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quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Ave, Cristo-Parte 2-Francisco Cândido Xavier



Taciano, naquela segunda noite de palestra, mostrava-se mais alegre, mais
expansivo.
Reportou-se ao contentamento da filhinha, na expectativa de afeiçoar-se
mais Intimamente à mestra e comentou os planos que ele mesmo delineara,
feliz.
Basílio passaria a residir numa casa próxima da vila Vetúrio, onde o
afinador encontraria amplos recursos para instalar-se condignamente com a
filha.
Estariam todos, desse modo, em permanente comunhão.
E o entusiasmo, que é sempre o responsável pelos milagres da alegria,
materializou o projeto, sem perda de tempo.
Numa semana, verificou-se a desejada alteração.
Pequeno sítio foi alugado para o filósofo, e a primeira manhã de passeio
para Taciano, Lívia e Blandina despertou numa admirável festa de luz.
O bosque orvalhado era fartamente percorrido por brisas frescas, que
perpassavam pelas flores, carreando-lhes o perfume para longe.
Aves delicadas atitavam e gorjeavam nas árvores esguias e ramalhosas
que se mantinham verdes e lindas, como ofertas vivas da terra ao céu sem
nuvens.
Enquanto a menina, corada de sol, perseguia, curiosa, um grupo de
borboletas, Taciano parou à frente de um ninho cheio de filhotes implumes e,
mostrando-o à companheira de excursão, exclamou emocionado:
— Quanta alegria nesta família feliz!
A moça contemplou o quadro, com grande enlevo, e concordou, contente:
— A Natureza é sempre um livro divino.
O patrício fitou-a, com indisfarçável ternura, deixando transparecer os
sentimentos indefiníveis que lhe afloravam na alma e considerou:
— Lívia, há momentos em que, por mais se nos fixe a confiança nos
deuses, mais se nos torna o coração um labirinto de perguntas sem resposta...
Por que motivo um pássaro pode fazer a própria casa em harmonia consigo
mesmo e um homem é constrangido a sofrer a influência dos outros, na
realização dos menores desejos?... por que razão corre em paz a corrente de
um rio para fundir-se no mar largo, enquanto os dias da alma humana se
escoam, atormentados, na direção da morte? Haverá mais clemência nas
Divindades Imortais para os seres inferiores? Seremos, porventura,
consciências caídas no integral esquecimento de si próprias, algemadas à
Terra para serviços de purgação?
A jovem, que se conturbara ante a chama afetiva que lhe resplendia no
olhar, pronunciou alguns monossílabos, evidenciando o propósito de modificar
a conversação, mas Taciano, encorajado com o rubor espontâneo que
assomara à face da interlocutora, prosseguiu, carinhosamente:
— Sempre admiti que as tradições familiares devem nortear os nossos
sentimentos.
Casei-me, por isso, em obediência a elas e, dentro delas, formei a pequena
família que me segue os passos. Procurei na esposa que os deuses me
trouxeram uma irmã para a viagem no mundo. Supunha que o amor, tal como o
vemos, na existência comum, gerando tantos crimes e tantas complicações,
não passasse de mero impulso plebeu das almas menos afeiçoadas à
dignidade social. Sinceramente, não surpreendi em Helena a amiga que meu
espírito aguardava. Tão logo se nos fêz mais íntima a experiência em comum,
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percebi a distância moral em que nos situávamos. Contudo, nela encontrei
amorosa mãe para minhas filhas e conformei-me.
O moço esboçou amargo sorriso e continuou:
— A vida não foi feita de encomenda para nós, de vez que somos
subordinados dela, com o dever de aproveitar-lhe as lições. Cerrei, assim, as
portas do ideal e passei a existir, como tantos outros existem, apagando em
mim mesmo qualquer despertamento do coração. Agora, porém, que nos
vimos, tenho noites mal dormidas... Penso em alguma surpresa da sorte que
me faculte a felicidade de aproximar-me de ti, com liberdade bastante para
oferecer-te o que tenho... É pouco, bem sei. Mas é o coração inteiro que deseja
restaurar-se para ver-te feliz.
Tenho imaginado uma vida nossa, essencialmente nossa, a distância deste
sítio, onde muitas recordações aflitivas me vergastam a alma... Levaríamos
conosco Blandina e teu pai, afastando-nos de tudo o que possa alterar o ritmo
de nossa ventura. Mas seria justo imaginar um plano tão arrojado sem ouvir-te?
O moço fitou-a com enternecimento, ansioso por verificar-lhe o estado
dalma, notando-lhe a ternura nos olhos marejados de lágrimas que não
chegavam a cair.
— Conhecemo-nos, há alguns dias — prosseguiu o moço romano,
sensibilizado -, entretanto, guardo a impressão de que somos velhos amigos...
Minha esposa e a primogênita, que se afinam imensamente uma com a outra,
demorar-se-ão largo tempo em Roma... Não desejo acusá-las de ingratidão,
mas tenho razões para supor que ambas não registrariam, por muito tempo, a
ausência de Blandina e a minha própria ausencia... Somos, em casa, duas
pessoas colocadas à margem... Tenho refletido, pois, na possibilidade de uma
renovação...
Não julgas possível a nossa felicidade em outra parte? Abandonaríamos as
Gálias e procuraríamos uma terra diferente, na Ásia ou na África...
Relanceando o olhar pelo arvoredo farto, continuou:
— Esta herdade, não obstante a beleza de que se reveste, é o túmulo das
mais belas esperanças de minha mocidade... Um sopro de morte aqui me
transformou o destino... Há momentos em que desejaria incendiar os bosques,
destruir as plantações, derrubar o palácio e dispersar os servos para arrancar
um novo mundo de minha própria solidão, todavia, quem, por mais poderoso,
fará realmente o que deseja?
Contemplou a filha adotiva do filósofo, com intraduzível esperança a fluirlhe
do olhar, e tomando-lhe, de leve, a destra, rogou:
- Que me dizes de tantas e tão amargurosas confidências?
Lívia, que a ruborização do rosto fizera mais singular e mais linda,
respondeu com tristeza e simplicidade:
— Taciano, meu pai costuma dizer que as almas capazes de tecerem a
perfeita ventura conjugal habitualmente se encontram tarde demais. Quando
não são surpreendidas pela morte que as separa em plena alegria, são detidas
por insolúveis compromissos que lhes inibem a aproximação...
— Mas meu casamento não é obstáculo intransponível — atalhou o moço,
algo perturbado —; Helena desvencilhar-se-ia de mim, como quem se livrasse
de um fardo.
A moça, contudo, embora serena, acentuou com amargura:
— O grilhão não pesa, entretanto, somente numa das conchas da balança.
Eu também sou casada...
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O interlocutor sentiu que uma onda de frio lhe gelava o coração, mas
permaneceu firme, à escuta.
— Quando meu pai se referiu aos dissabores que nos defrontaram em
Massília, reportava-se ao meu inquietante problema pessoal.
A moça fêz pequena pausa, dando a idéia de quem acordava a memória, e
prosseguiu:
— Há quase dois anos, houve em Massília uma festa ostentosa, em
homenagem ao patrício Aulo Sérgio Tuliano, de passagem pela cidade. Instado
por amigos, meu pai permitiu que eu me incumbisse de vários números
musicais na noite de maior regozijo público. Nessa ocasião, conheci Marcelo
Volusiano, um moço que, de imediato, se interessou por minha companhia e
que, em poucos meses, se fêz meu esposo. Meu pai sempre alegou a necessidade
de conhecer-lhe os antecedentes, antes de formular a sua aprovação ao
matrimônio, todavia, sentindo-se idoso e enfermo, procurou satisfazer aos
meus anseios de moça, porqüanto eu não alimentava qualquer dúvida quanto à
correção do rapaz que me despertara para as alegrias do amor. Ele
asseverava proceder de nobre família, com recursos suficientes para garantirse
em variados negócios e aparentava tanta prosperidade financeira que não
vacilei em aceitar como verdade pura as informações com que se nos fazia
conhecer. Marcelo, porém, logo após o matrimônio, mostrou-se irresponsável e
cruel. Desapareceram dele os modos aristocráticos do amigo de Aulo Sérgio.
Além de tirano bem posto, era um jogador impenitente do anfiteatro,
mergulhado em atividades escusas. A pricípio, meu pai e eu tudo fizemos por
subtrair-lhe o vício que o subjugava e, para alcançar esse fim, não hesitei em
trabalhar como harpista em festas pagas, acreditando cooperar com ele na
solução de débitos numerosos, contudo, cedo reconheci que ele me usava os
dotes artísticos para atrair relações importantes, junto das quais obtinha
vultosas aventuras financeiras, cuja extensão nunca pude conhecer.
A moça suspirou, magoada pelas dolorosas reminiscências, e prosseguiu:
— Se o problema estivesse limitado aos desgostos de ordem material,
provavelmente ainda nos achássemos em Massília, tentando o reajuste. Marcelo,
entretanto, apesar de minha dedicação afetiva, em seis meses de
convivência parecia entediado de meu carinho, e, apaixonando-se por Sublícia
Marema, inteligente poetisa e bailarina de renome, passou a viver em
companhia dela, sem abandonar a nossa casa. Tantos espetáculos
deprimentes presenciamos que meu pai deliberou a nossa transferência para
cá, buscando a nossa renovação...
— E qual é a tua atitude, à frente do patife que assim procedeu? — atalhou
Taciano, sob forte impulsividade.
— Como toda mulher — esclareceu Lívia, cuja profundez filosófica, aliada à
frescura juvenil, tornava admirável naquela hora —, sofri muito, a princípio,
mas, com o auxílio do Céu, o meu ciúme acabou em piedade. Julgo Marcelo
demasiadamente infeliz para condená-lo. Não creio possa ele desfrutar a
tranquilidade de uma vida digna.
Taciano fitou-a com admiração e pesar e considerou, afetuoso:
— Por que razão pensas desse modo? não é comum semelhante atitude
numa jovem que ainda não alcançou os vinte anos!... Acaso, não serás tão
mulher quanto as outras?
Lívia, porém, sorriu algo triste e observou:
— Não tive mãe que me quisesse. Devo a minha compreensão ao pai que
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me acolheu!
Desde cedo, habituei-me a acompanhá-lo nas digressões filosóficas e a
interpretar a vida, segundo as realidades que o mundo nos oferece. Na época
em que quase todas as meninas estão perturbadas pela ilusão, fui conduzida à
responsabilidade e ao trabalho. Em Massília, tudo nos custou caro ao esforço
pessoal e, por isso, aprendi que não atingiremos a paz sem desculpar os erros
alheios que, em outras circunstâncias, poderiam ser nossos.
— Não sentes, então, saudades do homem que amaste? não lhe
disputarias a posse?
— Porquê? — indagou a interlocutora, serena.
— As saudades que eu possa experimentar não devem impedir o Céu de
mostrar-me o melhor caminho. Bom seria se eu pudesse partilhar a felicidade
com meu esposo, entretanto, se esse convívio me constrangesse a cometer
um crime, em desacordo com a retidão de minha consciência, não será mais
justo o benefício da ausência? Quanto a disputar atenções e carinhos de
outrem, não creio seja o amor objeto de leilão, O afeto, a confiança e a ternura,
a meu ver, devem ser tão espontâneos quanto as águas cristalinas de um manancial.
— Não acreditas, porém, na sobrevivência da felicidade noutros moldes? —
E, baixando o tom de voz, que se fizera mais doce, o marido de Helena
perguntou: Não admites a nossa capacidade de construir novo ninho, em novo
campo de compreensão e ventura?
Lívia, extremamente enrubescida, lançou-lhe inesquecível olhar e
concordou:
— Sim, creio! Sinto em tua dedicação nobre e calma uma praia linda e
segura, capaz de proteger o barco de meu destino contra todos os vendavais.
Amo-te muito! Descobri esta verdade, logo que nos vimos pela primeira vez!
Compreendo, agora, que Marcelo me trouxe os encantamentos da menina, ao
passo que, em tua companhia, assinalo em mim os anseios da mulher... A
nenhuma glória feminina poderia eu aspirar mais alta que a de compartir de
teus sentimentos, entretanto, não mais nos pertencemos...
Anotando-lhe a última frase, marcada de desapontamento e amargura, o
filho de Varro interrompeu-lhe a palavra, considerando, impulsivo:
— Se me queres e se eu te quero tanto, porque nos prendermos aos que
nos desprezam? Renovaremos a própria sorte, seremos felizes, teu pai
entender-nos-á...
Lívia desatou o pranto de emotividade que lhe dominava o coração, e falou
em voz entrecortada:
— Possuis, ligada ao teu nome, a esposa que te premiou com duas
filhinhas...
— Minha esposa? — ponderou o interlocutor, inquieto — e se eu te
dissesse que ela não encontrou em mim o homem que esperava? e se eu te
afirmasse, com provas inequívocas, que ela se consagrou a outra espécie de
amor?
A moça suspirou, aflita, e comentou:
— Não duvido de teus informes, contudo, o tempo e o espírito de sacrifício
podem modificar a situação...
E, indicando a menina que brincava, distante, acrescentou com firmeza:
— Blandina é também um amor que confia em nós. Se adotássemos uma
conduta igual à daqueles que nos ferem, talvez lhe envenenássemos
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irremediavelmente o coração. De que nos valeria arrebatá-la aos braços
maternos? Estaria presa, em espírito, a estas árvores da sua primeira infância...
A separação lhe faria ver uma heroína inolvidável na mãezinha que
lançaríamos com o nosso gesto ao menosprezo, e a devoção que
desejariamos dela receber, pura e simples, provavelmente estaria transformada
em desconfiança e dor... Se algum dia deve provar o fel da verdade, que o
cálice de angústia lhe seja imposto por outras mãos...
Taciano fitou a pequena, de longe, e calou-se, de voz embargada pela
comoção.
— Estaremos juntos! — esclareceu a moça reanimando-o — o amor, acima
de tudo, é entendimento, carinho, comunhão, confiança, manifestação da alma
que pode perdurar sem qualquer compromisso de ordem material... Encontrarnos-
emos em Blandina, que será nosso ponto de referência afetiva, Os dias
passarão sobre nós como vagas de beleza e esperança e... quem sabe o
futuro? Talvez o tempo.
Antes, porém, que pudesse terminar a frase, a menina alcançou-os, com
belo sorriso, a oferecer-lhes soberbo ramo de gerânios encarnados.
O genitor refugiou-se no silêncio e a pequenina dominou a conversação,
contando graciosas aventuras.
Dai a instantes, o trio retomava o caminho de volta.
No átrio da modesta casa que passara a habitar, Basílio aguardava-os com
visíveis sinais de impaciência.
Em reduzidas palavras deu conta da preocupação que o afligia.
Marcelo aparecera, inesperadamente.
Lívia empalideceu e tentou, com delicadeza, evitar um encontro entre os dois
homens; todavia, Taciano, de semblante nublado, resolveu entrar e conhecê-lo,
de perto.
O rapaz, que se abeirava dos trinta anos, era alto, de compleição elegante,
mostrando formosa cabeleira a emoldurar-lhe os olhos móveis na fisionomia
enigmática.
Abraçou a esposa, com alegria, como se nada houvesse acontecido de
grave entre os dois, e saudou Taciano, efusivamente, chegando a desconcertálo.
Parecia até satisfeito em observar a mulher, em companhia de um amigo
novo, como quem se aliviava de um fardo na consciência.
Em minutos, relacionou o objetivo da viagem que o trazia.
Viera a Lião, acompanhando alguns cantores de renome que se
destinavam a grandes exibições artísticas.
Entretanto — acrescentava ele, talvez para prevenir indiretamente a
esposa —, não podia demorar-se.
Diversos companheiros aguardavam-lhe o regresso em Viena. Uma bela
festa em casa de Tito Fúlvio, abastado patrício de suas relações, compelia-o a
retorno imediato.
O pai de Blandina percebeu no recém-chegado um espírito inteiramente
diverso da família a que se afeiçoara.
Marcelo era turbulento, exibicionista, palrador. Dava a idéia de um menino
inteligente a brincar de viver. Não apresentava, no verbo fácil, qualquer frase
que denotasse madureza de raciocínio.
Trazia a mente apaixonada pelos assuntos do anfiteatro, do qual era
frequentador inveterado. Sabia o número de feras enclausuradas nas jaulas de
Massília, quantos gladiadores podiam ali brilhar na arena e quantas bailarinas
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viviam na cidade, dignas do aplauso público, mas ignorava o nome de quem
governava a próspera Gália Narbonense onde vivia, e desconhecia
completamente as suas indústrias e tradições.
Taciano, que o escutava, a princípio, com disfarçado rancor, depressa lhe
reconheceu a fatuidade e passou a examiná-lo com mais calma e menos
severidade.
No fundo, porém, sentia-se aborrecido. Aquele visitante inesperado era um
trambolho no caminho. Se pudesse, exilá-lo-ia no fim do mundo.
A idéia de liquidá-lo em alguma emboscada bem feita agitou-lhe o
pensamento, contudo, não nascera com a vocação de assassino e, por isso,
expulsou a tentação que se lhe insinuava na cabeça.
Não vacilaria, porém, na mobilização de todos os recursos para afastá-lo.
Enquanto Marcelo se detinha, loquaz, na descrição das próprias bravatas,
o filho de Varro refletia sobre a melhor maneira de empenhar amigos no
afastamento do intruso.
Absolutamente distanciado da conversação, imaginava como desterrar o
marido de Lívia para algum ponto remoto.
Não lhe suportaria a presença.
Removê-lo-ia a qualquer preço.
Foi quando o próprio Marcelo lhe ofereceu o ensejo desejado, exprimindo o
propósito de voltar a Roma.
Sentia-se asfixiado por dificuldades financeiras. Só a grande metrópole lhe
facultaria lucro fácil, à altura de sua expectativa.
Taciano surpreendeu a brecha que buscava. Mostrou radiante expressão
no rosto e esclareceu que podia apresentá-lo a Cláudio Lício, sobrinho do velho
Eustásio que a morte já havia levado, e que, em Roma, se fizera acatado na organização
e direção de jogos no circo. Crescera em Lião, de onde partira
demandando aventuras coroadas de êxito, e fizera-se benquisto de muitos
políticos que lhe não negariam cooperação e favor. Marcelo, decerto,
encontraria excelente colocação para os seus dotes intelectuais, orientando
artistas diversos.
Havia tanta segurança na palavra do novo amigo que o genro de Basílio,
entusiasmado, lhe aceitou a proposta sem hesitar.
Expressiva mensagem foi escrita.
O filho de Quinto Varro pedia ao companheiro de mocidade ocupasse o
recomendado em algum encargo rendoso e condigno.
Lida a carta, Marcelo prorrompeu em bombásticos agradecimentos e, sem
qualquer consideração para com a mulher e para com o sogro, decidiu a
viagem para Viena no mesmo dia. Prometeu tornar, em breve, a fim de
combinar com os familiares, quanto ao futuro. Referiu-se às virtudes da
companheira, como se devesse alimentar-lhe o carinho à custa de elogios e
reafirmou ao velho mil protestos de amizade e admiração.
E à feição de um pássaro inquieto, feliz por ver-se livre, despediu-se,
ruidosamente, descendo com outros amigos para a cidade próxima.
Começou, então, para a vila Vetúrio formoso período de harmonia e
restauração.
Três noites por semana, o palácio era abrilhantado com música primorosa
e conversação sadia. Enquanto Lívia e Blandina cantavam ao som de harpas e
alaúdes, Taciano e Basílio comentavam Hermes e Pitágoras, Vergílio e
Ulpiano, em preciosos torneios de inteligência.
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Semanas e semanas de felicidade corriam, céleres, quando Teódulo
regressou à herdade, trazendo notícias.
Helena dirigia ao esposo longa carta, comunicando-lhe a determinação de
permanecer em Roma, por alguns meses, não só para satisfazer ao genitor
doente, como também para solucionar o problema da filha. Galba, fatigado de
prazeres, parecia disposto a desposar Lucila. Era simples questão de tempo.
Taciano não prestou maior atenção ao assunto e passou a dispensar ao
preposto de Opilio glacial tratamento.
Teódulo percebeu-lhe a frieza e jurou vingar-se.
Astuto e malicioso, compreendeu que entre o marido de Helena e a filha de
Basílio existiam os mais entranhados laços de afeto e imaginou-lhes as
relações mais íntimas, segundo os pensamentos escuros de que se
alimentava.
Absteve-se de qualquer visita pessoal ao filósofo, mas, ciente de que o
velho e a jovem se ausentavam de casa, uma noite por semana, com destino
ignorado, acompanhou-os, sutilmente, certa feita, vindo a saber que ambos
eram cristãos, frequentando, discretamente, o culto detestado. Guardou
segredo e entrou em regime de grande reserva e não menor isolamento,
apenas comunicando a Taciano que trazia ordens de Vetúrio para viajar entre
Lião e Roma, enquanto Helena estivesse no domicílio paterno, tantas vezes
quantas se fizessem necessárias.
A vida prosseguia sem surpresa e sem saltos.
O filho de Varro, novamente feliz, não suspeitava que a dor lhe sitiava o
destino, com dureza implacável.
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Almas em sombra
Não longe das Termas de Trajano, em pleno coração de Roma antiga,
vamos encontrar soberba vila em festa.
A matrona Júlia Cêmbria recebe os amigos na intimidade.
O ar ambiente está embalsamado de capitoso aroma.
Exímias dançarinas, ao som de músicas envolventes, executam no centro
de caprichoso jardim bailados estranhos e eróticos que os convivas, ao longo
de tufos verdes e floridos, acompanham com lascívia e encantamento.
A anfitriã era viúva de famoso chefe militar que, morrendo nas campanhas
de Maximino, lhe havia legado muito dinheiro, muitos escravos e a vila
apalacetada, onde o esposo falecido tinha o prazer de cultivar plantas e flores
do Oriente, O recinto, por isso mesmo, obedecia ao mais fino bom gosto. Entre
largos canteiros bem traçados, sob a forma de duas crescentes», arbustos,
fontes e bancos marmóreos teciam quadros de régia beleza.
A viúva sem filhos parecia interessada em desforrar-se da Natureza que,
impiedosa, começava a encorrear-lhe o rosto, e lutava por conservar a
mocidade em prazeres bem pagos, rodeando-se de moços gozadores da vida,
talvez para consolidar nos outros a impressão de sua vitória permanente de
mulher inconformada, à frente da velhice.
Entre frases cochichadas e gargalhadas alegres, acendidas pelo vinho
abundante e claro que era servido nos entreatos dos variados números
artísticos, deparamos uma jovem de lindo porte, que em companhia de
algumas amigas participa do brilhante sarau.
É Lucila, que experimenta o anseio de liberdade, na floração dos seus
primeiros sonhos juvenis, intoxicada pela sede de aventuras na comunhão com
a sociedade romana do seu tempo. Sabe que a genitora lhe destina a mão de
mulher ao tio viciado que lhe não inspira amor, reconhece-se incapaz de fugir
às determinações do avô que lhe reclama o sacrifício feminino a fim de
preservar a própria fortuna e, em razão disso, desajuizada e fútil, entrega-se ao
desregramento, qual se pudesse fugir a si mesma.
Encontrara, na véspera, o insinuante Marcelo Volusiano, que, por se referir
às Gálias, lhe acordou, de imediato, a atenção. Desde o instante em que fôra
apresentada a ele por velha amiga no anfiteatro, despreocupara-se
inteiramente do que se passava na arena. Toda a sua atenção se concentrara
nele. E tão grande afinidade se estabeleceu entre ambos que a moça não
vacilou em favorecer-lhe o ingresso à festa de Júlia, mobilizando, para isso, as
próprias relações.
Marcelo, plenamente distraído dos laços que o prendiam à família distante,
rendia-se à tentação de novas aventuras.
A voz adocicada e os gestos voluptuosos de Lucila, a palavra sonora em
que predominava o sotaque dos romanos habituados ao mundo gaulês, lhe
haviam cativado o coração.
Encantado, conseguira acesso à vila de Cêmbria e, ao lado da neta de
Vetúrio, num banco cercado de romãzeiras da Síria, falava-lhe aos ouvidos
inebriados:
— Realmente viajei através das mais expressivas paisagens do Ródano,
entretanto, estava longe de adivinhar que encontraria aqui a mais bela flor da
juventude latina. Doce Lucila, como arrojar-me a teus pés e adorar-te? com que
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palavras exprimir-te a emoção e o contentamento que me possuem?
Enquanto a moça, embriagada de júbilo, se lhe rendia aos carinhos,
fitando-o, languidamente, o arrojado conquistador continuava com fascinante
inflexão de ternura:
— Que importa nos aproximemos, mais intimamente, um do outro, se nos
sentimos, desde ontem, envolvidos na mesma onda de confiança e carinho? A
vida é apenas o minuto de felicidade que respiramos entre as sombras do
passado e as sombras do futuro... Tudo é sempre o «agora» maravilhoso!...
Minha diva celeste, não ensurdeças ao milagroso apelo do amor!
Ante os olhos súplices do rapaz, a jovem balbuciou, entre a alegria e a
inquietação:
— Compreendo-te os anseios que são iguais aos que povoam minhalma...
Trazes para mim alguma coisa que tenho esperado ansiosamente! No entanto,
Marcelo, não será justo consultar o tempo?
— Ah! o velho Cronos! — suspirou o moço, contrariado — minha paixão
jamais saberia ouvi-lo!... Não te reportarias a ele, se houvesses descoberto em
mim o deslumbramento com que a tua presença me envolve...
— Não te expresses assim! Recebo-te na qualidade de herói do meu
primeiro amor, contudo, peço-te!... Tenhamos calma! Não nos perturbemos!
Recorramos à inspiração dos deuses para que nos orientem os destinos!...
— Os deuses? — falou o aventureiro, depois de sorver nova taça de vinho
— os deuses são os benfeitores naturais de nossa ventura... Apolo, o
renovador da Natureza, abençoar-nos-á os sonhos! Haverá maior alegria para
o olhar de Vênus que a de contemplar uma ninfa como tu, a rivalizá-la em
beleza? Ama-me, divina! Aplaca a minha sede de afeto! Tenho peregrinado
muito tempo, à procura de teu olhar, que me fala das estrelas distantes... Não
cerres a porta da ternura que te enriquece o coração ao viajor que chega,
fatigado, de tão longe!...
Enlaçou-a com venenosa carícia e Lucila estremeceu com o beijo que lhe
buscava a boca inquieta e risonha.
Na noite seguinte e nas noites subsequentes, passaram aos
entendimentos ocultos, num ângulo isolado dos jardins de Vetúrio.
Decorridos quatro meses, em que a jovem se mostrava profundamente
modificada, Anacleta, por solicitação de Helena, pôs-se em campo, descobrindo
os encontros noturnos e identificando o rapaz.
Tomou informações acerca de Marcelo, vindo a saber que era ele
afortunado jogador do circo, particular protegido de Cláudio Lício.
Em nome da senhora, de cujo lar fôra sempre a governanta fiel, tentou
avistar-se com o amigo lionês, para esclarecimentos entretanto, Cláudio
achava-se ausente, acompanhando familiares em excursão pela Espanha.
Alarmada, Helena certa noite esperou a filha, em seus aposentos
particulares, e, registrando-lhe a chegada, horas mortas, interpelou-a, severa,
exprobrando-lhe o procedimento incompreensível
Estava prometida ao brio de Galba, conhecia as responsabilidades que lhe
competiam no círculo familiar, não ignorava o objetivo daquela permanência
longa em Roma e como descera ao nível escuro da mulher desclassificada?
como se confiava daquele modo a um estranho, cuja procedência poderia ser a
taverna ou o cárcere?
A genitora esperava que a moça, ferida no caráter feminil, se justificasse
revoltada, ajustando-se à emenda precisa, mas, com espanto, notou que a filha
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cambaleava, rojando-se-lhe aos pés.
Anacleta, atraída pela conversação em voz alta, penetrou igualmente a
câmara, no evidente intuito de auxiliar.
— Mãe! querida mãe! — soluçou a jovem, consternada — socorre-me!
estou doente... não me abandones!... Marcelo e eu nos amamos, pertencemonos
um ao outro... não me condenes a um casamento que não posso tolerar!
Os deuses sabem que não posso...
Helena e a velha amiga trocaram significativo olhar, como a se recordarem
da mocidade distante.
— Não podes? — gritou a genitora, indignada. — Não permitirei qualquer
interferência de tua vontade caprichosa nos planos de meu pai. Mandarei um
emissário a Campânia para que teu tio retorne a casa, imediatamente.
Realizaremos as núpcias e explicarei a Taciano que o teu consórcio deveria ser
efetuado, à pressa, aqui mesmo !...
A moça abraçou-lhe a cintura, num gesto comovente, e segredou,
angustiada:
— Não me acuses, se errei!... Perdoa-me por amor aos nossos
antepassados! Mas, não estou mais sozinha... Serei mãe dentro em breve...
— Infeliz! bradou a filha de Vetúrio, qual se estivesse possuída por um
demônio de inconsciência e desespero.
E quando alçava o braço para espancar a jovem, Anacleta, aflita e
conciliadora, deteve-lhe o gesto, exclamando:
— Acalma-te, querida! Somos mulheres e devemos compreender...
Fixou-a, com austeridade e doçura, como a impor-lhe benevolência para
com a menina, e continuou:
— Em quantos lares romanos estão surgindo problemas iguais a este?
Seremos as únicas pessoas a sofrer a presente infelicidade? Não acredito possamos
solucionar qualquer questão grave sem o concurso da paz.
Helena abandonou-se aos braços da governanta, clamando em lágrimas
convulsivas:
— Que será de nós? Sinto-me envergonhada, vencida... Tanto sacrifício
para conduzir uma filha, tanta luta para sustentar a maternidade!... Tanto
esforço para comprar tão escuro resultado!... Vingar-me-ei sem compaixão!...
Antes, porém, que a palavra dela se fizesse mais áspera, Anacleta rogou,
afetuosa:
— Helena, controla-te.
E, alterando o tom de voz, como a pedir-lhe rememorasse o próprio
passado, aconselhou:
— Quem de nós não terá tido perigosos desvios na vida? calemo-nos, por
agora. Não provoques a presença de teu pai, encanecido e doente, neste
quarto! Frases duras não corrigem faltas cometidas. Se desejas amparar tua
filha, não fujas à paciência. Ninguém auxilia por intermédio da irritação. Se não
podes ajudar hoje a nossa Lucila, procura o silêncio, conversa contigo mesma
e aguardemos a passagem das horas. É possível que o amanhã nos visite com
o socorro desejado...
A senhora, em pranto, aceitou o conselho e retirou-se, moralmente
esmagada, enquanto a velha servidora acomodava a moça abatida, no leito,
mantendo-se junto dela, com devoção e bondade.
Anacleta parecia adivinhar.
No dia seguinte, pela manhã, Teódulo chegava à metrópole, procedente de
123
Lião.
Helena experimentou imenso alívio.
Encontrara o confidente capaz de prestar-lhe apoio decidido.
Sem perda de tempo, mantiveram ambos, a sós, demorado colóquio num
compartimento isolado. Mas, depois de chorar, em excesso, colocando o amigo
no conhecimento da verdadeira situação em casa, a matrona, assombrada,
ouviu dele a descrição do que ocorria na província.
O agente de Vetúrio, animando quanto possível a sua versão pessoal dos
fatos, informou-a de que não alimentava qualquer dúvida sobre a infidelidade
conjugal de Taciano, asseverando que ele e Lívia se amavam, perdidamente.
Pintou a vida dominada por essa nova mulher que lhe conquistara, não
somente o coração do marido, mas igualmente o da filha, porque Blandina vivia
no lar como se lhe fôra pupila subserviente. Contou que o velho filósofo devia
ser algum conspirador disfarçado, explorando os dotes da moça, porqüanto ele,
Teódulo, estava convicto de que o inteligente ancião recebia largas somas da
bolsa de Taciano, a fim de silenciar e concordar com a deplorável situação,
acentuando ainda que pai e filha não passavam de embusteiros da seita dos
nazarenos.
A interlocutora anotou as informações com a expressão de uma leoa ferida.
Ergueu os braços para o alto, invocando a maldição dos deuses sobre
todos os que lhe perturbavam a tranqüilidade doméstica, mas, reajustada, de
algum modo, pelos carinhos que o amigo lhe dispensava, suplicou ao
intendente de Opílio lhe orientasse as decisões.
— Primeiramente — considerou ele, sagaz faz-se necessária uma
completa inspeção no sedutor de Lucila. Será casado? Possuirá bens apreciáveis?
Estará em condições de concorrer com o nosso Galba, no páreo do
matrimônio? Sentindo a delicadeza do assunto, proponho-me observá-lo. Começarei
a tarefa, ainda hoje. Tenho amigos no anfiteatro. Achá-lo em pessoa
não será tão difícil. E, encontrando-o, tentarei conquistar-lhe a confiança,
porque, depois da confiança, o vinho fará o resto... Naturalmente, biografar-seà,
como se faz necessário. Veremos, então, a conveniência de lhe aceitarmos
a aliança...
— Mas, e se ele for um desclassificado como creio? se for um celerado na
capa de um homem distinto?
— Nessa hipótese, que desejarias fôsse feito? - indagou Teódulo, com
largo sorriso nos lábios.
Helena revirou nas órbitas os belos olhos felinos e respondeu, franca:
— Minha desforra é a destruição. A morte é o remédio das situações
irremediáveis. Não hesitarei. Tenho bastante veneno para limpar o caminho...
Ambos passaram ao exame de vários pormenores do sombrio plano que
lhes nascera da conversação e, com sinistras perspectivas, o amigo
incondicional da matrona visitou o anfiteatro, a pretexto de assistir aos
exercícios da escola de gladiadores.
Não encontrou dificuldade para rever companheiros antigos, dentre os
quais Sétimo Sabino, velho jogador, que, levado com jeito, afirmou conhecer
Marcelo e prometeu apresentá-lo mais tarde, naquele mesmo dia.
O moço estaria num sarau, em casa de Aprigia, dançarina famígera, que
sabia congregar muitos homens de uma só vez, em torno da própria beleza.
Com efeito, à noite, Sabino e Teódulo conversavam, no salão iluminado da
residência da singular mulher que se instalara ao pé do Tibre, quando
124
Volusiano entrou, de semblante carregado.
Parecia triste e inquieto.
Sétimo, interessado em servir ao companheiro, não perdeu tempo.
Atraindo-o com sorriso acolhedor, ofereceu-lhe um lugar à mesa.
Teódulo e o recém-chegado entraram em animada palestra sobre
gladiadores e arenas e, verificando-lhes a intimidade que se fizera espontânea,
Sabino retirou-se, justamente quando as primeiras taças começaram a
aparecer, frescas e abundantes.
A sós com o rapaz, o enviado de Helena, adivinhando-lhe a mágoa, depois
de bebericarem por alguns minutos, aparentou maior avidez pelo vinho e
exclamou:
Que seria do mundo se os deuses não nos dessem o que beber?
Modificar nossa alma num copo, eis o segredo da felicidade! Sorvamos o vinho
para que o vinho nos absorva!
Marcelo achou graça no rifão e mostrou forçado sorriso, acentuando:
— É a pura realidade. Numa noite negra como esta, beber é fugir, alhearse,
esquecer...
Mergulhou os lábios na taça transbordante e, ao ver-lhe os olhos
esfogueados, Teódulo aventurou uma sondagem sutil:
— Procuro também desaparecer de mim próprio... Nada existe de mais
doloroso que um amor infeliz...
— Um amor infeliz! — considerou o interlocutor apanhado de surpresa —
não pode ser mais infortunado que o meu... Vejo-me em escuro labirinto, a
debater-me só, plenamente sozinho...
— Se algo posso fazer, dispõe de mim.
E, disfarçando a ansiedade que o dominava, o intendente de Vetúnio
indagou:
— Moras em Roma, há muito tempo?
Longe de sentir-se examinado, Volusiano, talvez no incontido desejo de
associar alguém aos problemas que o torturavam, desabafou:
— Sou romano, contudo, estive distanciado da capital, muito tempo. Cruzei
o Mediterrâneo em várias direções e cheguei da Gália Narbonense há meses.
Vinha no propósito de imprimir novo rumo à existência, entretanto, os imortais
não me permitiram a transformação a que aspirava...
Marcelo tragou mais um gole e prosseguiu:
— Uma beldade irresistível fascinou-me. Não tive forças e amei-a,
freneticamente... Minha diva, porém, mora tão alto, tão alto, que, ainda agora,
por mais a esperasse, não conseguiu descer para aquecer-me os braços frios...
— Trata-se, então, de uma Vênus assim tão rara?
— Sim — suspirou o moço, caminhando para a embriaguez —, é uma
beleza que me afoga a consciência e me consome o coração.
— Daqui mesmo?
— Oh! quem poderá conhecer a origem exata de uma deusa? é uma
pomba tímida. Fala pouco de si mesma, provavelmente com receio de que nos
destruam a felicidade. Sei apenas que reside em Lião, encontrando-se agora
em prolongado repouso, junto do avô.
— Ah! — considerou Teódulo, manhoso — justamente de Lião? Moro lá
também, achando-me na cidade a serviço...
Volusiano mostrou algum sobressalto no olhar em que ainda fulguravam
réstias de lucidez, e falou, restringindo a espontaneidade:
125
— Quanta coincidência! por lá me demorei algumas horas, antes do meu
regresso a Roma.
E como poderia estar na presença de alguém com a possibilidade de
conhecer-lhe os passos na retaguarda, experimentou o desejo de preparar a
própria defesa para qualquer eventualidade e comentou:
— Imagina que a má sorte é uma asa negra sobre os meus dias. Era noivo
em Massília de uma jovem que subiu pelo Ródano acima, instalando-se em
Lião, com, o velho pai. Quando a saudade me apertou o coração, dirigi-me ao
encontro dela, mas, com assombro, fui descobri-la enleada em compromissos
novos. Um velhaco de nome Taciano dominou-a completamente.
Teódulo, que ignorava a experiência conjugal de Lívia, tomou as mentiras
de Marcelo por verdades e, com a volúpia de um caçador diante da presa,
disse num tom de admiração:
— Taciano? conheço-o muito. E pelo que dizes julgo identificar tua noiva
gaulesa na formosa Lívia que presentemente lhe distrai os ócios.
Sorriu com o aspecto de um amigo carinhoso e ajuntou:
— Pequeno mundo é o nosso! Em qualquer parte, vivemos agarrados uns
aos outros.
O interlocutor, espantado, quis recuar na conversação, mas temendo as
consequências de uma fuga inoportuna, confirmou, desapontado:
— É ele mesmo. Conheces, então, a espécie de mulher a quem devotei
minha máxima confiança?
Superficialmente. Apenas observei o par, em excursões e
entendimentos infindáveis, ao passar pela porta do velho afinador.
Reconhecendo-se à frente de valiosa oportunidade para indagações,
Teódulo inquiriu, de chofre:
— E aquele estranho filósofo, quase teu sogro? será grego, egípcio,
romano ?...
— Sei lá! — respondeu o rapaz, mantendo-se em guarda — sei apenas
que é um antigo liberto da casa de Jubélio Carpo, com quem permanece ainda
empenhado em larga dívida. Certo dia, enfadou-me com uma autobiografia
desinteressante e soporífica, da qual somente conservei esse pormenor.
Notando que Marcelo começava a ensimesmar-se, o companheiro baixou a
pressão do inquérito e acentuou:
— Jovem amigo, esqueçamos o passado! Bebamos ao presente!... Se
nossas vidas cruzaram no dia de ontem, quem sabe poderei auxiliar-te, de
algum modo, no dia de hoje?
O moço pareceu diminuir a desconfiança que passara a assediá-lo e
suspirou:
- Quem me dera! Tive o infortúnio de apaixonar-me pela neta do ricaço
Vetúrio...
— Opílio Vetúrio? — atalhou o interlocutor, fingindo-se perplexo.
— Sim, sim...
Aparentando entusiástica alegria, Teódulo acentuou:
— Conheço-o também. Referes-te, naturalmente, à encantadora Lucila.
Maravilhado com o imprevisto, Marcelo desabafou em longa confidência,
explicando que se habituara a encontrar diàriamente a jovem, num pequeno
caramanchão do jardim, entretanto, desconhecendo o motivo, Lucila não
descera aos colóquios do costume, naquela noite.
Achava-se, por isso, desalentado, aflito.
126
Teódulo dirigiu-lhe frases reconfortantes e aconselhou-o a insistir na noite
seguinte.
Não era ele amigo do velho Vetúrio, desde a infância? E demonstrando
desfrutar a intimidade de Helena, prontificou-se a orientar alguma combinação
suscetível de beneficiá-lo.
Prometeu entender-se, no dia imediato, com a família da menina e
recomendou a Marcelo aguardasse no jardim, no horário de sempre, onde
estaria em pessoa para dar-lhe as boas novas.
Volusiano não cabia em si de júbilo.
Comovido, apertou as mãos do protetor, com efusiva satisfação, e
contemplou-o, enlevado, qual se estivesse diante de um semideus.
Ambos, contentes, se abeiraram de algumas mulheres alegres, admirandolhes
os bailados exóticos.
Em seguida, despediram-se com cristalinas gargalhadas de velhos amigos.
De manhãzinha, Teódulo procurou Helena para informações.
A senhora escutou-lhe o relatório verbal, entre curiosa e indignada.
Ao término da minuciosa elucidação, falou enraivecida:
— Com que então era noivo da mulher que me invade a casa!... Triste par
de criminosos natos! Ela me furta o esposo, ele me perverte a filha. Ainda bem
que estou viva e sã para impedir vítimas novas!...
Esboçou irônico sorriso na máscara fisionômica e perguntou ao
companheiro:
— Que sugeres?
— Helena, ontem mesmo o assunto poderia ter sido liquidado.
Atravessamos juntos a corrente do Tibre. Ele, desorientado pela embriaguez,
poderia ter caído nas águas, dormindo para sempre. Ninguém daria por isso. É
um biltre, que não ajuda a ninguém. Todas as informações colhidas no anfiteatro
coincidem quanto a ele. É vagabundo, preguiçoso e ladrão no jogo fácil.
Ninguém sabe porque teria merecido o interesse de Cláudio Lício. Sem nome,
sem dinheiro, sem procedência, de que modo concorreria com o nosso Galba
num casamento de tal monta? Não desejava, porém, assumir qualquer
responsabilidade sem ouvir-te. Procurei encorajar-lhe a vinda hoje para
qualquer decisão. Naturalmente, agirei, segundo a tua vontade.
A senhora pensou, pensou, e, após longa pausa, considerou, resoluta:
— Fizeste bem. Regozija-me a segurança de tua fidelidade. Nasceu-me
agora no cérebro um plano eficaz, em cuja execução Taciano será chamado a
contas, com a eliminação de nossos inimigos. Um velho sórdido quanto esse
Basílio de que me dás notícia não devia reclamar-nos tanta consideração, mas,
para avançarmos sem aborrecimentos, procuraremos a família de Carpo, de
modo a conhecer-lhe a verdadeira situação. Antes de mais nada, porém, é
indispensável atingir o objetivo mais próximo. Volusiano morrerá hoje mesmo,
no caramanchão. Tenho os recursos adequados para a taça, com que poderás
cumprimentá-lo à chegada.
— E a menina? — indagou Teódulo, impressionado com a audácia do
projeto.
— Ora, ora — esclareceu a matrona, sem rebuços —, o carro não escolhe
o passageiro. Lucila, por enquanto, não passa de uma boneca ingênua.
Olvidará a loucura praticada e aceitará a realidade, abençoando-nos, mais
tarde, a interferência. O casamento, acima de tudo, é um negócio. Não admito
venha ela preferir um vagabundo a um cavalheiro da estirpe de meu irmão.
127
Casei-me em obediência a meu pai. Agora, creio haver chegado o instante em
que devo ser obedecida.
Teódulo silenciou.
Seria inútil argumentar com aquela vontade férrea.
Enquanto Anacleta auxiliava a jovem enferma, Helena e o amigo
atravessaram o dia refletindo no acontecimento traçado para a noite.
Marcelo não faltou à palavra.
Na hora justa, elegante e bem posto, alcançou o jardim, encontrando o
suposto benfeitor da véspera a esperá-lo no isolado recinto verde, onde ele e
Lucila costumavam sonhar.
Abraçou-o Teódulo, imperturbável.
— Trago o coração pulando no peito — disse o rapaz, tremendo de
ansiedade —; acaso, os deuses me favorecem?
— Como não? — respondeu, cordial, o intendente de Opilio — os imortais
nunca desprezam a juventude...
— E Lucila? — atalhou o recém-chegado, impaciente.
— Ela e a mãezinha virão ter conosco. O avô deseja que o assunto do
casamento seja carinhosamente examinado. Ninguém se oporá, desde que os
pombinhos se entendam e sejam felizes.
Marcelo esfregou as mãos, contente, e comentou, espontâneo:
— Oh! a glória enfim!... O amor vitorioso uma herança polpuda!...
— Sim, realmente — afirmou o amigo, com indefinível inflexão de voz —,
receberás a herança que, naturalmente, será justo esperares da vida.
O moço fitou as janelas iluminadas do casarão magnífico e, voltando-se
para o interlocutor, exclamou, encantado:
— Oh! como passa o tempo devagar!... Teódulo, serás recompensado.
Dar-te-ei bons cavalos e bolsa farta! conta comigo. Sou o homem mais ditoso
da Terra!...
Enlaçado por Marcelo, que transbordava alegria, o companheiro
concordou, muito calmo:
— Sim, graças aos deuses, vejo-te no lugar que te compete.
Solicitou ao rapaz aguardasse alguns instantes e demandou o interior
doméstico, alegando a necessidade de comunicar-se com as senhoras.
Decorridos alguns minutos, Teódulo reapareceu com uma salva de prata,
em que duas taças de primorosa beleza ladeavam gracioso recipiente de vinho,
exclamando para Volusiano:
— Celebremos nosso triunfo! Mãe e filha não tardam. Em poucos
momentos, as tochas brilharão.
O liquido espumou, convidativo, e o rapaz aceitou a taça que Teódulo lhe
oferecia.
— Por Dioniso! o protetor do vinho, da Natureza e da felicidade! — saudou
o aventureiro de Massília, embriagado de esperança.
— Por Dioniso! — repetiu o companheiro sem pestanejar.
Marcelo sorveu a bebida até à última gota, contudo, quando tentou repor o
copo no lugar primitivo, sentiu que um fogo indefinível lhe queimava a
garganta. Quis gritar, mas não conseguiu. Por alguns instantes, guardou a
impressão de que a sua cabeça rodopiava inexplicavelmente sobre os ombros.
Não mais se agüentou nas pernas e caiu desamparado no florido piso de
mármore, ferindo a nuca.
Teódulo inclinou-se, auxiliando-o a situar-se em decúbito dorsal.
128
Rouquenhos gemidos escapavam-lhe do peito.
Cravou no envenenador os olhos injetados, a fuzilarem de ódio e amargura,
em meio das sombras, e, tentando expulsar a baba sanguinolenta que lhe
escorria da boca, indagou em voz sumida:
— Porque me matas... covarde?...
— Esperavas a proteção dos deuses — replicou Teódulo, cínico —, e a
morte é a herança que os imortais reservam aos homens de tua laia.
— Malditos!... malditos!...
Foram essas as suas derradeiras palavras, porque, a breve tempo,
inteiriçaram-se-lhe os membros e cadaverizou-se-lhe o semblante numa triste
carantonha.
O assassino afastou-se, ligeiro, ao encontro de alguém que o observava,
por trás de frondosa tília.
Era Helena, que sorriu satisfeita à informação de que tudo fôra consumado.
Acompanhou o amigo, até ao minúsculo pavilhão que as trepadeiras
abafavam, e, à claridade mortiça de uma tocha, contemplou o cadáver ainda
quente.
— Era um belo homem! — comentou, insensível — poderia ter sido amado
e feliz se soubesse conservar o pé no degrau em que nasceu.
Permutou inolvidável olhar com o agente de suas decisões, qual se
estivessem selando, sem palavras, mais um escuro compromisso moral, e
afastou-se.
Quando a noite se fêz mais avançada, o próprio Teódulo, com o traje
característico dos escravos da casa de Vetúrio, abandonou o jardim conduzindo
um fardo, em grande carrinho de mão, comumente utilizado em serviços de
higiene.
Afastou-se, cauteloso, evitando o contacto com os transeuntes
retardatários, e atravessou, aparentemente tranquilo, vasta extensão da via
pública, até alcançar a margem do rio.
As brisas que sopravam do Tibre balsamizaram-lhe o cérebro atormentado.
Aí descansou, preocupado e cismático.
A Lua minguada parecia uma lanterna que se imobilizara no céu, a fim de
espreitar-lhe a consciência culpada...
Refletiu maduramente, fitando, acabrunhado, o pequeno acervo de carne
fria a que Volusiano se reduzira...
Os mistérios da vida e da morte fustigaram-lhe o espírito. Terminaria a
existência no túmulo? Horas antes, vira Marcelo deslumbrado pela alegria de
viver. Aquelas mãos, porém, que ele observara nervosas e quentes, estavam
agora geladas e inertes. A boca palradora quedara-se hirta. Algumas gotas de
veneno conseguiriam eliminar um homem para sempre?
Dolorosa inquietação aflorou-lhe nalma.
Haveria justiça no aniquilamento do próximo, sem maior investigação?
Estariam Helena e ele em condições de reprovar alguém?
Buscava o remorso corroer-lhe o pensamento, contudo, opôs-lhe
resistência.
Procurando fugir de si mesmo, caminhou para o Tibre, centralizou a
atenção no corpo das águas móveis e durante largos minutos esperou uma
oportunidade para desfazer-se da carga.
Quando imensa mole de nuvens cobriu a Lua empobrecida, adensando as
sombras em torno, ergueu-se, lesto, e, descobrindo o cadáver, arrojou-o à
129
corrente líquida.
Em seguida, mais aliviado, tomou o caminho de volta a casa.
No dia imediato, a vítima foi encontrada. Todavia, no anfiteatro, em cujos
bastidores deixara numerosos amigos, quem não se recordava de que Marcelo
vivia dominado, entre o vinho e a aventura? A morte dele, por isso, foi
interpretada por acidente sem maior importância, mesmo porque os despojos
foram recolhidos a reduzida distância da casa de Aprígia, de cuja mocidade e
atrativos se fizera fervoroso admirador.
A notícia espalhou-se, rápida, não tardando a penetrar o domicílio de
Vetúrio, onde a jovem Lucila foi tomada de intraduzível angústia.
Helena, que contava com os efeitos do acontecimento, isolou-a num quarto
particular, onde a moça, aflita e desarvorada, se rendeu a deplorável
depressão orgânica.
Por três dias, amparada pela genitora e por Anacleta, demorou-se em
absoluta inconsciência, abeirando-se da morte.
Pouco a pouco, no entanto, emergiu da prostração.
O vigor juvenil superara o abatimento íntimo.
Embora triste e desencantada, Lucila tornou a alimentar-se, recuperando
as cores de saúde que lhe aformoseavam o rosto.
E, percebendo-lhe as melhoras positivas, a filha de Vetúrio pôs-se de novo
em campo, na execução gradual do plano que lhe obscurecia a desalmada
cabeça.
Pretextando a necessidade de atender a diversas solicitações de amigos
gauleses, comunicou a Opílio a deliberação de realizar algumas visitas,
pedindo-lhe informações sobre a família de Jubélio Carpo.
O velho mostrou-se desiludido.
Esclareceu tratar-se de antigo proprietário rural, cuja casa se erguia, sólida;
havia muitos anos, na Via Pinciana.
Conhecera Jubélio na juventude, mas perdera-o de vista. Ignorava-lhe a
sorte e acreditava que a filha devia desistir de semelhante procura.
Helena, porém, era demasiado decidida para desanimar. E tomando o
carro, em companhia de Teódulo, buscou a residência, segundo a indicação.
Acolhidos atenciosamente, os visitantes foram conduzidos por um rapaz
imberbe a enorme salão, onde o chefe da família lhes ofereceu agradável
recepção.
O administrador de Vetúrio, com a palavra, expôs a finalidade que os
levava até ali. Reportou-se à magnanimidade de Jubélio, que se transformara
em benfeitor de um amigo, entremeando a apresentação com perguntas
respeitosas.
O anfitrião, que exibia o rosto rubicundo de uni homem amadurecido no
uso e no abuso do vinho, ouviu, amàvelmente, e explicou:
Devo dizer-lhes, antes de tudo, que meus pais faleceram, faz mais de
dez anos. Sou Saturnino, o primogênito, e atual responsável pelos negócios da
família.
Diante de uma ligeira observação de Teódulo, exalçando a bondade dos
genitores, falou, sarcástico:
— Meus pais realmente foram campeões da alforria indébita. Se fôssem
chamados a governar, teriam empobrecido o Império Romano. Aliás, várias
vezes foram acusados de nazarenos, porque a benevolência neles era
qualquer coisa semelhante à loucura.
130
Os recém-chegados compreenderam, de pronto, com que espécie de
comerciante iriam entrar em contacto.
O empregado de Opílio aventurou uma pergunta sobre o velho afinador de
Lião, ao que Saturnino ajuntou, apressado:
— Dos assentamentos em nosso poder, sei que Basílio, escravo de nossa
casa, foi afastado das obrigações habituais, sob compromisso, como alguns
outros servidores cujo paradeiro desconhecemos.
Estampou enigmático sorriso e acrescentou:
— Nossos interesses têm sido vilmente explorados. Há mais de dez anos
venho procurando corrigir grandes erros e sustar clamorosas usurpações.
Imprimindo imensa doçura na voz, Helena ponderou, muito calma:
— Reconheço que não teremos qualquer dificuldade para um bom
entendimento.
Acontece que Basílio, hoje velhinho, é nosso valioso cooperador na Gália
Lugdunense. Tamanhos serviços devemos a ele e tanto se aflige o nosso
admirável colaborador com os débitos do passado, que prometemos
providenciar a transferência da dívida para nós outros.
Os olhos de Saturnino iluminaram-se, de súbito.
Com inequívocos sinais de ambição e alegria, respondeu, entusiasmado:
- Por Júpiter! ainda existe honestidade na Terra! É a primeira vez que
encontro um devedor preocupado em auxiliar-nos. Não oporemos qualquer
embargo à transação. Basílio será definitivamente liberado.
Rogou licença para afastar-se alguns instantes e, logo após, trouxe consigo
a documentação existente.
Os visitantes não regatearam.
Saturnino ajuntou à importância legal significativa quantia de juros, e
Teódulo, a um sinal da companheira, pagou todo o montante, sem pestanejar.
Na posse de elementos comprobatórios do resgate, os dois se retiraram e,
em caminho, Helena dirigiu-se ao companheiro, explicando:
— Agora, temos o velho patife em nossas mãos. Ele e a filha não nos
escaparão. Meu plano está progredindo regularmente. Avancemos para os
novos fatos. Combinarei com meu pai o teu regresso imediato à colônia. Serás
o emissário de uma carta minha a Taciano, implorando-lhe a vinda urgente a
Roma, em companhia de Blandina. Tomarei por pretexto a enfermidade de
Lucila, que pintarás para a imaginação dele como estando em processo de
morte gradativa. Estou convencida de que meu esposo atenderá. Calcularemos
o tempo preciso para voltarmos a Lião, antes que ele possa cruzar as águas.
Aportando aqui, não mais nos encontrará, de vez que instruirei meu pai a fim
de justificar o nosso retorno precipitado, a conselho médico, numa tentativa
suprema de salvar a doente. Achar-nos-emos, assim, em Lião, suficientemente
desembaraçados para o trabalho punitivo. Conseguirei algumas cartas
importantes para incentivar a perseguição aos nazarenos e poderemos
apresentar o afinador como escravo fugido e revolucionário perigoso.
Agitaremos as autoridades governamentais. Com a documentação que
possuímos, o filósofo e a filha estão naturalmente liquidados.
Meditou, cabisbaixa, por alguns momentos, e concluiu:
— Assim, quando Taciano e Blandina estiverem de regresso a casa, serão
surpreendidos pelo serviço já terminado.
O amigo, espantado, concordou, presto:
— Efetivamente, o projeto está perfeito.
131
Helena silenciara.
Teódulo deitou-lhe os olhos assombrados, sem saber se fôra invadido pela
admiração ou pelo medo.
A breves minutos, o carro estacou ante os jardins de Vetúrio.
Anoitecia...
O crepúsculo tisnava-se de espessa neblina, semelhante ao nevoeiro moral
que envolvia aquelas almas em sombra.
132
4
Sacrifício
Em Lião, mantinha-se a paz inalterável.
A ausência de Helena perdurava, por mais de doze meses, todavia,
Taciano, com surpresa para ele próprio, sentia-se bem disposto, feliz.
Acontecimentos expressivos haviam modificado a face do Império.
Décio morrera e o cetro imperial fôra empunhado por Galo, que passou a
governar o mundo romano com deploráveis espetáculos de inconsciência e
devassidão. Orientadores e magistrados, guerreiros e políticos pareciam
dominados pela decadência moral, a estender-se, arrasadora.
Terrível epidemia começara a lavrar em todas as províncias.
A peste surgira numa festa em Neocesareia e por toda a parte clamava-se
que a doença maligna era fruto da feitiçaria cristã.
Sacerdotes das divindades olímpicas, valendo-se do ensejo, procuravam
firmar a superstição, espalhando a notícia de que os deuses flagelavam o povo,
combatendo a mistificação nazarena, a alastrar-se, invariável.
Em razão disso, as preces coletivas eram alimentadas nos santuários, dia e
noite.
Templos numerosos descerravam-se à caridade, acolhendo os enfermos e
os agonizantes.
Sacerdotes de Júpiter, de Cíbele e de Apolo reuniam-se em orações,
implorando a assistência e o socorro de Esculápio, em cujos altares os galos e
as serpentes se multiplicavam para os sacrifícios votivos.
Contudo, ao lado da unificação dos cultos e dos crentes, em torno do deus
da Medicina, o ódio ao Cristianismo recrudescera.
Edifícios piedosos voltavam a sofrer lapidações e incêndios. Os seguidores
de Jesus, com mais rigor, eram apedrejados, presos, banidos ou exterminados
sem compaixão.
Taciano, que jamais se modificara espiritualmente, embora emudecesse
quanto ao Evangelho, em homenagem à memória do pai, no íntimo considerava
justo o novo movimento de repressão.
Ignorando deliberadamente o que ocorria fora dos muros domésticos,
apesar de o filósofo e a filha ocultarem o coração sangrando de dor, dividia a
alma entre a filhinha e os dois amigos, considerando-se o mais feliz dos
mortais.
Sentindo-se reviver, parecia buscar no amor, plenamente vivido em
espírito, abençoada fonte de energia e revigoramento.
Refletia sobre a conveniência de a esposa demorar-se, indefinidamente,
em Roma, para a garantia da felicidade de ambos, quando Teóduio chegou da
cidade imperial, com visíveis demonstrações de ansiedade, trazendo-lhe a
carta em que a companheira lhe suplicava a presença imediata.
Helena parecia vazar todo o coração na longa missiva.
Notificava-lhe que, não obstante desejosa de voltar a casa, lutava com a
ingrata moléstia da primogênita que os médicos acreditavam na vizinhança do
túmulo. Lucila piorava, dia a dia. Implorava-lhe, por isso, lhe fôsse ao encontro,
levando Blandina. Descrevia, comovedoramente, os lances críticos de sua
preocupação maternal. Desvelava-se, sozinha.
Galba, o tio e noivo, permanecia na Campânia, atendendo a interesses
particulares, e Anacleta padecia inevitável esgotamento. O próprio Vetúrio,
133
exausto e abatido, rogava-lhe esquecer quaisquer dissabores do pretérito, de
vez que o aguardava, não como sogro e sim como pai, de braços abertos.
Taciano sentia-se excessivamente distanciado de Helena e Vetúrio para
chorar por eles, entretanto, a perspectiva de perder a filha enferma doía-lhe ao
coração.
Lágrimas visitaram-lhe os olhos, enquanto meditava naquela primeira flor
dos seus ideais de paternidade.
Que fizera ele, genitor responsável pela jovem prestes a morrer? Lucila
crescera, absorvida pelos caprichos maternos. Efetivamente, nunca se dispusera
ele a devotar-lhe maior atenção.
Não seria razoável compensá-la, agora, com algum carinho?
Todavia, repugnava-lhe a expectativa de qualquer reencontro com o sogro
e a volta de Helena não lhe infundia o mínimo prazer.
Debalde, Teódulo lhe aguardou a palavra. Depois de prolongada espera,
observou, desapontado:
— Trago notícias pouco lisonjeiras da jovem Lucila e...
— Já sei — interrompeu Taciano, secamente.
O agente de Opílio rodou sobre os calcanhares e afastou-se, enquanto o
interlocutor demandava o seu gabinete particular, aí meditando largos minutos,
sem encontrar uma solução para o enigma que o atormentava.
Ao crepúsculo, em companhia da filhinha, buscou a casa do afinador para
mais detido exame do assunto.
A carta foi lida carinhosamente.
Lívia empalideceu, mas procurou dominar-se contra qualquer emotividade
menos construtiva.
A mensagem de Roma conturbara-lhe a alma. Aquelas palavras da
senhora distante lhe impunham a dolorosa convicção de que a afetividade de
Taciano não lhe poderia pertencer. Inopinada amargura, qual se fôra avisada
de infortúnio próximo, lhe tomou o mundo íntimo. Quis chorar convulsivamente,
contudo, a serenidade paterna e a segura polidez do homem amado lhe
impunham equilíbrio.
Taciano comentava, por alto, as dificuldades que experimentava para
reaproximar-se do sogro...
Além disso, desde a mocidade não revia a metrópole e gostaria de lá não
voltar.
Não seria mais aconselhável desatender ao chamado?
Que adiantaria a presença dele, junto da filha enferma, se Opílio,
fartamente endinheirado, poderia rodeá-la de médicos, enfermeiros e servidores?
Blandina escutava a exposição, sob evidente contrariedade, agarrada ao
colo da preceptora entristecida.
O ancião, porém, assinalava-lhe a palavra, com paternal ternura.
Percebendo-lhe a incerteza e instado a pronunciar-se, aconselhou, calmo:
— Mas filho, existem obrigações centrais no campo dos deveres comuns
de nossa vida. Aquelas que se referem à paternidade são de aspecto essencial
e inadiável. Não hesites. Se o velho sogro te ofendeu os brios de homem,
desculpa e esquece. Aos mais moços cabe entender os mais velhos e amparálos.
Desejo ardentemente que o Céu nos favoreça com a cura de tua filhinha,
mas se a morte a recolhe, sem o apoio de teu carinho pessoal e direto, não te
julgues livre da sombra do remorso que te acompanhará por verdugo sutil.
134
O patrício não respondeu, mergulhado nas reflexões que lhe possuíam a
alma indecisa.
Lívia, contudo, tentou fortalecer-lhe a desistência da viagem, opinando:
— Mas, papai, imaginemos que Taciano está inspirado por forças de ordem
superior, suponhamos que, efetivamente, não deva ir... Não será mais justo
confiá-lo à própria intuição? Se ele fôsse surpreendido por algum desastre em
viagem? se adquirisse a peste sem necessidade?
O velho abanou a cabeça e ponderou:
— Filha, em matéria de bem fazer, penso que nos compete seguir até ao
fim. Ainda que o mal nos estraçalhe, ainda que a ignorância nos atraiçoe,
admito que o dever nos reclama o esforço pessoal nas mínimas fases de nossa
vida. Taciano tem uma filha doente que a própria mãezinha nos afirma
avizinhar-se da morte. Ambas lhe suplicam assistência. Que direito lhe assiste
para esquivar-se?
Dentro da experiência que os anos lhe haviam conferido ao coração,
Basílio aduziu, depois de breve pausa:
— Se fôsses tu a esposa atormentada pela aflição, desculpar-lhe-ias a
ausência?
A moça desistiu de argumentar, mas Blandina, imprimindo bom humor à
cena íntima, interferiu, perguntando:
— Papai, porque não levar vovô Basílio e Lívia conosco? não poderíamos
viajar os quatro, juntos?
O ancião afagou-lhe os cabelos aveludados e escuros e observou, alegre:
— Não, Blandina! Uma viagem longa não pode ser acontecimento para
todos. Ficaremos à espera. Quando voltares, teremos novas músicas. É possível
regresses trazendo uma harpa nova. Naturalmente, a mãezinha verá o teu
progresso artístico e compensar-te-á o esforço com moderno instrumento...
Quem sabe?
A menina sorriu, orgulhosa.
Doces melodias rendilharam os sonhos daquelas quatro almas afins, que
jamais se separariam, obedecendo à vontade própria.
Taciano pediu a Lívia que cantasse o hino às estrelas que lhes havia
ensejado o primeiro encontro e a moça atendeu-lhe ao desejo, repetindo a
canção, com emotividade e beleza.
Pairava no ar uma sensação de encantamento, a misturar-se, porém, de
infinita amargura...
Com exceção de Blandina, cujo riso fácil lhe denunciava a despreocupação
infantil, os demais pareciam interessados em afivelar ao rosto a máscara de
uma tranquilidade em absoluto desacordo com os aflitivos presságios que lhes
invadiam os corações.
O genro de Vetúrio nunca se mostrara tão sensível ao despedir-se.
Prometeu a Lívia o retorno, rápido.
Não se demoraria.
Já que a jornada se impunha, inadiável, partiria, no dia seguinte, com o
propósito de satisfazer apenas às obrigações estritamente necessárias.
Que ela não temesse. Pretendia estudar com a esposa uma separação
honrosa. Ainda que não pudessem desfrutar, Llvia e ele, da ventura nupcial,
desejava consagrar-se ao bem estar dela e de Basílio, a quem estimava como
pai.
Um sitio aprazível nas vizinhanças era o ideal do momento.
135
Estava convencido de que Helena, tão logo se realizasse o consórcio de
Lucila, caso a doente conseguisse recuperar-se, preferiria o mundo romano,
em companhia de Teódulo, de vez que ele, Taciano achava-se decidido a
modificar a própria situação em família.
Restituiria, então, a propriedade ao sogro e transferir-se-ia com Blandina
para algum recanto em que pudessem viver todos juntos.
Sentia-se moço, robusto.
Podia trabalhar com mais intensidade.
Nunca perdera a brilhante forma física, em razão dos exercícios a que se
devotava com escravos de sua casa, alguns deles excelentes gladiadores.
Porque recear o futuro, quando tudo lhe favorecia os desejos?
Enquanto Lívia lhe assinalava os planos, desalentada, Blandina seguia a
conversação, de olhos fulgurantes, acreditando que nenhuma força conseguiria
contrariar as afirmações paternas.
Abraços e votos afetuosos foram trocados.
Contudo, quando Lívia notou que o vulto de Taciano, enlaçado à filhinha,
se perdia nas sombras do arvoredo próximo, deixou que lágrimas quentes e
abundantes lhe inundassem os olhos... Incoercível angústia lhe asfixiava o
coração, como se estivesse condenada a distanciar-se deles para sempre, de
modo a não vê-los, nunca mais.
Dias passaram, entre saudades e esperanças, na florida casinha de Lião,
quando, com imensa surpresa para a Vila Vetúrio, Helena chegou, em
companhia da filha e do irmão, fazendo-se ainda acompanhar por Anacleta e
por reduzido séquito de servidores.
Lucila estava em plena convalescença. Galba, o noivo amadurecido,
rodeava-a de atenções.
No lar de Basílio, o inesperado acontecimento foi acolhido com grande
estranheza.
A senhora atingira a cidade, na comitiva de Otávio Egnácio Valeriano e de
sua esposa Clíniene Augusta, que se demorariam nas Gálias, em missão
oficial.
Valeriano era um soldado valente e astucioso, que se havia distinguido na
Mésia, onde perdera quatro dedos, em combate com os godos. Vinha, na
condição de legado especial, com o fim de inspecionar a cidade e libertá-la de
elementos subversivos.
O governo de Treboniano Galo espalhara enviados dessa natureza em
muitas direções.
As localidades mais importantes das Gálias suportavam-lhes a presença.
Chegavam, cercados pela bajulice dos maiorais que lhes prodigalizavam
dádivas particulares em troca de favores políticos, começando por festas espetaculares
e acabando por deploráveis extorsões. Empreendiam longos
inquéritos, a pretexto de joeirar o Império contra infiltrações revolucionárias,
conservando, porém, o objetivo oculto de perseguir cristãos e despojá-los de
suas pequenas ou grandes economias.
Os filhos do Evangelho eram, então, duramente provados na fé. Muitos que
ainda se afeiçoavam aos próprios haveres abandonavam a Boa Nova, pagando
elevadas quotas à salvação e transferindo-se de moradia, mas os menos
favorecidos da sorte ou os que se reafirmavam na confiança em Jesus
rendiam-se à morte ou ao cárcere, com a desistência de toda a propriedade
particular.
136
Um embaixador dessa espécie, portanto, passava a ser admiràvelmente
quinhoado por largos recursos, locupletando-se com o dinheiro que recebia
para acusar ou exilar, para condenar ou silenciar, fazendo-se, destarte, o
centro natural do ódio e da intriga, da perversidade e da delação.
Galo elegera esse meio para ajudar, inescrupulosamente, os companheiros
de campanha militar, considerando que em Roma os cofres exaustos não
ofereciam quaisquer perspectivas de presa fácil.
A sociedade lugdunense percebia isso e, receando complicações com o
imperador, acorria em massa, a fim de louvar-lhe o representante.
Vários dias de festa solenizaram-lhe a chegada, e Helena, que soubera
atrair a intimidade de Climene, durante a viagem, foi a primeira dama da cidade
que ofereceu rico banquete ao ilustre casal.
Os salões da aristocrática residência abriram-se, luminosos, como no
passado, assinalando imenso êxito.
Basílio, preocupado, não sabia como explicar a si mesmo as ocorrências
em curso.
Por que motivo a esposa de Taciano escrevera uma carta que parecia
desmentida pelos acontecimentos?
O ancião e a filha debalde pesquisaram a chave do enigma.
Relegados à margem, desde que Blandina e o pai se haviam ausentado,
não fugiram ao culto da gentileza, e, terminadas as festividades do palácio,
tentaram uma visita respeitosa e cordial à senhora, que recusou recebê-los.
Teódulo, um tanto desconcertado, apresentou excusas em nome de
Helena, comunicando que procuraria pai e filha, no dia imediato, para entendimento
particular.
O afinador e a moça regressaram, intrigados, sob inquietante decepção.
Que teriam praticado para merecer tamanho desapreço?
A genitora de Blandina sempre fôra lembrada entre eles como pessoa
digna da mais alta consideração. Nunca lhe haviam ferido o nome, nem mesmo
em pensamento.
Por que razão lhes impunha tão incompreensível hostilidade?
Na manhã seguinte, porém, o filósofo e a filha foram ainda mais
dolorosamente surpreendidos.
O intendente de Opílio veio ao encontro deles e exibiu a documentação da
dívida comprada, alegando que os Carlos eram aparentados com a família
Vetúrio e que Helena, ciente de que a pequena Blandina tomava lições em
casa do afinador, não vacilara em pagar o enorme débito, atendendo a
reclamações de familiares, exigindo, contudo, urgente reembolso.
Basílio empalideceu.
Aquilo era um convite à subserviência ou uma proclamação de cativeiro.
Em que lhe valiam, agora, as lutas de uma existência tão longa? porque
vivera tantos anos, julgando-se livre, até à suprema dedicação pela filha que o
Céu lhe confiara, a fim de encontrar à beira do sepulcro o fantasma da
escravidão?
Nevara-se-lhe a cabeça, buscando na consciência reta o melhor meio de
equilibrar-se com o mundo e com a vida.
Sofrera inúmeras privações e dificuldades no percurso da extensa
peregrinação terrena, mas nenhuma assim tão angustiosa como a daquela
hora em que se presumia a cavaleiro de qualquer humilhação.
Compreendeu tudo.
137
A senhora devia odiar-lhes a presença.
Provavelmente, soubera em Roma que Taciano e a filhinha se lhes haviam
afeiçoado ao lar humilde e considerava-se talvez furtada em seus afetos.
Levou a destra ao coração descompassado, enquanto as lágrimas lhe
corriam em fio sobre as grossas rugas.
Lívia percebeu-lhe a aflição e correu a ampará-lo.
O velho abraçou-a, em silêncio, e, depois, com humildade, suplicou a
Teódulo a concessão de algum tempo.
Desejava aguardar o regresso de Taciano para entender-se com ele,
relativamente à questão.
O enviado de Helena, no entanto, mostrou-se inflexível.
O problema não poderia ser adiado além de uma semana. Determinado
portador retornaria àmetrópole imperial, conduzindo o dinheiro que Opilio
Vetúrio desembolsara.
O ancião, confundido, insistiu para que a genitora de Blandina lhe
concedesse a graça de uma audiência, mas o administrador dissipou-lhe a esperança.
Helena não desceria a qualquer entendimento com plebeus, servos ou
devedores.
Sem saber o que fazer, Basílio declarou, por fim, que visitaria alguns
amigos prestigiosos com o objetivo de estudar a inesperada exigência, prometendo
uma solução tão apressada quanto lhe fôsse possível.
A sós com a filha, examinou, angustiado, o problema que o destino lhe
propunha.
Reconhecia-se extenuado.
Jamais obteria recursos compatíveis com a necessidade do resgate.
Por mais buscasse a moça consolá-lo com observações de carinho e
encorajamento, não conseguia subtrair-se ao abatimento que o dominava.
Convicto de que os únicos benfeitores, capazes de auxiliá-lo na travessia
do obstáculo, seriam os companheiros da atividade cristã, na noite do mesmo
dia procurou a singela residência de Lucano Vestino, antigo presbítero
refugiado num casebre onde se reuniria uma assembléia de oração.
Basílio e a jovem não imaginavam, sequer, que Teódulo os seguia, às
ocultas. Localizando o pardieiro em que os cristãos se congregavam, o intendente
tornou à herdade, arquitetando planos para iniciar a devassa.
A reunião evangélica, no domicílio de Vestino, caracterizava-se por
indefiníveis apreensões.
Apenas vinte companheiros participavam do culto.
Muitas famílias, aparentemente devotadas ao Evangelho, haviam fugido,
temendo a presença de Valeriano.
A igreja de Lião, tantas vezes amargamente provada, conhecia a extensão
da violência romana.
Entre os prosélitos que não haviam desertado, começaram a surgir
manifestações de apostasia.
Em razão disso, somente os espíritos bastante valorosos na fé animavamse
a enfrentar a nova perseguição que se esboçava, infalível.
Vestino, tomando a palavra, formulou sentida prece e leu, nos
apontamentos sagrados, a excelsa recomendação do Senhor: — «Não se turbe
o vosso coração. Credes em Deus, crede também em mim. (12)
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(12) Evangelho do Apóstolo João, capítulo 14, versículo 1. — (Nota do
Autor espiritual.)
Meditando o versículo, ergueu a voz e comentou, inflamado de confiança:
— Meus amigos, acreditamos que a hora é das mais significativas para a
nossa família espiritual.
Simpatizantes de nossa causa, funcionários do Governo, avisam-nos que a
opressão romperá, cruel.
Nossa fé, tantas vezes selada com o sangue dos nossos antepassados,
provavelmente nos reclamará o testemunho de sacrifício!
Olhemos para a vida de mais alto!
Quando o Mestre nos convidou à fortaleza, prevenia-nos quanto às
atribulações que nos sitiariam no tempo.
Os filhos da ignorância e os devotos das divindades sanguinárias, que
aceitam oferendas de carne viva, poderão desfrutar o domínio terrestre...
Gozarão em carros de ouro e púrpura, embriagados de prazer, à maneira de
loucos que se regozijassem, inconscientes, sobre cadáveres amontoados, para
despertarem, mais tarde, sob o látego ardente da verdade, que os espreita na
morte.
Mas nós, os servidores convidados a lavrar, com o Senhor, o empedrado
solo da miséria humana, poderíamos, acaso, aguardar o descanso?
Desde o dia em que se levantou a cruz no Calvário para o Enviado Celeste,
outro caminho de ressurreição não se reservará para nós mesmos.
Até o Cristo, os deuses bárbaros possuíram o mundo. Os templos eram
casas de negócio com os gênios infernais. Um pombo sacrificado, um carneiro
morto ou as vísceras quentes de um touro constituíam oblações, em troca de
favores de ordem material.
Com Jesus, porém, somos chamados a construir o reino glorioso do
espírito. O Céu desceu até nós, as algemas que nos encarceravam o raciocínio
no círculo estreito da animalidade inferior foram rompidas e a dignidade da
alma humana revelou-se, divina, descortinando-nos a sua beleza eterna!
Não admitamos que o Cristianismo esteja na véspera de terminar o
apostolado entre as criaturas.
Cristo não encerra exclusividade.
Enquanto houver um gemido de criança desventurada na Terra, a obra do
Senhor nos impelirá ao serviço e à renunciação!...
Por isso, enquanto os nossos irmãos mais fracos fogem ao depoimento da
realidade e enquanto os menos convictos caem no logro infeliz da descrença e
da dúvida, marchemos, destemerosos, na certeza de que o mundo espera por
nosso concurso de suor e martírio, a fim de restaurar-se em seus alicerces
sublimes..
Por mais de dois séculos, choramos e padecemos.
Nossos pioneiros foram arrancados à família a golpes de traição, calúnia,
espancamento e morte.
Somos herdeiros da fé imorredoura de veneráveis apóstolos, que no-la
transmitiram com o próprio sangue e com as próprias lágrimas! Porque
desmerecer-lhes na confiança, supondo-nos abandonados?
«Não se turbe o vosso coração — disse-nos o Senhor —, credes em Deus,
crede também em mim!»
Achamo-nos em paz, porque cremos! o medo não nos aborrece, porque
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cremos! a vitória espiritual será nossa, porque cremos!...
A inspirada palavra do velho pregador emudecera por longo intervalo.
A acanhada sala parecia repentinamente inflamada de luz e as paredes
como se esboroavam aos olhos espirituais de Vestino.
As seis mulheres e os catorze homens presentes contemplaram-se uns aos
outros, maravilhados e extáticos. Irmanados num destino comum, experimentavam
uma felicidade somente atingível por aqueles que tudo conseguem
superar e esquecer por amor a um ideal santificante.
Basílio apertava entre as mãos a pequena destra de Llvia, com o paternal
enlevo das grandes afeições que desconhecem a morte.
Junto deles, a viúva Cesídia e as suas filhas Lucina e Prisca entreolharamse,
venturosas.
Hilarino e Marciana, Tibúrcio e Escribônia, dois casais de velhos, que tudo
haviam cedido pela causa do Senhor, abraçaram-se, contentes.
Lívia, fitando os semblantes embevecidos que a rodeavam, perdeu o temor
que a ameaçara, de princípio. Recordou Taciano e Blandina, os únicos amigos
mais íntimos que lhe restavam, registrando soberana tranquilidade no coração.
Como os amava profundamente!
Taciano possuía uma esposa e um lar e Blandina cresceria, naturalmente,
para um formoso destino.
Que lhe competia senão resignar-se ante a Vontade de Deus? Não lhe
cabia rejubilar-se pelo ensejo de consolar o abnegado pai que a recolhera
amorosamente na vida? Não devia sentir-se infinitamente ditosa, por ver-se
entre os fiéis seguidores do Cristo, honrada pela oportunidade de provar sua
fé?
Fixou a atenção no rosto calmo de Basílio, cujos olhos faiscavam de alegria
e esperança...
Nunca o pai adotivo lhe pareceu assim tão belo, Os cabelos brancos como
que despediam raios de claridade azulinea.
Refletiu, pela primeira vez, nas aflições e nas lutas que o velho filósofo
havia atravessado... imaginou as saudades que, de certo, o acompanhavam,
desde a juventude distante, meditou no amor com que se lhe devotara, a ela
que fôra abandonada numa charneca ao nascer, e sentiu por aquele homem,
curvado pela senectude, um afeto filial mais alto e mais puro, renovado e
diferente...
Algo sublimara-se-lhe no espírito.
Instintivamente, retirou a destra das mãos enrugadas que a retinham e
abraçou-o com um enternecimento que, até então, lhe era desconhecido.
Sentiu-lhe o pulsar do coração, no peito fatigado, e, beijando-lhe a face,
com extrema ternura, falou, baixinho:
— Meu pai!...
Tocado de júbilo misterioso, Basílio deixou cair algumas lágrimas e
balbuciou:
— Estás feliz, minha filha?
— Muito feliz..
Ele osculou-lhe os cabelos ondeados e escuros, que dourada rede
envolvia, e afirmou, ciciante:
— Não se turbe o nosso coração!... os que se amam, em Cristo, moram
acima da separação e da morte...
Nesse instante, porém, Vestino ergueu a fisionomia serena, inundada por
140
traços de uma ventura ignorada na Terra, e continuou a falar:
— Nosso recinto permanece gloriosamente visitado pelos mártires que nos
antecederam...
E, com a voz quase embargada pelo pranto, nascido da alegria em que se
lhe desabotoava o coração, prosseguiu:
— Ofuscam-me o olhar com a bendita luz de que se vestem! À frente,
entrou Ireneu, o nosso pastor inesquecível, trazendo nas mãos um rolo
resplendente... Depois dele, outros amigos espirituais, glorificados no Reino,
penetraram nossa porta, com sorrisos de amor!... Vejo-os a todos... Conheçoos,
de minha primeira mocidade! São velhos companheiros nossos, trucidados
ao tempo dos imperadores Séptimo Severo e Caracala!... (13) Aqui se
encontram Ferréolo e Ferrúcio, com radiantes auréolas, a começarem da boca,
lembrando o suplício da língua que lhes foi violentamente arrancada!...
(13) Refere-se a palavra de Vestino a vários mártires cristãos, da França,
algum dos quais estão inscritos na história dos santos. — (Nota do Autor
espiritual.)
Andeolo, o valoroso subdiácono, traz sobre a fronte um diadema formado de
quatro estrelas, recordando a flagelação da cabeça, partida em quatro partes
pelos soldados... Félix, a quem subtrairam o coração vivo do peito, traz no
tórax um astro irradiante! Valentiniana e Dinócrata, as virgens que suportaram
pavorosos insultos dos legionários, envergam peplos alvinitentes!... Lourenço,
Aurélio e Sofrônio, três rapazes com os quais brinquei em minha infância e que
foram varados por espadas de pau, são portadores de palmas liriais!... Outros
chegam e nos saúdam, vitoriosos... Ireneu aproxima-se de mim e destaca um
dos fragmentos do rolo de luz... Recomenda-me a leitura em voz alta!...
Vestino faz breve pausa e exclama, admirado:
— Ah! é a segunda epístola do apóstolo Paulo aos Coríntios!
Com voz entrecortada pela emoção, passou a ler:
— “Em tudo (14) somos atribulados, mas não angustiados; perplexos, mas
não desanimados; perseguidos, mas não desamparados; abatidos, mas não
destruidos; trazendo sempre por toda a parte a mortificação do Senhor Jesus
em nosso corpo, para que a sua gloriosa vida se manifeste igualmente em
nós...”
Em seguida a curto intervalo, anunciou:
— Comunica-nos o amado orientador que a nossa hora de testemunho
está próxima. Pede-nos calma, coragem, fidelidade e amor... Nenhum de nós
será lançado ao abandono...
Alguns terão a morte adiada, mas todos conheceremos o cálice do
sacrifício...
Após ligeira pausa, notificou que os visitantes cantavam um hino de graças,
em louvor ao Mestre Amantíssimo.
(14) 2ª Epístola aos Coríntios, capítulo 4, versículos 8 a 10. — (Nota do
Autor espiritual.)
O pregador permaneceu em longo silêncio, como se se pusesse a escutar
a melodia Inacessível à percepção dos companheiros.
Torrentes de lágrimas corriam-lhe pela face envelhecida.
141
Antes de encerrar a reunião memorável, Lucano convidou:
— Meus irmãos, somos pequeno rebanho confiante no Céu!... Muitos de
nossos confrades que a fortuna protege retiraram-se da cidade sob o pagamento
de valiosas contribuições ao enviado de César. Acredito que raros
daqueles que vivem na abastança estarão habilitados à vitória sobre a tormenta
próxima... Achamo-nos divididos em grupos de fé, nos bairros pobres, à
espera da Bondade Divina... Não possuímos recursos que nos inspirem
qualquer convite à preocupação. O Senhor livrou-nos dos inquietantes
compromissos com o ouro da Terra... Porque não nos reunirmos diàriamente à
noite, por algum tempo, em nosso santuário de confiança? Este casebre pode
ser o nosso reduto de oração e a oração é a única arma que podemos manejar
no trato com os nossos perseguidores...
Júbilo geral aplaudiu-lhe a idéia e prece comovedora marcou o término da
reunião.
Entendimentos fraternos foram levados a efeito.
Os amigos concordaram entre si.
Regressariam cada noite para o serviço da fé.
Enquanto algumas frutas eram servidas com tigelas de vinho fraco, cada
qual relacionava essa ou aquela experiência individual.
Chegada a vez de Basílio, o velho comentou o problema com que se
defrontava. Era liberto sob pesado compromisso e devia resgatar, sem detença,
a dívida que o afligia.
Entreolharam-se os irmãos, penalizados.
Ninguém ali possuía o dinheiro suficiente para ajudá-lo.
Consultado, Lucano informou que a caixa de Socorro achava-se exausta.
As derradeiras disponibilidades haviam desaparecido na véspera com o
amparo inadiável a três viúvas necessitadas de assistência.
Vestino, porém, convidou o filósofo e a filha a se demorarem com ele pelo
tempo que desejassem.
Na casinha singela cabia muita gente.
O velho, com assentimento da jovem, aquiesceu. Não confiava em Teódulo
e receava algum assalto à dignidade do lar. Junto dos amigos, ainda que
sofressem, teriam a vantagem da dor repartida. Lívia não se veria só. As
companheiras do grupo fortalecer-lhe-Iam o coração.
Prometeram voltar, no dia imediato, e, mais confortados, passaram a noite
edificados na fé.
Na manhã seguinte, Basílio procurou Teódulo, a fim de penhorar o próprio
domicílio.
Refletiu bastante e concluiu que essa seria a medida mais acertada. Se
permanecessem retendo a casa, provavelmente seriam vitimados pela violência,
de vez que não dispunham de recursos para o resgate, ao passo que,
confiando a moradia ao administrador, talvez lhe sossegasse a exigência.
Considerando, ainda, a hipótese de serem detidos, em razão do culto a que se
devotavam, o lar humilde nada perderia em sua feição mais íntima, porque, em
regressando da capital do Império, Taciano teria conhecimento da situação e,
decerto, conservar-lhe-ia os manuscritos que lhe constituíam a única riqueza.
O intendente, impassível, ouviu o afinador que lhe falou com humildade.
Pretendia ausentar-se por alguns dias e rogava permissão para deixar,
intacta, a residência, como garantia parcial da importância por ele devida a
Opílio Vetúrio.
142
Não olvidaria o compromisso.
Diante da Inopinada solicitação, Teódulo, intrigado, pediu ao filósofo alguns
momentos de espera.
Não poderia responder sem uma consulta à senhora.
A simplicidade do ancião desarmava-o.
Seria justo desconfiar dele — pensava o astucioso capataz —, mas para
onde seguiria Basílio, sem prestigio e sem dinheiro, a não ser para o miserável
tugúrio de Lucano Vesti no?
A petição era formulada sem qualquer intenção oculta, porque o velho não
poderia ignorar que ele, Teódulo, possuía elementos para segui-lo à socapa,
de modo a descobrir-lhe o paradeiro novo.
Com semelhantes reflexões, procurou Helena, que lhe escutou a notícia,
encantada. Não parecia guardar as mesmas apreensões. Mostrava-se, aliás,
satisfeita e tranquila.
Ante a perplexidade do amigo, observou, contente e maliciosa:
— Tudo corre, segundo a encomenda. Não te aborreças. O assunto da
dívida é o fator de aflição de que necessitávamos para deslocar os intrusos. Se
pudermos apanhá-los, como aves desprevenidas, na ilegalidade, tanto melhor.
Presos e executados como cristãos, desaparecem do caminho de Taciano e de
Blandina, sem qualquer preocupação de vulto para nós. Meu esposo odeia os
nazarenos. Informado de que os amigos se retiraram, constrangidos pelo
expurgo, ainda que sofra, saberá reprimir-se.
Teódulo sorridente indagou, admirado:
— E a casa? recebê-la-emos, então?
— Sem dúvida — respondeu a senhora, resolutamente —, é o próprio
Basílio quem no-la oferece. Será razão sólida para conquistarmos a simpatia
de Taciano para os nossos esclarecimentos. Diremos que o velho, estribado na
afeição de nossa casa, veio solicitar-nos apoio moral, colocando a residência
sob a nossa guarda, que tudo fizemos, em vão, por salvá-lo, e, por fim,
conservaremos o domicílio sem qualquer alteração para que os nossos
ausentes o encontrem nas mesmas disposições em que o deixaram... Isso
constituirá nossa demonstração de sinceridade, impondo a Taciano a justa
resignação ante os fatos consumados.
— Magnífico! — comentou o administrador, sob a impressão de haver
encontrado feliz solução para o delicado problema.
Bem humorado, voltou a Basílio e notificou que a decisão fôra bem
recebida, que a senhora concordava com o alvitre e que a residência seria
atenciosamente tratada até à sua volta.
O liberto de Carpo sorriu, aliviado.
A aprovação significava liberdade.
Poderia, agora, demandar a casa de Lucano, junto da filha, sem
sobressalto ou constrangimento.
O filósofo e Lívia azafamaram-se para colocar em ordem velhos arquivos e
objetos de arte, partindo no mesmo dia, ao crepúsculo...
Abraçados um ao outro, comentavam a beleza do céu, no qual corriam
nuvens solitárias, tingidas pelo poente afogueado, e referiram-se ao perfume
ativo de algumas flores, para não se concentrarem no sofrimento moral da
despedida.
Enternecidos, fitaram a paisagem, cada qual enovelando no próprio íntimo
as reminiscências mais doces do coração. Com o propósito de não se ator143
mentarem mutuamente, com palavras de queixa, fingiam distração e
serenidade, à frente da Natureza, ignorando que Teódulo lhes espreitava os
passos, infatigàvelmente...
Informada quanto ao local em que o afinador se refugiara, Helena, no dia
seguinte, solicitou uma audiência e Egnácio Valeriano, alegando a necessidade
urgente de entender-se com o enviado de Augusto.
O alto dignitário recebeu-a sem reservas.
A sós com o legado, expôs a questão sem preâmbulos.
As famílias mais altamente colocadas na cidade — disse, com inflexão de
orgulho ferido na voz — lutavam com insuperáveis obstáculos na sustentação
da ordem doméstica, O Cristianismo, pregando impraticável fraternidade,
perturbava as melhores cabeças, pervertendo escravos e servidores.
Generalizara-se a indisciplina. Fomentava-se a discórdia. Homens válidos e
mulheres fortes fugiam ao trabalho, depois do contacto mental com os ensinos
do profeta crucificado que, no fundo, se fizera temível adversário do Império.
As tradições eram desrespeitadas e o lar romano desarvorava-se nos mais
legítimos fundamentos.
O legado ouviu, atencioso, e, com reverência, indagou:
— Mas, poderíamos, acaso, receber sugestões para a obra corretiva? A
devassa realiza-se, metódica, desde minha chegada. Já conseguimos advertir
a muitos prosélitos de importância, que se prontificaram a retirar-se.
E, dando idéia da extorsão efetuada, acentuou:
— Tenho tido a máxima paciência, compreendendo que um homem
representativo não pode esquecer, sem dano, a responsabilidade de que se
investe. Assim considerando, determinei que todos os simpatizantes da causa
detestada fôssem ouvi-dos... Tive o prazer de registrar-lhes a reafirmação de
fidelidade aos deuses e a César e, de quase todos, recebi generosas ofertas,
destinadas ao nosso magnânimo imperador. A medida surtiu favoráveis
resultados, coroando-nos o inquérito de pleno triunfo. Agora, admito seja
possível joeirar as classes mais baixas de nossa estrutura social. A justiça não
se fará tardia.
— Estamos ansiosos! — asseverou Helena, satisfeita — nunca
presenciamos tantas manifestações de revolta! jamais assistimos a tamanhos
espetáculos de rebeldia e degradação!
Há quem saiba da existência de variados núcleos de conspiradores contra
a legalidade, nos bairros pobres. Nosso administrador, por exemplo, conhece
um dos pontos em que pessoas desprezíveis articulam os golpes que nos
ameaçam. Nossa própria casa tem um escravo fujão, com a filha, nesse couto
de morcegos humanos. Tramam, nas sombras, contra a vida dos patrícios e
contra os senhores de terras. Não será de espantar uma rebelião de sangue e
morte, a qualquer instante próximo...
Antes que o interlocutor pudesse formular qualquer nova interrogação,
acrescentou, de maneira significativa:
— Tenho comigo a documentação probatória.
Valeriano coçou a cabeça, intrigado, e ponderou:
— A denúncia é realmente grave, O administrador da Vila Vetúrio pode
colaborar com as autoridades?
— Perfeitamente.
— Começaremos o expurgo sem demora. Posso esperar o concurso dele,
hoje à noite?
144
— Teódulo comparecerá — concordou a senhora, resoluta.
Efetivamente, ao anoitecer, o intendente de Opílio visitou a caserna, sendo
a! apresentado a Liberato Numício, chefe de coorte, designado pela Propretura,
sob a inspiração de Valeriano, para iniciar o movimento punitivo.
Viram-se e de imediato simpatizaram um com outro através dos
sentimentos que lhes eram afins.
Teódulo comunicou ao novo amigo que indicaria a casa de Vestino, sem
comprometer-se. Alegou que a rebelião dos nazarenos se processava em
diversos grupos de ação conjugada e, conhecendo outros centros da
conspirata, poderia ser valioso colaborador na repressão, se permanecesse
oculto no serviço de inteligência.
Liberato concordou, loquaz, e depois de bebericarem, alegremente,
tragando várias taças de vinho, puseram-se em atividade.
Comandando pequena expedição de soldados e beleguins atrevidaços,
Numício, sob a orientação do empregado de Vetúrio, cercou o casebre dos seguidores
do Evangelho, quando o dono da casa proferia as últimas palavras da
oração ensinada pelo Mestre:
— ... não nos deixes cair em tentação e livra-nos do mal, porque teu é o
reino, o poder e a glória para sempre, assim seja!.
Lucano descerrou os olhos, e tão grande era a serenidade que neles se
estampava, que mais parecia ter despertado de alguma visão celestial. Neste
instante, o emissário da perseguição, quase ébrio, se postou diante da
assembléia cristã, bradando para os esbirros, afoitos:
— Entremos! É aqui mesmo. A malta de raposas está no covil!...
Ninguém respondeu.
Os agentes armados penetraram ruidosamente o recinto.
Sarcástico, Numício observou:
— Já visitei agrupamentos como este. Nunca vi uma raça tão acovardada
como a dos aprendizes do Judeu Crucificado. Tomam bofetadas, entregam
mulheres, sofrem o cárcere e morrem debaixo de insultos, sem qualquer
reação! Asquerosos morcegos!.
Cuspinhou algumas pragas e, relanceando o olhar pelos circunstantes,
interrogou com estardalhaço:
— Quem é o chefe do bando?
Vendo que ninguém respondia, reajustou a frase e renovou a pergunta:
— Quem é aqui o chefe da casa?
Lucano ergueu-se, digno, e apresentou-se:
— O chefe da casa é Jesus e eu sou o responsável.
— Jesus? Ora, ora... — gritou Numício, gargalhando — sempre os mesmos
loucos!...
Parou o olhar irônico em Vestino e continuou:
— Velho detestável, vejamos a tua noção de responsabilidade. Se tens
miolo na cabeça abjura a bruxaria! Rende culto aos deuses e afirma a tua
fidelidade aos nossos imperadores. Provavelmente, assim, o quadro desta
noite poderá modificar-se.
— Não posso! — informou o apóstolo, sereno — sou cristão. Não tenho
outro Deus que não seja Nosso Pai Celestial, cuja grandeza e cujo amor se
manifestaram na Terra por Nosso Senhor Jesus Cristo.
— Renega os teus sortilégios, feiticeiro! — clamou Liberato, de faces
congestas — abjura ou sentirás o peso de minha decisão!...
145
— Não posso alterar minha fé — tornou Lucano, com simplicidade e calma.
O punho cerrado do cruel interlocutor desceu sobre o rosto venerável.
Vestino cambaleou, mas, amparado por dois
irmãos que se apressaram a socorrê-lo, recompôs
a fisionomia, enxugando um filete de sangue que
a pancada lhe provocara num dos cantos da boca. Lívia, Lucina e Prisca, as
mulheres mais jovens do recinto, prorromperam em pranto, contudo, o ancião,
retomando a palavra, confortou-as, exclamando:
— Filhas, não choremos por nós! Choremos pelos nossos perseguidores,
orando por eles. Haverá maior desventura que a de confiar-se alguém ao
engano do poder para acordar nos braços terríveis da morte?
Fitou o olhar compadecido no verdugo e esclareceu:
— O homem que nos espanca é Liberato Numício, chefe de uma coorte
romana. Já lhe vi as mãos, por duas vezes, flagelando os tutelados do
Evangelho... Pobre irmão nosso! Acredita ser senhor da vida, quando os
prazeres criminosos lhe possuem o coração! Debalde procura debater-se
contra os golpes da enfermidade e os achaques da velhice, que presentemente
lhe rondam o corpo... Amanhã, precipitado ao vale fundo da meditação pelo
desfavor político, talvez se incline para Jesus, procurando justiça e amparo
moral!
Os companheiros de Numício ouviam estupefatos.
O agente de Valeriano em vão tentou reagir. Forças intangíveis
imobilizavam-lhe a garganta.
Lucano, de semblante iluminado pela fé, prosseguiu, em voz firme:
— É possível que os perseguidores nos imponham a morte. Talvez
sejamos conduzidos, de imediato, aos mais aflitivos testemunhos!
Fêz breve pausa e continuou, voltando-se para os amigos:
— Não temamos, porém, a visitação do martírio! Todos fomos chamados a
seguir Nosso Senhor, de cruz pesada aos ombros doloridos, O Calvário está
erguido, o madeiro jaz levantado, a flagelação continua... Ufanemo-nos da
nossa condição de cireneus do Eterno Amigo! É uma honra morrer pelo bem
num mundo em que o mal ainda reina vitorioso... Envergonhar-nos-íamos da
felicidade, ao lado de tantos corações sepultados na miséria, na escravidão e
no sofrimento!... Tudo passa! Os imperadores que nos humilharam,
ensoberbecidos com as pompas do triunfo, nunca refletiram nos pesadelos que
os aguardavam no sepulcro!... Hoje, nossos adversários nos reduzem a carne
a lodo sangrento, mas o Espírito do Senhor, renovando o mundo para a
felicidade eterna, espalhar-nos-á as cinzas sobre o campo em que eles,
desorientados e desditosos, se guerreiam inutilmente!... Agora, são
dominadores empinados ao trono da ilusão que os subjuga, todavia, depois,
esmolarão a paz, carregando as úlceras da mendicância em plena casa de
Deus!... Infelizes! para eles, a luta na Terra ainda significa o mergulho em lama
dourada... Atropelam-se uns aos outros, disputando o túmulo em que os seus
sonhos de grandeza se reduzem a punhados de pó; matam-se mütuamente, na
aquisição do ódio em que se anulam; despedaçam-se em concursos de sangue
para incorporarem a ruína aos seus dias escuros!... Choremos, assim, por eles!
Deploremo-los! quanto tempo gastarão para conseguirem aquecer a própria
alma, ao sol da fé?...
Em seguida, porque o silêncio pesasse, Vestino afrontou o olhar
acovardado de Numício e exclamou:
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— Dá trabalho aos teus cooperadores! Se tens a missão de abrir-nos a
porta da masmorra, não te detenhas! O espírito do Evangelho brilha acima do
cárcere.
Vendo que Lucano lhe estendia, valoroso, as mãos engelhadas, Liberato
avançou, pronunciando algumas palavras do cerimonial, em nome do Estado, e
atou-lhe os pulsos.
Os colaboradores seguiram-lhe os movimentos, algemando os demais.
Alguns membros da expedição oficiosa deitaram olhares lascivos às moças
trêmulas, mas a presença de Vestino, cujas palavras lhes haviam lançado
tantas verdades ao rosto, como que lhes impunha forçado respeito.
O trajeto fêz-se em silêncio.
Os cristãos, à maneira de animais pacientes, não reagiram, sustentando-se
em preces fervorosas, mas, quando penetraram o pátio da prisão, entreolharam-
se, angustiados.
Algo aconteceu correspondendo-lhes à expectativa.
A voz seca de Numício determinou parada breve e Lívia, Lucina e Prisca
foram rudemente separadas do grupo.
Existia antiga lei que vedava o sacrifício de virgens nos espetáculos e, sob
esse pretexto, era costume apartar dos recém-detidos as mulheres mais
moças, a fim de que a crueldade dos verdugos lhes subtraisse a pureza
corpórea, antes de qualquer interrogatório mais rigoroso.
O velho afinador abraçou Lívia, cujos olhos se mantinham velados de
pranto que não chegava a cair, e falou emocionado:
— Adeus, minha filha! Creio não mais nos veremos nesta vida mortal.
Esperar-te-ei, porém, na eternidade... Se te demorares na Terra, não te sintas
a distância de meus passos. Permaneceremos juntos, em espírito... Somente a
carne mora à sombra do túmulo... Se fôres ultrajada, perdoa... O progresso do
mundo é feito com o suor dos que padecem, e a justiça, entre os homens, é um
santuário levantado pela dor dos vencidos... Não te consternes, nem te
suponhas abandonada!...
Ergueu os olhos para o Alto, como quem indicava no Céu a última pátria
que lhes restava, e concluiu:
— Um dia, reunir-nos-emos, de novo, no lar sem lágrimas e sem morte!...
Sorriso amargo assomou-lhe ao rosto.
A moça enlaçou-o, carinhosamente, e osculou-lhe a face pálida sem
articular palavra alguma. Incoercível emoção constringia-lhe o peito.
Liberato gritou contra a demora, enquanto dois legionários insistiam com as
jovens, que por fim se deixaram levar sem resistência.
Ao se retirarem, caminhavam as três, aflitas e hesitantes, mas Cesídia,
viúva e mãe, clamou para elas, em tom comovedor:
— Filhas do meu coração! não nos rendamos ao mal... Procuremos, com
valor, a vontade do Cristo! Deus nos assiste, e a verdade nos guia... Mais vale
a morte com liberdade que a vida com escravidão! Avancemos resolutas! as
feras do anfiteatro são nossas benfeitoras!... Adeus! Adeus!...
Prisca e Lucina, com os rostos lavados em pranto sem desespero,
demandaram a senda imunda que lhes era apontada, atirando beijos aos amigos
que ficavam atrás.
Os prisioneiros retomaram a marcha.
Um pouco adiante, as matronas foram igualmente arrebatadas a celas
diferentes, enquanto os catorze homens, amargurados mas firmes na fé, se
147
viram conduzidos a extenso salão escuro e úmido.
Algumas tochas passaram a brilhar.
Um legionário de aspecto repelente aproximou-se do chefe e perguntou,
em voz baixa, pelo cubículo onde as três jovens se achavam internadas.
Numício gargalhou irônico e observou, irreverente:
— Não te atrevas! Estamos certos de que todas são virgens e, assim, o
legado tem direito à primeira escolha. Valeriano vê-las-á amanhã. Depois dele,
então...
E, despreocupado e desrespeitoso, acrescentou:
— Jogaremos a sorte.
Risinhos abafados estenderam-se entre os servidores da justiça imperial.
Transcorridos alguns momentos, Egnácio Valeriano penetrou solenemente
o recinto.
O mensageiro de Galo propunha-se imprimir a maior importância ao
trabalho iniciado.
Comentava-se, por toda a parte, a probabilidade de uma rebelião das
classes inferiores e temia-se uma rápida junção dos grupos insurrectos.
Vivia, por isso, cercado de insidiosas reclamações.
As casas abastadas pediam-lhe drásticos preventivos e os denunciados de
Teódulo eram os primeiros detidos da grande rede de coação que pretendia
desdobrar.
Seguido por vários assessores, dirigiu-se aos presos humildes, em tom
altivo e arrogante:
— Plebeus! — notificou áspero — tenho praticado, com largueza, nesta
cidade, a retidão e a tolerância, em obediência às tradições dos nossos
antepassados, entretanto, queixam-se os patrícios probos e respeitáveis de
que a vossa atitude, nos últimos tempos, constitui grave ameaça à tranquilidade
dos cidadãos. Sois acusados, não somente de cultivar a magia nefanda
dos nazarenos, mas também de conspirar contra o Estado, com o objetivo de
usurpar a posição e o patrimônio dos eleitos de Augusto que vos dirigem. Não
posso, pois, adiar a reprimenda exigida por nossa comunidade. O expurgo é
indispensável.
O mensageiro romano interrompeu-se, vagueou os olhos coruscantes pela
assembléia humilhada e indagou:
— Quem de vós cooperará conosco, indicando os centros da indisciplina?
nossa magnanimidade responderá com a libertação de todos os que colaborarem
na empresa benemérita em que nos empenhamos.
Os cristãos permaneceram emudecidos.
Exasperado com o silêncio reinante, que tomou por desconsideração à sua
autoridade, Valeriano dirigiu-se a Vestino e a Basílio, os mais velhos, e
exclamou:
— Em Roma, supomos encontrar nos anciães a palavra credenciada pela
experiência, que nos compete ouvir em primeiro lugar.
Concentrou a atenção em Vestino e perguntou a ele, diretamente:
— Que informais do movimento subversivo em preparação?
Lucano, todavia, respondeu sem vacilar:
— Venerável embaixador de César, nós não somos delatores.
O delegado imperial esboçou uma carranca de descontentamento e,
fixando Basílio, inquiriu:
— E vós? que dizeis?
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O liberto encanecido sustentou-lhe o olhar penetrante e replicou, sereno:
— Ilustre legado, estamos a serviço do Cristo, que nos recomenda a
abstenção de qualquer julgamento leviano, para que não sejamos
levianamente julgados. O Evangelho não abona a revolução.
— Que insolência! — gritou o ex-guerreiro da Mésia, ofendido — estes
velhos parecem zombar!... Obrigados a responder com clareza, valem-se da
ocasião para se jactarem de virtuosos, efetuando, ao mesmo tempo, a
propaganda do agitador judeu! Enganam-se, porém!...
E, ordenando a Liberato a abertura de espaçoso compartimento anexo,
recomendou:
— Aos cavaletes!
Com a passividade que lhes era característica, os seguidores do
Crucificado penetraram o lúgubre aposento.
Vários instrumentos de martírio ali se enfileiravam.
Obedecendo às ordens recebidas, auxiliares de Numício ataram ambos os
velhinhos a dois grandes cavalos de madeira, amarrando-lhes os membros
com ásperas cordas de couro, capazes de lhes esticarem o corpo até à
disjunção dos ossos.
Afrontando a secura do ambiente, Vestino rogou aos companheiros com
humildade:
— Irmãos, não vos inquieteis por nós! A aflição e o desespero não constam
do programa de trabalho que o Mestre nos traçou. Em nossa idade, a morte por
Jesus ser-nos-á honrosa mercê. Ademais, ele nos recomendou não temer os
que matam o corpo, mas que não podem matar a alma. Auxiliai-nos com a
prece! Os ouvidos do Senhor permanecem vigilantes em toda a parte.
Egnácio, contudo, determinou silêncio.
E, quando os dois velhos foram ligados pelos braços, cabeça e pés sobre
os grandes potros de flagelação, recomendou que os soldados se mantivessem
a postos para a movimentação das polés, de modo a intensificar-se
gradativamente o suplício, caso fôsse necessário.
Lucano e Basílio entreolharam-se, ansiosos.
Compreendiam que o corpo extenuado não resistiria ao tremendo suplício.
Indubitavelmente, era o fim...
Refugiavam-se na oração, deprecando o socorro divino, quando Valeriano
bradou, estentórico:
— Miseráveis! confessem agora! onde se acoitam os cristãos insubmissos?
— Cristianismo e insubmissão não se conhecem! — redarguiu Vestino, com
calma.
— Nada temos a dizer — ajuntou Basílio, resignado.
— Horda de corvos! — trovejou Egnácio, possesso. — Por todas as
divindades infernais! desenrolem a língua ou pagarão muito caro o atrevimento!...
Fêz um sinal imperativo e as cordas retesaram-se.
Os dois apóstolos atormentados sentiram que o tórax e a cabeça se
desligavam, que os braços se separavam do tronco.
Gemeram semi-asfixiados, mas não se lhes arrefeceu o bom ânimo.
— Confessem! confessem! — repetia o alto dignitário romano, de espírito
conturbado pela cólera.
Mas, porque a revelação tardasse, indefinidamente, mandou que as cordas
se esticassem, mais e mais.
149
O peito dos supliciados arfava, dolorosamente. Ambos cravavam o olhar no
teto, qual se buscassem, debalde, a contemplação do Céu.
Pastoso suor escorria-lhes do corpo a estalar-se.
Em determinado momento, Basílio desferiu um grito inesquecível.
— Jesus!...
A imprecação escapara-se-lhe do imo dalma, num misto inexprimível de
dor, amargura, aflição e fé.
Os olhos do velho afinador arregalaram-se nas órbitas, enquanto Vestino
apresentava análogos fenômenos de angústia.
Rompida a base do crânio e rebentadas várias veias entre os ossos
quebrados e a carne em dilaceração, o sangue, em golfadas sucessivas, lhes
borbotou da boca entreaberta.
A morte fôra rápida.
Estranha placidez estampou-se nas duas fisionomias dantes torturadas.
Chocaram-se, então, na sala, a perplexidade dos ímpios e o mudo
heroismo dos filhos do Evangelho.
O mais moço dos cristãos presentes, Lúcio Aurélio, de rosto imberbe,
quase menino, avançou para os cavaletes empapados de sangue e,
enfrentando a estupefação dos algozes, orou em voz alta:
Senhor, digna-te receber com amor os teus servos e nossos inolvidáveis
amigos! Ampara-os na glória de teu Reino! Foram eles nossa orientação na
dificuldade, nossa coragem nos dias tristes, nossa luz no meio das sombras! Ó
Mestre, permite possamos imitar-lhes o exemplo de virtude e coragem com o
mesmo denodo na fé! Vestino! Basílio! admiráveis benfeitores! de onde
estiverdes, não nos abandoneis! Ensinai-nos, ainda, que só pelo sacrifício
conseguiremos construir com Jesus o mundo melhor!...
Calou-se Aurélio.
A rogativa apagara-se-lhe na garganta, af ogada pelas ardentes lágrimas a
lhe pungirem o coração.
Quebrando a quietude que se fizera pesada, Valeriano bradou, enraivecido:
— À prisão! conduzam estes homens à prisão! não quero sortilégios
nazarenos. Prossigamos na caça! É imprescindível a detenção de todos os
implicados... Mobilizemos os recursos de que possamos dispor! Esgotou-se-me
a paciência, tenho esperado por demais!...
Os seguidores. da Boa Nova lançaram derradeiro olhar aos despojos
sangrentos e demandaram as celas imundas a que eram destinados.
A perseguição continuou, implacável.
Durante a noite, outros grupos foram aprisionados.
Movimentada a guarda, que se constituía, em maior parte, de elementos
inferiores, a crueldade e a selvageria passaram a dominar.
No dia imediato, muito cedo, o representante de Galo veio à inspeção.
Emitiu ordens numerosas, traçou planos, arquitetou relatórios que lhe cabia
enviar à cidade imperial, de modo a confirmar-se na condição de legítimo
defensor do Estado e de companheiro fiel do imperador. Para isso, Egnácio
visitou as dezenas de encarcerados, preparando interrogatórios hábeis.
Por última atividade da manhã, desceu, a pedido de Liberato, até à câmara
em que as moças se comprimiam.
Dez jovens abatidas identificaram-lhe a presença, atribuladas e
assustadiças.
Valeriano fitou-as com a malignidade dum lobo senhor do redil e, detendo150
se na contemplação de Lívia, indagou do assessor:
— Donde procede aquela beldade singular?
Liberato informou, sussurrante:
— É filha de um dos nossos velhos supliciados de ontem.
— Oh! Oh!... porque não soube antes? — falou Egnácio coçando a cabeça,
intrigado — ela vale muitos velhos juntos.
Concentrou a atenção na moça, que se viu incomodada por semelhante
privilégio, e determinou fôsse ela transferida para uma cela mais confortável,
não longe do seu gabinete particular de audiências.
Decorridas algumas horas, a filha adotiva do afinador, inquieta e
desalentada, viu-se em extensa câmara, agradavelmente mobilada, onde o
representante de Galo veio, à noite, vê-la de perto.
Lívia recebeu-lhe a visita, em sobressalto.
— Bela gaulesa — começou ele, estranhamente afetivo —, sabes que um
dignitário imperial dispensa solicitações. Entretanto, apraz-me esquecer os
títulos de que me encontro investido, para apresentar-me diante de ti como
simples homem.
A moça ergueu para ele os olhos súplices, que as lágrimas velavam,
prestes a cair.
Valeriano assinalou um sentimento novo no próprio íntimo... Notou que
inesperada compaixão lhe esbatia a máscula crueldade. Surpreendido,
recorria, em vão, à memória, para recordar onde teria conhecido aquela jovem
mulher.
Em que sítio tê-la-ia visto alguma vez? Reconhecia-se tocado por
reminiscências que não conseguia precisar.
— Teu nome? — perguntou com uma inflexão de voz que se avizinhava da
ternura.
— Lívia, senhor.
— Lívia — prosseguiu ele, em tom quase familiar —, conheceste-me em
alguma parte?
— Não me lembro, senhor.
— Poderás, contudo, entender a súbita paixão de um homem? Sabes,
acaso, a espécie de sentimento que me inspiras? Estarias disposta a concordar
com as minhas propostas de felicidade e carinho?
— Senhor, eu sou casada...
Egnácio experimentou grande mal-estar e considerou:
— O matrimônio pode ser um freio aos nossos desregramentos, mas nunca
um entrave insuperável ao verdadeiro amor.
Caminhou, nervosamente, de um lado para outro da sala, e inquiriu:
— Onde se encontra o felizardo que te possui?
— Meu esposo acha-se ausente...
— Tanto melhor — acentuou o legado, novamente tranquilo —, nossa
afeição poderá ser, desde hoje, se quiseres, um formoso romance... Saberás
compreender-me o convite?
— Senhor, além de casada, eu sou também cristã...
— Oh! o Cristianismo é a loucura de Jerusalém que pretende asfixiar a
saúde e a alegria de Roma. És suficientemente menina para renunciar a essa
praga! Tenho recursos para sustentar-te. Um palácio cercado de jardins e
povoado de escravos será naturalmente a rica e merecida moldura com que te
realçarei a beleza.
151
Reparando que a promessa brilhante não alterava a expressão fisionômica
da prisioneira, acrescentou, mordaz:
— Já pensaste numa jovem morta no anfiteatro? As vestes rasgadas, o
corpo desventrado, os seios convertidos em fossas sangrentas, os cabelos
arrastados na arena, os dentes partidos, o rosto pisado pelas feras!... e, acima
de tudo, as mãos brutais de gladiadores bêbados a recolher-lhe os restos!...
Francamente, não posso atinar com as noções de pudor das famílias
nazarenas. Esquivam-se da gloriosa exaltação da carne, como se a Natureza
estivesse amaldiçoada, alegam imperativos de pureza e pregam a regeneração
dos costumes, mas não se envergonham da nudez no anfiteatro !... Nunca
refletiste em semelhante contradição?
— Senhor, creio que devemos aceitar esses espetáculos como sacrifícios
que a ignorância do mundo nos impõe...
— Parece-me, porém — aventou Egnácio, irônico —, que as mulheres
«Galiléias», fugindo às delícias do amor bem vivido, a pretexto de se conservarem
na virtude, guardam consigo a volúpia de se desnudarem na praça
pública. Vejo nisso tão somente inqualificável desordem mental!...
— Senhor — ponderou Lívia receosa, mas serena —, não será mais digno
expor-se a mulher diante de animais que lhe devoram o corpo que ofertar-se,
em banquetes desonrosos, à criminalidade dos homens? Em Massília, vi
matronas e jovens da cidade imperial em exibições deprimentes e, nem de
longe, lhes pressenti qualquer ideal de elevação... Peço vênia, pois, para
discordar do seu ponto de vista. Admito que, em se entregando ao suplício por
Jesus, o coração feminino coopera na edificação da nova Humanidade...
Valeriano sentiu o vigor do argumento com que se via contestado, mas não
se deu por vencido.
Gargalhou com aparente bom humor e exclamou, sorrindo:
— Que calamidade! um encanto de mulher, padecendo a mania dos
filósofos! Minerva não é a conselheira indicada para a tua idade. Ouve a inspiração
de Vênus e compreender-me-ás a palavra com mais clareza.
O legado meditou alguns instantes e observou:
— Teu pai devia ser um louco bem acabado.
Ansiosa por informar-se de algum modo quanto ao destino paterno, a moça
ajuntou, com interesse:
— Meu pai está igualmente aqui.
Valeriano sentiu-se incomodado, ante a expressão de confiança com que
aquelas palavras eram pronunciadas e, temendo as dificuldades que deveria
contornar para explicar-se, julgou prudente despedir-se para voltar no dia
seguinte.
Noite a noite, Egnácio tornou à câmara que Sinésia, servidora de sua
confiança, zelava caprichosamente.
Dolorosos sucessos enlutaram as atividades cristãs na cidade. Espetáculos
de gala eram assinalados por terríveis flagelações. Interrogatórios cruéis
terminavam com revoltantes execuções, incentivadas por longos aplausos
públicos.
Lívia, contudo, isolada de todos, fôra poupada.
Os comentários referentes à mulher, por mais de duas semanas detida pelo
mensageiro do imperador, acabaram por atingir-lhe o templo doméstico.
Clímene, enciumada, certa noite veio ao gabinete do esposo, à cata de
impressões, e, com o auxílio da serva, postou-se à escuta, por trás de cerradas
152
cortinas.
— Não me recuses! — dizia Valeriano, apaixonado — não desejo obrigar-te
à submissão. O amor espontâneo da mulher que adoramos é qual se fôra
suave néctar colhido na milagrosa concha dos sonhos! Ama-me, Lívia!
Sejamos felizes! Sentes-te enferma, por não cederes ao apelo da vida. Não
serei tão mau quanto imaginas. Sou casado, sim, mas minha mulher não me
partilha os negócios. Sou livre... Dar-te-ei domicílio régio onde desejares. Uma
vila em Arelate (15), um palácio em Roma, uma chácara na Campânia, uma
casa de repouso na Sicília!... Escolhe! Viveremos juntos, tanto quanto possível.
Minha escravidão ao Estado é transitória. Espero desfrutar, em breve, longo
descanso!... Se tivermos filhos, garantir-lhes-ei o futuro. Olvidarás a mística
perigosa dos judeus, adereçar-te-ás como as mais lindas filhas das sete colinas
(16), receberás uma existência digna de tua formosura e de teus dotes
intelectuais... Não me observas, porventura, humilhado aos teus pés?...
O pranto convulsivo da moça podia ser ouvido à pequena distância.
— Porque choras? nada te falta. Dize uma palavra e sairás daqui na
condição de soberana da minha felicidade. Não te negues, por mais tempo, ao
chamamento do meu carinho! Ergue-te e vem! Que pretendes para construir a
tua ventura?
— Senhor — soluçou a moça, desanimada —, pela conversação de Sinésia
com servidores desta casa, sei que os meus companheiros de fé estão
marchando, todos os dias, para o sacrifício... Provavelmente, meu pai já terá
dado o grande testemunho!... Para que eu lhe abençoe a generosidade, com o
meu eterno reconhecimento, conceda-me a graça de morrer junto dos meus...
— Nunca! — trovejou a voz de Egnácio, irritado — não partirás daqui sem
abjurar a crença ignominiosa! Não descansarei, enquanto não puder mergulhar
os meus olhos nos teus, à maneira do sedento que se afoga no manancial de
água pura! Amo-te os olhos misteriosos, que em mim despertam algo oculto,
estranhos e profundos sentimentos
(15) Aries, França. — (Nota do Autor espiritual.)
(16) Alusão a Roma. (Nota do Autor espiritual.)
que não consigo explicar. Serás minha, bem minha!... Modificar-te-ei as
convicções, dobrarei esse teu incompreensível orgulho!...
Os ouvidos de Clímene não puderam suportar por mais tempo.
Sufocando as lágrimas que lhe rebentavam do peito, a matrona afastou-se,
rápida.
Em casa, porém, não obstante perceber o regresso do esposo ao tálamo
conjugal, não conseguiu atrair o sono.
Imagens numerosas de revolta e desespero cruzavam-lhe o cérebro
atormentado.
Irritadiça e descontrolada, recordou-se de Helena, afigurando-se-lhe
encontrar nela a única amiga, a cuja experiência deveria confiar-se.
Com efeito, tão logo surgiu o dia novo, buscou a vila Vetúrio, onde, em
pranto, desfez-se em minuciosas confidências, diante da companheira.
A esposa de Taciano ouviu, atenciosa, e observou, por fim:
— Essa mulher é uma intrusa. Conheço-a de nome. Deu-nos imensa
preocupação, há tempos. Tem a mania de farejar os maridos apreciáveis.
Suponho seja nosso dever afastá-la, em definitivo. Não poderíamos incluí-la
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em alguma remessa de escravas, destinadas à arena?
— Não, isso não! — objetou Clímene, assustada. — Valeriano não me
perdoaria. Semelhante medida seria perdê-lo para sempre. Não lhe desconheço
o temperamento vingativo. Percebi-lhe a desvairada paixão pela
detestável plebeia. Declarava-se fascinado pelos olhos dela, e pretendia até
mesmo elevá-la a posição de verdadeira rainha!
— Ah! ele destacou-lhe os olhos? — indagou Helena, com malícia.
— Sim, sim, asseverava que ela é o único amor de sua vida, não se vexou
de reduzir-me a odiosa subalternidade!...
A filha de Vetúrio, de olhos felinos a reluzirem cruéis, comentou, sorridente:
— Possuíamos em Roma desvelada amiga em Sabiniana Pórcia, dedicada
à nossa família desde a infância de meu pai. Sabiniana desposou Belisário
Dório, que nunca se resignou a possuir uma só mulher. Certa feita, em casa, o
trêf ego marido exaltou para a esposa a beleza dos dentes de Eulice, uma
escrava grega, a cujos dotes físicos se afeiçoara ele, perdidamente. Nossa
amiga ouviu, com calma, as inflamadas referências e, na refeição do dia
seguinte, apareceu uma salva prateada com a bela dentadura. Se os dentes
eram o motivo da paixão, refletiu Sabiniana com sabedoria, poderia servi-los ao
companheiro, sem mais nem menos.
Ruidosa gargalhada, desferida por ela própria, concluiu-lhe a narrativa.
Ante a amiga espantada, passou a destra pela cabeleira adornada com
tenuíssima rede de ouro e declarou:
— A lembrança de Pórcia propiciou-me excelentes idéias.
Pensou... pensou... e disse:
— Chamemos Teódulo ao nosso conselho. É a única pessoa capaz de
ajudar-nos com a eficiência devida.
O administrador compareceu, submisso.
Escutou o drama de Clímene, nas palavras comovedoras de Helena, e
considerou:
— Estou pronto a colaborar. Há mulheres de fatal influência em homens
dignos. Essa moça é uma delas. Tem o condão de fazer a infelicidade dos
outros.
Helena reteve o comando da conversação e explicou-se em voz baixa. Possuía
em casa uma substância cáustica suscetível de provocar a cegueira
irremediável. Egnácio Valeriano apaixonara-se pelos olhos da filha de Basílio.
Seria importante, por isso, aniquilar-lhe os órgãos da visão. Para esse fim,
Clímene compraria a cumplicidade de Sinésia, que faria a moça dormir em
poucos minutos à custa de um narcótico. Logo após, a criada aplicaria uma
compressa com a substância corrosiva sobre os olhos de Lívia. A moça
despertaria cega, aflita... Sinésia assumiria o papel de benfeitora,
reconfortando-a com panaceias adequadas. A noitinha, a própria Clímene
visitaria a prisão, conduzindo vestes habituais dela mesma, de modo a
disfarçar-se o aspecto da jovem. Demorar-se-ia Clímene, no gabinete do
marido, enquanto Sinésia trocasse a roupa da prisioneira, conduzindo-a discretamente
para fora. Os guardas, naturalmente, tomá-la-iam como sendo a
própria Clímene abraçada à governanta do cárcere e Teódulo esperaria Livia, à
pequena distância, retirando-a para longe de Lião... Desceria com ela para
Massília, com a promessa de reencontro com o velho pai e com Taciano,
desterrando-a, por fim, na costa gaulesa.
A esposa de Valeriano e o empregado de Opílio ouviam-na, assombrados,
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admirando a fertilidade daquele cérebro, surpreendente na urdidura do mal.
— O projeto é notável — adiantou Cli mene, algo aliviada —, entretanto, a
praia não é assim tão longe...
Helena designou o companheiro que as ouvia, enigmático, e acentuou:
— Teódulo poderá conduzi-la para a outra banda do mar...
E piscando os olhos vivos para ele:
— Da África, por exemplo, qualquer mulher cega encontraria muita
dificuldade para o retorno.
E sentenciou, sorridente:
— Não temos tempo a perder. Se essa mulher domina os homens pelos
olhos, é justo que os perca.
— Receio algum deslize na execução do plano — suspirou Clímene,
hesitante —; se Valeriano descobre, pagarei muito caro.
— Não vaciles! — determinou a companheira, autoritária — a dúvida numa
realização que nos interessa é sempre um golpe contra nós mesmos.
A esposa de Egnácio concordou e obedeceu às ordens que lhe eram
ditadas.
Helena acompanhou-a a casa dela.
Trazida Sinésia ao lar do representante de Augusto, aceitou de bom grado
todas as providências que lhe eram sugeridas, tornando à prisão de posse das
instruções e das drogas indicadas.
Ministrando a Lívia o hipnótico, em água pura, viu-a adormecer fàcilmente
e, enquanto dormia, a moça recebeu a compressa fatal.
Quando despertou, trazia os olhos injetados de sangue.
Apalpava o leito, ansiosa por recuperar a visão, mas debalde...
— Sinésia! Sinésia!... — gritou, aterrada.
Escutando a voz da governanta que lhe respondia, cortês, indagou aflita:
— Anoiteceu assim tão de repente?
— Sim — respondeu a interlocutora, com intenção —, já é noite...
— Onde estava eu, contudo? estarei desvairada?
— A menina teve um desmaio — informou a serva, fingindo preocupação.
— Tenho meus olhos em fogo. Acende uma tocha, sinto-me intranquila.
Embora compadecendo-se da vítima, Sinésia ajoelhou-se, junto dela, e,
conforme as sugestões recebidas de Helena, falou-lhe aos ouvidos:
— Lívia, tenha calma, coragem, paciência!... Seu pai morreu nos cavaletes
de suplício!...
A moça emitiu um grito abafado, seguido de convulsivos soluços.
— Os espetáculos com execuções têm sido frequentes. Acredito que seus
amigos cristãos não terão tido ensejo de fugir. Há, porém, uma notícia
agradável. O patrício Taciano interessa-se por sua sorte. Não sei bem onde se
encontra, mas estou informada de que enviou mensagem ao senhor Teódulo,
recomendando-lhe acompanhá-la na viagem que a menina deve fazer para se
reaproximarem... Há quem diga que a pequena Blandina está doente,
reclamando cuidados...
Intraduzível expressão estampou-se na fisionomia da jovem, cujos olhos
mergulhavam agora em espessa noite.
— Precisamos subtraí-la à crueldade de Valeriano que se propõe escravizála
e possuí-la, a qualquer preço continuou Sinésia, astuta —; em cada noite
parece mais louco e, provavelmente, violentar-lhe-á o sentimento feminino, de
vez que vive a embriagar-se antes de vir para o seu quarto. Dói-me o coração
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vê-la assim exposta aos ataques de um homem despudorado. Combinei, pois,
com o senhor Teódulo a sua retirada... Dentro de algumas horas, espero
receber a vestimenta própria para a sua saída sem percalços. Lá fora, o administrador
da vila aguardar-nos-á, a fim de acompanhá-la até ao seu novo
destino...
Notando que o silêncio pesava entre ambas, Sinésia indagou:
— A menina não se encontra, porventura, feliz? Não lhe sorriem ao
coração as promessas de vida nova?
Lívia, porém, que se afundara em amargas reflexões, respondeu, triste:
— Não fôsse a morte de meu pai e sentir-me-ia contente... Além disso,
vejo-me enferma e aniquilada...
Mas, o senhor Teódulo é de parecer que o antigo patrão da vila Vetúrio
e a filhinha dele, Blandina, são seus amigos.
— Sim, bem sei, mas a esposa de Taciano parece detestar-nos, O senhor
Teódulo sabe disso..
Estendeu as mãos para a frente, como se vagueasse nas sombras, e
acrescentou:
— Porque não fazermos alguma luz?
— Necessitamos da escuridão para libertá-la.
A doente aquietou-se, mas, passando a destra pelos olhos empapuçados,
exclamou em dolorido desabafo:
— Ah! Sinésia, és a única pessoa com quem posso conviver nesta
reclusão!... Sou cristã, enquanto ainda te prendes ao culto das antigas divindades...
mas, no fundo, ambas somos mulheres, com problemas comuns! A
morte de meu pai abre-me um vácuo que coisa alguma na Terra conseguirá
preencher! Estou só no mundo! sozinha! Cedo habituei-me ao caminho de
aflição! Nunca me revoltei contra os desígnios do Céu, mas, agora, sinto-me
desorientada e infeliz!... Que pecado cometi para que Deus me poupasse?
compadece-te de minha sorte! Tenho medo de tudo!...
A inflexão com que aquelas palavras eram pronunciadas tocou a
sensibilidade da servidora nas mais recônditas fibras.
Profundo remorso feriu-a, de chofre...
O pranto rompeu-lhe a crosta consciencíal. Desejou salvar a moça,
recambiá-la para o mundo livre e descerrar-lhe as portas do cárcere para abençoado
destino, mas era tarde. Lívia estava cega. Jamais conseguiria alterar-lhe
a situação. Entre o grupo de Valeriano e os amigos de Clímene permaneceria
algemada a perigo iminente. Limitou-se, por isso, a chorar conturbada.
A jovem escutou-lhe os soluços e confortou-se. Supôs que a governanta
sofria por ela e essa idéia abrandou-lhe a tortura íntima. Não se achava tão só.
Alguém lhe entendia os padecimentos morais e partilhava-lhe o fel.
À noitinha, Clímene apareceu.
Entregou à Sinésia a roupa de seu uso particular.
A governanta gaulesa, não obstante o pesado remorso que a espicaçava,
reanimou a jovem e ocupou-se em vesti-la com esmero.
Daí a instantes, ambas saíram sem qualquer aborrecimento.
Envergando um dos peplos habituais de Climene e apresentando altura
semelhante à dela, Lívia foi tida pelos guardas de serviço como sendo a
esposa de Valeriano em passeio.
Não longe, alcançaram Teódulo que as esperava.
Sinésia, emocionada, despediu-se, alegando a necessidade de tornar ao
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posto. Antes, porém, que a moça se externasse em considerações amargas, à
face do adeus da companheira, o intendente de Opílio, muito cortês, tratou de
dissipar qualquer dúvida que lhe afligisse o ânimo.
— Apraz-me trazer-lhe as boas novas de que já teve ciência — comentou
ele, maneiroso —; o nosso amigo Taciano, impossibilitado de tornar a Lião, tão
depressa quanto desejava, em razão de insidiosa moléstia na pessoa da filha,
pede-lhe a presença confortadora.
E, loquaz, observou todas as instruções de Helena, esclarecendo que
fariam uma viagem marítima.
Taciano — repetia mendaz —, ao regressar da metrópole, vira Blandina
adoecer repentinamente, sem ninguém que os amparasse, de vez que Helena
fôra chamada novamente a Roma, a fim de prestar assistência ao pai enfermo.
Aconselhado por um médico de bordo, o genro de Vetúrio desembarcara a
meio do caminho, de onde enviara mensagem, rogando a ela e a Basílio lhe
fôssem ao encontro. Solicitava, com empenho, ao velho afinador
acompanhasse a filha, entretanto, naturalmente ignorava que o filósofo havia
sido morto. Por isso mesmo, ele, Teódulo, prontificava-se a segui-la de perto...
Lívia ouviu as informações, apertando o coração com a destra trêmula.
Refletiu alguns instantes, tateou os próprios olhos, agora terrivelmente
inflamados, e falou, triste:
— Senhor Teódulo, estou profundamente agradecida à sua bondade.
Desvanece-me a lembrança de Taciano, buscando-me o concurso tão pobre,
entretanto, reconheço-me incapaz de realizar a viagem... Algo sucedeu com os
meus olhos... De algumas horas para cá, observo que a minha visão
desapareceu... Ouço-lhe a voz, mas não o vejo. Dores quase insuportáveis me
percorrem a cabeça. Estou inutilizada... Em que poderia ser útil aos nossos
amigos que me aguardam? não será mais justo permanecer aqui mesmo e
aceitar, conformada, as circunstâncias? Taciano escreveu pedindo a meu pai
me conduzisse. Meu pai, contudo, está morto... Quanto a mim, doente e só,
que poderia fazer? Ser-lhe-ia pesado fardo em jornada tão longa... Não será
mais aconselhável que o senhor se desinteresse de minha sorte?!...
— Nada disso! — ajuntou o interlocutor, com manifesta hipocrisia — não
me cabe abandoná-la, de modo algum. Para as doenças, temos sempre bons
médicos. Sua saúde receberá a necessária assistência. A enfermidade, longe
de ser um empecilho, é forte razão para maiores cuidados por parte daqueles
que são nossos reais amigos. Além disso...
E a voz de Teódulo se fêz mais baixa, como se quisesse despertar o medo
da companheira:
— O legado é inconsequente. A cidade inteira, segundo creio, não ignora
que ele a separou das jovens nazarenas, em regime de privilégio. Sinésia deume
a conhecer as suas tremendas provas na câmara de detenção. Agora, que
seu pai não existe, admito seja maior o meu dever de prestar-lhe ajuda. Se o
seu sacrifício representasse uma compensação ao seu ideal, compreender-lheia
o temerário gesto de ficar, mas permanecer em Lião para satisfazer à
bestialidade de um homem constituiria, a meu ver, rematada loucura...
O argumento convenceu-a.
A moça não mais vacilou.
Aceitou-lhe o braço e asilaram-se em singela hospedaria do subúrbio, de
onde partiram, no rumo de novo destino, ao amanhecer.
Em Viena, Teódulo socorreu-se da colaboração de um médico, que
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receitou complicados ungüentos para as feridas oculares.
Dias amargos desdobraram-se em torno de Lívia, desalentada...
Teódulo, a seu turno, em lhe reparando o aniquilamento físico, recordava a
sugestão de Helena que lhe pedira favorecer a morte da moça, através de
algum prato convenientemente preparado ou de algum mergulho nas águas...
A piedade, porém, penetrou-lhe o espírito.
A resignação com que Lívia acolhia o infortúnio comovia-o, fundamente.
Ansiava por desfazer-se dela, como alguém que se desvencilha de um
fardo, entretanto, repugnava-lhe agora a idéia do assassínio.
No porto de Massília, encontraram a única embarcação suscetível de
conduzi-los ao exterior, uma formosa galera romana que demandaria Siracusa,
aproveitando os ventos favoráveis.
O representante de Helena não hesitou.
Depois de examinar as possibilidades de tempo de que dispunha, informou
à jovem que, segundo as notícias recebidas, Taciano estaria na Sicília, à
espera deles, e ambos, desse modo, fizeram-se ao mar.
Paciente com a cegueira que a martirizava, mas sem perder as esperanças
de cura, a doente não encontrou qualquer distração na viagem. Ensimesmada,
limitando-se a conversar com Teódulo quando o administrador de Vetúrio a
procurava, circunscrevia-se a um só pensamento — reaproximar-se dos
amigos e descansar.
Por isso, em soberba manhã, plena de luz, quando o companheiro de
excursão lhe anunciou a chegada a Drépano (17), onde estabelecera ele a suposta
permanência do filho de Varro, agitou-se-lhe o coração, tomado de
alegria.
Desembarcaram aparentemente tranquilos.
Teódulo, que asseverava conhecer a localidade, inflamou-lhe o peito de
esperança. De certo, comentava ele fingidamente, em breves instantes estaria
abraçada à pequena Blandina, rememorando os dias venturosos da vila.
Taciano, sem dúvida, providenciaria tratamento adequado, a fim de restaurarlhe
os olhos enfermos e, em pouco tempo, achar-se-ia integralmente curada,
contente, feliz.
A moça, caminhando pelo braço dele, sorria, enlevada...
Sim, que outros amigos lhe restavam no mundo?
O burgo, cheio de vinhedos e acariciado pela doce viração que soprava do
mar, respirava a paz festiva e balsâmica da Natureza.
Aqui e ali, vozes argentinas cruzavam os ares.
Vendedores de frutas e legumes apregoavam produtos nas praças. Risos
de jovens e gritos de crianças alcançavam os ouvidos da cega que tudo daria
para mergulhar a visão na paisagem ambiente que imaginava encantadora.
Num dos pontos mais movimentados do vilarejo, no pórtico de pequeno
santuário consagrado a Minerva, Teódulo, com voz tranquilizante, ajudou-a a
sentar-se em estreito banco de pedra e pediu-lhe aguardá-lo, por alguns
minutos.
Iria ao encontro de um amigo para certificar-se, com exatidão, quanto ao
endereço de Taciano. Voltaria, dentro em pouco.
Lívia, satisfeita, colocou-o à vontade, mas, tão logo se viu de movimentos
livres, o empregado de Vetúrio desapareceu...
A princípio, a enferma esperou, confiante e paciente, contudo, à medida
que as horas avançavam,
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(17) Hoje Trápani. — (Nota do Autor espiritual.)
sentia aumentada a angústia que lhe asfixiava devagarinho o coração...
Não admitiu fôsse Teódulo capaz de relegá-la a abandono assim tão
completo. O companheiro de viagem poderia ter adoecido gravemente. Algum
obstáculo teria surgido...
Depois do meio-dia, sentiu que a fome e a sede a incomodavam, mas
receou locomover-se.
O administrador da vila poderia aparecer de momento para outro.
Vencendo grandes vacilações, interpelou transeuntes vários, rogando
informes acerca de Taciano, mas ninguém lhe ofereceu o mais leve sinal. De
Teódulo, igualmente, não conseguiu recolher a mais ligeira noticia.
Horas e horas permaneceu exposta na via pública, batida de sol e vento.
À noitinha, quando perdeu a esperança de reencontro com o administrador
da vila Vetúrio, caiu em profundo desalento.
Percebeu que o Sol se despedia, que as virações da tarde se mostravam
mais frias e lembrou que o destino a enjeitara pela segunda vez...
Ouvia, de quando em quando, impropérios de homens descaridosos, a lhe
dirigirem frases torpes, e, aflita, perguntava a si mesma como proceder.
Achava-se tão só na Sicília, como fôra encontrada ao nascer, na charneca
de Cipro...
Porque viera ao mundo com semelhante destino? — refletia, atormentada.
Teria ainda mãe no mundo? a que família se filiava? que tragédia passional lhe
havia precedido o nascimento? Recém-nata, não poderia registrar qualquer
sensação de abandono, mas agora... Mulher consciente, com tantos sonhos
desfeitos, assinalava superlativo sofrimento moral.
Para onde iria?
Se, ao menos, pudesse trabalhar...
Reconhecia-se, porém, inútil e cega.
Como se lhe desdobraria o futuro?
Rendeu graças a Deus porque conseguia chorar livremente... Nunca
recordou, com tanta intensidade, a ternura paterna, desde a separação de
Basílio, como naquela hora.
O velho filósofo ensinara-lhe que a morte não existe, que as almas vivem
além da Terra, em esferas compatíveis com o aprimoramento moral de que são
portadoras. Nunca lhe pusera em dúvida as menores lições. Certamente, o
carinhoso protetor prosseguia vivendo, em algum lugar... Mas, poderia, acaso,
acompanhar-lhe a dor?
Lembrou as reuniões evangélicas da casa de Vestino e procurou arrimar-se
à fé.
Indubitavelmente, os amigos que lhe haviam tomado a vanguarda na morte
não a olvidariam relegada à solidão.
Deixou que as lágrimas lhe rolassem pela face que a ventania do
crepúsculo açoitava, impiedosa, e rogou em pensamento:
— Pai amado, não me abandones!... De onde estiveres, volve o generoso
olhar sobre mim... Lembra-te do dia em que me acolheste no matagal deserto e
asila-me, de novo, em teu carinho! Estou enjeitada outra vez... Não sei porque
contrário destino me pesa sobre a alma, embora creia, como me ensinaste, que
Jesus vela por nós do Céu! Agora que me sinto aniquilada e cega, não me
159
deixes perder a luz íntima da esperança e ajuda-me na restauração do bom
ânimo!... Muitas vezes me disseste que o sofrimento nos purifica e eleva para
Deus! Faze-me compreender esta realidade com mais força para que a dor não
me arroje aos precipícios da inconformação!... Falavas-me sempre que a nossa
vida não se extingue com a morte, que a alma se ergue aos cimos da eternidade,
onde reina a paz! Acreditavas que os mortos são mais vivos que os
homens amortalhados na carne e admitias, com segurança, que os nossos
entes amados, além do sepulcro, podem auxiliar-nos e proteger-nos!... Como,
pois, esquecer-me de ti, que foste em todos os dias o amigo e benfeitor
contínuo! Como seria feliz, acompanhando-te os passos! Não pude, entretanto,
desfrutar o privilégio de morrer por Jesus nos tormentos da arena. Ó meu pai,
porque não me foi concedida a graça de partir, junto dos nossos? porque me
separou o destino das companheiras que se fizeram venturosas pelo martírio?
Tem compaixão de mim! Explica-me a vida como noutro tempo!... Orienta-me
no labirinto! Lembra-te de que ainda não passo de uma criança às escuras no
matagal humano e faze-te meu protetor, novamente! Trouxeram-me até aqui
com a promessa de reencontrar nossos amigos, cujo paradeiro ignoro!
Provavelmente, não mais lhes apertarei as mãos neste mundo. Na Terra, a
separação é sempre mais fria pelos obstáculos que distanciam a nossa visão
das pessoas amadas, mas, na vida espiritual, o coração deve possuir recursos
diferentes para fortalecer o amor e socorrê-lo!
Lívia desejava gritar as palavras que a mente compunha, na suposição de
que o vento as levaria, clamantes, para o Céu, todavia, a movimentação dos
pedestres compelia-lhe o espírito à prudência...
Continuava, pois, a chorar em prece, quando, como num sonho miraculoso,
viu desenhar-se luminoso caminho nas trevas que lhe entenebreciam os olhos
e, através desse trilho fulgurante, reconheceu Basílio, que avançava ao seu
encontro.
Extasiada, tentou nomeá-lo em voz alta, ébria de júbilo, mas a inesperada
alegria como que lhe paralisara as cordas vocais.
O velho amigo, envolvido em claridade inexprimível que o fazia mais jovem,
aproximou-se, pôs a destra nos ombros dela, como antigamente, e falou,
conselheiral:
— Minha filha, os aprendizes de Jesus, tanto quanto ele mesmo, conhecem
a solidão, jamais o desamparo! Não te lamentes no nevoeiro em que o Céu te
prova a confiança!... Nas noites mais escuras, há mais fulgor nas estrelas...
Nossas esperanças brilham com maior intensidade no inverno dos grandes
padecimentos. Reanima-te e crê no poder excelso de Nosso Pai.
O Espírito de Basílio fêz ligeira pausa, acariciou-lhe a cabeleira castigada
pelos sopros do vento e continuou:
— Realmente, nós te precedemos na inevitável viagem do túmulo!... Para
nós, a luta na carne foi provisoriamente interrompida e, com acerto, disseste
que fomos quinhoados com a prerrogativa de algo sofrer pela extensão do
Evangelho no mundo... Mas não te creias excluída do testemunho e da
flagelação. O tormento dos olhos é o sinal de que não foste esquecida...
Naturalmente, aqueles que nos guiam de planos mais altos confiaram-te à
fidelidade algum serviço no mundo, acima do nosso!... O Senhor não entrega
responsabilidades de certa natureza a corações ainda frágeis, assim como não
dependura o fruto alimentício no ramo tenro do vegetal nascente... Tem
coragem! Às vezes, é necessário nos mergulhemos na sombra para auxiliar os
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que jazem nas trevas!... Reunir-te-ás a nós, brevemente! Arrima-te ao bordão
da fé e não desfaleças!... Seguir-te-emos o trabalho, passo a passo... Quando
o sacrifício te parecer mais doloroso e mais áspero, agradece a Jesus a
oportunidade do precioso combate! Se algo existe no mundo que possa
expressar nosso serviço com Deus, é a plena realização da tarefa
enobrecedora que a vida nos assinala. E, porque o esforço da renúncia não é
acessível a todos ao mesmo tempo, recebe a gradativa imolação de ti mesma
como bênção do Alto. Não perguntes pelas razões que te impuseram a
cegueira física! Não te sintas injustiçada !... A vida é sempre um milagroso
tecido da Divina Sabedoria. Às vezes, a aflição é véspera da felicidade, tanto
quanto o prazer, frequentemente, é produção de angústia... Nunca te esqueças
do Enviado que nos recomendou o perdão setenta vezes sete para cada
ofensa, que nos inclinou ao amor pelos inimigos e à prece pelos
perseguidores... Curta é a passagem de nosso Espírito pelo lamaçal da vida
terrestre... A dor é o lado avesso da alegria, assim como a sombra é o reverso
da luz... Mas, na economia das verdades eternas, só a alegria e a luz nunca
morrem. Treva e sofrimento são estados de nossa posição imperfeita, à frente
do Altíssimo... Entrega-te, pois, à boa luta, com serenidade e destemor.
Permaneceremos junto de ti, orientando-te no escabroso caminho!...
Basílio imprimiu longo intervalo às considerações que emitia, enlaçando
com ternura a filha jubilosa.
Lívia respondeu-lhe o gesto de carinho, como se quisesse retê-lo no
próprio coração.
Todavia, embora encorajada e ditosa, refletia no imediatismo do mundo.
Que seria dela quando se visse novamente só?
Caíra a noite... Onde abrigar-se?
Estaria sentenciada a enregelar-se na via pública?
O benfeitor espiritual percebeu-lhe os pensamentos e logo a eles
respondeu:
— Não temas! O Pai que nutre os passarinhos, cada manhã, jamais nos
esqueceria. O socorro não tarda... Não cerres o coração à bondade e à confiança
para que o Senhor não encontre dificuldades em ajudar-te. A cegueira
dos olhos não é inutilidade da alma... Recorda a nossa pobreza laboriosa. Não
encontrávamos ambos, na música, a nossa razão de viver?
Nesse instante, Lívia escutou, não longe, uma voz de criança que cantava,
comovente, acompanhada por um alaúde mal tangido:
Somos pobres, pobrezinhos...
Vivemos de déu em déu)
Mas somos afortunados
Da graça que vem do Céu...
Minha mãezinha doente,
Cansada de tanta dor,
Em minha voz de menino
Pede uma esmola de amor...
Um pequeno de sete anos, robusto mas pobremente vestido, parara junto
dela, seguido por esquelética tuberculosa.
Evidentemente, eram pedintes.
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O artista miúdo que tocava e cantava, ao mesmo tempo, era familiar do
público, porque várias pessoas lhe chamavam pelo nome, exclamando:
— Celso, cante mais!
— Celso, toque mais um pouco!...
O menino atendia, satisfeito, recolhendo moedinhas esparsas, entregandoas
à enferma.
Lívia não mais viu a figura paterna, talvez diluída nas emoções novas a lhe
penetrarem a mente, mas ainda escutou a palavra de Basílio, que lhe falava,
branda:
— Descerra o coração, minha filha!... Repara! Uma criança humilde recorre
à bondade nas ruas... Ajuda para que te ajudem, revela-te aos outros para que
outros se revelem a ti...
A moça notou que uma força nova irrompera-lhe nalma.
O petiz terminara uma das cantigas regionais que aprendera, e,
instintivamente, ela também se associou ao público, chamando:
- Celso! Celso, deixa-me tocar o instrumento. O pequeno aquiesceu, de
pronto.
De posse do alaúde, a cega tornou, em pensamento, ao antigo lar.
Esqueceu-se de que se achava na posição de estrangeira numa terra que
desconhecia e cantou com toda a alma, qual se estivesse numa de suas horas
mais felizes, à frente do velho pai.
Grande silêncio acompanhou-lhe as belas canções romanas.
Os transeuntes adensavam-se agora no pequeno átrio de Minerva, e a
criança, ao fim de cada número, recebia as contribuições de senhoras e cavalheiros
comovidos, repletando a surrada bolsa.
O quadro vivo de uma cega a exibir-se, de uma tuberculosa ao relento e de
um pequerrucho esfarrapado passou a arrancar as lágrimas de muitos.
Depois de vasto repertório, em que tivera o cuidado de selecionar as
melodias para não ferir as suscetibilidades do público, então dividido no culto a
Jesus e no culto às antigas divindades, Lívia calou-se.
Muitas damas emocionadas cumprimentaram-na às despedidas.
Esvaziou-se o recinto, pouco a pouco.
Celso, entretanto, conchegou-se-lhe ao colo, ternamente.
— Como te chamas? — indagou ele, com simplicidade e candura.
— Lívia. E tu, meu inteligente cantor?
— Quinto Celso.
— Estás sozinho?
— Minha mãe está comigo.
Feita a apresentação, abraçaram-se ambas.
Hortênsia Vipsânia, a genitora de Celso, biografou-se em frases rápidas.
Era viúva de Tércio Avelino, um miliciano que morrera sem honras,
deixando-lhe o filhinho único nos braços. O marido falecera em Siracusa, onde
residiam desde a transferência de Roma; todavia, tão angustiosa se lhe tornara
a vida, na grande cidade, que, enfraquecida e derrotada, resolvera experimentar
a permanência em Drépano, onde conseguia manter-se com menos
dificuldade. Lutara intensivamente, fabricando guloseimas para vender, no
entanto, adquirira a pertinaz enfermidade que a minava devagarinho... Sitiada
pela miséria, ensinara o filho a tanger imperfeitamente o alaúde, de modo a
recorrerem à caridade pública.
Sentia-se, porém, exausta. Receava morrer, de momento para outro. Por
162
duas vezes, sofrera hemoptises inquietantes e vivia alarmada...
Lívia tentou reconfortá-la com palavras fraternas, afagando a cabeça do
menino que a enlaçara docemente. E, quando interpelada sobre a própria
história, relacionou a difícil experiência que atravessava. Perdera o pai na Gália
Lugdunense e, cega, fôra trazida à Trinácria (18) por um condutor, em busca
de velhos amigos que não conseguira reencontrar. Estranha ao meio,
desconhecia o próprio destino e, sem ninguém, não sabia de que maneira
movimentar-se...
O pequeno, que parecia sumamente interessado na conversação,
interferiu, perguntando:
— Mamãe, Lívia não poderia ser nossa?
E talvez entusiasmado pelas canções que ouvira, ajuntou, com
espontaneidade:
— Sairemos juntos e a senhora descansará. A mãezinha pobre sorriu em
desconsolo e observou:
— A lembrança de Celso é igualmente minha. Contudo, minha filha,
moramos num cubículo que mal nos cabe - Se te apraz, vem conosco ...
A moça, num ímpeto de jubiloso reconhecimento, pediu-lhe a destra e
osculou-a em lágrimas.
Considerava o oferecimento uma bênção do Céu.
Não perdia a esperança de reunir-se a Taciano e Blandina e, enquanto
estivesse à procura deles, aceitaria aquele amparo.
Ali mesmo, traçaram planos.
Celso ser-lhe-ia o orientador na via pública, mas cooperaria em favor dele,
ministrando-lhe rudimentos de educação e arte, na preparação do futuro -
O asilo de Hortênsia era um minúsculo telheiro que lhe fôra cedido pela
caridade de nobre família.
(18) Também antigo nome da Sicília. (Nota do Autor espiritual.)
Aí, a infortunada viúva cozinhava e dormia, simultaneamente.
Naquela noite, porém, o tugúrio estava em festa.
Dos recursos arrecadados, a doente retirou grande parte e mandou o
filhinho à procura de alimento.
Pães e bolos de carne, além de regular provisão de leite de cabra foram
trazidos pelos braços pequenos, preocupados em servir...
E os três, agradecendo, em silêncio, ao Céu, a alegria que lhes vibrava na
alma, partilharam a refeição singela, sentindo-se mais felizes que os áulicos
afortunados da casa dos reis terrestres. Hortênsia, desejando preservar a
saúde do menino, isolara-o ao canto do quarto, numa cama de palhas, e foi
junto do pequenino que Lívia se acolheu.
Antes de dormir, com a sinceridade cristalina da criança, Celso, feliz,
dirigiu-se à genitora interrogativamente:
— Mãezinha, e a nossa prece? Não pediremos hoje a bênção de Jesus?
Lívia compreendeu o constrangimento da benfeitora, que talvez estivesse
silenciando por respeito a convicções diferentes que ela pudesse esposar, e
ofereceu-se, de imediato:
— Farei a oração desta noite. Graças a Deus, eu também sou cristã.
E, ante às expressões de ternura que mãe e filho externaram, orou,
sentidamente:
163
— Senhor Jesus, abençoa-nos a fé com que esperamos por ti!...
Agradecemos-te a felicidade de nosso encontro e o tesouro da amizade com
que nos teces a união. Louvores te rendemos pelo auxílio dos nossos
companheiros e pelas lições dos nossos inimigos! Ensina-nos a descobrir a tua
vontade no escuro caminho de nossas provas... Dá-nos a conformação ante a
dor e a certeza de que as trevas nos conduzirão à verdadeira luz! Senhor,
concede-nos a humildade de teu exemplo e a ressurreição de tua cruz! Assim
seja!...
Hortênsia e o filhinho, tomados de inexprimível esperança, com a presença
daquela jovem mulher que, sozinha e cega, encontrava elementos em si
mesma a fim de encorajá-los, repetiram «assim seja» e dormiram tranquilos.
Nova existência surgiu para o grupo, no dia imediato.
Extremamente confortada naquele santuário doméstico, esforçou-se Lívia
em contribuir com segurança para a tranquilidade dos três, incumbindo-se de
pequeninos afazeres e alegrando o ambiente com as abençoadas lições que
trazia do convívio paternal. Embora cega, colaborou de boa vontade na limpeza
da casa e, à noitinha, deixando Hortênsia em repouso, caminhou com o menino
para a via pública, onde, ao preço de música, angariaram recursos novos.
Menos preocupada com o filhinho, a desventurada viúva pareceu, porém,
mais concentrada na própria moléstia, com inquietantes alterações. Assinalava
com maior desagrado as variações de temperatura e acusava sofrimentos mais
positivos. Ànoite, era visitada por dispnéias sufocantes e, durante o dia, longos
e aflitivos acessos de tosse exauriam suas forças.
Com admirável intuição infantil, Quinto Celso percebeu que a mãezinha
tivera agravados todos os velhos padecimentos e redobrava carinhos por vê-la
reanimada e contente.
Associando-se a Lívia, como quem nela encontrava uma nova mãe, cercava
a enferma de inexcedível ternura.
Aumentada a renda diária, a filha de Basílio visitou os donos do pardieiro,
em companhia de Celso, rogando orientação para se transferirem de
residência.
A viúva necessitava de espaço e ar mais puro e podiam, agora, pagar
aluguéis por uma casinha modesta.
O proprietário concordou e auxiliou a realização. Ele mesmo dispunha de
humilde pouso que cederia por retribuição irrisória.
A breve tempo, instalaram-se os três em singela residência de quatro
peças, não longe de árvores benfeitoras, junto das quais a doente conseguiu
prolongar a demora no corpo.
Ali, passaram a receber a visita de Exupério Grato, encanecido
evangelizador cristão que, a pedido da enferma, vinha, quando possível, ler os
sagrados textos e formular orações.
A intimidade entre Lívia e a criança fêz-se mais intensa e mais doce. Dia a
dia, noite a noite, conversavam, estudavam, trabalhavam e previam o futuro.
Certa madrugada, contudo, Hortênsia despertou de olhos arregalados,
como que fixados em visões distanciadas da Terra...
Hemoptise mais forte abatera-a, consideràvelmente.
Acesa a candeia, rogou à companheira abrisse a janela, por onde o ar puro
e perfumado pelas laranjeiras penetrou, balsamizante.
Lívia, apesar de receosa, não conseguia surpreender-lhe a modificação,
mas o menino, inteligente e observador, espantou-se em lhe notando a fisio164
nomia transtornada. A enferma dava a idéia de haver colado fina máscara de
cera ao rosto encovado. Os órgãos da visão mostravam-se quase fora das
órbitas, mas angélica expressão de alegria lhe tomara o semblante.
Celso, aflito, indagou, ansioso:
— Mãezinha, que aconteceu?
A pobre senhora acariciou-lhe a cabeça minúscula e falou, com esforço:
— Meu filho, esta é a última noite que passamos juntos na Terra!... Não te
deixo, porém, a sós... Jesus trouxe Lívia à nossa casa... Recebe-a por tua nova
mãe!... Tem sido para mim valiosa irmã nestes dias em que devo ir-me
embora...
A moça compreendeu o tom daquela voz de adeus e ajoelhou-se em
pranto.
— Não, mãezinha! fica conosco! — soluçou o menino desesperado —
trabalharemos para vê-la feliz! Vou crescer depressa! serei um homem, teremos
uma casa grande só para nós! Não te vás, mamãe! não te vás!...
Lágrimas incontidas deslizaram dos olhos da agonizante. Hortênsia alisou
os cabelos despenteados do filhinho e acentuou:
— Não chores!... onde puseste a fé, meu filho?
— Eu tenho fé, mamãe! Tive fé quando o cão do vizinho nos rondou a
porta, tive fé naquela noite em que o temporal nos encontrou na rua, mas hoje
tenho medo... a senhora não pode deixar-me assim...
— Acalma-te!... — rogou a genitora, preocupada — disponho de pouco
tempo... Entrego-te à nossa Lívia, em nome de Jesus... Não me prendas aqui...
Incapaz de raciocinares como gente grande, não percebes a extensão do
sentimento com que me dirijo à tua alma... Entretanto, filho meu, guarda bem
este minuto!... Mais tarde, quando o mundo reclamar-te a lutas maiores, não
olvides nossa pobreza laboriosa!... Sê bom e trabalhador!... Se fôres induzido
ao mal por alguém, recorda o nosso quadro desta hora... Tua mãe, morrendo,
confiante, segura de teu valor. .. Cresce para Jesus, para o ideal da bondade
que Ele, nosso Divino Mestre, nos ensinou...
E, pousando os olhos imensamente lúcidos na companheira cega, pediu
com humildade:
— Lívia, Quinto Celso será o meu próprio coração, pulsando ao teu lado!...
Se reencontrares os amigos que procuras, tem compaixão de meu filho e não o
abandones...
A interlocutora enxugou as próprias lágrimas e rogou, aflita:
— Minha irmã, não te apoquentes! Dorme de novo!... Sinto-te fatigada...
Hortênsia sorriu, triste, e acrescentou:
— Não, minha amiga!... Não te enganes... Vejo Tércio conosco... Está
robusto como em seus mais belos dias... Diz-me que estaremos juntos... ainda
hoje... Reunir-nos-emos no Grande Lar... Porque haveria de persistir, algemada
ao corpo, quando Celso encontrou arrimo seguro em tua dedicação?... Sintome
feliz, feliz..
Hortênsia, no entanto, emudeceu, de súbito.
Entregue a profundo esgotamento pelo fluxo de sangue que lhe assomava
à boca, demorou-se, ofegante, por algumas horas, até que, reaquecida pelos
primeiros raios de sol da manhã, cobrou energias para dormir o grande sono...
Lívia e Celso reconheceram-se, então, sozinhos. Mãos piedosas dos
irmãos na fé auxiliaram-nos a prestar as derradeiras homenagens à sofredora
morta.
165
Quando Exupério acabou de orar, junto à sepultura singela, ante o
crepúsculo que se fechava em rubros esplendores, Celso abraçou-se à Lívia e
chorou, copiosamente.
— Deixa em paz tua mãe, meu filho! — recomendou a companheira,
emocionada — os mortos prendem-se às nossas lágrimas! não perturbes aquela
a quem tanto devemos!... Não estarás sozinho!... De hoje em diante, sou
também tua mãe...
E a moça cumpriu quanto prometia.
Examinou, acuradamente, a própria situação e compreendeu que as
exibições artísticas em praça pública já não mais lhes convinham.
Celso deveria desenvolver-se com seguras noções de responsabilidade.
Reclamava instrução e preparo, à frente da vida. Não obstante cega, propunhase
trabalhar, de modo a cooperar na formação do caráter dele para o futuro.
Procurou Exupério, o único amigo que poderia aconselhá-la, e expôs-lhe o
plano que lhe acudia ao pensamento.
Não seria possível encontrar atividade remuneradora em Drépano, a fim de
amparar o menino?
O provecto ancião ouviu-a, satisfeito, e rogou-lhe tempo. O projeto era
razoável, mas a localidade era demasiado pobre para que vingasse, de pronto.
Esperaria, no entanto, a visita de companheiros cristãos de outras terras.
Estava convicto de que o projeto encontraria excelente oportunidade noutra
região.
Retirou-se Lívia, esperançada, de coração nutrido por vigorosa fé.
Algumas semanas transcorreram sem novidade, quando o venerando leitor
dos Evangelhos veio trazer-lhe importante notícia.
Achava-se, de passagem, na vila, conhecido amigo de Neápolis (19), o
panificador Lúcio Agripa, que se dispunha a ouvi-la e auxiliá-la, no que lhe
fôsse possível.
Guiada por Exupério, Lívia compareceu à frente do benfeitor, cujo
semblante exteriorizava a beleza moral dos grandes cristãos da Antigüidade.
Olhos plácidos a fulgurarem na face rugosa, a que os cabelos encanecidos
emprestavam prateada moldura, Agripa, depois de escutá-la, falou sem af etação:
— Minha filha, julgo razoável esclarecer-te quanto à nossa posição em
casa. Noutro tempo, retínhamos numerosos escravos, e não éramos felizes,
mas, depois que Domícia e eu aceitamos Jesus por Mestre, nossos hábitos
foram renovados. Os cativos foram libertados e nossos costumes simplificados.
A fortuna em dinheiro fugiu de nossa casa, todavia, a tranqüilidade passou a
morar conosco como um talento celestial. Somos hoje tão pobres como
aqueles que nos auxiliam em nossa fábrica de pão. Se aceitas a nossa vida
frugal, poderemos
(19) Na Campânia (Itália). Hoje Nápoles. —(Nota do Autor espiritual.)
receber-te com a criança. Sei que desejas trabalhar e não ficarás inativa.
Poderás partilhar com Ponciana, nossa velha colaboradora cega, os serviços
diários do moinho. A ausência dos olhos confere maior atenção para os
serviços dessa natureza, de vez que a nossa pedra de moer é adequada ao
concurso humano. Afirmo-te, porém, que não podemos oferecer senão um
salário irrisório, apenas o bastante para pagamento da instrução necessária ao
166
pequenino.
E, com um largo sorriso, o generoso forasteiro concluiu:
- Estarás, porém, conosco, na intimidade do templo doméstico. Temos
nossas preces particulares, em paz e alegria. Neápolis, graças a Deus, não
conhece a perseguição.
Lívia não sabia expressar o próprio contentamento.
— Ah! senhor, isso é tudo quanto desejo! —exclamou jubilosa — servirei,
de bom grado, em vossa casa. Lá, desfrutarei a tranquilidade de que necessito
e Celso obterá a necessária disciplina para crescer honrosamente.
O panificador, homem simples e prestimoso, conversou sobre música e
regozijou-se ao saber que conduziria para a casa não somente uma colaboradora
exclusiva das tarefas braçais, mas também primorosa harpista.
E, depois de alguns dias, Lívia e Celso puseram-se ao mar, no rumo da
cidade nova.
À chegada, o menino, em deslumbramento, gritava a felicidade que o
possuia.
O golfo esplêndido, o casario praiano e o constante espetáculo do Vesúvio,
com o penacho de fumo a perder-se no firmamento, constituíam motivos de
longas e minuciosas indagações.
Lívia, apesar da cegueira física, não cabia em si de esperança.
Domícia, a esposa do benfeitor, recebeu-a, de coração aberto, e, após uma
semana de recuperação das forças, entrou em boa forma no trabalho.
A propriedade erguia-se em rua movimentada e arborizada, sendo objeto
de grande interesse público.
Qual acontecia em quase todas as antigas cidades, o trigo entrava puro no
estabelecimento e aí era convenientemente transformado em farinha para a
manufatura do pão.
Ao lado de Ponciana, a filha de Basílio incumbia-se da mó. A princípio, o
trabalho se lhe figurou excessivamente pesado, mas Lívia, rendendo graças a
Jesus por haver encontrado algo com que ocupar a mente atribulada, procurou
adaptar-se, cantando, ao novo gênero de obrigações.
Na primeira noite, recolheu-se, fatigada, ao quarto singelo que Domícia
reservara para ela e o pequeno, e Celso, que se sentia realmente como seu
filhinho, contrariado ao vê-la abatida, comentou o novo tipo de luta,
perguntando:
— Mãezinha, porque tanto trabalho? não seria melhor tomar o nosso
alaúde e ganhar dinheiro das pessoas que passam nas ruas?
— Não, meu filho, O serviço é o único meio através do qual podemos
extravasar as riquezas do coração, no engrandecimento da vida. Amas a Jesus
e desejas servi-lo?
— Sim, sim.
— Então, é indispensável saibamos cooperar com ele, disputando para nós
a satisfação de fazer o mais difícil. Se todos procurarmos a alegria de colher,
quem se incumbirá do sacrifício de plantar?
Revelando, porém, o cérebro infantil distanciado das questões filosóficas,
Celso continuava, indagando:
— Onde está Jesus, mãezinha?
— Segue-nos, passo a passo, meu filho. Sabe quando nos esforçamos por
imitá-lo e conhece-nos as faltas e fraquezas. Assim como o Sol nos envia do
céu a sua luz, fazendo-se presente, de maneira constante, em nossa estrada,
167
também o Senhor éo divino Sol de nossas almas, a iluminar-nos por dentro,
despertando-nos para o bem e guiando-nos à vida imortal.
— Minha mãezinha Hortênsia dizia que ele era o maior amigo das crianças.
— Era e é, ainda e sempre — acrescentou Lívia, carinhosa —; Jesus confia
nas crianças, esperando que elas cresçam para a glória da bondade e da paz,
a fim de que o mundo se transforme em Reino de Deus.
Quinto Celso abraçou a mãezinha espiritual, com mais ternura, sentou-se e
recitou pequena oração de louvor e reconhecimento ao Divino Mestre e, logo
após, segurando a destra de Livia, adormeceu com a despreocupação de um
pássaro feliz.
A filha de Basílio, depois de tatear, agasalhando o menino, prosseguiu
velando, pela noite a dentro.
Por que insondáveis desígnios fôra parar naquela casa com uma criança
que lhe não pertencia pelos laços consanguíneos? Por que misteriosas
determinações do Senhor fôra trazida à Sicília e da Sicília a Neápolis, onde a
vida lhe surgia inteiramente nova? Onde estariam Taciano e Blandina que
supunha nunca mais encontrar?
Lívia recordou, um a um, os dias difíceis que vinha atravessando, desde a
separação do velho pai, e rendeu graças a Jesus por haver encontrado aquele
pouso de reconforto e paz.
Acariciou o pequeno que ressonava, plàcidamente, e rogou a bênção do
Céu para ambos, sentindo-se quase feliz, mas ignorando que o convívio de
Hortênsia lhe havia transmitido as sementes de nova dor, com que ela,
devagar, caminharia para a morte.
168
5
Expiação
O regresso de Taciano e da filha a Lião verificou-se em manhã radiosa de
luz.
Informado pelo sogro, cuja presença suportara com dificuldade, de que os
médicos haviam recomendado o retorno de Lucila, com urgência, ao clima
provinciano, resolveu retomar, sem detença, o caminho do lar.
A volta, contudo, fôra morosa, em razão dos ventos contrários que lambiam
o Mediterrâneo.
Os nossos viajantes entristeciam-se com a demora, ansiosos que estavam
pela recuperação da paz no campo.
O patrício sentia-se mais tranquilo, acerca da filha doente. Se a esposa
deliberara efetuar a viagem, a conselho dos facultativos, semelhante medida
era bem o sinal de que a enferma não estaria em condições tão precárias
quanto se supunha.
Certo, Lucila restabelecer-se-ia, calmamente, na Vila Vetúrio. A família não
sofreria golpes de maior importância.
Por esse motivo, deixava-se levar por um desejo único: rever o velho
filósofo e a filha, cujas afeições eram abençoado estímulo a levantar-lhe as
forças para viver.
Ele e Blandina gastavam longas horas, conversando sobre música ou
projetando excursões campestres, na expectativa do longo e venturoso abraço
da volta...
No entanto, dolorosa decepção aguardava-os. Realmente, encontraram
Lucila forte e restaurada, na entusiástica preparação do casamento com o tio,
mas, estarrecidos, pai e filha receberam as infaustas notícias da cidade.
O afinador e a filha haviam sofrido a perseguição considerada legal.
O enviado imperial promovera minuciosas devassas e os nazarenos
haviam experimentado os rigores da lei. Muitos se mantinham fugidos, outros
haviam sido mortos.
Taciano, abatido, ouvia os apressados informes dos domésticos...
Algumas horas depois da chegada à vila, Helena provocou um encontro
mais íntimo com o esposo, crivando-o de perguntas acerca da saúde paterna e
explicando as razões que a fizeram ausentar-se, precipitadamente, de Roma.
Esperava-o, ansiosa, quando o médico de confiança lhe aconselhara o
retorno imediato ao clima gaulês. Lucila, frágil, parecia uma flor a extinguir-se.
Não vacilara, assim, em voltar sem delonga.
O marido escutava, absorto, mostrando-se mentalmente em outra parte.
A filha de Vetúrio conhecia os motivos de semelhante distração. Deixara
Blandina, nos aposentos particulares, inconformada e lacrimosa, e, pela atitude
da filha, não podia ignorar que o esposo, por dentro, naquele instante, era um
homem espiritualmente transtornado.
Fixou-o, com mais atenção, e falou, num tom de voz em que se misturavam
as vibrações de magoa e de atrevimento:
— Taciano, não posso calar a revolta justa que me assoma ao espírito, à
frente do desencanto a que nos constranges em casa. Esperava, sinceramente,
o teu regresso, não apenas na condição de mulher que aguarda o
companheiro, mas também na posição de mãe, aflita pelo reencontro da
filhinha distante... Contudo, a ausência de cristãos desclassificados, que
169
sofreram simplesmente o ajuste necessário com as leis, compele-te a terrível
máscara de surpresa e de dor, com o agravante de haveres permitido a
fascinação de Blandina pelos sortilégios desses feiticeiros. Temos nossa filha
doente e prejudicada por desleixo de tua parte. De nada me valeu tão longo
sacrifício pela primogênita, quando relegaste nossa filhinha mais nova a
superstições e desvarios, porque não creio esteja Blandina isenta da loucura
Galiléia. Ainda se estivéssemos à frente de pessoas respeitáveis..
— Helena! — atalhou o companheiro, visivelmente contrariado — guarda
cautela com as tuas referências! Basílio e a filha eram nossos amigos diletos.
Se adotavam o Cristianismo por norma de fé, jamais se reportavam a isso em
nossas conversações. Nossa comunhão foi sempre a mais digna.
— Não me parece — considerou a esposa, irônica —; a tua reação diz bem
dos teus sentimentos. Ao regressar, fui bem informada de que a filha do liberto
de Carpo guardava a intenção de substituir-me. Dominado por semelhante
mulher, qualquer homem desavisado, naturalmente, nada vê...
— É uma calúnia! — clamou Taciano, principiando a exasperar-se. — Lívia
era casada e não seria capaz de descer do compromisso assumido.
O patrício quis atirar-lhe em rosto quanto sabia, de experiência própria, do
procedimento dela mesma, na estreita ligação com Teódulo, contudo, julgou
prudente calar-se.
Finda curta pausa, continuou:
— Ainda agora, em Roma, num ligeiro entendimento com Cláudio Lício, a
cuja amizade recomendei-lhe o marido, vim a saber de sua viuvez... Não te
doerá ao coração feminino a desventura de uma pobre e indefesa mulher?
— Ah! era então casada?
— Sim, cheguei a abraçar-lhe o esposo, Marcelo Volusiano, que desejava
tentar a vida em Roma, onde apareceu morto nas águas do Tibre. Esperava
rever nossa amiga para transmitir-lhe a notícia, entretanto...
Helena empalideceu, de súbito, compreendendo que o sedutor de Lucila
havia mentido até ao fim.
Começou a refletir na trama escura dos destinos do seu grupo familiar,
mas, interessada na recuperação da própria tranquilidade, tratou de esquecer
tudo, adoçou a expressão da bela máscara fisionômica e, fingindo dignidade
ferida, exclamou:
— Querido, conversemos sem irritação. De certo, não me cabia ver nossa
casa invadida por estranha influência, sem reagir, de algum modo, todavia,
tudo fiz para não desmerecer de tua confiança, em se tratando de amigos do
teu círculo pessoal. O velho afinador e a filha foram presos em movimentado
conventículo do culto proibido, na casa miserável de um ancião
reconhecidamente louco, que respondia pelo nome de Lucano Vestino.
Egnácio Valeriano e a esposa, agora ausentes, são romanos de excelente
linhagem. Viajaram para cá, em minha companhia. Tecemos por isso fortes laços
afetivos. Compreendendo a perigosa situação dos detidos e sem esquecerme
de que a moça exercera o mister de preceptora de nossa filha, de conformidade
com as recomendações de Teódulo impetrei o indulto das
autoridades para ambos... O legado de Augusto, entretanto, esclareceu à
nossa casa que Basílio foi tão singularmente audacioso no insulto às nossas
tradições e às nossas leis que, muito a contragosto, se viu obrigado a levá-lo
aos cavaletes de suplício, nos quais, segundo supomos, morreu de forte susto,
de vez que não chegou a ser supliciado. Continuei a trabalhar pela libertação
170
da jovem, mas vi frustrados todos os meus intentos, porque o representante de
César, de acordo com a voz pública, apaixonou-se por ela, separando-a das
demais mulheres encarceradas. LIvia, pelas informações que obtive, passou a
viver num gabinete isolado, onde Valeriano ia vê-la diàriamente. Enciumada,
CLímene, a esposa de Egnácio, ao que nos consta, mandou aplicar-lhe um
cáustico aos olhos, por intermédio de uma criada, de nome Sinésia; todavia, a
prisioneira, não se sabe como e auxiliada não se sabe por quem, conseguiu
evadir-se pouco depois, valendo-se das sombras da noite. Não pude saber se
a pobrezinha ausentou-se ilesa ou se os olhos dela foram vítimas da perversidade
de Clímene. Procurei a única pessoa capaz de aclarar-nos com
segurança, a servidora Sinésia; contudo, Egnácio Valeriano, quando tomou
conhecimento da fuga, foi acometido de estranha demência. Gritava pela
mulher amada, em voz estentórica, e, depois de bàrbaramente espancar a
criada, tentando arrancar-lhe alguma confissão, determinou fôsse ela algemada
para interrogatório no dia seguinte, mas, ao amanhecer, o cadáver da infeliz foi
encontrado na prisão, rígido e frio. Sinésia foi assassinada por alguém que
soube ocultar-se nas teias de impenetrável mistério.
— Como tudo isso é doloroso! — deplorou Taciano, de olhar nublado.
Helena percebeu a diferença que se operara nele e prosseguiu, com maior
inflexão de carinho:
— Sabendo por antecipação como te afligiriam os deploráveis sucessos,
determinei providências para que a casinha de Basílio fôsse guardada a
cavaleiro de qualquer irreverência das autoridades. Espero possas encontrar a
residência humilde nas mesmas condições em que o velho a deixou. Tudo sem
mudança...
E, à frente do companheiro prostrado pela dor, completou a mentirosa
versão dos fatos, ajuntando:
— Todavia, não me preocupei tão somente com esse aspecto da situação.
Convicta de que chegarias, de momento para outro, encarreguei Teódulo de
visitar o porto de Massília, na esperança de colher qualquer informe sobre um
possível embarque da jovem para algum lugar.
Taciano, angustiado, pronunciou breves palavras de reconhecimento. A
suposta benemerência da esposa, de alguma sorte, redimia-a aos seus olhos.
Ao entardecer, encaminhou-se para o domicílio singelo.
A sós, na peça estreita, deu curso à emoção que lhe fluía da alma...
Contemplou a harpa, agora muda, sentou-se na poltrona que lhe era
familiar e, a distância dos olhos alheios, cedeu ao pranto convulsivo.
Recordava-se de Basílio, encanecido e confiante, revia Lívia em
pensamento, recapitulando a noite das despedidas, e não sabia se chorava de
amor ou de compaixão.
Cambaleante, abeirou-se do pequeno gabinete em que o velho se
entregava a estudos habituais e, após compulsar alguns trechos de leitura, encontrou
anotações evangélicas do afinador, que lhe denunciavam as
predileções religiosas.
Algumas notas autobiográficas enfileiravam-se, esclarecedoras.
Basílio não era cristão de muito.
Em Cipro, devotava-se ao culto de Serápis curador.
Somente em Massília, meses antes da transferência para Lião, é que
conhecera o Evangelho, afeiçoando-se a Jesus.
Receitas e instruções aos enfermos, do tempo em que venerava o antigo
171
deus egípcio, então transformado em companheiro de Esculápio, misturavamse
a preciosas anotações alusivas ao Novo Testamento. Poesias de louvor às
antigas divindades e apontamentos apostólicos do Cristianismo nascente
jaziam colecionados, revelando-lhe a caminhada espiritual.
Por último, deteve-se Taciano, admirando curioso trabalho de Basílio,
intitulado «De Serápis a Cristo», que lhe marcava a definitiva transição.
O genro de Vetúrio examinou a documentação com um respeito que jamais
consagrara a qualquer assunto ligado à personalidade do Messias Galileu.
Em seguida, abismou-se em pesadas cismas...
Porque se via, assim, perseguido pelo Cristo em toda a parte?
Lembrou o primeiro contacto com o pai, arrebatado pelo martírio, em
supremo testemunho de fé.
Recordou a longínqua festa da Vila Vetúrio em que o pequenino Silvano
perdera a vida...
Rememorou o sacrifício de Rufo, o escravo decidido e fiel ao próprio ideal,
e em lágrimas refletiu nos derradeiros dias de sua mãe, insulada no ambiente
doméstico.
As reminiscências do enforcamento de Súbrio passaram, nítidas, por sua
imaginação...
Entretanto, continuava odiando os princípios nazarenos.
Não podia conceber uma Terra em que os senhores se nivelassem com os
escravos, recusava a teoria do perdão irrestrito, jamais concordaria com a
solidariedade entre patrícios e plebeus...
Os deuses antigos, as ePopéias romanas, as conquistas dos imperadores
e a palavra dos filósofos que haviam construído o Direito, na República e no
Império, dominavam-lhe o coração com demasiado vigor para que pudesse
desprender-se, facilmente, do mundo moral em que alicerçara a própria razão
de ser, desde a meninice distante...
Fôra consagrádo a Cíbele e trazia no peito o selo ardente da fé que
orientara os seus antepassados e, nessa confiança, pretendia morrer.
De que modo confrontar Apolo, o benfeitor triunfante da Natureza, com
Jesus, triste homem judeu, crucificado entre malfeitores? porque separar-se do
culto da alegria e da fartura para submeter-se aos sinistros banquetes de
sangue nos circos? por que razão Basílio e Lívia haviam aderido ao movimento
que se lhe afigurava detestável ideologia de espíritos infernais?
Contudo, amava-os, ainda, não obstante cristãos.
No antigo liberto encontrara a vida emocional da alma paterna e na jovem
pudera surpreender um coração afim, capaz de fazer-lhe a felicidade, na
condição de companheira ou irmã.
Acariciado pelo vento frio do crepúsculo, demorou-se o patrício, numa das
janelas, meditando... meditando...
Quase noite fechada, quando se dispunha ao regresso, eis que Blandina
lhe surge ao encalço.
A trêfega criaturinha procurava-o, aflita, por todos os cantos da herdade, e
ao abraçá-lo foi acometida de longo acesso de choro.
O genitor, taciturno, tornou ao lar, reconduzindo-a em pranto...
No dia imediato entrou em entendimento com o proprietário do casebre,
que o afinador alugara por tempo indefinido.
Taciano propunha-se conservá-lo para o culto das próprias recordações.
Reencontraria Lívia?
172
Pensara em avistar-se com o legado de Augusto, mas Egnácio Valeriano,
depois de ligeira permanência na Aquitânia, tornara à sede do Império.
Após adquirir o ninho singelo onde Basílio estacionara por tempo tão curto,
diàriamente passava lá o tempo que lhe sobrava das tarefas costumeiras,
quase sempre seguido de Blandina, que não olvidava os ausentes.
As mãos infantis, minúsculas e frágeis, dedilhavam o instrumento,
buscando imitar a amiga que partira, demandando rumo incerto, aplaudida pelo
pai, que se distraía, em lhe reparando a diligência. Por mais lhe proibisse a
mãezinha tais passeios, mais se empenhava em burlar a vigilância dos servos,
a fim de reunir-se ao genitor em suas isoladas reflexões.
A amizade pelo filósofo e pela preceptora desterrada era cada vez mais
intensa e mais viva em sua imaginação de criança.
Muitas vezes perguntava ao pai se Lívia tinha sido furtada nalgum assalto
de Plutão e, noutras ocasiões, afirmava, cerrando os olhos, que o vovô Basílio
se achava, sorridente, ao seu lado, abraçando-a.
Certa noite em que Taciano se demorara na choupana, além do hábito que
lhe era próprio, Blandina, à porta, contemplava o firmamento constelado,
quando, inesperadamente, desferiu uma exclamação de alegria, bradando,
espantada:
— Vovô! Vovô Basílio, papai! Veja! está chegando!...
Fixou o gesto de quem abraçava algum ente querido e acrescentou,
entusiástica:
— Paizinho, vovô está ao seu lado! ao seu lado!...
Taciano nada via, mas a expressão felicíssima da filha ecoava-lhe fundo ao
coração.
Rememorou antigas histórias em que os mortos tornavam à convivência
com os vivos e, emocionando-se com as palavras da filhinha, admitiu que a
sombra do amigo ali pairasse, realmente.
Teve a impressão de que o amado companheiro ali se mantinha invisível,
como se lhe recebesse o hálito quente sobre o rosto.
De olhos brilhantes, animados pela chama de inexprimíveis sentimentos,
recomendou à miúda interlocutora:
— Blandina, se vês realmente o vovô, porque não sabermos dele quando
reencontraremos Lívia?
A pequena obedeceu e, com a naturalidade de quem se dirigia ao ancião
ressuscitado, inquiriu:
— Vovô, o senhor não está ouvindo a pergunta de papai?
Segundos de pesada expectação rolaram no acanhado recinto.
— Que respondeu ele, minha filha?
Blandina fitou no genitor o olhar terno e confiante e informou:
— Vovô respondeu que estaremos todos juntos, quando escutarmos o Hino
às Estrelas, outra vez...
Taciano sentiu que indefinível angústia lhe absorvia a voz e o coração.
Calado, tomou a destra da pequenina para voltarem a casa, onde, ilhado em
seu gabinete particular, engolfou-se em obcecantes e aflitivos pensamentos...
A existência em Lião prosseguiu expectante, rotineira, monótona...
Na primavera de 256, entretanto, a Vila Vetúrio engalanara-se para o
casamento de Galba e Lucíla, com a imponência característica das famílias
abastadas da época.
O noivo, não obstante prematuramente envelhecido, e a jovem
173
companheira, bela e fútil, pareciam irradiar otimismo e ventura.
Opílio, embora trôpego e fatigado, retribuindo a visita do genro,
acompanhara o filho para a cerimônia dos esponsais.
O retorno dele, depois de tantos anos, trouxera grande interesse na capital
da Gália Lugdunense. O suntuoso palácio rural convertera-se, de novo, em
centro importante de intrigas políticas, através de noitadas fulgurantes e
alegres.
Cada vez mais próspero nos negócios materiais, o velhinho instituira
vultosas dádivas à pobreza, em homenagem ao consórcio da primeira neta.
Festas expressivas foram organizadas, por vários dias, destacando-se a
grande naumaquia, nos jardins da herdade, levada a efeito com inexcedível
esplendor.
O encanecido sogro desdobrava-se em gentilezas por fazer-se amável com
o enteado, mas ao contrário do que sucedia com Helena, imperturbável e feliz
com a realização do sonho que lhe atormentava a ambição materna, Taciano
não sabia como esconder a preocupação e a tristeza que lhe amarfanhavam o
espírito.
É que Blandina definhava sem motivo justificado.
Possuída de incompreensível melancolia, a menina, por vezes, passava
horas e horas, na câmara de repouso, a pensar e pensar...
Não valiam conselhos, nem pareceres médicos. Pálida, estiolada, dava a
idéia de viver, mentalmente, a enorme distância de si mesma.
Compareceu às solenidades dos esponsais, agarrada ao braço paterno,
apesar da desaprovação de Helena que, diante do rostinho ossudo e
descolorido, não tinha coragem para forçar determinações.
Percebendo-lhe a debilidade orgânica e talvez para ser agradável aos
filhos, o avô Vetúrio, assim que os nubentes se ausentaram em direitura à capital
do Império, propôs a mudança temporária da família para Baias (20), no
golfo maravilhoso de Neápolis, onde possuía confortável residência de recreio.
O sul da Itália operava milagres e a amenidade do clima restauraria as
forças da doentinha. As excursões pelas praias próximas e as visitas periódicas
que poderiam efetuar à ilha de Cápri, certo lhe renovariam as cores.
Deixariam a vila sob a responsabilidade de Teódulo, de vez que ele
também seguiria o genro e a filha. Sentia-se entediado do turbilhão citadino.
Tinha sede da Natureza...
Entusiasmado, pediu que a viagem não sofresse delongas. Estava convicto
de que a saúde da netinha reclamava providências imediatas.
Em razão disso, nada surgiu que adiasse a realização.
Garbosa galera em breve tempo conduzia a família para a estação
indicada, na época um dos mais concorridos centros termais da Itália.
A viagem corria calma.
Taciano e a filhinha rejubilavam-se, por toda a parte, com os painéis
sublimes da Natureza, mas
(20) Hoje. Baia.
Helena, invariàvelmente pródiga em complicações e inutilidades, rodeava-se de
todo um séquito de camareiras, costureiras, cantores e bailarinos que lhe
afugentassem os ócios.
Asseverava que a beleza da costa neapolitana outra coisa não era senão
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enfadonha quietude e, forrando-se ao sacrifício para satisfazer os caprichos do
pai e as necessidades da filha, projetava festividades e aventuras, com que se
desvencilhasse do tempo.
Embalde Anacleta, agora de cabelos brancos e visivelmente fatigada,
buscava induzi-la ao descanso. A matrona, cujos encantos juvenis foram
sempre conservados com elixires e ungüentos, gargalhava, zombeteira.
Acreditava que os deuses mantinham, inalteráveis, a saúde e a alegria de
quantos se dispusessem a cultivar o otimismo e a dominação.
A vida — repetia, comumente — era propriedade dos mais fortes. A
felicidade consagrava aqueles que calcassem os fracos e os ignorantes sob os
pés.
Os viajantes e a comitiva atingiram o golfo esplêndido, sem novidades
dignas de menção.
O domicílio de Vetúrio, em Baias, admiràvelmente cuidado por mãos
amigas, era um palacete em miniatura, que trepadeiras floridas ocultavam à
frente do mar.
Ali, a alma e o corpo obteriam surpreendentes recursos de recuperação. O
espetáculo das águas azuis, asilando inúmeros barcos de pescadores em
melodiosas cantilenas, que o vento sussurrante e doce espalhava pelas
redondezas, era milagroso refrigério.
Enquanto Taciano providenciava o reajuste de duas pequenas e
confortáveis embarcações para o contacto mais íntimo com a Natureza, Helena
determinava medidas para que as viaturas da residência fôssem devidamente
renovadas, a fim de entregar-se aos velhos hábitos de vida social intensiva.
Para o genro de Opílio e para Blandina transformaram-se as excursões
numa cadeia de encantamentos. Na ilha de Cápri, demoravam-se horas a fio,
junto ao soberbo e impressionante Palácio de Tibério (Villa Jovis), que o tempo
estragava, impiedoso, multiplicando adoráveis passeios pelas grutas, pelos
cimos de Anacápri ou pelas outras belas vilas construídas ao tempo do famoso
imperador.
Enlevados, visitaram todas as povoações que marginavam o golfo,
conhecendo-lhes os costumes e associando-se-lhes à vida singela.
De outras vezes, contornando o cabo Miseno, deambulavam pela costa,
admirando os revérberos do Sol poente no seio safirino das águas ou as cintilações
prateadas do luar nas praias bafejadas pelas rendas ondulantes de
espuma.
Certa feita, contrariados pelo vento forte, abordaram praia diferente.
O casario de Neápolis erguia-se diante deles.
Embora o firmamento se mostrasse calmo e sem nuvens, Taciano julgou
prudente desembarcar.
O crepúsculo não tardaria.
Ele e Blandina poderiam exercitar resistência em caminhada mais longa.
O servo que os acompanhava incumbiu-se de restituir a embarcação ao
recanto que lhes era familiar, logo que a ventania amainasse, e, pai e filha,
contentes, passaram a visitar empórios e praças, monumentos e jardins.
A satisfação a cada instante lhes retardava o passo.
Alugariam, por isso, um carro para a volta.
Parando aqui e acolá, quando o Sol já havia mergulhado no poente, num
dilúvio de raios de ouro, defrontaram-se com a padaria de Agripa.
O odor agradável que vinha do forno colhera-os na passagem, e, solicitado
175
por Blandina, Taciano concordou em entrar no estabelecimento.
Guloseimas variadas enfileiravam-se à farta.
E, enquanto Agripa atendia, cortês, os dois excursionistas, estes ouviram
uma doce voz de criança que, não longe, cortava o silêncio vespertino,
cantando ao som de uma harpa irrepreensível:
Estrelas — ninhos da vida,
Entre os espaços profundos,
Novos lares, novos mundos,
Velados por tênue véu..
Louvores à vossa glória,
Nascida na eternidade,
Sois jardins da imensidade,
Suspensos no azul do céu.
Dizei-nos que tudo é belo,
Dizei-nos que tudo é santo,
Inda mesmo quando há pranto
No sonho que nos conduz.
Proclamai à terra estranha,
Dominada de tristeza,
Que em tudo reina a beleza
Vestida de amor e luz.
Quando a noite for mais fria
Pela dor que nos procura,
Rompei a cadeia escura
Que nos prenda o coração,
Acendendo a madrugada
No campo de Novo Dia,
Onde a ventura irradia
Eterna ressurreição.
Dai consolo ao peregrino
Que segue à mercê da sorte,
Sem teto, sem paz, sem norte,
Torturado, sofredor...
Templos do Sol Infinito,
Descerrai à Humanidade
Á bênção da Divindade
Nas bênçãos do vosso amor.
Estrelas — ninhos da vida,
Entre os espaços profundos,
Novos lares, novos mundos,
Velados por tênue véu....
Louvores à vossa glória,
Nascida na eternidade,
Sois jardins da imensidade,
Suspensos no azul do céu.
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Taciano e a menina trocaram mudo olhar de intraduzível assombro.
O hino sofrera modificações, mas era o mesmo...
Extáticos, recordaram o crepúsculo inolvidável sobre o Ródano, quando
penetraram a casa de Basílio pela primeira vez.
De quem é aquela voz?
Quando o cântico terminou, o patrício, muito pálido, dirigiu-se a Lúcio
Agripa, interrogando:
— Amigo, por obséquio, podereis algo informar-me sobre a música que
ouvimos em vossa propriedade?
O interpelado sorriu, bondoso, e esclareceu:
— Ilustre senhor, a voz é de um menino que canta para uma pobre mãe
que agoniza.
— Quem é essa mulher? — indagou Taciano, com ansiedade.
— É uma servidora cega que permanece em nossa casa, há três anos, e
que, faz meses, acamou-se, absorvida pela peste de longa duração. Agora,
está no fim..
De semblante marmóreo, o patrício tomou a pequena mão da filha e pediu
acesso ao local em que a doente se demorava.
Ante aquele olhar suplicante e sincero, Agripa não vacilou.
Tomando a frente, guiou os visitantes, entre curtas aleias de arvoredo, até
pequenino e arejado quarto nos fundos.
A janela aberta deixava escapar as notas harmoniosas de instrumento bem
afinado.
Taciano atravessou a porta com o coração precipite...
Num quadro que jamais olvidaria, contemplou Lívia, semicadaverizada, a
ouvir, ofegante, um menino simpático e humilde, que cantava com veludosa
ternura.
— Lívia! — gritou, atônito.
— Lívia! Lívia! — repetiu Blandina, ardentemente.
A enferma esboçou inexprimível sorriso no semblante calmo e estendeu as
mãos, murmurando entre lágrimas:
— Enfim!... enfim!...
O patrício fixou, consternado, os restos ainda vivos da mulher que ele
amara e a cuja afeição se dedicara com fraternal ternura, Os olhos apagados
imprimiam amarga vaguidade ao rosto triste, que mais se assemelhava, agora,
a delicada máscara de marfim, emoldurada pelos bastos fios negros da
cabeleira que não se modificara.
Enquanto Blandina se inclinava, carinhosa, para o leito, ele quis clamar a
revolta que lhe lanceava o coração, mas pesada nuvem de dor constringia-lhe
a garganta.
Lívia adivinhou-lhe a angústia e, tendo assinalado a presença de Agripa,
ensaiou uma apresentação que pudesse aliviar a tensão do momento.
— Senhor Lúcio — exclamou —, eis os amigos que esperei tanto tempo...
Deus não permitiu que eu morresse sem abraçá-los pela última vez... Quinto
Celso terá, doravante, nova família...
O dono da casa saudou Taciano e Blandina e, percebendo que o grupo
desejava maior intimidade, retirou-se, cortês, prometendo regressar com Domícia,
em breve tempo.
Foi então que o filho de Varro começou a gemer, estranhamente, como se
177
trouxesse uma fera oculta no tórax, a soltar medonhos rugidos... E porque Lívia
o concitasse à conformação e à serenidade, explodiu em voz gritante e
plangente:
— Porque reencontrar-te, assim, no terrível instante do adeus? Ai de
mim!... Sou um réprobo sob a férrea mão dos gênios infernais! Sou como a
tempestade que passa, uivando entre ruínas... Tudo me falhou. Porque me
prendi, deste modo, aos deuses sinistros? Da felicidade só encontrei
fumegantes restos... Tentei caminhar no mundo com o desassombro dos meus
antepassados e agir sempre segundo o que as tradições me ensinaram de
mais puro, mas todas as provações me aguardavam, ludibriando os meus
anseios... Sou um fantasma de mim mesmo! Desconheço-me!... A morte
rondou-me todos os passos... Sou um vencido que a vida constrange a
marchar entre os próprios ídolos quebrados!...
Interrompeu-se o genro de Vetúrio sufocado nas lágrimas copiosas que lhe
corriam pela face.
Valendo-se do intervalo, a doente interferiu com inflexão comovedora:
— Taciano, porque alimentar a tormenta do coração, ante a serenidade da
vida?... Queixas-te do mundo... Não seria, porém, mais acertado lamentar a
nós mesmos ?... Como te renderes à blasfêmia, se possuís um corpo robusto?
porque a revolta, quando as atividades de cada dia podem contar com os teus
braços livres?... Aprendi com Jesus que a luta é tão importante para a nossa
alma, quanto o cinzel é precioso ao aperfeiçoamento da estátua!...
Antigamente, nossos escrúpulos em família compeliam-nos a guardar a fé a
distância de nossas conversações mais íntimas... Meu pai recomendava-me
não te ofender as convicções... Hoje, no entanto, não sou mais a mulher que o
mundo poderia fazer feliz... Sou apenas a irmã que se despede... Alguns
meses antes de nosso encontro às margens do Ródano, encontráramos Jesus
em Massília... Nossa mente modificou-se... Com ele, aprendemos que o divino
amor preside à vida humana... Somos simples forasteiros na Terra!. -. Nosso
verdadeiro Lar brilha mais além... É necessário superar com valor os percalços
da existência... Em verdade, estou cega e não ignoro que a morte se avizinha,
entretanto, há uma luz a clarear-me por dentro do coração... Cristo...
O interlocutor, porém, cortou-lhe a frase hesitante e bradou:
— Sempre a sombra desse Cristo a atravessar-me a estrada... Jovem
ainda, quando descobri o amor de meu pai foi para verificar-lhe a integral
rendição ao profeta judeu! quando busquei recuperar minha mãe para o
equilíbrio da inteligência, ela não se reportava a outra pessoa e morreu suspirando
pela influência desse intruso... Quando procurei por Basílio, ao voltar
de Roma, lembrando-lhe a afeição que me impelia ao culto da memória
paternal, o companheiro a quem amei tanto imolara-se por ele... Ponho-me ao
teu encalço, gasto as minhas melhores forças na reivindicação de teu carinho,
mas, em te revendo, observo-te igualmente nas mãos invisíveis desse estranho
Salvador que não consigo compreender... Ó deuses infernais, que fizestes de
mim?...
Lívia fizera-se mais pálida.
Blandina tomou-lhe as mãos e ia dirigir-lhe a palavra, contudo, a enferma,
com a serenidade de quem encontrara a paz, dentro de si mesma, reergueu a
voz e falou, triste:
— É inútil a tua injustificável reação! Neste leito que me serve de cruz
libertadora, tornei à convivência de muitas afeições que me precederam na
178
morte!... Meus olhos de carne foram crestados para sempre, mas uma visão
nova me enriquece a vida íntima... Vejo meu pai ao nosso lado... Abraça-me
com o amor de todos os dias... E pede-te silêncio, diante das verdades que
ainda não possas perceber... Afirma carinhosamente que aperfeiçoaste o
cérebro na viagem dos séculos... entretanto, o teu coração, embora generoso,
é uma pérola encarcerada numa caixa de bronze... O excesso de inteligência
eclipsou-te a visão... Sofres, mas à maneira de um homem dementado,
recusando o remédio libertador... As tuas lágrimas de rebelião espiritual
acumulam densas nuvens de aflição sobre a tua própria cabeça!... Estás preso
voluntariamente a ilusões que te ferem a alma... Meu pai roga-te calma e
reflexão...
Assevera que todos nos achamos encadeados, através de existências
sucessivas... Somos verdugos e benfeitores uns dos outros... Somente as
lições do Cristo bem vividas por nós conseguirão resgatar-nos, eliminando os
elos escuros de ódio e vaidade, egoísmo e desesperação a que nos
acorrentamos... Compadece-te de todos... dos superiores e dos inferiores, dos
que te auxiliam e dos que te escarnecem, dos vivos e dos mortos... Não
retribuas mal por mal... Perdoa sempre... Só assim farás luz em ti mesmo para
que possas discernir a verdade... Meu pai anuncia-me a partida próxima...
Demorava-me apenas à tua espera, a fim de transferir às tuas mãos o último
dever que a Terra me reservou... Hoje, semelhante missão estará cumprida...
Sinto-me feliz com a graça de tua presença, junto de Blandina, ao meu lado...
Agora, é o fim da tarefa...
Ante a pausa que se fizera natural, Quinto Celso, com os olhos arrasados
de lágrimas, abandonou a harpa, esqueceu as visitas e abraçou-se à
agonizante.
Aquelas frases de adeus traziam-lhe à memória o quadro final da mãezinha
que se fôra.
Amedrontado, começou a soluçar a sua dor. Enquanto a enferma
acalentava-o, com palavras de ternura, Taciano concluiu de si para consigo
que Lívia talvez houvesse enlouquecido pelo sofrimento.
Não lhe competia armar, naquele instante, uma discussão religiosa que
redundaria em prejuízo geral.
Qualquer altercação, acerca do Cristo, não restituiria a mínima parcela de
equilíbrio orgânico à criatura amada que o destino estrangulara.
Reconheceu-se em erro.
Afagou-lhe a fronte inundada de pastoso suor e rogou-lhe perdão.
Lívia, sorridente, perguntou pelo progresso artístico de Blandina, pedindo a
esta tocasse uma das velhas músicas da casinha de Lião.
A menina atendeu-a prontamente.
A melodia irradiou-se por abençoado calmante no quarto estreito.
Lágrimas tranqüilas rolaram pelas faces macilentas da doente que, em
seguida à música evocativa, tateou o rosto molhado de Celso, entregando-o ao
amigo, com humildade e confiança:
— Taciano, este é o filho do meu coração que lego aos teus cuidados!
Chama-se Quinto Celso... foi meu salvador na Trinacria. -. Por lá cantamos
juntos na via pública... É um bravo... Se a vida me houvesse confiado um
filhinho, estimaria fôsse assim como Celso, amigo, devotado, trabalhador ...
Estou certa de que será um filho valioso em teu caminho, tanto quanto será
para Blandina um abnegado irmão.
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O rapazinho olhou para Taciano de estranha maneira, e o patrício,
magnetizado, esforçou-se por lembrar onde vira aqueles olhos no calidoscópio
de suas recordações.
Não era aquele o olhar paterno que o fitava noutro tempo? de onde
provinha aquela criança que, além de tudo, ainda trazia consigo o nome do
apóstolo que lhe dera o ser?
O menino, a seu turno, qual se fôra Íntima-mente movido por automático
impulso, desprendeu-se de Lívia e atirou-se-lhe aos braços.
Taciano, surpreendido, recebeu contente aquele gesto de espontânea
ternura -
Celso afigurava-se-lhe um passarinho a esbarrar-lhe no peito - Chegava a
escutar-lhe o coração, batendo assustadiço –
A criança, porém, não se contentara com o amplexo de amor. Beijou-lhe a
cabeça, onde os fios grisalhos começavam a surgir e acariciou-lhe a fronte,
alisando-lhe os cabelos.
O filho de Quinto Varro experimentou inexplicável emotividade
constringindo-lhe as fibras mais íntimas. Tentou conversar com o menino,
entretanto, não sabia senão afagá-lo sem palavras.
Foi então que Lívia, em frases entrecortadas, descreveu para Taciano e
Blandina a luta que lhes desmoronara a paz doméstica. Helena nunca pudera
recebê-los, em casa, apesar da insistência de Basílio, e a cobrança da dívida
dos Carpos, através da família Vetúrio, desorientara-lhe o pai adotivo.
Transferiram-se para a residência de Lucano Vestino, por imperiosa
necessidade e, depois de relacionar os lances amargos das perseguições,
reportou-se às dificuldades do cárcere, à repentina cegueira, e, por último, à
fuga, seguida da viagem para a Sicília, em companhia de Teódulo, cujas promessas
não se haviam cumprido.
O amigo escutou-a com indizível espanto e revolta.
Os dolorosos sofrimentos da moça em Lião e na Trinácria dilaceravam-lhe
o cerne da alma.
Vislumbrou a escura trama em que se lhe erigia o sacrifício.
Afirmou-lhe ignorar o que se passara.
Nunca estivera na ilha. Efetuara regular viagem a Roma, consoante o
programa estabelecido, e voltara sem alteração.
Helena, contudo, devia conhecer os acontecimentos.
Mandaria buscá-la.
Extremamente perturbado, veio à rua e, embora a noite houvesse caído
integralmente, expediu um portador à vila distante, rogando à esposa e à
governanta viessem ter com ele e Blandina, em casa de Agripa, alegando
urgentes motivos de saúde.
Exigiria o pronunciamento da mulher, à frente da pobre criatura que jazia
semimorta.
Transcorrido algum tempo, Helena e Anacleta chegavam em carro ligeiro e
garrido.
Recebidas por Taciano, este falou, nervosamente, depois das perguntas
que lhe foram desfechadas:
— Entremos! é um caso de morte próxima.
— Blandina? — interrogou a matrona, aflita.
— Não, não. Sigamos!
Em breves instantes, o grupo ingressava no estreito recinto.
180
Taciano indicou a agonizante, cujos olhos mortos vagueavam sem
expressão dentro das órbitas, e interpelou-a, emocionado:
— Helena, reconheces a enferma?
A senhora estremeceu e, porque esboçasse um gesto silencioso de
negativa, o marido acentuou:
— Esta é Lívia, a infortunada filha de Basílio.
Nesse instante, Lúcio Agripa e a mulher, que se mantinham atenciosos e
desvelados no quarto, demandaram o interior doméstico, recolhendo as
crianças para o necessário repouso.
Somente aquelas quatro almas, presas ao tremendo destino que lhes era
comum, permaneceram, frente a frente, como se estivessem convocadas por
forças invisíveis a supremas decisões.
Helena e Anacleta pareciam galvanizadas na contemplação daquele
semblante animado por intensa vida interior.
A harpista cega, nas vizinhanças da morte, mostrava as linhas fisionômicas
de Emiliano Secundino, o amor que o tempo não apagara no coração da filha
de Vetúrio.
— Lívia — falou Taciano, compadecidamente —, apresento-te minha
esposa e nossa amiga Anacleta.
O rosto da infeliz iluminou-se de profunda alegria.
— Agradeço a Deus esta hora... — exclamou em voz ciciante, com
humildade — eu sempre desejei pedir às senhoras me desculpassem a ma
impressão que lhes causava... Muitas vezes desejei aproximar-me para dizerlhes
do meu respeito e amizade... entretanto... as circunstâncias não me
favoreceram...
Aquela voz ecoava no espírito de Helena com estranha ressonância...
Porque não se interessara por um conhecimento mais íntimo daquela mulher?
Alterou-se-lhe inexplicavelmente o modo de ser... Reminiscências de
obscura quadra de sua vida emergiam-lhe, em cores vivas, dos recônditos da
memória. Teve a impressão de que Emiliano ali se achava, em espírito,
acordando-a para a realidade terrível... Olvidou a presença de Taciano,
despreocupou-se de qualquer conveniência de ordem pessoal e, de fisionomia
ansiada, perguntou:
— Onde nasceste?
— Em Cipro, senhora.
— Quem te foi mãe no mundo?
A agonizante sorriu com esforço e esclareceu:
— Não tive a felicidade de conhecer minha mãe... Fui recolhida por meu
velho pai adotivo numa charneca...
— E desculparias aquela que te deu a vida se algum dia a encontrasses?
— Como não?... Sempre rendi carinhoso culto ao coração materno... em
minhas preces de cada dia...
A matrona, pálida, trêmula de terror, perante a face nua da verdade,
continuou indagando:
— E se tua mãe te roubasse o esposo, o pai e a própria saúde, impondo-te
o escárnio público?
— Ainda assim... — confirmou Lívia, sem vacilar — não seria para mim
diferente... Quem de nós, neste mundo, poderá julgar com segurança?... Minha
mãe... embora me quisesse com todo o amor... talvez fôsse obrigada a ferirme...
em meu próprio bem... Creio que... em tudo... devemos render graças a
181
Deus...
Ante a espantada mudez de Helena, Anacleta avançou para a agonizante
com fervoroso interesse.
— A genitora não te deixou qualquer recordação? — inquiriu a governanta
com ansiosa expectativa.
Lívia refletiu alguns momentos, como quem buscava forças para conversar,
e falou, confirmando:
— Penso que minha mãe... tinha a intenção de encontrar-me... porque me
deixou nas rendas do berço um camafeu que meu pai me ensinou a trazer
sobre o coração...
Anacleta, à frente de Taciano estupefato, revistou-lhe o tórax e tirou-lhe a
jóia de marfim, em que brilhava a imagem de Cíbele primorosa-mente
insculpida, e da qual Helena jamais se separava nos passeios com Secundino.
Na filha de Vetúrio mais se acentuara a palidez.
Descobrira a própria filha, sobre quem fizera pesar a clava de sua frenética
perseguição.
Aquela era a flor ressequida dos seus primeiros sonhos... Ouviu, de novo,
na milagrosa acústica da memória, as palavras que o homem inolvidável de
seus ideais femininos lhe falara pela primeira vez... Haviam, ele e ela, projetado
para o rebento de suas esperanças o mais belo destino.
Porque se tinha metamorfoseado em inferno o paraíso imaginado?
Imobilizada pelo pavor, olhos estatelados, notou que as reminiscências lhe
materializavam o pretérito no âmago da própria alma.
As paredes do quarto desapareceram aos seus olhos.
Viu-se novamente menina, no turbilhão de banalidades em que o amor de
Emiliano lhe despertara o coração...
Obscurecera-se-lhe o cérebro.
Onde estava?
Reparou que, em meio das sombras que a cercavam, um homem
caminhava ao seu encontro... Era ele, Secundino, como na antiga visão de
Orósio e como no sonho que a visitara na ilha de Cipro, envolvido ainda nas
suas vestes militares e com a destra sobre o peito ensangüentado, a chamá-la,
gritante:
— Helena! Helena!... que fizeste da filha que te dei?
Torturavam-lhe a alma estas palavras, infinitamente repetidas pelos
monstros do remorso em profundo abismo a escancarar-se sob os seus pés..
Lembrou que a filha abandonada ali se encontrava ao alcance de suas
mãos, entretanto, por mais estendesse os braços, não conseguia encontrá-la
nas trevas a se adensarem ao redor...
Somente o rosto de Emiliano crescia, descomunal, ante a sua visão
espavorida e só a inquietante interrogação dele lhe alcançava os ouvidos:
— Helena! Helena!... que fizeste da filha que te dei?
Diante de Taciano e Anacleta, fulminados de assombro, a matrona, com o
esgazeado olhar dos loucos, desferiu horrível gargalhada, rodou sobre os
calcanhares e correu para a via pública. Tomou as rédeas do veículo que a
trouxera e partiu, em disparada, de regresso à vila distante...
O marido de Helena solicitou a assistência de Agripa, em favor da enferma,
e isolando-se com a governanta, num trecho do jardim, dela ouviu, por mais de
duas horas, sombrias confidências, em torno do passado e do presente.
Taciano, transtornado, parecia ébrio de ira.
182
Quando Anacleta terminou as amargas revelações, o interlocutor,
compenetrado assim de toda a cruel verdade, cerrou os punhos e bradou em
voz estentórica:
— Helena é indigna de respirar entre os mortais. Será estrangulada por
minhas próprias mãos... Descerá, ainda hoje, para as horrendas regiões tartáreas,
onde curtirá bem merecidas penas!...
— Taciano! Taciano! — soluçava a velha amiga, entravando-lhe os
movimentos —. espera! espera! o tempo ajuda a reflexão!...
O patrício procurava desvencilhar-se, quando Lúcio Agripa, com expressão
fatigada, abeirou-se deles e notificou:
— Meus amigos, nossa doente descansou por fim.
Alanceado duplamente no coração, o pai de Blandina correu ao quarto
simples e contemplou o rosto de Lívia, macerado e lívido, sob o halo da morte.
Angelical serenidade estampara-se na face dela. Um sorriso misterioso,
que ninguém saberia definir como sendo de alegria ou de conformação, fixarase-
lhe nos lábios por derradeira mensagem de sua vida curta aos que ficavam.
O companheiro que tanto a amara inclinou-se sobre o cadáver, pranteando
por alguns momentos; no entanto, como se fôsse sübitamente erguido por
força estranha, começou a bramir de dor selvagem e a imprecar.
Convenientemente amparado por Lúcio, a este rogou auxílio. Precisava de
urgente acesso ao lar.
Em minutos breves, uma carreta de serviço transportava-o, de retorno a
casa, em companhia de Anacleta.
Em todo o percurso não haviam trocado palavra.
Clarões matutinos principiavam a surgir em formoso dilúculo...
Seguido pela governanta, preocupada em evitar qualquer atitude de
violência, o patrício chamou pela mulher com a voz clamante de um alienado
mental.
Helena, porém, não se achava como de costume em sua câmara de
repouso.
Após alguns instantes de ansiosa busca, foi afinal surpreendida numa poça
de sangue, nos banhos da casa.
A desventurada matrona, transtornada pelos quadros terrificantes da
culposa consciência, abrira os pulsos com as próprias mãos.
Anacleta prorrompeu em ruidosas exclamações.
Todos os servos acorreram pressurosos para o socorro que não mais tinha
razão de ser.
Foi então que o velho Opílio, trêmulo e aflito, aproximou-se e, deparando
com a filha que sempre lhe dominara o coração, cadaverizada, quis gritar mas
não conseguiu. O peito afigurou-se-lhe comprimido e o cérebro estalou, à
maneira de uma harpa cujas cordas se rebentassem, e o ancião caiu desamparado,
no piso de mármore, gemendo angustiosamente.
A noite trágica passou qual furacão desapiedado e ululante.
Opílio Vetúrio, o potentado que Roma admirara por tantos anos, em razão
do choque, acamara-se abatido e hemiplégico.
Extinguira-se-lhe o dom da palavra.
Não obstante o imenso esforço para recuperá-lo, não conseguia senão
emitir sons guturais, com simiesca expressão.
Dias desdobraram-se sobre dias...
E, enquanto uma soberba trirreme o conduzia, sob os cuidados de
183
Anacleta, a caminho de Óstia, Taciano e Blandina, acompanhados de Quinto
Celso, regressavam à Gália Lugdunense, chagados de saudade e de dor...
O orgulhoso filho de Quinto Varro, que desde a juventude desdenhava a
plebe e que apenas se humilhava superficialmente no culto aos deuses das
vitórias imperiais, começava a dobrar a cabeça. Abraçado às duas crianças
que lhe constituiriam doravante a razão de viver, com rugas profundas a lhe
desfigurarem o rosto, emoldurado já nos cabelos brancos a se multiplicarem
celeremente, não sabia agora senão inquirir em silêncio o horizonte distante,
demorando-se, mudo, a refletir e chorar...
184
6
Solidão e reajuste
O outono de 256 começava entre lutas e expectativas.
No Império, então governado por Públio Aurélo Licínio Valeriano, elevado à
púrpura do poder pelos seus brilhantes feitos militares, a decadência
continuava...
Não obstante as vitórias sobre os godos, o Imperador não conseguia sustar
a desagregação moral a desenvolver-se em toda a parte.
Em Roma, a dignidade sofria esquecimento e subversão.
Nas linhas provinciais crescia a irresponsabilidade e a indisciplina.
Taciano, contudo, acelerara demasiado a renovação interior para deter-se
no mundo externo.
Arredado das questões políticas e filosóficas que o apoquentavam, sentiase
convocado pela vida ao reajuste de todas as suas conquistas e valores de
ordem pessoal.
Novamente em Lião, onde a vida se desdobrava com as readaptações
necessárias, não ignorava que de Roma não lhe faltariam dissabores imprevisíveis.
O suicídio de Helena e a moléstia do sogro, sem que ele pudesse revelar
aos amigos a chave das explicações justas, criara-lhe uma atmosfera de
antipatia e desconfiança.
Encontrava-se, por isso, mais angustiado, mais sozinho.
Chegara à vila com um pensamento obcecante a dominar-lhe o cérebro: —
o desforço contra Teódulo. Saberia despejar sobre ele todo o fel de indignação
e desprezo que lhe vertia da alma. Interpelá-lo-ia com rigor e vingar-se-ia sem
piedade. Contudo, de regresso, veio a saber que o representante de Opílio fôra
chamado por Galba, à pressa, tendo seguido para a metrópole, dois dias antes.
Certo, a saúde de Vetúrio periclitava.
Sentia-se, porém, duramente ferido para seguir ao encontro do sogro.
Atreito às antigas tradições de orgulho em que plasmara a própria vida,
reconhecia-se estrangeiro no seio da família Vetúrio, que, desde o berço, lhe
envenenava a vida. Preferia aguardar o desfavor e a hostilidade, no campo de
serviço a que se habituara, desde a juventude.
Temendo a intromissão de Galba, mandou reformar a casinha que
pertencera a Basílio e embelezá-la, única propriedade que detinha em seu
nome, e passou a viver ali, em companhia de Blandina, de Celso e de um velho
casal de escravos, Servulino e Valéria, extremamente devotados a ele.
A antiga servidora era o sustentáculo eficiente das lides domésticas e o
esposo convertera-se no professor competente das crianças.
Quinto Celso, já iniciado por Lívia, desde a meninice, na arte da leitura, era,
aos onze anos, um prodígio de memória e discernimento. Francamente cristão,
despendia longas horas com Blandina contando-lhe as histórias dos mártires
do Evangelho e comunicando-lhe a fé ardente em Jesus.
A filhinha de Taciano ouvia, maravilhada, encontrando imenso consolo
naquelas conversações.
Os sofrimentos de Lívia, o desaparecimento de Basílio, a morte de Helena,
com as pomposas exéquias de que se fizera acompanhar, a enfermidade do
avô e as graves preocupações paternas impuseram-lhe profundo abalo
psíquico. Chorava sem motivo, padecia inexplicáveis insônias e, não raro,
185
demorava-se no leito, dias e dias, sob fortes crises do coração
descompassado.
A excursão em Neápolis perdera para ela os frutos de que parecia revestirse.
Diariamente, pela manhã, formulava com o pai a prece habitual a Cíbele,
mas, no fundo, sentia que o seu pensamento passara a gravitar em torno
daquele Cristo, amoroso e sábio, que se achava no centro de todas as
observações do irmão adotivo.
Não ignorando a aversão do genitor pelos cristãos, ela se abstinha,
cuidadosamente, na presença dele, de qualquer comentário tendente a
magoar-lhe os princípios.
Pouco a pouco, as opiniões e os apontamentos de Celso conquistaram-lhe
a alma simples e sensível para a nova fé.
O rapazinho, terminados os estudos e as tarefas de cada dia, ainda
encontrava tempo para rápidas leituras do arquivo de Basílio, que Taciano
conservava respeitosamente.
Daí o benfeitor paternal, quando nos entendimentos costumeiros, quer nos
passeios pelo campo, quer às refeições no triclínio, surpreender-se com as
observações do menino, judiciosas e sensatas, nas quais, todavia, Quinto
Celso evitava igualmente as menores referências ao Cristianismo de maneira
direta.
Servulino não se esquecia de rogar às crianças o devido respeito às
convicções do amo e, assim, os dois irmãos espirituais comungavam o mesmo
idealismo e as mesmas esperanças na vida íntima, cimentando a fé que lhes
irmanava os corações.
Noite a noite, viviam os habitantes da casinha do bosque doces e
abençoadas horas de música e alegria.
Qual se conhecesse os traços psicológicos de Taciano, de longa data,
Celso adquirira maneiras especiais de orientar a conversação.
Certa feita, porque o patrício desencantado se queixasse das tragédias
passionais do seu tempo, com aflição e desânimo, o jovem falou sutil:
— Mas, meu pai, o senhor não julga o mundo necessitado de uma idéia
nova? uma idéia que penetre o sentimento da criatura, renovando-lhe o modo
de pensar?
Taciano fitou-o, espantado.
Que entenderia Celso dos problemas da vida?
Embora admirado, revidou firme:
— Não creio, meu filho. Nossas tradições e nossas leis são suficientes.
Basta nos adaptemos a elas, de vez que as diretrizes estão prontas. Não
admites que as Divindades sabem reger nossas vidas?
— Sim, meu pai — ajuntou o pequeno, pensativo —, o senhor tem razão...
Contudo, os deuses parecem tão longe! Dizem-nos que Júpiter garante o
mundo em toda a parte, que Ceres é a protetora das colheitas, que Minerva
dirige os sábios, mas não acha que precisávamos de alguém que, em nome
dos deuses, viesse ao mundo conviver com os homens, vivendo-lhes as
dificuldades e as dores?... As Divindades ajudam as pessoas, de conformidade
com os sacrifícios que recebem nos templos. Assim, a proteção do Céu varia
com a posição dos homens. Há quem possa levar aos santuários touros e
aves, incenso e moedas, entretanto, a maioria dos habitantes de uma cidade é
gente pobre, que apenas conhece o sacrifício e a servidão... O senhor acredita
186
que os escravos são deserdados do Céu? os que mais trabalham devem ser os
menos favorecidos?
O filho de Varro recebia semelhantes palavras, pronunciadas com
humildade e carinho, por jatos de luz interior...
Ele mesmo fôra bem nascido, crescera bafejado pelo prestígio do ouro,
contudo, as surpresas do destino, gradativamente, despojavam-no de todas as
regalias e privilégios.
A morte da esposa e o desagrado da parentela situavam-no à beira de total
empobrecimento econômico.
Aguardava do cunhado e genro o último golpe.
Não tardaria, talvez, a conhecer a dolorosa condição dos homens
sentenciados à subserviência, na subalternidade e na sombra.
Em semelhante curva da caminhada na Terra, experimentava o sopro da
adversidade a enregelar-lhe o coração.
Teria bastante fé nos dias incertos que se avizinhavam?
As observações do filho adotivo acordavam-lhe na alma esses cruciantes
pensamentos.
Empalideceu, ligeiramente, e considerou:
— Sim, sim, as tuas ponderações são apreciáveis, contudo, não podemos
olvidar que a nossa existência permanece estruturada sobre o alicerce das
classes.
E, recordando sábias interpretações dos antigos romanos, acrescentou:
— A sociedade é um corpo do qual somos partes integrantes. A cabeça
içada sobre os ombros guarda a missão de raciocinar e decidir. As mãos e os
pés foram feitos para servi-la.
No organismo de nossa vida política, o patriciado representa os sentidos
tais como a visão, a audição e o tato, que auxiliam o cérebro a examinar e discernir,
ao passo que os plebeus constituem os membros incumbidos do
trabalho e da submissão. Não poderíamos inverter a ordem. O nascimento e a
posição, o nome e a conquista são os pilares de nosso equilíbrio.
O jovem sorriu, com inteligência, e obtemperou, fortemente inspirado:
— Mas, a dor nos pés não é tão desagradável quanto a dor na cabeça?
uma ferida nas mãos não será tão incômoda quanto um golpe no rosto? Estou
certo, meu pai, de que cada pessoa respira no lugar que a Natureza lhe
concedeu, mas todos os homens merecem respeito, felicidade e consideração,
entre si. .. Aceitando essa verdade, creio que se a fé pudesse operar em nós,
por dentro, fazendo-nos mais amigos e mais irmãos uns dos outros, a fim de
que nós mesmos começássemos o serviço da bondade, sem qualquer
constrangimento, a harmonia do mundo seria mais perfeita porque a fortuna
dos felizes não seria perturbada pela desfortuna dos pobres, o riso de alguns
não seria prejudicado pelos gemidos de tantos...
O viúvo de Helena meditou por momentos e concluiu:
— As tuas referências são interessantes e valiosas. Inegàvelmente, para
alcançarmos a realização a que te reportas, precisaríamos no Império de um
grande reformador... um homem à altura de todas as nossas dignidades
públicas. Provavelmente, um filósofo, tomando as rédeas do governo, sob a
inspiração da bondade e do direito, saberia compreender as nossas
necessidades comuns...
Celso permutou com Blandina um olhar de inexprimível alegria e acentuou:
— Mas, papai, o senhor não acredita que esse renovador já tenha vindo?
187
Taciano compreendeu a velada alusão a Jesus Cristo, esboçou um gesto
de enfado e modificou o rumo da conversação, todavia, na solidão de si
mesmo, refletia sobre os argumentos daquela criança, que a devoção de Lívia
lhe havia legado e que, paulatinamente, passava a lhe ocupar o coração como
pequeno mas seguro orientador.
Várias semanas haviam transcorrido, quando um correio de confiança da
casa de Galba trouxe inquietantes notícias de Roma.
Dignara-se Lucila escrever apenas à irmã, de modo a torturar o genitor
com todo o fel de malquerença que lhe extravasava da alma. Exigia que
Blandina fôsse morar na capital do Império, em sua casa, asseverando haver
perdido a confiança no pai que não quisera evitar o deplorável suicídio de
Helena. Achava-se convicta de que ela procurara o próprio fim, constrangida
pelo procedimento de Taciano, que, por anos consecutivos, parecia recusar-lhe
o carinho. Notificava que o avô, acamado entre a enfermidade e o túmulo,
resolvera vender todas as suas propriedades nas Gálias, para que a família se
desvencilhasse de recordações amargas, comunicando, ainda, que, em breves
dias, o patrício Meio Comúnio entraria na posse da vila, que Teódulo não mais
voltaria e que, por isso, lhe aconselhava a mudança para Roma, sem mais tardar.
Aguardaria, porém, uma resposta clara, a fim de incumbir Anacleta e
outras servidoras de lhe constituírem o séquito necessário em viagem. Rogava
a remessa de jóias e lembranças maternas para o seu tesouro afetivo e, por
último, relacionava os interesses e as vantagens da transferência, enunciando
a esperança de que Blandina, por lá, descobriria uma existência diversa,
suscetível de curar-lhe todas as tristezas e abatimentos incompreensíveis.
Taciano leu a carta, mal afogando as lágrimas. Nunca poderia aguardar
semelhante desacato. A decisão do sogro, desfazendo-se das terras,
significava para ele o mais forte rebaixamento de nível social, entretanto, a
miséria não lhe doía tanto quanto o ingrato conceito da filha.
Lucila não possuia a mais leve razão de feri-lo. Lembrou-se, contudo, de
Quinto Varro, o genitor desvelado que tudo lhe dera sem nada receber e, mais
uma vez, ponderou quão amargo lhe fôra o caminho no mundo.
Enxugou o pranto, recompôs a fisionomia e apresentou a mensagem à
filhinha.
Blandina não ocultou a revolta que as notícias lhe impunham e respondeu,
de imediato, à irmã que não pretendia abandonar a companhia paterna, enquanto
vivesse.
O emissário de Galba tornou à metrópole, conduzindo a curta missiva com
todos os objetos do uso particular de Helena e, desde então, indevassável
silêncio pesou nas relações familiares, entre Lucila e o pai.
Volvidos alguns dias, Álcio apossou-se da herdade, requisitando Servulino
e a esposa, cujos serviços lhe pertenciam por direito de compra, e Taciano,
obrigado a contratar a cooperação de uma doméstica, assumiu, por sua vez, a
tarefa de educador dos filhinhos, porqüanto não mais dispunha de recursos
materiais capazes de satisfazer a todos os seus desejos.
O inverno chegara, ríspido.
As árvores enregeladas, com a galharia desnuda dirigida para o alto,
pareciam espectros a suplicarem o calor da vida.
Meditabundo, observava Taciano a natureza castigada, recordando o
próprio destino.
O frio da adversidade assediava-lhe o coração.
188
Não fôssem Blandina e Celso, frágeis rebentos da vida a lhe reclamarem
carinho, e talvez se rendesse ao sofrimento moral, até que a morte o visitasse
por mensageira de paz e libertação. Todavia, a ternura e a confiança com que
lhe seguiam os passos, refundiam-lhe as forças. Disputaria com os monstros
invisíveis da sorte a fortaleza de si mesmo, a fim de doar às duas crianças uma
vida melhor que a dele. Renunciaria a todos os prazeres, para que elas
vivessem sempre livres e felizes.
Quando a primavera tornou à paisagem do Ródano, encarou a
necessidade de ausentar-se de casa, na conquista de maior conforto
doméstico. E pela vez primeira, qual havia acontecido ao próprio pai, em outro
tempo, percebeu quão dura se fazia a existência para o homem que se
propusesse conseguir com dignidade o próprio pão.
A classe média não passava de perigoso e escuro corredor, entre a
planície miserável dos escravos e a dourada montanha dos senhores.
Sacudido por aflitivas emoções, considerou os obstáculos que se
antepunham entre ele e a vida de sua época.
Entretanto, não lhe cabia recuar.
Consultou diversos amigos, contudo, era difícil instalar-se em qualquer
posição vantajosa, sem a proteção dos altos dignitários da Corte e semelhante
amparo se fazia agora inacessível para ele.
A saúde da filha reclamava serviços assistenciais imediatos e isso
demandava recursos crescentes.
De tentativa a tentativa, em busca de trabalho decente, ocasiões surgiram
em que invejou a sorte dos ferreiros e dos gladiadores humildes que podiam
beijar os filhinhos, cada noite, orgulhosos e felizes, dentro da simplicidade que
lhes assinalava a bênção de viver.
Desesperado, entre as necessidades domésticas e os obstáculos do meio,
resolveu concorrer às corridas de bigas, na disputa de prêmios pecuniários.
Possuía dois carros leves e sólidos, bem como excelentes cavalos de tiro.
Na estréia, foi atingido pelos olhares ridicularizantes de muitos daqueles
que, na prosperidade, lhe freqüentavam o ambiente doméstico... Diversos
companheiros da véspera orgulhosamente lhe recusaram as saudações
usuais, em lhe observando a participação em atividades plebeias, mas tanto
engenho e tanta destreza demonstrou nas corridas que, em breve, se fêz o
favorito de inúmeros apostadores.
Admirado por alguns e ironizado por muitos, o filho de Varro algo
encontrara em que prender a atenção.
Odiava a turba festiva que lhe aclamava o nome nas competições
vitoriosas, experimentava indisfarçável repugnância pelos ajuntamentos de homens
e mulheres gozadores da vida, mas, no fundo, sentia-se satisfeito com a
oportunidade de conquistar, ao preço de esforço próprio, o dinheiro
indispensável às despesas do lar que novamente passara a desfrutar o mais
amplo conforto.
Contratara competente professor para os jovens e a vida transcorria em
casa numa abençoada atmosfera de paz, somente perturbada pela precária
saúde de Blandina, que jamais pudera refazer-se de todo. Doente e abatida, a
menina via o tempo escoar-se, sob o carinho inexcedível de Taciano e de
Celso, qual se fôra um anjo enfermo, prestes a desferir o vôo para o paraíso.
Por mais fôsse conduzida pelas abnegadas mãos paternas aos passeios
no rio ou na floresta, nunca mais lhe assomaram à face as cores róseas e
189
sadias da infância. Muitas vezes, era surpreendida pelos familiares, em
lágrimas convulsivas, e, quando interpelada por eles, informava, triste, que vira
a sombra de Helena a rogar-lhe orações.
Taciano sabia que os entendimentos da filhinha com Celso converteram-na
ao Cristianismo, no entanto, transformara-se-lhe demasiado a alma para
subtrair-lhe à torturada adolescência o único manancial de consolo capaz de
propiciar-lhe a paz e o conforto, a esperança e a alegria.
Pessoalmente, era o mesmo devoto de Cíbele, o invariável defensor dos
deuses imortais, todavia, as amarguras da Terra lhe haviam ensinado ao
coração que a felicidade espiritual não é a mesma para todos.
Dois anos correram, apressados...
Celso, robusto e bem disposto, era agora valioso companheiro do pai
adotivo, cooperando nos trabalhos da pequena cavalariça, mas Blandina piorara
sensivelmente.
Se a jovem tentava qualquer número de harpa ou de canto, longos acessos
de tosse obrigavam-na a interromper-se.
O pai, agoniado, não poupava sacrifícios para restabelecer-lhe a saúde,
mas a Natureza parecia condenar a doente a infindáveis padecimentos.
De passagem por Lião, afamado médico gaulês de Mediolanum (21) foi
chamado a opinar e aconselhou a Taciano conduzisse a menina à cidade em
que residia para meticuloso tratamento de sua especialidade. Provavelmente a
temporária mudança cooperaria para reerguer-lhe as forças.
O pai, amoroso e dedicado, não vacilou.
Sem recursos para despesas que exorbitassem o orçamento comum,
contraiu vultoso empréstimo e partiu com os filhos, no verão de 259.
Não obstante, porém, os enormes débitos contraídos e apesar dos
sacrifícios levados a efeito, no processo de cura a que foi submetida, a enferma
regressou sem melhoras.
As lutas paternas continuaram, tormentosas.
Desdobravam-se os dias inquietantes, quando inesperada visita veio
surpreendê-los.
Anacleta, a leal amiga, vinha despedir-se.
Tendo ultrapassado meio século de existência, concluíra que não mais
poderia tolerar as agitações da cidade imperial.
Afirmava-se exausta.
Blandina e o pai ouviram, apavorados, as notícias de que se fazia
portadora.
O velho Opílio morrera, atormentado por grandes pesadelos, no inverno de
dois anos antes e Galba, talvez entediado dos excessos a que se rendera
durante toda a vida, tentara a mudança para a Campânia, no que fôra impedido
pela esposa, cada vez mais ávida de emoções e de aventuras...
Lucila, desde a morte de Helena, quando se afastara em definitivo da
influência do antigo lar, parecia tomada por incompreensível fome de prazeres.
Assim é que, enquanto o marido se retirava para o campo, confiava-se à
perniciosa influência de Teódulo, que fixara residência no palácio de Vetúrio,
qual se lhe fôra afeiçoado familiar, O intendente
(21) Mediolanum, hoje Évreux. (Nota do Autor espiritual.)
acompanhava-a em múltiplas festas e favorecia-lhe afeições ilícitas, até que,
190
um dia, apanhado de surpresa por Galba, em posição equívoca, no tálamo
conjugal, foi por ele apunhalado sem comiseração.
Cometido o crime, que, como tantos outros passara despercebido das
autoridades bem subornadas, o irmão de Helena acamou-se, delirando...
Por alguns dias, ela própria, Anacleta, velara por ele, mas, fatigada,
obedeceu às instruções da dona da casa, que lhe recomendava descanso. Na
primeira noite, contudo, em que se entregou ao repouso, na câmara que lhe
era própria, Galba faleceu misteriosamente, asseverando algumas escravas de
confiança, em surdina, que o amo fôra envenenado pela própria mulher, com
uma tisana preparada por ela mesma.
Taciano e a filhinha choraram estas desgraças.
A perda moral de Lucila aterrava-os.
Insistiram com a velha amiga para ficar, entretanto, a devotada servidora
confessou que se fizera cristã e desejava a solidão para reconsiderar o
caminho percorrido. Deliberara, desse modo, voltar à ilha de Cipro, atendendo
ao pedido afetivo dos derradeiros parentes que lhe restavam.
Acompanhada por dois sobrinhos, que lhe dispensavam cuidados
especiais, não se demorou por mais de uma semana, despedindo-se então dos
amigos queridos, para sempre.
Impressionada, talvez, com as aflitivas informações trazidas de Roma,
Blandina não mais se ergueu.
Debalde Taciano rodeou-a de surpresas e carícias... Em vão, Quinto Celso
contou-lhe renovadas histórias de heróis e de mártires.
A doente renunciou a toda espécie de alimentação e mais se assemelhava,
jungida ao leito alvo, a um anjo esculturado em marfim, ünicamente animado
pelos olhos escuros, ainda vivos e brilhantes.
Certa noite, justamente na antevéspera de grandes espetáculos em
homenagem a patrícios ilustres, nos quais Taciano seria investido de grandes
responsabilidades, a enferma chamou-o e apertou-lhe carinhosamente as
mãos.
Permutaram inesquecível olhar, em que exprimiam toda a imensa dor que
lhes estrangulava o espírito, adivinhando próximo adeus.
— Pai — disse ela, melancólica —, agora não me demorarei a reunir-me
aos nossos...
Taciano procurou, em vão, represar as lágrimas que lhe inundavam os
olhos.
Tentou falar, tranqüilizando-a, mas não conseguiu.
— Sempre fomos unidos, paizinho! — continuou a moça, triste — até hoje,
nada fiz sem a sua aprovação... Queria, assim, pedir o consentimento seu para
que eu possa realizar um desejo, antes de partir...
E sem que o genitor tivesse tempo para qualquer indagação, acrescentou:
— O senhor permite que eu aceite a morte, na fé cristã?
O patrício recebeu a pergunta como se fôra apunhalado nos tecidos sutis
da própria alma.
Uma dor intraduzível, na qual se misturavam a saudade e o ciúme, o fel e a
angústia, fê-lo dobrar a cerviz, melancôlicamente...
— Tu também, minha filha? — inquiriu ele, em pranto. — Meu pai era dele,
minha mãe abraçou-o, Basílio imolou-se por ele, Lívia morreu louvando-lhe o
nome, Anacleta despediu-se de nós, procurando-o, Quinto Celso, o filho que o
destino me legou, nasceu pertencendo-lhe... Sempre o Cristo!... Sempre o
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Cristo a buscar-me, a atormentar-me e a perseguir-me!... Eras tu a única esperança
de meus dias! Julguei que o Carpinteiro Galileu te poupasse!...
Entretanto... tu também... Ó Blandina, porque não amas teu pai como teu pai te
ama? Todos me abandonaram... porque me deixarás também? Estou
atribulado, vencido, sozinho...
A jovem movimentou as mãos ressequidas e pálidas, com dificuldade, e
acariciou-lhe a cabeça prematuramente encanecida que pendia para ela em
choro convulso.
— Não sofra, paizinho! — pediu, resignada.
— Eu quero Jesus, mas o senhor é tudo o que eu tenho!... Nada encontrei
na vida igual ao seu carinho... Seu amor é a minha riqueza!... Desejo, antes de
tudo, seguir-lhe os passos... Não vê que sempre rezamos juntos, pela manhã,
a oração de Cíbele? Tudo será para mim, segundo a sua vontade....
A jovem interrompeu-se por alguns instantes, mostrou sinais de indefinível
alegria no rosto descarnado e continuou:
— Hoje, à tardinha, Lívia esteve aqui... Trouxe uma harpa enorme,
adornada com rosas de luz... Cantou para mim o hino às estrelas com a
mesma voz do nosso encontro às margens do Ródano... Disse-me que
estaremos todos juntos em breve e que eu não deveria apoquentá-lo, caso o
senhor não consinta que eu me faça agora cristã... Asseverou que a vida é
divina e eterna e que não temos motivo para atormentar-nos uns aos outros...
Afirmou-me que o amor de Jesus glorifica-nos o caminho e que, com o tempo,
brilhará em toda a parte... Além de tudo, pai querido, nunca entrarei num Céu
em que o senhor não esteja...
Fixou os olhos profundos e fulgurantes no teto e exclamou:
— Jesus é também o amor que espera sempre... Haverá perdão para
todos...
Taciano ergueu o semblante e fitou-a, contristado.
Teria razão para contrariar a filha querida na hora extrema? Poderia, em sã
consciência, impedir-lhe o acesso à fé que ele até então detestara? porque
negar a Blandina o conforto de sua aquiescência numa questão puramente
espiritual? Experimentou grande remorso, em face do desabafo que
pronunciara, e, abraçando a doentinha, falou, sincero:
— Perdoa-me, filha! esquece as minhas palavras... Dize o que pretendes...
Podes abraçar o Cristianismo, livremente... Nosso amor não é uma cadeia para
o sofrimento e sim a nossa comunhão na alegria perfeita! Manda, Blandina, e
obedecerei!...
Havia tanta lealdade quanta ternura naquelas frases que a enferma sorriu
um sorriso de enlevo e contentamento e, então, rogou, humilde:
— Papai, na igreja de São João há um velhinho de nome Ênio Pudens que
eu desejaria fôsse rogado pessoalmente pelo senhor a fazer comigo uma
oração e... quando eu morrer, ficaria contente se o senhor depositasse o meu
corpo no sepulcro dos cristãos... Sei que lá reina a alegria com a certeza da
vida eterna...
Taciano tentou dissuadi-la dessas idéias. Porque tamanha preocupação
com a morte, quando a esperança lhes descerrava magnífico futuro à frente?
Esforçando-se para mostrar tranquilidade e segurança, prometeu cumprirlhe
a vontade