras­tando-se para emergir do fundo escuro e lodoso das águas, de modo a encetar as experiências pri­meiras, ao sol meridiano. Quantos séculos consu­miu, revestindo formas monstruosas, aprimorando-se, aqui e ali, ajudado pela interferência indireta das Inteligências superiores? Impossível responder, por enquanto. Sugou o seio farto da Terra, evolu­cionando sem parar, através de milênios, até con­quistar a região mais alta, onde conseguiu elabo­rar o próprio alimento.

Calderaro fixou em mim significativo olhar e perguntou:

— Compreendeste suficientemente?

Ante o assombro das ideias novas que me fus­tigavam a imaginação, impedindo-me o minucioso exame do assunto, o esclarecido companheiro sor­riu e continuou:

— Por mais esforços que envidemos por simpli­ficar a exposição deste delicado tema, o retrospecto que a respeito fazemos sempre causa perplexidade. Quero dizer, André, que o princípio espiritual, des­de o obscuro momento da criação, caminha sem detença para frente. Afastou-se do leito oceânico, atingiu a superfície das águas protetoras, moveu-se em direção à lama das margens, debateu-se no charco, chegou à terra firme, experimentou na flo­resta copioso material de formas representativas, ergueu-se do solo, contemplou os céus e, depois de longos milênios, durante os quais aprendeu a pro­criar, alimentar-se, escolher, lembrar e sentir, con­quistou a inteligência... Viajou do simples impulso para a irritabilidade, da irritabilidade para a sen­sação, da sensação para o instinto, do instinto para a razão. Nessa penosa romagem, inúmeros milê­nios decorreram sobre nós. Estamos, em todas as épocas, abandonando esferas inferiores, a fim de escalar as superiores. O cérebro é o órgão sagrado de manifestação da mente, em trânsito da anima­lidade primitiva para a espiritualidade humana.

O orientador, interrompendo-se, acariciou-me de leve, como companheiro experimentado no es­tudo estimulando aprendiz humilde, e acrescentou:

— Em síntese, o homem das últimas dezenas de séculos representa a humanidade vitoriosa, emer­gindo da bestialidade primária. Desta condição par­ticipamos nós, os desencarnados, em número de muitos milhões de espíritos ainda pesados, por não havermos, até o momento, alijado todo o conteúdo de qualidades inferiores de nossa organização pe­rispiritual; tal circunstância nos compele a viver, após a morte física, em formações afins, em socie­dades realmente avançadas, mas semelhantes aos agrupamentos terrestres. Oscilamos entre a libe­ração e a reencarnação, aperfeiçoando-nos, burilan­do-nos, progredindo, até conseguir, pelo refinamen­to próprio, o acesso a expressões sublimes da Vida Superior, que ainda não nos é dado compreender. Nos dois lados da existência, em que nos movimen­tamos e dentro dos quais se encontram o nasci­mento e a morte do corpo denso, como portas de comunicação, o trabalho construtivo é a nossa bên­ção, aparelhando-nos para o futuro divino. A ati­vidade, na esfera que ora ocupamos, é, para quan­tos se conservam quites com a Lei, mais rica de beleza e de felicidade, pois a matéria é mais ra­refeita e mais obediente às nossas solicitações de índole superior. Atravessado, contudo, o rio do renascimento, somos surpreendidos pelo duro traba­lho de recapitulação para a necessária aprendiza­gem. Por lá semearemos, para colher aqui, apri­morando, reajustando e embelezando, até atingir a messe perfeita, o celeiro farto de grãos sublimes, de modo a nos transferirmos, aptos e vitoriosos, para outras «terras do céu». Não devemos acredi­tar, porém, quanto aos serviços de resgate e de expiação, que a esfera carnal seja a única capaz de oferecer o bendito ensejo de sofrimento áspero, redentor. Em regiões sombrias, fora dela, quais não podes ignorar, há oportunidade de tratamento expiatório para os devedores mais infelizes, que voluntàriamente contraíram perigosos débitos para com a Lei.

Verificou-se breve pausa, que não interrompi, considerando a inconveniência de qualquer indaga­ção de minha parte.

Calderado, todavia, continuou, solícito:

— Perguntas por que motivo não conserva o homem encarnado a plenitude das recordações do longuíssimo pretérito; isto é natural, em virtude da tão grande ascendência do corpo perispiritual sobre o mecanismo fisiológico. Se a forma física evoluiu e se aperfeiçoou, o mesmo terá acontecido ao organismo perispirítico, através das idades. Nós mesmos, em nossa relativa condição de espiritua­lidade, ainda não possuímos o processo de remi­niscência integral dos caminhos perlustrados. Não estamos, por enquanto, munidos de suficiente luz para descer com proveito a todos os ângulos do abismo das origens; tal faculdade, só mais tarde a adquiriremos, quando nossa alma estiver escol­mada de todo e qualquer resquício de sombra. Com­parando, entretanto, a nossa situação com o es­tado menos lúcido de nossos irmãos encarnados, importa não nos esqueça que os nervos, o córtex motor e os lobos frontais, que ora examinamos, constituem apenas regulares pontos de contacto en­tre a organização perispiritual e o aparelho físico, indispensáveis, uma e outro, ao trabalho de enri­quecimento e de crescimento do ser eterno. Em linguagem mais simples, são respiradouros dos im­pulsos, experiências e noções elevadas da perso­nalidade real que não se extingue no túmulo, e que não suportariam a carga de uma dupla vida. Em razão disto, e atendendo aos deveres impostos à consciência de vigília para os serviços de cada dia, desempenham função amortecedora: são que­bra-luzes, atuando benêficamente para que a alma encarnada trabalhe e evolva. Além disto, nasci­mento e morte, na esfera carnal, para a generali­dade das criaturas são choques biológicos, impres­cindíveis à renovação. Em verdade, não há total esquecimento na Crosta Terrestre, nem restauração imediata da memória nas províncias de existência, que se seguem, naturais, ao campo da atividade física. Todos os homens conservam tendências e faculdades, que quase equivalem a efetiva lembran­ça do passado; e nem todos, ao atravessarem o sepulcro, podem readquirir, repentinamente, o pa­trimônio de suas reminiscências. Quem demasiado se materialize, demorando-se em baixo padrão vi­bratório, no campo de matéria densa, não pode reacender, de pronto, a luz da memória. Despen­derá tempo a desfazer-se dos pesados envoltórios a que inadvertidamente se prendeu. Dentro da luta humana, também, é indispensável que os neurônios se façam de luvas, mais ou menos espessas, a fim de que o fluxo das recordações não modere o es­forço edificante da alma encarnada, empenhada em nobres objetivos de evolução ou resgate, aprimora­mento ou ministério sublime. Importa reconhecer, porém, que a nossa mente aqui age no organismo perispirítico, com poderes muito mais extensos, mercê da singular natureza e elasticidade da ma­téria que presentemente nos define a forma. Isto, contudo, em nossos círculos de ação, não nos evita as manifestações grosseiras, as quedas lastimáveis, as doenças complexas, porque a mente, o senhor do corpo, mesmo aqui, é acessível ao vício, ao re­laxamento e às paixões arruinantes.

Nessa altura das elucidações, arrisquei uma pergunta, no intervalo que se fêz, espontâneo:

— Como interpretar, de maneira simples, as três regiões de vida cerebral a que nos referimos?

O companheiro não se fêz rogado e redarguiu:

— Nervos, zona motora e lobos frontais, no corpo carnal, traduzindo impulsividade, experiência e noções superiores da alma, constituem campos de fixação da mente encarnada ou desencarnada. A demora excessiva num desses planos, com as ações que lhe são consequentes, determina a des­tinação do cosmo individual. A criatura estacio­nária na região dos impulsos perde-se num labi­rinto de causas e efeitos, desperdiçando tempo e energia; quem se entrega, de modo absoluto, ao esforço maquinal, sem consulta ao passado e sem organização de bases para o futuro, mecaniza a existência, destituindo-a de luz edificante; os que se refugiam exclusivamente no templo das noções superiores sofrem o perigo da contemplação sem as obras, da meditação sem trabalho, da renúncia sem proveito. Para que nossa mente prossiga na direção do alto, é indispensável se equilibre, va­lendo-se das conquistas passadas, para orientar os serviços presentes, e amparando-se, ao mesmo tem­po, na esperança que flui, cristalina e bela, da fonte superior de idealismo elevado; através dessa fon­te ela pode captar do plano divino as energias res­tauradoras, assim construindo o futuro santificante. E, como nos encontramos indissoluvelmente liga­dos aos que se afinam conosco, em obediência a indefectíveis desígnios universais, quando nos de­sequilibramos, pelo excesso de fixação mental, num dos mencionados setores, entramos em contacto com as inteligências encarnadas ou desencarnadas em condições análogas às nossas.

O instrutor, com ar fraternal, indagou:

— Entendeste?

Respondi afirmativamente, possuído de sincera alegria porque, afinal, assimilara a lição.

Calderaro fez aplicações magnéticas sobre o crânio do enfermo, envolvendo-o em fluidos bené­ficos, e disse-me, após longa pausa:

— Temos aqui dois amigos de mente fixada na região dos instintos primários. O encarnado, depois de reiteradas vibrações no campo de pensa­mento, em fuga da recordação e do remorso, arrui­nou os centros motores, desorganizando também o sistema endócrino e perturbando os órgãos vitais. O desencarnado converteu todas as energias em alimento da ideia de vingança, acolhendo-se ao ódio em que se mantém foragido da razão e do altruísmo. Outra seria a situação de ambos se hou­vessem esquecido a queda, reerguendo-se pelo tra­balho construtivo e pelo entendimento fraternal, no santuário do perdão legitimo.

O Assistente deixou perceber novo brilho nos olhos percucientes e acrescentou:

— Segundo verificamos, Jesus-Cristo tinha so­bradas razões recomendando-nos o amor aos inimi­gos e a oração pelos que nos perseguem e caluniam. Não é isto mera virtude, senão princípio científico de libertação do ser, de progresso da alma, de am­plitude espiritual: no pensamento residem as cau­sas. Ëpoca virá, em que o amor, a fraternidade e a compreensão, definindo estados do espírito, serão tão importantes para a mente encarnada quanto o pão, a água, o remédio; é questão de tempo. Lí­cito é esperar sempre o bem, com o otimismo di­vino. A mente humana, de maneira geral, ascen­de para o conhecimento superior, apesar de, por vezes, parecer o contrário.

Em seguida, permaneceu Calderaro longos mi­nutos em vigorosas irradiações magnéticas, que, envolvendo a cabeça e a espinha dorsal do enfer­mo, se me afiguraram fortemente repousantes, por­que em breve o doente, antes torturado, se abandonava a sono tranquilo, como se sorvera suavis­simo anestésico. Dentro em pouco encontrava-se em nosso círculo, temporàriamente afastado do veí­culo denso, tomado de pavor perante o verdugo implacável, que se mantinha sentado, impassível, num dos ângulos do leito.

Verifiquei que o enfermo não nos notava a presença, qual acontecia com o algoz em muda expectativa.

Contava como certo que o Assistente os cumu­lasse de longas doutrinações; Calderaro, porem, guardou absoluto silêncio.

Não me contive: interroguei-o. Porque os não socorrer com palavras de esclarecimento? O doente parecia-me aflito, enquanto o perseguidor se erguia, agora, mais agressivo. Porque não sustar o braço cruel que ameaçava um infeliz? Não seria justo impedir o atrito, que acarretaria consequências im­previsíveis ao companheiro hospitalizado?

O instrutor ouviu-me, sereno, e respondeu:

— Falaríamos em vão, André, porque ainda não sabemos amá-los como se fossem nossos irmãos ou nossos filhos. Para nós ambos, espíritos de ra­ciocínio algo avançado, mas de sentimentos menos sublimes, são eles dois infortunados, e nada mais. Damos-lhes, no momento, o de que dispomos, isto é, intervenção benéfica no campo de seus sofrimen­tos exteriores, nos limites de nossas aquisições no domínio do conhecimento.

Olhou para grande porta próxima e acentuou:

— A providência não foi, porém, esquecida. A irmã Cipriana, orientadora dos serviços de so­corro do grupo em que coopero, não pode tardar.

Mais alguns instantes, durante os quais o ver­dugo e a vítima reciprocavam palavras amargas, e o prestimoso mentor prosseguiu:

— Lembras-te de De Puysegur?

Sim, recordava-me de modo vago. Fêz-se em meu cérebro uma livre associação de ideias, rememorando estudos que levara a efeito sobre certas realizações de Charcot. Não podia, entretanto, es­pecificar particularidades, porqüanto a psiquiatria não fora meu campo direto de trabalho na medi­cina.

Tornou Calderaro, solícito:

— De Puysegur foi dos primeiros magnetistas que encontraram o sono revelador, em que era pos­sível conversar com o paciente noutro estado cons­ciencial que não o comum. Desde então, a desco­berta impressionou os psicologistas; com ela, sur­gia nova terapêutica para tratamento das moles­tias nervosas e mentais. Entretanto, para nós, «neste lado» da vida, o fenômeno é corriqueiro:

diariamente milhões de pessoas adormecem sob a influência magnética de amigos espirituais, a fim de serem auxiliadas nas resoluções inadiáveis.

— E porque não tentarmos o esclarecimento verbal, agora, a estes nossos amigos? — insisti, ansioso por minha vez, observando os infortunados contendores, que se trocavam insultos e acusações.

— Porque, se o conhecimento auxilia por fora, só o amor socorre por dentro — acrescentou o instrutor tranqüilamente. Com a nossa cultura re­tificamos os efeitos, quanto possível, e só os que amam conseguem atingir as causas profundas. Ora, os nossos desventurados amigos reclamam inter­venção no Intimo, para modificar atitudes mentais em definitivo... E nós ambos, por enquanto, ape­nas conhecemos, sem saber amar...

Nesse momento, alguém assomou à porta de entrada.

Oh! era uma sublime mulher, revelando idade madura; nos olhos esplendia-lhe brilho meigo e en­ternecedor. Curvei-me, comovido e respeitoso. Cal­deraro tocou-me o ombro de leve, e murmurou-me ao ouvido:

— É a irmã Cipriana, a portadora do divino amor fraternal, que ainda não adquirimos.


5

O poder do amor

A mensageira aproximou-se e saudou-nos. Calderaro apresentou-me atenciosamente.

Fixou ela o triste quadro e disse ao Assistente:

— Felicito-o pelo socorro que, nos últimos dias, vem prestando aos nossos infortunados irmãos. Agora atacaremos a parte final do serviço, con­victos do êxito.

— Meu esforço — acrescentou o interlocutor, humilde — foi quase nenhum, resumindo-se em me­ros preparativos.

Irmã Cipriana sorriu, afável, e observou:

— Como atingiríamos o fim sem passar pelo princípio?

— Ó irmã! o conhecimento pode pouquíssimo, comparado com o muito que o amor pode sempre.

Singular expressão estampou-se na fisionomia da emissária, como se as referências lhe ferissem fundo a modéstia natural. Ocultando os méritos que lhe eram próprios, considerou:

— Sabe o Divino Senhor que ainda estou a grande distância da realização que me atribui. Sou frágil e imperfeita, e devo caminhar ainda infinita­mente para adquirir o amor que fortalece e aperfeiçoa.

Retendo o olhar firmemente sobre o meu com­panheiro, acrescentou:

— Estamos em cooperação fraternal na obra que pertence ao Altíssimo. Espero que os amigos se mantenham a postos, efetuando a maior porção do serviço, porque, quanto a mim, só atenderei aos singelos deveres que um coração materno pode de­sempenhar.

Assim dizendo, acercou-se de ambos os infeli­zes, postando-se em atitude de oração.

Que estaria pedindo às Forças Superiores, ali, diante de nós, aquela mulher de extraordinária expressão? Sentia-lhe, enlevado, a sinceridade pro­funda, a humildade fiel. A prece, em que por alguns minutos se concentrou, saturava-se de sublime po­der, porqüanto em breve suave luz descia do alto sobre a sua fronte venerável. Gradativamente Ci­priana se fazia mais bela. Os raios divinos a flui­rem dos mananciais invisíveis, envolvendo-a, trans­figuravam-na toda. Tive a impressão de que a sua organização perispiritual absorvia a claridade ma­ravilhosa, represando-se-lhe no ser.

Escoados alguns momentos, circundava-a re­fulgente halo, cuja santidade senti dever respeitar. Dos olhos, do tórax e das mãos efluíam irradiaçôes de frouxa e suave luz, que não me terrificava a retina surpresa. Estava formosa, radiante, qual se fora a materialização da madona de Murilo, em mi­lagrosa aparição.

Perante a sua personalidade transfigurada, qua­se me prosternei, tal a comoção daquele minuto inesquecível.

Nenhum olhar nos dirigiu, quiçá, por humil­dade, no desejo de ocultar a elevada posição que desfrutava.

Estendeu as mãos para os dois desventurados, atingindo-os com o seu amoroso magnetismo, e no­tei, assombrado, que o poder daquela mulher su­blimada lhes modificava o campo vibratório. Sen­tiram-se ambos desfalecer, oprimidos por uma for­ça que os compelia à quietação. Entreolharam-se com indizível espanto, experimentando o respeito e o temor, presas de comoção irreprimível e desconhecida... Seus olhos espelhavam, no silêncio, angustiosa perquirição, quando a mensageira, avizinhando-se, os tocou de leve na região visual; re­parei, de minha parte, que ambos registraram abalo mais forte e indisfarçável.

Reconhecendo o poder divino de que era do­tada a emissária, notei que o enfermo, parcialmente liberto do corpo, e o perseguidor implacável pas­saram a ver-nos com indescritível assombro. Gri­taram violentamente, empolgados pela surpresa, e, por julgar cada um de nós o que vê através do prisma de conhecimentos adquiridos, cuidaram fôs­sem visitados pela excelsa Mãe de Jesus: definiam o ambiente em harmonia com as noções religiosas que o mundo lhes inculcara.

O doente ajoelhou-se de súbito, dominado por incoercível comoção, e desfez-se em copioso pranto. O outro, porém, embora perplexo e abalado, man­teve-se ereto, qual se o bendito favor daquela hora não lhe fosse, a ele mesmo concedido.

— Mãe dos Céus! — clamou o companheiro hospitalizado, chorando convulsivamente — como vos dignais de visitar o criminoso, que sou eu? Sinto vergonha de mim mesmo, sou imperdoável pecador, abatido pela minha própria miséria... Vos­sa luz revela-me toda a extensão das trevas em que que debato! condoei-vos de mim, Senhora!...

Havia uma sinceridade imensa, aliada a imensa dor, naquelas palavras de angústia e de arrepen­dimento. Soluços sufocantes assomaram-lhe à boca, interrompendo-lhe a tocante súplica.

Cipriana acercou-se dele, de olhos faiscantes e úmidos. Tentou soerguê-lo, sem, no entanto, lograr que ele deixasse a postura genuflexa.

Certo, a piedosa missionária informara-se de todas as minúcias necessárias ao êxito de sua missão naqueles minutos, porque, enlaçando-o mater­nalmente, o chamou pelo nome, esclarecendo:

— Pedro, filho meu, não sou quem julgas, no transporte de viva confiança que te sensibiliza a alma. Sou simplesmente tua irmã na eternidade; todavia, também fui mãe na Terra, e sei quanto sofres.

O interpelado ergueu os olhos súplices, fitan­do-a através de espesso véu de lágrimas. Embo­ra visívelmente animado pelas declarações ouvidas, manteve-se em posição reverente e humilde.

— Matei um homem!... — exclamou, desa­bafando-se.

A mensageira afagou-lhe o rosto, banhado em pranto, e acrescentou:

— Sei disto.

Decorridos alguns instantes, em que dividia o carinhoso olhar entre o interlocutor e o verdugo, contido pelo respeito a reduzida distância, dirigiu-se ao doente, de maneira intencional, de modo a se fazer ouvida pelo companheiro vingador:

— Porque destruíste, Pedro, a vida de teu ir­mão? como te julgaste com forças e direito para quebrar a harmonia divina?

Deixando perceber que lhe ouvia os pensa­mentos mais íntimos, prosseguiu:

- Supunhas fazer justiça pelas próprias mãos, quando só fazias expandir a cólera aniquiladora. Por que razão, meu filho, pretendeste equilibrar a vida, provocando a morte? como conciliar a jus­tiça com o crime, quando sabemos que o verda­deiro justo é aquele que trabalha e espera no Pai, o Supremo Doador da Vida? Faz muito tempo hás perpetrado o homicídio, presumindo liquidar esca­broso débito a jorros de sangue... Eliminaste o corpo de um amigo que se fêz incompreensivo e duro; todavia, desde o trágico instante, ouves a consciência divina, a reiterar a velha pergunta:

«Caim, que fizeste de teu irmão?» Tens vivido desarvorado e desditoso, de alma agrilhoada à pró­pria vítima, aprendendo que o mal jamais se coadunará com o bem e que a Lei cobra dobrados tri­butos àquele que se antepõe aos seus ditames sá­bios e soberanos. Destruíste a paz de um compa­nheiro e perdeste a tranquilidade própria; suprimiste-lhe o veículo físico, mas perambulas algema­do ao teu, sentindo-o qual pesado fardo... Cuidavas ministrar o direito a ti mesmo e entortaste o desti­no, imprimindo perigosa curva ao teu caminho, que poderia ser retilíneo e iluminado. Temendo a ti pró­prio, por te sentires delinquente em toda a parte, buscaste refúgio no trabalho atabalhoado e meca­nizante; conseguiste dinheiro que nunca te pacifi­cou o ser; alcançaste culminante posição social en­tre os homens, dentro da qual, contudo, te sentes cada vez mais triste e mais desamparado... Como não te ocorreu, Pedro, a oração santificante? como não te penitenciaste diante da vida, humilhando-te aos pés da tua vítima, no sincero e real propósito de regeneração? preferiste a corrida louca empós das sensações externas, a fuga para a região do ganho material, a transitória ascensão para posições de domínio enganoso... Aterrorizado, tentaste es­capar ao tribunal íntimo, onde o poder espiritual te exprobrava o condenável procedimento!

(Mas, nunca é tarde para levantar o coração e curar a consciência ferida. Exausto de sofrer, cedeste à enfermidade e aproximas-te da loucura. De alma contundida e corpo em desordem, apelaste para a Misericórdia Divina, e aqui estamos. Con­tudo, meu amigo, nossa voz não se ergue para fus­tigar-te o espírito, já de si mesmo tão castigado e tão infeliz! vimos ao teu encontro para estimular-te à regeneração. Quem poderá condenar alguém, de­pois da comunhão de vicissitudes na carne? quem se sentirá suficientemente puro e santificado para atirar a primeira pedra, mesmo depois de haver atravessado a fronteira de cinzas do sepulcro? Quem de nós terá passado incólume nas correntes do pân­tano? Não, Pedro, o fundamento da obra divina é de amor incomensurável. Encontramo-nos aqui para querer-te bem, intentando alçar-te a consciên­cia aos campos infinitos da vida eterna. Oraste e chamaste-nos. Abriste a mente à força regenera­tiva, e somos teus irmãos. Muitos de nós, em outro tempo, penetramos também o sombrio recôncavo dos vales do assassínio, da injustiça e da morte; entretanto, estacamos no caminho, renegamos o cri­me, ressoldamos com lágrimas os elos partidos pela nossa imprudência, e, cultivando o perdão e a hu­mildade, aprendemos que só o amor salva e cons­trói para sempre.

“(Lembra-te das tuas próprias necessidades, in­terrompe a marcha da aflição, reconsidera a atitude e fase novo compromisso perante a Divina Justiça.»

Passada longa pausa, Cipriana abriu os braços maternos e acrescentou:

— Levanta-te e vem a mim. Sou tua mãe es­piritual, em nome de Deus.

O enfermo, de olhos brilhantes e lacrimosos, ergueu-se, qual menino, sensibilizando-nos o cora­ção, e exclamou:

— Merecerei tamanha graça?

— Como não, filho meu? O Pai não nos res­ponde às súplicas com palavras condenatórias. Acercamo-nos de ti em nome dEle, nosso Supremo Senhor.

Assim dizendo, conchegou-o ao coração; mas havia tal meiguice naquele amplexo inesperado, que outros circunstantes, que não nós, diriam presen­ciar o reencontro de carinhosa mãe com o filho au­sente, após longa e cnuciante separação.

O infortunado deixou pender a cabeça sobre um dos ombros dela, demonstrando infinita confiança, e murmurou infantilmente:

— Mãe do Céu, ninguém na Terra jamais me falou assim...

Via-se-lhe o alívio, através do semblante feliz.

Cipriana animou-o, bondosa, e explicou:

— É imprescindível aquietes a mente afoguea­da, depositando nas mãos do Senhor as antigas angústias.

A essa altura, voltei a Calderaro meu olhar comovido e notei que as lágrimas não brotavam exclusivamente dos meus olhos. O companheiro ti­nha-as abundantes a lhe deslizarem na face calma.

Tocado por minha silenciosa indagação, falou-me em voz apenas perceptível:

— Praza a Deus, André, possamos também aprender a amar, adquirindo o poder de transfor­mar os corações.

A emissária, que parecia não se dar conta de nossa presença, avançou para o verdugo, sustentando Pedro nos braços, como se lhe fora um filho doente. O perseguidor aguardou-a, ereto e altivo. revelando-se insensível às palavras que nos haviam dominado os corações. A missionária, longe de in­timidar-se, aproximou-se, tocando-o quase, e falou, humilde:

— Que fazes tu, Camilo, cerrado à comise­ração?

O algoz, demonstrando incompreensível frieza, retorquiu, cruel:

— Que pode fazer uma vítima como eu, senão odiar sem piedade?

— Odiar? — tornou Cipriana, sem se alterar. Sabes a significação de tal atitude? As vitimas inacessíveis ao perdão e ao entendimento soem ul­trapassar a dureza e a maldade dos precitos, provocando horror e compaixão. Quantos se valem desse título, para pôr de manifesto as monstruo­sidades que lhes povoam o ser! quantos se apro­veitam da hora de irreflexão de um amigo igno­rante ou infeliz, para encetar séculos de persegui­ção no inferno da ira! A condição de vítima não te confere santidade; vales-te dela para semear, na própria senda, ruína e miséria, treva e destroços. Sem dúvida, Pedro feriu-te em momento de insânia, perdido de ilusão na mocidade turbulenta; no en­tanto, pai de família que foste, homem refletido e prudente que aparentavas ser, não encontraste no espírito mínima réstia de piedade fraternal para desculpá-lo. Há vinte anos instilas em torno de ti a peçonha da víbora, na postura do famulento cha­cal. Podendo conquistar a láurea dos vencedores com o Cristo, preferiste o punhal da vingança, om­breando-te com os malfeitores endurecidos. Onde esbarrarás, meu filho, com teus sentimentos des­prezíveis? em que muralha de angústia serás al­gemado pela Justiça de Deus?

Dos olhos de Cipriana escorriam grossas lá­grimas.

Camilo vacilava entre a inflexibilidade e a ca­pitulação. Extrema palidez cobria-lhe o rosto, e, quando nos pareceu que ia proferir uma resposta a esmo, a missionária dirigiu-se ao meu orientador, pedindo-lhe com humildade:

— Calderaro, meu amigo, ajude-me a condu­zi-los. Sigamos até ao lar de Pedro, onde Camilo atenderá nossos rogos.

Meu companheiro não hesitou. Voltando-se para mim, obtemperou:

— A Irmã transportará Pedro com os próprios recursos, mas o outro, terrívelmente escravizado aos pensamentos inferiores e às intenções crimino­sas, é pesado de carregar: conduzamo-lo nós ambos.

Dando-lhe nossos braços, Calderaro à direita e eu à esquerda, reparei que o paciente não reagia; compreendendo, talvez, a inanidade de qualquer re­beldia, deixava-se levar sem protesto.

Colocamo-nos, assim, em jornada rápida.

Em breves minutos penetrávamos confortável residência, onde uma senhora, na sala de estar, tri­cotava, junto de dois filhos pequeninos.

A conversação doméstica era doce, cristalina.

— Mamãe — dizia o menorzinho — onde está o Neneco?

— Voltou ao serviço.

— E Celta?

— No colégio.

— E Marquinhos?

— Também.

— Eu queria dodo o mundo» aqui em casa...

— Para quê? — indagou a genitora, sorrindo.

— Sabe, mamãe? para rezarmos por papai. A senhora reparou, ontem à noite, como estava aflito e abatido?

A jovem matrona transluziu certa angústia nos olhos, mas objetou, em tom firme:

— Confiemos em Deus, meu filhinho! O mé­dico recomendou-nos tranquilidade, e estou conven­cida de que a Providência nos ouvirá.

Lançou inteligente olhar sobre a criança e acentuou:

— Vá distrair-se, Guilherme; vá brincar.

O pequeno Guilherme, porém, descansou o bra­ço direito sobre um livro de primeiras letras, cis­mando, como se indiretamente percebesse nossa presença, enquanto a senhora súbito abandonava o tricô, para chorar num quarto, a distância.

Acompanhávamos a cena, comovidos, quando Cipriana se dirigiu a Camilo, desapontado:

— Continuemos. Efetivamente, nosso amigo subtraiu-te a vida física, noutro tempo, contraindo assim dolorosa divida; entretanto, a voz deste me­nino devotado à prece não te sensibiliza o espírito endurecido? Este é o lar que o Pedro criminoso instituiu para criar o Pedro renovado... Aqui trabalha ele, exaustivamente, para retificar-se perante a Lei. Compreendendo a responsabilidade terrível, assumida com o golpe que te aplicou sem reflexão, meteu ombros a uma atividade desordenada e in­cessante, derruindo os centros físicos. Antes dos cinquenta anos, no corpo terrestre, revela evidentes sinais de decrepitude. Se cometeu falta grave, tem feito o possível por erguer-se, numa vida nobre e útil. Amparou devotada mulher no instituto do casamento, deu refúgio a cinco filhinhos, esforçando-se por norteá-los para o bem, através do tra­balho honesto e do estudo edificante. Sem dúvida, Pedro cresceu no conceito dos amigos, galgou po­sição de abastança material; todavia, sabe agora, de experiência própria, que o dinheiro não solu­ciona problemas fundamentais do destino e que o elevado conceito que possamos conseguir dos ou­tros nem sempre corresponde à realidade. Não obstante todas as vantagens conquistadas no âm­bito material, tem vivido enfermo, infortunado, afli­to... Apesar disto, tem a seu crédito o serviço realizado com boas intenções, o reconhecimento de uma companheira que o nobilita e as preces de cinco filhos agradecidos.

Quanto a ti, que fizeste? Faz precisamente vin­te anos que não abrigas outro propósito senão o de extermínio, O desforço detestável tem sido o objeto exclusivo de teus intuitos destruidores. Teu sofrimento, agora, nasce da volúpia da vingança. Vale a pena ser vítima, receber a palma santificante da dor, para descer tanto na escala da vida?

A benfeitora fêz breve pausa, fitou-o compa­decidamente, e prosseguiu:

— Contudo, Camilo, nossa palavra enérgica não se faz ouvir neste santuário, à laia de juízo irrecorrível. És, acima de tudo, nosso irmão, cre­dor de nosso afeto, de nossa estima leal. Com o te visitar, nosso objetivo é ajudar-te. Talvez re­cuses nossa aliança fraterna, mas confiamos em tua regeneração. Também nós, em épocas remotas, demoramos no desfiladeiro fatal, a que te conduziste. Passamos longo tempo, na atitude da serpe venenosa, concentrada em si mesma, aguardando o ensejo de exterminar ou de ferir. No entanto o Senhor Todo Misericordioso nos ensinou que a verdadeira liberdade é a que nasce da perfeita obe­diência às Suas leis sublimes, e que só o amor tem suficiente poder para salvar, elevar e remir. Somos todos irmãos, suscetíveis das mesmas quedas, fi­lhos do mesmo Pai... Não te falamos, pois, como anjos, senão como seres humanos regenerados, em peregrinação aos Círculos Maiores!

Havia tal inflexão de carinho naquelas ternas e sábias considerações, que o perseguidor, dantes frio e impassível, prorrompeu em pranto. Mau grado tal modificação, alçou o indicador na dire­ção de Pedro e exclamou:

— Quero ser bom, e, todavia, sofro! Confran­gem-me atrozes padecimentos. Se Deus é compas­alvo, porque me deixou ao desamparo?!

Aqueles soluços, a explodirem-lhe da alma tor­turada, feriam-me fundo o coração. Como não cho­rar também, ali, ante aquela cena simbólica? Ca­milo e Pedro, entrelaçados no crime e no resgate, não representavam todos nós, os seres humanos falíveis? Cipriana, tolerante e maternal, não perso­nificava a Compaixão Divina, sempre inclinada a ensinar com o perdão e a corrigir através do amor?

Ouvindo as palavras do verdugo, a missionária observou:

— Quem de nós, meu amigo, poderá apreen­der toda a significação do sofrimento? Indagas a razão por que permitiu o Senhor atravessasses tão dura prova... Não será o mesmo que interrogar o oleiro pelos motivos que o compelem a cozer o delicado vaso em calor ardente, ou inquirir do artista os propósitos que o levam a martelar a pedra bruta, para a obra-prima de estatuária? Camilo, a dor expande a vida, o sacrifício liberta-a. O martírio é problema de origem divina. Tentando solvê-lo, pode o espírito elevar-se ao píncaro res­plandecente ou precipitar-se em abismo tenebroso; porque muitos retiram do sofrimento o óleo da pa­ciência, com que acendem a luz para vencer as próprias trevas, ao passo que outros dele extraem pedras e acúleos de revolta, com que se despenham na sombra dos precipícios.

Notando que o desventurado chorava amarga­mente, Cipriana continuou, depois de breve silêncio:

— Chora! Desabafa-te! O pranto de compun­ção tem miraculoso poder sobre a alma ferida.

Calou-se a emissária por minutos. Seus olhos muito lúcidos pareciam agora vaguear em paisagem distante...

Recolheu Camilo, quase maquinalmente. nos braços, conservando os contendores conchegados ao peito, qual se lhes fora mãe comum.

Transcorrido algum tempo, dirigiu carinhoso olhar ao algoz de Pedro e prosseguiu:

— Comentas o mal que te feriu, invocas a Pro­vidência com expressões desrespeitosas... Ó meu filho, cala o dom de falar quando não puderes ser­vir ao bem. Vivi igualmente na Terra e não pa­deci quanto devia, considerado o tesouro da ilumi­nação espiritual que recebi do Céu pela dor. Perdi meus sonhos, meu lar, meu esposo, meus filhos!

O Senhor mos deu, o Senhor mos retomou. Meus dois rapazes foram assassinados numa guerra civil, em nome de princípios legais; minhas duas filhas, seduzidas pelo fascínio do prazer e do ouro, escar­neceram de minhas esperanças e permanecem na esfera sombria, emaranhadas em perigosas ilusões. O esposo era o único amigo que me restava; entre­tanto, quando a lepra acometeu minha carne, aban­donou-me também, empolgado por visível horror. Desprezaram-me todas as afeições, fugiram os fa­vores do mundo; contudo, enquanto meus membros se desatavam do corpo que se corrompia, quando me achava relegada ao extremo desamparo dos que me eram caros, robustecia-se dentro em mim o cântico da esperança. Minhalma glorificava o Se­nhor da Vida Triunfante... Concedera-me Ele, um dia, todas as graças da saúde e da mocidade, retomando, em seguida, esses bens, que eu guardava por empréstimo. Privou-me dos entes queridos, desfez-me o equilíbrio orgânico, enviou-me a fome e a dor; no entanto, quando a minha solidão se fez amarga e completa, minha fé elevou-se mais clara e mais viva... Que necessitava eu, miserável mulher, senão padecer, para santificar a espe­rança? que não precisarei ainda, para lograr o acesso às fontes superiores? quem somos nós, se­não vaidosos vermes com inteligência mal aplicada, aos quais se tem de mil modos manifestado a Mi­sericórdia Infinita, mas em vão?

Foi, então, a vez de Camilo ajoelhar-se.

Do tórax de Cipriana partia radioso, feixe de luz, que lhe atravessava o coração, qual venábulo de luar cristalino.

O infeliz, genuflexo agora, beijava-lhe a des­tra, num transporte comovente de gratidão, rocian­do-a de lágrimas.

— Sim — disse ele, chorando — não me falaríeis desta maneira, se me não amasseis! Não são vossas palavras que me convencem... senao o vosso sentimento que me transmuda!

E, como acontecera a Pedro, também gritou:

— Mãe do Céu, libertai-me de minhas próprias paixões! Desfechai-me as algemas que eu mesmo forjei... quero fugir de minhas sinistras recorda­ções... quero partir, esquecer, empenhar-me na luta regeneradora, recomeçando a trabalhar!

Cipriana confiou-nos o doente, cujo veículo denso descansava no hospital próximo, e, num triunfante sorriso de ternura materna, enlaçou o ex-perseguidor, murmurando:

- Abençoado sejas tu, que ouviste o apelo do perdão redentor. Que o Pai te abençoe para sempre! Vamos! A Providência oferece trabalho regenerativo a todos nós...

Abraçou-se à figura repulsiva do ex-verdugo, aconchegou-o ao coração e aproximou-se de nós, dirigindo-nos a palavra gentilmente:

— Irmãos, agradeço-lhes o concurso fraterno. Nosso amigo sofredor seguirá em minha compa­nhia. Espero localizá-lo em terreno de atividade restauradora.

E, antes de despedir-se, notificou ao meu ori­entador:

— Irmão Calderaro, aguardo-lhe a colabora­ção hoje à noite, em favor de Cândida, que deve regressar ao nosso lado amanhã, em definitivo. Precisamos salvar-lhe da loucura total a filhinha.

Retirou-se a mensageira, conduzindo o trans­viado como se lhe fôra precioso fardo, enquanto nova luz me dealvava o espírito.

O Assistente tocou-me o ombro e falou:

— O coração que ama está cheio de poder re­novador. Certa feita, disse Jesus que existem de­mônios somente suscetíveis de regeneração «pelo jejum e pela prece». As vezes, André, como neste caso, o conhecimento não basta: há que ser o ho­mem animado da força divina, que flui do jejum pela renúncia, e da luz da oração, que nasce do amor universal.

Dispúnhamo-nos a reconduzir o enfermo à casa de saúde, quando a dona da casa assomou à sala, em traje de sair, e disse aos meninos:

— Preparem-se, filhinhos. Visitaremos o pa­pai dentro em pouco.

Transportamos Pedro ao leito, dispensando-lhe os cuidados possíveis.

Em breve, despertava a sorrir, melhorado, quase feliz. Chamou a enfermeira, demonstrando novo brilho no olhar. Não sentia mais a dor per­sistente no peito. Algo — refletia ele — expun­gira-lhe de negrores a cabeça, como a chuva be­néfica lava e darem um céu de chumbo.

Decorrida uma hora, a esposa e os filhinhos pe­netravam no aposento, partilhando-lhe o bem-estar.

Contou-lhes Pedro, chorando de júbilo, que ti­vera um sonho iluminativo; assegurava ter sido visitado pela Mãe Santíssima, que lhe estendera as divinas mãos, transbordantes de luz.

A esposa, ouvindo-o, verteu copioso pranto de alegria e de reconhecimento. E Guilherme, o pe­quenino cheio de fé viva, tomou a destra paterna, osculando-a com filial afeição e agradecimento a Deus.

Sensibilizado, acompanhei a cena íntima em que a família reencontrava a paz e, recordando Cipria­na, com a sua milagrosa atuação salvadora, com­preendi que a mulher, santificada pelo sacrifício e pelo sofrimento, se converte em portadora do Di­vino Amor Maternal, que intervém no mundo para enobrecer o sentimento das criaturas.


6

Amparo fraternal

Noite fechada, encontramo-nos à porta de apo­sento modesto, em santuário humilde.

Gentil irmã de nossa esfera nos aguardava no limiar, saudando-nos, atenciosa.

Avançou Calderaro, perguntando:

— E Cândida? como passa?

— Muito bem. Deve estar conosco, em defini­tivo, amanhã à noite. Irmã Cipriana recomendou-me vigiá-la para que o desenlace se realize pla­cidamente. Creio que nossa desvelada amiga já poderia ter vindo; no entanto, ao que me parece, a filhinha, que deixará na Crosta, reclama certas providências.

Entramos.

No leito, uma senhora, prematuramente enve­lhecida, aguardava a morte. Na fisionomia, os fenô­menos de extinção do tônus vital eram visíveis.

Cândida, a irmã que nos merecia tanto cari­nho, prendia-se ainda ao corpo através de fios muito frágeis. Pela doce luz que lhe nimbava a fronte, emitida por sua própria mente, eu lhe observava a grandeza dalma, o sereno heroismo.

Junto dela, uma jovem, de rosto pálido e cor­po alquebrado, acariciava-lhe os cabelos grisalhos, enxugando, de momento a momento, as lágrimas em contínuo fluxo.

O Assistente indicou-me, explicando:

— É a filha a despedir-se. Ouçamo-las.

Cândida, amimando-a com dificuldade, falava, comovida:

— Julieta, minha filha, tenha cuidado consigo. Você sabe que, provavelmente, não mais me levan­tarei. Receio deixá-la entregue aos embates do mundo, sem mãos amigas...

A moça trazia a garganta comprimida. O pran­to copioso testemunhava-lhe a extrema angústia.

A mãezinha, porém, refreando a custo a co­moção, prosseguia, generosa:

— Meus filhos abandonaram-nos. Estamos só­zinhas e precisamos pensar. Noto-a perturbada e mais aflita nestes últimos dias. Tenho a impressão de que o dinheiro não dá para nossas despesas. Que estará acontecendo? Tenho sido tão pesada à sua juventude! Entretanto, permaneço confiante em Jesus. Diariamente rogo ao Senhor não nos de­sampare. Temo que seu destino se desvie do caminho reto por minha causa... De outras vezes, filhinha, receio que você acabe enlouquecendo...

E depois de ligeira pausa, em que apertou mais carinhosamente a destra da mocinha, que não apa­rentava mais de vinte anos, a enferma continuou:

— Ouça: Você não ignora que nos últimos me­ses a despesa tem sido enorme. As intervenções que sofri foram melindrosas e longas. As con­tas são gigantescas. E o dinheiro? Tranquilize-me. querida!

A moça enxugou as lágrimas abundantes e in­formou:

— Não se aflija, mamãe! Temos o necessá­rio. Estou trabalhando.

— Mas a costura rende tão pouco! — acen­tuou a enferma em tom desalentado.

— Oh! não se vexe tanto! Além dos nossos recursos naturais, tomei pequeno empréstimo. Den­tro de alguns meses tudo retomará o ritmo normal.

— Permita-o Deus.

Findo intervalo mais longo, indagou a doente:

— Onde está o Paulino?

A filha ruborizou-se e respondeu, acanhada:

— Não sei, mamãe.

— Não se vêem há muito?

— Não — tornou a moça, tímida.

— Desejaria vê-lo. Temo partir de um mo­mento para outro... e não vejo pessoa a quem solicitar assistência para a sua mocidade. Que será de você, sôzinha, ao sabor das circunstâncias? O mundo está referto de homens maus, que es­preitam o ensejo de flagiciar...

Nesse instante, dos olhos lúcidos de Cândida escaparam algumas lágrimas, que me abrasaram o coração.

— Se eu morrer, minha filha — prosseguiu com tocante acento —, não se deixe arrastar pelas tentações. Procure recursos no trabalho digno, não se impressione com as promessas de vida fácil. Você sabe que a minha viuvez nos deparou difi­culdades angustiosas; seu pai, contudo, nos deixou uma pobreza honesta e cheia de bênçãos. Em ver­dade, seus irmãos, fascinados pelo ganho material, relegaram-nos ao abandono, ao esquecimento, mas nunca me arrependi da humildade e do trabalho... Cedo perdi a saúde, e mui breve os desenganos me lancinaram o coração; todavia, neste grabato de silêncio e de dor, a paz é a coroa de minha alma e reconheço que não há fortuna maior que a cons­ciência tranquila... Sabe o Senhor os motivos de nossos sofrimentos e privações, e só nos cabem razões para louvá-Lo .. De tudo quanto padeci remanesce-me um tesouro: seu devotamento, minha filha. Seu carinho enriquece-me. Morrerei feliz, sa­bendo que um coração de filha me lembrará na Terra com as preces do amor que nunca morre... Entretanto, Julieta, não desejo que você seja boa e dócil tão-somente para comigo; obedeça igualmente a Deus, consagre-Lhe amor e confiança. Ele é nosso Pai de Infinita Bondade e de nós pede ape­nas um coração singelo e uma vida pura. Confor­me-se, filhinha, com os desígnios divinos, no tur­bilhão das provas humanas, e não descoroçoe!

— Ó mamãe! não prossiga — soluçou a jo­vem, desabafando-se —, não prossiga! Estaremos sempre juntas. A senhora não morrerá. Viveremos uma para a outra, jamais nos separaremos... Acal­me-se! não quero vê-la aflita... Tudo passará, O médico prometeu-me iniciar tratamento mais enér­gico. Tenhamos fé!

Cândida esboçou triste sorriso, acariciou as mãos da jovem e falou:

— Obrigada, minha filha! estou calma e feliz... Olhou, em seguida, os ponteiros do relógio pró­ximo e acrescentou:

— Vá sossegada! o horário de nossa palestra terminou.

Beijaram-se, comovidamente. E Julieta, após carinhoso adeus, afastou-se.

— Sigamo-la — disse Calderaro, atento; de­vemos assisti-la com recursos magnéticos. Tenho instruções de Cipriana a respeito.

Em caminho, o instrutor esclareceu-me a história da agonizante:

(Enviuvara Cândida muito moça, com três fi­lhos: dois rapazes e Julieta, cuja educação lhe impusera amarga renúncia dos bens da vida. Lutara, trabalhara e sofrera, com resignação e coragem. Os filhos varões, a quem revoltava a pobreza do lar materno, abandonaram-na, buscando centros distantes, por atender a impulsos menos edifican­tes da mocidade. Perseverou a viúva na existência singela, consagrada à preparação do futuro da fi­lha. Iniciou-a nos trabalhos de agulha, em que a menina se revelou, de pronto, excelente profissio­nal, mas, depois de alguns anos de provações mais rudes, a nobre genitora caiu, extenuada. Hospita­lizada, sofreu diversas intervenções no campo or­gânico, sem resultados apreciáveis. Tão aflitiva se lhe tornou a situação, que o recolhimento à casa de saúde já se alongava por dez arrastados meses. A princípio, por si só, Julieta conseguiu satisfazer às exigências financeiras. Com o escoar do tempo, viveu, porém, a pobrezinha duelo tremendo entre a necessidade e o esgotamento. Exaustas as pos­sibilidades de que dispunha, recorreu a parentes que se esquivaram, cautelosos; apelou para ami­gos, que se mostraram indiferentes.

As despesas, no entanto, cresciam sempre, implacáveis. A costura não lhe oferecia a compen­sação necessária. Visitava a mãezinha diariamente, ao crepúsculo, pondo-se a par da situação cada vez mais grave. Louca de angústia, bateu a todas as portas, e todas as portas permaneceram seladas. Incapaz de perscrutar aquela situação, em toda a sua profundeza, com a genitora, que naturalmente não lhe desejava o sacrifício, cedeu Julieta a insi­dioso convite. ‘Passou a valer-se da noite, a fim de trabalhar numa casa de diversões, com o intuito exclusivo de agenciar mais dinheiro; cantaria e dançaria, melhorando a receita.

Desde então, passou a representar o papel de uma ovelha assediada por feras, e, por mais que resistisse às solicitações dos sentidos, em dada cir­cunstância não logrou furtar-se ao império das sen­sações. Atraida pelas propostas de um homem, aquele mesmo Paulino a quem a mãe se referira, não teve forças para resistir: aceitou-lhe a prote­ção prematura. Abandonou a máquina de costura e mudou-se do modesto quarto em que penosamente vivia. Fixou-se, então, no centro de diversões no­turnas, e, se comparecia a outros lugares, era sem­pre acompanhada por ele, interessado em tirar-lhe proveito da mocidade e beleza, qual cavalheiro vai­doso a ostentar uma jóia.

(Julieta, no entanto, ocultava a realidade aos olhos maternos. Vestia-se com singeleza para a vi­sita diária, e, quando se fêz acompanhar de Pau-uno, pela primeira vez, no hospital, apresentou-o a Cândida na qualidade de simples amigo.

(As aflições sucessivas da menina alteraram-lhe, porém, a saúde. Achava-se extenuada, doente. Recordando os exemplos maternos, experimentava atrozes perturbacões conscienciais. Os prazeres fá­ceis não lhe amainavam o coração sensível e afe­tuoso, O dinheiro abundante não lograva atenuar-lhe o desalento. A maneira que conquistava alheia admiração para os dotes físicos, parecia perder a paz de si mesma. Presa de incoercível abatimento, passava os dias e as noites sob os fortes atritos da própria razão. Porque não persistira na vida modesta até ao fim? como não se confessar à mãe­zinha, obtendo-lhe a precisa orientação? Por outro lado, sentia-se desculpada: precisava da cooperação financeira de Paulino para socorrer aquela que lhe dera o ser; buscara recursos em todas as fontes que lhe pareceram limpas e acessíveis, e todas as mãos permaneciam cerradas aos seus rogos... Mas, estaria procedendo com acerto? não sentia coragem para tornar à oração de outros tempos. Debatia-se-lhe a mente, angustiada, entre as exigências do mundo material e as imperiosas postulações do espírito.

(No entanto — concluiu Calderaro, atencioso

—, as preces maternas acompanhavam-na, através do escabroso caminho. E Cândida não tem sofrido em vão. Colaboradora fiel de muitos serviços, e credora de muitas bênçãos...

Depois de inteirar-me daquele drama comum a várias mulheres jovens dos nossos dias, segui o orientador até o aposento em que Julieta lhe rece­beria o socorro à organização psíquica em desvario.

Rememorando as palavras ouvidas dos lábios maternos, acolheu-se a jovem num divã, em pranto convulsivo. Torturantes pensamentos se lhe entre­chocavam no cérebro enfermo. Vibrações pesadas» caracterizando-se pela cor muito escura, desciam-lhe da fronte e fixavam-se no aparelho respirató­rio. Represavam-se na pleura, invadiam os alvéolos e daí passavam ao coração, influenciando as trocas sanguíneas, momento em que a substância fluídica das emissões mentais se esvanecia, absorvida pelas artérias. Notei, porém, que esse material oriundo da mente perturbada, imprimindo-se no mecanismo fisiológico, era assimilado pelo sangue, que, a seu turno, o restituia ao cérebro físico, acumulando-se em todas as zonas deste, mais próximas da subs­tância cinzenta.

Reparava, por isso, na jovem, não sômente os olhos rubros e túrgidos de chorar, mas também os pródromos dos mais sérios distúrbios orgânicos.

Identificando as manifestas perturbações no cérebro e no bulbo raqueano, encarei o meu orien­tador e perguntei:

— Não estaremos aqui ante a misteriosa ori­gem da encefalite letárgica?

— Muito mais do que isto — respondeu Calde­raro, sorrindo —; a mente desvairada emite forças destrutivas, que, se podem atingir os outros, alcan­çam, em primeiro lugar, o cosmo orgânico do emis­sor. Decidindo-se Julieta por um gênero de vida que lhe provoca violentos e contínuos conflitos na mente, passou a despedir energias fatais para ela mesma. Dotada de distinta educação, haurida ao contacto materno que lhe aprimorou as concepções e lhe enobreceu os sentimentos, incompatibilizou-se com uma existência de nível mais baixo na Crosta Planetária: a preparação do espírito ilumina inva­riàvelmente. Possuindo, destarte, sublime claridade interior para a jornada humana, colheria natural­mente paz, alegria e edificação no exercício de suas faculdades femininas, desde que se lhe oferecesse um campo de luta em que sentisse a sadia manifestação dos poderes de sua alma, O casamento digno é o campo indicável ao seu caso de mulher nobilitada pelo conhecimento e pela virtude. Ce­dendo, no entanto, às tentações de que foi alvo, sente-se intimamente precipitada escada abaixo. Todos os dias é constrangida, no silêncio, a recor­dar a exemplificação da genitora, a reconsiderar a própria atitude diante da vida e a reconhecer que se encontra desajustada. Nesse atrito incessante, agravado pelas péssimas emissões fluídicas do am­biente de que se tornou frequentadora habitual, sua mente desce à região dos impulsos instintivos, ex­perimentando extrema dificuldade em subir ao cas­telo das noções superiores, de onde a luz da cons­ciência lhe dirige vigorosos apelos para que retorne à simplicidade e à harmonia. Tal situação impede-lhe a prece fervorosa, santificante e regeneradora, e daí o caos em que a pobrezinha tateia. E’ sufi­cientemente educada para colher qualquer beneficio do meio onde levianamente se projetou, e, domi­nada pela permanente angústia, faz demasiada pres­são sobre a matéria cinzenta, dando causa a la­mentáveis desequilíbrios orgânicos.

Calderaro interrompeu-se por alguns instantes, à maneira do professor que abre caminho à refle­xão do aprendiz, e acrescentou, sereno:

- Não está ela, pois, simplesmente ameaça­da pela encefalite letárgica: avizinha-se da loucura com estádios por distúrbios vários, provocados pela disfunção celular. Não sômente isto. Julieta, nas circunstâncias em que a observamos, pode ser atin­gida noutros centros vitais. É capaz de apanhar uma pleurisia como antecâmara para a tuber­culose. Com facilidade será vitima de deploráveis intoxicações do sangue, que se caracterizarão por moléstias indefiníveis dos vasos ou da epiderme, sem excluir as desarmonias fatais do fígado, pro­váveis portadoras da ruína e morte para o veículo denso.

Chegados a este ponto das elucidações, o orien­tador ergueu os olhos e considerou:

— Mas... a justiça divina jamais desconhece a compaixão. As vezes, nossa queda precipitada constitui mero desastre parcial a que nos arrasta o desespero. A Eterna Sabedoria examina o móvel de nossas ações e, sempre que possível, pronto nos reergue. Sômente quando nos mergulhamos no total eclipse do amor e da razão, deliberadamente fugindo aos processos do socorro divino, manten­do-nos nas trevas completas do ódio e da negação, defrontamos com absoluta dificuldade de receber influências salvadoras; então, deveremos esperar os atritos cruéis do tempo, aliados às forças, de ca­ráter compulsivo, das leis universais. Se a jovem não pode elevar-se a plano superior, como ave fe­rida pelo tiro de caçador impiedoso, a mãezinha doente permanece em poderosas orações transfor­madoras. Caiu a filha para socorrer-lhe o corpo, mas Cândida alcandorou-Se mais por salvar-lhe a alma. Em vista disto, o amoroso poder de Cipriana agirá esta noite.

Calou-se o meu interlocutor, submetendo a lacrimosa menina ao auxílio magnético de nosso plano, subtraindo-lhe certa quantidade de material escuro, segregado pela própria mente e acumulado ao longo do cérebro, o que levou a efeito sem obs­táculos dignos de menção. Todavia, como deixasse um tanto de tal substância na câmara cerebral, indaguei a causa dessa deliberação.

O amigo tomou significativa expressão fisio­nômica e esclareceu:

— Tenho instruções relativas ao caso. Julieta não deve receber hoje nosso concurso integral. Pre­cisa manter-se enferma do corpo, de modo a au­sentar-se das noitadas que costuma praticar. Em breves horas será conduzida, junto de Paulino, em espírito, ao quarto de Cândida, onde a irmã Cipria­na pretende dirigir-se a ele, valendo-se das breves horas de desprendimento parcial pelo sono.

Compreendi tudo e, mais uma vez, admirei a ordem imanente na esfera do espírito.

Em seguida, conduziu-me Calderaro ao serviço de assistência a um irmão sofredor, cujo caso exa­minaremos no próximo capítulo, a fim de não per­dermos o fio do processo de auxílio a Julieta.

Por volta das duas horas, em plena madru­gada, regressou comigo o instrutor ao modesto apo­sento de Cândida; esta, fora do mirrado invólucro material, repousava nos braços de Cipriana, que lhe afagava a fronte com ternura de mãe.

A doente, gozando extrema lucidez, fora do campo fisiológico, respondeu-nos às saudações, tran­quila e feliz. Outros amigos conservavam-se ao lado dela, reconfortando-a para o transe definitivo.

Permutávamos impressões, prazerosamente, quando dois irmãos de nosso plano penetraram o quarto, conduzindo Julieta e um cavalheiro que identifiquei por intuição.

Confirmou Calderaro, esclarecendo:

— É Paulino, que vem ouvir-nos.

Diante de Cipriana, que sustentava a enferma nos braços carinhosos, ajoelharam-se ambos ins­tintivamente, chorando comovidos. Ajudados pela assistência magnética dos mensageiros que os tra­ziam até nós, contemplavam-nos a todos, sob forte admiração, relevando, porém, notar que a luz de nossa benemérita instrutora lhes reclamava aten­ção maior. Sentiam-se humilhados e aflitos. Re­conheciam, ali, a presença de alguma coisa do po­der celestial.

Mantinham-se confundidos e em lágrimas, quando Cipriana se dirigiu ao moço, de maneira particular:

— Paulino, falo-te em nome da Divina Justiça. Que o Senhor te abençoe, a fim de que me ouças com os ouvidos da razão! Escuta! Não supôes Ju­lieta digna de teu braço vigoroso e trabalhador para a jornada terrestre? Que fazes da mocidade? uma simples aventura dos sentidos? Não interpre­tas a experiência humana como estrada prepara­tória da eternidade? que juízo fazes da vida e dos seus sublimes dons? Não partilhes o ingrato labor dos nossos irmãos menos esclarecidos, que preten­dem converter a mulher numa cobaia infeliz para o jogo dos sentidos. Dignifica a tua existência de homem, honrando o sacerdócio feminino. Renas­ceste na Terra, guardado por seu devotamento cresceste sob os cuidados maternos, e encontrarás, ainda, na mulher, o vaso dileto para os teus sonhos de paternidade criadora. Porque persistir no vai­doso domínio de uma criança pobre, por mero Im­pulso de egoísmo e de ostentação? Não te confran­ge contemplar a prolongada aflição de Cândida, atormentada por atroz pesadelo, ante a incerteza dolorosa do porvir da filha? Desperta para os teus compromissos de natureza superior. Não vieste ao mundo simplesmente para gozar. A existência ter­restre, meu amigo, é abençoado colégio de ilumi­nação renovadora. Que motivos te impelem a um condenável procedimento? Ës bom e útil, inteli­gente e nobre. Porque te furtas à responsabilida­de santificante?

Nesse momento, Paulino, que chorava sob in­sopitável comoção, não falou, mas emitiu pensamentos que se fizeram claros para nos.

Não hesitaria quanto ao casamento — ponde­rava, raciocinando —; todavia, encontrara Julieta fora do santuário doméstico. Conhecera-a num cír­culo de pessoas menos responsáveis, em clima de su­gestões que não convidavam à elevação espiritual. Não seria prudente defender-se? não lhe consti­tuía obrigação organizar o matrimônio em bases mais sólidas? Aproximara-se da jovem num clube noturno. Encontrara-a sem lar.

A Irmã Cipriana alcançou-lhe as ponderações, porque tornou, firme, após ligeira pausa:

— Perante o teu critério de homem de bem, as aflições de Julieta a tornam credora de maior amparo. A pobrezinha não procurou uma casa de entretenimentos menos dignos, alimentando segun­das intenções. Não lhe conheces, porventura, as preocupações absorventes de filha dedicada? Não sabes que seus pés alí buscavam trabalho e arrimo, proteção e recurso? Enquanto diligenciavas mera distração para a mente ociosa, Julieta vivia humi­lhações, tentando ganhar o remédio necessário à mãezinha enferma... Como absolver a ti mesmo e condená-la? com que direito chasqueaste a res­peitabilidade de uma jovem que visava a tão sagra­dos objetivos? Haverá vileza no Sol quando seus raios incidem no pântano? será culpado o lirio que adereça um cadáver? Paullno, sacode a consciência adormentada pelas facilidades humanas! ainda não sofreste quanto devias, para santificar e amar a vida. Não desprezes o ensejo que se te oferece! Coopera no resgate de jovem mulher que te não surgiu no caminho por mero acaso, O amor e a confiança não constituem obras de improviso: nascem sob a bênção divina, crescem com a luta e consolidam-se nos séculos. A simpatia, no mais das vezes, é a realização de milênios. Não te aproxi­marias de Julieta, com tamanho apego, se ela já não figurasse em teu pretérito espiritual. Dedica-te a ela, salva-a da loucura e da inutilidade. Ofere­ce-lhe o braço de esposo, honrando a vida, antes que a morte te despedace o vaso físico nas mãos invencíveis. É mais nobre dar que receber, mais belo amar que ser amado, mais divino sacrificar-se que extorquir alheios sacrifícios. Não te cause mossa a crítica do mundo. A sociedade humana évenerável em seus fundamentos, mas injusta quan­do extermina os germes de regeneração espiritual para a vida superior, a pretexto de preservar-se. Vem a nós, Paulino! O Senhor abençoar-te-á o gesto digno. Amanhã Cândida viverá as horas derradeiras da atual existência. Dá-lhe a paz, res­titui-lhe o bem-estar, pelo muito que se mortificou para conservar a filha em posição respeitável. Não permitas que o amor se perverta em tua alma. Santifica-o com a responsabilidade, fortifica-o com os teus dotes naturais, e a Providência estará ao teu lado por todo o sempre.

Calou-se a instrutora, mas de seu coração par­tiam raios de safirina luz, envolvendo o rapaz integralmente.

O cavalheiro ergueu os olhos lacrimosos, con­templando-a, reconhecido, e declarou:

— Recebo a vossa palavra como se fora a de minha Mãe Celestial. Fazei de mim o que vos aprouver. Estou pronto...

Cipriana depositou Cândida no invólucro físico, afetuosamente, e dirigiu-se ao jovem par, acrescentando:

— Que o Pai nos abençoe a todos.

Julieta e Paulino foram reconduzidos ao apo­sento do qual tinham vindo, e nós, de nossa parte, dilatamos a permanência no quarto da enferma, em auxilio ao (processo desencarnatório».

As oito horas da manhã, Cipriana suprimiu-lhe a maior parte das forças. Chamado pela enfermeira vigilante, o médico prognosticou a morte próxima.

Reclamada a presença da filha, compareceu a jovem depois do meio-dia, seguindo-se-lhe Paulino, visívelmente comovido.

Que belo que é verificar a influência indireta do plano superior sobre os companheiros terrestres!

Como haviam procedido nas horas de sono car­nal, assim, ao observarem a venerável senhora em plena agonia, ajoelharam-se ambos, lacrimosos, quase na mesma posição de horas antes.

Cândida fixou o rapaz em atitude suplicante, e falou-lhe, com dificuldade, embora Cipriana lhe não deixasse fugir as energias, mantendo a des­tra luminosa sobre a sua cabeça. A agonizante comentou, comovedoramente, a angústia que lhe tor­turava o espírito. Receava deixar a filha inexpe­riente no mundo, à mercê das tentações. Apelava para o cavalheirismo de Paulino, que a não deixou terminar. De olhos rasos dágua, colocou o indi­cador nos lábios da respeitável moribunda, confor­tando-a.

— Dona Cândida — disse, atencioso —, não fale mais nisso. Amanheci hoje com um propósito irremovível: Julieta e eu nos casaremos, dentro em poucos dias. Amanhã mesmo iniciaremos o pro­cesso de legalização do nosso compromisso, antes que qualquer circunstância interfira por empecer nossos desejos. Fique, pois, descansada. A partir de agora, sou também seu filho.

A agonizante, chorando copiosamente, fêz um sinal.

Julieta aproximou-se, enquanto Paulino colava o rosto aos seus cabelos prematuramente encane­cidos. Foi então que Cândida, amparada por Ci­priana, lhes uniu as mãos, num gesto simbólico, osculando-as enternecidamente.

Foi seu derradeiro movimento no corpo exaus­to. Em breves minutos, as pálpebras físicas cerraram-se para sempre, enquanto os olhos espiri­tuais se abririam entre nós, para a contemplação dos trilhos refulgentes da Eternidade.


7

Processo redentor

Retirando-nos do hospital, em a noite que pre­cedeu à desencarnação de Cândida, o Assistente observou:

— Não temos tempo a perder.

Efetivamente, o trabalho de socorro à prezada enferma absorvera-nos algumas horas.

— Nosso esforço — continuou o prestimoso amigo — tem por especial escopo impedir a con­sumação dos processos tendentes à loucura. A rede de amparo espiritual, neste sentido, é quase infi­nita. A positiva declaração de desarmonia mental constitui sempre o término de longa luta. Claro está que não incluimos aqui os casos puramente fisiológicos, mormente em se tratando da invasão da sífilis na matéria cerebral; reportamo-nos aos dramas íntimos da personalidade prisioneira da in­troversão, do desequilíbrio, dos fenômenos de invo­lução, das tragédias passionais, episódios esses que deflagram no mundo, aos milhares por semana. Nas esferas imediatas à luta do homem vulgar, onde nos achamos presentemente, são inúmeras as organizações socorristas dessa natureza. É impres­cindível amparar a mente humana na Crosta Pla­netária, em seus deslocamentos naturais. A vasta escola terrestre exige incessante e complexa cola­boração espiritual. indubitavelmente, a Divina Sabedoria não se descuidou da programação prévia de serviço, neste particular. Se encarregou a Ciên­cia de superintender o desdobramento harmonioso dos fenômenos pertinentes à zona física, se incum­biu a Filosofia de acompanhar essa mesma Ciência, enriquecendo-lhe os valores intelectuais, confiou à Religião a tarefa de velar pelo desenvolvimento da alma, propiciando-lhe abençoadas luzes para a jornada de ascensão. A crença religiosa, todavia, mormente nos últimos anos, tem-se revelado inca­paz de tal cometimento: falta-lhe pessoal adequa­do. Enquanto a edificação científica no mundo se apresenta qual árvore gigantesca, abrigando, em seus ramos refertos de teorias e raciocínios, as in­teligências encarnadas, a Religião, subdividida em numerosos setores, dá a ideia de erva raquítica, a definhar no solo. O Amor Divino, porém, não igno­ra os obstáculos que assoberbam os círculos da fé. Se à investigação do conhecimento basta o valor intelectual, o problema religioso demanda altas pos­sibilidades de sentimento. A primeira requer obser­vação e persistência; o segundo, todavia, implica vocação para a renúncia. A vista disto, colabo­rando com os trabalhadores decididos, inúmeras le­giões de auxiliares invisíveis ao olhar humano se desdobram, em toda parte, socorrendo os que sofrem, incentivando os que esperam firmemente no bem, melhorando sempre. Nosso esforço, por­tanto, em torno da mente encarnada, é extenso e múltiplo. Forçoso é convir, no entanto, que, se o programa dá motivo a preocupações, é também fonte de prazer. Experimentamos o contentamento de irmãos mais velhos, capazes de prestar auxilio aos mais novos. Indiscutívelmente, somos, em hu­manidade, uma só família.

Verificando-se pausa natural nos esclarecimen­tos de Calderaro, indaguei, curioso:

— Como se opera, entretanto, a administração de tais auxílios? Indiscriminadamente?

— Não — explicou o interpelado —, o senso de ordem preside-nos à atividade em todas as cir­cunstâncias Quase sempre é a força intercessória que determina os processos de ajuda. A prece, re­presentada pelo desejo não manifestado, pelas as­pirações íntimas ou pelas petições declaradas, pro­veniente da zona superior ou surgida do fundo vale, onde se agitam as paixões humanas, é, a rigor, o ascendente de nossas atividades.

Dispunha-me a formular certa pergunta, oriun­da de velhas concepções do separatismo religioso, quando Calderaro, percebendo-me a pondera­ção prestes a exprimir-se, acrescentou, calmo:

— Não aludimos, aqui, a orações ou a aspi­rações de correntes idealísticas determinadas: o dístico não interessa. Colaboramos com o espírito eterno em sua ascensão à zona divina, aduzindo novas forças ao bem, onde ele se encontre, inde­pendentemente de fórmulas dogmáticas, ou não, com que ele se manifeste nos círculos humanos. Nosso problema não é de favoritismo, senão de es­piritualidade superior, mercê da união dos valores substanciais, em favor da vida melhor.

A essa altura das lições que eu recebia em forma de palestra ligeira, enquanto nos movimentávamos em serviço, atingimos residência de aspec­to simples, que se distinguia pelo jardim bem cuidado, em toda a volta.

— Temos, aqui — disse-me, o instrutor —, in­defesso companheiro de outras épocas, reencarna­do em dolorosas condições. De algumas semanas para cá, assisto-lhe a mãezinha através de passes reconfortantes. Em virtude da horrível estrutura orgânica do filho, a ela encadeado há muitos sé­culos, a razão da pobrezinha está periditando; pren­dem-se mútuamente por grilhões de graves com­promissos. Considerando-lhe o nobre costume da oração em horário prefixado, valemo-nos dessas ocasiões para vir-lhe em amparo.

Admirando a ordem instituída para os quefa­zeres de nosso plano, e que transparecia nas mínimas ações, silenciosamente acompanhei Caldera­ro ao interior doméstico.

Em rápidos minutos achávamo-nos em pequena câmara, onde magro doentinho repousava, chora­mingando. Cercavam-no duas entidades tão infeli­zes quanto ele mesmo, pelo estranho aspecto que apresentavam. O menino enfermo inspirava piedade.

— É paralítico de nascença, primogênito de um casal aparentemente feliz, e conta oito anos na existência nova — informou Calderaro, indican­do-o —; não fala, não anda, não chega a sentar-se, vê muito mal, quase nada ouve dá esfera hu­mana; psiquicamente, porém, tem a vida de um sentenciado sensível, a cumprir severa pena, lavra­da, em verdade, por ele próprio. Há quase dois séculos, decretou a morte de muitos compatriotas numa insurreição civil. Valeu-se da desordem po­lítico-administrativa para vingar-se de desafetos pessoais, semeando ódio e ruínas. Viveu nas regiões inferiores, apartado da carne, inomináveis su­plícios. Inúmeras vítimas já lhe perdoaram os cri­mes; muitas, contudo, seguiram-no, obstinadas, anos afora... A malta, outrora densa, rareou pou­co a pouco, até que se reduziu aos dois últimos inimigos, hoje em processo final de transformação. Com as lutas acremente vividas, em sombrias e dantescas furnas de sofrimento, o desgraçado aprestou-se para esta fase conclusiva de resgate; conseguiu, assim, a presente reencarnação com o propósito de completar a cura efetiva, em cujo pro­cesso se encontra, faz muitos anos.

A paisagem era triste e enternecedora. O doen­te, de ossos enfezados e carnes quase transparentes, pela idade deveria ser uma criança bela e feliz; ali, entretanto, se achava imóvel, a emitir gritos e sons guturais, próprios da esfera sub-humana.

Com o respeito devido à dor e com a obser­vação imposta pela Ciência, verifiquei que o pequeno paralítico mais se assemelhava a um des­cendente de símios aperfeiçoados.

- Sim, o espírito não retrocede em hipótese alguma — explicou Calderaro —; todavia, as for­mas de manifestação podem sofrer degenerescên­cia, de modo a facilitar os processos regenerativos. Todo mal e todo bem praticados na vida impõem modificações em nosso quadro representativo. Nosso desventurado amigo envenenou para muito tempo os centros ativos da organização perispiritual. Cer­cado de inimigos e desafetos, frutos da atividade criminosa a que se consagrou voluntàriamente, per­manece quase embotado pelas sombras resultantes dos seus tremendos erros. No campo consciencial, chora e debate-se, sob o aguilhão de reminiscências torturantes que lhe parecem intérminas; mas os sentidos, mesmo os de natureza física, mantêm-se obnubilados, à maneira de potências desequilibra­das, sem rumo... Os pensamentos de revolta e de vingança, emitidos por todos aqueles aos quais de­llberadamente ofendeu, vergastaram-lhe o corpo perispiritual por mais de cem anos consecutivos, como choques de desintegração da personalidade, e o infeliz, distante do acesso à zona mais alta do ser, onde situamos o (castelo das noções superiores, em vão se debateu no (Campo do esforço presente, isto é, à altura da região em que loca­lizamos as energias motoras; é que os adversários implacáveis, apegando-se a ele, através da influên­cia direta, compeliram-lhe a mente a fixar-se nos impulsos automáticos, no império dos instintos; permitiu a Lei que assim acontecesse, naturalmente porque a conduta de nosso infortunado irmão fora igual à do jaguar que se aproveita da força para dominar e ferir. Os abusos da razão e da autori­dade constituem faltas graves ante o Eterno Go­verno dos nossos destinos.

O estimado Assistente fitou-me com seus olhos muito lúcidos e perguntou:

— Compreendeste?

Como desejasse ver-me suficientemente escla­recido, acrescentou:

— Espiritualmente, este pobre doente não re­grediu. Mas o processo de evolução, que constitui o serviço do espírito divino, através dos milênios, efetuado para glorioso destino, foi por ele mesmo (o enfermo) espezinhado, escarnecido e retardado. Semeou o mal, e colhe-o agora. Traçou audacioso plano de extermínio, valendo-se da autoridade que o Pai lhe conferira, concretizou o deplorável pro­jeto e sofre-lhe as consequências naturais de modo a corrigir-se. Já passou a pior fase. Presente­mente, já se afastou do maior número de inimigos, aproximando-se de amoroso coração materno, que o auxilia a refazer-se, ao término de longo curso de regeneração.

Reparando a estranha atitude dos infelizes de­sencarnados que o seguiam, pretendia indagar algo relativamente a eles, quando Calderaro veio ao encontro de meus desejos, continuando:

— Também os míseros perseguidores são du­endes do ódio e da vingança, como o nosso enfermo é um remanescente do crime. São náufragos na derradeira fase de salvação, após enorme hecatom­be no mar da vida, onde se perderam por muitos anos, por incapazes de usar a bússola do perdão e do bem. Aproximam-se, porém, do porto socor­rista. Voltarão ao Sol da existência terrestre, por intermédio de um coração de mulher que compre­endeu com Jesus o valor do sacrifício. Em breve, André, consoante o programa redentor já delinea­do, ingressarão neste mesmo lar na qualidade de irmãos do antigo adversário. E quando entrelaça­rem as mãos sobre ele, consumindo energias por ajudá-lo, assistidos pela ternura de abnegada mãe, amorosa e justa, beijarão o velho inimigo com imenso afeto. Transmudar-se-ão as negras algemas do ódio em alvinitentes liames de luz, nos quais refulgirá o amor eterno. Chegado esse tempo, a força do perdão restituirá nosso doente à liberdade; largará ele, qual pássaro feliz, este mirrado corpo físico, sufocante cárcere do crime e suas conse­quências, onde se debateu por quase dois séculos. Até lá, importa zelar com empenho pela valorosa mulher que é essa, vestalina senhora deste lar, em quem as Forças Divinas respeitam a vocação para o martírio, por iluminar a vida e enriquecer a obra de Deus.

Mal terminava Calderaro as elucidações, quan­do um dos verdugos desencarnados se moveu e to­cou com a destra o cérebro do doentinho, recomen­dando-me o Assistente examinasse os efeitos desse contacto.

Extrema palidez e enorme angústia transpa­receram no semblante do paralítico. Notei que a infeliz entidade emitia, através das mãos, estrias negras de substância semelhante ao piche, as quais atingiam o encéfalo do pequenino, acentuando-lhe as impressões de pavor.

Dirigi ao Assistente um olhar interrogativo, e Calderaro informou:

— Se o amor emite raios de luz, o ódio arre­messa estiletes de treva. Nos lobos frontais recebemos os «estímulos do futuro», no córtex abri­gamos as «sugestões do presente», e no sistema nervoso, propriamente dito, arquivamos as dem­branças do passado». Nosso pobre amigo está sendo «bombardeado» por energias destrutivas do ódio na região de «serviços do presente», isto é, em suas capacidades de crescimento, de realização e de trabalho nos dias que correm. Tal situação, derivante da culpa, compele-o a descer mentalmente para a zona de «reminiscências do passado», onde o seu comportamento é inferior, ralando pela se­mi-inconsciência dos estados evolucionários primitlvos. Esmagadora maioria dos fenômenos de alie­nação psíquica procedem da mente desequilibrada. Repara o cosmo orgânico.

O doentinho, da aflição, em que se mergulhara, passou às contorções, evidenciando todos os carac­terísticos da idiotia clássica. Os órgãos revelavam agora estranhos deslocamentos, O sistema endó­crino patenteava indefiníveis perturbações.

Compadecido, inclinou-se o instrutor sobre o doente, e esclareceu:

— Os raios destrutivos alcançam-lhe a zona motora, provocando a paralisação dos centros da fala, dos movimentos, da audição, da visão e do go­verno de todos os departamentos glandulares. Na verdade, essa dolorosa situação cronicificou-se, pela repetição desta ocorrência milhares de vezes, em quase duas centenas de anos.

Fez intervalo significativo e tornou:

— Examina a conduta do enfermo. Fixando a mente na extrema .<região dos impulsos automá­ticos», seu padrão de comportamento é efetivamente sub-humano. Volta a viver estados primários, dos quais a individualidade já emergiu há muitos sé­culos. Em outros casos menos graves, a medicina atual vem utilizando a terapêutica do choque, àmaneira do experimentador que investiga nas som­bras, examinando efeitos e ignorando as causas. Cumpre-nos, no entanto, reconhecer que o belo es­forço da psiquiatria moderna merece o maior ca­rinho de nossas autoridades espirituais, que patro­cinam os médicos diligentes e devotados, orientan­do-os para o bem comum, simultâneamente em di­versos centros culturais; por enquanto, não po­dem aceitar a verdade como seria de desejar, em virtude da necessidade de guardar-se a medicina terrena em campo conservador, menos aberto aos aventureiros; todavia, mais tarde os sacerdotes da saúde humana compreenderão que o choque elétri­co, ou a hipoglicemia, provocada pela invasão da insulina, constituem apelos vivos aos centros do organismo perispirítico, convocando-os ao reajusta­mento e compelindo os neurônios a se readaptarem para o serviço da mente em processo regenerador. A bem dizer, é de notar que esse recurso às reser­vas profundas do cosmo psíquico não é novo. Ou­trora, as vítimas da loucura eram conduzidas a poços de víboras, a fim de que a aborrível comoção operasse a transformação súbita da mente dese­quilibrada; é que, desde remota antigüidade, com­preendeu o homem, intuitivamente, que a maioria dos casos de alienação mental decorrem da ausên­cia voluntária ou involuntária da alma à realidade. E, em nosso campo de observação mais clara, po­demos adir que todo desequilíbrio promana do afas­tamento da Lei.

Silenciou Calderaro por alguns instantes e, em seguida, indicou o pequeno, acentuando:

— Neste caso, porém, o choque aplicado pela ciência dos homens não surtiria vantagem alguma. Estamos perante o eclipse total da mente, pela to­tal ausência da Lei com que se conduziu o interes­sado no socorro. A retificação, aqui, reclama tem­po. As águas pantanosas do mal, longamente repre­sadas no coração, não se escoam fàcilmente. O pla­no mental de cada um de nós não é vaso de conteú­do imaginário: é repositório de forças vivas, qual o veículo físico de manifestação, que nos é próprio, enquanto peregrinamos na Crosta Planetária.

— Não estamos, porém, cientificamente falan­do — indaguei —, diante de um caso típico de mongolismo?

O Assistente respondeu sem se embaraçar:

— Acompanhamos um fenômeno de desequilí­brio espiritual absoluto. Em situações raríssimas, teremos perturbações dessa natureza com causas substancialmente fisiológicas. Impossível é desco­nhecer, na esfera carnal, o paralelismo psico-físico. Quem vive na Crosta Terrestre terá sempre a defrontar com a forma perecível, em primeiro lugar. Daí, não podermos excluir da patologia da alma o envoltório denso, nem menosprezar a colabora­ção dos fisiologistas abnegados, que atentos se de­dicam às investigações da fauna microscópica, do reajustamento das formas, do quadro dos efeitos. Não nos esqueça, contudo, que analisamos agora o dominio das causas...

O desvelado amigo parecia disposto a prosse­guir, dilatando-me os conhecimentos a respeito do assunto, quando ouvimos passos de alguém que se aproximava. Certo, a dona da casa vinha ao apo­sento da criança, à procura do socorro da oração.

Concluiu Calderaro, apressadamente:

— Nossos companheiros da medicina humana batizam as moléstias mentais como lhes apraz, de­tendo-se nas questões da periferia, por distraídos dos problemas fundamentais do espírito. Relati­vamente aos assuntos científicos, conversaremos amanhã, quando prestaremos assistência a jovem amigo.

Nesse momento, a mãezinha, que ainda não contava trinta anos, acercou-se do enfermo, sem se dar conta de nossa presença espiritual. Esta­cou, tristonha, de pé junto ao berço, afagando-lhe a fronte aljofrada de suor, ao termo das contor­ções finais. Afastou a colcha rendada, levantou-o, cuidadosa, e abraçou-o, ungindo-o com o mais ter­no dos carinhos.

O menino aquietou-se.

Logo após, a genitora entrou a orar, banhada em lágrimas, afigurando-se-me um cisne da região espiritual a desferir maravilhoso cântico.

Enquanto Calderaro operava, reparando-lhe as forças nervosas em verdadeira transfusão de flui­dos sadios que o dedicado colaborador transferia de si próprio, eu, de minha parte, acompanhava com vivo interesse a prece maternal.

A jovem senhora entremeava de ponderações humanas a cordial rogativa.

Porque não a ouvia o Senhor, nos Altos Céus, permitindo um milagre que restituisse o filhinho ao equilíbrio tão necessário? Casara-se, havia nove anos, sonhando um jardim doméstico, repleto de rebentos felizes; entretanto, a primeira flor de suas aspirações femininas ali se encontrava ironicamente aberta, numa fácies horrível de monstruosidade e de sofrimento... Porque, interrogava súplice, nas­ciam crianças na Terra com a destinação de ta­manha angústia? Porque o martirológio dos seres pequeninos? Em vão percorrera gabinetes médicos e ouvira especialistas. Sempre as mesmas decep­ções, os mesmos desenganos. O filhinho parecia inacessível a qualquer tratamento. Sentia-se frágil e extenuada... E chorava, implorando a bênção divina, para que as energias lhe não faltassem na luta.

Calderaro, finda a tarefa que lhe competia, acercou-se de mim, perguntando:

— Desejas responder à rogativa, em nome da Inspiração Superior?

Oh! não! Declinei de tal convite alegando que isso me era de todo impraticável, depois de haver ouvido Irmã Cipriana renovando corações com o verbo inflamado de amor.

Objetou o orientador num gesto bondoso:

— Aqui, porém, não falaremos a corações que odeiam, e sim a torturado espírito materno, que reclama estimulo fraternal. O conhecimento e a boa vontade podem fazer muito.

Sorriu, benevolente, e acrescentou:

— Ao demais, é necessário diplomar-nos tam­bém na ciência do amor. Para isso, comecemos a ser irmãos uns dos outros, com sinceridade e fiel disposição de servir.

Agradeci, comovido, a deferência, mas esqui­vei-me. Falaria ele mesmo, Calderaro. Minha condição era a do aprendiz. Ali me encontrava para ouvir-lhe as sublimes lições.

O abnegado amigo colocou as mãos sobre os lõbos frontais dela, como atraindo a mente mater­na para a região mais elevada do ser, e passou a irradiar-lhe tocantes apelos, como se lhe fora dezvelado pai falando ao coração. Fundamente sensi­bilizado, assinalava-lhe as palavras de ânimo e de consolação, que a afetuosa mãezinha recebia em forma de ideias e sugestões superiores.

Notei que a disposição íntima da jovem senho­ra tomava pouco a pouco um renovado alento. Observei que na epffise lhe surgira suave foco de claridade irradiante e que de seus olhos começaram a brotar lágrimas diferentes. A claridade branda, fluindo do cérebro, desceu para o tórax, de onde, então, se evolaram tênues fios de luz que a ligaram ao filhinho infeliz. Contemplou o pequeno, agora calmo, através do espesso véu de pranto e ouvi-lhe os pensamentos sublimes.

Sim, Deus não a abandonaria — meditava; dar-lhe-ia forças para cumprir até ao fim o cometimento que tomara a ombros, com a beleza do primeiro sonho e com a ventura da primeira hora. Sustentaria o desventurado rebento de sua carne, como se fora um tesouro celeste. Seu amor avul­taria com os padecimentos do filhinho muito ama­do; seus sacrifícios de mãe seriam mais doces, toda vez que a dor o visitasse com maior intensidade. Não era ele mais digno de seu devotamento e re­núncia pela aflitiva condição em que nascera? Os filhos de antigas companheiras eram formosos e inteligentes, como botões perfumados da vida, pro­metendo infinitas alegrias no jardim do futuro; também seu pequenino paralítico era belo, neces­sitando, porém, de mais blandícia e arrimo. Saberia Deus porque viera ele ao mundo, sem a facul­dade da palavra e sem manifestações de inteligên­cia. Não lhe bastaria confiar no Supremo Pai? Serviria ao Senhor sem indagar; amaria seu filho pela eternidade; morreria, se preciso fora, para que ele vivesse.

Num transporte de indefinível carinho, a jo­vem mãe inclinou-se e beijou o doentinho nos lábios, com o júbilo de quem osculasse um anjo ce­lestial. vi, surpreendido, que numerosas centelhas de luz se desprendiam do contacto afetivo entre ambos e se derramavam sobre as duas entidades inferiores; estas, de sua parte, se inclinaram tam­bém, como que menos infelizes, perante aquela no­bre mulher que mais tarde lhes serviria de mãe.

Calderaro tocou-me de leve o ombro e in­formou:

— Nosso trabalho de assistência está findo. Vamo-nos.

E, indicando mãe e filho juntos, concluiu:

— Examinando essa criança sofredora como enigma sem solução, alguns médicos insensatos da Terra se lembrarão talvez da morte suave’; igno­ram que, entre as paredes deste lar modesto, o Médico Divino, utilizando um corpo incurável e o amor, até o sacrifício, de um coração materno, res­titui o equilíbrio a espíritos eternos, a fim de que sobre as ruínas do passado possam irmanar-se para gloriosos destinos.


8

No Santuário da Alma

Noite fechada. Calderaro e eu penetramos casa confortável e nobre, onde o instrutor, segundo pro­metera, me proporcionaria alguns esclarecimentos novos com referência aos desequilíbrios da alma.

— Não é caso tão grave quanto aquele do paralítico que visitamos — adiantou o prestimoso orientador; trata-se, a bem dizer, de questão quase vencida. Há muito tempo assisto Marcelo com flui­dos reconfortantes, e a sua situação é de triunfo integral. Dócil à nossa influência, encontrou na prece e na atividade espiritual o suprimento de energias de que necessitava. Vimos ontem um caso de destrambelho total dos elementos perispiríticos, com a consequente desagregação do sistema ner­voso, em doloroso quadro que só o tempo corrigirá. Aqui, entretanto, a paisagem é outra, O problema de perturbação essencial já está resolvido, o rea­justamento da vida surgiu pleno de esperanças no­vas, a paz regressou ao tabernáculo orgânico; mas perseveram ainda as recordações, os remanescentes dos dramas vividos no passado aflorando sob for­ma de fenômenos epileptóides, as ações reflexas da alma, que emergem de vasto e intricado túnel de sombras e que tornam, em definitivo, ao império da luz. Se o mal demanda tempo para fixar-se, éóbvio que a restauração do bem não pode ser ins­tantânea. Assim ocorre com a doença e a saúde, com o desvio e o restabelecimento do equilíbrio.

Após atravessar o pórtico, dirigimo-nos, devi-demente autorizados, ao interior, onde agradavel­mente me surpreendeu encantadora cena de pie­dade doméstica: um cavalheiro, uma senhora e um rapaz achavam-se imersos nas divinas vibrações da prece, cercados de grande número de amigos do nosso plano.

Fomos recebidos amorosamente.

Convidou-me o orientador a colaborar nos tra­balhos em curso, de vez que, com a valiosa co­operação daqueles três companheiros encarnados, se prestavam a irmãos recém-libertos da Crosta reais auxílios, de modalidades várias.

Digna de registro era a respeitável beleza da­quela reduzida assembleia, consagrada ao bem e àiluminação do espírito.

Admirando a harmonia daqueles três corações unidos nos mesmos nobres pensamentos e propósitos, e que miríficos fios de luz entrelaçavam, o Assistente amigo comentou com oportunidade:

— A família é uma reunião espiritual no tem­po, e, por isto mesmo, o lar é um santuário. Mui­tas vezes, mormente na Terra, vários de seus com­ponentes se afastam da sintonia com os mais altos objetivos da vida; todavia, quando dois ou três de seus membros aprendem a grandeza das suas probabilidades de elevação, congregando-se Intima-mente para as realizações do espírito eterno, são de esperar maravilhosas edificações.

Compreendi que o instrutor estimaria pres­tar-me outros esclarecimentos, ampliando a santificante concepção da família; contudo, o serviço urgente não nos permitia mais longa palestra.

O trabalho de socorro a irmãos sofredores prosseguiu ativo, em «nosso lado».

Terminado o concurso do trio familiar, com expressiva e comovedora oração, começou a reti­rada dos companheiros de nossa esfera, enquanto os amigos encarnados entravam em carinhosa con­versação.

O cavalheiro, com o sorriso feliz do trabalha­dor que bem cumpriu o dever, dirigiu-se aos cir­cunstantes em voz alta:

— Graças a Deus, tudo normal.

Encarando o rapaz com imensa ternura pater­nal, indagou:

— E você, Marcelo, continua bem?

— Oh! sem dúvida — respondeu o interpela­do, alegre; estou maravilhado, papai, com os excelentes resultados que venho colhendo em nossas reuniões das quintas-feiras.

— Têm voltado os ataques noturnos?

— Não. À proporção que me esforço no co­nhecimento das verdades divinas, cooperando com a minha própria vontade no terreno da aplicação prática das lições recebidas, sinto que passo cada vez melhor, que me reforço intimamente, recupe­rando a saúde perdida. Reconheço também que, em me desinteressando da edificação espiritual, distraí­do da minha necessidade de elevação, voltam as perturbações com intensidade. Nessas fases noci­vas, desperto alta noite com os membros cansados e doloridos, e assaltam-me evidentes sinais das con­vulsões, deixando-me longos momentos sem sen­tido...

O jovem sorriu a esta sua singela confissão filial e prosseguiu:

- Felizmente, porém, agora que me consagro, zeloso e assíduo, à tarefa espiritualizante, reconhe­ço que os passes de mamãe são mais eficientes. Estou mais receptivo e observo que a boa vontade é fator decisivo em meu bem-estar.

Os ouvintes entreolharam-se, contentes, e o entendimento intimo continuou, edificante, repleto de belas sugestões.

O Assistente, preparando-me o raciocínio, in­formou:

— Certo, não precisarei de esclarecer que Mar­celo se entretém com os pais. Possui outros irmãos que ainda não se afinam com a sagrada missão do casal. Ele, porém, é portador de sentimentos elevados e generosos. Tem, como quase todos nós, um pretérito intensamente vivido nas paixões e excessos da autoridade. Exerceu, outrora, enorme poder de que não soube usar em sentido constru­tivo. Senhor de vigorosa inteligênCia, planou em altos níveis intelectuais, de onde nem sempre des ceu para confortar ou socorrer. Portador de vários títulos honoríficos, muita vez os esqueceu, precipi­tando-se na vala comum dos caprichos criminosos. Impôs-Se pelo absolutismo, e intensificou a lavra de espinhos que o dilacerariam mais tarde. Che­gada a colheita de nefanda messe, experimentou sofrimentos atrozes. Inúmeras vítimas o espera­vam além do sepulcro, e arremeteram contra ele. Entretanto, se errou clamorosamente, Marcelo, em muitas ocasiões, desejou ser bom e formou dedi­cações valiosas em torno de seu nome; tais devo­tamentos, contudo, houveram que aguardar opor­tunidade por auxiliá-lo. Os inimigos eram massa compacta e gritavam furiosamente, invocando a justiça vulgar; retiveram-no longo tempo nas re­giões inferiores, saciaram velhos propósitos de vin­gança, seviciando-lhe a organização perispiritUal. Marcelo, em plena sombra da consciência, rogou, chorou e penitenciou-se vastos anos. Por mais que suplicasse e por muito que insistissem os elementos intereessóriOs, a anaiada libertação demorou mui­tíssimo, porque o remorso é sempre o ponto de sintonia entre o devedor e o credor, e o nosso amigo trazia a consciência fustigada de remorsos cruéis, Os desequilíbrios perispiríticos flagelaram-no, assim, logo que atravessou o pórtico do túmulo, obstinando-se anos a fio...

Feito breve intervalo nas explicações, acres­centei, curioso:

— Isso quer, então, dizer que o fenômeno epi­leptóide...

— ... mui raramente ocorre por meras alte­rações no encéfalo, como sejam as que procedem de golpes na cabeça — elucidou o Assistente, cor­tando-me a observação reticenciosa —, e, geralmente, é enfermidade da alma, independente do cor­po físico, que apenas registra, nesse caso, as ações reflexas. Longe vai o tempo em que a vazão admi­tia o paraíso ou o purgatório como simples regiões exteriores: céu e inferno, em essência, são estados conscienciais; e, se alguém agiu contra a Lei, ver-se-á dentro de si mesmo em processo retificador, tanto tempo quanto seja necessário. Ante a reali­dade, portanto, somos compelidos a concluir que, se existem múltiplas enfermidades para as desar­monias do corpo, outras inúmeras há para os des­vios da alma.

O instrutor fez pausa curta, apontou para o rapaz e continuou:

— Mas, regressando às informações a respeito de Marcelo, cabe-me dizer-te que, pouco a pouco, esgotou ele as substâncias mais pesadas do fundo cálice de provas. Longos anos de desequilíbrio, em que as vítimas, tornadas em algozes, o abalaram com tremendas convulsões, através de choques e padecimentos inenarráveis, clarearam-lhe os hori­zontes internos, tendo nosso irmão afinal logrado entender-se com prestimoso e sábio orientador es­piritual, a quem se liga desde remoto passado. Foi socorrido e amparado. Indagou, ansioso, por almas que lhe eram particularmente queridas, sendo-lhe cientificado que os seus laços mais fortes já se encontravam de novo na carne, em testemunhos e labores dignificantes. Suplicou a reencarnação, pro­meteu aceitar compromissos de concurso espiritual na Crosta, a fim de resgatar os enormes débitos, colaborando no bem e na evolução dos inimigos de outrora, e conseguiu a dádiva, apoiado por abne­gado mentor que o estima de muitos séculos. Tor­nou à esfera carnal e reiniciou o aprendizado. Ulti­mamente renasceu estreitado em braços carinho­sos, aos quais se sente vinculado no curso de várias existências vividas em comum. Agora, sinceramente aproveitando as bênçãos recebidas, desde os mais tenros anos, preocupa-se em reajustar as precio­sas qualidades morais: caracteriza-se, desde meni­no, pela bondade e obediência, docilidade e ternura naturais. Passou a infância tranquilo, embora con­tinuamente espreitado por antigos perseguidores in­visíveis. Não se achava a eles atraído, em virtude do serviço regenerador a que se submetera; mas ao topar com algum dos adversários, nos minutos de parcial desprendimento propiciado pelo sono fí­sico, sofria amargamente com as recordações. Tudo prosseguia sem novidades dignas de menção. Sob a vigilância dos pais e com o amparo dos benfei­tores invisíveis, preparava-se o menino para os tra­balhos futuros. Contudo, logo que se lhe consoli­dou a posse do patrimônio físico, ultrapassados os catorze anos de idade, Marcelo, com a organização perispiritual plenamente identificada com o invólu­cro fisiológico, passou a rememorar os fenômenos vividos, e surgiram-lhe as chamadas convulsões epi­lépticas com certa intensidade. O rapaz, todavia, encontrou imediatamente os antídotos necessários, refugiando-se na “residência dos princípios nobres», isto é, na região mais alta da personalidade, pelo hábito da oração, pelo entendimento fraterno, pela prática do bem e pela espiritualidade superior. Li­mitou, destarte, a desarmonia neuro-psíquica e re­duziu a disfunção celular, reconquistando o próprio equilíbrio, dia a dia, mobilizando as armas da vontade. Nesse esforço, dentro do qual se fêz extre­mamente simpático, recebeu vultosa colaboração de nossa esfera, aproveitando-a integralmente pela adesão criteriosa ao esforço construtivo do bem. Recebendo a luta com serenidade e paciência, insta­lou em si mesmo valiosas qualidades receptivas, fa­vorecendo-nos o concurso e dispensando, por isso mesmo, a terapêutica dos hipnóticos ou dos choques, a qual, provocando estados anormais no organismo perispirítico, quase sempre nada consegue senão deslocar os males, sem os combater nas origens. O caso de Marcelo oferece por isto características valiosas. Atendendo as sugestões daqueles que o beneficiam, adaptando-se à realidade vem sendo o médico de si mesmo, única fórmula em que o en­fermo encontrará a própria cura.

Nesse instante, o rapaz despedia-se delicada-mente dos pais, retirando-se para o quarto parti­cular, onde se recolheu ao leito, após abluir a mente em pensamentos de paz e de gratidão a Deus.

Dentro de breves minutos afastava-se do veí­culo denso e vinha ter conosco, saudando Calde­raro com especial carinho.

O Assistente apresentou-me, afável.

Mostrava o jovem profunda lucidez. Abraçado a nós ambos, com inequívocas demonstrações de alegria, comentou suas esperanças no porvir. Ex­pôs-nos ardente desejo de trabalhar pela difusão do Espiritismo evangélico, disposto a colaborar na obra edificante que os genitores vêm realizando. Referiu-se, para admiração minha, às atividades de nossa colônia espiritual, indagou das minhas im­pressões de (Nosso Lar), seduzindo-me pela opor­tunidade de conceitos e pela beleza das apreciações inteligentes e espontâneas (1).

(1) Referencia ao livro “Nosso Lar”. — (Nota do autor espiritual.)

Ia a conversa a meio, quando dois vultos sombrios cautelosamente se aproximaram de nós. Quem seriam, senão míseros transeuntes desencar­nados? Inteiramente distraído, continuei nos comen­tários humildes, mas o estimado interlocutor per­deu visívelmente a calma. Qual se fora tocado no intimo por forças perturbadoras, Marcelo empali­deceu, levou a destra ao peito e arregalou os olhos desmesuradamente. Reparei que as ideias lhe ba­ralhavam no cérebro perispiritual, que não conse­guia ouvir-nos com tranquilidade, e, desprendendo-se, célere, de nossos braços, correu desabalado, retomando ao corpo.

Quis detê-lo, penalizado, pois conosco estava perfeitamente sintonizado; algo mais forte que o conhecimento cordial unia-me ao novo amigo, o que reconheci desde o primeiro contacto; não pude, porém, fazê-lo.

Reteve-me Calderaro, com vigor, e exclamou:

— Deixa-o, André. Acompanhemo-lo. Não po­demos olvidar que Marcelo não se encontra perfei­tamente curado.

Indicando as entidades provocadoras, a peque­na distância, prosseguiu esclarecendo:

— A simples reaproximação dos inimigos de outra época altera-lhe as condições mentais. Receoso, aflito, teme o regresso à situação dolorosa em que se viu, há muitos anos, nas esferas infe­riores, e busca, apressado, o corpo físico, à manei­ra de alguém que se socorre do único refúgio de que dispõe, em face da tempestade iminente.

Os espíritos erradios bateram em retirada, e tomamos ao interior doméstico, onde encontramos o jovem tomado de contorções.

Abracei-o, como se o fizesse a um filho que­rido.

O ataque amainou, sem, contudo, cessar de todo. Ergui os olhos para o orientador, em muda interrogação. Porque tal distúrbio? A câmara de Marcelo permanecia isolada, quanto ao contacto direto com as entidades inferiores. Permanecíamos os três em palestra edificante. Por que motivo a perturbação, se nos mantínhamos em salutar atmos­fera de santificantes pensamentos?

O instrutor contemplou-me, bondoso, e reco­mendou:

— Observa o campo orgânico, examinando par­ticularmente o cérebro.

Notei que a luz habitual dos centros endócri­nos empalidecera, persistindo sõmente a epífise a emitir raios anormais. No encéfalo o desequilíbrio era completo. Das zonas mais altas do cérebro par­tiam raios de luz mental, que, por assim dizer, bombardeavam a colmeia de células do córtex. Os vários centros motores, inclusive os da memória e da fala, jaziam desorganizados, inânimes. Esses raios anormais penetravam as camadas mais pro­fundas do cerebelo, perturbando as vias do equili­brio e destrambelhando a tensão muscular; deter­minavam estranhas transformações nos neurônios e imergiam no sistema nervoso cinzento, anulando a atividade das fibras. Via-se totalmente inibido o delicado aparelho encefálico. As zonas motoras, açoitadas pelas faíscas mentais, perdiam a ordem, a disciplina, o autodomínio, por fim cedendo, bal­das de energia. Enquanto isso, Marcelo-espírito contorcia-se de angústia, justaposto ao Marcelo-forma, encarcerado na inconsciência orgânica, pre­sa de convulsões que me confrangiam a alma.

Após detido exame, indaguei de Calderaro:

— Como explicar essa ocorrência? Afinal de contas, nosso amigo não se encontra aqui sob o guante dos perseguidores desencarnados, mas em nossa exclusiva companhia.

O orientador, agora em ação de socorro mag­nético, interferia, restaurando o equilíbrio, recomendando-me aguardar alguns minutos. Em breve, dominou a desarmonia. Envolvendo-lhe o cam­po mental em emissões fluídico-balsâmicas, o desastre não chegou a termo. Marcelo aquietou-se. Refez-se a atividade cerebral, qual praça em tu­multo logo descongestionada. As células nervosas retomaram sua tarefa, normalizaram-se as vias do tráfego, o sistema endocrínico regressou à regu­laridade, as redes de estímulos restabeleceram os serviços costumeiros.

Marcelo, desapontado e abatido, caiu em pro­fundo sono, pois Calderaro entendeu conveniente proporcionar-lhe maior repouso, não lhe permitindo a retirada em corpo perispiritual nos primeiros mi­nutos de paz que se sucederam à forte crise.

Observando o rapaz, no conchego do leito, o instrutor fitou-me, benévolo, e perguntou:

— Lembras-te dos reflexos condicionados de Pavlov?

Como não? recordava-me, sim, da famosa ex­periência com cães, aplicada a fenômenos outros.

— Pois bem — prosseguiu Calderaro, bondoso

—, o caso de Marcelo verifica-se em consonância com os mesmos princípios. Em existências passa­das, errou em múltiplos modos, e o remorso, im­periosa força a serviço da Divina Lei, guardou-lhe a consciência, qual sentinela vigilante, entregando-o aos seus inimigos nos planos inferiores e condu­zindo-o à colheita de espinhos que semeara, logo após a perda do vaso físico, num dos seus períodos mais intensos de queda espiritual. Em consequên­cia de tais desvios, perambulou desequilibrado, de alma doente, exposto à dominação das antigas vi­timas. Desarranjou os centros perispirituais, en­fermando-os para muito tempo. Sustentado pelo socorro de um grande instrutor que intercedeu por ele, renasceu mais calmo, agora, para importante serviço de resgate. Todavia, a cooperação valiosa recebida do exterior não poderia transformar-lhe de modo visceral a situação íntima. Conservava-se desafogado dos impiedosos adversários, aos quais deveria ajudar doravante; contudo, o organismo perispirítico arquivava a lembrança fiel dos atritos experimentados fora do veículo denso. As zonas motoras de Marcelo, em razão disso — salientou o atencioso orientador —, simbolizando a moradia das (forças conscientes», em sua atualidade de tra­balho, constituem uma «região perispiritual em con­valescença», quais as sensíveis cicatrizes do corpo físico. Ao se reaproximar de velhos desafetos, o rapaz, que ainda não consolidou o equilíbrio inte­gral, sujeita-se aos violentos choques psíquicos, com o que as emoções se lhe desvairam, afastan­do-se da necessária harmonia. A mente desorien­tada abandona o leme da organização perispirítica e dos elementos fisiológicos, assume condições ex­cêntricas, dispersa as energias, que lhe são pe­culiares, em movimentos desordenados; passam, en­tão, essas energias a atritarem-se e a emitir radia­ções de baixa frequência, aproximadamente igual à da que lhe incidia do pensamento alucinado de suas vítimas. Essas emissões destruidoras inva­dem a matéria delicada do córtex encefálico, assenhoreiam-se dos centros corticais, perturbam as sedes da memória, da fala, da audição, da sensibi­lidade, da visão, e inúmeras outras sedes do gover­no de vários estímulos; temos, destarte, o «grande mal», de sintomatologia aparatosa, determinando as convulsões, nas quais o corpo físico, prostrado, vencido, mais se assemelha a embarcação repenti­namente à matroca.

As elucidações de Calderaro enchiam-me de respeito pelos fundamentos morais da vida. Com­preendia agora a impossibilidade de uma psiquia­tria sem as noções do espírito. Lembrou-me a luta secular entre fisiologistas e psicologistas, dispu­tando a norma de socorro aos alienados mentais. Mesmer e Charcot, Pinel e Broca desfilaram ante minha imaginação, enriquecida de novos conhecimentos.

A interrupção das digressões do Assistente não durou muito. Devo, na verdade, consignar que, desde a primeira hora de nossas conversações, tais intermitências se fizeram habituais, parecendo-me que Calderaro intencional-mente me proporcionava tréguas para ruminar-lhe os conceitos.

Respondendo-me às Intimas ponderações, con­tinuou:

— Impossível é pretender a cura dos loucos à força de processos exclusiva-mente objetivos.

É indispensável penetrar a alma, devassar o cerne da personalidade, melhorar os efeitos socorrendo as causas; por conseguinte, não restauraremos cor­pos doentes sem os recursos do Médico Divino das almas, que é Jesus-Cristo. Os fisiologistas farão sempre muito, tentando retificar a disfunção das células; no entanto, é mister intervir nas origens das perturbações. O caso de Marcelo é tão somente um dos múltiplos aspectos do fenômeno epileptói­de», para empregarmos a terminologia dos médicos encarnados. Esse desequilíbrio perispiritual assina­la-se, todavia, por gradação demasiado complexa. A confirmação da teoria dos reflexos condicionados não se aplica exclusivamente a ele. Temos milhões de pessoas irascíveis que, pelo hábito de se enco­lerizarem fàcilmente, viciam os centros nervosos fundamentais pelos excessos da mente sem disci­plina, convertendo-se em portadores do «pequeno mal”, em dementes precoces, em neurastênicoS de tipos diversos ou em doentes de franjas epilépticas, que andam por aí, submetidos à hipoglicemia in­sulínica ou ao metrazol; enquanto isso, o serem educados mentalmente, para a correção das pró­prias atitudes internas no ramerrão da vida, lhes seria tratamento mais eficiente e adequado, pois regenerativo e substancial. Enunciando tais verdades, não subestimamos o ministério dos psiquiatras abnegados, que consomem a existência na dedica­ção aos semelhantes, nem avançamos que todos os doentes, sem exceção, possam dispensar o concurso dos choques renovadores, tão necessários a muita gente, como ducha para os nervos empoeirados). Desejamos apenas salientar que o homem, pela sua conduta, pode vigorar a própria alma, ou lesá-la. O caráter altruísta, que aprendeu a sacrificar-se para o bem de todos, estará engrandecendo os ce­leiros de si mesmo, em plena eternidade; o homi­cida, esparzindo a morte e a sombra em sua cer­cama, estabelece o império do sofrimento e da treva no próprio íntimo. Ao topar com irmãos nos­sos sob o domínio das lesões perispiríticas, conse­quências vivas dos seus atos, exarados pela Justi­ça Universal, é indispensável, para assisti-los com êxito, remontar à origem das perturbações que os molestam; isto se fará não a golpes verbalísticos de psicanálise, mas socorrendo-os com a força da fraternidade e do amor, a fim de que logrem a iin­prescindível compreensão com que se modifiquem, reajustando as próprias forças...

Nesse instante, observando que o Marcelo se reerguia, o instrutor interrompeu-se nas elucidações e convidou-o a vir ter conosco novamente.

O rapaz abraçou-nos, comovido.

— Então — disse fitando humildemente Cal­deraro —, fraquejei e caí...

— Oh! não! — exclamou o orientador, afa­gando-o —, não te sintas em queda. Estás ainda em tratamento, e não podemos esquecer a reali­dade. Teu esforço é admirável; entretanto, há que aguardar a contribuição do tempo.

Sorriu e acentuou:

— Em épocas recuadas perdeste valioso en­sejo de seguir na senda progressiva, a escorregar, a resvalar... Agora, é imprescindível retomar a subida cautelosamente. O pássaro de asas débeis não pode abusar do voo.

O jovem cobrou esperanças novas e, contem­plando Calderaro, reconhecidamente, inquiriu:

— Acredita o meu benfeitor que deva optar pelo uso de hipnóticos?

— Não. Os hipnóticos são úteis só na áspera fase de absoluta ignorância mental, quando é pre­ciso neutralizar as células nervosas ante os pro­váveis atritos da organização perispirítica. Em teu caso, Marcelo, para a tua consciência que já acor­dou na espiritualidade superior, o remédio mais eficaz consiste na fé positiva, na autoconfiança, no trabalho digno, em pensamentos enobrecedores. Permanecendo na zona mais alta da personalidade, vencerás os desequilíbrios dos departamentos mais baixos, competindo-te, por isto mesmo, atacar a missão renovadora e sublime que te foi confiada no setor da própria iluminação e no bem do pró­ximo. Os elementos medicamentosos podem exer­cer tutela despótica sobre o cosmo orgânico, sem­pre que a mente não se disponha a controlá-la, re­correndo aos fatores educativos.

O rapaz osculou-lhe as mãos enternecidamente. e Calderaro, ocultando a comoção, falou, bem-hu­morado:

— Nada fizemos ainda por merecer o reconhe­cimento de qualquer criatura. Somos não mais do que trabalhadores imperfeitos em serviço, e o ser­viço é a maior força que nos põe de manifesto nossas próprias imperfeições. Todos temos um cre­dor divino em Jesus, cuja infinita bondade não nos é lícito esquecer.

E, acariciando-lhe os cabelos, acentuou:

- Já lhe ouviste a palavra celestial, abando­nando o mal, “para que te não suceda coisa pior. Assim sendo, és agora feliz. Em verdade, somos presentemente felizes, porque nosso objetivo de hoje é a realização do Reino de Deus, em nós, com o Cristo. Trabalhemos com Ele, por Ele e para Ele, curando nossos males para sempre.

O jovem abraçou-se a nós, qual se fora um filho, de encontro aos nossos corações, e saímos juntos em agradável excursão de estudos, enquanto seu corpo físico repousava tranqüilamente.


9

Mediunidade

Sobremodo interessado no expressivo caso de Marcelo, apresentei a Calderaro, no dia seguinte, certas questões que fortemente me preocupavam.

Os reflexos condicionados não se aplicariam, igualmente, a diversos fenômenos medianlmicos? não elucidavam as mistificações inconscientes que, muita vez, perturbam os círculos dos experimentadores encarnados?

Alguns estudiosos do Espiritismo, devotados e honestos, reconhecendo os escolhos do campo do mediunismo, criaram a hipótese do fantasma aní­mico do próprio medianeiro, o qual agiria em lugar das entidades desencarnadaS. Seria essa teoria ade­quada ao caso vertente? Sob a evocação de certas imagens, o pensamento do médium não se tornaria sujeito a determinadas associaçõeS, interferindo au­tomàticamente no intercâmbio entre os homens da Terra e os habitantes do Além? Tais intervenções, em muitos casos, poderiam provocar desequilíbrioS intensos. Ponderando observações ouvidas nos úl­timos tempos, em vários centros de cultura espi­ritualista, com referência ao assunto, inquiria de mim mesmo se o problema oferecia relações com os mesmos princípios de Pavlov.

O instrutor ouviu-me, paciente, até ao fim de minhas considerações, e respondeu, benévolo:

- A consulta exige meditação mais acurada. A tese animista é respeitável. Partiu de investigadores conscienciosos e sinceros, e nasceu para coibir os prováveis abusos da imaginação; entre­tanto, vem sendo usada cruelmente pela maioria dos nossos colaboradores encarnados, que fazem dela um órgão inquisitorial, quando deveriam apro­veitá-la como elemento educativo, na ação fraterna. Milhares de companheiros fogem ao trabalho, ame­drontados, recuam ante os percalços da iniciação mediúnica, porque o animismo se converteu em Cérbero. Afirmações sérias e edificantes, torna­das em opressivo sistema, impedem a passagem dos candidatos ao serviço pela gradação natural do aprendizado e da aplicação. Reclama-se deles pre­cisão absoluta, olvidando-se lições elementares da natureza. Recolhidos ao castelo teórico, inúmeros amigos nossos, em se reunindo para o elevado ser­viço de intercâmbio com a nossa esfera, não acei­tam comumente os servidores, que hão-de crescer e de aperfeiçoar-se com o tempo e com o esforço. Exigem meros aparelhos de comunicação, como se a luz espiritual se transmitisse da mesma sorte que a luz elétrica por uma lâmpada vulgar. Nenhuma árvore nasce produzindo, e qualquer faculdade no­bre requer burilamento. A mediunidade tem, pois sua evolução, seu campo, sua rota. Não é possível laurear o estudante no curso superior, sem que ele tenha tido suficiente aplicação nos cursos preparatórios, através de alguns anos de luta, de esfor­ço, de disciplina. Daí, André, nossa legitima preo­cupação em face da tese animista, que pretende enfeixar toda a responsabilidade do trabalho espi­ritual numa cabeça única, isto é, a do instrumento mediúnico. Precisamos de apelos mais altos, que animem os cooperadores incipientes, proporcionando-lhes mais vastos recursos de conhecimento na estrada por eles mesmos perlustrada, a fim de que a espiritualidade santificante penetre os fenômenos e estudos atinentes ao espírito.

Fez pequeno intervalo que não ousei interrom­per, fascinado pela elevação dos conceitos ouvidos, e continuou:

— Vamos à tua sugestão. Os reflexos condi­cionados enquadram-se, efetivamente, no assunto; no entanto, cumpre-nos investigar domínio de mais graves apreciações. Os animais de Pavlov demons­travam capacidade mnemônica; memorizavam fatos por associações mentais espontâneas. Isto quer di­zer que mobilizavam matéria sutil, independente do corpo denso; que jogavam com forças mentais em seu aparelhamento de impulsos primitivos. Se as «onsciênciaS fragmentádaSi’ do experimento eram capazes de usar essa energia, provocando a repetição de determinados fenômenos no cosmo celular, que prodígios não realizará a mente de um homem, cedendo, não a meros reflexos condicionados, mas a emissões de outra mente em sintonia com a dele? Dentro de tais princípios, é imperioso que o inter­mediário cresça em valor próprio. Ocorrências extraordinárias e desconhecidas ocupam a vida em todos os recantos, mas a elevação condiciona fer­vorosa procura. Ninguém receberá as bênçãos da colheita, sem o suor da sementeira. Lamentàvel­mente, porém, a maior parte de nossos amigos pa­rece desconhecerem tais imposições de trabalho e de cooperação: exigem faculdades completas. O instrumento mediúnico é automaticamente desclas­sificado se não tem a felicidade de exibir absoluta harmonia com os desencarnados, no campo trípli­ce das forças mentais, perispirituais e fisiológicas. Compreendes a dificuldade?

Sim, começava a entender. As elucidações, to­davia, eram demasiado fascinantes para que me abalançasse a qualquer apontamento; guardei, por isto, a continuação das definições, na postura de humilde aprendiz.

O Assistente percebeu minha íntima atitude e continuou:

— Buscando símbolo mais singelo, figuremos o médium como sendo uma ponte a ligar duas es­feras, entre as quais se estabeleceu aparente solu­ção de continuidade, em virtude da diferenciação da matéria no campo vibratório. Para ser instru­mento relativamente exato, é-lhe imprescindível ha­ver aprendido a ceder, e nem todos os artífices da oficina mediúnica realizam, a breve trecho, tal aquisição, que reclama devoção à felicidade do pró­ximo, elevada compreensão do bem coletivo, avan­çado espírito de concurso fraterno e de serena su­perioridade nos atritos com a opinião alheia. Para conseguir edificação dessa natureza, faz-se mister o refúgio frequente à “moradia dos princípios su­periores». A mente do servidor há-de fixar-se nas zonas mais altas do ser, onde aprenderá o valor das concepções sublimes, renovando-se e quintes­senciando-se para constituir elemento padrão dos que lhe seguem a trajetória, O homem, para auxi­liar o presente, é obrigado a viver no futuro da raça. A vanguarda impõe-lhe a soledade e a in­compreensão, por vezes dolorosas; todavia, essa condição representa artigo da Lei que nos estatui adquirir para podermos dar. Ninguém pode ensi­nar caminhos que não haja percorrido. Nasce daí, em se tratando da mediunidade edificante, a neces­sidade de fixação das energias instrumentais no santuário mais alto da personalidade. Fenômenos — não lhes importa a natureza — é forçoso reco­nhecer que assediam a criatura em toda parte. A ciência legítima é a conquista gradual das forças e operações da Natureza, que se mantinham ocul­tas à nossa acanhada apreensão. E como somos filhos do Deus Revelador, infinito em grandeza, éde esperar tenhamos sempre à frente ilimitados campos de observação, cujas portas se abrirão ao nosso desejo de conhecimento, à maneira que gra­deçam nossos títulos meritórios. Por isto, André, consideramos que a mediunidade mais estável e mais bela começa, entre os homens, no império da intuição pura. Moisés desempenhou sua tarefa, compelido pelas expressões fenomênicas que o cerca­vam; recebe, sob incoercível comoção, os sublimes princípios do Decálogo, sentindo defrontar-se com figuras e vozes materializadas do plano espiritual; entretanto, ao mesmo tempo que transmite o “não matarás”, não parece muito inclinado ao inquebran­tável respeito pela vida alheia; sua doutrina, vene­rável embora, baseia-se no exclusivismo e no temor. Com Jesus, o aspecto da mediunidade é diferente. Mantém-se o Mestre em permanente contacto com o Pai, através da própria consciência, do próprio coração; transmite aos homens a Revelação Divi­na, vivendo-a em si mesmo; não reclama justiça, nem pede compreensão imediata; ama as criaturas e serve-as, mantendo-se unido a Deus. Em razão disto, a Boa-Nova é mensagem de confiança e de amor universal. Vemos, pois, dois tipos de media­neiros do próprio Céu, eminentemente diversos, mos­trando qual o padrão desejável. No mediunismo comum, portanto, o colaborador servirá com a ma­téria mental que lhe é própria, sofrendo-lhe as imprecisões naturais diante da investigação terres­tre; e, após adaptar-se aos imperativos mais nobres da renúncia pessoal, edificará, não de impro­viso, mas à custa de trabalho incessante, o templo interior de serviço, no qual reconhecerá a superio­ridade do programa divino acima de seus caprichos humanos. Atingida essa realização, estará prepa­rado para sintonizar-se com o maior número de desencarnados e encarnados, oferecendo-lhes, como a ponte benfeitora, oportunidade de se encontra­rem uns com os outros, na posição evolutiva em que permaneçam, através de entendimentos cons­trutivos. Devo dizer-te que não cogitamos aqui de faculdades acidentais, que aparecem e desaparecem entre candidatos ao serviço, sem espírito de ordem e de disciplina, verdadeiros balões de ensaio para os vôos do porvir; referimo-nos à mediunidade aceita pelo cooperador e mobilizável em qualquer situação para o bem geral. Comentando atividades e tarefas, devemos salientar os padrões que lhes digam respeito, e este é o característico da instru­mentalidade espiritual nas esferas superiores. Logicamente, é impossível alcançá-lo de vez; toda obra impõe começo.

Como revelasse nos olhos a indomável como­ção que se apossara de mim ante os conceitos ou­vidos, o Assistente modificou a inflexão da voz e tranquilizou-me:

— Reportando-nos ainda ao Cristo, importa­-nos reconhecer que o Mestre viveu insulado no «monte divino da consciência», abrindo caminho aos vales humanos. Claro está que nenhum de nós abri­ga a pretensão de copiar Jesus; contudo, precisa­mos inspirar-nos em suas lições. Há milhões de se­res humanos, encarnados e desencarnados, de men­te fixa na região menos elevada dos impulsos infe­riores, absorvidos pelas paixões instintivas, pelos remanescentes do pretérito envilecido, presos aos reflexos condicionados das comoções perturbadoras a que, inermes, se entregaram; outros tantos man­têm-se, jungidos à carne e fora dela, na atividade desordenada, em manifestações afetivas sem rumo, no apego desvairado à forma que passou ou à si­tuação que não mais se justifica; outros, ainda, param na posição beata do misticismo religioso ex­clusivo, sem realizações pessoais no setor da expe­riência e do mérito, que os integre no quadro da lídima elevação. Subtraído o corpo físico, a situa­ção prossegue quase sempre inalterada, para o organismo perispirítico, fruto do trabalho paciente e da longa evolução. Esse organismo, constituído, embora, de elementos mais plásticos e sutis, ainda é edifício material de retenção da consciência. Mui­ta gente, no plano da Crosta Planetária, conjetura que o Céu nos revista de túnica angelical, logo que baixado o corpo ao sepulcro. Isto, porém, 6 grave erro no terreno da expectativa. Naturalmente, não nos referimos, nestas considerações, a espíritos da estofa de um Francisco de Assis, nem a criaturas extremamente perversas, uns e outros não cabí­veis em nosso quadro: o zênite e o nadir da evo­lução terrestre não entram em nossas cogitações; falamos de pessoas vulgares, quais nós mesmos, que nos vamos em jornada progressiva, mais ou menos normal, para concluir que, tal o estado men­tal que alimentamos, tais as inteligências, desen­carnadas ou encarnadas, que atraímos, e das quais nos fazemos instrumentos naturais, embora de modo indireto. E a realidade, meu amigo, é que todos nós, que nos contamos por centenas de milhões, não prescindimos de medianeiros iluminados, aptos a colocar-nos em comunicação com as fontes do Suprimento Superior. Necessitamos do auxílio de mais alto, requeremos o concurso dos benfeitores que demoram acima de nossas paragens. Para isto, há que organizar recursos de receptividade. Nossa mente sofre sede de luz, como o organismo ter­reno tem fome de pão. Amor e sabedoria são subs­tâncias divinas que nos mantêm a vitalidade.

O instrutor fez breve interrupção e acres-centou:

— Compreendes agora a importância da me­diunidade, isto é, da elevação de nossas qualidades receptivas para alcançarem a necessária sintonia com os mananciais da vida superior?

Sim, respondi, entendera-lhe as observações, ponderando-lhes a magnitude.

— Não é serviço que possamos organizar da periferia para o centro — prosseguiu Calderaro

— e sim do interior para o exterior. O homem encarnado, quase sempre empolgado pelo sono da ilusão, poderá começar pelo fenômeno; à maneira, porém, que desperte as energias mais profundas da consciência, sentirá a necessidade do reajustamento e regressará à causa de modo a aperfeiçoar os efeitos. Obra de construção, de tempo, de pa­ciência...

Chegados a essa altura da conversação, o orientador convidou-me ao serviço de assistência a dedicada senhora, médium em processo de for­mação, que lhe vinha recebendo socorro para prosseguir na tarefa, com a fortaleza e serenidade indispensáveis.

Propiciando-me o feliz ensejo, meu gentil in­terlocutor concluiu:

— O caso é oportuno. Observarás comigo os obstáculos criados pela tese animista.

Marcava o relógio precisamente vinte horas, quando penetramos confortável recinto. Várias en­tidades de nosso plano ali se moviam, ao lado de onze companheiros reunidos em sessão íntima, con­sagrada ao serviço da oração e do desenvolvimento psíquico. Logo à entrada, recebeu-nos atencioso colega, a quem fui apresentado com sincera satis­fação.

Recebi dele, de início, informações condensa­das que anotei, contente. Fora igualmente médico. Deixara a experiência física antes de concretizar velhos planos de assistência fraternal aos seus inu­meráveis doentes pobres. Guardava o júbilo de uma consciência tranquila, zelara o bem geral quanto lhe fora possível; contudo, entrevendo a probabi­lidade de algo fazer além-túmulo, recebera permis­são para cooperar naquele reduzido grupo de ami­gos, com o objetivo de efetuar certo plano de so­corro aos enfermos desamparados. O intercâmbio com os desencarnados não poderia transformar os homens em anjos de um dia para outro, mas po­deria ajudá-los a ser criaturas melhores. Impos­sível seria instalar o paraíso na Crosta do mundo em algumas semanas; entretanto, era lícito coope­rar no aprimoramento da sociedade terrestre, in­centivando-se a prática do bem e a devoção à fra­ternidade. Para esse fim, ali permanecia, interessado em contribuir na proteção aos doentes menos aquinhoados.

Acompanhando-lhe os argumentos com admi­ração, mantive-me silencioso, mas Calderaro inda­gou, cortês, após inteirar-se das ocorrências:

— E como vai no desenvolvimento de seus ele­vados propósitos?

— Dificilmente — informou o interpelado —, os recursos de comunicação ao meu alcance ainda não são de molde a inspirar confiança à maioria dos companheiros encarnados. A bem dizer, não me interessa comparecer aqui, de nome aureolado por terminologia clássica, e nem me abalançaria a oferecer teses novas, concorrendo com o mundo médico. Guia-me, agora, tão somente o sadio de­sejo de praticar o bem. Entretanto...

— Ainda não lhe ouviram os apelos, por in­termédio de Eulália? — perguntou o meu instrutor.

— Não; por enquanto, não. Sempre a mesma suspeita de animismo, de mistificação Inconsciente...

Ia a palestra a meio, quando o diretor espiri­tual da casa convidou o colega a experimentar. Chegara o minuto aprazado. Poderia acercar-se da médium.

Aproximamo-nos do grupo de amigos, imersos em profunda concentração.

Enquanto o novo conhecido se abeirava de uma senhora de porte distinto, certamente ensaian­do a transmissão da mensagem que desejava pas­sar à esfera carnal, Calderaro observou-me:

— Repara o conjunto. Já fiz meus aponta­mentos. Com exceção de três pessoas, os demais, em número de oito, guardam atitude favorável. Todos esses se encontram na posição de médiuns, pela passividade que demonstram. Analisa a irmã Eulália e reconhecerás que o estado receptivo mais adiantado lhe pertence; dos oito cooperadores pro­váveis, é a que mais se aproxima do tipo necessá­rio. No entanto, o nosso amigo médico não encontra em sua organização psicofísica elementos afins perfeitos: nossa colaboradora não se liga a ele através de todos os seus centros perispirituais; não é capaz de elevar-se à mesma frequência de vibra­ção em que se acha o comunicante; não possui suficiente espaço interior” para comungar-lhe as idéias e conhecimentos; não lhe absorve o entu­siasmo total pela Ciência, por ainda não trazer de outras existências, nem haver construído, na expe­riência atual, as necessárias teclas evolucionárias, que só o trabalho sentido e vivido lhe pode confe­rir. Eulália manifesta, contudo, um grande poder — o da boa vontade criadora, sem o qual é impos­sível o inicio da ascensão às zonas mais altas da vida. É a porta mais importante, pela qual se entenderá com o médico desencarnado. Este, a seu turno, para realizar o nobre desejo que o anima, vê-se compelido, em face das circunstâncias, a pôr de lado a nomenclatura oficial, a técnica científica, o patrimônio de palavras que lhe é peculiar, as definições novas, a ficha de renome, que lhe coroa a memória nos círculos dos conhecidos e dos clien­tes. Poderá identificar-se com Eulália para a men­sagem precisa, usando também, a seu turno, a boa vontade; e, adotando esta forma de comunicação, valer-se-á, acima de tudo, da comunhão mental, reduzindo ao mínimo a influência sobre os centros neuropsíquicos; é que, em matéria de mediunismo, há tipos idênticos de faculdades, mas enormes de­sigualdade nos graus de capacidade receptiva, os quais variam infinitamente, como as pessoas.

O instrutor silenciou por momentos e pros­seguiu:

— Não nos esqueça que formamos agora uma equipe de trabalhadores em ação experimental. Nem o provável comunicante chegou a concretizar as bases de seu projeto, nem a médium conseguiu ain­da suficiente clareza e permeabilidade para coope­rar com ele. Num terreno de atividades definidas, neste particular, poderíamos agir à vontade; aqui, não: nosso procedimento deve ser de neutralidade mental, não de interferência. Compreendendo, pois, que todos os recursos cumpre serem aproveitados no êxito da louvável edificação, nenhum de nós in­tervirá, perturbando ou consumindo tempo. é-nos facultado permutar ideias, analisar a ocorrência, mas com absoluta Isenção de ânimo. O momento pertence ao comunicante, que não dispõe de apa­relhamento mais perfeito para a transmissão.

Nesse instante, indicou-me o colega que, de pé, junto de Eulália, mantinha a mente iluminada e vibrante num admirável esforço por derruir a na­tural muralha, entre a nossa esfera e o campo de matéria densa.

— Anota as particularidades do serviço — disse-me Calderaro, com significativa inflexão de voz —; todos os companheiros em posição recepti­va estão absorvendo a emissão mental do comuni­cante, cada qual a seu modo. Repara calmamente.

Circulei a mesa e vi que os raios de força positiva do mensageiro efetivamente incidiam em oito pessoas. Reconheci que o tema central do de­sejo formulado por nosso amigo, no tocante ao projeto de assistência aos enfermos, alcançava o cérebro dos que se conservavam em atitude passi­va; na tela animada de concentração de energias mentais, cada irmão recebia o influxo sugestivo, que de logo lhes provocava a livre associação dos psicanalistas.

Fixei as particularidades com atenção.

Ao receberem a emissão de forças do traba­lhador do bem, um cavalheiro recordou comovente paisagem de hospital; outro rememorou o exemplo de uma enfermeira bondosa que com ele travara relações; outro abrigou pensamentos de simpatia para com os doentes desamparados; duas senhoras se lembraram da caridosa missão de Vicente de Paulo; a uma velhinha acudiu a ideia de visitar algumas pessoas acamadas que lhe eram queridas; um jovem reportou-se, em silêncio, a notáveis pá­ginas que lera sobre piedade fraternal para com todos os semelhantes afastados do equilíbrio físico.

Examinei também as três pessoas que se man­tinham impermeáveis ao serviço benemérito daque­la hora. Duas delas contristavam-se por haver per­dido uma sessão cinematográfica, e a outra, uma senhora na idade provecta, retinha a mente na lembrança das ocupações domésticas, que supunha imperiosas e inadiáveis, mesmo ali, num círculo de oração, onde devera beneficiar-se com a paz.

Somente Eulália recebia o apelo do comuni­cante com mais nitidez. Sentia-se ao seu lado; en­volvia-se em seus pensamentos; possuía-se, não só de receptividade, mas também de boa disposição para servi-lo.

Decorridos alguns minutos de expectativa e de preparo silencioso, a mão da médium, orientada pelo médico e movida em cooperação com os estí­mulos psicofísicos da intermediária, começou a es­crever, em caracteres irregulares, denunciando o natural conflito de dois cosmos psíquicos dife­rentes, mas empenhados num só objetivo — a pro­dução de uma obra elevada.

Acompanhei a cena com interesse.

Mais alguns momentos, e fazia-se a leitura do pequeno texto obtido.

O comunicado era vazado em forma singela, como um apelo fraternal.

“Meus irmãos — escrevera o emissário —, que Deus nos abençoe.

‘Identificados na construção do bem, trabalhe­mos na assistência aos enfermos, necessitados de nosso concurso entre os longos sofrimentos da pro­vação terrestre, O serviço pertence à boa vontade unida à fé viva. E a sementeira reclama trabalha­dores abnegados, que ignorem cansaço, tristeza e desânimo.

“Sigamos para a frente.

(Cada pequenina demonstração de esforço pró­prio, nas realizações da caridade, receberá do Se­nhor a Divina Bênção.

(Aprendamos, pois, a socorrer nossos amigos doentes. Através de espessa noite de dor, sofrem e choram, muita vez em pleno abandono.

(Não vos magoará a contemplação de tal qua­dro? Lembremo-nos dAquele Divino Médico que passou, no mundo, fazendo o bem. DEle recebe­remos a força necessária para progredir. Estará conosco na grande jornada de comiseração pelos que padecem.

(Fiamos em vós, em vossa dedicação à causa da bondade evangélica.

(A estrada será talvez difícil e fragosa; en­tretanto, o Senhor permanecerá conosco.

(Prossigamos, intimoratos, e que Ele nos aben­çoe agora e sempre.

O comunicante assinou o nome, e, daí a alguns minutos, encerravam-se os serviços espirituais da noite.

O presidente da sessão, seguido pelos demais companheiros, Iniciou o estudo e debate da men­sagem. Concordou-se em que era edificante na es­sência, mas não apresentava índices concludentes da identificação individual; não procedia, possívelmente, do conhecido profissional que a subscreve­ra; faltavam-lhe os característicos especiais, pois um médico usaria nomenclatura adequada, e se afastaria da craveira comum.

E a tese animista apareceu como tábua de salvação para todos. Transferiu-se a conversação para complicadas referências ao mundo europeu; falou-se extensalnente de Richet e do metapsiquis­mo internacional; Pierre Janet, Charcot, De Ro­chas e Aksakof eram a cada passo trazidos à balha.

O comunicante, em nosso plano de ação, diri­giu-se, desapontado, ao meu orientador e comentou:

— Ora essa! jamais desejei despertar seme­lhante polêmica doméstica. Pretendemos algo diferente. Bastar-nos-ia um pouco de amor pelos en­fermos, nada mais.

Calderaro sorriu, sem dizer palavra, e eviden­ciando preocupação em objetivo mais importante, acercou-se de Eulália, entristecida.

A médium ouvia as definições preciosas com irrefreável amargura.

Turvara-se-lhe a mente, agora, empanada por densos véus de dúvida. A argumentação em curso nublava-lhe o entendimento. Marejavam-se-lhe os olhos de lágrimas, que não chegavam a cair.

Abeirando-se dela, o instrutor falou-me, bon­doso:

— Nossos amigos encarnados nem sempre exa­minam as situações pelo prisma da justiça real. Eulália é colaboradora preciosa e sincera. Se ain­da não completou as aquisições culturais no campo científico, é suficientemente rica de amor para con­tribuir à sementeira de luz. Encontra-se, porém, desabrigada, entre os companheiros invigilantes. Permanece sozinha e, assediada como está, é sus­cetível de abater-se. Auxiliemo-la sem detença.

A destra do Assistente espalmada sobre a ca­beça de nossa respeitável irmã expendia brilhantes raios, que lhe desciam do encéfalo ao tórax, qual fluxo renovador.

A médium, que antes parecia torturada, sopi­tando a custo a natural reação às opiniões que ouvia, voltou à serenidade. Caiu-lhe a máscara de descontentamento, dissipou-se-lhe a tristeza des­trutiva; os centros perispiríticos tornaram à nor­malidade; a epífise irradiou branda luz. As nuvens de mágoa, que se lhe esboçavam na mente, esfu­maram-se como por encanto. Em suma, ampara­da pela atuação direta do meu orientador, Eulá­lia sabia dos percalços do trabalho e mergulhava-se gradativamente no ameno clima da compreensão.

Restabelecendo-lhe a tranquilidade, o instru­tor, em seguida, conservou as mãos apoiadas aos lobos frontais, agindo-lhe sobre as fibras inibido­ras. Observei, então, nova mudança. A mente da médium, como que se introvertia, desinteressan­do-se da conversação em torno e ficando mais aten­ta ao nosso campo de ação. O contacto benéfico do Assistente cortava-lhe, de modo imperceptível para ela, o interesse pelas referências sem pro­veito, convocando-a a mais íntimo intercâmbio co­nosco.

Com ternura paternal, Calderaro, conservando as mãos na mesma postura, inclinou-se-lhe aos ou­vidos e falou carinhosamente:

— “Eulalia, não desanimes! A fé representa a força que sustenta o espírito na vanguarda do combate pela vitória da luz divina e do amor uni­versal. Nossos amigos não te acusam, nem te ferem: tão sõmente dormem na ilusão e sonham, apartados da verdade; exculpa-os pelas futilidades do momento. Mais tarde eles despertarão para o esforço de espalhar-se o bem... Investigam com os olhos a superfície das coisas, mas seus ouvidos ainda não escutaram o sublime apelo à redenção. Sigamos para a frente. Estaremos contigo na ta­refa diária. É necessário amar e perdoar sempre, esquecendo o dia obscuro, a fim de alcançar os milênios luminosos. Não desfaleças! O Eterno Pai te abençoará.”

Reparei que Eulália não registrava aquelas pa­lavras com os tímpanos de carne. Encheram-se-lhe os lobos frontais de intensa luz. As frases como­vedoras do instrutor represaram-se-lhe no cérebro e no coração, quais pensamentos sublimes que lhe caiam do céu, saturados de calor reconfortante e bendito.

Sim — respondia, do fundo d’alma, a devotada colaboradora, embora os lábios se lhe cerrassem no incompreendido silêncio —, trabalharia até ao fim, consciente de que o serviço da verdade per­tence ao Senhor, e não aos homens. Olvidaria to­dos os golpes. Receberia as objeções dos outros, transformando-as em auxílios. Converteria as opi­niões desanimadoras em motivos de energia nova. Dar-se-ia pressa em reconhecer os próprios defei­tos, sempre que fôssem indigitados pela franqueza de alguém, rendendo graças pela oportunidade de corrigi-los, quanto possível. Caminharia para a frente. Ser-lhe-ia a mediunidade um campo de tra­balho, onde aperfeiçoaria os sentimentos que nu­tria, sem cogitar dos utensílios para servi-la: que lhe importavam, com efeito, as dificuldades psico­gráficas, se lhe pulsava um coração disposto a amar? Sim, ouviria as sugestões do bem, antes de tudo. Seria fiel a Deus e a si mesma. Se os companheiros humanos não a pudessem entender, não lhe restava o conforto de ser compreendida pelos amigos da vida espiritual? Ao termo da ex­periência terrestre, haveria suficiente luz para to­dos. Cumpria-lhe crer, trabalhar, amar e esperar no Divino Senhor.

O Assistente retirou as mãos, deixando-a li­vre e, reaproximando-se de mim, asseverou:

— Nossa irmã foi auxiliada e está bem, lou­vado seja Deus!

Observando os lobos frontais da médium, tão revestidos de luminosidade, fiz sentir a Calderaro minha admiração.

O instrutor amigo, não se esquivando a novos esclarecimentos, informou:

— Eulália, neste instante, fixa-se mentalmen­te na região mais alta que lhe é possível. Reco­lhe-se, calma, no santuário mais intimo, de modo a compreender e desculpar com proveito.

Indicando a referida região cerebral, concluiu:

— Nos lobos frontais, André, exteriorização fisiológica de centros perispiríticos importantes, repousam milhões de células, à espera, para funcionar, do esforço humano no setor da espiritua­lização. Nenhum homem, dentre os mais arroja­dos pensadores da Humanidade, desde o pretérito até os nossos dias, logrou jamais utilizá-las na décima parte. São forças de um campo virgem, que a alma conquistará, não sõmente em continui­dade evolutiva, senão também a golpes de auto-educação, de aprimoramento moral e de elevação sublime; tal serviço, meu amigo, só a fé vigorosa e reveladora pode encetar, como indispensável lâm­pada vanguardeira do progresso individual.


10

Dolorosa perda

Dentro da noite, defrontamos com aflito cora­ção materno. A entidade, que nos dirigia a palavra, infundia compaixão pela fades de horrível so­frimento.

— Calderaro! Calderaro! — rogou, ansiosa — ampara minha filha, minha desventurada filha!

— Oh! teria piorado? — inquiriu o instrutor, evidenciando conhecimento da situação.

— Muito! muito!... — gemeram os tremen­tes lábios da mãe aflita —; observo que enlouqueceu de todo...

— Já perdeu a grande oportunidade?

— Ainda não — informou a interlocutora —, mas encontra-se à beira de extremo desastre.

Prometeu o orientador correr à doente em bre­ves minutos, e voltamos à intimidade.

Interessando-me no assunto, o atencioso As­sistente sumariou o fato.

— Trata-se de lamentável ocorrência — ex­plicou-me, bondoso —, na qual figuram a leviandade e o ódio como elementos perversores. A irmã que se despediu, há momentos, deixou uma filha na Crosta Planetária, há oito anos. Criada com mimos excessivos, a jovem desenvolveu-se na igno­rância do trabalho e da responsabilidade, não obs­tante pertencer a nobilíssimo quadro social. Filha única, entregue desde muito cedo ao capricho pernicioso, tão logo se achou sem a materna assistên­cia no plano carnal, dominou governantes, subornou criadas, burlou a vigilância paterna e, cercada de facilidades materiais, precipitou-se, aos vinte anos, nos desvarios da vida mundana. Desprotegi­da, assim, pelas circunstâncias, não se preparou convenientemente para enfrentar os problemas do resgate próprio. Sem a proteção espiritual peculiar à pobreza, sem os abençoados estímulos dos obstá­culos materiais, e tendo, contra as suas necessida­des íntimas, a profunda beleza transitória do rosto, a pobrezinha renasceu, seguida de perto, não por um inimigo prôpriamente dito, mas por cúmplice de faltas graves, desde muito desencarnado, ao qual se vinculara por tremendos laços de ódio, em pas­sado próximo. Foi assim que, abusando da liber­dade, em ociosidade reprovável, adquiriu deveres da maternidade sem a custódia do casamento. Re­conhecendo-se agora nesta situação, aos vinte e cinco anos, solteira, rica e prestigiada pelo nome da família, deplora tardiamente os compromissos assumidos e luta, com desespero, por desfazer-se do filhinho imaturo, o mesmo comparsa do preté­rito a que me referi; esse infeliz, por «acréscimo de misericórdia divina’, busca destarte aproveitar o erro da ex-companheira para a realização de al­gum serviço redentor, com a supervisão dos nossos Maiores.

Ante o espanto que inopinadamente me assal­tara, sabendo eu que a reencarnação constitui sem­pre uma bênção que se concretiza com a ajuda superior, o Assistente afiançou, tranquilizando-me:

— Deus é o Pai amoroso e sábio que sempre nos converte as próprias faltas em remédios amar­gos, que nos curem e fortaleçam. Foi assim que Cecilia, a demente que dentro em pouco visitare­mos, recolheu da sua leviandade mesma o extremo recurso, capaz de retificar-lhe a vida... Entre­tanto, a infortunada criatura reage ferozmente ao socorro divino, com uma conduta lastimável e per­versa. Coopero nos trabalhos de assistência a. ela, de algumas semanas para cá, em virtude das reite­radas e comoventes Intercessões maternas junto a nossos superiores; todavia, acalento vaga esperan­ça numa reabilitação próxima. Os laços entre mãe e filho presuntivo são de amargura e de ódio, con­substanciando energias desequillbrantes; tais vín­culos traduzem ocorrência em que o espírito femi­nino há que recolher-se ao santuário da renúncia e da esperança, se pretende a vitória. Para isso, para nívelar caminhos salvadores e aperfeiçoar sentimentos, o Supremo Senhor criou o tépido e veludoso ninho do amor materno; contudo, quan­do a mulher se rebela, insensível às sublimes vi­brações da inspiração divina, é difícil, senão impos­sível, executar o programa delineado. A infortu­nada criatura, dando asas ao condenável anseio, buscou socorrer-se de médicos que, amparados de nosso plano, se negaram a satisfazer-lhe o crimi­noso intento; valeu-se, então, de drogas veneno­sas, das quais vem abusando intensivamente. A situação mental dela é de lastimável desvario.

Findo o breve preâmbulo, Calderaro continuou:

— Mas, não temos minuto a perder. Visite­mo—la.

Decorridos alguns instantes, penetrávamos apo­sento confortável e perfumado.

Estirada no leito, jovem mulher debatia-se em convulsões atrozes. Ao seu lado, achavam-se a en­tidade materna, na esfera invisível aos olhos car­nais, e uma enfermeira terrestre, dessas que, à força de presenciar catástrofes biológicas e dramas morais, se tornam menos sensíveis à dor alheia.

A genitora da enferma adiantou-se e infor­mou-nos:

— A situação é muito grave! ajudem-na, por piedade! Minha presença aqui se limita a impedir o acesso de elementos perturbadores que prosse­guem, implacáveis, em ronda sinistra.

O Assistente inclinou-se para a doente, calmo e atencioso, e recomendou-me cooperar no exame particular do quadro fisiológico.

A paisagem orgânica era das mais comoventes. A compaixão fraterna dispensar-nos-á da tris­te narrativa referente ao embrião prestes a ser expulso.

Circunscrito à tese de medicação a mentes alu­cinadas, cabe-nos apenas dizer que a situação da jovem era impressionante e deplorável.

Todos os centros endócrinos estavam em de­sordem, e os órgãos autônomos trabalhavam aceleradamente. O coração acusava estranha arritmia, e debalde as glândulas sudoríparas se esforçavam por expulsar as toxinas em verdadeira torrente invasora. Nos lobos frontais, a sombra era com­pleta; no córtex encefálico, a perturbação era ma­nifesta; sômente nos gânglios basais havia supre­ma concentração de energias mentais, fazendo-me perceber que a infeliz criatura se recolhera no campo mais baixo do ser, dominada pelos impulsos desintegradores dos próprios sentimentos, transvia­dos e incultos. Dos gânglios banais, onde se aglo­meravam as mais fortes irradiações da mente alu­cinada, desciam estiletes escuros, que assaltavam as trompas e os ovários, penetrando a câmara vital quais tenuíssimos venábulos de treva e incidindo sobre a organização embrionária de quatro meses.

O quadro era horrível de ver-se.

Buscando sintonizar-me com a enferma, ouvia-lhe as afirmativas cruéis, no campo do pensa­mento:

— Odeio!... odeio este filho intruso que não pedi à vida!... Expulsá-lo-ei!... expulsá-lo-ei!...

A mente do filhinho, em processo de reencar­nação, como se fora violentada num sono brando, suplicava, chorosa:

— Poupa-me! poupa-me! quero acordar no tra­balho! quero viver e reajustar o destino... ajuda-me! resgatarei minha dívida!... pagar-te-ei com amor.... não me expulses! tem caridade!...

— Nunca! nunca! amaldiçoado sejas! — dizia a desventurada, mentalmente —; prefiro morrer a receber-te nos braços! Envenenas-me a vida, per­turbas-me a estrada! detesto-te! morrerás ....

E os raios trevosos continuavam descendo, a jacto continuo.

Calderaro ergueu a cabeça respeitável, enca­rou-me de frente e perguntou:

— Compreendes a extensão da tragédia?

Respondi afirmativamente, sob indizível im­pressão.

Nesse instante de nossa angustiosa expecta­tiva, Cecilia dirigiu-se com decisão à enfermeira:

— Estou cansada, Liana, muitíssimo cansada, mas exijo a intervenção esta noite!

— Oh! mas assim, nesse estado?! — ponde­rou a outra.

— Sim, sim — tornou a doente, inquieta —; não quero adiar essa intervenção. Os médicos ne­garam-se a fazê-la, mas eu conto com a tua dedi­cação. Meu pai não pode saber disso, e eu odeio esta situação que terminantemente não conservarei.

Calderaro pousou a destra na fronte da res­ponsável pelos serviços de enfermagem, no intuito evidente de transmitir alguma providência conci­liatória, e a enfermeira ponderou:

— Tentemos algum repouso, Cecilia. Modifi­carás possívelmente esse plano.

— Não, não — objetou a imprevidente futura mãe, com mau humor indisfarçável —; minha re­solução é inabalável. Exijo a intervenção esta noite.

Mau grado à negativa peremptória, sorveu o cálice de sedativo que a companheira Lhe oferecia, atendendo-nos a influência indireta.

Consumara-se a medida que o meu instrutor desejava.

Parcialmente desligada do corpo físico, em com­pulsória modorra, pela atuação calmante do remé­dio, Calderaro aplicou-lhe fluidos magnéticos sobre o disco foto-sensível do aparelho visual, e Cecilia passou a ver-nos, embora imperfeitamente, deten­do-se, admirada, na contemplação da genitora.

Reparei, contudo, que, se a mãezinha exubera­va copioso pranto de comoção, a filha se mantinha impassível, não obstante o assombro que se lhe estampara no olhar.

A matrona desencarnada avançou, abraçou-se a ela e pediu, ansiosa:

— Filha querida, venho a ti, para que te não abalances à sinistra aventura que planejas. Reconsidera a atitude mental e harmoniza-te com a vida. Recebe minhas lágrimas, como apelo do co­ração. Por piedade, ouve-me! não te precipites nas trevas, quando a mão divina te abre as portas da luz. Nunca é tarde para recomeçar, Cecilia, e Deus, em seu infinito devotamento, transforma as nossas faltas em redes de salvação.

A mente desvairada da ouvinte recordou as convenções sociais, de modo vago, como se vivera um minuto de pesadelo indefinível.

A palavra materna, porém, continuou:

— Socorre-te da consciência, antes de tudo! O preconceito é respeitável, a sociedade tem os seus princípios justos; entretanto, por vezes, filhinha, surge um momento na esfera do destino e da dor, em que devemos permanecer com Deus, exclusiva­mente. Não abandones a coragem, a fé, o desas­sombro... A maternidade, iluminada pelo amor e pelo sacrifício, é feliz em qualquer parte, ainda mesmo quando o mundo, ignorando a causa de nos­sas quedas, nos nega recursos à reabilitação, re­legando-nos à reincidência e ao desamparo. Por agora, defrontarás com a tormenta de lágrimas; o temporal da incompreensão e da intolerância ver­gastará teu rosto... Contudo, a bonança voltará. O caminho é empedrado e árido, os espinhos dila­ceram, mas terás, de encontro ao coração, um filhinho amoroso, indicando-te o futuro! Em verda­de, Cecilia, deverias erguer teu ninho de felicidade na árvore do equilíbrio, glorificando, em paz, a realização de cada dia e a bênção de cada noite: entretanto, não pudeste esperar... Cedeste aos golpes infrenes da paixão, abandonaste o ideal aos primeiros impulsos do desejo. Ao invés de cons­truir na tranquilidade e na confiança, em bases seguras, elegeste o caminho perigoso da precipita­ção. Agora, é imprescindível evitar o despenhadeiro fatal, contornar a voragem traiçoeira, agar­rando-te ao salva-vidas do supremo dever. Volta, pois, minha filha, à serenidade do principio, e re­signa-te ante o novo aspecto que imprimiste ao pró­prio roteiro, aceitando o ministério da maternidade dolorosa com o sacrifício de encantadoras aspira­ções. No silêncio e na obscuridade da proscrição social, muitas vezes logramos a felicidade de co­nhecer-nos, O desprezo público, se precipita os mais fracos no esquecimento de si mesmos, ergue os fortes para Deus, sustentando-os no trilho anô­nimo das obrigações humildes, até à montanha da redenção. É provável que teu pai te amaldiçoe, que os nossos entes mais caros na Terra te menos-cabem e tentem aviltar; no entanto, que martírio não enobrecerá o espírito disposto ao resgate dos seus débitos, com dedicação ao bem e serenidade na dor? Não será melhor a coroa de espinhos na fronte do que o monte de brasas na consciência? O mal pode perder-nos e transviar-nos; o bem re­tifica sempre. Além disto, se é certo que o pade­cimento da vergonha açoitará tua sensibilidade, a glória da maternidade resplenderá em teu cami­nho... Tuas lágrimas orvalharão uma flor que­rida e sublime, que será o teu filho, carne de tua carne, ser de teu ser. Que não fará no mundo a mulher que sabe renunciar? A tormenta rugirá, mas sempre fora de teu coração, porque, lá den­tro, no santuário divino do amor, encontrarás em ti mesma o poder da paz até à vitória...

A enferma escutava, quase indiferente, dis­posta a não capitular. Recebia os apelos mater­nos, sem alteração de atitude. A mãezinha, po­rém, mobilizando todos os recursos ao seu alcance, prosseguia após intervalo mais longo:

— Ouve. Cecilia! não te fiques nessa atitude impassível. Não isoles do cérebro o coração, a fim de que teu raciocínio se beneficie com o senti­mento, de modo a venceres na prova áspera. Não te detenhas em primazias da forma física, nem suponhas que a beleza espiritual e eterna erga seu templo no corpo de carne, em trânsito para o pó. A morte virá de qualquer modo, trazendo a realidade que confunde a ilusão. Não persistas no véu da mentira. Humilha-te na renúncia construtiva, toma a tua cruz e segue para a compreen­são mais alta... No teu madeiro de sofrimento íntimo, ouvirás enternecedoras vozes de um filho abençoado... Se te alancear o abandono do mundo, será ele, junto de ti, o suave representante da Divindade... Que falta te fará o manto das fan­tasias, se dois pequeninos braços de veludo te cinjam, carinhosos e fiéis, conduzindo-te à renovação para a vida superior?

Foi então que Cecilia, infundindo-me assom­bro pela agressividade, objetou em pensamento:

— Como não me disseste isso antes? Na Ter­ra, sempre satisfazias meus desejos. Nunca me permitiste o trabalho, favoreceste-me o ócio, fi­zeste-me crer em posição mais elevada que a das outras criaturas; incutiste-me a suposição de que todos os privilégios especiais me eram devidos; não me preparaste, enfim! Estou sôzinha, com um pro­blema atribulativo... Não tenho, agora, coragem de humilhar-me... Esmolar serviço remunerado não é o ideal que me deste, e enfrentar a vergo­nha e a miséria será para mim pior que morrer. Não, não!... não desisto, nem mesmo à tua voz que, a despeito de tudo, ainda amo! É-me im­possível retroceder.

A comovedora cena estarrecia. Observava eu, ali, o milenário conflito da ternura materna com a vida real.

A venerável matrona chorou com mais amar­gura, agarrou-se à filha com mais veemência e suplicou: — Perdoa-me pelo mal que te fiz, querendo-te em demasia... Ó filha querida, nem sempre o amor humano avança vigilante! Por vezes a ceguei­ra nos compele a erros clamorosos, que só o golpe da morte em geral expunge. Não consideras, po­rém, a minha dor? Reconheço minha participação indireta em teu presente infortúnio, mas entenden­do, agora, a extensão e a delicadeza dos deveres maternos, não desejo que venhas colher espinhos no mesmo lugar onde sofro os resultados amargos de minha imprevidência. Porque eu haja errado por excesso de ternura, não te desvies por acúmulo de ódio e de inconformação. Depois do sepulcro, o dia do bem é mais luminoso, e a noite do mal é, sobremaneira, mais densa e tormentosa. Aceita a humilhação como bênção, a dor como preciosa oportunidade. Todas as lutas terrenas chegam e passam; ainda que perdurem, não se eternizam. Não compliques, pois, o destino. Submeto-me às tuas exprobrações. Merece-as quem, como eu, olvi­dou a floresta das realizações para a eternidade, retendo-se voluntàriamente no jardim dos caprichos amenos, onde as flores não se ostentam mais do que por fugaz minuto. Esqueci-me, Cecilia, da en­xada benfazeja do esforço próprio, com a qual devera arrotear o solo de nossa vida, semeando dádivas de trabalho edificante, e ainda não chorei suficientemente, para redimir-me de tão lastimável erro. Todavia, confio em ti, esperando que te não suceda o mesmo na áspera trilha da regeneração. Antes mendigar o pão de cada dia, amargar os remoques da maldade humana, aí na Terra, que menosprezar o pão das oportunidades de Deus, per­mitindo que a crueldade nos avassale o coração. O sofrimento dos vencidos no combate humano é celeiro de luz da experiência. A Bondade Divina converte as nossas chagas em lâmpadas acesas para a alma. Bem-aventurados os que chegam àmorte crivados de cicatrizes que denunciam a dura batalha. Para esses, uma perene era de paz ful­gurará no horizonte, porqüanto a realidade não os surpreende quando o frio do túmulo lhes assopra o coração. A verdade se lhes faz amiga generosa; a esperança e a compreensão lhes serão compa­nheiras fiéis! Retorna, minha filha, a ti mesma; restaura a coragem e o otimismo, mau grado às nuvens ameaçadoras que te pairam na mente em delírio... Ainda é tempo! Ainda é tempo!

A enferma, contudo, fêz supremo esforço por tornar ao invólucro de carne, pronunciando ríspi­das palavraS de negação, inopinadas e ingratas.

Desfazendo-se da influência pacificadOrø de CalderarO, regressou gradativamente ao campo sen­sorial, em gritos roucos.

O instrutor aproximou-Se da genitora, chorosa, e informou:

— Infelizmente, minha amiga, o processo de loucura por insurgência parece consumado. Confie­mo-la, agora, ao poder da Suprema Proteção Divina.

Enquanto a entidade materna se debulhaVa em lágrimas, a doente, conturbada pelas emissões mentais em que se comprazia, dirigiu-se à enfer­meira, reclamando:

— Não posso! não posso mais! não suporto... A intervenção, agora! não quero perder um minuto!

Fixando a companheira, por alguns instantes, com terrifica expressão, ajuntou:

— Tive um pesadelo horrível... Sonhei que minha mãe voltava da morte e me pedia paciência e caridade! Não, não!... Irei até ao fim! Prefe­rirei o suicídio, afinal!

Inspirada pelo meu orientador, a enfermeira fêz ainda várias ponderações respeitáveis.

Não seria conveniente aguardar mais tempo?

Não seria o sonho um providencial aviso? O aba­timento de Cecilia era enorme. Não se sentiria amparada por uma intervenção espiritual? Julga­va, desse modo, oportuno adiar a decisão.

A paciente, no entanto, ficou irredutível. E, com assombro nosso, ante a genitora desencarna­da, em pranto, a operação começou, com sinistros prognósticos para nós, que observamos a cena, sen­sibilizadíssimos.

Nunca supus que a mente desequilibrada pu­desse infligir tamanho mal ao próprio patrimônio.

A desordem do cosmo fisiológico acentuou-se,

instante a instante.

Penosamente surpreendido, prossegui no exame da situação, verificando com espanto que o embrião reagia ao ser violentado, como que aderindo, de­sesperadamente, às paredes placentárias.

A mente do filhinho imaturo começou a des­pertar à medida que aumentava o esforço de extração. Os raios escuros não partiam agora só do encéfalo materno; eram igualmente emitidos pela organização embrionária, estabelecendo maior de­sarmonia.

Depois de longo e laborioso trabalho, o ente­zinho foi retirado afinal...

Assombrado, reparei, todavia, que a ginecolo­gista improvisada subtraia ao vaso feminino somente pequena porção de carne inânime, porque a entidade reencarnante, como se a mantivessem atraida ao corpo materno forças vigorosas e inde­finíveis, oferecia condições especialíssimas, adesa ao campo celular que a expulsava. Semidesperta, num atro pesadelo de sofrimento, refletia extremo de­sespero; lamentava-se com gritos aflitivos; expedia vibrações mortíferas; balbuciava frases desconexas.

Não estaríamos, ali, perante duas feras terrívelmente algemadas uma à outra? O filhinho que não chegara a nascer transformara-se em perigoso verdugo do psiquismo materno. Premindo com im­pulsos involuntários o ninho de vasos do útero, precisamente na região onde se efetua a permuta dos sangues materno e fetal, provocou ele o pro­cesso hemorrágico, violento e abundante.

Observei mais.

Deslocado indebitamente e mantido ali por for­ças incoercíveis, o organismo perispirítico da enti­dade, que não chegara a renascer, alcançou em movimentos espontâneos a zona do coração. En­volvendo os nódulos da aurícula direita, pertur­bou as vias do estímulo, determinando choques tre­mendos no sistema nervoso central.

Tal situação agravou o fluxo hemorrágico, que assumiu intensidade imprevista, compelindo a en­fermeira a pedir socorros imediatos, depois de de­lir, como pôde, os vestígios de sua falta.

— Odeio-o! odeio-o! — clamava a mente ma­terna em delírio, sentindo ainda a presença do fi­lho na intimidade orgânica. — Nunca embalarei um intruso que me lançaria à vergonha!

Ambos, mãe e filho, pareciam agora, por dizer mais exatamente, sintonizados na onda de ódio, porque a mente dele, exibindo estranha forma de apresentação aos meus olhos, respondia, no auge da ira:

— Vingar-me-ei! Pagarás ceitil por ceitil! não te perdoarei!... Não me deixaste retomar a luta terrena, onde a dor, que nos seria comum, me en­sinaria a desculpar-te pelo passado delituoso e a esquecer minhas cruciantes mágoas... Renegaste a prova que nos conduziria ao altar da reconciliação. Cerraste-me as portas da oportunidade redentora; entretanto, o maléfico poder, que impera em ti, habita igualmente minhalma... Trouxeste à tona de minha razão o lodo da perversidade que dormia dentro em mim. Negas-me o recurso da purifica­ção, mas estamos agora novamente unidos e arras­tar-te-ei para o abismo... Condenaste-me à morte, e, por isso, minha sentença é igual. Não me deste o descanso, impediste meu retorno à paz da cons­ciência, mas não ficarás por mais tempo na Terra... Não me quiseste para o serviço do amor... Por­tanto, serás novamente minha para a satisfação do õdio. Vingar-me-ei! Seguirás comigo!

Os raios mentais destruidores cruzavam-se, em horrendo quadro, de espírito a espírito.

Enquanto observava a intensificação das toxi­nas, ao longo de toda a trama celular, Calderaro orava, em silêncio, Invocando o auxilio exterior, ao que me pareceu. Efetivamente, dai a instantes, pequena turma de trabalhadores espirituais pene­trou o recinto. O orientador ministrou instruções. Deveriam ajudar a desventurada mãe, que perma­neceria junto da filha infeliz, até à consumação da experiência.

Em seguida, o Assistente convidou-me a sair, acrescentando:

— Verificar-se-á a desencarnação dentro de algumas horas. O ódio, André, diàriamente extermina criaturas no mundo, com Intensidade e efi­ciência mais arrasadoras que as de todos os canhões da Terra troando a uma vez. É mais poderoso, entre os homens, para complicar os problemas e destruir a paz, que todas as guerras conhecidas pela Humanidade no transcurso dos séculos. Não me ouves mera teoria. Viveste conosco, nestes mo­mentos, um fato pavoroso, que todos os dias se repete na esfera carnal. Estabelecido o império de forças tão detestáveis sobre essas duas almas de­sequilibradas, que a Providência procurou reunir no instituto da reencarnação, é necessário confiá­-las doravante ao tempo, a fim de que a dor opere os corretivos indispensáveis.

— Oh! — exclamei aflito, contemplando o duelo de ambas as mentes torturadas —, como ficarão? permanecerão entrelaçadas, assim? e por quanto tempo?

Calderaro fitou-me com o acabrunhamento de um soldado valoroso que perdeu temporariamente a batalha, e informou:

— Agora, nada vale a intervenção direta. Só poderemos cooperar com a oração do amor frater­no, aliada à função renovadora da luta cotidiana. Consumou-se para ambos doloroso processo de ob­sessão recíproca, de amargas consequências no es­paço e no tempo, e cuja extensão nenhum de nós pode prever.


11

Sexo

Ainda sob a impressão desagradável colhi­da do drama de Cecilia, acompanhei Calderaro a curioso centro de estudos, onde elevados mentores ministram conhecimentos a companheiros aplica­dos ao trabalho de assistência na Crosta.

— Não é templo de revelações avançadas —informou o instrutor —, mas instituição de socorro eficiente às ideias e empreendimentos dos colabora­dores militantes nas oficinas de amparo espiritual; cátedra de amizade, criada para discípulos a quem o esforço perseverante enobrece.

Ante minha indagação de aprendiz, continuou, bondoso:

— Esses amigos reúnem-se uma vez por sema­na, a fim de ouvirem mensageiros autorizados no tocante a questões que interessam de perto nosso ministério de auxilio aos homens. Estimo teu com­parecimento hoje, porqüanto o emissário da noite comentará problemas atinentes ao sexo. Uma vez que estudas, nestes dias, os enigmas da loucura, com tempo curto para a realização de experiên­cias diretas, a palestra vem ao encontro de nossos desejos.

Não foi possível maior conversação preliminar.

O Assistente observou que os trabalhos já es­tariam iniciados; seguimos, por isso, sem maiores delongas. Com efeito, encontramos a assembléia em plena função. Pouco mais de duas centenas de companheiros do nosso plano ouviam, atenciosos, iluminado condutor de ahnas.

Sentamo-nos, por nossa vez, respeitosamente à escuta.

O portador da sabedoria, cercado de viva lumi­nosidade, prelecionava sem afetação. Palavra bem timbrada, penetrando-nos o íntimo pela inflexão da sinceridade, falava, simples:

— «No exame das causas da loucura, entre in­dividualidades, sejam encarnadas, sejam ausentes da carne, a ignorância quanto à conduta sexual édos fatores mais decisivos.

«A incompreensão humana dessa matéria equi­vale a silenciosa guerra de extermínio e de pertur­bação, que ultrapassa, de muito, as devastações da peste referidas na história da Humanidade. Vocês sabem que só a epidemia de bubões, no século 6º de nossa era, chamada «peste de Justiniano’, eli­minou quase cinquenta milhões de pessoas na Eu­ropa e na Asia... Pois esse número expressivo constitui bagatela, comparado com os milhões de almas que as angústias do sexo dilaceram todos os dias. Problema premente este, que já ensande­ceu muitos cérebros de escol, não podemos atacá-lo a tiros de verbalismo, de fora para dentro, à moda dos médicos superficiais, que prescrevem longos conselhos aos pacientes, tendo, na maioria das vezes, absoluto desconhecimento da enfermidade.

«Agora, que nos distanciamos das imposições mais rijas da forma, sem nos libertarmos, contudo, dos ascendentes fundamentais de suas leis, que ainda nos subordinam as manifestações, compreen­demos que os enigmas do sexo não se reduzem a meros fatores fisiológicos. Não resultam de auto­matismos nos campos de estrutura celular, quais aqueles que caracterizam os órgãos genitais mas­culinos e femininos, em verdade substancialmente idênticos, diferençando-se unicamente na expressão de sinalética. A este respeito formulamos conceitos mais avançados. Se aí residem forças procriadoras dominantes, atendendo aos estatutos da natureza terrestre, reguladores da vida física, temos, na inquietação sexual, fenômeno peculiar ao nosso psi­quismo, em marcha para superiores zonas da evo­ltição.

(Doloroso é, porém, verificar a desarmonia em que se afundam os homens, com sombrios reflexos nas esferas imediatas à luta carnal. Inúmeros mo­vimentos libertadores estalaram através dos sé­culos, no anseio da vida melhor. Guerras sangren­tas de povo contra povo, revoluções civis espa­lhando padecimentos inomináveis, têm sido alimen­tadas na Terra, no curso do tempo, em nome de princípios regeneradores, segundo os quais se abrem novas conquistas do direito do mundo; no entanto, o cativeiro da ignorância, no campo sexual, con­tinua escravizando milhões de criaturas.

“Inútil é supor que a morte física ofereça so­lução pacífica aos espíritos em extremo desequilíbrio, que entregam o corpo aos desregramentos passionais. A loucura, em que se debatem, não procede de simples modificações do cérebro: dima­na da desassociação dos centros - perispiríticos, o que exige longos períodos de reparação.

“Indiscutívelmente, para a maioria dos encar­nados, a fase juvenil das forças fisiológicas representa delicado estádio de sensações, em virtude das leis criadoras e conservadoras que regem a famí­lia humana; Isto, porém, é acidente e não define a realidade substancial. A sede do sexo não se acha no corpo grosseiro, mas na alma, em sua su­blime organização.

(Na Esfera da Crosta, distinguem-se homens e mulheres segundo sinais orgânicos, específicos. Entre nós, prepondera ainda o jogo das recorda­ções da existência terrena, em trânsito, como nos achamos, para as regiões mais altas; nestas sabemos, porém, que feminilidade e masculinidade cons­tituem característicos das almas acentuadamente passivas ou francamente ativas.

Compreendemos, destarte, que na variação de nossas experiências adquirimos, gradativamente, qualidades divinas, como sejam a energia e a ter­nura, a fortaleza e a humildade, o poder e a deli­cadeza, a inteligência e o sentimento, a iniciativa e a intuição, a sabedoria e o amor, até lograrmos o supremo equilíbrio em Deus.

Convictos desta realidade universal, não devemos esquecer que nenhuma exteriorização do ins­tinto sexual na Terra, qualquer que seja a sua forma de expressão, será destruída, senão transmudada no estado de sublimação. As manifestações dos próprios irracionais participam do mesmo impulso ascensional. Nos povos primitivos, a eclo­são sexual primava pela posse absoluta.

A perso­nalidade integralmente ativa do homem dominava a personalidade totalmente passiva da mulher.

O trabalho paciente dos milênios transfor­mou, todavia, essas relações. A mulher-mãe e o homem-pai deram acesso a novos sopros de renova­ção do espírito. Com bases nas experiências sexuais, a tribo converteu-se na família, a taba metamorfo­seou-se no lar, a defesa armada cedeu ao direito, a floresta selvagem transformou-se na lavoura pa­cífica, a heterogeneidade dos impulsos nas imensas extensões de território abriu campo à comunhão dos ideais na pátria progressista, a barbárie er­gueu-se em civilização, os processos rudes da atra­ção transubstanciaram-se nos anseios artísticos que dignificam o ser, o grito elevou-se ao cântico: e, estimulada pela força criadora do sexo, a coletivi­dade humana avança, vagarosamente embora, para o supremo alvo do divino amor. Da espontânea manifestação brutal dos sentidos menos elevados a alma transita para gloriosa iniciação.

“Desejo, posse, simpatia, carinho, devotamen­to, renúncia, sacrifício, constituem aspectos dessa jornada sublimadora. Por vezes, a criatura demo­ra-se anos, séculos, existências diversas de uma estação a outra. Raras individualidades conseguem manter-se no posto da simpatia, com o equilíbrio indispensável. Muito poucas atravessam a provín­cia da posse sem duelos cruéis com os monstros do egoísmo e do ciúme, aos quais se entregam desvai­radamente. Reduzido número percorre os departamentos do carinho sem se algemarem, por largo trecho, aos gnomos do exclusivismo. E, às vezes, só após milênios de provas cruciantes e purifica­doras, consegue a alma alcançar o zênite luminoso do sacrifício para a suprema libertação, no rumo de novos ciclos de unificação com a Divindade

“O êxtase do santo foi, um dia, mero impulso, como o diamante lapidado — gota celeste eleita para refletir a. claridade divina — viveu na alu­vião, ignorado entre seixos brutos. Claro está que, assim como se submete o diamante ao disco do la­pidário, para atingir o pedestal da beleza, assim também o Instinto sexual, para coroar-se com as glórias do êxtase, há que dobrar-se aos imperati­vos da responsabilidade, às exigências da discipli­na, aos ditames da renúncia.

(Estas conclusões, contudo, não nos devem in­duzir a programas de santificação compulsória no mundo carnal. Nenhum homem conseguiria negar a fase da evolução em que se encontra. Não po­demos exigir que o hotentote inculto envergue a beca de um catedrático e se ponha, de um dia para outro, a ensinar o Direito Romano. Irrisório se­ria, pois, reclamar do homem de evolução mediana a conduta do santo. A Natureza, representação da Inesgotável Bondade, é mãe benigna que oferece trabalho e socorro a todos os filhos da Criação. Sua determinação de amparar-nos é sempre tanto mais forte, quanto mais decidido é o nosso propó­sito de progredir na direção do Bem Supremo.

“Não desejamos, portanto, preconizar no mim-do normas rigoristas de virtude artificial, nem fa­vorecer qualquer regime de relações inconscientes. Nossa bandeira é. sobretudo, a do entendimento fraternal. Trabalhemos para que a luz da com­preensão se faça entre os nossos amigos encarna­dos, a fim de que as angústias afetivas não arro­jem tantas vítimas à voragem da morte, intoxica­das de criminosas paixões.

Devidos à incompreensão sexual, incontáveis crimes campeiam na Terra, determinando estranhos e perigosos processos de loucura, em toda parte.

«De quando em quando, uma que outra vítima procura os hospitais de alienados, submete-se ao tratamento médico, como o operário que traz àoficina de consertos seu instrumento danificado; nos hospícios encontramos, porém, tão somente aqueles que desgalgaram até ao fundo do abismo, amargurados e vencidos. Milhões de irmãos nos­sos se conservam semiloucos nos lares ou nas ins­tituições; são os companheiros incapazes do devo­tamento e da renúncia, a submergirem, pouco a pouco, no caliginoso tijuco das alucinações... De mente desvairada, fixa no socavão da subconsciên­cia, perdem-se no campo dos automatismos infe­riores, obstinando-se no conservarem deprimentes estados psíquicos. O ciúme, a insatisfação, o de­sentendimento, a incontinência e a leviandade alas­tram terríveis fenômenos de desequilíbrio.

“Inquietantes quadros mentais se pintam na Terra, compelindo-nos a estafante serviço socorrista, de modo a limitar o círculo de infortúnio e de pavor dos que se lançam, incautos, a temerárias aventuras do sentimento animalizado.

“Não solucionaremos tão complexo problema do mundo simplesmente à força de intervenção mé­dica, embora seja admirável a contribuição da Ciência no terreno dos efeitos, sem atingir, contudo, a intimidade das causas. A personalidade não é obra da usina interna das glândulas, mau produto da qulmica mental.

“A endocrinologia poderá fazer muito com uma Injeção de hormônios, à guina de pronto-socorro às coletividades celulares, mas não sanará lesões do pensamento. A genética, mais hoje, mais amanhã, poderá interferir nas câmaras secretas da vida hu­mana, perturbando a harmonia dos cromossomos, no sentido de impor o sexo ao embrião; todavia, não atingirá a zona mais alta da mente feminina ou masculina, que manterá característicos próprios, independentemente da forma exterior ou das con­venções estatuídas. A medicina inventará mil mo­dos de auxiliar o corpo atingido em seu equilíbrio interno; por essa tarefa edificante, ela nos mere­cerá sempre sincera admiração e fervente amor; entretanto, compete a nós outros praticar a medi­cina da alma, que ampare o espírito enleado nas sombras...

“É mister acender, em derredor de nossos ir­mãos encarnados na Terra, a luz da compaixão fraterna, traçando caminhos definidos à respon­sabilidade individual. Haja mais amor ante os vales da demência do instinto, e as derrocadas ce­derão lugar a experiências santificantes.

“Como fazer valer o abençoado serviço do mé­dico à vítima da angústia sexual, se tem a defron­tá-lo, vibrante, a hostilídade da família? como sal­var doentes da alma, numa instituição de beneme­rência, se o organismo social esmaga os enfermos com todo o peso de sua opinião e de sua autori­dade? Naturalmente, constituiria pieguice rogar àsociologia a transformação imediata de seus códi­gos, ou impor à sociedade humana certas normas de tolerância, incompatíveis com as suas necessi­dades de defesa. Mas podemos manter louvável serviço de compreensão mais ampla, melhorar as disposiçoes dos nossos amigos encarnados na Crosta do Mundo e despertá-Los lentamente para a so­lução que nos interessa a todos.

“O amor espiritualizado, filho da renúncia cris­tã, é a chave capaz de abrir as portas do abismo para onde rolaram e rolam milhares de criaturas, todos os dias.

“Distribuamos a bênção do entendimento entre os homens; estendamos mão forte a todos os espí­ritos que se encontram prisioneiros do distúrbio das sensações, fazendo-lhes sentir que as oficinas do trabalho renovador permanecem abertas a todos os filhos de Deus, aperfeiçoando-lhes os sentimen­tos, sublimando-lhes os impulsos, dilatando-lhes a capacidade espiritual.

Lembremos aos corações desalentados que tal é o sexo em face do amor, quais são os olhos para a visão, e o cérebro para o pensamento: não mais do que aparelhamento de exteriorização. Erro lamentáveL é supor que só a perfeita normalidade sexual, consoante as respeitáveis convenções hu­manas, possa servir de templo às manifestações afetivas. O campo do amor é infinito em sua es­sência e manifestação. Insta fugir às aberrações e aos excessos; contudo, é imperioso reconhecer que todos os seres nasceram no Universo para amar e serem amados. Por vezes, vigoram para muitos deles, temporàriamente, os imperativos da prova benéfica, os deveres do estatuto expiatório. as exigências do serviço especializado, em que es­tudantes, devedores e missionários se obrigam a longas fases de fome e sede do coração. Isso, po­rém, não representa obstáculo ao amor. Jesus não partilhou o matrimônio normal na Terra, e, no entanto, a família de seu coração cresce com os dias; suas forças não geraram formas passa­geiras nos círculos carnais, e, contudo, suas ener­gias fecundantes renovaram a civilização, transfor­mando-lhe o curso, prosseguindo, até hoje, no apri­moramento do mundo. Simbologia sublime transparece da conduta do Mestre que, desse modo, se inclinou para os vencidos da convenção humana, solitários e humilhados, fazendo-lhes ver que épossível cooperar na extensão do Infinito Bem, amando e abnegando-se, com exclusão do egoísmo e do propósito inferior de serem amados, segundo os caprichos próprios.

(A construção da felicidade real não depende do instinto satisfeito. A permuta de células sexuais entre os seres encarnados, garantindo a continui­dade das formas físicas em processo evolucionário, é apenas um aspecto das multiformes permutas de amor. Importa reconhecer que o intercâmbio de forças simpáticas, de fluidos combinados, de vibra­ções sintonizadas entre almas que se amam, paira acima de qualquer exteriorização tangível de afeto, sustentando obras imperecíveis de vida e de luz, nas ilimitadas esferas do Universo.

(Desenvolvamos, pois, carinhosa assistência aos que desesperam no mundo, sentindo-se na transi­tória condição de deserdados. Ensinemo-los a li­bertar a mente das malhas do instinto, abrindo-lhes caminho aos ideais do amor santificante, re­cordando-lhes que fixar o pensamento no sexo torturado, com desprezo dos demais departamen­tos da realização espiritual, através do cosmo or­gânico, é estacionar, inutilmente, no trilho evo­lutivo; é entregar-se, inerme, à influência de pe­rigosos monstros da imaginação, quais o despeito e a inveja, o desespero e a amargura, que abrem ruinosas chagas na alma e que cominam ao exclu­sivismo, pena que pode avultar até à loucura e à inconsciência. Convidemo-los a rasgar horizontes mais longes no coração. O amor encontrará sem­pre mundos novos. E para que tais descobertas se coroem de luz divina, bastará à criatura o aban­dono da ociosidade, que por si mesma combaterá a nefanda ignorância. Dentro de cada um de nós es­plende, sem desmaio, a claridade libertadora, no pensamento de renovação para o bem comum que devemos cultivar e intensificar em cada dia da vida.

(O cativeiro nos tormentos do sexo não é pro­blema que possa ser solucionado por literatos ou médicos a agir no campo exterior: é questão da alma, que demanda processo individual de cura, e sobre esta só o espírito resolverá no tribunal da própria consciência. É inegável que todo auxílio externo é valioso e respeitável, mas cumpre-nos reconhecer que os escravos das perturbações do campo sensorial só por si mesmos serão liberados, isto é, pela dilatação do entendimento, pela com­preensão dos sofrimentos alheios e das dificulda­des próprias, pela aplicação, enfim, do (ama-vos uns aos outros», assim na doutrinação, como no imo da alma, com as melhores energias do cérebro e com os melhores sentimentos do coração.

Notei que a preleção terminara em meio ao respeito geral.

A palavra do mensageiro fascinara-me. Aque­las noções de sexologia eram novas para mim. Não eram repetições de compêndios descritivos, não eram fruto de frias observações de cientistas e escritores, preocupados em armar ao efeito com palavras balofas. Nasciam do verbo inflamado de amor fraternal de um orientador dedicado às ne­cessidades de seus irmãos ainda frágeis e menos felizes.

Fizera-se, em torno, certa movimentação. Com­preendi que os presentes poderiam formular per­guntas relativas ao tema da noite, e, com efeito, fizeram-se várias indagações, com respostas pre­ciosas, por elucidativas e edificantes.

O inquérito educativo continuava proveitoso, quando um companheiro ventilou certa questão que me aguçou a curiosidade.

— Venerável instrutor — disse, reverente nos últimos tempos, na Terra, os psicologistas en­carnados, em número considerável, esposaram os princípios freudianos como bases de investigação dos distúrbios da alma. Para o grande médico aus­tríaco, quase todas as perturbações psíquicas se radicam no sexo desviado. Alguns discípulos dele, porém, modificaram-lhe algo as teorias. Corrigin­do a tese das alucinações eróticas que a psicaná­lise aplicou largamente às próprias crianças, no estudo dos sonhos e das emoções, pensadores emi­nentes apuseram a afirmativa de que todo homem e toda mulher são portadores do desejo inato de se darem importância, o qual os compele a manter hnpulsos primitivistas de dominação; outros ex­poentes da cultura intelectual asseveram, a seu turno, que o ser humano é repositório de todas as experiências da raça, trazendo consigo vasto arse­nal de tendências para determinadas linhas do pensamento.

O consulente fêz uma pausa, ante o silêncio geral que reinava em derredor de sua valiosa indagação, e prosseguiu:

— Sabemos hoje, distanciados do corpo den­so de carne, que a vida do espírito é desconcertan­te em surpresas para a ciência terrestre; entre­tanto, já que nos consagramos à tarefa de auxiliar os companheiros torturados da Crosta Planetária. não poderíamos receber elucidações adequadas a respeito, com o fim de passá-las adiante?

O sábio instrutor não se fez rogado e escla­receu:

— Já sei o que deseja. Refere-se você aos movimentos da psicologia analítica, chefiados por Freud e por duas correntes distintas de seus cola­boradores. O notável cientista centralizou o ensino no impulso sexual, conferindo-lhe caráter absoluto, enquanto as duas correntes de psicologistas, mi­cialmente filiadas a ele, se diferenciaram na inter­pretação. A primeira estuda o anseio congênito da criatura, no que se refere ao relevo pessoal, en­quanto a segunda proclama que, além da satisfação do sexo e da importância individualista, existe o impulso da vida superior que tortura o homem terrestre mais aparentemente feliz. Para o círculo de estudiosos essencialmente freudianos, todos os problemas psíquicos da personalidade se resumem à angústia sexual; para grande parte de seus cola­boradores, as causas se estendem à aquisição de poder e à ideia de superioridade. Diremos, por nossa vez, que as três escolas se identificam, portadoras todas elas de certa dose de razão, faltando-lhes, todavia, o conhecimento básico do reencarnacionis­mo. Representam belas e preciosas casas dos prin­cípios científicos, sem, contudo, o telhado da lógica. Não podemos afirmar que tudo, nos círculos carnais, constitua sexo, desejo de importância e aspiração superior; no entanto, chegados à com­preensão de agora, podemos assegurar que tudo, na vida, é impulso criador. Todos os seres que conhecemos, do verme ao anjo, são herdeiros da Divindade que nos confere a existência, e todos so­mos depositários de faculdades criadoras. O vege­tal, instigado pelo heliotropismo, surge na. paisa­gem, distribuindo a vida e renovando-a. O piri­lampo cintila na sombra, buscando perpetuar-se. O batráquio sente vibrações de amor e de paterni­dade nos recessos do charco. Aves minúsculas via­jam longas distâncias, colhendo material para te­cer um ninho. A fera olvida a índole selvagínea, ao lamber, com ternura, um filho recém-nato. E mais da metade dos milhões de espíritos encarnados na Crosta da Terra, de mente fixa na região dos movimentos instintivos, concentram suas faculdades no sexo, do qual se derivam naturalmente os mais vastos e frequentes distúrbios nervosos; constituem eles compactas legiões, nas adjacências da paisa­gem primitiva da evolução planetária, irmãos nos­sos na infância do conhecimento, que ainda não sabem criar sensações e vida senão mobilizando os recursos da força sexual. Grande parte de criaturas, contudo, havendo conquistado a razão, acima do instinto, permanecem nos desatinos da prepo­tência, seduzidas pelo capricho autoritário, famin­tas de evidência e realce, ainda que atidas a tra­balho proveitoso e a paixões nobres, muitas ve­zes... Pequeno grupo de homens e de mulheres, por fim, após atingir o equilíbrio sexual na zona instintiva do ser e depois de obter os títulos que lhes confere seu trabalho e com os quais dominam na vida, regendo as energias próprias, em pleno regime de responsabilidade individual, passam a fixar-se na região sublime, na superconsciência, não mais encontrando a alegria integral no con­tentamento do corpo físico ou na evidência pessoal; procuram alcançar os círculos mais altos da vida, absorvidos em idealismo superior; sentem-se no li­miar de esferas divinas, já desde a estrada ne­voenta da carne, à maneira do viajor que, após vencer caminhos ásperos na treva noturna, estaca, desajustado, entre as derradeiras sombras da noite e as promessas indefiníveis da aurora... Para esses, o sexo, a importância individual e as vanta­gens do imnediatismo terrestre são sagrados pelas oportunidades que oferecem aos propósitos de bem fazer; entretanto, no santuário de suas almas res­plandece nova luz... A razão particularista con­verteu-se em entendimento universal. Cresceram-lhes os sentimentos sublimados na direção do cam­po superior. Pressentem a Divindade e anseiam pela identificação com ela. São os homens e as mulheres que, havendo realizado os mais altos pa­drões humanos, se candidatam à angelitude...

De um modo ou de outro, porém, tudo isto são sempre as faculdades criadoras, herdadas de Deus, em jogo permanente nos quadros da vida. Todo ser é impulsionado a criar, na organização, conservação e extensão do Universo!... »

O Instrutor estampou significativa expressão fisionômica, imprimiu longa pausa à preleção em curso e, em seguida, acrescentou, bem humorado:

— Muita vez, as criaturas instituem o mal, desviam a corrente natural das circunstâncias benéficas, envenenam as oportunidades, estacionando longulssimo tempo em tarefas reparadoras ou ex­piatórias; entretanto, ainda aí é forçoso observar a manifestação incessante do poder criador que nos é próprio, mesmo naqueles que se transviam... Em verdade, caem nos despenhadeiros do crime, lançam-se aos vales da sombra, mas, organizando e reorganizando as próprias ações, adquirem o pa­trimônio bendito da experiência; e, com a expe­riência, alcançam a luz, a paz, a sabedoria e o amor com que se aproximam de Deus. Concluímos, deste modo, que, se a psicologia analítica de Freud e de seus colaboradores avançou muito no campo da in­vestigação e do conhecimento, resolvendo, em par­te, certos enigmas do psiquismo humano, falta-lhe, no entanto, a chave da reencarnação, para solu­cionar integralmente as questões da alma. Im­possível é resolver o assunto em caráter defini­tivo, sem as noções de evolução, aperfeiçoamento, responsabilidade, reparação e eternidade. Não vale descobrir complexos e frustrações, identificar le­sões psíquicas e deficiências mentais, sem as re­mediar... Em suma, não satisfaz o simples exa­me da casca: é essencial atingir o cerne e deter­minar modificações nas causas. Para isto, é im­prescindível confessar a realidade do reencarna­cionismo e da imortalidade. Até lá, portanto, au­xiliemos nossos amigos do mundo na conquista da confiança em si mesmos, na. penetração da espe­rança divina e no contínuo auto-aprimoramento pelo trabalho redentor.

Calou-se o emissário, sorridente.

Outras perguntas surgiram, interessantes e oportunas, obtendo respostas claras e edificantes, com real proveito para todos os ouvintes.

Encerrada a reunião, retirei-me em silêncio, ao lado de Calderaro, que também se recolhia, como a reter a luz reveladora dos conceitos ouvi-dos. Não sei o que pensaria o prestimoso Assistente, submerso em funda meditação. Reconhecia tão só que, por minha vez, descobrira novo cam­po de conhecimento na província da sexologia. Da­quele momento em diante, outras noções de amor desabrochavam-me na consciência, iluminando-me o ser.


12

Estranha enfermidade

Acompanhando o abnegado irmão dos sofredores, penetrei confortável residência, onde Calde­raro me conduziu, incontinente, à presença de um nobre cavalheiro em repouso.

Achamo-nos em elegante aposento, decorado em ouro-velho. Magnífico tapete completava a graça ambiente, exibindo caprichosos arabescos em harmonia com os desenhos do teto.

Estirado num divã, o enfermo que visitáva­mos engolfava-se em profunda meditação. Ao lado, humilde entidade de nossa esfera como que nos aguardava.

Aproximou-se e cumprimentou-nos, gentil.

Às fraternas interpelações do Assistente, res­pondeu solícita:

— Fabrício vai melhorando; no entanto, con­tinuam os fenômenos de angústia. Tem estado in­quieto, aflito...

O orientador lançou expressivo olhar ao doen­te e insistiu:

— Mantém ainda o autodomínio? não se abandonou totalmente às impressôes destrutivas?

A interlocutora, revelando contentamento, in­formou:

— A Divina Misericórdia não tem faltado. O desequilíbrio integral, por enquanto, não erigiu seu império. Em nome de Jesus, nossa colaboração tem prevalecido.

Calderaro, então, fraternalmente indagou, di­rigindo-se a mim:

— Chegaste, alguma vez, a examinar casos declarados de esquizofrenia?

Não adquirira conhecimentos especializados da matéria; todavia, não ignorava constituir esse mor­bo uma das mais inquietantes questôes da psiquia­tria moderna.

— Este ramo ingrato da Ciência, que estuda a patologia da alma — declarou o companheiro, compreendendo a minha Insipiência —, é, há muito tempo, campo de batalha entre fisiologistas e psi­cologistas; tal conflito é, em verdade, lamentável e bizantino, de vez que ambas as correntes pos­suem razões substanciais nos argumentos com que se digladiam. Somos, contudo, forçados a reco­nhecer que a psicologia ocupa a melhor posição, por escalpelar o problema nas adjacências das cau­sas profundas, ao passo que a fisiologia analisa os efeitos e procura remediá-los na superfície.

Logo após, o Assistente recomendou-me exa­minar a esfera mental do visitado.

Auscultei-lhe o íntimo, ficando aterrado com as inquietudes que lhe povoavam o ser, O cérebro apresentava anomalias estranhas. Toda a face inferior mostrava manchas sombrias. Os distúr­bios da circulação, do movimento e dos sentidos eram visíveis. Calderaro apresentara-me Fabrício, classificando-o como esquizofrênico; mas não es­taríamos, ali, perante um caso de neurastenia cé­rebro-cardíaca?

O instrutor ouviu-me pacientemente e observou:

— Diagnóstico exato, no aspecto em que o nosso amigo se apresenta hoje. A esquizofrenia, contudo, originando-se de sutis perturbações do or­ganismo perizpirítico, traduz-se no vaso rico por surpreendente conjunto de moléstias variáveis e indeterminadas. No momento, temos aqui a doença de Kriahaber com todos os característicos especiais.

Mostrando grave expressão no semblante, acres­centou:

— Repara, contudo, além dos efeitos mutá­veis. Analisa a mente e os domínios das sensações.

Lancei mais profundamente a sonda de minha observação sobre os quadros interiores do enfer­mo e percebi-lhe imagens torturantes na tela da memória.

Ensimesmado, Fabrício não se dava conta do que ocorria no plano externo. Braços imóveis, olhos parados, mantinha-se distante das sugestões am­bientes; no íntimo, todavia, a zona mental seme­lhava-se a fornalha ardente.

A imaginação superexcitada detinha-se a ouvir o passado... Recordava-lhe a figura de um velhinho agonizante. Escutava-lhe as palavras da última hora do corpo, a recomendar-lhe aos cuidados três jovens presentes também ali, na paisagem de suas reminiscências. O moribundo devia ser-me o genitor, e os rapazes, irmãos. Conversavam, entre si, lacrimosos. De repente, modificavam-se-lhe as lembranças. O ancião e os jovens pareciam revolta­dos contra ele, acusando-o. Nomeavam-no com des­caridosas designações...

O doente ouvia as vozes internas, ansioso, amargurado. Desejava desfazer-se do pretérito, pagaria pelo esquecimento qualquer preço, ansiava de fugir a si próprio, mas em vão: sempre as mesmas recordações atrozes vergastando-lhe a consciência.

Verificava-lhe eu os estragos orgânicos, resul­tantes do uso intensivo de analgésicos. Aquele ho­mem deveria estar duelando consigo mesmo, desde muitos anos.

Achava-me no exame da situação, quando uma senhora idosa surgiu no aposento, tentando cha­má-lo à realidade.

— Vamos, Fabrício! não se alimenta hoje?

O interpelado vagueou o olhar pela sala, es­boçou uma resposta negativa sem palavras e deixou-se ficar na mesma posição.

A matrona insistiu, afável, mas não conseguiu demovê-lo. E porque prosseguisse, atenciosa, bus­cando ministrar-lhe um caldo, o enfermo levantou-se, de súbito, como se houvera repentinamente en­louquecido. Esbravejou expressões inconvenientes e ingratas; rubro de cólera, repeliu o oferecimen­to, surpreendendo-me pela crise de nervos des­trambelhados.

A esposa regressou ao interior da casa, enxu­gando os olhos, enquanto Calderaro me esclarecia, comovido:

— Está no limiar da loucura, e ainda não enveredou francamente pelo terreno da alienação mental, graças à dedicação de velha parenta desen­carnada que o assiste, vigilante.

Logo após, o Assistente o submeteu a opera­ções magnéticas de reconforto, vigorando-lhe a resistência.

Ante o neurastênico, mais calmo agora, nar­rou, com serenidade:

- Nosso irmão enfermo teve a infelicidade de apropriar-se indebitamente de grande herança, de­pois de haver prometido ao genitor moribundo ve­lar pelos irmãos mais novos, na presença destes; ao se sentir, porém, senhor da situação, desampa­rou os manos e expulsou-os do lar, valendo-se de rábulas bem remunerados, desses que, sem escrú­pulo, vivem de inquinar os textos legais. Por mais enérgicas e convincentes as reclamações arrazoa­das, por mais comovedores os apelos à amizade fra­terna, manteve-se ele em clamorosa surdez, arro­jando os irmãos à penúria e a dificuldades de toda a sorte. Dois deles morreram num sanatório em catres da indigência, minados pela tuberculose que os surpreendeu em excessivas tarefas noturnas; e o outro desencarnou em míseras condições de infortúnio, relegado ao abandono, antes dos trinta anos, presa de profunda avitaminose, consequente da subalimentação a que fora compelido. Tudo isto nosso desditoso amigo conseguiu fazer, escapando à justiça terrena; entretanto, não pôde eli­minar dos escaninhos da consciência os resquícios do mal praticado; os remanescentes do crime são guardados em sua organização mental como carvões em paisagem denegrida, após incêndio devorador; e esses carvões convertem-se em brasas vivas, sempre que excitados pelo sopro das recordações. O mau filho e perverso irmão, enquanto senhor dos patrimônios de resistência que a virilidade do corpo lhe permitia, lograva fugir de si mesmo, sem gran­des dificuldades. O dinheiro fácil, a saúde sólida, os divertimentos e prazeres, desempenhavam para ele a função de pesadas cortinas entre o persona­lismo arrogante e a realidade viva. Todavia, o tempo cansou-lhe o aparelho fisiológico e consu­miu-lhe a maioria das ilusões; pouco a pouco, en­controu-se a si mesmo; na viagem de volta ao pró­prio eu, viu-se, porém, a sós com as lembranças de que não conseguira escoimar-se. Debalde intentou descobrir o bom ânimo e o bem-estar: estes se lhe ocultavam. Impossível era concentrar-se no próprio ser, sem ouvir o pai e os irmãos, acusando-o, expro­brando-lhe a vileza... A mente atormentada não achava refúgio consolador. Se rememorava o pre­térito, este lhe exigia reparação; se buscava o pre­sente, não obtinha tranquilidade para se manter no trabalho sadio; e, quando tentava erguer-se a plano superior, desejoso de orar ao Altíssimo, era surpreendido, ainda aí, por dolorosas advertências, no sentido de inadiável correção da falta cometida. Nesse estado espiritual, interessou-se tardiamente pelo destino dos irmãos. As informações colhidas não lhe deixavam margem ao pagamento imediato; haviam todos partido, precedendo-o na grande jor­nada do túmulo. Desde então, verificando a impraticabilidade de rápida retificação do tortuoso destino, o infeliz fixou-se nas zonas mais baixas do ser. Perdeu as ambições nobres e os ideais sadios, passou a ignorar os recursos da esperança. As van­tagens materiais, ao invés de confortá-lo, infun­diam-lhe, agora, pavoroso tédio e indizível desgosto. Engrazado à máquina das responsabilidades finan­ceiras, criadas por ele mesmo sem o espírito de possuir para dar em nome do Bem Universal, não lhe foi possível esquivar-se às imposições da vida social, na qualidade de homem de alto comércio, até que baqueou, em supremo torpor. Sentindo-se incriminado no tribunal da própria consciência, co­meçou a ver perseguidores em toda a parte. Adqui­riu, assim, fobias lamentáveis. Para ele, todos os pratos estão envenenados. Desconfia de quase todos os familiares e não tolera as antigas relações.

O excesso de recursos materiais fê-lo descrente da amizade sincera, conferiu-lhe noções de privilégio que nunca mereceu, acentuou-lhe a independência destrutiva, extinguiu-lhe no coração a bendita luz do verbo “servir”. Como vemos, sua situação éabsolutamente desfavorável ao necessário reergui­mento. A condição, a que se impôs pelos desejos menos nobres que sempre nutriu, é de apatia e de esterilidade...

A essa altura da narrativa, Calderaro apontou em particular o cérebro doente, e explicou:

— O sistema nervoso, que se liga à câmara encefálica através de processos indescritíveis na técnica da ciência humana, mais não é do que a representação de importante setor do organismo perispirítico, segundo acabamos de estudar. A men­te falida de Fabrício, experimentando insistentes remorsos e aflitivas preocupações, intoxicou esses centros vitais com a incessante emissão de energias corruptoras. Consequentemente, verificou-se o que em boa psiquiatria poderíamos designar por desão generalizada do sistema nervoso». Tal desas­tre atingiu, em primeiro lugar, as sedes das conquis­tas mais recentes da personalidade, isto é, as células e os estímulos mais jovens, que se localizam nos lobos frontais e no córtex motor, inutilizando tem­poràriamente o nosso amigo, para a meditação ele­vada e para o trabalho sadio, e obrigando-o a re­gredir, no terreno espiritual, para dentro de si mesmo. De mente estacionária agora, em plena re­gião instintiva da individualidade, nosso enfermo ainda não se acha positivamente desequilibrado, graças à contínua assistência de nosso plano.

Calando-se o Assistente, ousei interrogar:

— Mas há esperança de reequilibrio para breve?

— Absolutamente não — respondeu o inter­pelado, de maneira significativa —; no caso dele, funcionariam em vão as terapêuticas em uso. O espírito delinquente pode receber os mais variados gêneros de colaboração, mas será imperiosamente o médico de si mesmo. A Justiça Divina exerce invariável ação, embora os homens não a identi­fiquem no mecanismo de suas relações ordinárias. Os criminosos podem, por muito tempo, escapar ao corretivo da organização judiciária do mundo; no entanto, mais cedo ou mais tarde, vaguearão, pe­rante os seus irmãos em humanidade, em baixo terreno espiritual, representado no quadro de af li­ções punitivas. Para os familiares e amigos, Fabrício é um esquizofrênico, incapaz de resistir às aplicações do choque insulínico em virtude do co­ração frágil e cansado; todavia, para nós é um companheiro acidentado na ambição inferior, curtindo amargos resultados de seus propósitos de dominar egoisticamente na vida.

Interrompendo-se o orientador, dei guarida a interrogações naturais no campo Intimo.

Se o doente não oferecia perspectivas de melhoras substanciais, qual o objetivo de nossa assistência? porque nos demorarmos à frente de um caso insolvível, qual aquele, pela impossibilidade de próximo reencontro entre o criminoso e suas vítimas?

Calderaro não me deixou sem resposta.

— Estamos aqui — elucidou, atencioso —, a fim de proporcionar-lhe morte digna. Não chegará a enlouquecer em definitivo. Com o nosso concurso fraterno, desencarnará antes do eclipse total da razão.

E porque me mostrasse espantado, o presti­moso amigo acrescentou:

— Fabrício desposou uma criatura, por todos os títulos credora do amparo celestial, e essa mu­lher quase sublime deu-lhe três filhos, pos quais ele se consagrou nobremente, preparando-os para elevado ministério social. São eles, presentemente, dois professores e um médico, dedicados ao ideal superior de servir ao bem coletivo. Fabrício não tem o direito de perturbar a família organizada à sombra de seu amparo material, mas educada sem o seu personalismo despótico. Pelo serviço que prestou à esposa e aos filhos, recebe do Alto o socorro de agora, de maneira a transferir residên­cia, por imposição da morte, preparado para o futuro de reajustamento. As preces da compa­nheira e dos filhos garantem-lhe uma “boa morte” próxima, para a qual vamos organizando as suas energias e habituando pari passu a família a per­manecer em missão ativa no bem sem a presença material dele.

Silenciou o Assistente, dispondo-se a fazer-lhe aplicações magnéticas no aparelho circulatório. Demorou-se minutos longos administrando-lhe

forças ao redor dos vasos mais importantes e, em seguida, desenvolveu passes longitudinais, destina­dos à quietação dos nervos.

Ante minha admiração natural, Calderaro ex­plicou-se:

— Preparamos acesso à trombose pela calcifi­cação de certas veias. A desencarnação chegará suavemente, dentro de alguns dias, como providên­cia compassiva, indispensável à felicidade do euferino e de quantos lhe seguem de perto o martírio.

O doente, mais calmo, parecia haver sorvido milagroso analgésico. Aquietou-se, descansando a cabeça nos travesseiros alvos.

Dentro do silêncio que se fizera entre nós, ia­daguei, curioso:

— Considerando, no entanto, o decesso, em bre­ves dias, como prosseguirá o processo de resgate do nosso amigo?

— A liquidação já começou — redarguiu o instrutor, sereno.

— Como?

Calderaro fêz expressivo gesto e recomendou:

— Espera.

Nesse mesmo instante, o enfermo acionou a campainha à cabeceira. A esposa atendeu, à pres­sa. Encontrou-o melhor e sorriu, feliz.

O velho, mais tranquilo, rogou:

— Inês, posso ver o Fabricinho?

— Como não? — respondeu a companheira delicadamente — vou buscá-lo.

Em poucos minutos, regressava trazendo um menino de seus oito anos. O pequeno atirou-se-lhe aos braços esqueléticos, com extremado ca­rinho, e perguntou:

— Está melhor, vovô?

O doente contemplou-o, enternecido, infor­mando:

— Estou melhor, meu filhinho... Porque não veio de manhã?

— Vovó não deixou.

— Sim, é verdade; eu não me achava bem...

A senhora retirou-se, para acompanhar a cena do outro lado da cortina.

Avô e neto sentiram-se mais à vontade.

Totalmente transfigurado com a presença do menino, nosso quase demente amigo suplicou:

— Fabricinho, eu desejo que você reze por mim...

O petiz não se fêz rogado.

Ajoelhou-se ali mesmo e disse, respeitosa-mente, a oração dominical.

Terminada a prece, o doente pediu, de olhos umidos:

— Não se esqueça, meu filho, de orar por mim quando eu morrer.

O menino, agora de pé, enlaçou-lhe o busto e exclamou, chorando discretamente:

— O senhor não morrerá!... Mostrando-se aliviado, o velhinho correspon­deu ao gesto afetivo, fitou o neto e inquiriu, com estranho fulgor no olhar:

— Fabricinho, você acredita que Deus per­doa aos pecadores como eu?

O pequeno respondeu, lacrimoso e confundido:

— Eu acho, vovô, que Deus perdoa todos nós.

Revelando as ansiedades que lhe povoavam a alma, voltou à indagação:

— Mesmo a um homem que trai a confiança paterna e rouba aos irmãos?

O netinho hesitou, incapaz de apreender toda a extensão daquela pergunta intencional; entretanto, no desejo de agradar ao doente, de qualquer modo, balbuciou com toda a simplicidade infantil:

— Eu penso que Deus perdoa sempre...

— É o que eu pretendia saber — acentuou o velhinho, mais confortado.

A conversação entre ambos prosseguiu afe­tuosa e amena.

Após detido exame, Calderaro apontou para a criança e esclareceu:

— Este menino é o ex-pai de Fabricio, que volta ao convívio do filho delinqüente pelas portas benditas da reencarnação. É o único neto do en­fermo e, mais tarde, assumirá a direção dos patrimônios materiais da família, bens que inicialmente lhe pertenciam. A Lei jamaiS dorme.

Assombrado com a informação, remol as per­guntas que me afloravam, espontâneas.

Como se redimiria, por sua vez, o velho Fa­bríciO? RegreSsaria também, em dias futuros, àquele mesmo lar? Sofreria o desequilíbrio com­pleto, depois da morte do corpo denso? Demorár-se-ia em perturbação?

Calderaro, dando por findos nOSSOS trabalhos de assistência na casa, sorriu para mim, prepa­rou-se para a retirada e obtemperou:

— Nosso amigo enfermo, guardando na mente os resíduoS da ação criminosa, logo após o aban­dono do domicílio fisiológico experimentará, por muito tempo, os resultados de sua queda, até que o sofrimento alije os elementos malignos que lhe intoxicam a alma. Quando esse serviço purgatonal estiver completo, então...

— Regressará aos seus familiares? — inquiri, ansioso, ante a frase suspensa.

— Se o grupo consangüíneo atual houver ele­vado o padrão espiritual a luminosas culminâncias, será compelído a esforçar-se intensivamente pelo alcançar. Entretanto, jamais estará desam­parado. Todos temos a imensa família, dentro da qual nos integramos desde a origem — a Huma­nidade.

Nesse instante, abandonávamos o aposento suntuoso.

Em breves segundos, tornávamos à Natureza gozando a bênção do céu muito límpido. E enquanto o meu instrutor se refugiava em si mesmo, atento às responsabilidades do serviço, dei expan­são a novos pensamentos, relativos à amplitude e à grandeza do império da justiça.


13

Psicose afetiva

Seguindo Calderaro, fomos, em plena noite, atender infortunada irmã quase suicida.

Penetramos a residência. confortável, conquan­to modesta, percebendo a presença de várias en­tidades infelizes.

O Assistente pareceu-me apressado. Não se deteve em nenhuma apreciação.

Acompanhei-o, por minha vez, até humilde aposento, onde fomos encontrar jovem mulher em convulsivo pranto, dominada por desespero incoer­cível. A mente acusava extremo desequilíbrio, que se estendia a todos os centros vitais do campo fi­siológico.

— Pobrezinha! — disse o orientador, como­vidamente — não lhe faltará a Divina Bondade. Tudo preparou de modo a fugir pelo suicídio, esta noite; entretanto, as Forças Divinas nos auxiliarão a intervir...

Colocou a destra sobre a fronte da irmã em lágrimas e esclareceu;

- É Antonina, abnegada companheira de luta. Órfã de pai, desde muito cedo, iniciou-se no tra­balho remunerado aos oito anos, para sustentar a genitora e a irmãzinha. Passou a infância e a pri­meira juventude em sacrifícios enormes, ignorando as alegrias da fase risonha de menina e moça. Aos vinte anos perdeu a mãezinha, então arrebatada pela morte, e, não obstante seus formosos ideais femininos, foi obrigada a sacrificar-se pela irmã em vésperas de casamento. Realizado este, Anto­nina procurou afastar-se, para tratar da própria vida; muito cedo, verificou, porém, que o esposo da irmãzinha se caracterizava por nefanda viciosidade. Perdido nos prazeres inferiores, entrega­va-se ao hábito da embriaguez, diariamente, retor­nando ao lar, em hora tardia, a distribuir panca­das, a vomitar insultos. Sensibilizada ante o desti­no da companheira, nossa dedicada amiga perma­neceu em casa, a serviço da renúncia silenciosa, aliviando-lhe os pesares e auxiliando-a a criar os sobrinhos e a assisti-los. Corriam os anos, tristes e vagarosos, quando Antonina conheceu certo rapaz necessitado de arrimo, a sustentar pesado es­forço por manter-se nos estudos.

Identificavam-Se pela idade e pela comunhão de ideias e de sentimentos. Devotada e nobre, correspondeu-lhe à sim­patia, convertendo-se em abnegada irmã do jovem. A companhia dele, de algum modo, projetava aben­çoada luz em sua noite de solidão e sacrifício inin­terruptos. Repartindo o tempo e az possibilidades entre a irmã, quatro pequenos sobrinhos e o co-participe de sonhos fulgurantes, consagrava-se ao trabalho redentor de cada dia, animada e feliz, aguardando o futuro. Idealizava também obter, um dia, a coroa da maternidade, num lar singelo e po­bre, mas suficiente para caber a felicidade de dois corações para sempre unidos diante de Deus. To­davia, Gustavo, o rapaz que se valeu de sua amo­rosa colaboração durante sete anos consecutivos após a jornada universitária sentiu-se demasiado importante para ligar seu destino ao da modesta moça.

Independente e titulado, agora, passou a no­tar que Antonina não era, fisicamente, a compa­nheira que seus propósitos reclamavam. Exibindo um diploma de médico e sentindo urgente neces­sidade de constituir um lar, com grandioso programa na vida social, desposou jovem possuidora de vultosa fortuna, menosprezando o coração leal que o ajudara nos instantes incertos. Fundamente humilhada, nossa desditosa irmã procurou-o, mas foi recebida com escarnecedora frieza. Gustavo, com presunção repulsiva, transmitiu-lhe a novida­de, asperamente: Necessitava pôr em ordem os ne­gócios materiais que lhe diziam respeito, e, por isto, escolhera melhor partido. Além disso, declarou, sua posição requeria uma esposa que não pro­cedesse de um meio de atividades humilhantes; pretendia alguém que não fôsse operária de labo­ratório, que não tivesse mãos calejadas, nem fios prateados na cabeça. A moça tudo ouviu debulhada em lágrimas, sem reação, e tornou à residência, ontem, minada pelo anseio de morrer, fosse como fôsse. Sente que as esperanças se lhe esvanece­ram, esfaceladas pelo golpe inopinado, que a exis­tência se reduz em cinza e poeira, que a renúncia abre as portas da ruína e da morte. Conseguiu certa dose de substância mortífera, que pretende ingerir ainda hoje.

Dando pequeno intervalo às elucidações, reco­mendou-me:

— Examina-a, enquanto administro os socor­ros iniciais.

Detive-me em perquirição minuciosa, por lon­gos minutos.

Dos olhos de Antonina caíam pesadas lágri­mas; no entanto, da câmara cerebral partiam raios purpúreos, que invadiam o tórax e envolviam par­ticularmente o coração. Torturantes pensamentos baralhavam-lhe a mente. Registrando-lhe os secre­tos apelos, compungia ouvir-lhe os gritos de desespero e as súplicas ardentes.

Seria crime — pensava — amar alguém com tal excesso de ternura? onde jazia a Justiça do Céu, que lhe não premiava os sacrifícios de mu­lher dedicada à paz doméstica? aspirava a ser alegre e feliz, como as venturosas companheiras de sua meninice; anelava a tranquilidade do matrimônio digno, com a expectativa de receber alguns filhinhos, concedidos pela Bondade Infinita de Deus!

Seria aspiração condenável sonhar com a edificação de modesto lar, com a proteção de um companheiro simples e bondoso, quando as próprias aves possuiam seus ninhos? Não trabalhara sem­pre pela felicidade dos outros? por que desconhe­cidas razões a relegara Gustavo ao abandono? Os calos das mãos e os sinais do rosto não lhe robo­ravam a dedicação ao serviço honesto? Teria va­lido a pena sofrer tantos anos, perseguindo uma realização que se lhe afigurava, agora, impossível? Não! não pretendia demorar-se num mundo onde o vício triunfava tão facilmente, espezinhando a virtude! Não obstante a fé que lhe alentava o co­ração, preferia morrer, enfrentar o desconhecido... Sentia-se desajustada, sem rumo, quase louca. Não seria mais razoável — inquiria a si própria — bus­car as trevas do sepulcro de que apodrecer num catre de hospício?

Estirada no leito, a infeliz mergulhava o ros­to nas mãos, soluçando sôzinha, inspirando-nos piedade.

Calderaro interrompeu o serviço de assistência, fitou-me com. significativa expressão e comumcou:

— Tenho instruções para impor-lhe o sono mais profundo, logo depois da meia-noite.

E, verificando que o relógio informava não estar distante o momento prefinido, o Assistente começou a ministrar-lhe aplicações fluídicaa ao longo do sistema nervoso simpático.

A vasta rede de neurônios experimentou a in­fluência anestesiante. Ãntonina tentou levantar-se, gritar, mas não conseguiu. A intervenção era demasiado vigorosa para que a enferma pudesse reagir.

O orientador prosseguiu atento, envolvendo-a mansamente, em fluidos calmantes. Dentro em pouco, cedendo à irresistível dominação, a moça recostou-se vencida nos travesseiros, no estado a que o magnetizador comum chamaria hipnose profunda).

Manteve-a Calderaro em completo repouso por mais de meia hora. Decorrido esse tempo, duas entidades, aureoladas de intensa luz, deram en­trada no recinto. Abraçaram meu instrutor, que mas apresentou cordialmente.

Estavam, agora, junto de nós, Mariana, que fora dedicada genitora de Ãntonina, e Márcio, ilu­minado espírito ligado a ela, desde séculos remotos.

Agradeceram, sensibilizados, a atuação de meu orientador, que passou a doente à direção materna.

A simpática senhora desencarnada inclinou-se sobre a filha e chamou-a, docemente, como o fa­zia na Terra. Parcialmente desligada do envoltó­rio grosseiro, Antonina ergueu-se, em seu organismo perispirítico, encantada, feliz...

— Mamãe! mamãe! — gritou, desabafando-se, a refugiar-se entre os braços maternais.

Mariana recolheu-a, carinhosa, estringiu-a de encontro ao peito, pronunciando palavras enternecedoras.

— Mãezinha, ajude-me! não quero mais viver na Terra! não me deixe voltar ao corpo pesado... O destino escorraça-me. Sou infeliz! Tudo me éadverso... Arrebate-me daqui... para sempre!

A nobre matrona contemplava-a, triste, quan­do Márcio se aproximou, fazendo-se visto pela es­timada enferma.

A moça abriu desmesuradamente os olhos e ajoelhou-se instintivamente, amparada pela mãe. Parecia esforçar-se por trazer à lembrança alguém que ficara em pretérito longínquo... Observava-se-lhe a extrema dificuldade para recordar com precisão. Contemplava o emissário, banhada em pranto diferente: não vertia as lágrimas lutuosas de momentos antes; tocava-se, agora, de sublime conforto, de júbilo místico, que lhe nascia, inex­plicavelmente, das profundezas do coração.

Acercou-se Márcio mais intimamente, pousou-lhe a luminosa destra sobre a fronte e falou com ternura:

— Antonina, porque esse desânimo, quando a luta redentora apenas começa? olvidaste, acaso, que não somos órfãos? Acima de todos os obstá­culos paira a Infinita Bondade. Recusas a “porta estreita”, que nos proporcionará o venturoso aces­so ao reencontro?

Talvez porque a interlocutora estivesse de si mesma postulando excessivo trabalho para reavivar paisagens perdidas no tempo, o mensageiro advertiu, fraternal:

— Não forces a situação! acalma-te! não nos bastará o presente, cheio de abençoado serviço e renovadora luz? Um dia, reconquistarás o patri­mônio da memória total; por ora, contenta-te com as dádivas limitadas. Aproveita os minutos na re­composição do destino, vale-te das horas para reconduzir tuas aspirações a esferas superiores. Que motivos te sugerem esse crime, que é o provocar a morte? que razões te conduzem os passos na di­reção do precipício tenebroso? Tua mãe e eu sen­timos, de longe, o perigo, e aqui estamos para ajudar-te...

Fez longa pausa, fixando-a amorosamente, e contmuou:

- Ó minha abençoada amiga, como abriste assim o coração aos monstros do desespero? Dize-me! não te mantenhas silenciosa... Não sou teu juiz, sou teu amigo da eternidade. Não terei o consolo de ouvir-te?

A enferma desejava falar; entretanto, os sua­ves raios de luz, emitidos por Márcio, cercavam-na toda, sufocando-lhe a garganta, no êxtase daque­les instantes inesquecíveis.

Ele, porém, desejando evidentemente propor­cionar-lhe oportunidade a mais amplo desabafo, levantou-a, cuidadoso, e insistiu:

— Fala!...

Animada, Antonina balbuciou, tímida:

— Estou exausta...

— Contudo, jamais foste esquecida. Recebeste mil recursos diversos da Providência, indispensá­veis ao valioso serviço de redenção. O corpo ter­reno, as bênçãos do Sol, as oportunidades de tra­balho, as maravilhas da Natureza, os laços afeti­vos e as próprias dores da experiência humana não serão inestimáveis dons do Divino Suprimento? Ignoras, querida, a felicidade do sacrifício, rene­gas a possibilidade de amar?

Foi então que vi a jovem mulher contemplá-lo mais confiadamente. Sentindo-se forte, ante a in­sofismável demonstração de carinho, abriu-se com franqueza fraternal:

— Tenho sonhado com a posse de um lar.

desejo viver para um homem que, a seu turno, me auxilie a levar a existência.... idealizo receber de Deus alguns filhinhos que eu possa acariciar! Será pecado, celeste mensageiro, anelar tais coisas? Será delinqüente a mulher que busca santificar os prin­cípios naturais da vida? Depois de mourejar anos a fio pela felicidade dos que me são caros, noto que o destino escarnece de minhas esperanças. Será virtude viver entre pessoas alegres e felizes, quando nosso coração queda morto?

Márcio ouviu-a fraternalmente, afagando-lhe as mãos, e, evidenciando suas altas aquisições de verdadeiro amor, acrescentou, mais compreensivo e mais terno:

— (Abnegada amiga, não permitas que a som­bra de algumas horas te empane a luz dos séculos porvíndouros. É possível, Antonina, que te sintas tão lamentàvelmente só, quando o Supremo Senhor te concedeu o sublime lar no mundo inteiro? A Humanidade é nossa família, os filhinhos da dor nos pertencem. Reconheço que transitórias humilhações do sentimento te laceraxn a alma, que de­sejarias arrimar-te ao carinhoso braço de um com­panheiro digno e fiel. No entanto, querida, é da Vontade Superior que recebas, por enquanto, as vantagens que podem ser encontradas na solidão. Se há períodos de florescimento nos vales huma­nos, dentro dos quais nos inebriamos em plena pri­mavera da Natureza, existências se verificam, apa­rentemente isoladas e desditosas, nas culminân­cias da meditação e da renúncia, a cuja luz nos preparamos para novas jornadas santificadoras.

(Não suponhas que a fatal passagem do se­pulcro nos abra portas à liberdade: segue-nos a Lei, a toda parte, e o Supremo Senhor, se exer­ce a infinita compaixão, não despreza a justiça inquebrantável. Dá-nos, invariàvelmente, a Eter­na Sabedoria o lugar onde possamos ser mais úteis e mais felizes.

(Declaras-te deserdada e infeliz, e, no entanto, ainda não recenseaste as possibilidades sublimes que te rodeiam. Dizes-te incapacitada de abraçar os pequeninos de Deus, mas, porque tamanho ex­clusivismo para os rebentos consangüíneos? não enxergaste, até hoje, as crianças abandonadas, nunca viste os filhinhos da miséria e da privação? Se não podes ser mãe de flores da própria carne, por que motivo não te fazes tutora espiritual dos pequenos necessitados e sofredores? Acreditas, An­tonina, que possamos ser absolutamente felizes, escutando gemidos à nossa porta? haverá perfeita alegria num coração que pulsa ao lado de um coro de lágrimas? O mundo não é propriedade nossa. Nós, os filhos do Altíssimo, é que fomos trazidos a cooperar nas obras que nos cercam. É verda­deira infelicidade acreditar-se alguém favorito dos Céus, como se o Pai Compassivo e Sábio não pas­sasse de frágil e parcial ditador! Sacode a consciência adormecida... Lembra-te de que o Todo Poderoso não se adstringe ao nosso particularis­mo de criaturas falíveis, e não te esqueças de que nos pesam, perante a universalidade dele, inalie­náveis deveres de trabalho, exercitando os precio­sos recursos que nos concedeu, a fim de alcançar­mos, um dia, a perfeição da sabedoria e do amor.

“Sofres em tua organização, que orientaste para o personalismo, porque um homem, cujo padrão psíquico se harmonizou com o teu em muitos aspectos, modificando depois seu rumo de vida, te relegou ao esquecimento. Choras, porqüanto espe­ravas encontrar em sua companhia algo da Divina Presença, que traria serenidade às tuas angustiosas esperanças de mulher delicada e sensível... As inquietações do sexo tomaram vulto na intimidade do teu santuário, e padeces longo assédio de tribu­lações. Mas... dar-se-á que presumas no sexo a fonte exclusiva do amor? Serás também vítima desse fatal engano? O amor é sol divino a irra­diar-se através de todas as magnificências da alma.

“Por vezes, somos privados de sensaçôes que ansiáraznos, inibidos de usar as energias criadoras das formas físicas, a fim de buscarmos patrimônios mais altos do ser; nem por isso, contudo, tais per­calços nos impedem a exteriorização do sublime sentimento; represar-lhe o curso redundaria em extinguir o Universo, O que tortura a mente hu­mana em tais ocasiões é o clima do cárcere orga­nizado por nós mesmos; amurados no egoísmo fe­roz, não sabemos perder por alguns dias, para ga­nhar na eternidade, nem ceder valores transitários, para conquistar os dons definitivos da vida”.

Ante a moça que o contemplava, embevecida, através de espesso véu de lágrimas, o mensageiro prosseguiu:

— Efetivamente, se não podes partilhar a ex­periência do homem escolhido, em face das circuns­tâncias que te compelem à renúncia, porque não lhe consagrar o puro amor fraternal, que eleva sempre? Estaríamos, acaso, impedidos de transfor­mar em irmãos os seres que admiramoS? Não deves outrossim esquecer que o noivo perjuro, atualmente belo na figura fisiológica, vestirá também, mais tarde, o puido traje do cansaço e da velhice, se em breve não afívelar ao rosto a máscara da enfermi­dade e da morte. Conhecerá o desencanto da carne e estimará no silêncio a procura do espírito. Se o amas, em verdade, porque torturá-lo com o sar­casmo do suicídio, ao invés de cobrar forças para esperá-lo, ao fim do dia da existência mortal? Se não podes ser o cântaro de água pura para o viajor querido, porque não ser o oásis que o aguardará no deserto das desilusões inevitáveis? Além disto, como chegaste a sentir tão clamoroso desamparo, se também te aguardamos, ávidos aqui de tua afei­ção e de teu carinho?

Antonina sorriu, em êxtase, a despeitO do pranto que lhe rolava a flux.

Observando o salutar efeito de suas palavras animadoras, Márcio acariciou-lhe os cabelos, mur­murando:

— Por que razão esperar os rebentOS da carne para exemplificar o verdadeiro amor? Jesus não os teve, e, no entanto, todos nos sentimos tuteladOS de sua infinita abnegação. Prometes, Antonina, modificar as disposições mentais doravante? A mulher digna e generosa, excelsa e cristã, olvida o mal e sina sempre...

Comovidos, vimos a interlocutora ajoelhar-se de novo, e exclamar solenemente:

— Comprometo-me a modificar minha atitude, em nome de Deus.

Nesse instante, o emissário espalmou as mãos sobre a fronte da enferma, envolvendo-a em jactos de luz que não tocaram tão sômente a matéria perispiritica, mas se estenderam além, até no corpo denso, fixando-se particularmente nas zonas do en­céfalo, do tórax e dos órgãos feminis. Logo após, Antonina, empolgada pela mãezinha e pelo compa­nheiro da espiritualidade superior, afastou-se para agradável e repousante excursão. Incumbiu-se Cal­deraro de auxiliá-la a retomar o veículo pesado nas primeiras horas da manhã clara.

Edificado com as observações da noite, regres­sei, em companhia dele, ao quarto da senhorita quase suicida.

Entre as seis e sete horas, a genitora desen­camada trouxe a filha, em cuja fisionomia fulgu­rava ignota e incompreensível felicidade.

O instrutor ajudou-a reapossar-se do envol­tório fisiológico, cercando-lhe o cérebro de emana­ções fluídicas anestesiantes, para que lhe não fôsse permitido o júbilo de recordar, em todas as suas particularidades, a experiência da noite; se guar­dasse a lembrança integral, disse Calderaro, prova­velmente enlouqueceria de ventura. Destarte, as alegrias por ela intensamente vividas seriam arqui­vadas em seu organismo sob forma de forças no­vas, estímulos desconhecidos, coragem e satisfa­ção de procedência ignorada.

Com efeito, daí a minutos Antonina despertou, como que outra criatura; sentia-se inexplicavelmente reanimada, quase feliz.

Um dos pequenos sobrinhos penetrou o aposen­to, chamando-a. A generosa tia contemplou-o, en­levada.

Alguma energia prodigiosa, que lhe não era dado conhecer, religara-a ao interesse pela vida. Achou indizível contentamento no Sol que atraves­sava a vidraça, bendizia o quarto humilde onde lutava por atender aos desígnios de Deus, e sorria-se de haver, na véspera, pensado em fugir, sem razão, ao aprendizado do mundo. Não fora aquinhoada pela Providência com maravilhoso número de bên­çãos? Contemplou a encantadora criança pobremente vestida, a solicitar-lhe a companhia para descerem ao pequeno jardim, onde flores novas desabrochavam. Que importa insignificante ma­logro do coração diante dos trabalhos sublimes que poderia executar, na sua posição de mulher sadia e jovem? Os filhinhos da. irmã não lhe pertenciam igualmente? não seria mais nobre viver para ser útil, esperando sempre da Inesgotável Misericórdia?

— Titia Antonina! Titia Antonina, vamos! Va­mos ver a roseira nova! — gritava o trêfego menino de cinco anos, em alegre invite à vida.

Observando-lhe a restauração das forças, vimo-la, sinceramente rejubilados, levantar-se a responder, sorrindo:

— Espera! já vou, meu filho!


14

Medida salvadora

Havíamos terminado ativa colaboração, num elevado ambiente consagrado à prece, quando certo companheiro se abeirou de nós, reclamando o con­curso do Assistente num caso particular.

Calderaro decerto conheceria os pormenores da situação, porque entre ambos logo se estabele­ceu curioso diálogo.

— Infelizmente — dizia o informante —, nos­so Antídio não sobreleva a situação; permanece em derrocada quase total. Vinculou-se de novo a peri­gosos elementos da sombra, e voltou aos desacertos noturnos, com grave prejuízo para o nosso traba­lho socorrista.

— Não lhe valeram as melhoras da quinzena passada? — indagou fraternalmente o orientador.

— Aproveitou-as para mais presto volver à irreflexão — esclareceu o interlocutor com inflexão magoada.

— É de notar, porém, que se achava quase de todo louco.

— Sim, mas conseguiu fruir, outra vez, estado orgânico invejável, mercê de sua intervenção últi­ma; logo, porém, que se viu fortalecido, tornou desbragadamente aos alcoólicos. A sede escaldante, provocada pela própria displicência e pela instiga­ção dos vampiros que, vorazes, se lhe enxameiam à roda, everteu-lhe o sistema nervoso. A organização perispirítica, semillberta do corpo denso pelos perniciosos processos da embriaguez, povoa-lhe a mente de atros pesadelos, agravados pela atuação das entidades perversas que à seguem passo a passo.

— Estará em casa a esta hora? — inquiriu Calderaro com interesse.

— Não — disse o outro, abatido —, deixei-o, ainda agora, num centro menos digno, onde a si­tuação do nosso doente tornou a características la­mentáveis.

O instrutor estudou o caso em silêncio, duran­te alguns instantes, e considerou:

— Poderemos providenciar; contudo, se da outra vez consistiu o socorro em restitui-lo ao equilíbrio orgânico possível, no momento há que agir em contrário. Convém ministrar-lhe provisó­ria e mais acentuada desarmonia ao corpo. Neste, como em outros processos difíceis, a enfermidade retifica sempre.

E, contemplando o benfeitor do necessitado distante, interrogou:

— De acordo?

— Perfeitamente — redargüiu ele, sem hesi­tação —; o meu amigo é especialista em assistência, e eu lhe acato as determinações. O que nos interessa é a saúde efetiva do infeliz irmão, que se entregou sem defesa aos reclamos do vicio.

Rumamos para o local em que deveríamos acudir o amigo extraviado.

Penetramos o recinto, servido de amplas ja­nelas e abundantemente iluminado.

O ambiente sufocava. Desagradáveis emana­ções se faziam cada vez mais espessas, à maneira que avançávamos.

No salão principal do edifício, onde abundavam extravagantes adornos, algumas dezenas de pares dançavam, tendo as mentes absorvidas nas baixas vibrações que a atmosfera vigorosamente insu­flava.

Indefinível e dilacerante impressão dominou-me o ser. Não provinha da estranheza que a indiferença dos cavalheiros e a leviandade das mulhe­res me provocavam; o que me enchia de assombro era o quadro que eles não viam. A multidão de en­tidades conturbadas e viciosas que aí se movia era enorme. Os dançarinos não bailavam sós, mas, inconscientemente, correspondiam, no ritmo açodado da música inferior, a ridículos gestos dos compa­nheiros irresponsáveis que lhes eram invisíveis. Atitudes simiescas surdiam aqui e ali, e, de quan­do em quando, gritos histéricos feriam o ar.

Calderaro não se deteve. Mostrava-se habi­tuado à cena; mas, não conseguindo sofrear a estupefação que se assenhoreara de mim, solicitei-lhe uma intermitência, perguntando:

— Meu amigo, que vemos? criaturas alegres cercadas de seres tão inconscientes e perversos? pois será crime dançar? buscar alegria constituirá falta grave?

O orientador escutou pacientemente as inda­gações ingênuas que me escapavam dos lábios, di­tadas pelo espanto que me assomara repentina-mente, e esclareceu:

— Que perguntas, André! O ato de dançar pode ser tão santificado como o ato de orar, pois a alegria legítima é sublime herança de Deus. Aqui, porém, o quadro é diverso. O bailado e o prazer nesta casa significam declarado retorno aos esta­dos primitivos do ser, com iniludíveis agravantes de viciação dos sentidos. Observamos, neste re­cinto, homens e mulheres dotados de alto racio­cínio, mas assumindo atitudes de que muitos símios talvez se pejassem. Todavia, esteja longe de nós qualquer recriminação: lastimemo-los simplesmen­te. São trânsfugas sociais, e, na maioria, rebeldes à disciplina instituída pelos Desígnios Superiores para os seus trilhos terrestres. Muitos deles são profundamente infelizes, precisando de nossa ajuda e compaixão. Procuram afogar no vinho ou nos prazeres certas noções de responsabilidade que não logram esquecer. Fracos perante a luta, mas dig­nos de piedade pelos remorsos e atribulações que os devoram, merecem amparados fraternalmente.

E, passando os olhos de relance pela multidão de Espíritos perturbadores que ali se davam ao vampirismo e ao sarcasmo, obtemperou:

— Quanto a estes infortunados, que fazer se­não recomendá-los ao Divino Poder? Tentam igual­mente a fuga impossível de si mesmos. Alucina­dos, apenas adiam o terrível minuto de auto-reco­nhecimento, que chega sempre, quando menos es­peram, através dos mil processos da dor, esgota­dos os recursos do amor divino, que o Supremo Pai nos oferece a todos. A mente deles também está apegada aos instintos primitivos, e, frágeis e hesitantes, receiam a responsabilidade do trabalho da regeneração.

Vendo-me boquiaberto e faminto de novas elu­cidações, o Assistente propôs-me:

— Vamos! deixemo-los divertir-se. A dança, nesta casa, não lhes deixa de ser, em última análise, um benefício. Chegaram nossos amigos encarnados e desencantados, aqui presentes, a nível tão despre­zível que, sem dúvida, não fora o sapateado, esta­riam rodando, lá fora, em atos extremamente con­denáveis, tal a predisposição em que se encontram para o crime. Que o Pai se comisere de todos nós.

Demandamos o interior, apressadamente.

Numa saleta abafada, um cavalheiro de qua­renta e cinco anos presumíveis jazia a tremer. Não conseguia manter-se de pé.

Calderaro examinou-o detidamente e indagou do novo amigo que nos acompanhava:

— Voltou aos alcoólicos, há muitos dias?

— Precisamente, há uma semana.

— Vê-se que se esgotou rápido.

Enquanto encetava a aplicação de fluidos mag­néticos, o orientador aconselhou-me notar os ca­racterísticos do quadro dantesco sob nossos olhos.

Antídio, doente e desventurado, a despeito das condições precárias, reclamava um copinho, sempre nais um copinho, que um rapaz de serviço trazia, obediente. Tremiam-lhe os membros, denuncian­do-lhe o abatimento. Álgido suor lhe escorria da fronte e, de vez em quando, desferia gritos de ter­ror selvagem. Em derredor, quatro entidades em­brutecidas submetiam-no aos seus desejos. Empol­gavam-lhe a organização fisiológica, alternadamen­te, uma a uma, revezando-se para experimentar a absorção das emanações alcoólicas, no que sentiam singular prazer. Apossavam-se particularmente da “estrada gástrica”, inalando a bebida a volatili­zar-se da cárdia ao piloro.

A cena infundia angústia e assombro.

Estaríamos diante de um homem embriagado ou de uma taça viva, cujo conteúdo sorviam gênios satânicos do vicio?

O infortunado Antídio trazia o estômago ates­tado de liquido e a cabeça turva de vapores.

Semidesligado do organismo denso pela atua­ção anestesiante do tóxico, passou a identificar-se mais intimamente com as entidades que o per seguiam.

Os quatro infelizes desencarnados, a seu tur­no, tinham a mente invadida por visões terrifi­cantes do sepulcro que haviam atravessado como dipsomanlacos. Sedentos, aflitos, traziam consigo imagens espectrais de víboras e morcegos dos lu­gares sombrios onde haviam estacionado.

Entrando em sintonia magnética com o psi­quismo desequilibrado dos vampiros, o ébrio começou a rogar, estentôreamente:

— Salve-me! salve-me, por amor de Deus!

E indicando as paredes próximas, bradava sob a impressão de indefinível pavor:

— Oh! os morcegos!... os morcegos! afu­gentem-nos, detenham-nos...! Piedade! quem me livrará! Socorro! Socorro!...

Dois senhores, também obnubilados pelo vi­nho, aproximaram-se, espantados. Um deles, po­rém, tranquilizou o outro, dizendo:

— Nada de mais. É o Antídio, de novo. Os acessos voltaram. Deixemo-lo em paz.

Enquanto isso, o desditoso ébrio continuava bradando:

— Ai! ai! uma cobra... aperta-me, sufoca-me... Que será de mim? Socorro!

As entidades perturbadoras timbravam nas atitudes sarcásticas; gargalhavam de maneira sinistra. Ouvia-as o infeliz, a lhe ecoarem no fundo do ser, e gritava, tentando investir, embora cambaleante, os algozes invisíveis:

— Quem zomba de mim? quem?

Cerrando os punhos, acrescentava:

— Malditos! malditos sejam!

A cena prosseguia, dolorosa, quando Calde­raro se acercou de mim, esclarecendo:

- É deplorável pai de família que, incapaz de reagir contra as atrações do vício, se entregou, inerme, à influência de malfeitores desencarnados, afins com a sua posição desequilibrada. Em aten­ção às intercessões da esposa e de dois filhinhos amoráveis que o seguem, assistimo-lo com todos os recursos ao alcance de nossas possibilidades; entretanto, o imprevidente irmão não corresponde ao nosso esforço. Emerge de todas as tentativas, mais e mais disposto à perversão dos sentidos; busca, acima de tudo, a fuga de si mesmo; detesta a responsabilidade e não se anima a conhecer o valor do trabalho. Atenuando-lhe a ânsia irre­freável de sorver alcoólicos, esperamos se reedu­que. Para isso, porém, usaremos agora recurso drástico, já que o desventurado se revela infenso a todos os nossos processos de auxilio.

Fixando em mim expressivo olhar, concluiu:

— Antídio, por algum tempo, a partir de hoje, será amparado pela enfermidade. Conhecerá a pri­são no leito, durante alguns meses, a fim de que se lhe não apodreça o corpo num hospício, o que se iniciaria dentro de alguns dias, lançando nobre mulher e duas crianças em pungente incerteza do porvir.

Dito isto, Calderaro encetou complicado ser­viço de passes, ao longo da espinha dorsal.

O enfermo aquietou-se, pouco a pouco, na ve­lha poltrona em que se mantinha.

O Assistente passou a aplicar-lhe eflúvios lu­minosos sobre o coração, durante vários minutos. Notei que essas emissões se concentravam grada­tivamente no órgão central, que em certo instante acusou parada súbita.

Antídio parecia prestes a desencarnar, quando o orientador lhe restituiu as energias, em movimentação rápida. Premido pelo fenômeno circula­tório, que lhe valeu tremendo choque, o desditoso amigo pôs-se a pedir auxílio em altos brados. Ha­via tamanha inflexão de dor, na voz lamentosa, que grande número de pessoas se aproximaram, penalizadas.

Um piedoso cavalheiro tomou-lhe o pulso, ve­rificou a desordem do coração e, presto, requisitou um carro da assistência pública. Em breves mo­mentos Antídio era transportado em maca de hos­pital, para receber socorro urgente, seguido, de perto, pelo solícito benfeitor espiritual.

Retirando-se em minha companhia, Calderaro acrescentou, tristonho:

— O infortunado amigo será portador de uma nevrose cardíaca por dois a três meses, aproxima­damente. Debalde usará a valeriana e outras subs­tâncias medicamentosas, em vão apelará para anes­tésicos e desintoxicantes. No curso de algumas se­manas conhecerá intraduzível mal-estar, de modo a restabelecer a harmonia do cosmo psíquico. Ex­perimentará Indizível angústia, submeter-se-á a medicações e regimes, que lhe diminuirào a ten­dência de esquecer as obrigações sagradas da hora e lhe acordarão os sentimentos, devagarinho, para a nobreza do ato de viver.

Notando-me a estranheza, o Assistente con­cluiu:

— Que fazer, meu amigo? As mesmas For­ças Divinas que concedem ao homem a brisa cariciosa, infligem-lhe a tempestade devastadora... Uma e outra, porém, são elementos indispensáveis à glória da vida.


15

Apelo cristão

Estavam prestes a terminar minhas possibi­lidades de estudo, em companhia de Calderaro, quando, na véspera da prometida visita às caver­nas do sofrimento, o estimado Assistente me convidou a ouvir a palavra do Instrutor Eusébio que, naquela noite, se dirigiria a algumas centenas de companheiros católicos-romanos e protestantes das Igrejas reformadas, ainda em trânsito nos serviços da esfera carnal.

— São irmãos menos dogmáticos e mais libe­rais que, em momentos de sono, se tornam susce­tíveis de nossa influência mais direta. Pelas vir­tudes de que são portadores, tornam-se dignos das diretrizes dos planos mais altos.

Não ocultei a estranheza que me tomara de assalto ante a informação, mas Calderaro ajuntou sem demora:

— Importa compreender que a Proteção Di­vina desconhece privilégios. A graça celestial é como o fruto que sempre surge na fronde do es­forço terrestre: onde houver colaboração digna do homem, aí se acha o amparo de Deus. Não é a confissão religiosa que nos interessa em sentido fundamental, senão a revelação de fé viva, a ati­tude positiva da alma na jornada de elevação. Claro é que as escolas da crença variam, situando-se cada uma em um círculo diferente. Quanto mais rudimentar é o curso de entendimento religioso, maior é a combatividade inferior, que traça fronteiras infelizes de opinião e acirra hostilidades deploráveis, como se Deus não passasse dum dita­dor em dificuldades para manter-se no poder. Cons­tituindo o Espiritismo evangélico prodigioso núcleo de compreensão sublime, é razoável seja conside­rado uma escola cristã mais elevada e mais rica. Possuindo tamanhas bênçãos de conhecimento e de amor, cumpre-lhe estendê-las a todos os compa­nheiros, ainda quando esses companheiros se mos­trem rebeldes e ingratos em consequência da igno­rância de que ainda não conseguiram afastar-se. A compaixão de Jesus poderia ser medida pelo estado de evolução daqueles que o seguiam de perto. Dian­te da mente encarcerada no vaidoso intelectualismo de muitas personalidades importantes de sua época, vemo-lo inflamado de energia divina; pelo contrá­rio, em Jerusalém, no último dia, à frente do po­pulacho exaltado e ignorante — arraigado embora aos princípios da crença —, encontramo-lo silen­cioso e humilde, solicitando perdão para quantos o feriam.

Imprimindo inflexão mais carinhosa à pala­vra, acrescentou, bondoso:

- Não nos esqueçamos que, acima de tudo, nos empenhamos numa obra educativa. Salvar alguém, ou socorrê-lo, não significa subtrair o interessa­do à oportunidade de luta, de alçamento ou de edi­ficação. Constitui amparo fraternal, para que des­perte e se levante, entrando na posse do equilí­brio que caracteriza aquele que o ajudou. O Su­premo Senhor não se compras com o possuir fi­lhos miseráveis e infelizes na Criação; espalha bênçãos e dona, riquezas e facilidades eternas a mancheias, esperando apenas que cada um de nós se disponha a reger com sabedoria o patrimônio próprio. Como vemos, todos os setores do serviço espiritual reclamam a divina assistência.

Antes de mais amplas elucidações no refe­rente ao assunto, alcançamos o campo tranquilo, onde o nobre emissário se fazia ouvir.

De relance, observei que a reunião, agora, não se assinalava por grande número de colegas encar­nados, que ali se contavam por poucas centenas, assistidos por quantidade considerável de coopera­dores da nossa esfera de ação.

O luar balsamizava docemente o arvoredo, que se inclinava à passagem do favônio.

Imponente, pela claridade sublime que lhe au­reolava a figura veneranda, Eusébio, ao que me pareceu, havia iniciado a preleção desde muito. Extasiados, os ouvintes registravam-lhe o verbo tocado de luz celestial, com pasmo indisfarçável a lhes alterar as fisionomias. Confundidos e ajoelhados, em grande número, na relva fresca, sen­tiam-se repentinamente transportados ao paraíso...

O Instrutor, envolvido em safirinos reflexos, falava com irresistível poder de atração:

— “Se o patrimônio da fé religiosa representa o indiscutível fator de equilíbrio mental do mundo, que fazeis de vosso tesouro, esquecendo-lhe a utili­zação, numa época em que a instabilidade e a incerteza vos ameaçam todas as instituições de ordem e de trabalho, de entendimento e de cons­trução? Não vos assombra, porventura, acordando-vos a consciência, a borrasca renovadora que re­funde princípios e nações? Supondes possível uma era de paz exterior, sem a preparação interior do homem no espírito de observância e aplicação das Leis Divinas? Por admitir semelhante contra-senso, a máquina, filha de vossa inteligência, vos anula as possibilidades de mais alta incursão no reino do Espírito Eterno.

Ser cristão, outrora, simbolizava a escolha da experiência mais nobre, com o dever de exemplificar o padrão de conduta consagrado pelo Mestre Di­vino. Constituía ininterrupto combate ao mal com as armas do bem, manifestação ativa do amor con­tra o ódio, segurança de vitória da luz contra as sombras, triunfo inconteste da paz construtiva so­bre a discórdia derruidora.

(Ante o moloque do Estado Romano, conver­tido em imperialismo e corrupção, os sectários do Evangelho não se expunham a polêmicas mordazes, não se enredavam nas teias do personalismo dis­solvente, não dilapidavam possibilidades preciosas, a erigir fronteiras dogmáticas... Entreamavam-se em nome do Senhor, e ofereciam a própria vida, em penhor de gratidão Aquele que não trepidava em seguir para a Cruz, por amor a todos nós. Erguiam os seus mais sublimes santuários na comunhão com os princípios santificantes que os identificavam com o Salvador do Mundo. Sabiam perder vantagens transitórias, para conquistar os Imperecívels te­souros celestiais. Sacrificavam-se uns pelos outros, na viva demonstração do devotamento fraternal. Repartiam os sofrimentos e multiplicavam os júbi­los entre si. Morriam em testemunhos angustio­sos, para alcançar a vida eterna. Guerreavam os desequilíbrios de sua época e de seus contemporâ­neos, não a golpes de maldição, nem a fio de es­pada, mas pela prática da renunciação, submeten­do-se a disciplinas cruéis e revelando, nas pala­vras, nos pensamentos e nos atos, a mensagem su­blime do Mestre que lhes renovara os corações.

(Entretanto, herdeiros que sois daqueles he­róis anônimos, que transitaram nas aflições, de espírito edificado nas promessas do Cristo, que fi­zestes vós da esperança transformadora, da confiança sem vacilação? onde colocastes a fé viva que os vossos patriarcas adquiriram a preço de san­gue e de lágrimas? que é do espírito de fraterni­dade que assinalava os aprendizes da Boa-Nova? Enriquecidos pelas graças do Céu, pouco a pouco olvidastes as portas da Revelação Divina em troca das comodidades humanas.

«Construistes, entre vós mesmos, barreiras di­ficilmente transponíveis.

“Intoxica-vos o dogmatismo, corrompe-vos a secessão. Estreitas interpretações do plano divino vos obscurecem os horizontes mentais.

Abris hostilidade franca, em nome do Reino de Deus que significa amor universal e união eterna.

“Conspurcais a fonte das bênçãos, amaldiçoan­do-vos uns aos outros, invocando, para isso, o Prín­cipe da Paz, que, para ajudar-nos, não hesitou ante a própria morte afrontosa.

«A que delírio chegastes, estabelecendo rnú­tua concorrência à imaginária obtenção de privilégios divinos?

«Antigamente, os companheiros do Cristo disputavam a oportunidade de servir; no entanto, na atualidade, procurais as mínimas ocasiões de ser­des servidos.

(Reverenciais do Senhor a Luz dos Séculos, e mantendes-vos nas sombras do nefando egoísmo.

«Proclamais nEle a glória da paz, e incenti­vais a guerra fratricida, em que homens e insti­tuições se trucidam reciprocamente.

«Recorreis ao Divino Mestre, centralizando em sua infinita bondade a fonte inesgotável do amor; entretanto, cultivais a desarmonia no recôndito do ser.

«Por que estranhas convicções supondes con­quistar o paraíso, à força de afirmativas labiais?

«Esquecestes que o verbo, divino em seus fundamentos, é sempre criador? como admitir a redenção ao preço de simples palavras a que nenhum significado objetivo emprestais pelas atitudes?

«Todavia, é imperioso reconhecer o caráter su­blime de vossa tarefa no mundo.

«Jesus fundou a Religião do Amor Universal, que os sacerdotes políticos dividiram em várias es­colas orientadas pelo sectarismo injustificável. Mau grado esse erro lastimável dos homens, a essência dos vossos princípios é aquela mesma que sustentou a coragem e a nobreza dos trabalhadores sacrificados nos primeiros dias do Cristianismo.

“Porque alguns missionários das verdades re­ligiosas olvidassem a Paternidade Divina e se per­mitissem desmandos da autoridade, preferindo a opressão e a tirania, não sois menos responsáveis, agora, pelos sagrados depósitos que Jesus nos con­fiou, destinados aos serviços de elevação humana e de santificação da Terra.

“O Evangelho, em suas bases, guarda a be­leza do primeiro dia. Sofisma algum conseguiu empanar o brilho de “amai-vos uns aos outros, como eu vos amei”...

“Perante os desafios do Céu, credes, acaso, servir a Deus, encarcerando os serviços da fé nos templos suntuosos? a pompa do culto exterior só faz realçar o desatino de vossas perigosas ilusões acerca da vida espiritual.

“Infrutífera seria a divina missão do Mestre, se a Boa-Nova permanecesse circunscrita às trincheiras sectárias, onde presunçosamente vos refu­giais, com o objetivo de inflamar a execranda fo­gueira das hostilidades simuladamente cordiais.

“Não encontrastes outra fórmula de externar a crença, além da concorrência menos digna?

“Em vão ergueis castelos de opinião para o verbalismo sem obras, porque, se a morte surpreende o materialista revel, descortinando-lhe o rea­lismo da vida, o túmulo abre também o tribunal da reta justiça a quantos se valeram da religião para melhor dissimular a indiferença que lhes povoa o mundo Intimo.

“Não julgueis esteja a fé consagrada ao me­nor esforço.

“Qual ocorre à ciência, a religião tem o seu trabalho específico no mundo. Força equilibrante do pensamento, seus servidores são chamados a colaborar na harmonia da mente humana.

“Na atuação da fé positiva reside a força re­guladora das paixões, dos impulsos irresistíveis da animalldade de que todos emergimos, no processo evolucionário que nos preside à existência.

“Jesus, por isto, não confinou seus ensinamen­tos ao círculo estreito dos templos de pedra. Reve­renciou, em verdade, os monumentos que recordas­sem os dugares santos da oração», consagrados às manifestações superiores do espírito; entretanto, não se cristalizou nas atitudes adorativas: viveu conquistando amigos para o Reino do Céu.

Não impôs aos seus seguidores normas rígidas de ação: pedia-lhes amor e entendimento, fé sincera e bom ânimo para os serviços edificantes.

(Aproximando-se de Madalena, não extravaga em baldas conversações: interessa-lhe o coração no sublime apostolado renovador. Visitando Zaqueu, abençoa-lhe o esforço nobre e construtivo. Diri­gindo-se à mulher samaritana, não desce às con­tendas inúteis: impressiona-a pelo contacto de sua alma divina, fazendo-a abandonar o velho cântaro da fantasia, para que busque as fontes eternas. Convivendo com cegos e leprosos, loucos e doentes de todos os matizes, exemplificou a vida social, baseada na fraternidade mais pura e nos mais ele­vados estímulos à santificação. Por fim, imolado na cruz, seus dois últimos companheiros eram la­drões confessos, aos quais não hesitou dirigir a palavra fraterna, inflamada de amor.

«Como invocar-lhe o nome para justificar os desvarios da separação por motivos de fé? como apoiar-se no Amigo de Todos para deflagrar emba­tes de opinião, acendendo fogueiras de ódio em prejuízo da solidariedade comum que Ele exempli­ficou até ao supremo sacrifício? Não será denegrir­

-lhe a memória, difundir a discórdia em seu nome?

Notei que as palavras do orientador provoca­vam funda impressão. A maioria dos ouvintes cho­rava em comoção irrepressível, sentindo-se tocada pelo Juízo Celeste.

Eusébio, que mantinha presa a atenção geral, prosseguiu, impávido:

— (Não se vos reclama a transferência do depósito espiritual da crença veneranda. Em todos os setores, onde a sementeira do Cristo desabrocha, é possível honrar a Divina Lei, gravando-lhe os parágrafos sublimes no coração. O que se pede do vosso espírito de crença é o aproveitamento das bênçãos celestiais esparzidas sobre vós em cau­delosas correntes de luz.

“Não limiteis, portanto, a demonstração da confiança no Altíssimo aos cerimoniais do culto externo. Varrei a indiferença que vos enregela as basílicas suntuosas. Convertamo-nos em verdadei­ros irmãos uns dos outros. TransformemOS a igreja no doce lar da família cristã, quaisquer que sejam as nossas interpretações. Esqueçamos a falsa afir­mativa de que os tempos apostólicos passaram para sempre. Cada aprendiz do Evangelho guarda, na própria vida, um reduto destinado ao culto vivo do Divino Mestre, perante o qual escoa a multidão dos necessitados, todos os dias...

(Amando e socorrendo, crendo e agindo, Jesus amparou a mente desequilibrada do mundo greco-romano, infundindo-lhe vida nova, em favor da Humanidade mais feliz. Assim, igualmente, cada discípulo da fé redentora pode e deve cooperar no reerguimento dos irmãos frágeis e vacilantes.

(Fugi ao farisaísmo dos tempos modernos que se recusa ao auxílio fraternal, em nome do gênio satânico do cisma dogmático. Jesus nunca foi pre­gador da desarmonia, jamais endossou a vaidade petulante dos que pelos lábios se declaram puros, mantendo o coração atascado no lodo miasmático do orgulho e do egoísmo fatais!

“Mobilizemos nossa confiança no Todo-Miseri­cordioso, dilatando-lhe o reino bendito de redenção.

(Aguardar O Céu, menosprezando a Terra, éobra de insensatez.

‘Nenhum de nós peitará a Justiça Divina, em­bora permaneçais cultivando, muitas vezes, a ideia de um comércio ridículo com a Divindade.

“Se um lavrador jamais é postado sem obri­gações diretas diante do matagal inculto ou do pântano perigoso, como permanecer sem deveres imediatos junto às paisagens de crime e treva, de inquietação e sofrimento?...

(O irmão caldo é nossa carga preciosa, a difi­culdade é nosso incentivo santo, a dor nossa escola purificadora.

“Abracemo-nos, pois, uns aos outros, em nome do Cordeiro de Deus, que nos reformou a mente, alçando-a a planos superiores pela ascensão glo­riosa, através do sacrifício.

(Somente assim, meus amigos, é possível aten­der à elevada destinação que nos cabe.

‘Diante do mundo periclitante, alucinado por ambições rasteiras e dominado pelo ódio e pela miséria, Sequências das guerras incessantes e ani­quiladoras, harmonizeino-nos em Jesus-Cristo, a fim de equilibrarmos a esfera carnal.

(Sombras perturbadoras vagueiam em torno de vossos passos e de vossas instituições, em ronda Sinistra.

(Evitai a subversão dos valores espirituais, afugentai as trevas que vos ameaçam as organizações político-religiosas. Temei a ciência que esta­deie sem a sabedoria, livrai-vos do raciocínio que calcula sem amor, revisai a fé para que seus impulsos não se desordenem, à míngua de edificação.

(A Crosta da Terra é atualmente um campo de batalha mais áspera, mais dolorosa...

Despertai a consciência adormecida e afeiço­ai-vos à Lei Divina, olvidando o cativeiro multi­-secular da ilusão.

“A salvação é contínuo trabalho de renovação e de aprimoramento.

(Ao mundo atormentado proclamemos a nos­sa fé em Cristo Jesus para sempre!...’

Eusébio, ao terminar, estava aureoiado de pro­digiosas emissões de luz.

A assembléia prosternada mostrava semblan­tes lívidos de estupefação.

Enorme grupo de colaboradores de nosso pla­no elevou a voz em harmonias, entoando comovente cântico de glorificação ao Supremo Senhor.

As melodiosas notas do hino perdiam-se, ao longe, no arvoredo distante, nas asas de suave brisa...

Terminados os serviços da reunião, reparei que os amigos encarnados, sob o amparo de colegas das nossas atividades socorristas, não se afastaram animados e otimistas, porque muitos deles, compreendendo, talvez com mais clareza, fora do veículo denso da experiência física, os erros da crença transviada, se retiravam cabisbaixos, soluçando...


16

Alienados mentais

Antes de visitarmos as cavernas de sofrimen­to, Calderaro instou-me a faser com ele rápida visita a grande instituto Consagrado ao recolhi­mento de alienados mentais, na Esfera da Crosta.

— Compreenderás, então, mais exatamente —explicou, generoso, dirigindo-se a mim com a deli­cadeza que lhe é peculiar — a tragédia dos homens desencarnados, em pleno desequilíbrio das sensa­ções. Excetuados os casos puramente orgânicos, o louco é alguém que procurou forçar a libertação do aprendizado terrestre, por indisciplina ou igno­rância. Temos neste domínio um gênero de suicí­dio habilmente dissimulado, a auto-eliminação da harmonia mental, pela inconformação da alma nos quadros de luta que a existência humana apresen­ta. Diante da dor, do obstáculo ou da morte, mi­lhares de pessoas capitulam, entregando-se, sem re­sistência, à perturbação destruidora, que lhes abre, por fim, as portas do túmulo. A princípio, são me­ros descontentes e desesperados, que passam des­percebidos mesmo àqueles que os acompanham de mais perto. Pouco a pouco, no entanto, transfor­mam-se em doentes mentais de variadas gradações, de cura quase impossível, portadores que são de problemas inextricáveis e ingratos. Imperceptíveis frutos da desobediência começam por arruinar o patrimônio fisiológico que lhes foi confiado na Crosta da Terra, e acabam empobrecidos e infortuna­dos. Aflitos e semimortos, são eles homens e mulheres que desde os círculos terrenos padecem, en­covados em precipícios infernais, por se haverem rebelado aos desígnios divinos, preterindo-os, na escola benéfica da luta aperfeiçoadora, pelos ca­prichos insensatos.

Guardando carinhosamente a observação, acom­panhei-o na excursão matinal ao grande estabele­cimento, onde os mentecaptos eram em grande número.

No primeiro pátio que topamos, compacta era a quantidade de mulheres desequilibradas que pa­lestravam.

Uma velha de cabelos nevados, mostrando acerba ferocidade no olhar, envergava o unifor­me da casa, como quem arrastasse um vestido real, e dizia a duas companheiras apáticas:

— Na minha qualidade de marquesa, não to­lero a intromissão de médicos inconscientes. Creio estar presa por motivos secretos de família, que averiguarei na primeira oportunidade. Tenho po­derosos inimigos na Corte; contudo, as minhas amizades são mais prestigiosas e fiéis.

Baixou a voz, como receando espias ocultos, e falou ao ouvido de uma das irmãs de sofrimento:

— O Imperador está interessado em meu caso e punirá os culpados. Segregaram-me por misera­veis questões de dinheiro.

Elevando o diapasão, inesperadamente, bradou:

— Todos pagarão! Todos pagarão!

E continuava explicando-se com gestos de grande senhora.

Compungia-me observar a promiscuidade en­tre as enfermas encarnadas e as entidades infelizes, que ali se acotovelavam. Preso ainda ao meu antigo vezo de curiosidade, tentei estacar, a fim de ouvir a demente até ao fim, mas o Assistente deu-se pressa em considerar:

— Não nos detenhamos. Infelizmente, atra­Vessamos vasta galeria de padecimento expiatório, onde nossos recursos socorristas não ofereceriam vantagens imediatas. Aqui, quase todos os aliena­dos são criaturas que abdicaram a realidade, aten­do-se a circunstâncias do passado sem mais razão de ser. Essa desventurada irmã já possuiu titulos de nobreza em existência anterior; perpetrou cla­morosas faltas, dando expansão às energias cegas do orgulho e da vaidade. Renascendo em aprendi­zado humilde para o reajustamento imprescindível, alarmou-se ante as primeiras provações mais ru­des da correção benfeitora, reagiu contra os resul­tados da própria sementeira, entregou o invólucro físico ao curso de ocorrências nefastas; e, por fim, situou-se mentalmente em zonas mais baixas da personalidade, passando a residir, em pensamento, no pretérito de mentiras brilhantes. Agarrou-se, desesperada, às recordações da marquesa vaidosa de salões que já desapareceram, e perambula nos vales da demência em lastimáveis condições.

Não déramos muitos passos, encontramos novo ajuntamento, em que sobressaía curiosa dama, ex­tremamente nervosa.

— Deus me livre de todos, Deus me livre de todos! — gritava, inquieta. — Não voltarei! nunca, nunca!...

Aproxima-se, cordata, a enfermeira, e pede:

— Senhora, mais calma! É seu marido que vem à visita. Vamos ao guarda-roupa.

E sorrindo:

— Não se sente feliz?

— Jamais! — bradava a demente com espan­toso semblante de angústia. — Não quero vê-lo! odeio-o, odeio, com tudo o que lhe pertence!

tRepetindo expressões de desprezo, inteiriçou-se, caindo em lamentável crise de nervos, pelo que a auxiliar da enfermagem houve que requisitar so­corro urgente.

Desejei reter-me, a fim de estudar a situação, mas o Assistente impediu-me, esclarecendo:

— Não percas tempo. Não remediarias o mal. Nossa passagem aqui é rápida. RecomendO ape­nas anotes o refúgio de todos os que se esquecem dos deveres presentes, pretendendo escapar aos im­perativos da realidade educadOra.

Modificou a inflexão da voz e prosseguiu:

— Não asseguramos que todos os casos do hospício se relacionem exclusivamente com esse fa­tor. Muita gente atravessa este paVorosO túnel, premida por exigências da prova retificadora; é, no entanto, forçoso reconhecer que a maioria en­cetoU o pungitivo drama em si mesma. São irmãos nossos, revoltados ante os desígnios superiores que os conduzirem a recapitular ensinamentos difíceis, qual o de se reaproximarem de velhos inimigos por intermédio de laços consangüíneos ou o de enfren­tarem obstáculos aparentemente insuperáveis.

“Para que se efetue a jornada iluminativa do espírito é indispensável deslocar a mente, revolver as idéias, renovar as concepções e modificar, inva­riavelmente, para o bem maior o modo IntimO de ser, tal qual procedemoS com o solo na revivificação da lavoura produtiva OU com qualquer insti­tuto humano em reestruturação para o progreSSO geral. NegandO-Se, porém, a alma a receber o au­xilio divinO, através dos processos de transforma­ção incessante que lhe são oferecidos, em seu be­nefício próprios pelas diferentes situações de que os dias se compõem no aprendizado carnal, reco­lhe-se á margem da estrada, criando paisagens perturbadoras com desejos injustificáveis.

Quase podemos afirmar que noventa em cem dos casos de loucura, excetuados aqueles que se originam da incursãO microbiana sobre a matéria cinzenta, começam nas conseqüências das faltas graves que praticamos, com a impaciência ou com a tristeza, isto é, por intermédio de atitudes mentais que imprimem deploráveis reflexos ao cami­nho daqueles que as acolhem e alimentam. instaladas essas forças desequilibrantes no campo ínti­mo, inicia-se a desintegração da harmonia mental: esta por vezes perdura, não só numa existência, mas em várias delas, até que o interessado se dis­ponha, com fidelidade, a valer-se das bênçãos di­vinas que o aljofram, para restabelecer a tranqüilidade e a capacidade de renovação que lhe são ine­rentes à individualidade, em abençoado serviço evo­lutivo. Pela rebeldia, a alma responsável pode en­caminhar-se para muitos crimes, a cujos resulta­dos nefastos se cativa indefinidamente; e, pelo de­sânimo, é propensa a cair nos despenhadeiros da inércia, com fatal atraso nas edificações que lhe cabe providenciar.

Nesse ponto dos esclarecimentos, penetráva­mos extensa varanda no departamento masculino e logo se nos deparou um homem que decerto se enquadrava entre os esquizofrênicos absolutos. Ro­deavam-no algumas entidades de sombrio aspecto. Semelhava-se o doente a perfeito autômato, sob o guante de tais companheiros. Exibia gestos ma­quinais, e, ao guarda que se aproximava, caute­loso, explicou em tom muito sério:

— Venha, “seus João. Não tenha receio. On­tem eu era o “leão”, mas hoje, sabe o senhor o que eu sou?

Ante o enfermeiro hesitante, concluiu:

— Hoje sou a “bananeira”.

Encontraria, eu, sem dúvida, no caso, exce­lente ensejo de enriquecer experiências, porqüanto de pronto reconhecera a entrosagem completa en­tre a vitima e os obsessores que lhe eram invisíveis. O desditoso era rematado fantoche nas mãos dos algozes tipicamente perversos.

Calderaro, porém, não me permitiu interrom­per a marcha.

— O processo de desequilíbrio está consuma­do — informou —, e não encontrarias possibilidade de recompor-lhe, em serviçO rápido, as energias mentais centralizadas na região inferior. O infeliz vem sendo objeto de práticas hipnóticas de implacáveis perseguidores; acha-se exposto a emissões contínuas de forças que o deprimem e enlouquecem.

— Céus! — exclamei, aparvalhado — como socorrê-lo?

— Trata-se de um homem — acrescentou o orientador — que em encarnações anteriores abu­sou do magnetismo pessoal.

Não pude sopitar a objeção que me nasceu espontânea:

— Como? as ciências magnéticas são de ontem...

Calderaro estampou no olhar a condescendên­cia que lhe é característica e retorquiu:

— Acreditas que teriam sido iniciadas com Mesmer?

E, sorridente, ajuntou:

— Se consideráramos o sentido literal do tex­to, o abuso de magnetiSmo pessoal teria começado com Eva, no paraíso...

Indicou o enfermo e prossegUiU:

— Em pretérito não muito remoto, nosso im­previdente amigo se excedeu em seu potencial de fascínio, desviando-o para aventuras menos dignas. Várias mulheres que lhe sofreram a ação corrosi­va, assestaram contra ele incessantes explosões de ódio doentio e corruptor, extravasamentos que o pobre companheiro merecia em conseqüência da ati­vidade condenável a que se dedicou por muitos anos. Minado pela reação persisttente, minguou-lhe o ca­bedal de resistência; converteu-se, destarte, em joguete das forças destrutivas, às quais, a bem di­zer, voluntariamente se unira, ao abraçar, entu­siasta, a declarada prática do mal. Até quando se demorará em tal atitude, não será possível prever. Geralmente, ao delinqüirmos, podemos precisar o instante exato de nossa penetração na desarmonia; jamais sabemos, porém, quando soará o momento de abandoná-la. No retorno à estrada reta, através de atoleiros em que chafurdamos, por indiferença e má fé, não podemos prefixar calendários para a volta: implicamo-nos em jogos circunstanciais, de que só nos despeamos após doloroso reajustamento...

Observando-me a admiração, ante a experiência hipnótica que os frios verdugos levavam a efei­to, o Assistente considerou:

— Não te impressiones. A morte física não modifica de súbito as inteligências votadas ao mal, nem o duelo da luz com a sombra se adstringe aos estreitos círculos carnais.

Logo após, éramos surpreendidos por dois ve­lhinhos atoleimados, a pronunciar frases desco­nexas.

— O tempo — elucidou o orientador, indican­do-os — acaba sempre por denunciar a nossa posi­ção verdadeira. Quando a criatura não haja feito da existência o sacerdócio de trabalho construtivo, que nos cumpre na Terra, os fenômenos senis do corpo são mais tristes para a alma, pois, neste caso, o indivíduo já não domina as conveniências forjadas pelo imediatismo humano, patenteando-se­-lhe a fixação da mente nos impulsos inferiores. Milhões de irmãos nossos permanecem, séculos afo­ra, na fase infantil do entendimento, por não se animarem ao esforço de melhoria própria. En­quanto recebem a transitória cooperação de saúde física relativa, das convenções terrenas, das pos­sibilidades financeiras e das variadas impressões passageiras que a existência na Crosta Planetária oferece aos que passam pela carne, esteiam-se nos títulos de cidadãos que a sociedade lhes confere; logo, porém, que visitados pelo morbo, pela escas­sez de recursos ou pela decrepitude, revelam a infância espiritual em que jazem: voltam a ser crian­ças, não obstante a idade provecta manifestada pelo veículo de ossos, por se haverem excessivamente demorado nos sítios superficiais da vida.

A exposição não podia ser mais lógica; toda­via, examinando aquele vasto ambiente, onde tantos loucos de ambos os sexos modorravam distantes do realismo do mundo, sem a mais leve perspectiva de desencarnação próxima, pensei nas criaturas que já renascem imperfeitas e perturbadas; nas crian­ças atrasadas e nos moços em luta com a demên­cia juvenil; nas fobias sem número que amofinam pessoas respeitáveis e prestativas, e solicitei, en­tão, do instrutor esclarecimentos sobre os quadros de sofrimento desse jaez, que de improviso assal­tam os ambientes domésticos mais distintos.

O Assistente não se surpreendeu, e observou:

— Estudamos aqui, André, a messe das se­menteiras, assim do presente, como do passado. Ponderamos não só a aprendizagem de uma exis­tência efêmera, mas também a romagem da alma nos caminhos infinitos da vida, da vida imperecí­vel que segue sempre, vencendo as imposições e as injunções da forma, purificando-se e santifican­do-se cada dia. Verificarás, conosco, afligente quadro de padecimentos espirituais, e é provável que apreendas, num hospício humano, algo dos dese­quilíbrios que afetam a mente desviada das Leis Universais. Em verdade, na alienação mental co­meça a «descida da alma às zonas inferiores da morte». Através do manicômio é possível entender, de certo modo, a loucura dos homens e das mulheres que, aparentemente equilibrados no cam­po social da Crosta Terrestre, onde permutam os eternos valores divinos por satisfações ilusórias imediatas, são relegados depois, além do sepulcro, a inominável desespero do sentimento. Quanto às perturbações que acompanham a alma no renas­cimento ou na infância do corpo, na juventude ou na senilidade, é mister reconhecer que o desequi­líbrio começa na inobservância da Lei, como a expiação se inicia no crime. Adotada a conduta em desacordo com a realidade, encontra o espírito, invariavelmente, em todos os círculos onde se veja, os efeitos da própria ação. Seja nos mecanismos da hereditariedade fisiológica, seja fora de sua in­fluência, a mente, encarnada ou não, revela-se na colheita do que haja semeado, no campo de evo­lução do esforço comum, no monte da elevação pela prática do sumo bem, ou no vale expiatório pelo exercício do mal.

O Assistente, que se dispunha a retirar-se, fi­tou-me demoradamente, e rematou:

- O louco, em geral, considerando-se não só o presente, senão até o passado longínquo, é al­guém que aborreceu as bênçãos da experiência humana, preferindo segregar-se nos caprichos men­tais; e a entidade espiritual atormentada após a morte é sempre alguém que deliberadamente fu­giu às realidades da Vida e do Universo, criando regiões purgatórias para si mesmo.

Compreendeste?

Fixei o instrutor, reconhecidamente.

Sim, havia entendido. E, ponderando a lição da manhã, segui o orientador, que silente abandonava o campo de observação, a fim de mais tar­de nos avistarmos com os benfeitores que visita­riam as cavernas, em missão de amor e de paz.


17

No limiar das cavernas

Reunidos agora, Calderaro e eu, à comissão de trabalho socorrista que oneraria nas cavernas de sofrimento, fui surpreendido pela expressão da Irmã Cipriana, que chefiava as atividades dessa natureza.

Constituía-se a turma de reduzido número de companheiros: sete ao todo.

Avistando-me ao lado do Assistente, perguntou Cipriana com singeleza, feitas as saudações usuais:

— Pretende o irmão André seguir em nossa companhia?

O abnegado amigo respondeu que o próprio Instrutor Eusébio lembrara a conveniência de minha visita aos abismos purgatoriais; esclareceu que eu me achava interessado em obter informes da vida nas esferas inferiores, para os relatar aos companheiros encarnados, auxiliando-os na preparação necessária à ciência de bem viver.

A diretora ouviu, bondosa, e objetou:

— Sim, a sugestão de Eusébio é valiosa, em se tratando de observações preliminares no Baixo Umbral. Como responsável, porém, pelos serviços diretos da expedição, não posso admiti-lo, por en­quanto, em todas as particularidades.

Fixou em mim o olhar lúcido e meigo, como a lastimar a impossibilidade, e acrescentou:

— Nosso estimado André não tem o curso de assistência aos sofredores nas sombras espessas.

Afagou-me de leve, com a destra carinhosa, e acrescentou:

— Se nos é indispensável obter difíceis reali­zações preparatórias, a fim de colhermos o benefício das Grandes Luzes, é-nos imprescindível a iniciação, para ministrarmos esse mesmo benefício nas (grandes trevas.

Ante o meu indisfarçável desapontamento, a veneranda benfeitora continuou:

— No entanto, convenhamos que o nosso ir­mão não se encontra, junto de nós, sem proble­mas substanciais a resolver. Cada situação a que somos conduzidos é portadora de ocultos ensinamentos para nosso bem. Os desígnios superiores jamais nos propõem questões de que não neces­sitemos, na arena das circunstâncias. Se Eusébio foi levado a sugerir esta oportunidade, é que An­dré Luiz tem nestes sítios urgente serviço a pres­tar. Considerando, porém, as responsabilidades que me cabem, não posso autorizar que nos siga em todos os passos; contudo, convido o Irmão Calde­raro a permanecer, em companhia do prestimoso aprendiz, no limiar das cavernas, sem descerem conosco; mesmo aí, estudioso que é, ele encontra­rá inesgotável material de observação, sem neces­sidade de enfrentar situações embaraçosas, para as quais ainda não se aprestou convenientemente...

Em face da solução apresentada, alegria geral voltou a confortar-nos. Agradeci, contente. Calde­raro também se manifestou reconhecido. E, no júbilo dos trabalhadores que se regozijam com o ensejo de incessantemente aprender para o bem, se­guimos na direção de zona medonhamente sombria.

Ah! já divisara tremendos precipícios, onde entidades culposas se interpelavam umas às ou­tras em deploráveis atitudes; vira chover faíscas chamejantes do firmamento sobre os vales da revolta; descobrira inúmeras entidades senhoreadas por estranhas alucinações em câmaras retificado­ras; mas ali...

Estaríamos acaso alcançando a “selva escura”, a que se referira Alighieri, no poema imortal?

Laceravam-me o coração as vozes lamentosas dispersas a se evolarem para o céu de fumo! Não, não eram lamentações apenas; à proporção que nos adiantávamos, descendo, modificava-se a gritaria; ouvíamos também gargalhadas, imprecações.

Estacamos em enorme planície pantanosa, onde numerosos grupos de entidades humanas desencarnadas se perdiam de vista, em assombrosa desordem, à maneira de milhares de loucos, sepa­rados uns dos outros, ou aos magotes, segundo a espécie de desequilíbrio que lhes era peculiar.

Não me era possível calcular a extensão da várzea imensa, e ainda que houvesse marcos topográficos, para tal apreciação, o nevoeiro era de­masiado denso para que se pudessem computar distâncias.

Percorremos alguns quilômetros em plano ho­rizontal, e, quando o terreno se inclinou, de novo, abrindo outras perspectivas abismais, Irmã Cipria­na e os colegas prazenteiramente se despediram de nós, deixando-nos, ao Assistente e a mim, com o aviso de que voltariam a buscar-nos dentro de seis horas.

Abraçando-me, a diretora disse, gentil:

— Desejo-te, meu amigo, feliz êxito nos es­tudos. Certo, ao voltarmos, receberemos tuas con­fortadoras impressões.

Sorri, encantado, a tão generosa demonstra­ção de apreço.

Logo após, Calderaro e eu nos achamos a sós na atra vastidão povoada de habitantes estranhos.

As conversações em torno eram inúmeras e complexas. Pareceu-me que aquele povo desencarnado» não se dava conta da própria situação, pelo que me foi possível ajuizar de início.

Enquanto densas turbas de almas torturadas se debatiam em substância viscosa, no solo, onde andávamos, assembléias de Espíritos dementes en­xameavam não longe, em intermináveis contendas por interesses mesquinhos.

A paisagem era francamente impressionante pelos característicos infernais que nos circundavam. Notando a displicência de muitos daqueles irmãos infelizes, não sopitei as lucubrações que me surgiam.

Os grupos de infortunados agiam, ali, desco­nhecendo os padecimentos uns dos outros. Certos grupos volitavam a pequena altura, como bandos de corvos negrejantes, mais escuros que a própria sombra a envolver-nos, ao passo que vastos car­dumes de desventurados jaziam chumbados ao solo, quais aves desditosas, de asas partidas... Como explicar tudo isso?

Iniciei meu interrogatório, dirigindo-me ao ins­trutor:

— Será que estes míseros precitos nos vêem?

— Alguns sim, mas não nos ligam maior im­portância: estão muito preocupados consigo mesmos; abrigaram no coração sentimentos rasteiros, e tardarão em se libertarem deles.

— Toda esta gente permanece, porém, desam­parada, entregue a si mesma?

— Não — respondeu Calderaro, paciente —; funcionam, por aqui, inúmeros postos de socorro e variadas escolas, em que muita gente pratica a abnegação. Os padecentes e as personalidades tor­turadas são atendidas, de acordo com as possibili­dades de aproveitamento que demonstram.

Estampou complacente expressão no rosto e considerou:

- As regiões inferiores jamais estarão sem enfermeiros e sem mestres, porque uma das maiores alegrias dos céus é a de esvaziar os infernos.

Vendo bandos de seres a se locomoverem no ar, quase a nos rentear, recordei que em nossa colônia as faculdades de volitação não eram comu­mente exercidas para não melindrarmos aqueles que as não possuíam desenvolvidas; mas... e ali? Criaturas de baixas condições se moviam nos ares, embora a poucos metros do solo.

Calderaro, porém, explicou:

— Não te surpreendas. A volitação depende, fundamentalmente, da força mental armazenada pela inteligência; importa, contudo, considerar que os voos altíssimos da alma só se fazem possíveis quando à intelectualidade elevada se alia o amor sublime. Há Espíritos perversos com vigorosa capacidade volitiva, apesar de circunscritos a baixas incursões. São donos de imenso poder de raciocí­nio e manejam certas forças da Natureza, mas sem característicos de sublimação no sentimento, o que lhes impede grandes ascensões. No que se refere, entretanto, às entidades admitidas à nossa colônia espiritual, ainda em grande número incapacitadas de usar tal vantagem, o fenômeno é natural. É mais fácil recolher criaturas de maiores cabedais de amor com reduzida inteligência, e convivermos com elas, no processo evolucionário comum, do que abrigarmos pessoas sumamente intelectuais sem amor aos semelhantes; com estas últimas, a vida em comum, no sentido construtivo, é quase impra­ticável. Neste capítulo da volitação, portanto, im­pende observar os ascendentes naturais, levando em conta, com a própria Natureza, que os corvos voam baixo, procurando detritos, enquanto as an­dorinhas se libram alto, buscando a primavera.

Feito o reparo, perguntei, lembrando-me das injunções terrenas:

— Mas... e as necessidades de subsistência?

O instrutor não se fêz rogado e informou:

— Nada lhes falta quanto às exigências es­senciais de socorro e de manutenção, como ocor­re num nosocômio da esfera carnal.

O Assistente fez breve pausa e prosseguiu:

— Referindo-nos ao manicômio, esclareço ago­ra que minha intenção, ao visitar um hospício em tua companhia, foi justamente o de preparar-te para a excursão que ora efetuamos. Temos aqui, nestas assembléias de incompreensão e dor, infin­das fileiras de loucos que voluntariamente se ar­redaram das realidades da vida. Fixaram a men­te nas zonas mais baixas do ser, e, olvidando o sagrado patrimônio da razão, cometeram faltas graves, contraindo pesados débitos.

Já viste, em nossa organização espiritual de vida coletiva, irmãos sofredores convenientemente amparados; alguns ainda sofrem estranhas per­turbações alucinatórias, outros são guardados à maneira de múmias perispiríticas em letargia pro­funda, aguardando-se-lhes o despertar; outros povoam vastas enfermarias para se reerguerem espi­ritualmente pouco a pouco... Aqui, no entanto, se congregam verdadeiras tribos de criminosos e delinqüentes, atraídos uns aos outros, consoante a natureza de faltas que os identificam. Muitos são inteligentes e, intelectualmente falando, esclareci­dos, mas, sem réstia de amor que lhes exalce o coração, erram de obstáculo a obstáculo, de pesadelo a pesadelo... O choque da desencarnação para eles, ainda impermeáveis ao auxilio santifi­cante, pela dureza que lhes assinala os sentimen­tos, parece galvanizá-los na posição mental em que se encontravam no momento do trãnsito entre as duas esferas, e, dessa forma, não é fácil de logo arrancá-los do desequilíbrio a que imprevidentes se precipitaram. Retardam-se, às vezes, anos a fio, obstinando-se nos erros a que se habituaram, e, vigorando impulsos inferiores pela incessante per­muta de energias uns com os outros, passam, em geral, a viver, não só a perturbação própria, mas também o desequilíbrio dos demais companheiros de infortúnio.

Ante o pandemônio que observávamos, o orien­tador continuou:

— O Êrebo da concepção antiga, a crepitar em eternas chamas de vingança divina, é perigosa ilu­são; entretanto, os lugares purgatoriais dos dese­jos e das ações criminosas, aguardando as almas enodoadas pelos desvarios, constituem realidades lógicas, nas zonas espirituais do mundo. Aqui, os avarentos, os homicidas, os cúpidos e os viciados de todos os matizes se agregam em deplorável si­tuação de cegueira íntima. Formam cordões com­pactos, inclinando-se mais e mais para os despenha­deiros. Cada qual possui romance horrível, de an­gustiosos lances. Prisioneiros de si mesmos, cer­ram o entendimento às revelações da vida e res­tringem os horizontes mentais, movimentando-se em seu próprio interior, em ação exclusiva, nos impulsos primários, a cultivar o pretérito que de­veriam expungir. Em melhorando, são assistidos por ativas e abnegadas congregações de socorro que aqui funcionam. Autoridades mais graduadas de nossa esfera, atendendo a imperativos superio­res, improvisam tribunais com funções educativas, cujas sentenças, ressumando amor e sabedoria, culminam sempre em determinações de trabalho rege­nerador, através da reencarnação na Crosta Ter­restre, ou de tarefas laboriosas no seio da Natu­reza, quando há suficiente compreensão e arre­pendimento nos interessados que feriram a Lei, ofendendo a si mesmos.

Deste vastíssimo arsenal de alienação da men­te, ensombrada de culpas, sai o maior coeficiente das reencarnações dolorosas que povoam os cír­culos carnais. Daqui, como de outras zonas análogas, seguem para o campo físico, mais denso, milhões de irmãos em provas ríspidas, para que se alijem dos débitos e rearmonizem o Intimo pertur­bado. Poucos conseguem valer-se da oportunidade terrena, no sentido de restaurar as próprias ener­gias. É sempre fácil fugir ao caminho reto; mui­to difícil, porém, o retorno...

Nesse instante aproximou-se de nós enorme e bulhenta colmeia de sofredores. Tratava-se de tenebroso agrupamento de irmãos positivamente loucos. Falavam a esmo, comentando homicídios; rememoravam com palavras cruéis cenas indescri­tíveis de dor e de perversidade.

Nenhum deles atinou com a nossa presença.

Calderaro, muito sereno, conhecendo-me a curiosidade inveterada, informou:

— Estes infelizes permanecem jungidos uns aos outros em obediência a afinidades quase perfeitas, e são contidos apenas pelas leis vibratórias que os regem. Se quiseres, porém, entrar em rela­ção com a história de alguns deles, sonda a mente individual do tipo que te requeira maior atenção.

Aproveitando um momento em que lhes amai­nara a rixa, aproximei-me de infortunado irmão, que impressionava pela fados macilenta.

Sintonizei-me na onda mental que ele ofere­cia, mas o quadro que vi não me permitiu longa perquirição.

Notei-lhe o motivo que cuhninara no desvario:

assassinara a esposa em pavorosas circunstâncias. Contudo, o mísero não transpirava arrependimen­to; acariciava o desejo de rever a vítima para su­pliciá-la, quantas vezes lhe fôsse possível.

Que tragédia se ocultava, ali, naquelas tor­mentosas reminiscências?

Atônito, ergui os olhos para o Assistente, em muda interrogação, mas, renteando-nos a fronte, levitava-se pesado grupo de seres monstruosos, fa­zendo ensurdecedor ruido, e logo esqueci o uxori­cida que me prendera a atenção. Calderaro, per­cebendo-me a perplexidade, explicou:

— Este bando de Espíritos miseráveis, que se movimentam como lhes é possível, é constituído de antigos negociantes terrenos, cujo exclusivo an­seio foi amontoar dinheiro para satisfazer a pró­pria cupidez, sem beneficiar a ninguém. O ouro, que transitoriamente lhes pertencia, jamais serviu para semear a gratidão num só companheiro de jornada humana. Famintos de fortuna fácil, in­ventaram mil recursos de monopolizar os lucros grandes e pequenos, em nada lhes interessando a paz do próximo. Foram homens de pensamento ágil, sabiam voar mentalmente a longas distâncias, garantindo êxito absoluto às empresas materiais que levavam a termo com finalidade exclusiva-mente egoística. Não lhes incomodava o sofrimen­to dos vizinhos, ignoravam as dificuldades alheias, despreocupavam-se do valor do tempo em relação ao aprimoramento da alma. Queriam unicamente acumular vantagens financeiras, e nada mais.

Divorciados da caridade, da compreensão e da luz divina, criaram para si mesmos o mito frio e rí­gido do ouro, fundindo com ele a mente vigorosa e o tacanho coração... Escravizados, agora, à ideia fixa de ganhar sempre, voam pesadamente aqui e acolá, dementados e confundidos, procurando mo­nopólios e lucros que não mais encontrarão.

Condoí-me. Quis deter alguns, confabular com eles fraternalmente, de modo a esclarecê-los; no entanto, o instrutor paralisou-me os braços, mur­murando:

— Que fazes? seria inútil. Impossível é rea­justar, num momento, apenas com palavras, tantas mentes em desequilíbrio cruel.

E, impulsionando-me para a frente, concluiu:

— Vamos: consumirias muitas semanas para conhecer a paisagem de dor que se nos estende à frente, e dispomos apenas de algumas horas.


18

Velha afeição

Não havíamos atravessado grande distância, quando curiosa assembleia de velhinhos se, postou ao nosso lado.

Mostravam todos carantonhas de aspecto la­mentável. Esfarrapados, esqueléticos, traziam as mãos cheias de substância lodosa que levavam de quando em quando ao peito, ansiosos, aflitos. Ao menor toque de vento, atracavam-se aos fragmen­tos de lama, colocando-os de encontro ao coração, demonstrando infinito receio de perdê-los. Entreo­lhavam-se apavorados, como se temessem desastre próximo. Cochichavam entre si, maliciosos e des­confiados. As vezes, faziam menção de correr, mas retinham-se no mesmo lugar, entre o medo e a suspeita.

Um deles observou em voz rouquenha:

— Precisamos de alguma salda. Não podemos com delongas. E nossos negócios? nossas casas? Incalculável é a riqueza que descobrimos...

E indicava com ufania os punhados de lodo a escorregar-lhe das mãos aduncas.

— Mas... — prosseguia, pensativo — todo este ouro, que temos conosco, permanece à mercê de ladrões, nesta miserável charneca. Imprescin­dível é ganharmos o caminho de volta. Isto aqui assombraria a qualquer.

Escutando a singular personagem, dirigi inter­rogativo olhar a Calderaro, que me esclareceu, aten­cioso:

— São usurários desencarnados há muitos anos. Desceram a tão profundo grau de apego àfortuna material transitória, que se tornaram inep­tos ao equilíbrio na zona mental do trabalho digno, por incapazes de acesso ao santuário interno das aspirações superiores. Na Crosta da Terra, não enxergavam meios de se ampararem com a ambi­ção moderada e nobre, nem reparavam nos méto­dos de que usaram para atingir os fins egoísticos. Menosprezavam direitos alheios e escarneciam das aflições dos outros. Armavam verdadeiras ciladas a companheiros incautos, no propósito de sugar-lhes as economias, locupletando-se à custa da in­genuidade e da cega confiança. Tantos sofrimen­tos difundiram com as suas irrefletidas ações, que a matéria mental das vítimas, em maléficas emis­sões de vingança e de maldição, lhes impôs etérea couraça ao campo das ideias; assim, atordoadas, fixam-se estas nos delitos do pretérito, transfor­mando-os em autênticos fantasmas da avareza, atormentada pelas miragens de ouro neste deser­to de padecimentos. Não podemos predizer quan­do despertem, dada a situação em que se encon­tram.

Lamentei-os sinceramente, ao que Calderaro obtemperou:

— Enlouqueceram na paixão de possuir, aca­bando a sinistra aventura escravos de monstros mentais de formação indefinível.

Dispunha-me a redarguir, quando um dos an­ciães alçou a voz no estranho concerto, exclamando:

— Amigos, não seremos vítimas dum pesa­delo? às vezes, chego a supor que estamos equivo­cados. Há quanto tempo deambulamos fora do lar? onde estamos? não teríamos enlouquecido?...

Oh! aquela voz! escutando-a, pavorosa dúvida se apoderou de mim. Quem estaria louco? interro­gava, agora, a mim mesmo. Aquele velho ou eu?

Fixei-lhe os traços. Oh! seria possível? Aquele Espírito desventurado recordava meu avô paterno Cláudio. Afeiçoara-se a mim, desde os meus mais tenros anos. De trato glacial com os outros, afa­gava-me bastas vezes, acariciando-me a cabeleira infantil com as suas mãos que os anos haviam engelhado. Seus olhos fulguravam quando pousa­dos nos meus, e minha mãe sempre afirmava que só em minha companhia ele se acalmava nas cri­ses nervosas que lhe precederam o fim. Não me lembrava da história dele, com particularidades especiais; entretanto, não ignorava que fizera con­siderável fortuna em ágios escandalosos, curtindo espinhosa velhice pelo excessivo apego ao dinhei­ro. Conturbara-se nos últimos tempos do corpo, e via delatores e ladrões em toda a parte. Aflito, meu pai transferira-o para a nossa residência, onde minha mãe o auxiliou a vencer os derradeiros pa­decimentos.

Num átimo, veio-me à memória seu decesso. Trouxeram-me do colégio, onde fazia o curso se­cundário, para oscular-lhe as mãos frias, pela úl­tima vez. Nunca me esqueci de sua impressionante máscara cadavérica. As mãos recurvadas sobre o peito parecia guardarem, ciosamente, algum te­souro oculto, e nos olhos vítreos, que mãos piedo­sas não conseguiram cerrar, vagueava o pavor do ignoto, como se o acometessem trágicas visões no Além, para onde fora arrebatado a contragosto.

No curso do tempo, vim a saber que meu avo deixara valioso patrimônio financeiro, que nós, seus parentes, dissipávamos em nababescas fantasias... Tornando ao pretérito, reconheci que vigoroso laço me unia àquele desgraçado que ainda sofria o pe­sadelo do ouro terrestre, carregando placas de lodo que premia enternecidamente ao coração.

Enquanto as reminiscências me enchiam aque­le instante, gritava-lhe um companheiro infeliz:

— Pesadelo? nunca, nunca! Ó Cláudio, não te sensibilizes tanto!...

— Ah! seu nome fora pronunciado. A confir­mação estarrecera-me; quis gritar, mas não pude. Compreendendo quanto ocorria em meu íntimo, o prestativo Calderaro amparou-me, assegurando:

— André, já sei de tudo. Entendo agora a significação de tua vinda a estas paragens: Irmã Cipriana tinha razão. Não temos tempo a perder. O velho revela-se receptivo. Começou a entender que provavelmente estará em erro, que talvez res­pire atmosfera de pesadelo cruel. Ajudemo-lo. Urge auxiliar-lhe a visão, para que nos enxergue.

Aflito, segui o dedicado orientador que pas­sou a aplicar recursos fluídicos sobre os olhos em­baciados de meu desditoso ascendente. A entida­de, com o providencial afluxo de força, ganhou pro­visória lucidez, e viu-nos, afinal.

— Oh! — gritou perante os colegas aterra­dos — que luz diferente!

E esfregando os olhos, acrescentava, dirigin­do-se a nós:

— Donde vindes? sois padres?

Certo, aludia às túnicas muito alvas com que nos apresentávamos.

Avancei, lesto, e indaguei:

— Meu amigo, sois Cláudio M.... antigo fa­zendeiro nas vizinhanças de V...?

— Sim, conheceis-me? quem sois?

Em atitude de alívio, ajuntou com inflexão comovente:

— Desde muito estou preso nesta região mis­teriosa, referta de perigos e de monstros, mas abundante de ouro, de muito ouro... Vossa pala­vra me reanima... Oh! por piedade! ajudai-me a sair... Quero voltar...

E, ajoelhado agora, de braços estendidos para mim, repetia:

— Voltar..., rever os meus, sentir-me em casa novamente!

Abracei-o, compungido, e sem desejar chocá­-lo com inoportunas revelações, expliquei-me:

— Cláudio M.... sois vítima de lamentável engano. Vossa casa antiga cerrou-se com os olhos físicos que já desapareceram! Encarcerastes o es­pírito num sonho vão de mentirosas riquezas. A morte vos arrebatou a alma do domicilio carnal, vai para mais de quarenta anos.

O ancião esbugalhou os olhos angustiados. Não relutou. Desatou em pranto convulso, dilace­rando-me as fibras mais Intimas.

— Bem o sinto! — murmurou, inspirando compaixão. — Tenho a cabeça afogueada, incapaz de raciocinar; mas... e o ouro, o ouro que ajuntei com tanto suor?

— Reparai vossas mãos, agora que divina cla­ridade vos bafeja o espírito! O patrimônio, acumu­lado à custa das dificuldades alheias, converteu-Se em lodacentos detritos. Notai!

Meu avô pôs-se a contemplar as massas de lama que abraçava, e gritou, aterrorizado. Em seguida, pousando em mim os olhos lacrimosos, considerou:

— Será o castigo? Minha falta para com Is­mênia exigia punição...

Como os soluços lhe asfixiassem a garganta, interroguei:

— A quem vos referis?

— A minha irmã, cujos direitos espezinhei.

Sensibilizando-nos, intensamente, prosseguiu:

— Sois enviados de Deus, e ouvi-me em con­fissão. Ao morrer, meu pai confiou-me uma irmã, que não era filha legítima de nossa casa. Minha mãe, dedicada e santa, criou-a com o mesmo infinito desvelo que a mim mesmo. Quando me vi, po­rém, sôzinho, escorracei-a do ambiente doméstico. Provei que não partilhava meus laços consangüí­neos, para melhor assenhorear-me da fortuna que meu pai nos legara. A pobrezinha implorou e so­freu; no entanto, releguei-a a miserável destino, cioso da sólida base financeira que havia consegui­do. Fiquei rico, multipliquei os cabedais, ganhei sempre...

E fixando as mãos enodoadas, prosseguia amargurosamente:

— E agora?...

Ia consolá-lo, abrir-lhe o coração comovido até às lágrimas; Calderaro, porém, fêz-me imperioso gesto, recomendando-me silêncio.

Meu triste antepassado continuou, descorti­nando-me novos campos ao sentimento:

— Onde viverão meus parentes, cujo futuro me preocupava? onde rolará o dinheiro que amon­toei penosamente, olvidando minha própria alma? onde respirará minha irmã, a quem despojei de todos os recursos? porque não me ensinaram, na Terra, que a vida prosseguiria para além do se­pulcro? estarei efetivamente (morto) para o mundo, ou louco e cego? Ah! mísero que sou! quem me socorrerá?

Alongando os braços ressequidos, suplicava:

— Tende piedade de mim! Meus pais foram levados ao túmulo, há muitos anos, e meus filhos, certamente, me esqueceram... Estou desprezado, sem ninguém. Valei-me, emissários do Eterno! não abandoneis um ancião traído em suas ambições e propósitos! agora, que me reconheço, tenho medo, muito medo...

Demorando em mim o olhar que grossa cor­tina de lágrimas ensombrava, observou:

— Meus familiares olvidaram-me o devota­mento. Só uma pessoa no mundo se recordará de mim e me estenderia mãos protetores se soubes­se do meu paradeiro...

Estampou expressão de ternura na máscara dolorosa e esclareceu:

— Meu neto André Luiz era a luz de meus olhos. Muita vez, os carinhos dele me aquietavam o torturado pensamento. Em muitas ocasiões ma­nifestei, em casa, o desejo de que ele se consagrasse à Medicina. Destinei-lhe um legado para esse fim. Pretendia vê-lo fazendo o bem que eu, homem igno­rante, não soubera praticar. Frequentemente me assaltava o remorso pela extorsão que infligira a minha irmã; contudo, consolava-me com a ideia de que o neto do meu coração, de algum modo, gas­taria o dinheiro que eu indêbitamente aferrolhara, educando-se, como convinha, para beneficio de to­dos... Seria o benfeitor dos pobres e dos doentes, espargiria sementes dadivosas onde minha exis­tência inútil espalhara pedras e espinhos de insen­satez. Meu neto seria belo, querido, respeitado...

Enxugando as copiosas lágrimas, indagava em voz súplice, com a atenção presa a meus gestos:

— Quem sabe se vós, mensageiros de Deus, poderíeis levar a meu neto a tremenda noticia dos males que me devoram? Não mereço o afastamen­to destas masmorras em que enlouqueci, mas ser-me-á consolo saber que André tem ciência dos meus padecimentos!

Ah! não mais valeram sinais do Assistente Cal­deraro para que me contivesse, esperando ainda mais. Meu peito como que rebentara numa torren­te de pranto irreprimível. Ali, não me achava ante assembléias superiores, cujas emissões de energia me sustentassem até ao fim no combate educativo da autodisciplina, mas, diante dos deploráveis re­manescentes das paixões terrestres. Lembrei-me do meu avô, acariciando-me os cabelos; recordei que meu genitor sempre aludia aos desejos do velho, com referência à minha preparação acadêmica... Pensei nos longos anos que o mísero teria gasto, ali, agarrado às ideias de posse financeira; com­preendi a extensão de meu débito para com ele, relativamente ao diploma de médico que eu não soubera honrar no mundo... Dirigi súplice olhar a Calderaro, rogando-lhe me perdoasse...

O Assistente sorriu e entendeu tudo.

Quem terá perdido, de todo, a expressão in­fantil, se o próprio Cristo, Supremo Guia da Terra, abriu tenros braços, um dia, no berço da manje­doura?

Tornando mentalmente a cenários da infância longínqua, senti-me novamente menino; venci de um salto o espaço que nos separava e ajoelhei-me aos pés do meu desventurado benfeitor, que me observava, agora, trêmulo e assustado. Cobri-lhe as mãos de beijos e, erguendo para ele os olhos lacrimosos, perguntei:

— Vovô Cláudio, pois o senhor não me conhe­ce mais?

Impossível seria descrever o que se passou.

Esqueci, por momentos, os estudos que me impusera a fazer; olvidei os quadros daquele am­biente, que provocavam curiosidade e pavor. Meu espírito respirava o reconhecimento sincero e o amor puro; e, enquanto as míseras entidades emu­radas na usura gritavam, revoltadas, umas, e riam outras à sorrelfa, incapazes de compreender a cena improvisada, eu, amparado por Calderaro, que tam­bém enxugava lágrimas discretas, diante da como­ção que me assaltara, sustentei meu avô nos bra­ços, como se transportara, louco de alegria, pre­cioso fardo que me era doce e leve ao coração.


19

Reaproximação

Quando Cipriana regressou, em companhia dos demais amigos, encontrou-me banhado em lágrimas, e ouviu a estranha narrativa de meu avô semilú­cido. Esboçou complacente gesto e disse, bondosa:

— Sabia, André, que não terias vindo para nenhum resultado.

Em rápidos minutos descrevi-lhe a ocorrência, prestando-lhe todos os informes sobre o passado.

A diretora ponderou, serena, a minha digres­são através do pretérito e obtemperou:

— Dispomos de tempo curto; e, como não será possível ao doente acompanhar-nos, cumpre inter­ná-lo já em algum recolhimento, aqui mesmo.

Meu avô, mau grado ao júbilo de me haver reconhecido, não guardava razoável equilíbrio: pro­nunciava frases desconexas, em que o nome de Is­mênia era repetido a cada passo.

— Não podemos esquecer — acentuou a ve­nerável instrutora — que o irmão Cláudio precisa de tratamento e de cuidado. Ë impossível prever quando se achará em condições de respirar atimos­fera mais elevada.

Assim dizendo, generosa e meiga, auscultou o velhinho semilouco, examinando-o maternalmente.

Decorridos alguns instantes, informou:

— André, nosso enfermo, para melhorar com mais rapidez e eficiência, deveria retornar à expe­riência carnal.

— Neste caso, então, — disse eu, humilde —poderíamos merecer seu auxilio, Irmã?

— Como não? em se tratando de reencarnação por meras atividades reparadoras, sem projeção nos interesses coletivos, de modo mais amplo, nosso concurso pessoal pode ser mais decisivo e imediato. Temos nestes sítios grande número de benfeitores, providenciando reencarnações em grande escala nos círculos regenerativos. Vejamos como estudar a situação futura deste irmão.

Submeteu o doente a carinhoso interrogatório.

O ancião, comovido, contou que seu genitor, ao se casar, conduziu para o lar uma filha de sua mocidade turbulenta, a qual a mãezinha acolhera com doçura. Essa irmã lhe fora, mais tarde, ama desvelada, tornando-se-lhe credora de justa gra­tidão. Todavia, enceguecido pelo propósito inferior de possuir dinheiro desmedidamente, despojou-a dos bens que lhe cabiam, por ocasião do falecimento dos pais, que, vitimados por febre maligna, o ha­viam deixado em vésperas de casamento. Ismênia, espoliada, depois de chorar e reclamar debalde, foi compelida a homiziar-se em residência de família abastada, que lhe cedeu, por favor, um lugar de copeira com remuneração desprezível. Soube que, premida por dificuldades materiais de toda a sorte, desposara um analfabeto, homem rude e cruel, que a seviciara e lhe dera algumas filhas em dolorosas condições de miserabilidade. Exposto o desvio má­ximo de seu caminho, passou a comentar os in­dignos ideais que nutria no terreno da sovinice, estremecendo-nos os corações.

Cipriana, demonstrando-se habituada aos pro­blemas daquela natureza, esclareceu-me:

— Já conhecemos dois pontos essenciais para os serviços que lhe competem: a necessidade da reaproximação com Ismênia, que não sabemos onde se encontra, se encarnada ou não, e o imperativo da pobreza extrema, com trabalho intensivo, para que reeduque as próprias aspirações.

De posse do endereço provável dos descenden­tes da irmã outrora espezinhada, Cipriana reco­mendou a dois companheiros nossos se encarre­gassem de rápida investigação na Crosta Terrestre, a fim de nos orientarmos quanto aos rumos a to­mar no imprevisto acontecimento.

Os emissários não se demoraram mais do que noventa minutos.

Traziam boas novas, que me reconfortavam.

Localizaram a família a que o desditoso ve­lhinho se referira em suas amargas reminiscên­cias, e traziam sensacional informação. Amigos de nossa esfera esclareceram-nos, quanto a Ismênia, que ela reencarnara e vivia na fase juvenil das for­ças físicas. Corporificara-se no mesmo tronco do­méstico a que emprestara colaboração na época em que meu avô a expulsara do campo familiar.

Cipriana tudo ouviu, sensibilizada, e, interes­sando-se por nós, sugeriu organizássemos as bases da futura experiência, conquistando, sem delongas, as simpatias da jovem.

A esse tempo, já nos achávamos portas a den­tro de uma organização socorrista, que recebeu a solicitação de nossa diretora em favor do enfermo, com excelente disposição de servir-nos.

Cercando de todas as atenções meu antigo credor, a estimada benfeitora frisou, dirigindo-se a mim:

— Nosso amigo, durante dois anos aproxima­damente, não poderá ausentar-se desta casa de assistência fraterna. Permanece ainda profunda­mente identificado com a atmosfera destes sítios. Visitá-lo-emos seguidamente, amparando-o com os nossos recursos, até que possa respirar de novo os ares da Crosta. Ë de notar que a mente dele não se libertará das teias da incompreensão com facili­dade, e, neste estado, não volveria com êxito ao educandàrio da carne.

Acatei a ponderação, acompanhando o curso das providências para o caso.

Cipriana contemplou, enternecida, a entidade demente, e prosseguiu, bondosa:

— Agora, André, finalizando nossos traba­lhos da semana, tentemos trazer Ismênia até aqui, para os trabalhos preparatórios de reaproximação. Achando-se presentemente na juventude terrestre, provàvelmente nos auxiliará no momento preciso, recebendo o irmão perturbado em seu próprio ins­tituto doméstico. Antes de mais nada, porém, ne­cessitamos da simpatia dela, em face do nosso pro­grama de reerguimento.

— Se Ismênia aceitar, se consentir... —acrescentei, hesitante.

— Encarregar-nos-emos do resto — prometeu a interlocutora, decidida —; o retorno de Cláudio à esfera física terá características muito pessoais, sem reflexos de maior importância no espírito co­letivo, pelo que nós mesmos poderemos providen­ciar quase tudo.

Confiando o enfermo aos beneméritos compa­nheiros que velavam na casa de amor cristão em que nos asiláramos, dirigimo-nos para o Rio, onde Ismênia seria encontrada por nós em modesto lar de Bangu.

Em plena madrugada, entramos, respeitosos, na humilde residência.

A irmã de meu avô era agora a sexta filha daquela senhora que, na existência física, era co­nhecida por neta da velha Ismênia, cuja personali­dade, para a família terrena, se perdera no tempo, e que não era outra senão a menina e moça, sob nossos olhos, de volta às tarefas aperfeiçoadoras da luta carnal.

Tudo ali respirava pobreza digna e adorável simplicidade.

Adiantando-se, Cipriana colocou a destra so­bre a fronte da jovem adormecida, como a cha­má-la até nós. Efetivamente, decorridos instantes, veio ter conosco e, reparando que nossa orienta­dora, envolta em luz intensa, a cobria com um ges­to de bênção, ajoelhou-se, desligada da matéria, exclamando em lágrimas de júbilo:

— Mãe Celestial, quem sou eu para receber a graça de vossa visita? Sou indigna servidora...

Cobriu o rosto com as mãos, sentindo-se tal­vez ofuscada pela claridade sublime, e contendo, a custo, a comoção a estuar-lhe no peito; mas nossa veneranda benfeitora aproximou-se, pousou-lhe as mãos carinhosas na basta cabeleira negra e falou, compassiva:

— Minha filha, sou apenas tua irmã, tua ami­ga... Ouve! Quais são tuas intenções na vida?

Como a jovem erguesse para ela os olhos la­crimosos, acrescentou a nobre mensageira:

— Precisamos de tua colaboração e não dese­jamos ser amigos Inúteis. Em que te podemos servir?

Decorreram pesados instantes de expectação.

— Fala! — acrescentou Cipriana, prestimo­sa —; explica-te sem receios...

Voz entrecortada pela comoção, lembrou com ingenuidade juvenil:

— Minha mãe, se eu puder rogar-vos algu­ma coisa, peço-vos auxilio para Nicanor. Somos noivos, há quase dois anos, mas somos pobres. Trabalho na indústria de tecelagem, com salário reduzido, para ajudar à manutenção de nossa casa, e Nicanor é pedreiro... Temes sonhado com a or­ganização de um lar pequeno e modesto, sob a proteção da Divina Providência. Poderemos aguar­dar a aprovação de Deus?

Cipriana estampou na fisionomia suma ter­nura materna e considerou:

— Como não? Teus desejos são justos e san­tificantes. Nicanor terá nosso amparo, e tuas es­peranças nossa viva contribuição. Esperamos, po­rém, algo de teu concurso...

— Ah! em que poderia servir-vos, eu, mísera serva que sou?

A diretora não prolongou a conversação, pe­dindo-lhe tão somente:

— Vem conosco!

Em seguida, com grande surpresa para mim. Cipriana cobriu-lhe o rosto com estreito véu de substância semelhante a gaze, para que lhe não fosse dado ver as impressionantes paisagens que deveríamos atravessar.

Sustentada por nós, dentro em pouco a moça se ajoelhava, curiosa e enternecida, ante meu avô, que, ao enxergá-la, prorrompeu em exclamações em que ressumbrava ansiedade:

— Ismênia! Ismênia! minha irmã, perdoa-me!... Afagando-lhe as mãos, torturado, contempla­va-lhe o semblante humilde:

— Oh! é ela mesma — insistia, tomado de evidente espanto —, com a mesma tristeza do dia em que a expulsei!... Que fêz, porém, para ser hoje mais jovem e mais formosa?

Como a visitante guardasse silêncio, confun­dida, inquiria, aflito:

— Dize, dize que me perdoas, que esquecerás o mal que te fiz!

A essa altura da inopinada entrevista, Cipria­na interveio, dirigindo-se a ela, interrogando:

— Nunca soubeste, em família, que tua bisa­vó teve um irmão.

A jovem não a deixou concluir, perguntando por sua vez:

— ... que a expulsou de casa? Sim.

— Minha mãe já se referiu a esse passado distante — acrescentou, melancólica.

— Não o reconheces? — tomou, afável, a benfeitora. — Não te recordas?

Nesse instante, o velhinho interferiu, excitan­do-lhe a memória:

— Ismênia, Ismênia! eu sou Cláudio, teu des­venturado irmão...

A jovem não sabia como interpretar aquelas evocações, mas nossa diretora, cingindo-lhe os lo­bos frontais com as mãos, a envolvê-la em abun­dantes irradiações magnéticas, insistia, meiga, pro­vocando a emersão da memória em seus máis im­portantes centros perispiríticos:

— Revê o pretérito, minha amiga, para bem servirmos à Obra Divina.

Notei, assombrado, que algo de anormal su­cedera na mente da jovem, porque seus olhos, dan­tes doces e tranquilos, se tornaram dilatados e in­quietos. Tentou recuar ante a súplice expressão de meu avô, mas a energia de Cipriana a conteve, evitando-lhe a expansão dos impulsos iniciais de medo e de revolta.

— Agora, sim! Lembro-me... — gemeu, ater­rada.

Nossa instrutora, então, libertou-lhe a fronte e, indicando o enfermo, exclamou em tom como­vedor:

— E não tens piedade?

Alguns segundos de expectativa rolaram pe­sadamente; contudo, o amor, sempre divino na mulher de aspirações elevadas, triunfou no olhar enternecido de Ismênia, que, plenamente modifi­cada, se abraçou ao doente, exclamando:

— Pois és tu, Cláudio? que te aconteceu?

Traçou o ancião largo comentário de suas penas, referiu-lhe as faltas passadas, e falou-lhe, mais lúcido e contente, do conforto que a reapro­ximação lhe conferia.

Ela conservou-o muito tempo de encontro ao peito, fazendo-lhe sentir sua imensa ternura, sua dedicação e entendimento sem limites.

Quando pareciam perfeitamente reconciliados, Cipriana abeirou-se dela e considerou:

— Minha amiga, estimaríamos receber a tua promessa de auxiliar nosso irmão Cláudio, em fu­turo próximo. Cooperarás conosco em favor dele, recebendo-o nos braços abnegados de mãe, se a Lei Divina autorizar teu matrimônio?

Reverente, dando-me a conhecer os tesouros de uma existência singela e humilde na Terra, a visitante exclamou:

— Se o Céu me conceder a felicidade de com algo contribuir em benefício de Cláudio, esse bene­fício será feito a mim mesma; e, se um dia eu receber a ventura conjugal, será nosso primeiro e bem-amado filhinho. De antemão, sei que Nicanor se regozijará com o meu compromisso.

Contemplando, enlevada, o desditoso prisio­neiro das sombras, prometia:

— Partilhar-nos-á a vida pobre e honrada, co­nhecerá as alegrias do pão, filho do suor com a Proteção Divina, e olvidará, em nossa companhia, as ilusões que por tanto tempo nos separaram...

Evidenciando deliciosa singeleza de coração, projetava em êxtase:

— Será um pedreiro feliz, como Nicanor! aben­çoará a luta digna que atualmente bendizemos!...

Como chorasse, comovida, Cipriana abraçou-a, também tocada no coração e de olhos úmidos, assegurando:

— Bem-aventurada sejas tu, querida filha, que compreendes conosco o celestial ministério da mu­lher nobre, sempre disposta à maternidade sublime.

Mais alguns minutos decorreram em salutares entendimentos, e, quando o Sol engrinaldava o horizonte de tonalidades diamantinas, de novo es­távamos no modesto aposento de Ismênia, aju­dando-a a retomar o aparelho fisiológico e a olvi­dar a ocorrência que vivera, junto de nós, na es­fera do Espírito.

Acordou no veículo pesado, experimentando ignoto júbilo. Tinha a mente refrescada de idéias felizes. Teve a nítida impressão de que tornava de maravilhosa romagem, cujas minúcias não con­seguiria precisar. Sem saber como, guardava, na­quele instante, absoluta certeza de que se casaria e de que Deus lhe reservava ditoso porvir.

Quem poderia definir-nos o reconhecimento e

a admiração daquela hora? Meus companheiros abençoaram-na, e eu, por minha vez, desØedindo-me dela comovidamente, osculei-lhe a destra mi­núscula, num beijo silencioso de profunda amizade e de indizível gratidão.


20

No lar de Cipriana

Encerrada a semana de estudos que me pro­pusera e guardando valores novos no espírito, acompanhei Calderaro, em pleno crepúsculo, à be­nemérita fundação nas zonas inferiores, a que o Assistente chamara “Lar de Cipriana”.

Extremamente perplexo, ante o problema que me demandava a atenção, qual o de reencontro inesperado com meu avô, não me sobravam, agora, motivos para longas perquirições de ordem filosó­fico-científica junto à privilegiada cultura do ins­trutor, prestes a despedir-se.

A pesquisa cedera lugar à meditação, o racio­cínio ao sentimento. Recolhera extenso material referente às manifestações da mente, obtendo va­liosas conclusões para definir os desequilíbrios da alma; examinara diversos doentes, com os quais travara relações; identificara moléstias cujas cau­sas se prendiam às mais profundas e menos co­nhecidas raízes do espírito: entre as novidades, porém, encontrara um enfermo que me transferira da ardente curiosidade intelectual às acuradas re­flexões no tangente ao destino e ao ser.

Reconhecia, agora, que, para conseguir a sa­bedoria com proveito, era indispensável adquirir amor.

Naqueles instantes, calavam em meu ser as perguntas inquietas, sofreadas pelo coração do­lorido.

Poderia, em verdade, ter avançado muito no domínio dos conhecimentos novos, conquistado sim­patias prestigiosas, renovado as concepções da vida e do Universo, melhorando-as; no entanto, de que me valeriam semelhantes troféuz, se me não fôsse possível socorrer um benfeitor em dificuldade?

De pensamento fixo na surpreendente questão da hora, cheguei, em companhia de Calderaro, àenorme instituição em que Cipriana administrava o constante beneficio de seu devotamento fraternal.

Tratava-se, a meu ver, de casa socorrista di­ferente de quantas conhecia; parecia grande cen­tro de trabalho prôpriamente terrestre.

A maioria dos companheiros que ai se agita­vam não eram portadores de luminosa expressão, mas típicas personalidades humanas em processo regenerador. Com exceção de Cipriana. e dos as­sessores que lhe compunham o séquito, a comuni­dade, não pequena, era formada de criaturas evi­dentemente inferiores: homens e mulheres análo­gos, no aspecto, aos que povoam os círculos carnais.

Como acontecia habitualmente, Calderaro me veio em auxílio, esclarecendo:

- Irmã Cipriana idealizou este amorável re­duto de restauração espiritual, e concretizou-o, usando os próprios irmãos sofredores e perturba­dos que vagueiam nas regiões circunvizinhas.

É claro que não reside sistemàticamente aqui; todavia, neste colégio regenerador passa grande parte do tempo, que consagra ao seu ministério santificante nas esferas de baixo nível de evolução. No fundo, a organização funciona sob a vigilância dos próprios companheiros que vão melhorando. Trata-se, pois, de importante escola de reajusta­mento anímico, de auto-reconhecimento e de pre­paração, para individuos de boa vontade. Nossa benemérita amiga iniciou a obra e tornou-se-lhe provedora fidelíssima. Contudo, o instituto é de região inferior para criaturas que desejem melho­rar suas condições de existência. Educandário de trânsito, sob a ação direta dos que dele colhem proveito, passou, destarte, a valioso núcleo de ins­trução e de amparo. Individualidades libertas da carne, em penosas condições intimas nos setores do conhecimento, aqui recebem precioso concurso, a fim de se readaptarem convenientemente à vida.

Grupos diversos de mediana condição dirigiam-se para um edifício ao centro da vastíssima orga­nização, no qual adivinhei o templo votado à prece.

Muitos companheiros se encaminhavam céleres, conversando, ao nosso lado. Havia ali tanta gente alegre e tanta gente preocupada, como em qual­quer via pública de grande cidade no plano denso; tive a impressão de que visitávamos enorme uni­versidade, situada em clima sombrio.

Embora, quanto ao aspecto, fôssem distintos entre si, quer os pequenos, quer os numerosos ajuntamentos de irmãos, que aí se moviam, eram idênticos uns aos outros pela nota viva de espe­rança, que a todos luzia no olhar percuciente. Quantos se nos deparavam, exibiam atitude iniludível de trabalho e de renovação; ainda mesmo os aleijados e doentes que aí estacionavam, em gran­de número, mostravam disposições de otimismo transformador.

— A venerável instrutora — prosseguiu, be­névolo, o Assistente — montou aqui verdadeira oficina de restauração do espírito. Antigos ex­poentes do orgulho que entre os homens se engri­ponavam na vaidade e no crime, depois de bastos anos de purgação, e ao demonstrarem propósitos reedificantes, são recolhidos a esta casa, onde reor­ganizam sentimentos e cabedais, a caminho do por-vir. Daqui, como de outras instituições do mesmo gênero, localizadas em plenas regiões expiatórias, saem inúmeras reencarnações retificadoras, O pro­grama fundamental de Cipriana é o esquecimento do mal com a valorização permanente do bem, àluz da esperança em Deus. A principio, a organi­zação custou-lhe muitos sacrifícios, em matéria de tempo e de direito que lhe mereciam os méritos pessoais; no transcurso dos anos, porém, elementos por ela mesma formados passaram a superinten­der a obra e a conservá-la.

Ponderava eu a bondade e a sabedoria da­quela estrênua missionária, pronta a todo serviço de colaboração superior, recordando meu próprio caso ante meu demente avô emaranhado nas som­bras, quando penetramos o santuário, onde sua voz se faria ouvir na oração. Cercavam-na diver­sas criaturas que lhe eram conhecidas.

Um cavalheiro, visívelmente confortado, di­zia-lhe, reverente:

— Seguindo-lhe os conselhos, Irmã, não mais senti pesadelos. Renovei minha atitude para com os familiares: passei a cooperar, ao invés de com­bater.

— Agora, sim! — exclamou Cipriana, satis­feita —; o bem duradouro é filho da colaboração fraternal. Você verá quão sensível diferença para sua felicidade se verificará em torno de seus passos.

— Irmã — falou-lhe simpática senhora—, minha situação é outra. Agora, reparo que o mun­do não foi edificado para mim, e que me cumpre a obrigação de trabalhar em benefício do mundo.

A respeitável interlocutora estampou bela ex­pressão fisionômica e observou:

— Seu progresso é visível, O esquecimento de nossos caprichos pessoais dilata-nos a compre­ensão.

Trêmulo velhinho, com todas as característi­cas de recém-desencarnado, dirigiu-se a ela, de olhos rasos d’água.

— Irmã — balbuciou, triste —, ainda expe­rimento os antigos achaques. Há instantes em que me sinto cair, perdendo a noção de mim mes­mo, para despertar em seguida, aflito...

A orientadora acariciou-o, discreta, encora­jando-o:

— É natural. Esteja, porém, convicto de que a situação melhorará. Gastamos, às vezes, anos, armazenando impressões que naturalmente não se esvaem nalguns dias.

Outros companheiros se aproximavam com o evidente intuito de ouvi-la, mas, notando-nos a presença, veio, sorridente, até nós, informando, obsequiosa:

— André, o problema de nosso enfermo já foi providenciado, em todas as particularidades sus­cetíveis de solução imediata. Cláudio demorar-se-á no recolhimento até que se apresente em condições de mudança para nosso instituto regenerativo. Aqui se preparará convenientemente para o retorno aos círculos carnais. Tudo se processará com a har­monia desejável. Além disto, nossos cooperadores estão instruídos quanto ao auxílio que devemos a Ismênia para a concretização de seus ideais.

Agradeci, confundido e sensibilizado, renden­do graças a Deus. Nosso entendimento não se pro­longou. O sinal da oração chamava-nos ao alegre e doce dever.

Cipriana, assumindo a direção da prece, fêz-se acompanhar pelos colaboradores diretos que a seguiam no momento.

De alma genuflexa, vi-a de olhos erguidos para o alto, de onde jorrava intensa luz sobre a sua fronte... Do tórax, do cérebro e das mãos brotavam radiosas emissões de força divina, das quais ela se constituía visível intermediária para nós todos.

Alcançados pelos fulgurantes raios que fluiam de esfera superior através de sua personalidade sublime, sentíamo-nos embalados por indizível sua­vidade...

Harmonioso coro de uma centena de vozes bem afinadas cantou inolvidável hino de louvor ao Su­premo Pai, arrancando-me copiosas lágrimas.

Logo após, a palavra comovente da instrutora vibrou no ambiente, exorando a proteção do Cristo:

«Senhor Jesus,

Permanente inspiração de nossos caminhos,

Abre-nos, por misericórdia,

Como sempre,

As portas excelsas

De tua providência incomensurável...

Doador da Vida,

Acorda-nos a consciência

Para semearmos ressurreição

Nos vales sombrios da morte;

Distribuidor do Sumo Bem,

Ajuda-nos a combater o mal

Com as armas do espírito;

Príncipe da Paz,

Não nos deixes indiferentes

À discórdia

Que vergasta O coração

De nossos companheiros sofredores;

Mestre da Sabedoria

Afugenta para longe de nós

A sensação de cansaço

À frente dos serviços

Que devemos prestar

Aos nossos irmãos ignorantes;

Emissário do Amor Divino,

Não nos concedas paz

Enquanto não vencermos

Os monstros da guerra e do ódio,

Cooperando contigo,

Em tua augusta obra terrestre;

Pastor da Luz Imortal,

Fortalece-nos,

Para que nunca nos intimidemos

Perante as angústias e desesperos das trevas;

Distribuidor da Riqueza Infinita,

Supre-nos as mãos

Com teus recursos ilimitados,

Para que sejamos úteis

A todos os seres do caminho,

Que ainda se sentem minguados

De teus dons imperecíveis;

Embaixador Angélico,

Não nos abandones ao desejo

De repousar indebitamente,

E converte-nos

Em teus servidores humildes,

Onde estivermos;

Mensageiro da Boa Nova,

Não permitas

Que nossos ouvidos adormeçam

Ao coro dos soluços

Dos que clamam por socorro

Nos círculos do sofrimento;

Companheiro da Eternidade,

Abençoa-nos as responsabilidades e deveres;

Não nos relegues à imperfeição

De que ainda somos portadores!

Dá-nos, amado Jesus, o favor de servir-Te

E que o Supremo Senhor do Universo Te glorifique

Para sempre.

Assim seja!...

Fizera-se resplandecente o recinto do santuá­rio. Vi, então, através do espesso véu de lágrimas que me assomavam aos olhos, que maravilhosa co­roa de brilhantes evanescentes cintilou, por ins­tantes, na cabeça venerável daquela missionária do bem, como se ali fora instantaneamente colo­cada por mãos invisíveis...

Encerrada a reunião, Cipriana, com admirável simplicidade, veio despedir-se de mim.

Porque não dizer? Tinha meus olhos velados de pranto, desejaria segui-la como filho reconhe­cido para sempre, tais a sabedoria e o amor que lhe transbordavam do espírito glorificado.

Calderaro foi o primeiro a abraçar-me, fa­zendo votos de boa viagem, a que não pude respon­der, sufocado pela intensa comoção. Os demais companheiros saudaram-me, enternecidos, e, por fim, Cipriana apertou-me ao peito, beijou-me ma­ternalmente, e disse com olhos úmidos:

Que o Pai te abençoe. Nunca te esqueça a bondade no desempenho de qualquer obrigação.

E talvez porque me visse tão fundamente sen­sibilizado, acrescentou:

— Estaremos unidos pelo espírito.

Desvencilhei-me dos seus braços com as sau­dades do filho, em cujo santuário interior jamais se extingue a chama da gratidão.

De volta, agora, aos trabalhos que me aguar­davam, solitário e comovido, aspirei os perfumes da noite clara que se povoava de prodigios men­sagens dos astros coruscantes...

— Misericordioso Senhor — supliquei, men­talmente —, digna-Te abençoar o verme que eu sou!...

Tive a impressão de que meu coração pulsava, túmido, dentro do peito. À frente dos meus olhos faiscavam constelações, indicando gloriosos desti­nos, no futuro infindável...

E ponderando, em silêncio, a grandeza de Deus, verti copioso pranto de júbilo, dando guarida às intraduzíveis sensações que me invadiam a alma, extasiada e feliz sob nova esperança!

Fim