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sábado, 29 de janeiro de 2011

Obreiro da Vida Eterna-Francisco Cândido Xavier

OBREIROS DA VIDA ETERNA

FRANCISCO CÂNDIDO XAVIER

DITADO PELO ESPÍRITO ANDRÉ LUIZ

(4)


Série André Luiz

1 - Nosso Lar

2 - Os Mensageiros

3 - Missionários da Luz

4 - Obreiros da Vida Eterna

5 - No Mundo Maior

6 - Agenda Cristã

7 - Libertação

8 - Entre a Terra e o Céu

9 - Nos Domínios da Mediunidade

10 - Ação e Reação

11 - Evolução em Dois Mundos

12 - Mecanismos da Mediunidade

13 - Conduta Espírita

14 - Sexo e Destino

15 - Desobsessão

16 - E a Vida Continua...



Rasgando Véus

O homem moderno, pesquisador da estratosfera e do subsolo, esbarra, ante os pórticos do sepulcro, com a mesma aflição dos egípcios, dos gregos e dos romanos de épocas recuadas. Os séculos que var­reram civilizações e refundiram povos, não trans­formaram a misteriosa fisionomia da sepultura. Milenário ponto de interrogação, a morte continua ferindo sentimentos e torturando inteligências.

Em todas as escolas religiosas, a Teologia, re­presentando as diretrizes de patriarcas veneráveis da fé, procura controlar o campo emotivo dos cren­tes, acomodando os interesses imediatistas da alma encarnada. Para Isso, criou regiões definidas, ten­tando padronizar as determinações de Deus pelos decretos dos reis medievais, lavrados à base de audaciosa Ingenuidade.

Indubitavelmente, províncias de angústia puni­tiva e dor reparadora existem nas mais variadas dimensões do Universo, assim como vibram cons­ciências escuras e terríveis nos múltiplos estados sociais; no entanto, o serviço teológico, nesse sen­tido, não obstante respeitável, atento ao dogmatismo tradicional e aos Interesses do sacerdócio, estabelece o “non plus ultra”, que não atende às exigências do cérebro, nem aos anseios do coração.

Como transferir imediatamente para o Inferno a mísera criatura que se emaranhou no mal por simples Influência da Ignorância? que se dará, em nome da Sabedoria Divina, ao homem primitivo, sedento de dominação e de caça? A maldição ou o alfabeto? Por que processo conduzir ao abismo tene­broso o espírito menos feliz, que apenas obteve contacto com a verdade, no justo momento de abandonar o corpo? Dentro das mesmas razões, como promover ao céu, em caráter definitivo, o dis­cípulo do bem, que apenas se iniciou na prática da virtude? que gênero de tarefa caracterizará o mo­vimento das almas redimidas, na Corte Celestial? formar-se-iam apóstolos tão só para a aposentado­ria compulsória? como haver-se, no paraíso, o pai carinhoso cujos filhos fôssem entregues a Satã? Que alegria se reservará a esposa dedicada e fiel, que tem o esposo nas chamas consumidoras? Estaria a Autoridade Divina, perfeita e ilimitada, tão pobre de recursos, a ponto de Impedir, além do plano car­nal, o benefício da cooperação legítima, que as auto­ridades falíveis e deficientes do mundo incentivam e protegem? negar-se-iam possibilidades de evolu­ção aos que atravessam a porta do sepulcro, em plena vida maior, quando na esfera terrestre, sob limitações de vária ordem, há caminhos evolutivos para todas as formas e todos os seres? a palavra

“trabalho” seria desconhecida nos céus, quando a Natureza terrena reparte missões claras de serviço, com todas as criaturas da Crosta Planetária, desde o verme até o homem? como justificar um inferno onde as almas gemessem distantes de qualquer espe­rança, quando, entre os homens imperfeitos, ao in­fluxo renovador do Evangelho de Jesus-Cristo, as penitenciárias são hoje grandes escolas de regene­ração e cura psíquica? e por que meios admitir um céu, onde o egoísmo recebesse consagração absolu­ta, no gozo infinito dos contemplados pela graça, sem nenhuma compaixão pelos deserdados do fa­vor, que caíram, ingênuos, nas armadilhas do sofri­mento, se, entre as mais remotas coletividades de obscuras, zonas carnais, se arregimentam legiões de assistência fraterna amparando ignorante. e infelizes?

São interrogações oportunas para os teólogos sinceros da atualidade. Não, contudo, para os que tentam conjugar esforços na solução do grande e indevassado problema da Humanidade

O Espiritismo começou o inapreciável traba­lho de positivar a continuação da vida além da morte, fenômeno natural do caminho de ascensão. Esferas múltiplas de atividade espiritual interpene­trem-se nos diversos setores da existência. A morte não extingue a colaboração amiga, o amparo mútuo, a intercessão confortadora, o serviço evolutivo. As dimensões vibratórias do Universo são infinitas, como infinitos são os mundos que povoam a Imen­sidade.

Ninguém morre. O aperfeiçoamento prossegue em toda parte.

A vida renova, purifica e eleva os quadros múltiplos de seus servidores, conduzindo-os, vitoriosa e bela, à União Suprema com a Divindade.

Apresentando o novo trabalho, em que André Luis comparece rasgando véus, lembramo-nos de que Allan Kardec, o inesquecível codificador, refe­re-se várias vezes em sua obra à erraticidade, onde estaciona considerável número de criaturas humanas desencarnadas. Acresce notar, todavia, que transferir-se alguém da esfera carnal para a erraticidade -não significa ausentar-se da iniciativa

ou da responsabilidade, nem vaguear em turbilhão aéreo, sem diretivas essenciais. No mesmo critério, observaríamos os que renascem no plano denso como pessoas transferidas da vida espiritual à materialidade, não simbolizando semelhante figura qualquer imersão inconsciente e estúpida nas cor­rentes carnais. Como acontece aos que chegam à Crosta da Terra, os que saem dela encontram igual­mente sociedades e instituições, templos e lares, onde o progresso continua para o Alto.

No limiar deste livro, portanto, cumpre-nos declarar que André Luis procurou fornecer algumas notícias das zonas de erraticidade que envolvem a crosta do mundo, em todas as direções, comentando os quadros emocionais que se transportam do am­biente obscuro para as esferas imediatas às cogi­tações e paixões humanas; mais uma vez, esclarece que a morte é campo de seqüência, sem ser fonte milagreira, que aqui ou além o homem é fruto de si mesmo, e que as leis divinas são eternas organi­zações de justiça e ordem, equilíbrio e evolução.

Naturalmente, a estranheza visitará os compa­nheiros menos avisados e o sorriso irônico surgirá, sem dúvida, na boca, quase sempre brilhante, dos impenitentes incorrigíveis. Não importa, porém. Je­sus, que é o Cristo de Deus, recebeu manifestações de sarcasmo da ignorância e da leviandade... Por que motivo, nós outros, simples cooperadores de “outro mundo”, teríamos de ser intangíveis?

Prossigamos, pois, no serviço da verdade e do bem, cheios de otimismo e bom ânimo, a caminho de Jesus, com Jesus.

Pedro Leopoldo, 25 de março de 1946.

EMMANUEL


1

Convite ao bem

Antes de Iniciar Os trabalhos de nossa expedi­ção socorrista, o Assistente Jerônimo conduziu-nos ao Templo da Paz, na zona consagrada ao serviço de auxilio, onde esclarecido Instrutor comentaria as necessidades de cooperação junto às entidades Infelizes, nos circulos mais baixos da vida espiritual que rodeiam a Crosta da Terra.

A maravilhosa noite derramava inspirações di­vinas.

Ao longe, constelações faiscantes semelhavam-se a pérolas caprichosamente dispostas numa col­cha de veludo Imensamente azul. A paisagem lunar oferecia detalhes encantadores. Picos e crateras salientavam-se à nossa vista, embora a conside­rável distância, num deslumbramento de filigrana preciosa. Fulgurava o Cruzeiro do Sul como sím­bolo sublime, desenhado ao fundo azul-escuro do firmamento. Canópus, Sírius, Antares brilhavam, infinitamente, figurando-se-nos balizas radiosas e significativas do Céu. A Via Láctea, dando-nos a Impressão de prodigioso ninho de mundos, pa­recia um dilúvio de moedas resplandecentes a se derramarem de cornucópia gigantesca e invisível, convidando-nos a meditar nos segredos excelsos da Natureza divina. E as suaves virações noturnas, osculando-nos a mente em êxtase, passavam apres­sadas, sussurrando-nos grandiosos pensamentos, an­tes de se dirigirem às esferas distantes...

O Templo, edificado no sopé de graciosa co­lina, apresentava aspecto festivo, em virtude da iluminação feérica a projetar singulares efeitos nos caminhos adjacentes. As torres, à maneira de agu­lhas brilhantes, alongavam-se pelo céu, contras­tando com o indefinível azul da noite clara e, cá em baixo, as flores de variadas figurações eram taças luminosas, servindo luz e perfume, balouçando, de leve, na folhagem, ao sopro Incessante do vento.

Não éramos os únicos interessados na palestra da noite, porque numerosos grupos de irmãos se dirigiam ao interior, acomodando-se no recinto. Eram entidades de todas as condições, fazendo-nos sentir o geral interesse pelas lições em perspectiva.

Seguíamos, o Assistente Jerônimo, o padre Hi­pólito, a enfermeira Luciana e eu, constituindo pe­quena equipe de trabalho, incumbida de operar na Crosta Planetária, durante trinta dias, aproxima­damente, em caráter de auxilio e estudo, com vis­tas ao nosso desenvolvimento espiritual.

Jerônimo, o orientador de nossas atividades pela nobreza de sua posição, percebendo-me a curio­sidade perante as movimentadas conversações em derredor, explicou, gentil:

— Muito justa a atenção, em torno do assunto. Admito que a quase totalidade dos interessados e estudiosos que afluem à casa integram comissões e agrupamentos de socorro nas regiões menos evol­vidas.

E demorando o olhar nas fileiras de jovens e velhos que demandavam o interior, acrescentou:

- A palavra do Instrutor Albano Metelo me­rece a consideração excepcional da noite. Trata-se dum campeão das tarefas de auxílio aos ignorantes e sofredores dos círculos imediatos à Crosta Ter­restre. Somos aqui diversos grupos de aprendizes, e a experiência dele nos proporcionará infinito bem.

Breves minutos decorreram e penetramos, por nossa vez, o recinto radioso.

Vagavam no ar suaves melodias, precedendo a palavra orientadora. Flores perfumosas, ornamentando o ambiente, embalsamavam a nave ampla.

Alguns instantes agradabilíssimos de espera e

o emissário apareceu na tribuna simples, magnificamente iluminada. Era um ancião de porte respeitável, cujos cabelos lhe teciam uma coroa de neve luminosa. De seus olhos calmos, esplêndida­mente lúcidos, irradiavam-se forças simpáticas que de súbito nos dominaram os corações. Depois de estender sobre nós a mão amiga, num gesto de quem abençoa, ouviu-se o coro do Templo entoando o hino “Glória aos Servos Fiéis”:

Ó Senhor!

Abençoa os teus servos fiéis,

Mensageiros de tua paz,

Semeadores de tua esperança.

Onde haja sombras de dor,

Acende-lhes a lâmpada da alegria;

Onde domine o mal, ameaçando a obra do bem,

Abre-lhes a porta oculta à tua misericórdia;

Onde surjam acúleos do ódio,

Auxilia-nos a cultivar as flores bem-aventuradas de teu sacrossanto amor!

Senhor! são eles

Teus heróis anônimos,

Que removem pântanos e espinheiros,

Cooperando em tua divina semeadura...

Concede-lhes os júbilos interiores,

Da claridade sagrada em que se banham as almas redimidas.

Unge-lhes o coração com a harmonia celeste

Que reservas ao ouvido santificado;

Descortina-lhes as visões gloriosas

Que guardas para os olhos dos justos;

Condecora-lhes o peito com as estrelas da virtude leal...

Enche-lhes as mão. de dádivas bendita.

Para que repartam em teu nome

A lei do bem,

A lua da perfeição,

O alimento do amor,

A veste da sabedoria,

A alegria da paz,

A força da fé,

O influxo da coragem,

A graça da esperança,

O remédio retificador!...

Ó Senhor,

Inspiração de nossas vidas,

Mestre de nossos corações,

Refugio dos séculos terrestres!

Fase brilhar teus divinos lauréis

E teus eternos dons,

Na fronte lúcida dos bons —

Os teus servos fiéis!

O Instrutor ouviu, em silêncio, de olhos mo­lhados, deixando transparecer íntimo júbilo, enquanto a maioria da assembléia disfarçava discre­tamente as lágrimas que os acentos harmoniosos do cântico nos arrancavam do coração. Em se per­dendo no espaço as derradeiras notas da melodia sublime, Metelo, sem qualquer luzo de gesticulação, saudou-nos com expressiva simplicidade, desejando-nos a Paz do Senhor, e prosseguiu:

— Não mereço, amigos, o preito de carinho desta noite. Não tenho servido fielmente Aquele que nos ama desde o principio e, por isso, vosso hino confunde-me. Mero soldado das lides evangé­licas, trabalho ainda no campo da própria redenção.

Fez ligeira pausa, fitou-nos, paternal, e con­tinuou:

— Mas... a minha, personalidade não Inte­ressa. Venho falar-vos de nossos trabalhos sin­gelos, nas regiões espirituais ligadas à Crosta da Terra. Ó meus irmãos! é necessário apelar para as nossas energias mais recônditas. As zonas purgatoriais multiplicam-se, assustadoramente, em derredor dos homens encarnados. A distância dos teatros de angústia, vinculados às realizações edi­ficantes de nossa colônia espiritual, preservando valiosas reservas da vida infinita para essa mesma Humanidade que se debate no sofrimento e nas trevas, nem sempre formulamos uma ideia exata da ignorância e da dor que atormentam a mente humana, quanto aos problemas da morte. A feli­cidade faz que nasçam aqui as fontes inesgotáveis da esperança. Os que se preparam, ante os vôos maiores da Eternidade, trazem os olhos voltados para a Esfera Superior, na contemplação do ilimitado porvir, e os que se esforçam por merecer a bênção da reencarnação na Crosta Terrestre, fixam as suas aspiraçôes mais fortes no soberano propó­sito de redenção, organizando-se perante o futuro, ousados nas solicitações de trabalho e arrojados no bom ânimo. Todos os pormenores da vida, nesta cidade, falam alto de nossos objetivos de equilíbrio e elevação. Não longe de nós, começam a brilhar os raios da alvorada radiante dos mundos melhores, convidando-nos à visão beatifica do Universo e à gloriosa união com o Divino. Mas... — o orador fêz significativo intervalo, parecendo escutar vozes e chamamentos de paisagens distantes, e prosse­guiu: — e os nossos Irmãos que ainda Ignoram a luz? subiríamos até Deus, num circulo fechado? como operar o insulamento egoístico e partir, a caminho do Pai Amoroso e Leal que acende o Sol para os santos e os criminosos, para os justos e Injustos?

Metelo mostrou uma chama de zelo sagrado nos olhos percucientes e exclamou, depois de curta reflexão:

— Nós, que procuramos a santidade e a jus­tiça, alcançaríamos, acaso, semelhante orientação, se outras fôssem as circunstâncias que nos regeram até aqui? Construtores de nossos próprios desti­nos, por delegação natural do Criador, onde permaneceríamos, agora, sem os favores da oportunidade e o obséquio da proteção de benfeitores desvelados? Indubitàvelmente, os ensejos de eleva­ção felicitam todas as criaturas; no entanto, é Im­prescindível ponderar que a bênção da fonte pode converter-se em venenosa água estagnada, se a trancamos num poço Incomunicável. E as dádivas recebidas por nós são Inúmeras e os dons que nos foram distribuídos, imensos... Seria completo o nosso regozijo, havendo lágrimas atrás de nossos passos? como entoar hinos de hosana à felicidade sobre o coro dos soluços? Nobilíssimo, todo im­pulso de atingir o cume; entretanto, que vere­mos após a ascensão? Entre os júbilos de alguns, identifIcaríamos a ruína e a miséria de multidões IncalculáveIs!...

Nesse momento, envolvido nas vibrações de profundo Interesse dos ouvintes, imprimiu novo acento ao verbo luminoso e tornou com indefinível melancolia:

- Também eu tive noutro tempo a obcecação de buscar apressado a montanha. A Luz de cima fascinava-me e rompi todos os laços que me reti­nham em baixo, encetando dificilmente a jornada.

A principio, feri-me nos espinhos pontiagudos da senda, experimentei atrozes desenganos...

Con­segui, porém, vencer os óbices imediatos e ganhei, jubiloso, pequenina eminência. Em me voltando, todavia, espantou-me a visão terrífica do vale: o sofrimento e a ignorância dominavam em plena treva. Desencarnados e encarnados lutavam uns contra os outros, em combates gIgantescos, disputando gratificações dos sentidos animalizados. O ódio criava moléstias repugnantes, o egoísmo aba­fava impulsos nobres, a vaidade operava horrenda cegueira... Cheguei a sentir-me feliz, diante da posição que me distanciava de tamanhas angús­tias. Contudo, quando mais me vangloriava, dentro de mim mesmo, embalado na expectativa de atra­vessar mais altos cumes, eis que, certa noite, notei que o vale se represava de fulgente luz. Que sol misericordioso visitava o antro sombrio da dor? Seres angélicos desciam, céleres, de radiosos pi­náculos, acorrendo às zonas mais baixas, obedecendo ao poder de atração da claridade bendita. Que acontecera? — perguntei ousadamente, in­terpelando um dos áulicos celestiais. — “O Senhor Jesus visita hoje os que erram nas trevas do mun­do, libertando consciências escravizadas. Nem mais uma palavra. O mensageiro do Plano Divino não podia conceder-me mais tempo. Urgia descer para colaborar com o Mestre do Amor, diminuindo os desastres das quedas morais, amenizando padeci­mentos, pensando feridas, secando lágrimas ate­nuando o mal, e, sobretudo, abrindo horizontes novos à Ciência e à Religião, de modo a desfazer a multimilenária noite da Ignorância. Novamente sozinho, na peregrinação para o Alto, reconsiderei a atitude que me fizera impaciente. Em verdade, para onde marchava meu Espírito, despreocupado da imensa família humana, junto da qual haurira minhas mais ricas aquisições para a vida imortal? porque enojar-me, ante o vale, se o próprio Jesus, que me centralizava as aspirações, trabalhava, so­lícito, para que a Luz de Cima penetrasse as entra­nhas da Terra? não praticava eu o crime execrável da usura, olvidando aqueles entre os quais adqui­rira o roteiro destinado à minha própria ascensão? como subir sozinho, organizando um céu exclusivo para minhalma, lastimàvelmente abstraído dos va­lores da cooperação que o mundo me prodigalizava com generosidade e abundância?

Mostrava-se o Instrutor intensamente como­vido.

— Detive-me, então — continuou — e voltei. Efetivamente, o caminho vertical e purificador da superioridade é a sublime destinação de todos. O cume, bafejado de resplendor solar, é sempre um desafio benéfico aos que vagueiam sem rumo, na planície. O alto polariza, naturalmente, as supremas esperanças dos que ainda permanecem em baixo... Todavia, à medida que penetramos o do­mínio da altura, imprimem-se-nos na mente e no coração as leis sublimes de fraternidade e mise­ricórdia, Os grandes orientadores da Humanidade não mediram a própria grandeza senão pela capa­cidade de regressar aos círculos da ignorância para exemplificarem o amor e a sabedoria, a renúncia e o perdão aos semelhantes. É por esse motivo que necessitamos temperar todo impulso de eleva­ção com o sal do entendimento, evitando a precipi­tação nos despenhadeiros do egoísmo e da vaidade fatais.

Metelo silenciou por instantes e, diante da comoção com que lhe acompanhávamos a palestra, retomou o verbo com outra inflexão de voz:

— Outrora, quando nos envolvíamos ainda nos fluidos da carne terrestre, supúnhamos com desa­certo que a vaidade e o egoísmo sômente poderiam vitimar os homens encarnados. A Teologia, não obstante o ministério respeitável que lhe está afe­to, enclausurava-nos a mente em fantasiosas con­cepções do reino da verdade. Esperávamos um paraíso fácil de ser conquistado pela deficiência humana e temíamos um inferno difícil de rege­nerar-nos. Nossas ideias alusivas à morte confina­vam-se a essas ridículas limitações. Hoje, porém, sabemos que, depois do túmulo, há simplesmente continuação da vida. Céu e inferno residem den­tro de nós mesmos. A virtude e o defeito, a ma­nifestação sublime e o impulso animal, o equilíbrio e a desarmonia, o esforço de elevação e a proba­bilidade da queda perseveram aqui, após o trân­sito do sepulcro, compelindo-nos à serenidade e à prudência. Não nos encontramos senão em outro campo de matéria variada, noutros domínios vi­bratórios do próprio Planeta em cuja Crosta tivemos experiências quase inumeráveis. Como não equilibrar, portanto, o coração no exercido efe­tivo da solidariedade? Logicamente não exortamos ninguém a novos mergulhos no lodo antigo, não desejamos que os companheiros previdentes re­gressem à posição de filhos pródigos, distanciados voluntariamente do Eterno Pai, nem pretendemos interromper a marcha laboriosa dos servidores de boa vontade, a caminho dos Cimos da Vida. Ape­lamos tão só no sentido de cooperardes nos trabalhos de socorro às esferas escuras. Sois livres e dispondes de tempo, no desempenho dos deveres nobilitantes a que fostes chamados em nossa co­lônia espiritual. Nada mais razoável que o pro­veito da oportunidade no planejamento da ascese. Entretanto, na qualidade de velho cooperador das tarefas de auxilio, ousamos rogar vosso interesse generalizado pelos que erram “no vale da sombra e da morte”, aguardando a esmola possível de vosso tempo, em favor dos nossos semelhantes, de­frontados agora por situações menos felizes, não em virtude dos designios divinos, mas em razão da imprevidência deles mesmos. Contudo, qual de nós não foi invigilante algum dia?

Fez o orador uma pausa mais longa e con­tinuou:

— De nossos amigos encarnados não podemos esperar, por enquanto, concurso maior e mais efi­ciente nesse sentido. Presos nas grades sensoriais, progridem lentamente na aprendizagem das leis que regem a matéria e a energia. Quando convidados a visitar nossos círculos de edificação, fora da ins­trumentalidade fisiológica, regressam ao corpo as­sombrados pelas visões rápidas que lhes foi pos­sível arquivar e, em transmitindo suas lembranças aos contemporâneos, operam a coloração da água simples e pura da verdade com os seus “pontos de vista” e predileções pessoais no terreno da Ciên­cia, da Filosofia e da Religião. Bernardin de Saint­-Pierre, o romancista trazido por amigos a regiões vizinhas da Crosta Planetária, volta ao seu meio de ação e traça aspectoS que asseverou pertencerem ao Planeta Vênus. Huyghens, o astrônomo, recebe mentalmente algum noticiário de nossas es­feras de luta e ensaia teorias referentes à vida em outros mundos, afirmando que os processos bio­lógicos nos orbes distantes são absolutamente aná­logos aos da Crosta da Terra. Teresa d’Avila, a religiosa santificada, transporta-se à paisagem de nosso plano onde se lamentam almas sofredoras, e torna ao corpo carnal, descrevendo o inferno para os seus ouvintes e leitores. Swedenborg, o gran­de médium, percorre alguns trechos de nossas zonas de ação e pinta os costumes das “habitaçõeS as­trais” como melhor lhe parece, Imprimindo às nar­rações os fortes característicos de suas concepçoes individuais. Quase todos os que vieram momen­tflneamente ao nosso campo de trabalho voltam ao esforço humano, exibindo a experiência de que foram objeto, pincelando-a com a tinta de suas Inclinações e estados psíquicos. Porque se encon­tram fundamente arraigados ao “chão inferior” do próprio “eu”, acreditam enxergar outros mundos em situações iguais à da Terra, nosso maravilhoso templo, cujas dependências não se restringem à Esfera da Crosta sobre a qual os homens de carne pousam os pés. A Terra é também nossa grande mãe, cujos braços acolhedores se estendem pelo espaço além, ofertando-nos outros campos de apri­moramento e redenção.

Modificando a Inflexão de voz, prosseguiu:

— As criaturas, porém, atravessam breve pe­ríodo de existência no mundo carnal. A maioria demora-se nas estações expiatórias do resgate di­fícil e confunde-se nas vibrações perturbadoras do sofrimento e do medo. Fazem da morte uma deusa sinistra. Apresentam o fenômeno natural da reno­vação com as mais negras cores. Agarradas às sensações do dia que passa, ignoram como dilatar a esperança e transformam a separação provisória numa terrível noite de amarguroso adeus. Vitimas da ignorância em que se comprazem, internam-se em florestas de sombras, onde perdem toda a paz, convertendo-se em presas delirantes dos infernos de horror, criados por elas mesmas nos desvaira­mentos passionais. Como esperar delas a colabo­ração precisa, com a extensão desejável, se, pela indiferença para com os próprios destinos, mergu­lham-se diariamente nos rios de treva, desencanto e pavor? Unamo-nos portanto, auxiliando-as, se­gundo os preceitos evangélicos, descortinando-lhes novos horizontes e aclarando-lhes os caminhos evo­lutivos.

De olhos fulgurantes e neblinados de lágrimas, pela evocação talvez de quadros das esferas som­brias, que não nos eram dado conhecer, Metelo man­teve-se longos instantes em silêncio, voltando a dizer em tom de súplica:

— Recordemos o Divino Mestre e não desde­nhemos a honra de servir, não de acordo com os nossos caprichos pessoais, porém de conformidade com os seus desígnios e suas leis. Campos imen­suráveis de trabalho aguardam-nos a cooperação fraterna e a semeadura do bem produzirá nossa felicidade sem fim!...

Falou, comovedoramente, por mais alguns mi­nutos, e, em seguida, invocou as Forças Divinas, arrancando-nos lágrimas de intraduzível alegria.

Raios de claridade azul-brilhante choveram no recinto, proporcionando-nos a resposta do Plano Superior.

Transcorridos alguns momentos de meditação, Metelo fêz exibir num grande globo de substância leitosa, situado na parte central do Templo, vários quadros vivos do seu campo de ação nas zonas inferiores. Tratava-se da fotografia animada, com apresentação de todos os sons e minúcias anatô­micas inerentes às cenas observadas por ele, em seu ministério de bondade cristã.

Infelizes desencarnados, em despenhadeiros de dor, imploravam piedade. Monstros de variadas es­pécies, desafiando as antigas descrições mitológicas, compareciam horripilantes, ao pé de vítimas des­venturadas.

As paisagens, analisadas de tão perto, através do avançado processo de fixação das Imagens, não somente emocionavam: infundiam terror. Na inti­midade da massa leitosa, em que eram lançadas, adquiriam expressões de vivacidade indescritível. Apareciam soturnas procissões de seres humanos despojados do corpo, sob céus nevoentos e amea­çadores, cortados de cataclismos de natureza mag­nética.

Pela primeira vez, contemplava eu semelhante demonstração, sem disfarçar a emoção. Para onde se dirigiam aquelas fileiras imensas de Espíritos sofredores? como se sustentariam os ajuntamentos de almas desalentadas e semi-inconscientes, que me era dado divisar ali, ante os meus olhos toma­dos de assombro, atoladas em poços escuros de lama e padecimento?

Em dado instante, a voz do Instrutor quebrou o silêncio.

Diante dum quadro extremamente doloroso, exclamou em voz firme:

— Muitos de vós sabeis que tenho nesses cen­tros expiatórios os que me foram pais bem-amados na derradeira experiência vivida na carne, prisio­neiros ainda de torturantes recordações; no entan­to, crede, não nos move qualquer propósito egoís­tico nas tarefas de auxílio, porque temos aprendido com o Senhor que a nossa família se encontra eia toda parte.

Observei que ninguém ousou voltar-se para Metelo em seu testemunho de humildade. Comovidíssimo, por minha vez, ante a demonstração de entendimento evangélico a que assistia, notei o olhar expressivo que o Assistente Jerônimo me endereçou, ao término do noticiário animado e sonoro e procurei alijar de mim mesmo a preocupação de algo saber, acerca do drama particular do orientador, anulando meus inferiores impulsos de mera curiosidade.

Findos os trabalhos, que ocuparam pouco mais de duas horas, inclusive a palestra instrutiva, vá­rios grupos eram apresentados ao Instrutor, por uni dos dirigentes do Templo.

Tive a impressão de que a assembleia em sua feição quase integral era constituída de legítimos interessados nos trabalhos espontâneos de ajuda ao próximo. Pelas saudações e pelas frases de que se faziam acompanhar, percebi que se aglomera­vam, no recinto, grandes e pequenos conjuntos de servidores, em diversas missões, com objetivos múl­tiplos. Consagravam-se alguns ao amparo de cri­minosos desencarnados, outros ao socorro de mães aflitas, colhidas inesperadamente pelas renovações da morte, outros, ainda, interessavam-se pelos ateus, pelas consciências encarceradas no remorso, pelos enfermos na carne, pelos agonizantes na Crosta, pelos dementes sem corpo físico, pelas crianças em dificuldade no plano invisível aos homens, pelas almas desanimadas e tristes, pelos desequilibrados de todos os matizes, pelos missionários perdidos ou desviados, pelas entidades jungidas às vísceras cadavéricas, pelos trabalhadores da Natureza, neces­sitados de inspiração e carinho.

Para todos, possuia o mentor uma sentença generosa de estimulo e admiração.

Chegada a nossa vez, Jerônimo nos apresentou gentilmente:

— Metelo, temos aqui três companheiros que me seguirão agora, em missão de socorro.

— Muito bem! muito bem! — exclamou o in­terpelado — que o Divino Servidor os inspire.

Abraçou-nos, com simplicidade, e perguntou:

— Partem com obrigação especializada?

— Sim — esclareceu nosso orientador —, de­vemos atender, nos próximos trinta dias, a cinco dedicados colaboradores nossos, prestes a desen­carnarem na Crosta. Trabalharam, fiéis à causa do bem, e as nossas autoridades encarregaram-nos de atender-lhes aos casos pessoais.

— Prevejo muito êxito — comentou Albano Metelo, fixando em nós o olhar sereno.

Revelando espontânea alegria pelas palavras ouvidas, Jerônimo acrescentou, delicado:

— Confio na dedicação dos meus companhei­ros. Seguem comigo um ex-padre católico, uma enfermeira e um médico. Seremos quatro servos em ação ativa.

— Compreendo — aduziu o Instrutor.

— Vamos com autorização para efetuar expe­riências, estudos e auxílios eventuais, de conformidade com as circunstâncias, em vista do caráter de nosso trabalho, que nos prodigalizará ensejo a diferentes observações.

Enviou-nos Metelo reconfortante sorriso de oti­mismo e confiança, cumprimentou-nos, individual­mente, e, depois de abraçar o nosso diretor, com intimidade, exclamou:

— Que o Mestre os ilumine e conduza.

Eram as palavras de despedida. Outro grupo socorrista aproximou-se dele e retiramo-nos do tem­plo da Paz, repletos do pensamento salutar de ser­vir aos semelhantes em nome de Deus.

Lá fora, a noite de maravilhas era bem uma festa silenciosa, em que o aroma das flores convidava para o banquete celeste da luz.


2

No Santuário da Bênção

Na véspera da partida, o Assistente Jerônimo conduziu-nos ao Santuário da Bênção, situado na zona dedicada aos serviços de auxilio, onde, segundo nos esclareceu, receberíamos a palavra de mento­res iluminados, habitantes de regiões mais puras e mais felizes que a nossa.

O orientador não desejava partir sem uma ora­ção no Santuário, o que fazia habitualmente, antes de entregar-se aos trabalhos de assistência, sob sua direta responsabilidade.

A tardinha, pois, em virtude do programa de­lineado, encontrávamo-nos todos em vastíssimo sa­lão, singularmente disposto, onde grandes aparelhos elétricos se destacavam, ao fundo, atraindo-nos a atenção.

A reduzida assembléia era seleta e distinta.

A administração da casa não recebia mais de vinte expedicionários de cada vez. Em razão do preceito, apenas três grupos de socorro, prestes a partirem a caminho das regiões inferiores, aprovei­tavam a oportunidade.

O conjunto de dose, presidido por uma irmã de porte venerável, de nome Semprônia, que se consagraria ao amparo dos asilos de crianças des­protegidas; o grupo chefiado por Nicanor, um assistente muito culto e digno, que se dedicaria, por algum tempo, à colaboração nas tarefas de assis­tência aos loucos de antigo hospício, e nós outros, os companheiros encarregados de auxiliar alguns amigos em processo de desencarnação, perfaziam o total de vinte entidades.

O Instrutor Cornélio, diretor da instituição, atendido por um assessor, palestrava conosco, de­monstra-nos simplicidade e fidalguia, magnanimi­dade e entendimento.

— Logo de início, em nossa administração —explicava-nos — procuramos estabelecer o apro­veitamento máximo do tempo com o mínimo de oportunidade. Para concretizar a providência, des­de muito não recebemos indiscriminadamente os grupos socorristas. Reunimos os conjuntos de ser­viço, de acordo com as situações a que se destinam. Em dia de recepção aos que vão prestar serviços na Crosta, não atendemos a colaboradores incum­bidos de operar exclusivamente nas zonas de de­sencarnados, como sejam as estações purgatoriais e as que se classificam como francamente tene­brosas. Há que ordenar as palavras e selecioná-las, criando-se campo favorável aos nossos propósitos de serviço. A conversação cria o ambiente e coope­ra em definitivo para o êxito ou para a negação. Além disso, como esta casa é consagrada ao auxí­lio sublime dos nossos governantes que habitam planos mais altos, não seria justo distrair a atenção e, sim, consolidar bases espirituais, com todas as energias ao nosso alcance, em que possam aqueles governantes lançar os recursos que buscamos. Com­preendendo a extensão das tarefas por fazer e o respeito que devemos àqueles que nos ajudam, so­mos de parecer que precisamos sanar os velhos desequilíbrios das intromissões verbais desnecessá­rias e, muitas vezes, perturbadoras e dissolventes.

Enquanto lhe ouvíamos as ponderações, encan­tados, imprimiu ligeiro intervalo às sentenças es­clarecedoras e continuou:

— Aliás, o profeta enunciou, há muitos sé­culos, que €a palavra dita a seu tempo é maçã de ouro em cesto de prata. Se estamos, portanto, verdadeiramente interessados na elevação, consti­tui-nos inalienável dever o conhecimento exato do valor “tempo” estimando-lhe a preciosidade e de­finindo cada coisa e situação em lugar próprio, para que o verbo, potência divina, seja em nossas ações o colaborador do Pai.

Sorrimos, satisfeitos.

— Nada mais razoável e construtivo — opinou Semprônia, a destacada orientadora que dirigiria pela primeira vez a expedição de socorro aos or­fãozinhos encarnados.

O dirigente do Santuário, reconhecendo, talvez, como nos sentíamos necessitados de esclarecimento quanto ao uso da palavra, prosseguiu:

— É lamentável se dê tão escassa atenção, na Crosta da Terra, ao poder do verbo, atualmente tão desmoralizado entre os homens. Nas mais res­peitáveis instituições do mundo carnal, segundo informes fidedignos das autoridades que nos re­gem, a metade do tempo é despendida inütilmente, através de conversações ociosas e inoportunas. Isso, referindo-nos sõmente às “mais respeitáveis”. Não se precatam nossos irmãos em Humanidade de que o verbo está criando imagens vivas, que se desen­volvem no terreno mental a que são projetadas, produzindo conseqüências boas ou más, segundo a sua origem. Essas formas naturalmente vivem e proliferam e, considerando-se a inferioridade dos desejos e aspirações das criaturas humanas, seme­lhantes criações temporárias não se destinam senão a serviços destruidores, através de atritos formi­dáveis, se bem que invisíveis.

Notava-se, claramente, o interesse que suas definições despertavam nos ouvintes. Em seguida a uma pausa mais longa, tornou, cuidadoso:

— Toda conversação prepara acontecimentos de conformidade com a sua natureza. Dentro das leis vibratórias que nos circundam por todos os lados, é uma força indireta de estranho e vigoroso poder, induzindo sempre aos objetivos velados de quem lhe assume a direção intencional. Encarrega­dos de assumir a chefia desta casa, trouxemos ins­truções de nossos Maiores para suprimir todos os comentários tendentes à criação de elementos adver­sos aos júbilos da Bênção Divina. É por isso que, graças ao amor providencial de Jesus, temos con­seguido a manutenção de um instituto em que os nossos mentores de Mais Alto se fazem sentir.

A ausência de qualquer palavra menos digna e a presença contínua de fatores verbais edificanteS facilitam a elaboração de forças sutis, nas quais os orientadoreS divinos encontram acessórios para se adaptarem, de algum modo, às nossas necessi­dades na edificação comum.

Fez um gesto do narrador que se recorda de minudência Importante e Informou:

Encetando nosso trabalho modesto, expe­rimentamos reações apreciáveis. Procurava-se, en­tão, o Santuário, sem qualquer preparação Intima. Nossos amigos prosseguiam repetindo o cenário da Crosta, em que os devotos procuram os tem­plos, como os negociantes buscam mercados. Devemos administrar dons espirituais, como quem dirige um armazém de vantagens fáceis ao perso­nalismo inferior. Desde o primeiro dia, porém, am­parados na delegação de competência que nos foi concedida, golpeamos, fundo, o velho hábito. Du­rante alguns dias, gastamos tempo, ensinando a reverência devida ao Senhor, a necessidade da lim­peza interna do pensamento e a abolição do feio costume de tentar o suborno da Divindade com fa­laciosas promessas. E quando sentimos conscien­ciosamente que as lições estavam findas, iniciamos a aplicação de medidas retificadoras. Registros vi­bratórios foram instalados, assinalando a natureza das palavras em movimento. Desde aí foi muito fácil identificar os infratores e barrar-lheS a en­trada na Câmara de iluminação, onde realizamOs nossas preces...

Observando, talvez, que alguns de nós faziam certas considerações mentais, observou, sorridente:

— Cremos desnecessária qualquer alusão ao imperativo dos pensamentos limpos. Quem busca uma casa especializada em abençoar, não pode hos­pedar ideias de ódio ou maldição.

Compreendemos prontamente a finalidade do ensino indireto e delicado e calaxno-nos, prevenidos quanto à necessidade de resguardar a mente con­tra as velhas sugestões do mal.

Desejando facilitar-nos as expansões de alegria e cordialidade, Cornélio olhou fixamente um grande relógio que apresentava simbolicamente, no mos­trador, a caprichosa forma dum olho humano de grandes proporções, em que dois raios luminosos indicavam as horas e os minutos, e falou, em tom fraternal:

— Teremos hoje, conforme notificação rece­bida há vários dias, a visita dum mensageiro de alta expressão hierárquica. Contudo, antes desse acontecimento excepcional, dispomos ainda de al­gum tempo. Considerando o preito de amor que devemos aos que nos orientam do Plano Superior, não convém emitir a nossa invocação de bênçãos, nem antes, nem depois do horário estabelecido. Estejam, pois, à vontade, os cooperadores...

E, fixando o olhar nos três encarregados de serviço, acrescentou, após az reticências:

— Enquanto me entendo particularmente com os chefes das missões, temos quase uma hora para a troca de idéias construtivas.

Cornélio passou a dirigir-se, de modo confiden­cial, aos nossos orientadores e, fracionados em gru­pinhos diversos, entabulamos conversações amigas.

Atendendo-me os desejos, padre Hipólito, qual o chamávamos na intimidade, apresentou-me o As­sistente Barcelos, da turma de servidores que se destinava à assistência aos loucos. Fora ele dedi­cado professor no círculo carnal e interessava-se carinhosamente pela Psiquiatria sob novo prisma.

Acolheu-me com fidalgo tratamento e, após as primeiras saudações, perguntou, bondoso:

É a primeira vez que integra uma expe­dição socorrista?

— De fato — esclareci — é a primeira. Te­nho acompanhado diversas misedes de auxilio na Crosta, mas na condição do estudante, com redu­zidas possibilidades de cooperação. Agora, porém, o Assistente Jerônimo aceitou-me o concurso e sigo alegremente.

Endereçou-me cativante olhar, no qual trans­pareciam satisfação e surpresa, e observou:

— O trabalho beneficia sempre.

Interessado em seus informes e esclarecimen­tos, tornei, humilde:

— Seguindo expedições de socorro, como apren­diz, tive ensejo de visitar, por mais de uma vez, dois antigos e grandes sanatórios de alienados do nosso País e vi, de perto, a extensão dos serviços reservados aos servos de boa vontade, nessas casas de purificação e dor. As atividades de enferma­gem, aí, são, a meu ver, das mais meritórias.

— Inegàvelmente — concordou ele, prezando-me a atenção — a loucura é um campo doloroso de redenção humana. Tenho motivos particulares para consagrar-me a esse setor da medicina espiri­tual e asseguro-lhe que dificilmente encontraríamos noutra parte tantos dramas angustiosos e proble­mas tão complexos.

— E tem colhido muitos frutos novos decor­rentes do seu esforço? — perguntei, curioso.

— Sim, venho arquivando confortadoras lições nesse sentido, concluindo que, com exceção de raríssimos casos, todas as anomalias de ordem mental se derivam dos desequilíbrios da alma. Es­tamos longe de contar com o número suficiente de servidores treinados para socorrer eficazmente os encarcerados na cadeia das obsessões terríveis e amargurosas. É tão grande a quantidade de doen­tes, nesse particular, que não sobra outro recurso além da resignação. Continuamos, desse modo, a atender superficialmente, esperando, acima de tudo, da Providência Divina. Nos casos de perseguição sistemática das entidades Vingativas e cruéis do plano inacessível às percepções do homem vulgar, temos, invariàvelmente, uma tragédia iniciada no presente com a imprevidência dos interessados ou que vem do pretérito próximo ou remoto, através de pesados compromissos. Se os psiquiatras mo­dernos penetrassem o segredo de semelhantes fa­tos, iniciariam a aplicação de nova terapêutica àbase dos sentimentos cristãos, antes de qualquer recurso à hormonioterapia e à eletricidade.

Recordei os serviços de assistência a obsidia­dos, que acompanhara atentamente, e aduzi:

— Examinei alguns casos torturantes de obses­são e possessão que me impressionaram, sobrema­neira, pela quase completa ligação mental, entre os verdugos e as vítimas.

Barcelos esboçou significativo gesto e acentuou:

— É a terrível história viva dos crimes co­metidos, em movimentação permanente, Os cúmplices e personagens desses dramas silenciosos e muita vez ignorados por outros homens, antecedendo os comparsas no caminho da morte, tornam, amedron­tados, ao convívio dos seus, em face das sinistras consequências com que se defrontam além do tú­mulo... Agarram-se instintivamente à organização magnética dos companheiros encarnados ainda na Crosta, viciando-lhes os centros de força, relaxan­do-lhes os nervos e abreviando o processo de ex­tinção do tônus vital, porque têm sede das mesmas companhias junto às quais se lançaram em pleno abismo. Exibem sempre quadros tristes e escuros, onde se destaca a piedade de muitas almas redi­midas que tornam do Alto em compassivos gestos de intercessão e socorro urgente.

Imprimiu às considerações ligeira pausa e pros­seguiu:

— Entretanto, observo, na atualidade, espe­cialmente outro campo alusivo ao assunto. Antes de minha volta ao plano espiritual, faminto de no­vas informações referentes ao psiquismo da personalidade humana, examinei, atento, a doutrina de Freud. Impressionado com as variações psicológi­cas dos caracteres juvenis, sob minha observação direta, e apaixonado pela solução dos profundos enigmas que envolvem a criatura terrestre, encon­trei na psico-análise um mundo novo. Todavia, por mais que eu estudasse a prodigiosa coleção dos efeitos, jamais alcancei a tranqüilidade completa na investigação das causas, no circulo dos fenô­menos em exame. Discípulo espontâneo e distante do eminente professor de Freiberg, somente aqui pude reconhecer os elos que lhe faltam ao sistema de positivação das origens de psicoses e desequilí­brios diversos. Os “complexos de inferioridade”, o “recalque”, a “libido”, as “emersões do subcons­ciente” não constituem fatores adquiridos no curto espaço de uma existência terrestre e, sim, característicos da personalidade egressa das experiên­cias passadas. A subconsciência é, de fato, o po­rão dilatado de nossas lembranças, o repositório das emoções e desejos, Impulsos e tendências que não se projetaram na tela das realizações imedia­tas; no entanto, estende-se muito além da zona limitada de tempo em que se move um aparelho físico. Representa a estratificação de todas as lutas com as aquisições mentais e emotivas que lhes foram consequentes, depois da utilização de vários corpos. Faltam, pois, às teorias de Segismundo Freud e seus continuadores a noção dos princípios reencarnacionistas e o conhecimento da verdadeira localização dos distúrbios nervosos, cujo inicio mui­to raramente se verifica no campo biológico vulgar, mas quase que invariàvelmente no corpo perispiri­tual preexistente, portador de sérias perturbações congênitas, em virtude das deficiências de natureza moral, cultivadas com desvairado apego, pelo reencarnante, nas existências transcorridas. As psi­coses do sexo, as tendências inatas à delinquência, tão bem estudadas por Lombroso, os desejos ex­travagantes, a excentricidade, muita vez lamentável e perigosa, representam modalidades do patrimô­nio espiritual dos enfermos, patrimônio que res­surge, de muito longe, em virtude da ignorância ou do relaxamento voluntário da personalidade em círculos desarmônicos.

Estabelecera-se, entre nós, uma pausa feliz, que aproveitei, atentamente, arregimentando racio­cínios quanto ao assunto, considerando os argu­mentos construtivos que o Assistente enunciara, em benefício de minha própria iluminação.

Recordei meus escassos conhecimentos da dou­trina freudiana e voltei méntalmente ao consultó­rio, onde, muitas vezes, fora procurado por amigos atacados de estranhas e desconhecidas enfermida­des mentais, a se socorrerem de minhas pobres noções de Medicina, não obstante minha carência de especialização em tal sentido. Eram maníacos. histéricos e esquizofrênicos de variados matizes, em cujos cérebros ainda existia luz bastante para a peregrinação através dos livros científicos. Haviam devorado ensinamentos de Freud; entretanto, se as teorias eram valiosas pelos elementos de análise, não ofereciam socorro algum substancial e efetivo ao doente. Descobriam a ferida sem trazer um bál­samo curativo. Indicavam o quisto doloroso, mas subtraiam o bisturi da intervenção benéfica. As explicações de Barcelos, por isso mesmo, se apro­veitadas por médicos cristãos na Crosta Planetá­ria, poderiam completar o trabalho de benemerência que a tese freudiana trouxera aos círculos acadêmicos. Antes, porém, que formulasse novas considerações intimas, tornou ele:

— Tenho minhas atribuições junto aos dese­quilibrados mentais; todavia, meu esforço maior, ultimamente, desdobra-se na região inspiracional dos médicos humanitários, para que os candidatos involuntários à perturbação sejam auxiliados a tem­po. Depois de verificada a loucura prôpriamente dita, na maioria dos casos terminou o processo da desarmonia psíquica. Muito difícil, conduzir a res­tauração perfeita aos alienados com ficha reconhe­cida, embora seja incessante a nossa batalha pelo restabelecimento integral da percentagem possível de enfermos. Antes do desequilíbrio completo, hou­ve enorme período em que o socorro do psiquiatra poderia ter sido providencial e eficiente. Não será, portanto, um grande trabalho orientarmos indire­tamente o médico bem intencionado, para que ele auxilie o provável alienado, a tempo, empregando a palavra confortadora e o carinho restaurador? Incalculável número de pessoas permanece no pla­no carnal, tentando a solução dos profundos pro­blemas relativos ao próprio ser. Relacionando as conclusões dos tratadistas humanos, cujos pontos de vista divergem nos pormenores, temos, na es­fera de aperfeiçoamento terrestre, cinco classes de psicoses: as de natureza paranóica, perversa, mitomaníaca, ciclotímica e hiper-emotiva, englobando, respectivamente, a mania das perseguições e o de­lírio de grandezas, os desequilíbrios e fraquezas de ordem moral, a histeria e a mitomania, os ataques melancólicos e as fobias e crises de angústia.

O interlocutor sorriu, fêz uma pausa e con­tinuou:

Esta, a definição científica dos nossos ami­gos que, como nós outros antigamente, só possuem o recurso de diagnosticar e analisar nas minudên­cias anatômicas. Arabescos de ouro sobre a areia do Saara não tornariam o deserto menos árido. Assim, a terminologia brilhante sobre o quadro escuro do sofrimento. Precisamos divulgar no mun­do o conceito moralizador da personalidade congê­nita, em processo de melhoria gradativa, espalhan­do enunciados novos que atravessem a zona de raciocínios falíveis do homem e lhe penetrem o coração, restaurando-lhe a esperança no eterno futuro e revigorando-lhe o ser em suas bases essen­ciais. As noções reencarnacionistas renovarão a paisagem da vida na Crosta da Terra, conferindo à criatura não sômente as armas com que deve guerrear os estados inferiores de si própria, mas também lhe fornecendo o remédio eficiente e salutar. Faz muitos séculos, afirmou Plotino que toda a antigüidade aceitava como certa a doutrina de que, se a alma comete faltas, é compelida a ex­piá-las, padecendo em regiões tenebrosas, regres­sando, em seguida, a outros corpos, a fim de reini­ciar suas provas. Falta, desse modo, lamentàvel­mente, aos nossos companheiros de Humanidade o conhecimento da transitoriedade do corpo físico e o da eternidade da vida, do débito contraído e do resgate necessário, em experiências e recapitulações diversas.

Barcelos calara-se, por instantes, enquanto eu lhe ponderava a extensão da competência. Com justificada razão possuía ele o título de Assistente, porque não era um simples irmão auxiliador, mas profundo especialista no assunto a que se dedicara, fervoroso. A conversação dele valia por um curso rápido de Psiquiatria sob novo aspecto, que me cabia aproveitar, em benefício próprio, para as ta­refas marginais do serviço comum.

Desejando traduzir minha admiração e conten­tamento, observei, reconhecido:

— Ouvindo-lhe as considerações, reconheço que o missionário do bem, onde se encontre, é sempre um semeador de luz.

Ele, porém, pareceu não ouvir minha referên­cia elogiosa e prosseguiu noutro tom, após longa pausa:

— O meu amigo examinou alguns casos de obsessão entre agentes invisíveis e pacientes encarnados, impressionando-se com a imantação men­tal entre eles. Pisamos no momento outro solo. Re­ferimo-nos às necessidades de esclarecimento dos homens, perante os seus próprios companheirosr de plano evolutivo. No circulo das recordações im­precisas, a se traduzirem por simpatia e antipatia, vemos a paisagem das obsessões transferida ao campo carnal, onde, em obediência às lembranças vagas e inatas, os homens e as mulheres, jungidos uns aos outros pelos laços de consangüinidade ou dos compromissos morais, se transformam em per­seguidores e verdugos inconscientes entre si. Os antagonismos domésticos, os temperamentos apa­rentemente irreconciliáveis entre pais e filhos, es­posos e esposas, parentes e irmãos, resultam dos choques sucessivos da subconsciência, conduzida a recapitulações retificadoras do pretérito distante. Congregados, de novo, na luta expiatória ou repa­radora, as personagens dos dramas, que se foram, passam a sentir e ver, na tela mental, dentro de si mesmas, situações complicadas e escabrosas de outra época, malgrado os contornos obscuros da reminiscência, carregando consigo fardos pesados de incompreensão, atualmente definidos por “com­plexos de inferioridade”. Identificando em si ques­tões e situações íntimas, inapreensíveis aos demais, o Espírito reencarnado que adquire recordações, não obstante menos precisas, do próprio passado, can­didata-se, inelutavelmente, à loucura. E nessa cate­goria, meu amigo, temos na Crosta Planetária uma percentagem cada vez maior de possíveis alienados, requerendo o concurso de psiquiatras e neurolo­gistas, que, a seu turno, se conservam em posição oposta à verdade, presos à conceituação acadêmica e às rígidas convenções dos preceitos oficiais. Esses, em particular, são os pacientes que interessam, de mais perto, meus estudos pessoais. São as vitimas anônimas da ignorância do mundo, os infortunados absolutamente desentendidos que, de loucos inci­pientes, prosseguem, pouco a pouco, a caminho do hospício ou do leito de enfermidades ignoradas, tão só porque lhes faltam a água viva da com­preensão e a luz mental que lhes revelem a estrada da paciência e da tolerância, em favor da redenção própria.

— E são muitos, semelhantes casos angustio­sos? — indaguei, por falta de argumentação à altura das considerações ouvidas.

O Assistente sorriu e esclareceu:

— Oh! meu caro, a extensão do sofrimento humano, nesse sentido, confunde-se também com o infinito.

Barcelos ia prosseguir, mas retiniu, sonora, uma campainha singular, convocando-nos aos preparativos da oração.

Era preciso atender.


3

O sublime visitante

Reunidos em pequeno salão iluminado, obser­vei que a atmosfera permanecia embalsamada de suave perfume.

Recomendou-nos Cornélio a oração fervorosa e o pensamento puro. Tomando-nos a dianteira, o Instrutor estacou à frente de reduzida câmara es­truturada em substância análoga ao vidro puro e transparente.

Olhei-a, com atenção. Tratava-se dum gabi­nete cristalino, em cujo interior poderiam abrigar-se, à vontade, duas a três pessoas.

Destacando-se pela túnica muito alva, o dire­tor da casa estendeu a destra em nossa direção e exclamou com grave entono:

— Os emissários da Providência não devem semear a luz sem proveito; constituir-nos-ia falta grave receber, em vão, a Graça Divina. Colocan­do-se ao nosso encontro, os Mensageiros do Pai exercitam o sacrifício e a abnegação, sofrem os choques vibratórios de nossos planos mais baixos, retomam a forma que abandonaram, desde muito, fazem-se humildes como nós, e, para que nos faça­mos tão elevados quanto eles, dignam-se ignorar-nos as fraquezas, a fim de que nos tornemos par­tícipes de suas gloriosas experiências...

Interrompeu o curso das palavras, fitou-nos em silêncio e prosseguiu noutro tom:

— Compreendemos que, lá fora, ante os laços morais que ainda nos prendem às esferas da carne, é quase inevitável a recepção das reminiscências do pretérito, a distância. A lembrança tange as cor­das da sensibilidade e sintonizamos com o passado inferior. Aqui, porém, no Santuário da Bênção, é imprescindível observar uma atitude firme de se­renidade e respeito. O ambiente oferece bases à emissão de energias puras e, em rasão disso, res­ponsabilizaremos os companheiros presentes por qualquer minúcia desarmônica no trabalho a reali­zar. Formulemos, pois, os mais altos pensamentos ao nosso alcance, relativamente à veneração que devemos ao Pai Altíssimo!...

Para outra classe de observadores, o Instrutor Cornélio poderia parecer excessivamente metódico e rigorista; entretanto, não para nós, que lhe sen­tíamos a sinceridade profunda e o entranhado amor às coisas santas.

Após longo intervalo, destinado à nossa pre­paração mental, tornou ele, sem afetação:

— Projetemos nossas forças mentais sobre a tela cristalina. O quadro a formar-se constará de paisagem simbólica, em que águas mansas, perso­nificando a paz, alimentem vigorosa árvore, a representar a vida. Assumirei a responsabilidade da criação do tronco, enquanto os chefes das missões entrelaçarão energias criadoras fixando o lago tranquilo.

E dirigindo-se especialmente a nós outros, os colaboradores mais humildes, acrescentou:

— Formarão vocês a veste da árvore e a ve­getação que contornará as águas serenas, bem como as características do trecho de firmamento que de­verá cobrir a pintura mental.

Após ligeira pausa, concluía:

— Este, o quadro que ofereceremos ao visi­tante excepcional que nos falará em breves minutos, Atendamos aos sinais.

Dois auxiliares postaram-se ao lado da peque­na câmara, em posição de serviço, e, ao soar de harmonioso aviso, pusemo-nos todos em concentração profunda, emitindo o potencial de nossas for­ças mais íntimas.

Senti, à pressão do próprio esforço, que mi­nha mente se deslocava na direção do gabinete de cristal, onde acreditei penetrar, colocando tufos de grama junto ao desenho do lago que deveria surgir... Utilizando as vigorosas energias da ima­ginação, recordei a espécie de planta que desejava naquela criação temporária, trazendo-a do passado terrestre para aquela hora sublime. Estruturei to­das as minúcias das raízes, folhas e flores, e tra­balhei, intensamente, na intimidade de mim mesmo, revivendo a lembrança e fixando-a no quadro, com a fidelidade possível...

Fornecido o sinal de interrupção, retomei a postura natural de quem observa, a fim de examinar os resultados da experiência, e contemplei, oh! maravilha!... Jazia o gabinete fundamente trans­formado. Águas de indefinível beleza e admirável azul-celeste refletiam uma nesga de firmamento, banhando as raízes de venerável árvore, cujo tron­co dizia, em silêncio, da própria grandiosidade. Mi­niaturas prodigiosas de cúmulos e nimbos estacio­navam no céu, parecendo pairar muito longe de nós... As bordas do lago, contudo, figuravam-se quase nuas e os galhos do tronco apresentavam-se vestidos escassamente.

O Instrutor, célere, retomou a palavra e diri­giu-se a nós com firmeza:

— Meus amigos, a vossa obrigação não foi integralmente cumprida. Atentai para os detalhes incompletos e exteriorizai vosso poder dentro da eficiência necessária! Tendes, ainda, quinze minutos para terminar a obra.

Entendemos, sem maiores explicações, o que desejava ele dizer e concentramo-nos, de novo, para consolidar as minudências de que deveria revestir-se a paisagem.

Procurei imprimir mais energia à minha criação mental e, com mais presteza, busquei colocar as flores pequeninas nas ramagens humildes, recor­dando minhas funções de jardineiro, no amado lar que havia deixado na Terra - Orei, pedi a JesuS me ensinasse a cumprir o dever dos que desejavam a bênção do seu divino amor naquele Santuário e, quando a notificação soou novamente, confesso que chorei.

O desenho vivo da gramínea que minha esposa e os filhinhos tanto haviam estimado, em minha companhia no mundo, adornava as margens, com um verde maravilhoso, e as mimosas flores azuis, semelhando-se a miosótis silvestres, surgiam abun­dantes...

A árvore cobrira-se de folhagem farta e vege­tação de singular formosura completava o quadro, que me pareceu digno de primoroso artista da Terra.

Cornélio sorriu, evidenciando grande satisfa­ção, e determinou que os dois auxiliares conservassem a destra unida ao gabinete. Desde esse momento, como se uma operação magnética desco­nhecida fôsse posta em ação, nossa pintura cole­tiva começou a dar sinais de vitalidade temporária. Algo de leve e imponderável, semelhante a cari­cioso sopro da Natureza, agitou brandamente a árvore respeitável, balouçando-se OS arbustos e a minúscula erva, a se refletirem nas águas muito azuis, docemente encrespadas de instante a ins­tante...

Minha gramínea estava, agora, tão viva e tão bela que o pensamento de angustiosa saudade do meu antigo lar ameaçou, de súbito, meu coração ainda frágil. Não eram aquelas as flores miudas que a esposa colocava, diariamente, no quarto iso­lado, de estudo? não eram as mesmas que integravam os delicados ramos que os filhos me ofe­reciam aos domingos pela manhã? VigorosaS re­miniscências absorveram-me O ser, oprimindo-me inesperadamente a alma, e eu perguntava a mim mesmo por que mistério o Espírito enriquecido de observações e valores novos, respirando em campos mais altos da inteligência, tem necessidade de vol­tar ao pequenino círculo do coração, como a flo­resta luxuriante e imponente que não prescinde da singela e reduzida gota dágua para desseden­tar-lhe as raízes... Senti o anseio mal disfarçado de arrebatá-los compulsôriamente da Crosta, trans­portando-os para junto de mim, desejoso de reu­ni-los, ao meu lado, em novo ninho, sem separação e sem morte, a fazer-lhes experimentar os júbilos da vida eterna... Minhas lágrimas estavam prestes a cair. Bastou, no entanto, um olhar de Jerônimo para que eu me reajustasse.

Arremessei para muito longe de mim toda a ideia angustiosa e consegui reaver a posição do cooperador decidido nas edificações do momento.

Cornélio, de pé, ante a paisagem viva, enquan­to nos mantínhamos sentados, estendeu os braços na direção do Alto e suplicou:

— Pai da Criação Infinita, permite, ainda uma vez, por misericórdia, que os teus mensageiros ex­celsos sejam portadores de tua inspiração celeste para esta casa consagrada aos júbilos de tua bên­ção!... Senhor, fonte de toda a Sabedoria, dissipa as sombras que ainda persistem em nossos cora­ções, impedindo-nos a gloriosa visão do porvir que nos reservaste; fase vibrar, entre nós, o pensa­mento augusto e soberano da confiança sem mescla e deixa-nos perceber a Corrente benéfica de tua bondade infinita, que nos lava a mente mal des­perta e ainda eivada de escuras recordações do mundo carnal!... Auxilia-nos a receber dignamente teus devotados emissários!...

Focalizando a mente em nossos trabalhos, o Instrutor prosseguiu, noutra inflexão de voz:

— Sobretudo, ó Pai, abençoa os teus filhos que partem, a caminho dos círculos Inferiores, semeando o bem. Reparte com eles, humildes repre­sentantes de tua grandeza, os teus dons de infinito amor e de inesgotável sabedoria, a fim de que se cumpram teus sagrados desígnios... Acima, porém, de todas as concessões, proporciona-lhes algo de tua divina tolerância, de tua complacência sublime, de tua ilimitada compreensão, para que satisfaçam, sem desesperação e sem desânimo, os deveres fra­ternais que lhes cabem, ante os que ignoram ainda as tuas leis e sofrem as consequências dos desvios cruéis ....

Calou-se o orientador do Santuário e, dentro da imponente quietude da câmara, vimos que a paisagem, formada de substância mental, começou a iluminar-se, inexplicavelmente, em seus mínimos contornos.

Guardava a ideia de que reduzido sol surgiria à nossa vista sob a nesga de céu, no quadro singular. Raios fulgurantes penetravam o fundo es­meraldino e vinham refletir-se nas águas.

Cornélio, de mãos erguidas para o alto, mas sem qualquer expressão ritualística, em vista da simplicidade espontânea de seus gestos, exclamou:

— Bem-vindo seja o portador de Nosso Pai Amantíssimo!

Nesse instante, sob nossos olhos atônitos, al­guém apareceu no gabinete, entre a vegetação e o céu. Semelhava-se a um sacerdote de culto des­conhecido, trajando túnica lirial. Fisionomia simpática de ancião, apresentava-se nimbado de luz indescritível e seu olhar nos mantinha extasiados e presos, num misto de veneração e encantamento, sem que nos fôsse possível qualquer fuga mental de sua presença sublime.

Via-se-lhe apenas o busto cheio, parecendo-me que os seus membros inferiores se ocultavam na­turalmente na folhagem abundante. Seus braços e mãos, todavia, revelavam-se com todas as minu­dências anatômicas, porque com a destra nos aben­çoava num gesto amplo, mantendo na outra mão pequeno rolo de pergaminhos brilhantes, deixan­do-nos perceber dourado cordão atado à cinta.

Visívelmente sensibilizado, o diretor da casa saudou, nominalmente:

— Venerável Asclépios, sê conosco!

O emissário, em voz clara e sedutora, desejou-nos a Paz do Cristo e, em seguida, dirigiu-nos a palavra em tom inexprimível na linguagem humana (abstenho-me aqui de qualquer tradução incom­pleta e iniperfeita, atendendo a imperativos de consciência).

Ouvimo-lo sob infinita emoção, sem que qual­quer de nós contivesse as lágrimas. O verbo do admirável mensageiro que chegava de Esferas Su­periores, trazendo-nos a bênção divina, caia-nos nalma de modo intraduzível e acordava-nos o es­pírito eterno para a infinita glória de Deus e da Vida Imortal.

Não conseguiria descrever o que se passava em mim próprio. Jamais escutara alguém com aquele misterioso e fascinante poder magnético de fixa­ção dos ensinamentos de que se fizera emissário.

Ao abençoar-nos, ao término da maravilhosa alocução, irradiavam-se de sua destra muito alva pequeninos focos de luz, em forma de minúsculas estrelas que se projetavam sobre nós, invadindo-nos o tórax e a fronte e fazendo-nos experimentar o júbilo lnenarrável de quem sorve, feliz, vigorosos e renovadores alentos da vida.

Quiséramos prolongar, indefinidamente, aque­les minutos divinos, mas tudo fazia acreditar que o mensageiro estava prestes a despedir-se.

Interpretando, contudo, o pensamento da maio­ria, Cornélio dirigiu-lhe a palavra e indagou, hu­milde, se os irmãos presentes poderiam endereçar-lhe algumas solicitações.

O arauto celeste aquiesceu, sorrindo, num ges­to silencioso, colocando-nos à vontade, dando-me a impressão de que aguardava semelhante pedido.

A irmã Semprônia, que chefiava pela primeira vez a turma de socorro ao serviço de amparo aos órfãos, foi a primeira a consultá-lo:

— Venerável amigo — disse com transparen­te sinceridade —, temos algumas cooperadoras na Crosta que esperam de nós uma palavra de ordem e reconforto para prosseguirem nos serviços a que se devotaram de coração fiel. Desde muito tempo, experimentam perseguições declaradas e toleram o sarcasmo contínuo de adversários gratuitos que lhes ferem o espírito sensível, atacando-lhes os melho­res esforços, através de maldades sem conto. me­gàvelmente, não cedem ante os fantasmas da som­bra e mobilizam as energias no trabalho de resis­tência cristã... Exercendo funções de colaboradora, nesta expedição de socorro que agora chefio pela primeira vez, conheço, de perto, a dedicação que nossas amigas testemunham na obra sublime do bem, mas não ignoro que padecem, heróicas e leais, há quase trinta anos sucessivos, ante o assédio de inimigos implacáveis e cruéis.

Após curto silêncio, que ninguém se atreveu a interromper, a consulente concluiu, perguntando:

— Que devemos dizer a elas, respeitável ami­go? por que palavras esclarecedoras e reconfortan­tes sustentar-lhes o ânimo em tão longa batalha? De alma voltada para o nosso dever, aguardamos de vossa generosidade o alvitre oportuno.

Vimos, então, o inesperado. O mensageiro ou­viu, paciente e bondoso, revelando grande interesse e carinho na expressão fisionômica e, depois que Semprônia deu por terminada a consulta, retirou uma folha dentre os pergaminhos alvinitentes que trazia, de modo intencional, e abriu-a à nossa vista, lendo todos nós o versículo quarenta e quatro do capítulo cinco do Evangelho do Apóstolo Mateus:

— “Eu, porém, vos digo — amai a vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam, e orai pelos que vos perse­guem e caluniam.”

O processo de esclarecimento e informação não podia ser mais direto, nem mais educativo.

Decorridos alguns instantes, Semprônia excla­mou humildemente:

— Compreendo, venerável amigo!

O emissário, sem qualquer afetação dos que ensinam por amor-próprio, comentou:

— Os adversários, quando bem compreendidos e recebidos cristâmente, constituem precioso auxílio em nossa jornada para a União Divina.

A síntese verbal condensava explicações, que sômente seriam razoáveis em compactos discursos.

A meu ver, não obstante a beleza e edificação do ensino recolhido, o método não recomendava extensão de perguntas de nosso lado, mas o Irmão Raimundo, do grupo socorrista dedicado à assis­tência aos loucos, tomou a iniciativa e interrogou:

- Tolerante amigo, que fazer ante as difi­culdades que me defrontam nos serviços marginais da tarefa? Interessando a órbita de nossos deve­res, junto dos desequilibrados mentais da Crosta Terrestre, venho assistindo certo agrupamento de irmãos encarnados que não estão interpretando as obrigações evangélicas como deviam. Em verdade, convocam-nos à colaboração espiritual, pronuncian­do belas palavras, mas no terreno prático se dis­tanciam de todas as atitudes verbais da crença consoladora. Estimam as discussões injuriosas, fo­mentam o sectarismo, dão grande apreço ao in­dividualismo inferior que desconsidera o esforço alheio, por mais nobilitante que seja esse.

Quase sempre, entregam-se a rixas infindáveis e gastam o tempo estudando meios de fazerem valer as limi­tações que lhes são próprias. Por mais que lhes ensinemos a humildade, recorrendo, não a nós, mas ao exemplo eterno do Cristo, mais se arvoram em críticos impiedosos, não apenas uns dos outros, e, sim, de setores e situações, pessoas e coisas que lhes não dizem respeito, incentivando a malícia e a discórdia, o ciúme e o desleixo espiritual. No entanto, reúnem-se metodicamente e nos chamam à cooperação em seus trabalhos. Que fazer, todavia, respeitável orientador, para que maiores per­turbações não se estabeleçam?

O mensageiro esperou que o consulente se desse por satisfeito em suas indagações e, em seguida, muito calmo, repetiu a operação anterior, e tive­mos, ante os olhos, outro pergaminho, com a ins­crição do versículo onze, do capítulo seis, da pri­meira epístola do Apóstolo Paulo a Timóteo:

— “Mas tu, ó homem de Deus, foge destas coisas e segue a justiça, a piedade, a fé, a caridade, a paciência, a mansidão.”

Permaneceu Raimundo na expectativa, figuran­do-se-nos não haver interpretado a advertência, quanto devia, mas a explicação sintética do visi­tante não se fêz esperar:

— O discípulo que segue as virtudes do Mes­tre, aplicando-as a si próprio, foge às inutilidades do plano exterior, acolhendo-se ao santuário de si mesmo, e auxilia os nossos irmãos imprevidentes e perturbados, rixosos e ingratos, sem contaminar-se.

Registrando as palavras sábias de Asclépios, Raimundo pareceu acordar para a verdade e mur­murou, com algum desapontamento:

— Aproveitarei a lição.

Novo silêncio verificou-se entre nós.

A Irmã Luciana, porém, que nos integrava o pequeno grupo, tomou a palavra e perguntou:

— Esclarecido mentor, esta é a primeira vez que vou à Crosta em tarefa definida de socorro. Podereis fornecer-me, porventura, a orientação de que necessito?

O emissário, que parecia trazer respostas bí­blicas preparadas de antemão, desdobrou nova folha e lemos, admirados, o versículo nove do capítulo quatro da primeira epístola do Apóstolo da Gen­tilidade aos tessalonicenseS:

— “Quanto, porém, à caridade fraternal, não necessitais de que vos escreva, visto que vós mes­mos estais instruídos por Deus que vos ameis uns aos outros.”

Algo confundida, Luciana observou, reverente:

— Compreendo, compreendo...

— O Evangelho aplicado — comentou o men­sageiro, delicadamente — ensina-nos a improvisar os recursos do bem, nas situações mais difíceis.

Fêz-se, de novo, extrema quietude na câmara. Talvez pelo nosso péssimo hábito de longas con­versaçoes sem proveito, adquirido na Crosta Pla­netária, não encontrávamos grande encanto naque­las respostas francas e diretas, sem qualquer lisonja ao nosso personalismo dominante.

Rolavam instantes pesados, quando observamos a gentileza e a sensibilidade do diretor do Santuá­rio da Bênção. Notando que Semprônia, Raimundo e Luciana eram alvos de nossa indiscreta curiosi­dade, Cornélio inquiriu de Asclépios, como se fora mero aprendiz:

— Que fazer para conservar alegria no traba­lho, perseverança no bem, devotamento à verdade?

O mensageiro contemplou-o, num sorriso de aprovação e simpatia, identificando-lhe o ato de amor fraternal, e descerrou novo pergaminho, em que se lia o versículo dezesseis do capítulo cinco da primeira carta de Paulo aos tessalonicenses:

— “Regozijai-vos sempre.” Em seguida, falou, jovial:

— A confiança no Poder Divino é a base do júbilo cristão, que jamais deveremos perder.

O Instrutor Cornélio meditou alguns momen­tos e rogou, humilde:

— Ensina-nos sempre, venerável irmão!...

Decorreram minutos sem que os demais utili­zassem a palavra. Fazendo menção de despedir-se, o sublime visitante comentou, afável:

— À medida que nos integramos nas próprias responsabilidades, compreendemos que a sugestão direta nas dificuldades e realizações do caminho deve ser procurada com o Supremo Orientador da Terra. Cada Espírito, herdeiro e filho do Pai Altíssimo, é um mundo por si, com as suas leis e características próprias. Apenas o Mestre tem bas­tante poder para traçar diretrizes individuais aos discípulos.

Logo após, abençoou-nos, carinhoso, desejan­do-nos bom ânimo.

Reconfortados e felizes, vimos o mensageiro afastar-se, deixando-nos envoltos numa onda de olente e inexplicável perfume.

Ambos os auxiliares, que se mantinham a pos­tos, retiraram as mãos do gabinete e, depois de várias operações magnéticas efetuadas por eles, de­sapareceu a pintura mental, voltando a peça de cristal ao aspecto primitivo.

Tornando à conversação livre, indagações enor­mes oprimiam-me o cérebro. Não me contive. Com a permissão de Jerônimo e liderando companheiros tão curiosos e pesquisadores quanto eu mesmo, acerquei-me de Cornélio e despejei-lhe aos ouvidos grande cópia de interrogações. Acolheu-me, bené­volo, e informou:

— Pertence Asclépios a comunidades redimi-das do Plano dos Imortais, nas regiões mais ele­vadas da zona espiritual da Terra. Vive muito acima de nossas noções de forma, em condições inapreciáveis à nossa atual conceituação da vida. Já perdeu todo contacto direto com a Crosta Ter­restre e só poderia fazer-se sentir, por lá, através de enviados e missionários de grande poder. Apre­ciável é o sacrifício dele, vindo até nós, embora a melhoria de nossa posição, em relação aos homens encarnados. Vem aqui raramente. Não obstante, algumas vezes, outros mentores da mesma categoria visitam-nos por piedade fraternal.

— Não poderíamos, por nossa vez, demandar o plano de Asclépios, a fim de conhecer-lhe a gran­deza e sublimidade? — perguntei.

— Muitos companheiros nossos — assegurou-nos o Instrutor —, por merecimentos naturais no trabalho, alcançam admiráveis prêmios de viagens, não só às esferas superiores do Planeta que nos serve de moradia, mas também aos círculos de outros mundos...

Sorriu e acrescentou:

— Não devemos esquecer, porém, que a maio­ria efetua semelhantes excursões sômente na qua­lidade de viajores, em processo estimulante do es­forço pessoal, à maneira de jovens estudantes de passagem rápida pelos institutos técnicos e admi­nistrativos das grandes nações. Raros são ainda os filhos do Planeta em condições de representá-lo dignamente noutros orbes e círculos de vida do nos­so sistema.

Não me deixei impressionar e prossegui per­guntando:

— Asclépios, todavia, não mais reencarnará na Crosta?

O Instrutor gesticulou, significativamente, e es­clareceu:

— Poderá reencarnar em missão de grande be­nemerência, se quiser, mas a intervalos de cinco a oito séculos entre as reencarnações.

— Oh! Deus — exclamei — como é grandioso semelhante estado de elevação!

— Constitui sagrado estimulo para todos nós — ajuntou o mentor atenciosamente.

— Devemos acreditar — interroguei, admirado

— Seja esse o mais alto grau de desenvolvimento espiritual no Universo?

O diretor da casa sorriu, compassivo, em face de minha ingenuidade e considerou:

— De modo algum. Asclépios relaciona-se en­tre abnegados mentores da Humanidade Terrestre, partilha da soberana elevação da coletividade a que pertence, mas, efetivamente, é ainda entidade do nosso Planeta, funcionando, embora, em círculos mais altos de vida. Compete-nos peregrinar muito tempo, no campo evolutivo, para lhe atingirmos as pegadas; no entanto, acreditamos que o nosso visi­tante sublime suspira por integrar-se no quadro de representantes do nosso orbe, junto às gloriosas comunidades que habitam, por exemplo, Júpiter e Saturno. Os componentes dessas, por sua vez, es­peram, ansiosos, o instante de serem convocados às divinas assembleias que regem o nosso sistema solar. Entre essas últimas, estão os que aguar­dam, cuidadosos e vigilantes, o minuto em que se­rão chamados a colaborar com os que sustentam a constelação de Hércules, a cuja família perten­cemos. Os que orientam nosso grupo de estrelas aspiram, naturalmente, a formar, um dia, na coroa de gênios celestiais que amparam a vida e diri­gem-na, no sistema galáctico em que nos movimen­tamos. E sabe meu amigo que a nossa Via-Láctea. viveiro e fonte de milhões de mundos, é somen­te um detalhe da Criação Divina, uma nesga do Universo!...

As noções de infinito encerraram a reunião encantadora no Santuário da Bênção. Cornélio estendeu-nos a mão, almejando-nos felicidade e paz, e despedimo-nos, sob enorme impressão, entre a saudade e o reconhecimento.


4

A casa transitória

Depois de viagem normal, através dos caminhos comuns, alcançamos nevoenta região, onde asfi­xiante tristeza parecia imperar incessantemente. De outras vezes, eu já atravessara sítios semelhan­tes, gastando apenas alguns minutos. Agora, po­rém, era compelido a longa marcha em sentido horizontal. Atendendo a imperativos da missão, o Assistente Jerônimo procurava certa localidade, sob a denominação expressiva de “Casa Transitória de Fabiano”.

Tratava-se de grande instituição piedosa, no campo de sofrimentos mais duros em que se reúnem almas recém-desencarnadas, nas cercanias da Crosta Terrestre, a qual, segundo nos informou o chefe da expedição, fora fundada por Fabiano de Cristo, devotado servo da caridade entre antigos religiosos do Rio de Janeiro, desencarnado há mui­tos anos. Organizada por ele, era confiada, periodi­camente, a outros benfeitores de elevada condição, em tarefa de assistência evangélica, junto aos Espí­ritos recém-desligados do plano carnal.

— Na Casa Transitória — prosseguia Jerôni­mo, explicando-nos — prestaremos o auxílio que nos seja possível à organização e asilaremos, em seguida, os irmãos que nos cabe socorrer. Não fôssem esses pousos de amor, tornar-se-ia muito difícil nosso trabalho. Raramente encontramos companheiros carnais em condições de atravessarem se­melhante zona, imediatamente após a morte física. Quase todos permanecem estonteados, nos primei­ros dias. Se entregues à própria sorte, seriam fa­talmente agredidos pelas entidades perversas, ou hàbilmente desviados por elas do bom caminho de restauração gradual das energias interiores. Daí a necessidade desses abrigos fraternais, em que almas heróicas e dedicadas ao sumo bem se con­sagram a santificadas tarefas de amparo e vigilância.

Após breve pausa, concluiu:

— Além disso, teremos aí todo o equipamento necessário aos trabalhos que nos cumpre realizar.

Curioso, guardei silêncio e esperei.

Não se passou muito tempo, defrontava-nos casarão enorme em plena sombra. Nada que evidenciasse preocupação artística e bom gosto na construção. Nem árvores, nem jardins em torno. A edificação baixa e simples mal se destacava no nevoeiro denso.

Certo, percebendo-me a estranheza, Jerônimo esclareceu:

— O nome do instituto, André, fala por si mesmo. Temos, à frente, acolhedora casa de transição, destinada a socorros urgentes. Embora seu assombro natural, é asilo móvel, que atende se­gundo as circunstâncias do ambiente. Sofre per­manente cerco de Espíritos desesperados e sofredores, condenados pela própria consciência à re­volta e à dor. Suas defesas magnéticas exigem considerável número de servidores e os amigos da piedade e da renunciação, que aí atendem, passam dia e noite ao lado do sofrimento. Todavia, o tra­balho desta Casa é dos mais dignos e edificantes. Neste edifício de benemerência cristã, centralizam-se numerosas expedições de irmãos leais ao bem, que se dirigem à Crosta Planetária ou às esferas escuras, onde se debatem na dor seres angustiados e ignorantes, em trânsito prolongado nos abismos tenebrosos. Além disso, a Casa Transitória de Fa­biano, à maneira de outras instituições salvadoras que representam verdadeiros templos de socorro nestas regiões, é também precioso ponto de ligação com as nossas cidades espirituais em zonas supe­riores.

Nesse instante, antes que Jerônimo pudesse prosseguir nos esclarecimentos, atingimos as barreiras magnéticas, a distância de alguns metros do portão de acesso ao interior.

Atendidos por trabalhadores vigilantes, que sem hesitação nos ofereceram passagem, aciona­mos pequeno aparelho que nos ligou, de pronto, ao porteiro prestativo.

Não decorreram muitos minutos e achamo-nos diante de figura respeitável. Não supunha que a instituição estivesse administrada por mãos sensí­veis de mulher. A Irmã Zenóbia, aparentando idade madura e aureolada de cabelos negros, propor­cionava-nos informações vivas de sua energia e admirável capacidade de trabalho, através dos olhos transbordantes de luz.

Saudou-nos, cortês, sem despender muitas pa­lavras, passando imediatamente ao assunto que a nossa presença sugeria:

— Fui avisada ontem — disse, bondosa — de que a missão chegaria hoje e rejubilamos com isso.

— Ao seu dispor — explicou-se Jerônimo, com gentileza. — Este abrigo de amor e paz cooperará conosco, asilando-nos alguns tutelados convalescen­tes, e, por nossa vez, desejamos ser úteis à casa, de algum modo.

Zenóbia envolveu-nos num sorriso de simpatia acolhedora e, após rápidos minutos de silêncio, considerou:

— Aceitamos o concurso. Reconheço a pre­sença dum grupo harmonioso e, desde a semana finda, aguardava ensejo, não só para beneficiar a coletividade sofredora de abismo próximo, senão também a fim de socorrer certo irmão nosso, muito infeliz. Trata-se de pessoa que me foi parti­cularmente querida e que apenas agora foi encon­trada em remota região de seres decaídos. Vencendo obstáculos, trouxemo-la para a vizinhança da Casa; porém, o perigoso estado em que se encontra não nos autoriza a fornecer-lhe abrigo e, sim, proteção indireta. Já estabelecemos medidas em favor da remoção desse infortunado amigo para a zona da Crosta, onde será brevemente internado em reen­carnação expiatória, com auxílio divino. Entretan­to, precisarei pessoalmente da colaboração frater­nal dos companheiros, em benefício do transviado...

— Sem dúvida — atalhou Jerônimo, desva­necido —, teremos prazer.

Designando a devotada enfermeira que nos acompanhava, acrescentou:

— Em nossa companhia, permanece a Irmã Lu­ciana, que nos pode ser extremamente útil nesse caso particular, em virtude das suas adiantadas faculdades de clarividência.

A diretora da Casa Transitória fixou o olhar sereno em nossa colaboradora, sorriu, amável, e prosseguiu:

— Bem lembrado. Alguns irmãos, qual ocorre a esse a que me refiro, descem a tamanho embru­tecimento moral que sômente conseguem ouvir-nos a voz, de modo imperfeito, e, não lhes sendo pos­sível identificar-nos pela visão, em face dos impe­dimentos vibratórios criados por eles mesmos, du­vidam de nossa amizade e de nossos propósitos elevados de cooperação. No fato presente, o con­curso de Luciana ser-me-á precioso.

Não podia disfarçar o meu constrangimento ante aquele pormenor da conversação. Por que motivo a Irmã Zenóbia, orientando instituição como aquela, necessitaria de nossa colaboração, mormente no capítulo da clarividência mencionada? Porven­tura, não poderia também esquadrinhar os proble­mas de almas sofredoras e decaídas?

Incapaz de sopitar a interrogação, observei, admirado:

— Oh! quer dizer que os benfeitores daqui não podem ver quanto desejam?

Foi o Assistente Jerônimo quem veio ao meu encontro.

— Antes de tudo, André — falou, compas­sivo —, faz-se necessário considerar que a Irmã Zenóbia, não obstante a sua extensa visão espi­ritual, terá razões íntimas para invocar a provi­dência. Quanto ao mais, não devemos esquecer os imperativos da especialização.

A resposta tivera efeito de ducha gelada. Ar­rependera-me de haver formulado a interrogação indiscreta. Completando, porém, o ensinamento, Je­rônimo continuou:

— Senão, vejamos: o padre Hipólito consa­gra-se, atualmente, à interpretação das leis divinas, no serviço educativo àqueles que as desconhecem, enquanto a Irmã Zenóbia atende a sofredores, em massa, nesta casa de amor cristão. Claro que po­deriam exercitar a clarividência, com benefícios generalizados para o próximo, mas com prejuízo manifesto dos deveres imediatos. Isso não ocorre com Luciana que, pelo contacto individual e intenso com os enfermos, durante muitos anos consecuti­vos, especializou-se em penetrar-lhes o mundo men­tal, trazendo à tona suas idéias, ações passadas e projetos íntimos, em atividade beneficente. Se en­trássemos nós outros, de improviso, em relação com a sua clientela, veríamos “alguma coisa”, embora, não tanto e tão bem quanto pode ser observado por ela, em vista de suas dilatadas experiências. A seu turno, Luciana poderia, de imediato, inter­pretar os ensinamentos divinos e orientar esta casa, “de algum modo”, mas não tanto e tão bem quanto o padre Hipólito e a irmã Zenóbia, consi­derando-lhes os vastos conhecimentos nesse sentido. Todas as aquisições espirituais exigem perseveran­ça no estudo, na observação e no serviço aplicado. E devemos considerar que isso não infirma a ne­cessidade de aprender sempre. O músico exímio poderá ser aprendiz incipiente da Química, desta­cando-se, mais tarde, nesse campo científico, como se verifica na arte dos sons. Não alcançará, toda­via, a realização, sem gastar tempo, esforço e boa vontade. Aliás, o próprio Mestre assegurou que o homem encontrará aquilo que procurar.

Sorrindo de minha interrogação, que provocara ensinamentos tão rudimentares, concluiu:

— A busca de dons espirituais para a vida eterna não representa serviço igual à cata de objetos perdidos na Crosta.

Interveio a Irmã Zenóbia, acrescentando fra­ternalmente:

— Sim, não podemos edificar todas as quali­dades nobres de uma só vez. Cada trabalhador fiel ao seu dever possui valor específico, incontestável. A Obra Divina é infinita.

Tornando ao primitivo rumo da conversação, prosseguiu:

- Quando dispomos de clarividentes nos ser­viços de socorro ao abismo, em circunstâncias fa­voráveis, conseguimos resultados de preciosa efi­ciência. Os servidores dessa natureza, porém, são poucos, em vista da multiplicidade das tarefas, e raros se dispõem a servir nas paisagens escuras da angústia infernal.

Luciana, chamada nominalmente à palestra, es­clareceu que teria satisfação em cooperar e contou-nos que buscara desenvolver as faculdades de que era portadora, a fim de socorrer, noutro tem­po, o Espírito de seu pai, desencarnado numa guerra civil. Tivera ele preponderância no movimento de insurreição pública e permanecia nas esferas infe­riores, alucinado pelas paixões políticas. Depois de paciente auxílio, reajustara emoções, obtendo pos­sibilidades de reencarnar em grande cidade brasi­leira, para onde ela mesma, Luciana, seguiria tam­bém logo pudesse o genitor do pretérito organizar novo lar, restabelecendo-se a aliança de carinho e de amor, segundo o projeto por ambos estabelecido.

Zenóbia ouvia com atenção.

Percebendo talvez que a palestra tendia para o campo do personalismo direto, em minutos para os quais provavelmente a diretora da casa teria ou­tros compromissos, Jerônimo interferiu na conver­sação e dirigiu-se a ela, atencioso:

— Estamos satisfeitos, Irmã, pela perspectiva de algum concurso amigo, ao seu lado. Compreen­demos a grandeza de sua missão nobilitante e, se vamos depender tanto de seu generoso amparo, nesta casa, constitui-nos obrigação cooperar com a Irmã nos trabalhos em que nossa humilde cola­boração possa ser útil. Seguiremos, amanhã, para a zona carnal. Entretanto, logo que nos seja pos­sível trazer para sua companhia o primeiro irmão libertado, André e eu permaneceremos em trânsito, entre a Crosta e este abençoado asilo, enquanto Hipólito e Luciana se demorarão aqui, velando pelos convalescentes e colaborando, junto da Irmã, nas tarefas imediatas.

— Alegra-me sobremaneira a expectativa! —falou a diretora, evidentemente satisfeita.

Nesse instante, invisível campainha ressoou, estridente, com estranha entonação.

Não decorreram cinco segundos e alguém pe­netrou a sala, rumorosamente. Era determinado servo da vigilância, que anunciou, precipite:

— Irmã Zenóbia, aproximam-se entidades cruéis. A agulha de aviso indicou a direção norte. Devem estar a três quilômetros, aproximadamente.

A orientadora empalideceu ligeiramente, mas não traiu a emoção com qualquer gesto que denunciasse fraqueza.

— Acendam as luzes exteriores! — ordenou —todas as luzes! E liguem as forças da defesa elé­trica, reforçando a zona de repulsão para o norte. Os invasores desviar-se-ão.

Retirou-se apressadamente o emissário, enquan­to pesado silêncio abatia-se sobre nós. Luciana fi­zera-se lívida. Jerônimo e Zenóbia demonstravam, através do olhar, asfixiante preocupação. Registrar-se-iam fatos que eu ignorava? Será que Espíritos reconhecidamente maus também organizavam ex­pedições semelhantes às que realizávamos para o bem? Que espécie de entidades seriam aquelas, para infundirem tamanha preocupação nos dirigentes es­clarecidos e virtuosos de nossos trabalhos e tão grande terror nos subordinados daquela casa de amor cristão? Impressionara-me a expressão facial de dor e incerteza do servidor que trouxera a no­tícia. Seriam tantos os malfeitores das sombras para justificar semelhante pavor? Sentia o raciocí­nio extremamente reduzido para comportar a imen­sidade das interrogações que me afloravam à mente.

Através de minúscula abertura, notei que enor­mes holofotes se acendiam de súbito, no exterior, como as luzes de grande navio assaltado por ne­voeiro denso em zona perigosa.

Ruídos característicos faziam-se sentir à nos­sa audição, informando-nos que aparelhos elétricos haviam sido postos em funcionamento.

— É lamentável — exclamou Zenóbia, com a manifesta intenção de restaurar-nos a tranqüilidade — que tantas inteligências humanas, des­viadas do bem e votadas ao crime, se consagrem aqui ao prosseguimento de atividades ruinosas e destruidoras.

Nenhum de nós ousou dizer qualquer palavra.

A diretora, porém, esforçando-se por sorrir, continuou:

— A tragédia bíblica da queda dos anjos lu­minosos, em abismos de trevas, repete-se todos os dias, sem que o percebamos em sentido direto. Quantos gênios da Filosofia e da Ciência dedicados à opressão e à tirania! quantas almas de profundo valor intelectual se precipitam no despenhadeiro de forças cegas e fatais! Lançados ao precipício pelo desvio voluntário, esses infelizes raramente se pe­nitenciam e tentam recuo benéfico... Na maioria das vezes, dentro da terrível insatisfação do egoís­mo e da vaidade, insurgem-se contra o próprio Criador, aviltando-se na guerra prolongada às suas divinas obras. Agrupam-se em aombrias e devas­tadoras legiões, operando movimentos perturbado­res que desafiam a mais astuta imaginação humana e confirmam as velhas descrições mitológicas do inferno.

Observando-me, possívelmente, a angústia In­tima, em face de suas considerações, Irmã Zenóbia acrescentou:

— Chegará, porém, o dia da transformação dos gênios perversos, desencarnados, em Espíritos luci­ficados pelo bem divino. Todo mal, ainda que per­dure milênios, é transitório. Achamo-nos apenas em luta pela vitória imortal de Deus, contra a inferioridade do “eu” em nossas vidas. Toda ex­pressão de ignorância é fictícia. Somente a sabe­doria é eterna.

Por minha vez, gostaria de formular várias indagações, porém a expectativa fizera-se mais pesada.

— Alguns séculos — prosseguiu a diretora — de reencarnações terrestres constituem tempo es­casso para reeducar inteligências pervertidas no crime. É por isso que os trabalhos retificadores continuam vivos, além da morte do corpo físico, obrigando os servos da verdade e do bem a supor­tar os irmãos menos felizes, até que se arrependam e se convertam...

Indefiníveis ruídos alcançaram-nos o ouvido, e Zenóbia, pálida, calou-se igualmente. Em poucos segundos, tornaram-se mais nítidos. Eram gritos aterradores, como se a curta distância devêssemos afrontar hordas de enraivecidos animais ferozes.

Entre nós, Luciana parecia a mais atemorizada.

Torcia nervosamente as mãos, até que, não lhe sendo possível suportar por mais tempo a inquietação, dirigiu-se à diretora da casa, suplicando:

— Irmã, não será conveniente endereçarmos fervorosa rogativa a Deus? conheço os monstros. Tentaram, muita vez, arrebatar meu pai do sitio a que se recolhera!...

Zenóbia sorriu com benevolência e respondeu:

— Já fiz meus atos devocionais de hoje, pre­parando-me para as ações eventuais do trabalho no decurso do dia. Aliás, minha amiga, nossa ansiosa expectativa, em si mesma, vale por súplica arden­te. Decidamos, pois, qualquer problema a sobrevir, com resolução e confiança em Nosso Pai e em nós próprios.

A esse tempo, tornara-se enorme o vozerio. Pus-me, assombrado, a identificar rugidos estriden­tes de leões e panteras, casados a uivos de cães, silvos de serpentes e guinchos de macacos.

Em dado momento, ouvimos explosões ensur­decedoras. Quase no mesmo instante, certo auxiliar penetrou o recinto e comunicou:

— Atacam-nos com petardos magnéticos.

A diretora resoluta ouviu, serena, e determinou:

— Emitam raios de choque fulminante, asses­tando baterias.

As farpas elétricas deviam ser atiradas em silêncio, porque as explosões diminuíram até à extinção total, percebendo-se que a horda invasora se desviara noutro rumo, pelo ruído a perder-se distante.

Respiramos aliviados.

Estampou-se confortadora expressão na fisio­nomia de Zenóbia, que falou, satisfeita:

— Agora, peçamos ao Mestre conceda aos in­felizes o caminho adequado às suas necessidades.

Escoaram alguns minutos, nos quais elevamos pensamentos de gratidão e júbilo ao Cristo Salvador.

Tornando à palavra livre, considerei:

— Que impressionantes rugidos ouvimos! não se figuravam lamentos de corações sofredores, mas algazarra de feras soltas. Terrível novidade!...

— Esses bandos, porém — observou a dire­tora. sensatamente —, são antigos. Entre as narrações evangélicas, ao tempo da passagem de Nosso Senhor pelas estradas humanas, lemos o noticiário alusivo às legiões dos gênios diabólicos.

Enquanto concordávamos, em silêncio, prosse­guiu, compungida:

— Enraízam-se os pobrezinhos tão intensamen­te nas idéias e propósitos do mal e criam tantas máscaras animalescas para si mesmos, em virtude da revolta e da desesperação a lhes consumirem a alma, que adquirem, de fato, a semelhança de horrendos monstros, entre a humanidade e a irracionalidade.

Antes que pudesse continuar nas observações tristes, penetrou um assessor no salão e dirigiu-se à orientadora do instituto:

— Irmã Zenóbia, ambos os desequilibrados que deram entrada, anteontem, romperam as celas e tentam fugir.

A orientadora atalhou a notificação, expedindo ordem:

— Prendam-nos, imediatamente, com a cola­boração dos vigilantes. Temos responsabilidade. A expedição que no-los confiou regressará amanhã, nas primeiras horas.

Encontrava-se o cooperador junto à porta de saida, quando outro auxiliar apareceu, atento.

— Irmã — disse, respeitoso —, as notas da Crosta chegaram agora. O chefe da missão Figuei­ra, em atividade desde a semana finda, pede sejam preparadas acomodações para três recém-desencar­nados, depois de amanhã.

— Tomarei providências — informou a dire­tora sem se alterar.

Iamos reiniciar a palestra, mas aproximou-se uma jovem serviçal, fazendo também sua participação:

— Irmã Zenóbia, a turma de vigilância, que descansou há três dias, voltou a postos.

— Mande-a retomar os lugares — recomendou ela — e que os irmãos exaustos repousem conve­nientemente.

Afastou-se a ativa emissária e, quando eu pre­tendia, por minha vez, comentar a movimentação de trabalho da casa, outro colaborador assomou àporta e avisou:

— Irmã, a expedição Fabrino pede auxílio da Crosta para os serviços das reencarnações expia­tórias de que se encontra encarregada. A mensa­gem assinala serviço urgente para noite próxima. Que devo responder?

A orientadora refletiu um pouco e ordenou:

— Transmita o comunicado aos irmãos Gotuzo e Hermes. Estarão talvez disponíveis. Mais tarde, expediremos resposta.

Pretendíamos retomar a instrutiva conversa­ção, mas, em se fazendo novo silêncio, outro ajudante, de fisionomia visívelmente alterada, surgiu à porta para informar:

— Irmã Zenóbia, a Nota do Dia, vinda do Pla­no Superior, manda comunicar-lhe que os desinte­gradores etéricos passarão por aqui amanhã.

— Oh! o fogo?!... — replicou a diretora, patenteando agora inexcedível emoção. — Bem o suspeitei — ponderou, acrescentando: — o nosso ambiente está conturbado. A passagem dos mons­tros é sinal de que a limpeza será urgente.

E, fixando os olhos penetrantes no colabora­dor, prosseguiu:

— Solicitemos a cooperação das congêneres mais próximas. Precisamos apelar para o Oratório de Anatilde e para a Fundação Cristo. Tente a ligação. Irei, eu mesma, fazer o pedido.

Afastando-se o assessor, Zenóbia voltou-se para nós, cheia de bondade:

— Segundo observam, meus amigos, desta vez devo levantar-me e agir. Quando o fogo etérico vem queimar os resíduos da região, somos obri­gados a transportar-nos com a instituição, a caminho de outra zona. Necessito movimentar pro­vidências, relativas à nova localização, e rogar o socorro de outras casas especializadas.

Dirigindo-se, particularmente, a Jerônimo, acen­tuou:

— Meu irmão, já que o inesperado me sur­preende, estimaria visitar o abismo, ainda hoje, em companhia dos amigos. Além do serviço à coleti­vidade sofredora, conforme notifiquei a princípio, interesso-me por irmão nosso, em doloroso estado de cegueira espiritual, a favor de quem estou au­torizada a fazer serviços intercessórios -

— De perfeito acordo — respondeu nosso che­fe, atenciosamente.

Depois de levar a efeito alguns sinais de cha­mada, a diretora da Casa Transitória de Fabiano confiou-nos ao cuidado de Heráclio, abnegado co­operador da instituição, e se afastou.

Fomos, então, convidados pelo novo amigo a visitar o interior e, em breve, apresentava-nos ex­tensos dormitórios e estreitos cubículos, em que se localizavam doentes e necessitados de vários ma­tizes. Atravessamos, igualmente, compridas salas de estudo e complicados laboratórios, notando-se que ali todo o espaço era rigorosamente apro­veitado.

Em certo ponto da conversação, o delicado companheiro que nos acolhia, percebendo a curiosi­dade com que examinávamos a parte interna do edifício, erguido à base de substância singularmente leve, esclareceu:

— É tipo de construção para movimento aéreo. Muda-se, sem maiores dificuldades, de uma região para outra, atendendo às circunstâncias.

E, sorrindo:

— Por isso, é denominada “Casa Transitória”.

Em breves minutos, o Assistente Jerônimo era chamado nominalmente pela irmã Zenóbia, para en­tendimento particular.

Hipólito e Luciana solicitaram ingresso na Sala Consagrada, onde, conforme explicações de Herá­clio, administradores, auxiliares e asilados daquele pouso de amor se reuniam habitualmente para os serviços divinos da prece. Interessado, por minha vez, nos trabalhos médicos do instituto, indaguei quanto à possibilidade de encontrar algum colega que me fornecesse novos elementos educativos.

Expondo ao prestativo assessor meus desejos, respondeu-me sem hesitar:

— Já sei o que pretende. No momento, temos em casa o Irmão Gotuzo, cujas informações talvez lhe satisfaçam a curiosidade.


5

Irmão Gotuzo

Apresentado ao Irmão Gotuzo, espontânea sa­tisfação felicitou-me o espírito. Imediatamente, re­conheci que vigorosos laços de simpatia nos arras­tavam um para o outro. Nele, as afinidades com os serviços da esfera carnal eram ainda, sobre­maneira, fortes. A conversação, gestos e parece­res denunciavam-lhe a condição. Impregnado de in­tensas lembranças da vida física, a que se sentia imantado por incoercível atração, não subira, por enquanto, nos nossos círculos de trabalho mais ele­vado, contando apenas alguns poucos anos de cons­ciência desperta, após acordar na existência real.

De início, ofereceu-me elementos para suma­riar-lhe a posição. Desencarnara antes de mim, peregrinara muito tempo, através de sendas pur­gatoriais, e embora houvesse demorado vários anos semi-inconsciente, entre sombras e luzes, apresen­tava-se em dia com todos os conhecimentos de Me­dicina, propriamente humanos.

— Sempre supus — confiou-me, bem humora­do, quando nos vimos a sós — que após a morte do corpo nada mais teríamos a fazer, além de cantar beatíficamente no céu ou ranger dentes no inferno, mas a situação é extremamente diversa.

Fez significativo parênteses e continuou:

— Refiro-me à velha definição teológica, por­que nunca pude aceitar a tese negativista, em ca­ráter absoluto. Impossível que a vida estivesse circunscrita ao palco de carne, onde o homem desempenha os mais extravagantes papéis, em múl­tiplas atitudes cênicas, desde a infância até a ve­lhice. Algo deveria existir, sempre acreditei, além do necrotério e do túmulo. Admitia, porém, que a morte fôsse maravilhoso passe de magia, orien­tando as almas a caminho do paraíso de paz imor­redoura ou da região escura de castigos eternos. Nada disso, contudo. Encontrei a vida, em si mes­ma, com o mesmo sabor de beleza, intensificação e mistério divino. Transferimo-nos de residência, pura e simplesmente, e tanto trazemos para cá indisposições e doenças, como as investigações e processos de curar. Os enfermos e os médicos são aqui em maior número. O corpo astral é organi­zação viva, tão viva quanto o aparelho fisiológico em que vivíamos no plano carnal.

Porque percebesse, talvez, em meus olhos, a silenciosa notícia de que, em círculos mais altos, haveria novidades referentes ao assunto, acres­centou:

— Pelo menos, em nosso plano, a situação éanáloga.

E continuou, sorridente:

— Ensinavam-nos, na Crosta Planetária, que o homem é simples gênero da ordem dos primatas, com estrutura anatômica dos mamíferos superio­res, com postura vertical, dimensões consideráveis de crânio e linguagem articulada. Referiam-se os catedráticos aos homens fósseis e pré-históricos, colando afirmativas dogmáticas da ciência oficial em nossa cabeça, como se dependuram cartazes no teto dos bondes. Explicava-nos a Religião, por sua vez, que o ser humano é alma criada por Deus, no instante da concepção materna, e que, com a morte, regressa ao seio divino para definitivo jul­gamento, em toda a eternidade, na hipótese de o paciente não ser obrigado a determinadas demoras nas estações desagradáveis do purgatório.

Imprimiu novo acento à conversação e consi­derou:

— De fato, suponho devam existir lugares mais deliciosos que o éden imaginado pelos sacerdotes humanos e, com meus olhos, tenho visto flagelações e sofrimentos que ultrapassam todas as imagens infernais ideadas pelos inquisidores. Entretanto, e é lamentável reconhecê-lo, nem a Ciência, nem a Religião nos prepararam, convenientemente, para enfrentar os problemas do homem desencarnado.

Fizera-se, entre nós, intervalo mais longo.

Relanceando o olhar pelo gabinete amplo, re­parei o cuidado de Gotuzo, na zona de sua especía­lidade. Mapas variados do corpo humano desdo­bravam-se nas paredes, como se fôssem preciosos adornos. Pequenas esculturas de órgãos diversos assomavam, aqui e ali, O que mais feria a aten­ção, porém, era determinada imagem do sistema nervoso, estruturada em substância delicadíssima e algo luminosa, em posição vertical, com a altura aproximada dum homem, na qual se destacavam, com extraordinária perfeição, o cérebro, o cerebelo, a medula espinhal, os nervos do tronco, o mediano, o radial, o plexo sagrado, o cubital e o grande ciático.

Acariciando, enlevado, a obra prima, observei:

— Tem você muita razão, meu caro Gotuzo. Se os homens encarnados compreendessem a im­portância do estudo alusivo ao corpo perispiritual !...

— Sim — confirmou com graça espontânea, atalhando-me as considerações —, a ignorância que nos segue até aqui é simplesmente deplorável! A personalidade humana, entre as criaturas terres­tres, é mais desconhecida que o Oceano Pacifico. Eu por mim, católico militante que fui, sempre aguardei o sossego beatífico depois da morte.

Fixou expressão quase cômica e acentuou:

— Vim com todos os sacramentos e passapor­tes da política religiosa, passados em solenes exé­quias. Creio, todavia, que o serviço diplomático de minha igreja não está bem atendido no céu. Não trouxe bastante documentação que me garantisse paz na transferência. Em vão, reclamei direitos que ninguém conhecia e supliquei bênçãos indébitas. Em face do desconhecimento aqui predominante a meu respeito, regressei ao meu velho templo, onde ninguém me identificou. Desesperado, então, mergu­lhei-me por longos anos em dolorosa cegueira espi­ritual. E, francamente, rememorando fatos, rio-me, ainda hoje, da confiança ingênua com que cerrei os olhos no lar, pela última vez, O padre Gustavo prometia-me a convivência dos anjos — veja bem!

— e asseverava-me que eu seria levado em triunfo aos pés do Senhor, e isso apenas porque legara cinco contos de réis à nossa antiga paróquia. Meus familiares acompanhavam, em pranto, nosso diá­logo final, em que minha palavra sufocada com­parecia, em monossílabos, de longe em longe, na extrema hora do corpo. No entanto, se era quase impossível para mim o comentário Inteligente da situação, o pároco falava por nós ambos, expla­nando a felicidade que me caberia no Reino de Deus. Médico de curta jornada, mas de intensa observação, a moléstia não me enganou, mas, inexperiente nos assuntos da alma, confundiram-me ple­namente as promessas religiosas. Penetrando o portão do sepulcro e não me sentindo na corte dos santos, voltei, copiando perigosas atitudes dos so­nâmbulos, para interpelar o sacerdote que me en­comendara o cadáver às estações celestes. Incom­preendido e cego, peregrinei por muito tempo, entre a aflição e a demência, nas criações mentais enga­nadoras que trouxera do mundo físico.

— Certamente, porém — observei, em face da parada mais longa que se fizera —, não lhe falta­ram bons amigos.

— De fato — concordou. — Entretanto, gas­tei anos para tornar ao equilíbrio indispensável, condição única em que podemos compreender-lhes o auxílio e recebê-lo.

— Deve, pois, sentir-se feliz, agora.

— Sem dúvida! — comentou Gotuzo, humo­rístico — reajusto-me com a tranquilidade possível. A maior surpresa para mim, presentemente, é a paisagem de serviço que a vida espiritual nos descortina. Tenho hoje profundíssima compaixão de todos os homens e mulheres encarnados, que desejam insistentemente a morte física e procu­ram-na, através de vários modos, utilizando recur­sos indiretos e imperceptíveis aos demais, quando lhes faltam disposições para o ato espetacular do suicídio. Aguardam-nos atividades e problemas tão complexos de trabalho, que mais venturosa lhes seria a existência totalmente desprovida de encan­to, com pesadas disciplinas a lhes inibirem as di­vagações.

Recordando a posição laboriosa da dirigente da casa, em virtude das observações ouvidas, con­siderei:

— O volume de nossas tarefas assombraria qualquer homem comum, e cumpre-nos reconhecer que a necessidade de sacrifício nos serviços desta instituição é enorme. inda agora, espantou-me a cota de deveres atribuidos à Diretora.

— Inegável! — anuiu, modificando o tom de voz — a Irmã Zenóbia, devotada orientadora, de sublime coração e pulso forte, nos oferece, inva­riàvelmente, magníficas demonstrações de renúncia. E tão grande é o serviço neste asilo, consagrado a socorros diversos, que a chefia se reveza em pe­ríodos anuais. Neste ano, a administração compete a ela; no vindouro, teremos as diretrizes do Irmão Galba.

— Cada administrador recebe descanso de um ano? — indaguei, admirado.

— Sim, aproveitando-se o período de repouso,

em esferas mais altas, ao contacto de experiências e estudos que enriqueçam o espírito do missioná­rio e beneficiem as obras gerais da instituição, com vistas ao futuro. Estou informado de que Zenóbia e Galba dirigem esta casa, há precisamente vinte anos consecutivos, ora um, ora outro. Administra­dores diversos, no entanto, têm passado por aqui, demandando outros rumos, no plano de elevação... De quando em quando, voltam a visitar-nos, minis­trando sagrados incentivos à comunidade de traba­lhadores do bem.

— E você? — interroguei, talvez Indiscreto —onde passa os recreios e entretenimentos?

— De conformidade com os estatutos que nos regem, possuo também minhas horas de repouso. Todavia — e a sua voz tocou-se de velada tristeza — ainda não posso fruí-las em esfera mais alta. Desfruto-as nos campos da Crosta, respirando o ar puro e tonificante dos pomares e jardins sil­vestres. O oxigênio, por lá, é mais leve que o absorvido por nós, nestes círculos abafados de tran­sição, onde há que lidar com os resíduos do pen­samento humano. As árvores e as águas, as flores e os frutos da Natureza terrestre, indenes das ema­nações empestadas de multidões ignorantes e ca­prichosas, permanecem repletos de substâncias di­vinas para quantos de nós que começam a viver efetivamente em espírito. As cidades humanas são imensos e benditos cadinhos de purificação das almas encarnadas, onde se forja o progresso real da Humanidade, mas o campo simples e acolhedor é sempre a estação direta das bênçãos de Deus, garantindo as bases da manutenção coletiva. Não é estranhável, portanto, que aí recolhamos grandes colheitas de energias de paz restauradora.

Conhecia, de sobra, a propriedade de seus argumentos, rememorando experiências anteriores que me diziam respeito; contudo, objetei, com sin­ceridade:

— Lastimo, porém, que você ainda não tenha podido visitar regiões mais elevadas. Descobriria continentes de radiosas surpresas, revigorando, com eficiência, o estimulo e a esperança.

— Prometem-me, para breve, semelhante jú­bilo — acentuou resignadamente.

— Ouça, meu amigo — perguntei com afetuo­so interesse —, qual a razão do adiamento? poderia, por minha vez, interpor minha influência humilde no assunto?

O companheiro, que se caracterizara por sadio otimismo desde a primeira palavra, deixou trans­parecer inquietante emoção. Fisionomia transtor­nada, seus olhos móveis e brilhantes nevoaram-se de pranto, dificilmente contido, e, fixando-os talvez no quadro interior das próprias reminiscências, Go­tuzo explicou-se, com inflexão de amargura:

— Trago, ainda, a mente e o coração presos ao ninho doméstico que perdi com o corpo carnal. Readaptei-me ao trabalho e, por isso, venho sendo aproveitado, de algum modo, em atividades úteis; entretanto, ainda não me habituei com a morte e sofro naturalmente os resultados dessa desarmonia. Encontro-me num curso adiantado de prepa­ração interior, no qual progrido lentamente.

Esforçando-se por assumir, diante de mim, ati­tude tranquilizadora, prosseguiu, depois de ligeira pausa:

— Retomando a mim mesmo, após longos anos de semi-inconsciência, voltaram-me a reflexão, o juízo, o equilíbrio. Oh! meu amigo, que saudades torturantes de minha casa feliz! Marília e os dois filhos, então rapazes de curso ginasial, eram os únicos habitantes de meu pequeno paraíso domés­tico. A Medicina, exercida desde cedo, entre clien­tela abastada, conferira-me extensos recursos finan­ceiros. Vivíamos plenamente despreocupados, entre as paredes acolhedoras e quentes de nosso ninho. Nenhum dissabor, nem a mais leve nuvem. Sur­giu-nos a primeira dor com a positivação da pneu­monia que me separou da esfera física. À primeira nota de sofrimento, mobilizamos o dinheiro e as relações afetivas, inútilmente. Todas as circuns­tâncias favoráveis de ordem material quebraram-se, frágeis, perante a morte. Marília, porém, prome­teu-me fidelidade constante até ao fim, selando o Juramento com amargurosas e Inesquecíveis lágri­mas. Aproximava-me dos cinquenta anos, enquanto a querida esposa não ultrapassava os trinta e seis. Doía-me nalma deixá-la quase só no mundo, sem o braço do companheiro; todavia, confiando nas promessas religiosas, acreditei que pudesse velar por ela e pelos filhos, da região celestial. A rea­lidade, porém, foi muito diversa e, depois das lu­tas purgatoriais, voltando ansioso à casa, não en­contrei rastro dos entes amados que aí deixara. Enquanto perseverava em doloroso sonambulismo, buscando socorro junto à religião, nunca pude vol­tar ao campo da família, porqüanto, antes do ten­tâmen, fui arrebatado em violento e escuro torve­linho que me situou em terrível paisagem de trevas e sofrimento indescritíveis. No primeiro instante de libertação, todavia, fui surdo a toda espécie de ponderação, rompi todos os obstáculos e, sequioso de afeto, encontrei-os, enfim... A situação, no en­tanto, desconcertou-me. Primo Carlos, que sempre me invejara a abastança, insinuara-se em casa, a título de proteger-me os Interesses, e desposou-me a companheira, perturbou o futuro de meus filhos e dissipou-me os bens, entregando-se, em seguida, a criminosas aventuras comerciais. Quase voltei ao primitivo estado de desequilíbrio mental, ajui­zando os acontecimentos imprevistos. Após pran­tear a posição dos meus rapazes, convertidos em agenciadores de maus negócios, encontrei Marília, justamente no dia imediato ao nascimento do se­gundo filhinho do casal. Ajoelhei-me, em soluços, ao pé do leito humilde em que repousava e per­guntei-lhe pelo patrimônio de paz que, ao partir, lhe depositara, confiante, nas mãos. A infeliz, fun­damente desfigurada, não me identificou a pre­sença, nem me ouviu a voz, mas lembrou-se in­tensamente de mim, contemplou o pequenino que dormia calmo e caiu em pranto convulsivo, provo­cando a presença de Carlos, declarando-se angus­tiada, nervosa... quando vi chegar o invasor, irascível e detestado, recuei, tomado de Infinito horror. Não tive forças. Era isso o que me aguardava, após tamanha luta? Deveria conformar-me e aben­çoar os que me feriam? O quadro era excessiva­mente negro para mim. Em prejuízo de meu espí­rito, desfrutara uma existência regular, com todos os desejos atendidos. Não me iniciara no mistério da tolerância, da paciência, da dor. E, por esse motivo, meus sofrimentos assumiram assustadoras proporções.

Gotuzo enxugou as lágrimas que lhe correram abundantemente dos olhos e, em vista da impressão forte que o seu pranto me causava, terminou:

— Quase dez anos são decorridos e minha má­goa continua tão viva, como na primeira hora.

Deixando-o entregue ao desabafo, alguns mi­nutos pesados rolaram entre nós.

— Gotuzo, escute-me — disse-lhe, por fim —não guarde semelhantes algemas de sombra no coração.

Em seguida, descrevi-lhe, sumàriamente, meu caso pessoal. Ouviu-me atento, confortado.

Finalizando, considerei:

— Por que razão condenar a companheira de luta? e se fôssemos nós os viúvos? quem poderia afiançar que não teríamos sido pais novamente? Não se prenda por mais tempo. O velho egoísmo humano é criador de cárceres tenebrosos.

Percebeu-me a sinceridade e calou-se, humilde. E porque o ambiente se fazia menos agradável, em face da exposição dos íntimos aborrecimentos dele, perguntei, para modificar-lhe o impulso mental:

— Circunscreve-se o trabalho à assistência aos enfermos, no setor de tarefas que lhe são atribuídas?

— Tenho outros campos de atividade — in­formou.

Fitando-me, algo modificado na expressão fi­sionômica, interrogou:

— Já cooperou em tarefas reencarnacionistas? Recordei a experiência que acompanhara, de perto, em outra ocasião (1), e narrei o que sabia. Olhando-me significativamente, tornou:

— Sim, você conhece um caso de reencarnação, de natureza superior, um caso em que o interes­sado se fizera credor da gentileza de vários amigos que o auxiliaram, desveladamente. Aqui, todavia, acompanhamos situações dolorosas, através de in­cidentes desagradabilíssimos para a sensibilidade. São trabalhos reencarnacionistas de ordem inferior, mais difíceis e complexos. Não calcula o que se­jam. Há verdadeira mobilização de Inúmeros ben­feitores sábios e piedosos, dos planos mais altos, que nos traçam as necessárias diretrizes. Por vezes surgem problemas torturantes no esforço de apro­ximação e ligação dos Interessados ao ambiente em que serão recebidos, de tal modo deploráveis, que muito angustiosas para nós se fazem as situações, sendo imprescindível o concurso de elevado número de obreiros. Segue-se a reencarnação expiatória de inenarráveis padecimentos, pelas vibrações contun­dentes do ódio e das humilhações punitivas. Na esfera venturosa em que você habita, há institutos para considerar as sugestões da escolha pessoal. O livre arbítrio, garantidor de créditos naturais, pode solicitar modificações e apresentar exigências justas, mas, aqui, as condições são diferentes... Almas grosseiras e endividadas não podem ser aten­didas em suas preferências acerca do próprio fu­turo, em virtude da ignorância deliberada em que se comprazem, indefinidamente, e, de acordo com aqueles que as tutelam da região superior, são compelidas a aceitar os roteiros estabelecidos pelas autoridades competentes para os seus casos indi­viduais. Por nossa vez, somos executores das pro­vidências respectivas e constitui-nos obrigação ven­cer

(1) Vide “Missionários da Luz”. — Nota do Autor espiritual.

os mais extensos e escuros obstáculos. Nesses quadros de dor, vemos pais e mães que, instintivamente, repelem a influenciação dos filhinhos, antes do berço, dando pasto a discórdias sem nome, a antagonismos aparentemente injustificáveis, a moléstias indefiníveis, a abortos criminosos. En­quanto isso ocorre, os adversários que reencarnam, em obediência ao trabalho redentor, programado pelos mentores abnegados dessas personagens de dramas sombrios, com longa representação no ce­nário da existência humana, penetram o campo psíquico dos ex-inimigos e futuros progenitores, impondo-lhes sacrifícios intensos e quase insupor­táveis.

Interrompeu as considerações, fêz curta pausa, para acrescentar em seguida:

— Repare que a diversidade, entre as suas informações e as minhas, é efetivamente considerável, Os Espíritos que se esforçam nas aquisições da luz divina, através do serviço persistente na própria iluminação, conquistam o intercâmbio di­reto com instrutores mais sábios, aprimoram-se, consequentemente, e, pelos atos meritórios a que se consagram, podem escolher seus elementos de vida nova na Crosta Terrestre, como o trabalhador dig­no que, pelos créditos morais conquistados, pode exigir as próprias ferramentas destinadas ao seu trabalho. Os servos do ódio e do desequilíbrio, da intemperança e das paixões, contudo, que se preparem para as exigências da vida. Aos pri­meiros, a reencarnação será verdadeira bênção em aprendizado feliz; todavia, aos segundos constituirá necessária e legítima imposição do destino criado por eles mesmos, com o menosprezo a que votaram as dádivas de Nosso Pai, no espaço e no tempo.

Escutando-lhe as observações, sob inexcedível impressão de alegria e encantamento, não pude so­pitar a conclusão que me saiu otimista e espon­tânea da boca:

— Gotuzo, mas é você, experiente desse modo quanto aos problemas do resgate espiritual, quem guarda mágoa do lar que se foi? Como pode en­carcerar-se no desalento, a deter tamanha possi­bilidade de libertação?

O companheiro fixou em mim os olhos inte­ligentes e lúcidos, como a dizer em silêncio que sabia de tudo isso, esforçou-se por parecer jovial e respondeu:

— Não se preocupe. Em vista das extremas dificuldades para dominar-me, estudo, atualmente, a probabilidade de reincorporação no ambiente do­méstico, enfrentando a situação difícil com a devi­da bênção do esquecimento provisório na carne, a fim de reconstruir o amor em bases mais sólidas, junto àqueles que não tenho compreendido tanto quanto deveria.

Nesse instante, certa enfermeira assomou àporta de entrada, pedindo licença para interromper-nos e notificou que a turma de sentinelas, em tratamento mental, esperava no salão contíguo.

Esclareceu Gotuzo que seguiria imediatamente. Novamente a sós, explicou-me, sorrindo:

— Na esfera carnal, na qualidade de médicos, nossas obrigações resumiam-se ao exame detido das enfermidades, com indicação clínica ou intervenção cirúrgica, e ao fornecimento de diagnósticos téc­nicos que outros colegas confirmavam, quase sem­pre por espírito de solidariedade, dentro da classe; mas, aqui, a paisagem modifica-se. Cabe-me usar a língua como estilete criador de vida nova. A casa está repleta de cooperadores que trabalham, ser­vindo-lhe ao programa de socorro, e se submetem aos nossos cuidados de orientação médica, simul­taneamente. Não basta, porém, que eu lhes diga o que sofrem, como fazia antigamente. Devo fum­cionar, acima de tudo, como professor de higiene mental, auxiliando-os na germinação e desenvolvi­mento de idéias reformadoras e construtivas, que lhes elevem o padrão de vida íntima. Distribuímos recursos magnéticos de restauração, com todos os necessitados, reanimando-lhes a organização geral, com os elementos de cura ao nosso alcance; não sem ensinar, entretanto, a cada enfermo, algo de novo que lhe reajuste a alma. Noutro tempo, tí­nhamos o campo de ação na célula física. Presen­temente, todavia, essa zona de atuação é a célula mental.

Observando a disposição ativa do companheiro, meditei no tempo que despendera, antes de parti­cipar dos serviços médicos da região superior a que fora conduzido, e perguntava a mim mesmo a ra­zão pela qual fora Gotuzo tão depressa utilizado, ali, na esfera de socorro aos aflitos. Reparei, to­davia, que o novo amigo não me recebia os pen­samentos, nem mesmo de maneira parcial, demons­trando-se menos exercitado nas faculdades de pe­netração e, acompanhando-o ao recinto, onde o aguardava extensa clientela, notei que a assistên­cia ali era ministrada a doentes em massa, dentro de vibrações mais grosseiras e lentas, exigindo a colaboração especializada de médicos desencarnados que, como acontecia a Gotuzo, ainda conservavam regular sintonia com os interesses imediatos da Crosta Terrestre.


6

Dentro da noite

A diferença de atmosfera, entre o dia e a noite, na Casa Transitória de Fabiano, era quase imperceptível. Não conseguiria estabelecer compa­rações apreciáveis, mesmo porque, durante todo o tempo de nossa permanência no instituto, estive­ram acesas as luzes artificiais. Denso nevoeiro aba­fava a paisagem, sob o céu de chumbo e, ao que fui informado, grandes aparelhos destinados à fa­bricação de ar puro funcionavam incessantemente, na casa, renovando o ambiente geral. Víamos o Sol, fundamente diferençado, em pleno crepúsculo. Semelhava-se a um disco de ouro velho, sem qual­quer irradiação, a perder-se num oceano de fumo indefinível. Cotejando a situação com os quadros primaveris da Crosta Planetária, os ocasos da es­fera carnal parecem verdadeiras decorações do pa­raíso.

Permanecíamos em região onde a matéria obe­decia a outras leis, interpenetrada de princípios mentais extremamente viciados. Congregavam-se aí longos precipícios infernais e vastíssimas zonas de purgatório das almas culpadas e arrependidas.

Na verdade, muita vez viajara entre a nossa colônia feliz e o plano crostal do planeta, atravessando lugares semelhantes, mas nunca me de­morara tanto em círculo desagradável e escuro como esse. A ausência de vegetação, aliada à ne­blina pesada e sufocante, infundia profunda sensação de deserto e tristeza.

Os amigos, porém, com a Irmã Zenóbia à frente, faziam quanto possível por converter o pouso socorrista num oásis confortador. Alguém chegou à gentileza de lembrar a oportunidade do quadro externo para que nos voltássemos para dentro de nós, com o proveito necessário.

— Sim — assentiu o Assistente Jerônimo —, num abrigo de pronto socorro espiritual, é conve­niente que não haja facilidade para distrações pre­judiciais aos nossos deveres.

Estampou riso franco nos lábios e acentuou:

— Por isso mesmo, quando na Crosta da Ter­ra, nunca tivemos descrições de infernos floridos ou de purgatórios sob árvores acolhedoras. Nesse ponto, os escritores teológicos foram exatos e coe­rentes. Aos culpados e renitentes confessos não convém a fuga mental - Em favor deles próprios, é mais razoável sejam mantidos em regiões despro­vidas de encanto, a fim de permanecerem a sos com as criações mentais inferiores a que se ligaram intensivamente.

A conversação, rica de particularidades interes­santes, compensava a aspereza exterior, valorizando o tempo, acerca do qual não se conseguia fazer nenhum cálculo, a não ser pela observação dos cronômetros que eram, aí, aparelhos preciosos e indispensáveis.

Ao soar das dezenove horas, orientados pela administradora da casa, preparamo-nos para pequena jornada ao abismo.

Convocou Zenóbia vinte cooperadores para as tarefas de colaboração eventual e imediata, três mulheres e dezessete homens, que, à primeira vis­ta, não pareciam pessoas de cultura e sensibilidade extremamente apuradas, mas que mostravam, no olhar sereno e firme, boa vontade, dedicação leal e caráter resoluto no espírito de serviço. Mais tarde, vim a saber que o instituto asila constan­temente variados grupos de entidades, repletas de característicos humanos primitivistas, mas por­tadoras de virtudes e valores apreciáveis, que colaboram na execução das tarefas gerais e se educam ao mesmo tempo, preparando-se para reencarnaçoes e experiências de mais elevada expressão.

Dirigindo-se ao subalterno que recebera atri­buições de subchefia, indagou Zenóbia, serena:

— Ananias, temos o material de serviço de­vidamente arregimentado? Não devemos esquecer, principalmente, as faixas de socorro, as redes de defesa e os lança-choques.

— Tudo pronto — respondeu, satisfeito, o co­laborador.

Voltou-se, em seguida, para o nosso orientador e disse, bem-humorada:

— Irmão Jerônimo, convirá, desse modo, ini­ciar a marcha.

E detendo-se, ao nosso lado, acrescentou:

— De antemão, rogo desculpas a todos se lhes tomar tempo para atendermos ao desventurado ir­mão a que me referi, satisfazendo a interesse que me é particular. A clarividência de Luciana e a oração de todos os amigos, porém, constituirão fatores decisivos em beneficio da renovação dele, a fim de que aceite as providências redentoras do futuro. É serviço que prestarão a mim própria, pelo qual serei devedora reconhecida.

Ligeiro véu de melancolia inexplicável toldou-lhe repentinamente o olhar, mas, cobrando ânimo novo, considerou:

— Além disso, o padre Hipólito endereçará apelos cristãos aos infelizes que choram na zona abismal. O fogo purificador passará amanhã e po­deremos ministrar-lhes aviso edificante.

O ex-sacerdote comentou, confortado:

— A cooperação será para nós um prazer.

Dirigindo-se, então, a grande número de com­panheiros e subordinados de serviço, a Irmã Zenó­bia consolidou a atenção de todos para o desem­penho do mapa de trabalhos que havia planejado para tão significativa noite. A casa deveria per­manecer atenta à contribuição que receberia dos institutos congêneres, no dia imediato, pela manhã; alguns servidores seguiram para a Crosta, prestando apoio à expedição Fabrino, nalguns casos di­fíceis de reencarnação compulsória; certos depar­tamentos abrir-se-iam à visitação dos encarnados parcialmente libertos da Crosta, em momentos de sono físico, para receberem benefícios magnéticos, de conformidade com as solicitações autorizadas; determinadas dependências seriam preparadas devi­damente para a eventual recepção de missionários do bem, procedentes das esferas elevadas; organi­zar-se-iam leitos para alguns desencarnados pres­tes a serem trazidos, segundo notificação anterior­mente recebida; duas enfermeiras, orientadoras de colônias espirituais para regeneração, trariam vin­te crianças recém-libertas dos laços carnais, no sentido de se avistarem com as mães que viriam da Crosta, amparadas por amigos para reencontro confortador, em caráter temporário; variadas delegações de trabalho espiritual, junto a instituições piedosas, encontrar-se-iam no abrigo para combinar providências; duas novas missões de socorro alcan­çariam o asilo, dentro de breves horas, e demorar-se-iam até pela manhã, conforme aviso prévio; todos os trabalhos preparatórios da mudança assi­nalada para o dia seguinte deveriam ser levados a efeito; medidas outras de menor significação fo­ram recomendadas e, por fim, a diretora notificou que o recinto de orações deveria aguardá-la, em posição de iniciar a prece de reconhecimento da noite, sem nenhuma delonga.

Eu não conseguia disfarçar a surpresa, exami­nando semelhante quadro de obrigações, porque, se­gundo cálculo efetuado momentos antes, a irmã Zenóbia estaria ausente apenas quatro horas.

Ultimando providências, acenou para nós, con­vidando-nos a acompanhá-la. Ao transpormos o limiar, explicou-nos, cuidadosa:

— Convém manter apagado, no trajeto, todo o material luminoso. — E fitando-nos, resoluta,

informou: — Quanto a nós, sigamos silenciosos, a pé. Não será razoável utilizar a volitação em distância tão curta. Mais justo assemelharmo-nos aos pobres que habitam estes sítios, perante os quais, enquanto perdure a pequena caminhada, deveremos guardar a maior quietude. Qualquer desatenção prejudicar-nos-á o objetivo.

Decorridos alguns Instantes, atravessávamos as barreiras magnéticas de defesa e púnhamo-nos a caminho.

Noutras circunstâncias e noutro tempo, não conseguiria eu dominar o pavor que nos infundia a paisagem escura e misteriosa, à nossa frente. Vagavam no espaço estranhos sons. Ouvia perfeitamente gritos de seres selvagens e, em meio deles, dolorosos gemidos humanos, emitidos, talvez, a imensa distância... Aves de monstruosa configu­ração, mais negras do que a noite, de longe em longe se afastavam de nosso caminho, assustadi­ças. E embora a sombra espessa, observava alguma coisa da infinita desolação ambiente.

Após alguns minutos de marcha, surgiu-nos a Lua, como bola sangrenta, através do nevoeiro, espalhando escassos raios de luz.

Poderíamos identificar, agora, certas particula­ridades do terreno áspero.

A Irmã Zenóbia colocara, diante de nós, ades­trado auxiliar especialista na travessia daquelas sendas estreitas, e, conforme recomendação inicial, guardávamos rigoroso silêncio, em fila móvel, ga­nhando a estrada hostil.

Atingimos zona pantanosa, em que sobressaía rasteira vegetação. Ervas mirradas e arbustos tris­tes assomavam indistintamente do solo.

Fundamente espantado, porém, ao ladear imen­so charco, ouvi soluços próximos. Guardava a ní­tida impressão de que as vozes procediam de pes­soas atoladas em repelentes substâncias, tais as emanações desagradáveis que pairavam no ar. Oh! que forças nos defrontavam, ali! A treva difusa não deixava perceber minudências; todavia, con­vencera-me da existência de vítimas vizinhas de nós, esperando-nos amparo providencial. Estaría­mos ante o abismo a que se referia a administradora da Casa Transitória? Optei pela negativa, porque a expedição não se deteve em tão angus­tioso lugar.

Jerônimo seguia rente aos meus passos e não contive a indagação que me escapou, célere:

— Jazem aqui almas humanas?

O interpelado, em atitude discreta, sômente res­pondeu num gesto mudo, em que me pedia calar.

Bastaram, no entanto, minhas quatro palavras curtas para que os lamentos indiscriminados se transformassem, de súbito, em rogativaa tocantes e estertorosas:

— Ajude-nos, quem passa, por amor de Deus!

— Salvai-nos, por caridade!...

— Socorro, viandantes! socorro! socorro!

Verificou-se, então, o imprevisto. Certamente, as entidades em súplica permaneciam jungidas ao mesmo lugar, mas figuras animalescas e rastejan­tes, lembrando sáurios de descomunais proporções, avançaram para a nossa caravana, ausentando-se da zona mais funda dos charcos. Eram em gran­de número e davam para estarrecer o ânimo mais intrépido. Experimentei o instinto de utilizar a vo­litação e fugir depressa. Entretanto, a serenidade dos companheiros contagiava e esperei firme. Qua­se imperceptível estalido partiu da destra da Irmã Zenóbia, e dez auxiliares, aproximadamente, utili­zaram minúsculos aparelhos, emitindo raios elétri­cos de choque, através de insignificantes explosões. Não obstante ser fraca a detonação, a descarga de energia revelava vigoroso poder, tanto que os atacantes monstruosos recuavam, precipitados, re­colhendo-se ao pântano, em queda espetacular sobre a lama grossa.

Multiplicavam-se as lamentações dos prisionei­ros invisíveis da substância viscosa.

— Libertai-nos! libertai-nos!...

— Socorro! socorro!

Cortavam-me a sensibilidade aquelas impreca­ções pungentes e dolorosas, mas ninguém parou.

Seguia a expedição, diligente e muda.

Compreendi que estavam em jogo maiores in­teresses de trabalho e não insisti. Minha posição era a do subalterno chamado a cooperar.

Mais alguns minutos e havíamos varado a re­gião dos charcos. Penetrando terreno de configuração diferente, aliviou-se-me, de algum modo, o coração condoído. Entretanto, agora, vultos negros de entidades humanas esgueiravam-se junto de nós. Aproximavam-se com a visível disposição de ata­car, recuando, porém, inesperadamente. Supus, por minha vez, que o movimento de recuo ocorria logo que eles observavam a extensão do nosso grupo de vinte e cinco pessoas. Temiam-nos a expressão nu­mérica e fugiam, pressurosos.

Prosseguindo a marcha, penetramos escarpada região e, atendendo ao sinal da Irmã Zenóbia, os vinte auxiliares que nos seguiam postaram-se em determinado ponto, com a recomendação de nos aguardarem a volta.

A diretora da Casa Transitória, então, condu­ziu-nos os quatro, caminho a dentro, acentuando que encetaríamos isoladamente a primeira parte do programa de serviço. Em semelhante paragem, a atmosfera rarefazia-se de maneira sensível. A Lua pareceu menos rubra, a relva mais doce, o ar mais tranqüilo.

— Estamos em reduzido oásis de paz, em meio de extenso deserto de sofrimentos — esclareceu Zenóbia quebrando o longo silêncio. — Agora po­demos falar e atender aos objetivos de nossa vinda.

Logo após, evidenciando preocupação em sos­segar-nos o íntimo, referentemente aos sofredores anônimos que encontráramos no caminho, explicou-nos delicadamente:

— Não somos impermeáveis às rogativas dos nossos irmãos que ainda gemem no charco de dor a que se atiraram voluntàriamente. Dilaceram-nos o espírito as imprecações dos infelizes. No entanto, a Casa Transitória de Fabiano tem-lhes prestado o socorro possível, ajuda essa que, até hoje, vem sendo repelida pelos nossos irmãos infortunados.

Debalde libertamo-los, periodicamente, dos mons­tros que os escravizam, organizando-lhes refúgio salutar. Fogem de nossa influenciação retificadora

e tornam espontâneamente ao charco. É impres­cindível que o sofrimento lhes solidifique a vonta­de, para as abençoadas lutas do porvir.

Estabelecida a ressalva, que percebi especial­mente formulada de modo indireto para mim, Zenóbia continuou, bastante emocionada:

— Compete-me, agora, alguns esclarecimentos. Neste instante, deve esperar-nos, na orla do abis­mo, o irmão a que aludi, devotado amigo para mim, noutro tempo, e pelo qual devo trabalhar, na atua­lidade, através de todos os recursos legítimos, ao meu alcance. Infelizmente, o pobrezinho mantém-se em padrão vibratório dos mais inferiores. Creio precisas estas explicações preliminares, facilitando-lhes a obsequiosa colaboração desta noite. Muitas vezes, a surpresa dolorosa compele-nos à solução de continuidade no serviço a fazer. Daí minha preo­cupação justa em prestar-lhes os informes devidos. Trata-se do padre Domênico, entidade a quem mui­to devo. Foi ele clérigo menos feliz, incapaz de manter-se fiel ao Senhor até ao fim de seus dias. Iniciou-se nas lutas humanas, tocado de sublimes esperanças, na primeira mocidade; entretanto, por­que os designios do Pai eram diversos dos caprichos que alimentava no coração de homem apaixonado e voluntarioso, em breve caía em despenhadeiros que lhe valem os amargosos padecimentos, depois do túmulo. Aproveitou-se das casas consagradas àfé viva para concretizar propósitos menos dignos, conspurcando a paz de corações sensíveis e amo­rosas. Recebeu todas as advertências e avisos sa­lutares tendentes a modificar-lhe a conduta crimi­nosa e desvairada. Todavia, internou-se fundamente no lamaçal escuro dos erros voluntários, despre­zando toda espécie de assistência salvadora. Colaborei durante anos consecutivos nos serviços de orientação que lhe eram ministrados, mas, pela ex­pressão intensa de fragilidade humana que ainda conservava em minha alma, abandonei-o, também, à própria sorte, absorvida por sentimentos de hor­ror. Minha deliberação estabeleceu comprida pausa de tempo em nossas relações diretas. Mais de qua­renta anos rolaram, entre nós. De tempos a esta parte, porém, seus sofrimentos acentuaram-se de maneira terrível, obrigando-me a mobilizar minhas humildes possibilidades em seu favor. Desencar­nado, desde muito, voltou da Crosta em angustio­sas circunstâncias. Ocasionou desastres morais de reparação muito difícil. E ainda permanece insen­sível às nossas exortações de amor e paz, conser­vando-se em posição psíquica negativa. Precipitou­-se em temível aridez do coração, envolvendo-se em forças que o aniquilam e entorpecem cada vez mais. Para que males maiores não lhe ocorram, fui, a meu pedido, autorizada a incluí-lo entre os tutelados externos de nossa instituição. Consegui, desse modo, que alguns de nossos cooperadores lhe atenuassem o movimento fácil, sem que pudesse ele dar conta de nossas operações fluidico-magné­ticas, nesse sentido. Tem sofrido muito. No en­tanto, apesar da prostração, ainda não modificou a mente, mantendo-se em pesadas trevas interiores e subtraindo-se, sistemàticamente, a qualquer esfor­ço de auto-exame, que lhe facilitaria, sem dúvida, algum repouso espiritual. Além desse alivio, que lhe é sumamente indispensável, o padre Domênico necessita regressar à experiência construtiva na Crosta Planetária, recapitulando o pretérito em serviço expiatório. Entretanto, a situação mental em que se demora cria-lhe empecilhos de vulto, difi­cultando-nos a ação intercessória. Urge, porém, que regresse a reencarnação. Amigos nossos, de­votados e solícitos, amparam-me o pedido em bene­fício dele e Domênico voltará a unir-se, como filho sofredor de uma das suas vítimas de outro tempo, vítima e verdugo, porque, num gesto de vingança cruel, o ofendido eliminou o ofensor com a morte. Para reintegrar-se nas correntes carnais, preciosas e purificadoras, deve o infortunado adquirir, pelo menos, a virtude da resignação, de modo a não aniquilar o organismo daquela que, desempenhando sublime tarefa de mãe, lhe conferirá, carinhosa­mente, a nova personalidade. Para a obtenção desse resultado, é imprescindível que melhore interiormente. Se conseguirmos que um raio de luz lhe penetre o íntimo, se possibilitarmos a eclosão de algumas lágrimas que lhe desabafem o coração, dilatando-lhe o entendimento, experimentará novas percepções visuais e, provavelmente, conseguirá en­xergar aquela que lhe foi desvelada genitora, na derradeira romagem dos círculos carnais. Conse­guida essa providência, creio será ele conduzido facilmente à indispensável conformação e às me­didas iniciais da recapitulação terrestre.

Estabeleceu-se natural intervalo nas conside­rações de Zenóbia. Nenhum de nós ousou formu­lar qualquer interrogativa - Ela, porém, prosseguiu, humilde:

— Desde alguns dias, ouve-nos Domênico a voz, tal como o cego que não consegue ver. Não posso identificar-me perante ele, a fim de não lhe pre­judicar o trabalho de redenção, mas espero que, nesta noite, muito possamos fazer em seu favor, com os valores da prece, aguardando, ainda, que os informes, detalhados e instrutivos, a serem pres­tados pela clarividência de Luciana, lhe possam elevar o tônus vibratório, e, ocorrendo isso, como espero em Nosso Senhor, chamarei mentalmente a nossa irmã Ernestina, que lhe foi mãe dedicada e compassiva, com o fim de o recolher e conduzir à Crosta para as providências cabíveis. Estou convencida­ de que, podendo ver a genitora, Domênico se transformará em breves dias, preparando-se para a reencarnação próxima, com o valor desejado.

Indicando determinado ponto da paisagem, in­formou:

— Em vista do serviço a realizar, recomendei que dois auxiliares o trouxessem a local adequado, onde possamos orar livremente e auxiliá-lo com as nossas palavras, sem interferências estranhas.

Em seguida, rogou, comovidamente:

— E agora que iniciaremos o trabalho de tan­ta significação para minhalma, insisto para que me perdoem o caráter pessoal da tarefa. E’ que a oportunidade de nos reunirmos, cinco irmãos tão bem sintonizados, não é bastante comum e, em vis­ta da providência assinalada para amanhã, sinto que não devo adiá-la, porqüanto a desintegração de resíduos inferiores pelo fogo etérico se faz acom­panhar de muita renovação nestes sítios. Podería­mos, desse modo, Ernestina, Domênico e eu perder sagrado ensejo, de repetição problemática.

Calou-se, de súbito, a orientadora, conservan­do-se na atitude de quem medita, em silêncio, de coração voltado para o Todo-Poderoso. Decorridos alguns momentos, prosseguiu, acentuando:

— Estejam certos de que serão meus credores para sempre.

Tendo-se em conta a elevada posição da dire­tora da Casa Planetária, comovia-nos semelhante demonstração de humildade.

Constrangidos quase, diante de seu exemplo cristão, seguimo-la a pequena eminência do solo, vagamente iluminada, onde dois companheiros ve­lavam diante de alguém estendido em decúbito dor­sal. A mentora benevolente dispensou ambos os auxiliares, recomendando-lhes integrar a comissão de serviço, que se postura distante. Em seguida, Zenóbia aproximou-se, maternalmente, e, deixando-nos surpresos, sentou-se na erva rasteira, colo­cando a cabeça do infeliz no regaço carinhoso.

Aquele homem, trajando burel esfarrapado e negro, exibia horripilante facies. Não obstante a sombra, viam-se-lhe os traços fisionômicos, que ins­piravam compaixão. Cabelos em desalinho, olhos fundos na caverna das órbitas, boca e nariz tume­factos em horrível máscara de ódio e indiferença, dava ele a impressão de celerado comum, que só a enfermidade conseguira imobilizar para a pres­tação de contas com a justiça. Não acusou emoção alguma ao contacto daquele colo amoroso e nem se apercebeu de nossa presença amiga. De olhar parado no espaço, num misto de desespero e zom­baria, semelhava-se a uma estátua de insensibili­dade, vestida de farrapos hediondos.

— Domênico! Domênico! — clamou a Irmã Zenóbia, com ternura fraternal.

Deveria o interpelado experimentar extrema dificuldade na audição, porque só depois de pronunciado o seu nome, diversas vezes, foi que, como alguém que registrasse sons de muito longe, excla­mou irritadiço:

— Quem me chama? quem me chama? O’ po­deres orgulhosos que desconheço, deixai-me no in­ferno! não atenderei a ninguém, não desejo o céu reservado a prediletos... pertenço aos demônios do abismo! não me perturbem!... odeio, odiarei para sempre!...

— Quem te chama?! — considerou a direto­ra, delicada e afetuosamente — somos nós que te desejamos o bem.

O infeliz, entretanto, ao que observei, não se apercebeu da frase confortadora, porque continuou praguejando, insensível:

— Malvados! gozam no paraíso, enquanto so­fremos dores atrozes! Hão de pagar-nos! Deram-me direitos no mundo, prometeram-me a paz celestial, conferiram-me privilégios sacerdotais e precipita­ram-me nas trevas! Desalmados! Satã é mais be­nigno!...

Nossa venerável irmã, no entanto, longe de irritar-se, falou pacientemente:

— Pediremos a Jesus te restitua, ainda que por alguns momentos, o dom de ouvir.

Solicitando-nos acompanhar-lhe a rogativa, in­vocou:

— Senhor, dá que possamos amparar teu in­feliz tutelado! Tens o pão que extingue a fome de justiça, a água eterna que sacia a sede de paz, o remédio que cura, o bálsamo que alivia, o verbo que esclarece, o amor que santifica, o recurso que salva, a luz que revela o bem, a providência que re­tifica, o manto acolhedor que envolve a esperança em tua misericórdia!... Mestre, tu, que fazes des­cer a bendita luz de teu reino aos que ainda choram no vale das sombras, concede que o teu discípulo transviado possa ouvir aqueles que o amam!... Pastor Divino, compadece-te da ovelha desgarrada do aprisco de teu coração! Permite que aos seus ouvidos tenham acesso os ecos suaves de teu infi­nito amor!... Concede-nos semelhante alegria, não por méritos que não possuímos, mas por acréscimo de tua inesgotável bondade!...

Oh! mais uma vez, reconheci que a prece é talvez o poder máximo conferido pelo Criador à criatura!

Em seguida à súplica, sensibilizado, observei que de todos nós se irradiavam forças brilhantes que alcançavam o tórax de Zenóbia, como a refor­çar-lhe as energias, e de suas mãos carinhosas e beneméritas, então iluminadas de claridade doce e branda, emanavam raios diamantinos. A amorável amiga colocou-as sobre a fronte do desventurado, oferecendo-nos a certeza de que maravilhosas ener­gias se haviam improvisado em benefício dele.

Chamou-o, novamente, grave e terna.

O interpelado, agora, revelando capacidade au­ditiva diferente, fêz imenso esforço por levantar-se. tateou em torno de si, e bradou:

— Quem está aqui?

— Somos nós — respondeu Zenóbia, desvelada que trabalhamos em teu favor, a fim de que obtenhas paz e luz.

— Quimeras! — gritou o infortunado, acusan­do alguma transformação íntima — fui traído em meu ministério sacerdotal, negaram-me os direitos prometidos, fui espezinhado e ferido! Que desejais de mim? Lastimar-me? não necessito da compaixão alheia. Aconselhar-me? impossível. Estou cego e atormentado no inferno por deliberado menosprezo das forças divinas que me desampararam total­mente!

— Domênico — falou-lhe, então, Hipólito, a pedido da orientadora, que lhe fêz silencioso gesto de solicitação, nesse sentido, dando-nos a ideia de que não desejava empregar a própria voz, na con­versação que se iniciava —, não te rebeles contra a determinação da Justiça Divina.

— Justiça? — replicou ele, vibrando de emo­tividade — e não tenho fome do direito? não pos­suía eu prerrogativas no apostolado? não fui sa­cerdote fiel à crença? Há muitos anos padeço nas trevas e ninguém se lembrou de fazer-me justiça.

— Acalma-te! — disse o nosso companheiro com voz firme — a consciência e juiz de cada um de nós. Possívelmente envergaste a batina fiel àcrença, mas desleal ao dever. Temos conosco al­guém com bastante poder de penetração nos esca­ninhos de tua vida mental. Espera! Vamos orar em silêncio para que a bênção do Senhor se faça sentir em teu coração e, em seguida, passaremos a auxiliar-te para que releias, com a serenidade preci­sa, o livro de tuas próprias ações, compreendendo a longa permanência nos despenhadeiros fatais.

O infeliz emudeceu por momentos e, tomados do forte desejo de auxílio, endereçamos fervorosa súplica à Esfera Superior, rogando lenitivo para o sofredor e bastante luz para a nossa irmã Lu­ciana, a fim de que pudesse ver aquela consciência culpada com a eficiência precisa.


7

Leitura mental

Após a oração silenciosa, Jerônimo fêz Luciana compreender que atingíramos o momento de ação.

A enfermeira clarividente, evidenciando cari­nho fraterno, aproximou-se do infeliz e, depois de fitar-lhe a fronte demoradamente, começou:

— Padre Domênico, vossa mente revela o pas­sado distante e esse pretérito fala muito alto dian­te de Deus e dos irmãos em humanidade! Duvidais da Providência Divina, alegais que o vosso minis­tério não foi devidamente remunerado com a sal­vação e imprecais contra o Pai de Misericórdia Infinita... Vossa dor permanece repleta de blas­fêmia e desespero, proclamais que as Forças Ce­lestes vos abandonaram ao tenebroso fundo do abismo!...

— E, porventura, não é assim? — gritou o desventurado, interrompendo-a — compelido pelas circunstâncias da vida humana a servir numa igre­ja que me enganou, negam-me o direito de recla­mar? O Evangelho não tem palavras de mel para o ato de Judas. Deverei, por minha vez, louvar os que me traíram?

— Não, Domênico. Vossos amigos não cogi­tam de criticar instituições. Desejam tão sômente amparar-vos. Não concordais no vosso desvio da conduta cristã? Teríeis, de fato, agido como sacer­dote fiel aos sagrados princípios esposados? Espe­raríeis um paraíso de vantagens imediatas, para cá dos túmulos, tão só pelas insígnias exteriores que vos diferençaram dos outros homens? não pon­derastes a extensão das responsabilidades desas­sumidas?

— Oh! que perguntas! — exclamou o inter­pelado, com indisfarçável azedume — a organização religiosa a que servi prometeu-me honras defini­tivas. Não era eu diretor de grande coletividade social? não ministrava o Santíssimo Sacramento? não fui recomendado ao Céu?...

Apesar de tais protestos, o padre Domênico já acusava sinais de transformação intima. Fize­ra-se-lhe a voz mais triste, denunciando capitulação próxima. O fato de ele nos sentir de mais perto, através da audição, facilitava-nos a atuação magné­tica de auxilio.

Ao término de suas interrogações reticencio­sas, Luciana observou:

— As igrejas, meu amigo, são sempre eleva­das e belas. Consubstanciam, invariàvelmente. o roteiro de nosso encontro divino com o Pai de In­finito Amor. Ensinam a bondade universal, o perdão das faltas, a solidariedade comum. Mas, e os nossos crimes, fraquezas e defecções? Em geral, todos nós, filiados a correntes várias do pensa­mento religioso na Terra, exigimos que se nos faça justiça, esquecidos, contudo, de que as noções de justiça envolvem a existência da Lei. E como lu­dibriar a Lei, soberana e inalterável, embora com­passiva em suas manifestações? Não concordais que é absurdo reclamar determinado procedimento dos outros, esperando para o nosso “eu” tirânico e desequilibrado as compensações sômente devidas aos observadores das regras de purificação, das quais não passamos de meros expositores no campo do ensinamento?

- Oh! oh! e a confissão? — tornou Domê­nico, visívelmente impressionado com as palavras ouvidas — Monsenhor Pardíni ouviu-me, antes da morte, e absolveu-me...

— E confiastes em semelhante medida? Vosso colega de sacerdócio poderia Induzir-vos ao bom ânimo e à coragem necessária ao serviço de repa­ração futura, mas não conseguiria subtrair-vos à consciência os negros resultados mentais dos atos praticados. Vosso coração, padre, é um livro aber­to aos nossos olhos. Envolvido nas trevas, injuriais o nome de Deus e sua justiça; no entanto, a viva descrição de vossas reminiscências são bastante ex­pressivas...

Porque Domênico se calasse humilhado, sob a vigorosa influenciação magnética de Zenóbia, que o mantinha nos braços, a clarividente prosseguiu:

— Vejo-vos a derradeira noite na existência carnal. Acompanho-vos em noite fria, sob fortes rajadas do vento de céu sem lua. Desviastes o passo de centro populoso e enveredais por estrada sombria de recanto suburbano. Não sômente vos observo a forma física. Sinto-vos igualmente o es­tado emocional. Empolgado pela visão embriagante dos sentidos, penetram um lar honesto, cego por sentimento menos respeitoso para com alguém que vos ouviu, inadvertidamente, as palavras finas de sedução e malícia. Alijastes a batina escura, como quem despe incômoda capa. Envergais agora, na intimidade de pequeno salão verde, perfumado cos­tume de casimira cinza-claro. Absorvida por vossas referências gentis, que apenas traduzem propósitos de sensação, distantes de qualquer sentimento edi­ficante, certa mulher cede às vossas promessas. Alguém, todavia, demora-se espreitando-vos. É um homem que se certifica da ocorrência e afasta-se, alucinado, sem que lhe identificásseis a presença. Trata-se do esposo ofendido, em dolorosa crise pas­sional. Distancia-se, a caminho da pequena cidade próxima, tomado de dor selvagem. Penetra grande empório de bebidas e adquire um litro de vinho antigo, por alto preço. Afasta-se, angustiado, e, oculto à sombra de árvores acolhedoras, adiciona ao conteúdo do frasco pequena porção de substân­cia venenosa, fulminante. Em seguida, espera-vos, de longe, acariciando a idéia do assassínio. Noite alta, regressais ao presbitério; e o adversário, como quem volta de ligeira viagem, saúda-vos, agrada­velmente, com dissimuladas demonstrações de esti­ma e confiança. Paira o convite ao vinho recon­fortante na madrugada gélida e abris a porta da residência paroquial. Entrais calmo. Na tepidez do interior doméstico, à frente de vasta mesa bem servida, experimentais, honrado, o vinho velho mis­turado a veneno destruidor. Não tivestes tempo para explicações. Ante vossos gemidos furiosos e roucos, entre esgares de sofrimento, o assassino ri-se e pronuncia aos vossos ouvidos feias pala­vras de maldição. Quando a respiração se fêz mais opressa, o homicida pediu socorro às dependências da casa, depois de inutilizar a prova do crime, ante vossos olhos assombrados. Precipitam-se, em vão, os servidores. Velho eclesiástico aproxima-se, no intuito de ouvir-vos. Deve ser o Monsenhor Par­dini, de vossas referências. Compreendendo-vos a dificuldade para manter qualquer conversação, in­terroga o criminoso, que se declara vosso amigo Intimo e esclarece, fingidamente, que regressava em vossa companhia do próprio lar, onde havíeis entretido confortadora e longa palestra, junto a ele e à esposa, demorando-se aí por insistência dos dois, O criminoso, revelando piedade irônica, asse­gura que vos acompanhara à casa paroquial, em vista da noite alta e que demandara o interior a vosso convite, para reconfortar-se e que, em plena palestra amistosa, caístes fulminado por síncope singular. Debalde, intentais esclarecimento. Vossa destra levanta-se e o indicador aponta o crimi­noso. Monsenhor Pardíni aproxima-se - O homicida toma-vos a mão quase inerte e exclama: — “É preciso salvar o padre Domênico! Minha esposa e eu não nos conformaríamos com semelhante per­da!” O eclesiástico que vos assiste permanece sob forte emoção. Supõe ser o vingador o companheiro desvelado da vitima e inicia o serviço dos moribun­dos. Endereçais supremo olhar de impassível desespero ao adversário e compreendeis o próximo fim do corpo. Esfriam-se-vos os membros. Viscoso suor vos corre, abundante, do rosto, e, num esfor­ço tremendo, pronunciais, de maneira quase inin­teligível, uma frase: — “Eu, pecador, me... con­fesso. . .“ O religioso que vos acompanha, porém, fecha-vos os lábios, no intuito de poupar-vos e asse­vera: — “Domênico, descansa em paz! Ao sacerdote reto, não se faz necessária a confissão, no alento derradeiro; ainda hoje, ministraste a sagrada par­tícula! pede a Deus por nós, no Céu!” Em seguida, concede-vos plena absolvição de todos os pecados da existência humana, tratando-vos a personalidade espiritual cheio de santa confiança. A palavra do colega, porém, perturba-vos a consciência. No fun­do, sabeis que a morte vos surpreende em dolo­roso abismo. Em vão, tentais receber a paz que Monsenhor Pardíni vos deseja; debalde procurais desviar o olhar do envenenador que vos segue, mordaz. Vossas mãos tombam inertes. O religioso amigo segura o crucifixo que não sentis. Vossos olhos param na contemplação da última cena. Abre-se a porta da alcova espaçosa e alguns servos ajoelham-se, em pranto. Não distante, um sino toca fúnebre aviso. Amanhece. Entretanto, semi-incons­ciente, fustigado pela dor e pela desesperação, não vos vejo desfrutando as claridades do novo dia que surge. Cá fora, há círios acesos e atitudes respeitosas dos paroquianos que se multiplicam, Visitando-vos os despojos, após o laudo médico de bondoso facultativo que, intimamente, vos crê sui­cida, fornecendo, porém, explicações da “causa mor­tis”, como sendo fulminante ataque de angina, a fim de evitar escândalos e perturbações no círculo sempre venerável da religião. Há pessoas que cho­ram sinceramente e ouço comentários elogiosos ao vosso pastorejo sacerdotal. Dentro de vós, todavia, prevalece imensa noite. Gritais como o cego, ao abandono, no primeiro instante de cegueira ines­perada. Porém, ninguém vos ouve. Relacionais o crime de que fostes vítima, rogais providências con­tra o matador, mas os ouvidos humanos, agora, permanecem noutras dimensões. Buscais o recurso de fugir, mas invencíveis grilhões vos ligam ao cadáver. Ao crepúsculo, processa-se o enterramento. Abre-se o templo suntuosamente ornamentado com flores roxas. Cânticos tristes evolam-se do coro e toda a nave cheira a incenso. Com grande pom­pa em todas as minudências das exéquias, vosso corpo desce ao último abrigo. Entretanto, perma­neceis ligado às vísceras decompostas...

A descrição da enfermeira impressionava-me, profundamente. A entidade infeliz parecia tocada nas mais recônditas fibras do ser. Após breve es­paço, Luciana prosseguiu:

— Com o sepultamento do corpo, começaram para vossa alma infinitos padecimentos. Perma­neceis atormentado pela ansiedade, pela fome, pela sede, pela dor... Não posso precisar quanto tempo gastais em semelhante angústia. Sinto, porém, que a entidade sofredora de certa mulher vos visita o sepulcro. Estende-vos braços horrendos e, sob impressão de pavor, conseguistes desatar o laço ainda restante que vos prende ao corpo disforme, fugindo a praguejar. Vosso quadro consciencial modifica-se. Recordais o drama da infortunada que vos apareceu, suplicante. Oh! foi também vítima de vosso poder fascinador... A leitura mental de vossas lembranças revela as particularidades da experiência final da tresloucada. Pobre mulher cré­dula e confiante! Vejo-a chegando ao presbitério em tempestuosa noite. Experimentais a emoção in­ferior do homem menos digno que sente o império absoluto sobre a presa... A pobrezinha, todavia, chora e roga-vos auxílio. Pronuncia palavras de comover corações de pedra, mostrando indefinível desalento. Percebo o que diz... Confiou excessi­vamente em vossas promessas e cedeu aos vossos caprichos de homem vulgar. A princípio, acredi­tou que não adviriam desagradáveis consequências, certa da possibilidade de fugir a quaisquer obser­vações. Sabíeis engodar-lhe a inexperiência em assuntos afetivos e proclamáveis a inocência de se­melhantes relações. Contudo, agora, anunciava-se um filhinho, preocupando-lhe o coração. Quem a socorreria? quem lhe restauraria a paz familiar? Não seria melhor a legalização dos laços existen­tes? não deveriam esperar, honrados, a dádiva de um filho abençoado por Deus? Escutastes as roga­tivas sem abalo moral. Com a frieza dos homens de fraseologia brilhante, invocastes o dever sacer­dotal como justificativa da impossibilidade, comen­tastes as convenções humanas e, por fim, propusestes a conciliação do problema, com um casamento apressado e indigno entre a vítima e o último de vossos servos. A jovem soluça convulsivamente, afirmando justa repulsa. Continuais na argumen­tação prudente e preciosa, mas, com evidentes si­nais de loucura, a infeliz abandona-vos, precipitada, ganhando a via pública, sob a chuva torrencial... Acompanho-a. Regressa ao lar paterno, fundamen­te desequilibrada pelo vosso golpe impiedoso. Ah! que horror! vale-se a desventurada da noite solitária e bulhenta e ingere grande dose de formicida, tentando o ato final da tragédia interior. Ninguém lhe escuta os rugidos de sofrimento selvagem, por­que os trovões ribombam no céu. Ao amanhecer, todavia, um pai aflito corre ao vosso retiro re­pousante e coloca-vos ao corrente do fato. Mor­rera-lhe a filha, misteriosamente. Como aclarar a situação? não procedia com acerto, buscando o con­selho sacerdotal? Recebeis a notícia disfarçando di­ficilmente a emoção, repetindo textos evangélicos para consolar o amigo confiante. Preocupado, pon­de-vos a caminho da residência enlutada. No en­tanto, sinto-vos perfeitamente o estado mental. Não vos aflige a perda de alguém que vos poderia es­torvar a tranqüilidade, preocupa-vos a descoberta de algum recurso, aparentemente digno, que vos conserve a cavaleiro da situação imprevista. Pronunciando palavras confortadoraz, montastes guar­da ao cadáver e chamastes médico amigo. Ei-lo que chega! Oh! é o mesmo que vos examinou, no último dia, acreditando-vos suicida! Depois de lon­ga conversação confidencial convosco, o clínico as­severa que houve morte natural, com a ruptura de vasos do coração. Recuperam o bem-estar que transparece, de novo, em vossa expressão fisionô­mica. Vossas referências de consolação tornam-se mais vivas e inteligentes e seguis os funerais, cal­mo e contrito, embora os olhos esgazeados e terrí­veis da suicida vos contemplem do féretro, enquanto outros vultos negros, do plano Invisível aos ho­mens comuns, vos acompanham no préstito! São almas vingadoras que vos seguem, tenazes!...

Interrompeu-se Luciana, visívelmente comovi­da, e, dando-nos a entender que a paisagem mental de Domênico se modificara ao influxo de outras lembranças que a narração evocava, transferiu o curso das observações no tempo.

— Ah! sim, vejo bem — continuou, alarmada destaca-se infeliz entidade que, certamente, vos

consagrou funda afeição. Contempla-vos com de­sespero e enternecimento sixnultâneos. Parece-se extremamente Convosco. Agora, compreendo. Não foi apenas vosso amigo, foi vosso pai. Reclama, insistente, determinada escritura que não apresen­tastes. Que vejo? Em torno dele há imagens vi­vas de recordações angustiosas. Contemplo-lhe a derradeira noite ao vosso lado. Fixa-vos, carinhoso e confiante. A dispnéia concede-lhe trégua mais longa e o moribundo entrega-vos grande testamen­to, em que relaciona suas últimas vontades. Fala-vos, afetuoso e humilde, de seu passado oculto. Não foi simplesmente o genitor feliz dum sacerdote e de filhos outros que lhe honram o nome, declara. Foi moço arrojado, a comprometer-se em aventuras diferentes. Possuía alguns filhos, a distância do lar, e não desejava partir sem legitimá-los devi­damente. Além disso, pretendia garantir-lhes futu­ro próspero. Escutais com indisfarçável interesse. Em seguida, a pedido do genitor, ledes a discriminação de pequenos legados a pupilos dele. O agonizante acompanha-vos, atento, com o olhar. Tendes agora belas palavras nos lábios, justifican­do-lhe os erros do passado. Sabeis consolar com primores verbalisticos que lhe provocam admiração. Por fim, prometeis ao coração paterno exato cum­primento de seus derradeiros desígnios. Edificado, confessa-vos ele os deslizes que omitira, declara-vos seu arrependimento “in extremis” e diz de sua esperança no céu, onde Jesus lhe receberá os sin­ceros desejos de reparação. Palavras entrecortadas por suprema aflição, reitera-vos a súplica de am­paro constante a certa mulher, cercada de filhi­nhos, que esperam dele o sustento necessário... Ajudado por vós, abraça-se ao crucifixo, que con­templa de olhos nevoados. Recitais longa e como­vente oração, acariciando-lhe a cabeça grisalha. Mais alguns momentos, esforçando-se por ver-vos pela última vez, o moribundo corre os olhos no ato final do corpo. Estais sozinho com o cadáver. Conservais o polegar e o indicador da mão direita sobre os olhos do morto, a fim de imprimir-lhe boa postura fisionômica. Antes, porém, de qualquer co­municado ao interior doméstico, sepultais o do­cumento em móvel pesado, com intenções francamen­te hostis aos retos propósitos do desencarnado. Des­de esse instante, parece-me que ele vos seguiu, sem­pre de perto, reclamando, reclamando... Perma­nece, angustiado, na tela mental de vossas lem­branças vivas...

A clarividente pára, de novo, fixando parti­cularidades diversas, enquanto o infeliz Domênico entremostra insopitável comoção.

— Oh! agora — prosseguiu Luciana, dando conta da tarefa que lhe fora cometida — é outro perseguidor severo! Salienta-se à minha visão. É um velho eclesiástico, que deixou o aparelho físico endereçando-vos intensas vibrações de ódio. Vossas reminiscências esclarecem o fato. Desejáveis, a qualquer preço, o curato que lhe pertencia. Varia­dos interesses pessoais prendiam-vos o pensamento à pequena cidade sob a orientação do antigo pároco. Intentais a realização do desejo por métodos sua­sórios. Em longo diálogo, propondes a compra da paróquia, em caráter particular. Alegais dispor de bastante influência política para efetuar a transferência, sem abalos, remunerando-lhe a adesão in­condicional ao projeto. O velhinho, porém, recusa e justifica-se. Permanece junto àquele rebanho, des­de muitos anos. Além disso, está velho, doente. Servira à Igreja com as melhores forças de seus bons tempos de saúde física e espera a possibili­dade de morrer ali, respirando o ar amigo do seu pequeno pomar. Reconhece vossa superioridade na questão, considerando-vos as relações prestigiosas no seio do clero e da administração pública e asse­gura que, se outras fôssem as condições, cederia o lugar sem qualquer remuneração ou relutância. Os médicos, entretanto, recomendam-lhe a residência no litoral, para que a atmosfera marinha lhe facilite o esforço do coração. A rogativa comoveria a qualquer. Ouvistes, concordastes e apresentais despedidas arquitetando novo plano. Dali mesmo, sem qualquer escrúpulo, partis em visita pessoal ao bispo da diocese, a quem expondes, com fingida humildade, a solicitação que vos preocupa. Enga­nado, o dignitário da Igreja ouve, atenciosamente, e aceita o que propondes, recomendando, porém, prévia audiência de seus assessores diretos. Não tendes dúvidas ou ponderações de qualquer natu­reza. Gratificando companheiros altamente coloca­dos, conseguistes que o antigo sacerdote fôsse re­movido, compulsoriamente, para longínqua paróquia de montanha, onde o ancião morreu, sem delon­gas, odiando-vos de morte. Intoxicado pela cólera e pelos reiterados desejos de vingança, está cego às manifestações da espiritualidade superior, cer­cando-vos com ira implacável...

Novo intervalo da clarividente. Luciana, po­rém, recomeça a exposição, mais alarmada:

- Agora, surge determinada mulher. Parece-me que desencarnou depois de melindrosa operação nos olhos. Sim, a vossa tela de reminiscências fala bem alto. Foi vítima do vosso poder fascinante de homem dominador. Ei-la ao vosso lado no úl­timo encontro, ainda na esfera carnal. Acabastes a refeição lauta da manhã, quando alguém bate àporta paroquial. Trata-se de pobre mulher, enve­lhecida prematuramente e quase cega, conduzida por anêmico menino de nove a dez anos, que vos suplica auxílio. Ante a frieza de vossa recepção, a infortunada, em palavras sentidas, invoca o pas­sado de leviandades e pergunta se esquecestes o filho que lhe colocastes nos braços. Chora, gesticula e explica-se. Trabalhara sinceramente pela própria reabilitação, mas, em toda parte, acusavam-na de prostituição e ociosidade. Lutara herôicamente por manter o filhinho, à custa do serviço honesto, mas adoecera, sem qualquer proteção, e ali estava quase cega, implorando socorro... Se pudesse, pouparia ao filho ainda criança a humilhação de conhecer o pai desalmado; entretanto, o pequenino abeira­va-se da morte. Surpreendera-o a tuberculose devoradora e suplicava-lhe auxílio financeiro para o tratamento indispensável. A criança contempla-vos, triste e confiada. Ouvistes, indiferente, e ensaiastes resposta estranha. Ao vosso toque particular de campainha, determinado servidor aparece condu­zindo cães bravos que ameaçam os pobres pedintes, forçando-os a fugir, espavoridos. A criança, no úl­timo degrau da anemia, morre sem recursos e a mãe infeliz desencarna em pavilhão da indigência, com o sinistro desejo de vingar-se de vós, de qual­quer modo.

Interrompera-se Luciana, novamente, como para fixar minúcias apenas visíveis ao seu olhar. De sú­bito, exclama:

— Oh! que horror! vejo mais!... Diferente mulher de olheiras fundas e negras vestes...

Não terminou a observação, todavia.

Nesse instante, o desventurado proferiu um grito terrível, desfez-se em lágrimas e exclamou, alucinado de sofrimento moral:

— Basta! Basta!...

Soluços atrozes lhe rebentaram do peito opres­so, sem solução de continuidade. Zenóbia, que lhe mantinha a cabeça no regaço amoroso, tranquili­zou-nos em tom discreto:

— Domênico melhora, graças ao Nosso Divino Médico. Para o Espírito culpado e sofredor, as lá­grimas são também uma chuva benéfica que refri­gera o coração.

Logo após, permaneceu silenciosa, enquanto a seguíamos, enternecidos, de mente voltada para a prece.

Depois da longa crise de pranto de Domênico, a diretora da Casa Transitória solicitou ao padre Hipólito que semeasse novas ideias no terreno cons­ciencial arado pela dor, notificando-nos que toma­ria alguns minutos para convocar, mentalmente, a ex-genitora do antigo pároco desencarnado, para que o mísero fôsse reconduzido à Esfera da Cros­ta, no processo inicial da reencarnação futura.

A orientadora entrou em funda meditação, ao passo que Hipólito ergueu a voz, dirigindo-se ao mendigo de luz:

— Irmão Domênico, o Senhor Misericordioso ouviu-nos a rogativa. Desejas, efetivamente, a re­denção?

O interpelado, ao que deduzi, despreocupou-se inteiramente da pergunta e, mantendo forte impres­são, relativamente às afirmações que ouvira, inda­gou a seu turno:

— Ah! Existe então a Justiça Divina, anotan­do-nos as faltas? Há cadastros tão minuciosos para os mais secretos feitos do Espírito?

— Trazemos na própria consciência o arquivo indelével dos nossos erros — comentou Hipólito, com inflexão de piedade — como os justos são por­tadores das notas íntimas que os glorificam diante do Pai Altíssimo. Cerra, para sempre, meu amigo, a porta do “ego inferior”! Cala a vaidade, o or­gulho, a impenitência! Não maldigas. A Igreja que nos reunia, no círculo carnal, é santa em seus fum­damentos. Nós é que fomos maus servos, desvian­do-lhe os princípios básicos para a satisfação de instintos dominadores. Procurávamos o reino tran­sitório do poder temporal, através de puras ma­nifestações do culto externo aliado à política cor­ruptora, olvidando, deliberadamente, o Reino de Deus e Sua Justiça. Poderemos culpar, porventura, as mães devotadas pelos crimes voluntários dos filhos? A igreja universal de Jesus-Cristo, que con­grega todos os seus apóstolos, servidores, discípulos e aprendizes, é mãe amorosa e fiel.

De novo, soluçante, o Espírito Infortunado re­velava-se ferido nas fibras mais íntimas, provocan­do-nos comoção e lágrimas.

— Não condenes — prosseguiu o companhei­ro. — Quantos antigos superiores nossos expiam nas regiões tenebrosas! quantos se enganaram, hon­rando no mundo a si mesmos, esquecendo o Senhor que “passou fazendo o bem”! muitos dos dignitá­rios orgulhosos que nos dirigiam as atividades, com o cálculo a presidir-lhes as deliberações, baixaram ao sepulcro, em solenes exéquias, através de fan­farras e esplendores, para comparecerem aqui em dolorosas necessidades do coração, quais miseráveis mendigos! Muitos aguardam dias melhores, no fun­do de viscosos pântanos do ódio destruidor: outros imploram socorro, ansiosos de paz e renovação. Por que motivo não nos restaurarmos também, a fim de movimentarmos o necessário serviço do amor que redime sempre? Levantemo-nos, meu irmão, para sermos úteis aos companheiros de outro tem­po, reconduzindo-os ao porto de salvação! Recor­demos Aquele, em cujo nome augusto juramos fide­lidade ao Céu, na Terra. Dói-te a penitência, fere-te a humilhação? E Ele? Porventura não percorreu a Via Dolorosa, como vulgar malfeitor? não acei­tou a cruz que o flagelaria até à morte?

— Sim — concordou o interlocutor, triste-mente —. tudo isso é verdade!...

Significativo gesto de Zenóbia compeliu o pa­dre Hipólito a suspender as considerações.

Dando-nos a certeza de que respondia ao cha­mamento silencioso da orientadora, alguém compa­receu perante a nossa reduzida assembléia. Era uma velhinha simpática, que nos conquistou, de pronto, pela delicadeza e generosidade irradiantes. Abraçou a irmã Zenóbia, como se o fizesse a uma filha muito amada e cumprimentou-nos, cortês e reconhecida. Dispensávamos qualquer apresentação. Tratava-se de Ernestina, a dedicada mãe. Ajoe­lhou-se junto ao filho desventurado e, de mãos pos­tas, rogou a proteção dos Céus.

Fôsse pela renovação profunda daquela hora que lhe modificara o padrão vibratório, fôsse por­que as forças invisíveis de ordem superior mani­pulavam as nossas energias conjuntas em benefício do infeliz, Domênico, que era cego perante nós outros, conseguiu enxergar a recém-chegada.

Comoventes gritos alcançaram-nos o íntimo.

— Mamãe! mamãe!...

Aquela criatura que se mostrara tão rígida e indiferente, o eclesiástico que zombara de tantos corações na Terra, segundo retrospecção do preté­rito que Luciana levara a efeito, igualmente invo­cava o nome de mãe, como se fora chorosa criança desviada do lar. Abriu, ansioso, os braços, procu­rando-lhe o seio amigo, e Zenóbia, com carinhoso cuidado, ajudou-o a refugiar-se no colo materno. Ernestina apertou-o, então, de encontro ao peito e pareceu-me que o infortunado sentia o contacto maternal, como se houvera alcançado o repouso supremo.

— Mãe, minha mãe! — gritava, colando a ca­beça ao tórax inclinado para a frente, a fim de melhor fazer-se sentir — ajuda-me! perdoa-me! perdoa-me! — E recordando, talvez, o trabalho da clarividente que lhe alterara o ser, acrescentou:

— A justiça divina descobriu-me; sou um ré­probo sem perdão, um celerado infernal. Hediondo passado está vivo, dentro de mim. Oh! mamãe, és capaz de suportar-me, quando todos me detestam?

Ernestina aconchegou-o mais perto do coração e falou, comovida:

— Eu não sei, meu filho, se foste criminoso; sei que te amo com toda a alma, sei que sentia profundas saudades de tua presença carinhosa, no desejo enorme de sentir-te, de novo, junto de mim! que haveria de mais belo para meu coração que o doce enternecimento desta hora? Deixa que nasçam em ti pensamentos de júbilo e reconhecimento ao Pai de Inesgotável bondade que nos reúne compas­sivamente. Medita um instante, Domênico, sobre a grandeza divina e certifica-te de que ninguém permanece ao abandono. O pensamento de grati­dão a Deus, dentro das sombras do sofrimento, e como raio brilhante de aurora, preludiando a vitó­ria plena do Sol sobre as trevas densas da noite. Qual de nós não terá sido defrontado pela tormen­ta da ignorância? Todos tivemos pedras e espinhos na longa estrada da redenção. Muitas vezes caí­mos; entretanto, a mão invisível do Senhor arre­batou-nos, misericordiosa, do mergulho na lama ou das furnas do abismo! Tem coragem e levanta-te intimamente para o novo dia.

O mísero contemplava-a, enlevado, como se tivesse sob os olhos a mais formosa visão de sua vida.

— Sou, porém, um malfeitor, réu de crimes sem perdão! — falou tristemente.

— Não, meu filho — alongou-se a palavra materna —, foste enfermo, como nós outros. Escutaste as sugestões do mal e cultivaste úlceras dolorosas. Desequilibraste o coração, resvalando no despenhadeiro. Não te esqueças, porém, de que Jesus é o Divino Médico. Aceita a tua necessidade de medicação e dirige-te a Ele na súplica sincera de quem deseja a cura real para a vida eterna. Nós outros, os que intentamos auxiliar-te, não che­gamos ainda à posição dos que tudo podem ou que muito sabem. Somos trabalhadores interessa­dos em nossa própria iluminação pelo trabalho in­cessante, na execução da vontade do Altíssimo. Desenvolvemos nossas faculdades superiores, sem abalos e sem milagres, adquirindo valores novos, ao preço de nosso próprio esforço na paciente edifi­cação de nosso espírito para Deus. Acreditarias, porventura, que tua mãe estivesse no paraíso, em gozo beatifico, inteiramente esquecida de seus imen­sos débitos para com todos aqueles que lhe par­tilharam o afeto e a luta, nos serviços salvadores da carne terrestre? Admitirias, acaso, que apenas o carinho materno me garantiria posição definitiva no campo celestial? não, Domênico. Horizontes di­versos abrem-se para nossas almas, no Universo Infinito. Nossas existências são dias abençoados de trabalho, em que, ao sol do dever nobilitante e às chuvas da experiência construtiva, desabrocham e crescem nossas faculdades divinas para a Eternidade. É verdade que os erros deliberados turvam-nos a consciência, compelindo-nos a gastar va­liosas possibilidades de tempo na luta reparadora, mas o Senhor jamais nega recursos de retificação aos que lhe rogam socorro, no propósito fiel de reconquistar a harmonia divina. Após a travessia do túmulo, continuamos trabalhando e edificando, iluminando e redimindo... Não desejarias, portan­to, aderir ao nosso serviço de elevação? não pre­tenderás fugir ao círculo de sombras, a fim de ganhar os caminhos bem-aventurados da luz?

O olhar do infeliz adquirira diferente expres­são. A palavra incisiva e branda de Ernestina transformava-lhe a mente, pouco a pouco. Reconhe­cendo o efeito de suas advertências salutares, pros­seguiu a devotada benfeitora:

— Não seja a recordação angustiosa dos tem­pos idos obstáculo insuperável à realização de que necessitas presentemente. Todos aqueles a quem feriste não desapareceram para sempre. Prosse­guem tão vivos, quanto nós, e poderás, na condi­ção de servo humilde, buscar os credores de outra época, atendendo, em teu próprio benefício, a exi­gência do resgate necessário. O êxito, entretanto, pede um coração ardente na fé viva e um cérebro desassombrado, pronto a compreender o bem e a praticá-lo. Sem a esperança arrojada e sem espí­rito de serviço, dificilmente saldarás o débito pe­sado que te prende a alma a esferas grosseiras e inferiores. A fim de conquistares semelhantes valores, considera a Eternidade e o infinito amor de Deus. Não te encarceres em ponderações de na­tureza humana, vendo sacrifícios onde apenas pal­pitam sublimes oportunidades de ventura e reden­ção. Se a consciência te acusa, roga a Jesus orvalhe o teu íntimo de santificada esperança! Basta uma gota desse rocio divino para que o deserto da alma floresça e frutifique em bênçãos de paz e felici­dade para sempre. Não desanimes, Domênico! Deus permite que a alvorada siga a noite escura. Por­que não confiarmos, de maneira absoluta, no Su­premo Poder? Somos nada, meu filhinho, mas o Pai Misericordioso tudo pode.

A presença reconhecida de sua mãe completa­ra-lhe a modificação benéfica. O sofredor, como o náufrago desesperado atingindo porto amigo e re­confortante, esquecera as palavras odientas e blas­femas de minutos antes e, conchegando-se ao co­ração materno, rogava:

— Minha mãe, o infortúnio colheu-me o espí­rito desventurado!... não me abandones! não me abandones!...

— Nunca — disse a nobre matrona desencar­nada, sufocando as próprias lágrimas —, peço-te, porém, meu filho, que jamais abandones a Jesus, nosso Mestre e Senhor!...

— Sim — retrucou Domênico em pranto for­te —, Jesus, nosso Mestre, nosso Senhor!

Fizeram-se longos instantes de silêncio, en­tre nós.

De olhos lacrimosos, perdidos agora no espaço, a evocar, talvez, paisagens de muito longe, o ex-sacerdote comentou:

— Oh! mamãe, que saudade de minhas preces em criança!... Nesse tempo que vai tão longe, en­sinavas-me a ver o Criador do Universo em todas as dádivas da Natureza. Meu coração banhava-se, feliz, na fonte cristalina da confiança e o amor da simplicidade habitava minhalma venturosa!... De­pois, no torvelinho do mundo, perverti-me ao con­tacto dos homens ambiciosos e maus. Ao invés da piedade, cultivei a indiferença; em lugar do amor fraterno, legítimo e ativo, coloquei o ódio inexorá­vel aos semelhantes; ocultei o coração e exibi a máscara, fugi às verdades de Deus e fantasiei-me de humanas ilusões! por que fraquezas singulares pode o homem operar semelhante permuta? porque menosprezar tesouros de vida eterna e mergulhar--se em tão sinistros enganos? Oh! tu que conser­vaste a doce confiança do primeiro dia; que nunca sorveste o venenoso absinto que me embebedou na Terra, faze-me esquecer, por piedade, o homem cruel que eu fui!... Anseio retornar à serenidade ingênua do berço, angustia-me a sede de tornar àverdadeira fé! Ajuda-me a dobrar os joelhos, no­vamente, e a rezar de mãos postas para que o Pai do Céu me faça esperar sem aflição e esquecer o mal sem olvidar o bem!...

Ernestina, extremamente emocionada, auxiliou-o a prosternar-se, amparando-o, porém, com inexce­dível ternura.

Em seguida, copiando os gestos das mãezinhas cuidadosas e desveladas segurando criança tenra, uniu-lhe as mãos em súplica e, chorando para den­tro de si mesma, disse-lhe:

— Repete, filho, as minhas palavras.

Numa cena comovedora, que jamais me fugi­rá da recordação, a dedicada genitora orou pausa­damente, acompanhando-a Domênico, sentença por sentença:

— Senhor Jesus!

— Senhor Jesus!

— Eis-me aqui,

— Eis-me aqui,

— Doente e cansado aos teus pés,

— Doente e cansado aos teus pés,

— Compadece-te de mim, bem-amado pastor, de mim, ovelha desgarrada de teu rebanho... Ofus­cou-me o brilho falso da vaidade humana, a ilusão terrestre embotou-me o raciocínio, o egoísmo enri­jeceu-me o coração e caí no precipício da ignorân­cia, como leproso do sentimento. Tenho chorado e sofrido amargamente, Senhor, minha defecção es­piritual. Mas eu sei que éS o Divino Médico, dedi­cado aos infelizes e transviados do caminho... Por piedade, livra-me da prisão de mim mesmo, liber­ta-me do mal resultante de minhas próprias ações, faze que meus olhos se abram à luz divina! Nu­tre-me com a tua verdade soberana, ampara-me a esperança de regeneração! Senhor, dá-me forças para ressarcir todas as dívidas, curar todas as cha­gas, corrigir todos os erros que se acham vivos dentro de mim... Perdoa-me, concedendo-me recur­sos para o resgate, não me deixes entregue aos resquícios das paixôes que eu mesmo criei impen­sadamente, favorecendo-me com as tuas repreen­sões silenciosas nas situações disciplinares e, sobretudo, Benfeitor Sublime, retribui aos teus servos que me auxiliam, nesta hora, conferindo-lhes reno­vadas bênçãos de energia e paz, a fim de que au­xiliem a outros corações tão extenuados e caídos quanto o meu! Jesus, confiaremos em tua compai­xão para sempre! Assim seja!

Domênico repetira a oração, frase por frase, qual menino dócil e interessado em aprender a lição. Ao que deduzimos, a rogativa fizera-lhe pro­fundo bem. Abraçou-se a Ernestina, mais calmo, e, enquanto a diretora da Casa Transitória lhe seguia os mínimos gestos, sem que ele lhe percebesse a presença, perguntou, de improviso:

— Minha mãe, já que a tua ternura veio ao meu encontro no círculo das trevas, dize-me: onde está Zenóbia? ter-me-ia abandonado para sempre?

Fundamente surpreendido, notei que a inda­gação era feita com Inflexão dorida de saudade e desencanto.

— Certamente, meu filho — apressou-se Er­nestina em responder —, nossa amiga acompanha-te de esfera superior, implorando a Jesus te abençoe os propósitos de redenção.

— Oh! — tornou ele, triste — se a existência humana nos houvesse unido, outro teria sido meu destino. Ela, porém, desposou outro homem quando era maior minha confiança no futuro, compelindo­-me ao celibato sacerdotal, que se fêz seguir de tão deploráveis consequências para mim. Se houvésse­mos organizado o ninho doméstico, não me faltaria a confiança em Deus, teria sido talvez pai generoso e meus filhos ser-me-iam sagrada coroa de respon­sabilidade e alegria. Zenóbia, minha mãe, era a lente milagrosa através da qual eu sabia ver o mundo noutro prisma. Em companhia dela, teria adquirido o dom de ver as oportunidades divinas que me cercaram o coração. Todavia, quando a sorte ma arrebatou, esvaiu-se-me todo o sonho de construção equilibrada na Terra... Dominado pela dor de perdê-la, acreditei que a Religião me ofe­receria refúgio inexpugnável contra as tentações. Que terrível engano! Sitiado num mundo de con­venções que me constringia o espírito e distancia­do da sublime influência da única mulher que, a meu ver, me poderia salvar, despenhei-me, de abis­mo em abismo, convertendo-me num demônio insa­ciado, a destruir e perverter... Teria ela compre­endido, algum dia, como fui infeliz? Apiedar-se-ia de minha dor cheia de miséria e ruínas?

Ernestina afagou-lhe a cabeça, maternalmente, e exclamou:

— Cala-te, meu filho! Não te presumas o úni­co sacrificado. Se houvesses aceitado a Vontade Divina, o presente ser-nos-ia menos doloroso. Não te estribes em fatos humanos, naturais e necessá­rios, para justificar os desvarios que te precipita­ram nas sombras fatais! Zenóbia foi sempre ver­dadeiro anjo entre nós. Não comentes com mágoa acontecimentos que se foram, que lhe custaram uma existência inteira, de renúncia santificante pelos pais, pelo esposo, pelos filhos e por nós!

— Entretanto — atalhou ele —, tínhamos su­blime compromisso, desde a infância, e a nossa primeira mocidade foi um paraíso de promessas mútuas...

O carinho materno, todavia, não o deixou ter­minar. Colocando-lhe o indicador sobre os lábios, num gesto compassivo de mãe, Ernestina acentuou:

— Ouve, Domênico! quem teria sido a maior vitima? o homem jovem e forte, que se recolheu livremente à organização religiosa a facultar-lhe mil processos diferentes na prática do bem, ou a pobre menina forçada pelas circunstâncias da luta terrestre a desposar um viúvo, rodeado de filhinhos aos quais deveria dedicar-se na categoria de mãe? Buscaste voluntAriamente a ordenação sacerdotal, enquanto Zenóbia, constrangida por situações an­gustiosas, aceitou um caminho de abnegação con­trário aos sonhos de sua juventude. Absolutamente entregue às tuas próprias criações individualistas, não foste fiel aos princípios esposados, ao passo que Zenóbia perseverou no sacrifício e na fé viva até ao fim, embora esmagada ao peso das diárias humilhações ao seu ideal de mulher. Erraste para satisfazer a ti mesmo, incapaz de acalmar as pai­xões inferiores que te ardiam no peito, enquanto nossa venerável amiga aceitava, humilde, as cir­cunstâncias que lhe atormentaram o ser, anos seguidos, em benefício de todos nós. Pondera, pois, Domênico! Qual teria sido a verdadeira vítima? Poderemos comparar a abnegação com a insen­satez?

Percebia-se que a elevada orientadora se liga­va aos dois, através dos fios de doloroso romance que não nos era dado conhecer. Domênico escutou compungidamente as observações, calou-se longo tempo, internado talvez no plano de longínquas recordações e concluiu, tristemente:

— É verdade!...

— Compete-nos, agora — falou Ernestina, com brandura —, avançar para alcançá-la.

Nesse instante, embora discretamente, Zenóbia começou a chorar, contemplando-lhe o rosto, debru­çada sobre ele e, certo, em obediência ao vigoroso desejo da diretora da Casa Transitória, Domênico sentiu que as gotas quentes de pranto lhe caíam na face melancólica. Fixou os olhos maternais com expressão indagadora, e, reconhecendo que seme­lhantes lágrimas não tinham aí sua origem, per­guntou, angustiado:

— Oh! minha mãe, quem estará chorando so­bre mim?

A benfeitora carinhosa, cujo olhar descorti­nava todas as particularidades da cena comovente, respondeu sob forte emoção:

— Os anjos choram de júbilo nas regiões ce­lestes, quando um coração sofredor se levanta do abismo...

O ex-sacerdote meditou longos momentos, dan­do-nos a impressão de grande alívio.

Compreendendo a oportunidade feliz, Ernestina convidou-o:

— Vamos, filho. Movido pela Misericórdia Divina, o relógio do tempo fêz soar para teu espírito a hora abençoada da redenção. A porta do res­gate abre-se de novo à tua alma oprimida. Que o Céu nos abençoe!

— Irei contigo, mãe, aonde quiseres — res­pondeu o infortunado, sem amargura.

A venturosa mãe endereçou-nos expressivo olhar de agradecimento, enlaçou-o nos braços, como se o fizesse a uma criança enferma, e partiu, su­portando o valioso fardo, em direção à Crosta Pla­netária, a desafiar, jubilosa e feliz, as sombras densas...

Novamente a sós, reparei que a Irmã Zenóbia se mantinha transfigurada, ditosa. Enxugou as lá­grimas, revelando nos olhos alegrias desconhecidas. Estendeu-nos a destra, em sinal de gratidão e con­tentamento. E contemplando, talvez, a paisagem do futuro, demorou-se em meditação, na qual, cer­tamente, enviava seu hino interior de reconheci­mento ao Altíssimo.

Em seguida, fitou-nos, tranquila, e falou:

— Irmãos, que o Senhor lhes recompense a colaboração fraternal, repartindo com todos a feli­cidade que me atingiu. Graças a Ele e aos dedi­cados amigos, acabo de vencer uma grande batalha na guerra do amor contra o ódio, da luz contra as trevas e do bem contra o mal, em que me en­contro empenhada, desde muitos anos.

Logo após, atendendo ao plano de trabalho organizado pela sábia orientadora, nos reuníamos aos diversos auxiliares que se detinham a distância, a fim de nos comunicarmos com os filhos da igno­rância e do infortúnio, temporários habitantes do abismo.


8

Treva e sofrimento

Completa a comissão de serviço de que Zenõbia se fazia acompanhar, pusemo-nos em marcha, abei­rando-nos do vale de treva e sofrimento.

A sombra tornava-se, de novo, muito densa e não se conseguia divisar o recôncavo. Frases co­movedoras, porém, subiam até nós. Dolorosos ais, blasfêmias, imprecações. Guardava a ideia de que vastíssimo agrupamento de infelizes se rebolcava no solo, em baixo. Os impropérios infundiam re­ceio; contudo, os gemidos ecoavam-me angustio­samente nalma. Certo, os demais companheiros experimentavam análogas emoções, porque a Irmã Zenóbia tomou a palavra, esclarecendo:

— Os padecimentos que sentimos não se veri­ficam à revelia da Proteção Divina. IncansáveiS trabalhadores da verdade e do bem visitam segui­damente estes sítios, convocando os prisioneiros da rebeldia à necessária renovação espiritual; no en­tanto, retraem-se eles, revoltados e endurecidos no mal. Lamentam-se, suplicam e provocam compai­xão. Raramente alguns deles nos ouvem o apelo. As vezes, intentamos impor-lhes o bem. Entretan­to, quando retirados compulsoriamente do vale te­nebroso, acusam-nos de violentadores e ingratos, fugindo ao nosso contacto e influenciação.

Embora o triste conteúdo da notificação, Ze­nóbia no-la fornecia, inflamada no espírito de serviço, a julgar pelo bom ânimo que transparecia de seus gestos e palavras.

— A negação deles — continuou a orientadora — não é motivo para qualquer negação de nossa parte. Lembremo-nos de que o esforço da Natureza converte o carvão em diamante... Trabalhemos em benefício de todos os necessitados, procurando, para o nosso espirito, o divino dom de refletir os Supremos Desígnios. Façam-se as obras da vida, não como queremos, mas como o Senhor determine. Grande é a beneficência do Pai para conosco. Re­partamo-la em serviço de fraternidade e esclareci­mento, na harmonia comum.

Em seguida, dez cooperadores, obedecendo-lhe as ordens, acenderam focos de intensa luz.

Contemplamos, então, sensibilizados e surpre­sos, monstruoso quadro vivo. Vasta legião de sofredores cobria o fundo, um pouco abaixo de nossos pés. A rampa que nos separava não era íngreme, mas compacto e enorme o lamaçal.

Em face da claridade brusca, muitas vozes su­plicaram socorro, em frases angustiosas que nos cortavam a alma. Outras, porém, faziam-se ouvir, diferentes: vociferavam blasfêmias, ironias, conde­nações.

Recomendou Zenóbia, por necessário ao êxito de nossos trabalhos, nos congregássemos todos em grupo exclusivo, de modo a infundir respeito e te­mor nas perigosas entidades que ali se misturavam aos infelizes, acrescentando:

— Os adeptos da revolta e do desespero en­contram-se igualmente aqui, compelindo-nos a se­vera atividade defensiva. São pobres desequilibrados que tentam induzir todas as situações à desarmonia em que vivem.

Em seguida, solicitou ao padre Hipólito diri­gisse apelo geral, em nome do Senhor, às vítimas do infortúnio, para que considerassem a necessi­dade da transformação íntima.

O ex-sacerdote abriu pequeno manual evangé­lico que carregava consigo e leu, na relação do Apóstolo Lucas, a parábola do homem rico que se vestia de púrpura, em regalada existência, enquan­to o mendigo chaguento lhe batia, debalde, à porta da sensibilidade. Pronunciou, alta e pausadamente, todos os versículos, desde o número dezenove ao trinta e um, no capitulo dezesseis. Logo após, en­chendo o expressivo silêncio, destacou a sentença “Lembra-te de que recebeste os teus bens em tua vida”, constante do versículo vinte e cinco, e dis­punha-se ao comentário, quando certos gritos blas­fematórios chegaram até nós, ameaçadores e sar­cásticos:

— Fora! Fora! Abaixo as mentiras do altar!

— Ataquemos de vez o padre!

— Estamos bem, somos felizes! Não pedimos auxílio algum, não precisamos de arengas!

— Temos aqui o nosso céu! Vão para os in­fernos!...

Os adversários gratuitos de nossa atuação não se limitaram ao vozerio perturbador. Bolas de subs­tância negra começaram a cair, ao nosso lado, par­tindo de vários pontos do abismo de dor.

— As redes! — exclamou Zenóbia, dirigindo-Se a alguns colaboradores — estendam as redes de defesa, isolando-nos o agrupamento.

As determinações foram cumpridas ràpidamen­te. Redes luminosas desdobraram-se à nossa fren­te, material esse especializado para o momento, em vista da sua elevada potência magnética, porque as bolas e setas, que nos eram atiradas, detinham-Se aí, paralisadas por misteriosa força.

A diretora da Casa Transitória, afeita a ocor­rências iguais àquela, fornecia-nos belo exemplo de firmeza e serenidade. Após organizar a defensiva, fêz sinal ao pregador para que falasse; e o padre Hipólito, sobrepondo-se aos ruidos e insultos, ini­ciou o comentário com empolgante acento:

- Irmãos, que vos prepareiS para a recepção da Luz Divina, é o nosso desejo fraternal! Reúnem­-se aqui várias centenas de infortunados compa­nheiros em precárias condições espirituais. De alma esfrangalhada pela dor, vencidos de aflição, supor­tando inomináveis padecimentos, entregai-vos, mui­ta vez, ao desalento, à rebeldia e ao desespero. Perturbada e desditosa, vossa mente não sabe se­não fabricar pensamentos de angústia destruidora. Alegais que as Forças Divinas vos esqueceram no vale fundo das trevas e, de negação em negação, transformai-vos, gradativa e naturalmente, em pe­rigosos gênios da sombra e do mal, personificando figuras diabólicas e assediando, indistintamente, as obras edificantes dos mensageiros do Pai. Cruéis perversões interiores modificam-vos o aspecto fisio­nômico. Não vos assemelhais às criaturas huma­nas que fostes, repletas de dons divinos, e, sim, a imagens vivas das regiões infernais, infundindo compaixão aos bons, receio e pavor aos mais ti­midos. Na lastimável posição mental a que vos conduzistes e na qual muitos de vós outros perse­verais apaixonadamente, sois tão autênticos demônios da perversidade e do crime, que nem mesmo as vergastadas da dor conseguem modificar a boca disforme. Entretanto, sois nossos irmãos mais in­felizes, aleijados do sentimento e do raciocínio, perdidos em dolorosos desertos da ignorância, não por falta de amor da Providência Celeste, mas pela própria imprevidência no descaso com que recebes­tes na Terra todas as oportunidades de ascensão à esfera superior do espírito eterno. Por mais que nos expulseis de vossas congregações de sofrimen­to, nunca escasseará, para convosco, nossa sincera comiseração. Visitaremos a paisagem sinistra dos abismos, quantas vezes se façam necessárias. Nun­ca nos cansaremos de proclamar a misericórdia ex­celsa do Pai e jamais se imobilizará nossa mão fraterna no sublime serviço da semeadura do bem e da verdade!

As palavras injuriosas que ouvíamos antes, de­sapareceram, pouco a pouco. A franqueza de Hi­pólito triunfara, O pregador falava com ardorosa eloquência e, possuido de angélicos pensamentos, todo ele irradiava luz. Ante o respeitoso silêncio que o seu verbo inflamado provocara, prosseguiu, comovendo-nos:

— Dominam-vos a inveja e o despeito, a mal­dade e o sarcasmo, quando não permaneceis ani­quilados de supremo terror. Emitis desordenadas paixões, entre coros de ironias e lágrimas... Quase todos, recebeis nosso concurso amoroso, reagindo, impenitentes. Acreditais que somos agraciados por favores indébitos, que somos prediletos dos Céus e afirmais levianamente que privilégios gratuitos nos felicitam a vida. Ó meus amigos! não vos falará, porventura, a inteligência da justiça inde­fectível que rege toda a vida? Somos, também, batalhadores a longa distância da última vitória sobre nós mesmos, encontramo-nos, igualmente, no mesmo carreiro de redenção. Trabalhamos, luta­mos, choramos e sofremos; apenas diverge de al­gum modo a nossa posição da vossa, porqüanto, nós outros, que vos dirigimos a palavra tranquila e fraterna, já iniciamos o luminoso aprendizado do reconhecimento a Deus, nosso Pai, todo poder, jus­tiça e misericórdia, agradecendo ao Cristo, o Divi­no Intermediário, o ensejo de trabalho e realização no presente. Também sentimos saudades do lar ter­restre e dos brandos elos afetivos que se movimen­tam agora, muito distantes, experimentando, como vos acontece, o vivo desejo de regressar ao passa­do, a fim de retificar os caminhos percorridos, e, quase sempre, debalde procuramos aqueles que nos testemunharam amor, com o fim de beijar-lhes as mãos e pedir-lhes esquecimento das nossas fraque­zas. Possuimos, todavia, a felicidade de compreen­der a extensão de nossos débitos e pusemo-nos, desde muito, a caminho do futuro redentor.

Penetrando a interpretação direta da parábola, Hipólito modificou o tom de voz e prosseguiu:

— Qual de nós não terá sido, na Crosta do Mundo, aquele “rico, vestido de púrpura e linho finíssimo”, do ensinamento do Mestre? Exibíamos a roupa vistosa e brilhante do “eu” egoístico, fe­rindo a observação de nossos semelhantes e vivendo o bendito ensejo de permanência nos círculos car­nais, “regalada e esplêndidamente”. Todos nós, que nos associamos nesta paisagem de dor, tivemos, em derredor, mendigos de afeto e socorro espiri­tual mostrando-nos, em vão, as chagas de suas necessidades. Chamavam-se eles familiares, paren­tes, companheiros de luta, irmãos remotos de hu­manidade... Eram filhos famintos de orientação, pais necessitados de carinho, viandantes do cami­nho evolutivo sequiosos de auxílio, que, improficuamente, se aproximavam de nós, implorando algo de reconforto e alegria. Em geral, lembrávamo-nos sempre tarde de suas feridas interiores, indiferen­tes ao menosprezo da oportunidade sublime que nos fora concedida para ministrar-lhes o bem. No jus­to instante a que se recolhiam no leito mortuário, multiplicávamos afetos e carícias, depois de haver gasto o tempo sagrado. da vida humana entre a insensibilidade e a exigência. Desejavam, os mais pobres que nós, alguma coisa das migalhas de nosso permanente banquete de conhecimentos e facilidades, freqüentavam-nos a companhia, quais crianças necessitadas de iluminação e ternura, e os próprios cães se inclinavam para eles, tomados de natural simpatia... Nós, porém, envaidecidos das próprias conquistas, encarcerados em clamoro­sa apatia, amontoávamos expressões de bem-estar, crendo-nos superiores a todas as criaturas inte­grantes do quadro de nossa passagem pela carne. Prisioneiros de nossas criações inferiores, a morte precipitou-nos no despenhadeiro purgatorial, seme­lhante ao tenebroso inferno da teologia mitológica. Envelhecida e rota a veste rica da oportunidade, ao término do curso de aprimoramento espiritual no educandário terrestre, somos, por vezes, mais pobres que o último dos miseráveis que nos batiam, confiantes, à porta do coração e para os quais po­deríamos ter sido beneméritos doadores da felicidade. Viajores, na travessia do rio sagrado da elevação, fugíamos de todos os companheiros necessitados, instituíamos serviços ativos de vigilân­cia contra os náufragos sofredores, estimávamos, acima de tudo, o bom tempo, as ilhas encantadas de prazer, a camaradagem dos mais fortes, para atingir a outra margem, humilhados e pesarosos, em terríveis necessidades do espírito, incapazes de prosseguir a caminho dos continentes divinos da redenção... Sejamos razoáveis, meus irmãos, re­conhecendo que esse inferno é construção mental em nós mesmos, O estacionamento, após esforço destrutivo, estabelece clima propício aos fantasmas de toda sorte, fantasmas que torturam a mente que os gerou, levando-a a pesadelos cruéis. Cava­mos poços abismais de padecimentos torturantes, pela intensidade do remorso de nossas misérias intimas; arquitetamos penitenciárias sombrias com a negação voluntária, ante os benefícios da Pro­vidência. Desertos calcinantes de ódio e malque­rença estendem-se aos nossos pés, seguindo-se a jornadas vazias de tristeza e desconsolo supremo. Semelhamo-nos a duendes vagabundos da inquieta­ção e do desalento, pela amargura do que fomos e pela dificuldade quase invencível na aquisição dos recursos para o que devemos vir a ser. De um lado, a falência gritante; do outro, o desafio da vida eterna. Como o rico infeliz da parábola, to­davia, sabemos que muitas de nossas vítimas de outro tempo escalaram altas posições no campo hierárquico da eternidade; que muitos daqueles mendigos de carinho da estrada humana foram con­duzidos a fontes da Maravilhosa Sabedoria e do Inesgotável Amor, e, assim, porque não impetrar­mos o concurso de suas bênçãos intercessórias? Porque não dobrarmos humildemente a cerviz, con­siderando os desvios do passado, a fim de receber­mos a sublime e indispensável cooperação do pre­sente? Sabemos, amigos, que muitos de vós outros padeceis, atormentados, a devoradora sede da água viva do Espírito imortal, que, aflitos e desanimados, neste vale de sombras, desejaríeis romper todos os obstáculos para a recepção de uma gota apenas do liquido precioso, prometido por Jesus aos seden­tos que a Ele se devotassem de boa vontade! Ah! não basta, porém, a desordenada rogativa de dor, para que o orvalho divino refresque o coração do­rido e dilacerado! Urge regenerar o vaso receptivo da alma enferma, alijando a poeira venenosa da Terra, para que permaneça puro e reconfortante o rodo do Céu! Imprescindível o sofrimento de função purificadora. Os desvarios mentais, a que nos entregamos na Crosta Planetária, são ener­gias que presentemente se manifestam com a in­tensidade das forças libertas, depois de longo re­presamento, e, daí, a intraduzível angústia da fome, da sede, da aflição e da enfermidade que muitos de vós ainda sentis, pela carência de conformação com as leis estabelecidas pelo Eterno Pai!...

Pelo silêncio do ambiente, parecia-me que o padre Hipólito era ouvido com respeitosa atenção pelas inúmeras fileiras de sofredores ali congre­gados diante de nós. Após ligeira interrupção, con­tinuou o pregador, bem inspirado:

— Nenhum de nós outros, os que apelamos para a vossa renovação, encontrou até agora a residência dos anjos. Somos companheiros em cujo coração palpita, plena, a Humanidade, com os seus defeitos e aspirações. Compreendemos, contudo, vosso tormento consumidor e trazemos a todos o convite de renúncia aos impulsos egoísticos, con­citando-vos, ainda, ao reconhecimento devido ao Senhor e à penitência pelos nossos erros voluntá­rios e criminosos do passado. Agradeçamos a Mi­sericórdia Divina e, reunidos, peçamos ao Cristo entendimento de sua vontade sublime e sábia, com a precisa força para executá-la, onde estivermos. Não roguemos, como o rico enganado da narração evangélica, qualquer vantagem para o nosso indi­vidualismo ou para o círculo pessoal de nossos interesses particulares, mas, sim, a compreensão, suficiente compreensão dos deveres que nos cabem, na atualidade menos venturosa, de acordo com as suas diretrizes salvadoras. E, cheios de confiança nova, aguardemos o porvir, em que a Terra, nossa grande mãe, nos oferecerá, generosa, outras oca­siões fecundas de aprender e resgatar, santificar e redimir.

Nesse momento, o ex-sacerdote sustou por lon­gos instantes a pregação, possibilitando-nos detido exame do quadro exterior.

Longas filas de sofredores acorriam de todos os recantos, fitando-nos à claridade das tochas, à distância de trinta metros, aproximadamente. Estendiam-se em vasta procissão de duendes silen­ciosos e tristes, parecendo guardar todas as carac­terísticas das enfermidades físicas trazidas da Cros­ta, no campo impressivo do corpo astral. Viam-se ali necessitados de todos os tipos: aleijões, feridas, misérias exibiam-se ao nosso olhar, constringindo­-nos os corações. Muitos deles, ajoelhados, talvez na suposição de que fôssemos embaixadores do Ce­leste Poder em visita ao purgatório desditoso, man­tinham-se em posição de supremo respeito, embora deixando transparecer, na face angustiada, indes­critíveis padecimentos. De olhos ansiosos, falavam sem palavras do intenso e secreto desejo de se unirem a nós; entretanto, algo lhes coibia a rea­lização. Semelhavam-se a prisioneiros, suspirando pela liberdade. Porque não corriam ao nosso en­contro? porque não se ajoelharem, junto de nós, em sinal de reconhecimento sincero a Deus? Dese­jando penetrar a causa daquela imobilidade com­pulsória, compreendi, sem maiores esclarecimentos, o que se passava. Entre a multidão compacta e nós outros, cavava-se profundo fosso, e, onde surgiam possibilidades de transposição mais fácil, reuniam-se pequenos grupos de entidades que se revelavam por sinistra expressão fisionômica. Não podia abri­gar qualquer dúvida. Aqueles rostos agressivos e duros sustentavam severa vigilância. Que faziam aí semelhantes verdugos? Permaneceriam dirigidos por potências vingadoras, com poderes transitórios na zona das trevas, ou agiriam por sua conta pró­pria, obedientes a desvairadas paixões da mente em desequilíbrio? Recordei antigas lendas do inferno esboçado na teologia católico-romana, para con­cluir que a fogueira ardente, onde Satã se com­prazia em torturar as almas, devia ser mais bela que a paisagem de lama, treva e sofrimento à nossa vista. Recolhi, porém, o fio das considerações des­necessárias ao momento, compreendendo que o mi­nuto não comportava divagações, por exigir contri­buição ativa.

Prolongando-se a pausa do pregador, uma cria­tura de rosto patibular gritou, em meio de gestos odiosos:

— Não pedimos exércitos de salvação! Fujam daqui!

Bastou isolada manifestação para que outras expressões de desagrado explodissem.

— Não desejamos redimir coisa alguma! nada devemos! Interessam-nos o culto sistemático do ódio, a revolta contra os deuses insensíveis, o mo­vimento de resistência à repugnante aristocracia espiritual!

— Morram os pregoeiros da virtude falsifi­cada! caiam os oportunistas de além-túmulo! viva o nosso movimento de destruição contra a velha ordem dos senhores e dos escravos! Depois das ruínas, edificaremos o mundo novo!

Homenzarrão hirsuto, com todas as particula­ridades dum gigante, avançou até à borda do fosso, no outro lado, fêz significativo gesto de provoca­ção e perguntou, bradando:

— Calou-se o realejo do padre?

Riu-se, diabolicamente, e continuou:

— Perdem tempo! Estão redondamente enga­nados! Também temos programa e também sabe­mos querer! Onde está o Deus que nos prometeram? Têm, porventura, o mapa do céu? Nossos ídolos agora estão quebrados. Somos filhos do desespero, tentando reorganizar a vida no deserto que nos defronta. Voltaremos, acaso, à ingenuidade primitiva, a ponto de acreditar novamente em men­tiras religiosas? Em que remota região se compras a beneficência divina que não se condói de nossas necessidades’? Declaram-se felizes e proclamam a compaixão de um pai que não conhecemos. Viram-no alguma vez?

Fria gargalhada pontilhou suas últimas pala­vras. Revelando-se sob forte impressão, o padre Hipólito respondeu:

— O conhecimento da Divindade e o roteiro celeste serão encontrados dentro de nôs mesmos. Por que audácia inominável cometeríamoS o absur­do de aguardar plena e pronta identificação da nossa natureza egressa da irracionalidade, em dias tão curtos, com a sublime plenitude de Deus? como ombrear-se o batráquio• com o Sol? Em verdade, as religiões antropomórficas da Crosta envenena­ram-nos a mente, instilando falsas concepções de Deus em nossos raciocínios. Não podemos, todavia, culpá-las em sentido absoluto, porqüanto a estag­nação espiritual caracterizava-nos a todos. Quando os discípulos se integrarem efetivamente, de cere­bro e coração renovado, no Evangelho do Mestre, será impossível a negativa interferência sacerdotal. O dogma, considerado imparcialmente, constitui de­safio e castigo simultâneos. Desafio à inteligência investigadora e construtiva, para que se dilate no mundo a noção do Universo Infinito, e castigo às mentes ociosas que renunciam levianamente ao dom de pensar e decidir por si mesmas as questões sa­gradas do destino. Em toda parte encontraremos a Sabedoria Operante e Invisível do Senhor, esten­dendo-se em todas as minúcias da Natureza. Calai, portanto, a vaidade ferida e o orgulho humilhado que vos ditam observações ingratas e criminosas! Detende-vos no santuário da consciência e não exi­gireis visões e revelações que não conseguiríeis su­portar. Tomados, pois, de compaixão pela vossa rebeldia e infortúnio, rogamos ao Senhor abençoe a esperança de quantos nos ouvem, famintos de suprema redenção, como nós, diante da grandeza inapreciável da vida eterna!

Para outro público, as palavras do ex-sacer­dote seriam vivas e convincentes, mas as entidades endurecidas e perversas, para quem foram proferi­das, mostraram-se frias e insensíveis.

Fizeram-se ouvir outras vozes, em sinistro coro:

— Basta! basta!

— Fora! Fora!...

Todavia, entre aqueles que nos seguiam aten­ciosamente o serviço, contemplamos inúmeros ros­tos angustiados, revelando o pavor que os compa­nheiros lhes causavam. Aumentara-se-lhes o nú­mero. Verifiquei, porém, que não havia ali uma só criança. Apenas adultos, jovens e velhos de todos os aspectos. Notava-se que a dissertação de Hipó­llto lhes fizera enorme bem. Muitos deles vertiam pranto copioso. Contudo, impropérios e maldições cruzavam o espaço. Os malfeitores impenitentes não nos toleravam a presença e cada qual era mais fértil nas ironias selecionadas, com o fim de des­pertar humorismo sarcástico e desprezo na desven­turada assembléia.

A princípio, impulsos de reação afloraram-me no espírito surpreso. Não seria conveniente que nos organizássemos contra semelhante malta de crimi­nosos? não seria melhor saltar o óbice visível e ar­rebatar-lhes as vítimas indefesas? A nosso favor, contávamos com a volitação fácil. E as noções de caridade avivavam-me justificado instinto de rea­ção. Perante nós, a algumas dezenas de metros, viam-se mulheres desfiguradas pela dor, velhos e moços esquálidos e abatidos. Ninguém fugia ao doloroso aspecto de supremo infortúnio. Semelha­vam-se a cadáveres em retorno inesperado à vida, depois de longa permanência no túmulo.

Pensamentos de revolta cruzavam-se-me no cérebro.

Por que razão o padre Hipólito não respondia à altura? porque não punir aqueles sicários da som­bra, que denunciavam refinada cultura intelectual e vigorosa inteligência? não possuíamos suficiente poder para a repressão necessária?

O Assistente Jerônimo, percebendo-me o peri­goso estado dalma, aproximou-se cautelosamente de mim e falou, discreto:

— André, extingue a vibração da cólera injus­ta. Ninguém auxilia por intermédio da irritação pessoal. Não assumas papel de crítico. Permane­cemos aqui, na qualidade de irmãos mais velhos no conhecimento divino, tentando socorro aos mais jo­vens, menos felizes que nós. Revistamo-nos de cal­ma e paciência. Responder a insultos descabidos éperder valioso tempo, na obra de confraternização, ante o Eterno Pai. Hipólito não pode duelar ver­balmente, nem a Irmã Zenóbia autorizaria qualquer violência a estes infortunados, sob pena de relegar­mos ao esquecimento sublime oportunidade de pra­ticar o verdadeiro bem. Modifica a emissão mental para que te não falte a cooperação construtiva e guardemos a voz, não para condenar, e, sim, para informar e edificar cristãmente.

Reajustei o campo emotivo, rogando a Jesus me conferisse forças para olvidar o “homem velho” que gritava dentro de mim.

Com a invocação ao Plano Superior, através da súplica, instantânea compreensão brotou-me na consciência.

Em verdade, como interpretar investidas de criaturas já de si mesmas tão desventuradas? Antes de tudo, necessitavam de amparo e compaixão. Não haviam recebido ainda, como acontecera a nós outros, a bênção da fé viva, da conformação aos designios da Lei Eterna, do reconhecimento das próprias necessidades interiores, por incapacidade espiritual. Blasfemavam e riam, sarcásticas. Desprezavam as dádivas da Providência. Injuriavam o Mestre. Esqueciam todas as considerações refe­rentes à ordem divina e ao respeito humano. Quem éramos nós, para convertê-las, inopinadamente, se o próprio Senhor lhes tolerava, paciente e amigo, as palavras torpes, sem represálias individuais? não lhes bastaria a limitação lamentável a que se en­tregavam? No círculo estreito do sofrimento e acoimados pelo desespero, não ultrapassavam a esfera de sensações grosseiras e intentavam inutilmente combater o bem. Verdade é que doía vê-los opri­mindo míseras entidades que se ajoelhavam, sob nosso olhar, implorando ajuda e libertação; entre­tanto, razões ponderáveis existiriam, justificando a ligação entre algozes e vítimas, razões que me es­capavam, naturalmente, na hora em curso. Modi­ficaram-se-me as apreciações do primeiro instante. Tomado de súbita piedade, notei que, ao serenarem as ironias dos maus e observando talvez que não transpúnhamos o obstáculo em serviço de liberta­ção, pintava-se, na fisionomia dos sofredores con­fessos, a mais pungente ansiedade.

Pobre velhinha, que me pareceu desassombrada na fé, examinando os terríveis fatores circunstanciais, estendeu-nos os braços esqueléticos e, na sua antiga concepção religiosa, suplicou-nos:

— Santos mensageiros de Deus, nosso Pai, dig­nai-vos retirar-nos do purgatório! Estamos tortu­rados pelo fogo dos remorsos e pelos demônios que nos cercam. Por piedade, salvai-nos!

Fortes soluços interceptavam-lhe a voz; toda­via, a venerável anciã continuou:

— Nossas faltas, mal pagas na Terra, uniram-nos aos Espíritos perversos do abismo! Somos pe­cadores necessitados da purgação, mas não nos abandoneis à nossa própria sorte! Ajudai-nos, em nome de Jesus, por quem vos suplicamos a graça da salvação! Errei muito, é verdade.. - Entretan­to, meu espírito arrependido implora proteção... Sei que não mereço o descanso do paraíso, mas, ó emissários do Céu! por quem sois, concedel-me recursos para resgatar minhas dividas. Estou pron­ta! Procurarei aqueles a quem ofendi durante a vida terrestre, a fim de humilhar-me e pedir perdão!...

De mãos postas, a fitar-nos angustiosamente, concluía:

— Não me desampareis! não me desampa­reis!...

Mudou-se de algum modo o quadro. A valo­rosa pedinte encorajou os demais companheiros de infortúnio:

— Pelos méritos de São Geraldo de Majela —gritou um infeliz, revelando sua antiga condição de católico-romano — libertai-nos daqui! Salvai-nos do torvelinho infernal! socorrei-nos, por amor de Deus!

Destacando-se umas das outras, as súplicas proferidas evidenciavam a presença de adeptos de variados credos religiosos, conhecidos na Crosta, e os espiritistas não faltavam no triste concerto. Determinada senhora, de porte respeitável, cabelos revoltos e fundas chagas no rosto, deprecou, cho­rosa:

— Espíritos do Bem, auxiliai-me! Eu conheci Bezerra de Menezes na Terra, aceitei o Espiritismo. No entanto, ai de mim! Minha crença não chegou a ser fé renovadora. Dedicava-me à con­solação, mas fugia à responsabilidade! A morte atirou-me aqui, onde tenho sofrido bastante as con­sequências do meu relaxamento espiritual! Socor­rei-me, por Jesus!

De todos os recantos soavam apelos comove­dores.

Jamais esquecerei a inflexão das palavras ou-vidas. Jovens e velhos, homens e mulheres, em deploráveis condições, prostrados a reduzida distân­cia, respeitosos e confiantes, em virtude das luzes que acendêramos dentro da noite triste, implora­vam o socorro divino, tratando-nos com extrema veneração, como se fôramos legítimos expoentes de santidade. Quando os rogos cresceram, partindo de tantas bocas, os verdugos empunharam látegos sinistros, espalhando vergastadas, quase que indis­criminadamente... A maioria dos pobres que se mantinham genuflexos debandou, em passos tão apressados quanto lhes era possível, regressando aos ângulos sombrios do vale fundo. Alguns, po­rém, suportavam os golpes, heroicamente, prosse­guindo de joelhos e contemplando-nos, ansiosos.

Indicando-nos, sarcástico, certo perseguidor vo­ciferou, estentoricamente:

— Estão vendo? são benfeitores de gravata! não se atiram à luta em favor de ninguém! Ensinam com lábios, mas, no fundo, são mensageiros do inferno, insensíveis e duros, como estátuas de pedra. Nenhum deles ousa atravessar a barreira para prestar-vos assistência e socorro!...

Seguiram-se gargalhadas tão escarnecedoras que todo o meu sentimento de repulsa humana aflorou de súbito. Onde estava que não reprimia o provocador? porque não puni-lo devidamente? Abeirava-me de pleno desequilíbrio mental, quando a Irmã Zenôbia, temendo talvez pela nossa reação, se voltou, tranqüila, e recomendou:

— Amigos, conservemo-nos em calma para o trabalho eficiente. Ninguém se conserva neste abis­mo de dor, sem razão de ser.

E possívelmente convicta da necessidade de ar­gumentação mais firme para demover-nos, acres­centou:

- Que seria do Cristianismo se Jesus aban­donasse o madeiro do testemunho, a meio caminho, a fim de entrar em pugilato com a multidão? Per­manecemos aqui em tarefa consoladora e educativa, não o esqueçamos. O serviço de punição dos cul­pados virá de mais alto.

A referência despertou-nos, de pronto, para o caráter elevado da investidura. As almas efetiva­mente superiores possuem o dom de projetar-nos o espírito em zonas sagradas da vida, reintegran­do-nos na corrente inspiracional das Forças Divi­nas que sustentam o Universo.

A hora não comportava qualquer dissertação mais longa, a respeito das obrigações que devería­mos desempenhar. Sem perda de tempo, a diretora da Casa Transitória entrou em combinação com os auxiliares que havia trazido, desenrolando ex­tenso material socorrista.

Iam as providências em meio, quando vários grupos de infelizes tentaram vencer o obstáculo, ansiosos por se reunirem a nós outros; mas os ver­dugos, agindo, solertes, golpeavam-nos cruelmente, empenhando-se em luta para precipitá-los ao fundo do fosso tenebroso, do qual fugiam as vítimas, to­madas de visível terror.

Ativa, delicada, Zenóbia determinou que fôs­sem lançadas faixas luminosas de salvação ao outro lado, no propósito de retirarmos o número possível de sofredores de tão amargurosa situação; todavia, a ordem seguiu-se de odiosa represália. Os gênios diabólicos fizeram-se mais duros. Acorreram mí­seras almas, aos magotes, buscando agarrar-se às extremidades resplandecentes, descidas na margem oposta, como bordos de acolhedora ponte de luz; no entanto, multiplicaram-se golpes e pancadas. Entidades perversas, em grande número, continham os aflitos prisioneiros, impedindo-lhes o salvamento, com manifesto recrudescimento de maldade. Nosso esforço persistiu por longos minutos, ao fim dos quais, observando que redundavam inúteis, apenas favorecendo a dilatação da agressividade dos algo­zes, a Irmã Zenóbia, mantendo-se em grande sere­nidade, determinou fôsse recolhido o material uti­lizado para os trabalhos de salvação.

As rogativas chorosas das vítimas, casavam-se as frases injuriosas dos verdugos, confrangendo-nos o coração.

Após a recomposição do material, improficua­mente utilizado, a devotada orientadora acenou para um servidor que lhe trouxe pequenino aparelho, destinado à ampliação da voz, e falou, pausada­mente, na direção do abismo:

— Irmãos em humanidade, reine conosco a Paz Divina!

Sua palavra adquirira impressionante poder de repercussão. Ecoava, longe, como se fôsse endereçada às almas que, porventura, se mantives­sem dormindo a consideráveis distâncias.

Sem qualquer demonstração de impaciência ou desagrado, continuou:

— Regozijei-vos, ó corações de boa vontade! e confiai, sobretudo, na proteção de Nosso Senhor Jesus. Dilaceram-nos vossas dores, tocam-nos, de perto, as incompreensões e sofrimentos a que vos entregastes, apartados da Lei Divina, e se não atra­vessamos o fosso negro, na tentativa suprema de salvar-vos temporariamente do mal, é que somos igualmente companheiros de luta, sem imunidades angélicas, detentoras de possibilidades limitadas no amparo aos semelhantes! Alegrai-vos, porém, e aguardai, confiantes, porque se manifestará, em vosso benefício, o fogo consumidor, nesta região menos feliz, onde tantas inteligências perversas tri­pudiam sobre os mandamentos do Pai e menos­prezam-Lhe as bênçãos de luz. Amanhã mesmo, demonstrar-se-á o Supremo Poder.

Fêz pequena pausa e prosseguiu:

— Faz mais de um lustro que a Casa Tran­sitória de Fabiano persevera nestas zonas de treva e sofrimento, convocando almas perdidas ao apro­veitamento da bendita oportunidade do recomeço, através do trabalho dignificador, em cujas bênçãos há sempre recursos de apagar as manchas do pre­térito, regenerando-se os caminhos do porvir. Há cerca de dois mil anos ensinamos o bem e a ver­dade, preparando corações para o futuro reden­tor. Se é inegável que muitos irmãos se valeram de nosso concurso humilde, aceitando o remédio para a restauração, a maioria de vós outros sempre nos fugiu à influência, desdenhando-nos o socorro, abjurando-nos a colaboração, desprezando-nos os serviços, favorecendo a discórdia e a perseguição e oferecendo-nos obstáculos de toda sorte. Entretanto, meus amigos, o pouso de Fabiano ainda se coloca ao vosso dispor, até amanhã, durante as primeiras horas.

Ante a grave inflexão daquela voz e conside­rando talvez o teor do aviso, calaram-se as bocas pervertidas e desequilibradas. Os mais perversos passaram a contemplar-nos, entre o receio e a interrogação.

Depois de curto intervalo, Zenóbia prosseguiu, fundamente emocionada:

- Não lutamos corpo a corpo com a ignorân­cia audaciosa e Infeliz, porque a delegação que o Mestre nos confiou traça-nos deveres de amor e não de porfia. Fomos designados para ministrar o bem e lamentamos que irmãos horrívelmente des­venturados nos ofereçam resistência, mergulhando-se no pântano da revolta pessoal. Não temos, porém, qualquer palavra condenatória. Os que ten­tam escapar às Leis Eternas são bastante infortu­nados por si mesmos. Amarga ser-lhes-à a colheita da triste semeadura. Gastarão longo tempo extrain­do espinhos envenenados, introduzidos por eles pró­prios ao coração. Porque combatê-los se estão ven­cidos, desde o primeiro repto à Divindade? porque torturá-los, se permanecem perseguidos pelos fan­tasmas criados pela própria rebeldia e insensatez?

O Poderoso Senhor, porém, que ama os justos e retifica os injustos, fará com que amanhã suma neste céu a tempestade renovadora. O asilo de Fabiano receberá criaturas de boa vontade, dentro das horas próximas; todavia, será inútil procurar-lhe o socorro sem modificação substancial para o bem. Sofredor algum será recolhido tão só porque implore abrigo com os lábios. Nossa casa de paz cristã é igualmente templo de trabalho cristão e a hipocrisia não lhe pode alterar o ministério santi­ficador. Nossas defesas magnéticas funcionarão rigorosas e apenas os corações sinceramente interes­sados na renovação própria, em Cristo Jesus, serão portadores de senha indispensável ao ingresso. De­balde, rogarão socorro as entidades endurecidas no crime e na indiferença.

Os algozes fixavam as vítimas com expressão odiosa.

A Irmã Zenóbia, contudo, prosseguiu, intrépi­da, dirigindo-se especialmente aos infortunados:

— Suportai os verdugos cruéis por mais algu­mas horas e valei-vos da oração para que não vos faltem energias interiores. Não temos necessidade da luta corporal, nem da defensiva destruidora e, sim, da resistência que o Divino Mestre exempli­ficou. Tolerai os inimigos gratuitos do bem, deses­perados e infelizes, que nos perseguem e maltra­tam, orando por eles, porque o Poder Renovador se manifestará, convidando, por intermédio do so­frimento, a que se arrependam e se convertam.

Em seguida, expressando otimismo e felicidade nos olhos lúcidos, a orientadora ergueu comovente súplica pelos habitantes do abismo, a qual acom­panhamos com lágrimas de emoção.

Semblantes angustiados seguiam-nos, atentos, na outra margem, enquanto os impenitentes adver­sários da luz guardavam silêncio. Entrementes, os encarcerados na dor continuaram implorando au­xílio, mas, atendendo as determinações da Irmã Zenóbia, apagamos as luzes, pondo-nos de volta.

De outras vezes, ao término dos incidentes que me surpreendiam, eu conservava uma imensidade de indagações no cérebro ágil e curioso. Agora, todavia, regressava tristemente.

A extensão da luta compungia-me o ser. Os padecimentos da ignorância, de fato, não tinham limites e todo abuso do livre-arbítrio individual encontrava punição espontânea nas leis universais. Certo, em diferentes lugares, outros abismos como aquele estariam repletos de vítimas e verdugos.

Ah! também eu guardava no vaso do coração todos os ressaibos das vicissitudes humanas! Tam­bém eu sofrera muito e havia feito sofrer! Remi­niscências vigorosas da existência carnal jaziam vivas em mim. De alma voltada em silêncio para o Cristo de Deus, meditei sobre a grandeza do seu sublime sacrifício e, pensando nos cruéis perseguidores e nos pobres perseguidos do vale escuro, per­guntava ao Senhor, na Intimidade do coração frágil e oprimido, por quem deveria eu chorar mais in­tensamente.


9

Louvor e gratidão

Embora os resultados de nossa visita ao abis­mo fôssem aparentemente mínimos, sentíamo-nos confortados e satisfeitos.

De volta, ladeando pântanos e guardando a mesma severa atitude de vigilância, ao considerar possíveis surpresas do caminho, fizemos todo o tra­jeto em profundo silêncio.

Aproximando-nos, porém, do instituto, após atravessar a zona perigosa, a Irmã Zenóbia tomou a palavra, agradecendo-nos em tom comovedor. De­pois de carinhosas expressões de reconhecimento, acentuou, jubilosa:

— Felizmente, nosso trabalho foi abençoado e profícuo. Os cooperadores novos estranharão, tal­vez, a minha afirmativa, lembrando, sem dúvida, que as faixas de salvamento voltaram vazias. No entanto, algo ocorreu de mais importante que a eventualidade de trazermos compulsoriamente conosco alguns irmãos infelizes. Refiro-me à semea­dura das verdades eternas nos corações ignorantes, à ministração da esperança aos desalentados e tris­tes. Não somos apologistas da violência, mas se­meadores do bem, e a base natural da colheita segura é a sementeira cuidadosa. Os ensinos edi­ficantes lançados ao solo do entendimento abrem horizontes novos e claros à investigação mental dos necessitados e sofredores. Muitos deles, ainda esta noite, cultivarão os princípios renovadores re­cebidos, em processo intensivo no campo interno, e amanhã, provavelmente, estarão em condições vi­bratórias adequadas à internação em nosso asilo. Mais desejável para nós é que todos caminhem, utilizando os próprios pés, para que, de futuro, em meio dos serviços naturais da regeneração, não se declarem vitimados por ações de arrastamento. Em todos os lugares encontraremos a compaixão e a justiça de Deus.

Sorriu, benevolente, e acrescentou:

— A compaixão, filha do Amor, desejará es­tender sempre o braço que salva, mas a justiça, filha da Lei, não prescinde da ação que retifica. Haverá recursos da misericórdia para as situações mais deploráveis. Entretanto, a ordem legal do Uni­verso cumprir-se-á, invariàvelmente. Em virtude, pois, da realidade, é justo que cada filho de Deus assuma responsabilidades e tome resoluções por si mesmo.

O esclarecimento era lógico e reconfortador. Desejaríamos a continuidade da argumentação; no entanto, acercávamo-nos da Casa Transitória, en­tão à nossa vista. Alcançáramos as vizinhanças do átrio e admirei-me da movimentação em torno.

Entidades numerosas iam e vinham. Quase todas penetravam a organização socorrista ou dela saiam, em grupos reduzidos. Velhos amparavam jovens que me pareciam indecisos, titubeantes. Crianças nimbadas de luz guiavam adultos de rosto sombrio, figurando-se carinhosos e pequeninos con­dutores de cegos.

O quadro era formoso e enternecedor. Possívelmente, examinando a estranlieza que se apossa­ra de mim, adiantou-se a orientadora da instituição, explicando, atenciosa:

— Nossos amigos da Crosta, parcialmente li­bertos da carne pela atuação do sono, afluem até aqui, todas as noites, trazidos por companheiros espirituais, com o fim de receberem socorros ou avisos necessários. A Casa oferece recursos aos encontros oportunos.

Não consegui disfarçar a surpresa, ante a cena maravilhosa, contemplando, embevecido, o cuida­do terno dos benfeitores desencarnados com todos aqueles que vinham dos círculos terrestres mais densos.

Atravessada a zona magnética de defesa, con­fundimo-nos com os passantes. Não longe de mim, Interessante menino, que aparentava nove a dez anos de idade, revestido de gracioso halo de luz, guiava uma senhora de passos incertos. Parecia enferma, incapaz de autocontrole. O pequeno, po­rém, segurava-lhe firmemente a destra e, após sau­dar a Irmã Zenôbia, respeitoso, exclamou para a matrona hesitante:

— Por aqui, mamãe! por aqui! venha sem medo.

Ouvindo-o, a interpelada parecia acordar num sonho bom e gritava, semi-inconsciente:

— Meu filhinho, meu filhinho! não me deixes voltar. Quero-te sempre, sempre!...

As expressões de meiguice misturavam-se a copioso pranto. Fixei-lhe os traços fisionômicos. A pobre mãe não nos enxergava. Seguia, acanha­da e insegura de si. Seus olhos, que vertiam grossas lágrimas, permaneciam presos na contemplação da criança, revelando a suprema ternura de mãe, exausta de saudade, a reencontrar o objeto de seu amor, que parecera perdido para sempre.

— Mamãe, caminhe! não desfaleça! — clama­va o rapazinho, exultando de júbilo.

— Já vou, meu filho! eu te seguirei, leva-me contigo! — tornava a palavra maternal, afogada em sublime emoção.

Meus companheiros, habituados talvez, desde muito, ao espetáculo, conversavam, descuidados, en­tre si; todavia, segui, de olhos umedecidos, a crian­ça carinhosa que amparava a sua mamãe, até que desapareceram através de uma das portas late­rais.

Não contive a surpresa que me dominava. To­cando o braço do padre Hipólito, indaguei:

— Meu amigo, com que fim seguiriam a se­nhora e o menino?

Esboçou ele significativo gesto de espanto e observou:

— Não os vi.

Falei-lhe, então, do quadro que tanto me en­ternecera, bordando meus informes de considerações afetivas.

O ex-sacerdote sorriu compassivo e acres­centou:

— Ora, André, são tantas mães e tantas crian­ças a transitarem por aqui!... Certamente, o filhinho, como tantos outros, conduz a genitora a gabinetes de auxilio.

Não tive tempo para emitir novas impressões.

Nosso grupo atingiu a porta de ingresso e dois amigos acercaram-se, solícitos. Tratava-se de Go­tuzo e outro irmão com quem eu não havia entrado em contacto pessoal.

Saudaram-nos cortesmente.

Logo após, dirigiu-se Gotuzo à diretora, infor­mando-a de que os serviços de colaboração na Cros­ta, junto dos técnicos que organizavam algumas reencarnações expiatórias, haviam sido executados satisfatoriamente.

Zenóbia agradeceu e convidou-os a partilhar das orações de louvor e gratidão ao Todo-Poderoso.

Penetramos a Sala Consagrada, onde a orien­tadora tomou conhecimento das medidas levadas a efeito em sua rápida ausência e certificou-se de que todos os abrigados haviam comparecido à reu­nião geral de preces e auxílios magnéticos, reali­zada minutos antes.

Sinais sonoros convocaram colaboradores à ação de graças.

Zenóbia, delicada e ativa, dispôs-nos em torno de vasta mesa, ao fundo da qual se erguia uma tela transparente de grandes proporções.

Admirável a comunhão da casa! Todos os di­rigentes das variadas secções em que se subdividiam as atividades do instituto, encontravam-se preSentes para a tarefa gratulatória.

A diretora informou-nos, afável, de que todas as noites se verificavam trabalhos de oração para os asilados e para o pessoal administrativo, salien­tando que, nesses últimos, se reunia em pessoa com todos os subchefes da organização que não se encontrassem inibidos por motivos de serviço. Naquela oportunidade, éramos ali trinta e cinco criaturas, presas ao doce magnetismo daquela mu­lher que tão bem sabia desempenhar a excelsa missão educativa. A cabeceira do grande móvel referido, cercado pelas poltronas confortáveis que ocupávamos em duas filas, sentou-se Zenóbia, ra­diante, mantendo-se de frente para a tela cons­tituída de tecido diáfano, semelhando tenuissima gaze. Trinta e cinco mentes, interessadas na aqui­sição de luz divina, uniam-se à dela, para as vibra­ções de reconhecimento e paz.

Gotuzo, próximo de mim, entregou-se a pro­funda meditação.

Solicitando-nos acompanhar-lhe mentalmente as palavras, a instrutora iniciou a oração comovente e sublime:

— “Senhor da Vida: nossos corações transbor­dantes de júbilo te agradecem as bênçãos de cada dia!

“Permite que nos reunamos, em teu nome, nesta noite bendita de felicidade e esperança, para manifestar-te nossa gratidão imperecível.

“Não te rogamos, Senhor, vantagens e bene­fícios para nós outros, ricos que somos de tua luz e misericórdia, mas suplicamos ao teu coração au­gusto nos sejam concedidos os dons do equilíbrio e da eqüidade, para que saibamos distribuir nossa divina herança e não dissipemos, em vão, a glória de tuas dádivas. Fortifica-nos a noção de harmo­nia para sermos cooperadores leais de teus santos desígnios.

“Erguemo-nos do abismo do passado, por tua bondade vigilante, e aqui nos encontramos para servir-te! Entretanto, Pai, vergados ao peso das inclinações humanas, por nós- cultivadas com desvarios emotivos, durante milênios, não prescindimos de tua disciplina e de tua força paternal. Dá-nos o clima sadio da libertação de nós mesmos! Magne­tizados pelas nossas recordações do pretérito, nem sempre te compreendemos a vontade soberana e criteriosa. Anula-nos o personalismo inferior para que a consciência do Universo nos esclareça o co­ração. Levanta-nos o raciocínio para mais alto entendimento; fase-nos vibrar no campo de teus Divinos Pensamentos!

“Puseste em nossa boca o verbo construtivo, encheste-nos a alma de luz e tranquilidade, a fim de colaborarmos em tua obra. Deste-nos, neste pouso de amor fraterno, companheiros dedicados ao bem, e, em torno de nossa tarefa pequenina, colocaste a multidão dos aflitos e sofredores.

“Ó Senhor! como somos felizes pela possi­bilidade de ministrar em teu nome consolações e esclarecimentos! Contudo, nós te imploramos ins­piração e roteiro, considerando as responsabilidades dos que te recebem a mordomia da salvação! En­sina-nos a agir desapaixonadamente; infunde-nos respeito pela autoridade que nos deste; ajuda-nos a desprender a mente das criações individuais, para que te sintamos mais de perto no esforço coletivo da elevação comum! E toda vez que nossos atos traduzam interferência indébita do livre arbítrio na execução de tuas leis, repreende-nos, severa-mente, para que não persistamos no desvio impensado. Somos teus filhos frágeis e confiantes! Todas as tuas resoluções, a nosso respeito, são excelentes e belas. Concede-nos, pois, bastante visão, de modo a enxergarmos nossa ventura em teus desígnios, sejam quais forem!

“Somos servos humildes de tua sabedoria glo­riosa!

“Neste celeiro de paz consoladora, recebemos, através de mil recursos diferentes, a tua presença indireta, com a qual são atendidos os que choram e padecem.

“Ó Pai Compassivo! que felicidade maior que esta, a de espalhar, com Nosso Senhor Jesus-Cristo, as tuas bênçãos redentoras e carinhosas? que es­cola mais rica, além da que se localiza nesta casa, onde aprendemos, jubilosos, a exercer o dom su­blime de dar?”

A instrutora interrompeu-se, de voz afogada na emoção com que se dirigia a Deus, e, aludindo

à realização particular que efetuara naquela noite, prosseguiu, depois de longa pausa, comovendo-nos a todos:

— “Dilatando-nos a alegria, estimulando-nos a coragem, santificando-nos a esperança, tu permites ainda, Senhor, que possamos atender ao coração interessado em lenir e confortar Espíritos queridos, que se perderam de nossa companhia no curso in­cessante do tempo!”

Nova pausa da orientadora. Em seguida, im­primindo suave entono às palavras que pronunciava, a Irmã Zenóbia concluiu:

— “De alma voltada para a tua magnanimi­dade, endereçamos-te reconhecimento sem termo!

“Sê louvado por todos os milênios dos milênios, sê glorificado por todos os seres da Criação! Teus servidores nesta casa de edificação agradecem-te as oportunidades preciosas de trabalho e esperam a continuidade de tuas bênçãos. Que a tua infinita luz seja refletida em todo o Universo Infinito! Assim seja.”

As últimas sentenças da oração inesquecível foram cunhadas em profunda emoção misturada de júbilo. Aquela prece constituía ato de louvor dos mais formosos que eu escutara, até então. Zenóbia regozijava-se pelo ensejo de serviço, pela fortuna de contribuir com alguma coisa de útil, pela ventura de repartir o bem.

Os minutos de adoração elevaram-nos. Suave luz irradiava-se de nossas frontes sincronizadas nos mesmos pensamentos.

Finda a manifestação gratulatória, a diretora recomendou-nos observação e silêncio. Não se pas­sou muito tempo e a tela, desdobrada diante de nós, como se fora instrumento de resposta ao es­forço devocional, iluminou-se de súbito, expelindo raios de brilho maravilhosamente azul, que se es­pargiram sobre a diminuta assembléia, quais mi­núsculas safiras eterizadas. Davam-me a idéia de energias divinas a caírem sobre nós, penetrando-nos o íntimo e revitalizando-nos o ser.

Transcorridos alguns minutos, Zenóbia, agradeceu, sensibilizada, interpretando o sentimento geral.

Nova quietude pairou em toda a sala. Con­tudo, após longos instantes de expectativa mais intensa, Luciana tomou a palavra e dirigiu-se àDiretora, nestes termos:

— Neste momento, vejo na tela das bênçãos respeitável ancião, cercado de luz verde-prateada. Estende-lhe a destra, abençoando-a, e me recomen­da dizer-lhe tratar-se de Bernardino.

— Ah! já sei — respondeu, contente, a ins­trutora —, é mensageiro da Casa Redentora de Fabiano. Que Jesus o recompense pelo contenta­mento que nos traz.

— Assegura o iluminado visitante — tornou a clarividente prestimosa — que as vibrações ambienciais inclinam-se, agora, para as esferas infe­riores e que não conseguirá fazer-se visível a todos, não obstante o seu desejo. Acrescenta que os amigos da instituição velam pela marcha harmo­niosa dos serviços e que a fonte da Bondade Divina suprirá sempre de paz e recursos a todos os cora­ções de boa vontade, na semeadura do bem.

Em seguida a ligeiro intervalo, que Luciana parecia aproveitar em meticulosa observação, in­formou, comovida:

— O emissário contempla-nos, silencioso, e, er­guendo os olhos para o Alto, pede para nós a luz da compreensão divina.

Vimos profusa emissão de raios brilhantes de luz verde, por intermédio de diMana substância, como nova chuva de pequeninas gotas celestes.

Terminada a exteriorização da sublime energia, portadora de bem-estar, e findos alguns minutos de novo silêncio, Luciana voltou a comunicar-se com a diretora:

— Irmã, ilumina-se a tela novamente. Desta vez, temos a visita de uma bem-aventurada celeste. Oh! sua fisionomia deslumbra! Tem no colo sober­bo ramalhete de lírios nevados a exalar inebriante perfume.

A informante não havia completado a notifica­ção e, em meio da alva claridade que se evolava da tela, sentíamos todos o aroma característico das flores mencionadas, envolvendo-nos em ondas de alegria e paz indescritíveis.

Impressionada por sua vez, Luciana prosse­guiu:

— A mensageira traja veludosa túnica, talha­da em delicado tecido semelhante a escumilha de neve, e parece em oração de agradecimento...

— Agora, fita-nos, bondosa — continuou, re­tomando a palavra —, e atira-nos as flores que traz consigo, revelando inexcedível carinho! Diz alguma coisa... Oh! sim, com permissão dos nossos Maio­res, deseja comunicar-se com o irmão Gotuzo e soli­cita-nos cooperação!

Não pude ocultar a surpresa, em face do des­dobramento dos trabalhos naquele ofício de gratidão e louvor.

A Irmã Zenóbia, naturalmente experimentada nas atividades de intercâmbio, interveio, acrescen­tando:

— Sim, Luciana, tanto quanto estiver em suas possibilidades, ceda o seu veículo de manifestação, já que o ambiente permanece pesadíssimo. Noutras circunstâncias, a providência não seria necessária, mas as substâncias densas do plano, carregado de forças negativas, incidem sobre o aparelho das bên­çãos, forçando-nos ao concurso pessoal mais direto. Estamos prontos para receber a devotada emissá­ria nesta casa de paz. Gotuzo e nós outros colo­camo-nos à disposição dela, a fim de ouvir-lhe a mensagem de amor.

A enfermeira, com a possibilidade de quem enxergava mais que nós, observou comovidamente:

— Identifica-se por Letícia, declara que desen­carnou há trinta e dois anos e assevera que foi mãe do companheiro referido.

Mais emocionada e reverente, acentuou:

— Ah! desloca-se agora da tela e vem ao nos­so encontro. Adianta-se. De suas mãos despren­dem-se raios de sublime luz. Abraça-me! Oh! como sois generosa, abnegada benfeitora!... Sim! estou pronta, cederei com prazer!...

Nesse instante, a fisionomia de Luciana trans­formou-se. Beatifico sorriso estampou-se-lhe nos lábios. De sua fronte irradiava-se formosa luz. Com

a voz altamente modificada, começou a exprimir-se

a emissária por seu intermédio:

— Irmãos, seja conosco a paz do Cordeiro Di­vino! Não desejamos perturbar a reunião que vos congrega no serviço Impessoal da verdade e do bem; todavia, com a permissão dos nossos Orien­tadores, venho ao encontro de alguém que nos émuito caro, buscando despertar-lhe a consciência para horizontes mais altos da vida.

Sorriu, benévola, e continuou:

— Relevem-nos, pois, dedicados amigos! Nos­sas experiências mais elevadas resultam da permuta incessante de valores comuns. O coração que ama em Cristo é operosa abelha que recolhe o mel de sabedoria em todas as flores de amor e trabalho. Colherei, contente, na alma fraterna desta assem­bléia de cooperadores da Vontade Divina, elementos de tolerância e compreensão e sentir-me-ei feliz se puder oferecer-lhes algo do carinho materno que mantenho no coração faminto de vida superior.

Fez reduzido intervalo entre a saudação e o objetivo de sua permanência entre nós. Em segui­da, dirigindo-se, em particular, ao colega que lhe recebia a visita, expressou-se com acentuada infle­xão de ternura:

— Gotuzo, meu filho, serei breve. Antes de adverti-lo, já roguei ao Senhor o abençoe e inspire sempre. Ouça, desapaixonadamente, a palavra de sua mãe e velha amiga. Desprenda-se das ideias antigas para compreender melhor. As concepções inferiores de nosso ““ também se cristalizam, impedindo a penetração da luz em nosso campo interno. Escute, filho meu! como pode menosprezar a santa oportunidade de elevação? como pode per­manecer em repouso, perante as necessidades pri­mordiais do espírito? O Mestre aproveita as quali­dades utilizáveis do discípulo, em determinado setor do aprendizado, adiando, por misericórdia, a me­lhoria e o aprimoramento de certas zonas obscuras da personalidade. Por vezes, o aprendiz retarda-se meses, anos, séculos... Jesus não é senhor da vio­lência e nunca impõe drásticos à obra evolutiva. É cultivador do trabalho, da esperança. Aguardará sempre, compassivo e bondoso, nossas decisões de colaborar no apostolado redentor, suportará nos­sas faltas muitas vezes; entretanto, em nosso pró­prio interesse, deveremos atentar, vigilantes, para os seus ensinamentos, com a sincera disposição de aplicá-los. Sem dúvida, não nos fulminará com raios destruidores pela nossa demora em desculpar alguém; no entanto, recomendou perdoemos setenta vezes sete vezes; naturalmente, não nos perseguirá pela nossa dificuldade em simpatizar com irmãos atualmente menos felizes que nós. Esforçou-se, contudo, para que nos amemos uns aos outros. Não virá em pessoa obrigar-nos a assumir determinada atitude evangélica, mas traçou todas as disposições necessárias ao estabelecimento de roteiros para a prática do bem. Seu esforço médico, nesta casa, é, de fato, apreciável. Companheiros dignos seguem-no com amizade e admiração. Multiplicam-se os valores que o cercam; amontoa você preciosidades e bênçãos, na parte das aquisições afetivas, po­rém... e o seu próprio destino? Seus amigos, não obstante a luz que lhes brilha no caráter santifi­cado, não podem substitui-lo nas realizações que o esperam. Suas manifestações de natureza exte­rior instruem e confortam. Seus pensamentos mais íntimos, entretanto, dilaceram-nos o coração. Como conduzirá doentes à cura, se prossegue magoado com aqueles que o feriram aparentemente? como dará lições de bom ânimo aos tristes, se se demo­ra tanto tempo na ilusão do desalento? O’ filho amado, ninguém serve à obra do Pai com a mente toldada pelo vinho amargoso das paixões! Abra o entendimento à passagem das bênçãos divinas! não guarde vermes destruidores no jardim da esperan­ça... Estragariam as mais belas flores, aniquilando a promessa dos frutos...

Interrompeu-se a mensageira, por um momento, parecendo coordenar a argumentação, e prosseguiu:

— É razoável que você demore neste asilo de amor, colaborando na cura de desequilibrados mentais, longe dos círculos mais densos. Contudo, não pretende ganhar o mais além? admite, satisfeito, o cárcere do estacionamento, malgrado o ca­ráter do trabalho edificante? não desejará liber­tar-se para libertar, efetivamente, os prisioneiros da ignorância? não demandará o plano superior para ser mais útil aos que intentam galgar a es­cada reveladora da luz imortal? Não falo a você, agora, dentro da afetuosa impertinência de mãe. Nossos laços, presentemente, em relação ao passa­do, são muito diversos. Somos, ambos, filhos do Pai Altíssimo, e creia que minha devoção por você não é menor. Não o abandonarei às inclinações menos elevadas, não obstante justificáveis na tabela das convenções puramente humanas. E, em razão disso, venho ouvi-lo sobre os seus propósitos. Você tem cooperado, espontâneo e assíduo, nas ta­refas do bem. É um trabalhador com direito a descobrir os próprios erros e a retificar o caminho que lhe compete. Ouça, porém, meu filho, e com­preenda-me: venho intercedendo, junto às autori­dades que nos regem os destinos, para que a sua consciência desperte para a divina luz. O grupo doméstico, amado e inesquecível, espera por você na preparação da felicidade porvindoura!...

As palavras pronunciadas exprimiam enorme bagagem de considerações que ficariam por dizer. Cada conceito envolvia-se em significativa onda de pensamentos, que evidenciavam, de modo indireto, os sagrados fins da visita materna.

Após longa pausa, Letícia indagou delicada-mente:

— Que responde, filho meu?

Fêz-se comovedor silêncio; percebemos que Go­tuzo chorava, entre a respiração opressa e os solu­ços mal-contidos. Ao termo de alguns instantes, replicou, humilde:

— Minha mãe! minha boa mãe! Estou pronto!...

A comunicante, cuja presença sentíamos sem ver, tornou, visívelmente emocionada:

— Rendo graças ao Senhor pela sua compre­ensão. Sim, meu filho, organizaremos todas as me­didas indispensáveis. Voltará, em breve, ao agru­pamento familiar. Prepare-se, considerando a luta imprescindível à iluminação. O instituto doméstico, legitimamente considerado, é celeiro de supremos valores educativos para quantos procurem os in­teresses divinos, acima das cogitações humanas. O lar terrestre é bendita forja de redenção. Reen­contrará as simpatias e antipatias de outro tempo, oferecendo possibilidades felizes de reajustamento emocional. Recapitule mentalmente as lições aprendidas, peça a inspiração de Jesus e disponha-se a partir, tranquilo. Não desanime diante do serviço a fazer. Somos milhões de criaturas, disputando o ensejo de santificar sentimentos. No passado, raras vezes procedíamos em obediência aos ditames da Lei. Se exteriorizávamos estima, perdíamo-nos em excessos de paixão, como perdulários do afeto; se manifestávamos atitudes de corrigenda, cedía­mos à cegueira do ódio, como cultores do exclu­sivismo feroz. É mister regressar ao curso, para conquistar o equilíbrio espiritual necessário à ele­vação.

Gotuzo, em lágrimas, não conseguia falar. A ex-genitora, todavia, deixando-nos perceber que lhe captava os mais íntimos pensamentos, acentuou, depois de mais longo interregno:

— A esposa dedicada que deixou na Crosta não poderá servir-lhe de mãe; entretanto, ser-lhe-ácarinhosa e experiente avó. Seu adversário gratui­to, pobre homem que se entregou à inveja e à ambi­ção destruidoras, receberá seus beijos infantis e com eles os eflúvios de seu perdão renovador. Que coração enganado pelos maus sentimentos não se dobrará entre as mudanças da vida? O ex-inimigo penetra, agora, no declínio das ilusões. Sua alma atravessa atualmente o pórtico que dá acesso à ve­lhice do corpo temporário. Ao invés de lembranças doces que lhe afaguem o espírito, curtirá aflitivas reminiscências. Sua presença atenuar-lhe-á os pe­sares. Enquanto as doenças do desequilíbrio lhe vergastarem a carne e as recordações penosas lhe castigarem a mente, será você o neto consolador, mensageiro de paz em forma de criança. Ajudá-lo-emos a consagrar-lhe atenção e carinho. No desen­canto do corpo cansado e na ternura infantil, o Espírito consegue sublimes realizações para a vida eterna.

Novo intervalo da visitante, que continuou, em seguida:

— Seu futuro pai, na efêmera existência hu­mana, coração particularmente amado do seu, receberá concurso amoroso e decisivo dum filho muito caro, elevando-se a nobilitante altura moral, pelo sagrado estímulo de sua companhia. Sua volta in­fundir-lhe-á mais respeito ao mundo e aos seme­lhantes. Desejará cultivar virtudes e valores, a fim de que você lhe abençoe a paternidade. Chorará com as suas dores, rir-se-á com as suas alegrias. Sentir-se-á novo homem, ao contacto de suas mãos pequeninas. Seu esforço futuro, após as realizações que vem levando a efeito, beneficiará todo o grupo familiar, em abençoada tarefa que não pôde reali­zar na condição que passou. Ó meu filho! haverá ventura maior que a de liquidar nossos débitos e partir unidos para os júbilos do cântico imortal de integração com a Divindade? Outras escolas mais belas esperam por nós, outras glórias nos felicita­rão para sempre! Sigamos para Deus!...

Nesse ponto, interrompera-se-lhe a palavra, tal­vez absorvida pela emoção profunda.

Respeitoso e humilde, Gotuzo rogou à Irmã Zenóbia lhe permitisse aproximar-se. Obtido o con­sentimento, avançou para a poltrona em que Lu­ciana traduzia a personalidade materna, e ajoelhou-se, beijando-lhe as mãos:

Letícia, bondosa, recomendou:

— Levante-se, meu filho... Sei que você me ama, intensamente. Todavia, há irmãos nossos que lhe esperam a estima e a compreensão. Não venho sozinha ao seu encontro. Enquanto me dispunha a visitá-lo, solicitei o comparecimento de alguém dos círculos mais densos, para colher a certeza de suas disposições. Para a nossa felicidade completa não basta que você me beije e admire. É indis­pensável que se aproxime fraternalmente daqueles a quem ainda não sabe amar. Alguém confabulará conosco, dentro de minutos breves. Abrir-se-ão as portas desta casa de bênçãos, em benefício de nossa congregação familiar. Espere.

Mantinha-se Gotuzo em ansiosa expectativa, em face das singulares observações.

Surpreendendo-nos a todos, poucos segundos após, duas senhoras penetraram o recinto. A que apresentava maior número de anos, revelava alta posição de orientadora, na luz que a circundava, mas a segunda mostrava a obscura condição de alma encarnada, em temporário afastamento do corpo, através do sono físico. Reconheceu Gotuzo, de longe, e, evidenciando incontestável deficiência de disciplina emotiva, estendeu-lhe os braços, des­controlada e inquieta, bradando:

— Gotuzo! Gotuzo! que felicidade, este reen­contro!

Parecendo, porém, perturbada pelo choque das lembranças relativas à diferente situação que o desprendimento do primeiro esposo lhe trouxera, acrescentava, aflita:

— Não me queira mal! ajude-me por amor de Deus! não me abandone, não me abandone!...

Dolorosos soluços rebentavam-lhe do peito.

O interpelado quedou silencioso, atendendo, talvez, à íntima angústia que o dominava, mas Letícia interveio, generosa. Erguendo-se, firme, reco­lheu a nora nos braços e tranquilizou-a:

— Venha, Marília, venha ao meu coração. Sabemos quanto tem sofrido, na silenciosa depuração espiritual. Nunca fomos surdos aos seus rogos e conhecemos, de perto, a extensão das provas amargurosas que lhe colheram a alma sensível.

A visitante da Crosta Terrestre contemplava a benfeitora, enlevada e feliz, sentindo-se na presença dum anjo bom, já que não conseguia coor­denar raciocínios para compreender o fenômeno em curso. Através da luminosidade de seu olhar, observávamos a ventura que lhe banhava o Espí­rito, jubiloso por tão belo entendimento. Depois de acariciá-la com meiguice materna, a venerável amiga dirigiu-se ao nosso companheiro, acentuando:

— Meu filho, não queria você abraçar-me e beijar-me? Acredita que a esposa terrestre mereça menos que eu? admite, ainda, que a mãe de seus filhinhos estremecidos, saudosa e devotada, tenha sido Ingrata ao seu desvelado amor? Continuará esquecido do bem para agravar o mal? A viúva, na Crosta, em muitas ocasiões, deve aceitar o se­gundo matrimônio com sacrifício necessário, por supremo respeito ao consorte que partiu. Retire dos olhos a venda do egoísmo que lhe vem inter­ceptando a visão e interprete com naturalidade as exigências da vida terrena.

Num gesto conciliador, confiou-lhe a esposa, acrescentando:

— Ajude-a para que você possa ser ajudado. Não recuse a lição, porque o futuro virá aclará-la Inteiramente.

Magnetizado, talvez, pela carinhosa advertên­cia materna, Gotuzo abriu os braços e recolheu-a, solicito, na atitude de irmão compadecido e des­velado.

Marília observava-o, em êxtase.

— Oh! que sonho bom! — exclamou, sob in­definível expressão de ventura.

E, relanceando o olhar pelo salão em luz, diri­gia-se a nós outros, comovedoramente:

— Tenho medo de minha velha habitação! ah! por favor, enviados divinos, não me deixeis voltar! nunca! nunca mais!...

Compreendendo que a nora, temporàriamente liberta do corpo, entrava num domínio vibratório prejudicial à organização psíquica, em virtude dos deveres que lhe cabiam na esfera carnal, Letícia considerou, retomando-a a si:

— Ouça, filha: é preciso que você não se de­tenha por mais tempo. Não pode permanecer entre nós, antes que os Eternos Desígnios se manifestem nesse sentido. Volte, porém, ao lar distante, con­vencida de nossa afeição sem mácula. Nossa tran­quilidade seguir-lhe-á os dias terrenos. Não lhe faltará cooperação. Se não pode acompanhar o esposo querido, pela inoportunidade de semelhante desejo, alegre-se e confie no Poder Divino, pois Go­tuzo irá ao seu encontro. Em breve, Marília, seus beijos orvalharão de amor e ventura um rosto pe­quenino, que sintetizará, para as suas esperanças de avó, verdadeiro mundo de felicidade redentora.

Emocionada pela alegria, interrogou a pobre alma:

— Gotuzo perdoou-me?

— Ele nunca sofreu ofensa alguma de seu coração dedicado — adiantou-se Letícia, bondosa —, e lembrar-se-á sempre, com desvelo e ternura, da companheira fiel que lhe amparou os filhinhos ama­dos e lhe honrou o nome, entre renúncias e sacri­fícios ignorados.

— Oh! oh! que felicidade! — repetia a inter-locutora, afogada em pranto de júbilo e reconhecimento.

Afagando a fronte do filho, que também cho­rava sob forte emoção, Letícia rogava-lhe:

— Diga-lhe, meu filho, quanto a amamos! Tranqüilize-lhe a alma seneível e afetuosa!

Tal como uma criança vencida, nosso irmão assegurou:

— Marília, nunca resgatarei minha dívida para com seu devotamento. Regresse, confiante, enquan­to preparo minha própria volta. Brevemente, com o auxílio de Deus e de nossa abençoada mãe, esta­remos, de novo, reunidos na Terra! Peça energias para mim, em suas orações de serva incompreen­dida. Está você em vias de terminar dolorosa pro­va de resgate, ao passo que vou recomeçá-la. Sou eu, portanto, agora, quem suplica auxilio e prote­ção... Espere-me! não desfaleça! Aprenderemos a refundir sentimentos, purificar laços afetivos, san­tificar impulsos e, sobretudo, abençoaremos quem nos feriu aparentemente, amparando suposto inimi­go, a fim de que nos convertamos em sinceros irmãos uns dos outros...

Ambos choravam enternecedoramente.

Em seguida, Letícia restituiu a nora aos braços amigos da orientadora que a reconduziu de volta ao corpo físico, no mesmo silêncio dentro do qual se mantivera até então.

A ex-genitora de Gotuzo recomendou-lhe que retomasse o primitivo lugar e, recompondo o am­biente, solicitou õ concurso de Zenóbia para a fu­tura realização filial.

A Diretora da Casa, rememorando talvez o esforço que levara a efeito naquela mesma noite, em benefício dum coração que lhe era particular-mente amado, acusava funda emoção.

— Gotuzo conta nesta instituição com amigos que lhe são infinitamente reconhecidos — falou Zenóbia, sensibilizada. É companheiro a quem de­vemos muito. Realizaremos, de bom grado, tudo quanto esteja ao nosso alcance para que a expe­riência nova lhe seja portadora de luzes e bênçãos. A felicidade dele, em outro setor, minha irmã, será igualmente a felicidade desta casa. Segui-lo-emos na recapitulação terrestre, atenciosos e vigilantes, não por obséquio, mas em obediência ao preito de gratidão de que somos devedores, pelos vários anos em que cooperou conosco, devotada e assiduamente.

Letícia agradeceu e partiu, deixando-nos pre­ciosos eflúvios de paz e encantamento.

Outro iluminado mentor da organização socor­rista, identificado por Luciana, então reintegrada na própria personalidade, ditou-nos, por ela, algu­mas palavras de estimulo, elevadas e santas, ende­reçando-nos copiosa chuva de raios luminosos atra­vés da tela das bênçãos, recomendando a Zenóbia que encerrasse os serviços da prece, na paz do Senhor.

A diretora pronunciou enternecida oração de reconhecimento e júbilo, encerrando a tarefa.

Abraçando-nos, esclarecidos e satisfeitos pelo êxito da hora, vimos que a Irmã Zenóbia encami­nhou-se para Gotuzo, enlaçando-o maternalmente:

— Oh! minha venerável irmã! — disse ele, enternecido — como é grande o prêmio da Misericórdia Divina!... Não mereço tanto! Auxilie-me a agradecer a Deus!...

— Regozijemo-nos, Gotuzo! — respondeu a in­terlocutora — e louvemos o Pai que tanto nos engrandece o esforço obscuro e pequenino! O agra­ciado de hoje não foi apenas você. Também eu aumentei, de muito, meus grandes débitos para com o Altíssimo!...

De voz quase embargada pela comoção, con­cluiu:

— Também eu recebi divina concessão nesta grande noite!


10

Fogo purificador

Na manhã imediata, a administração da Casa Transitória achava-se de posse do roteiro a seguir.

Os cronômetros acusavam seis horas; no en­tanto, as sombras densas e monótonas dominavam a região.

O instituto recebia o concurso de vários ser­vidores de outras organizações socorristas da mes­ma natureza, enquanto a Irmã Zenóbia se mantinha absorvida pelos quefazeres imperiosos do momento, cercada de assessores, orientando atividades alusi­vas à mudança próxima.

Ardendo de ansiedade por obter maiores es­clarecimentos acerca dos trabalhos em execução, acompanhei o padre Hipólito, que me convidou a inspecionar os movimentos do átrio.

Segui-o gostosamente.

O serviço ativo exigia a atenção e o esforço de grande número de colaboradores.

Instado pelas minhas interrogações insistentes, o prezado companheiro informou:

— As instituições socorristas, como esta, po­dem alçar vôos de grande alcance.

E, diante da minha funda admiração, conti­nuou:

— PermanecemoS, porém, noutros domínios vi­bratórios e não podemos ter grandes surpresas. As leis da matéria densa, nossas velhas conhecidas da Crosta Planetária, não são as que presidem aos fenômenos da matéria quintessenciada que nos serve de base às manifestações também transitó­rias, O homem encarnado sômente agora começa a perceber certos problemas inerentes à energia atômica do plano grosseiro em que situa, temporariamente, a personalidade. Como você não igno­ra, as descargas elétricas do átomo etérico, em nossa esfera de ação, ensejam realizações quase inconcebíveis à mente humana. Nos círculos car­nais, para atendermos aos nossos enigmas evolu­tivos ou redentores, somos fracos prisioneiros do campo sensorial, prisioneiros que se comunicam com a Vida Infinita pelas estreitas janelas dos cinco sentidos. Não obstante o progresso da investiga­ção científica entre as criaturas terrenas, o homem comum apenas conhece, por enquanto, uma oitava parte do plano onde passa a existência. A vidência e a audição, as duas portas que lhe podem dilatar a pesquisa intelectual, permanecem excessivamente limitadas. Vejamos, por exemplo, a luz solar, que condensa as cores básicas, suscetíveis de serem assinaladas pelo nosso olho, quando na Terra. Per­cebemos, tão sômente, as cores que vão do verme­lho ao violeta, salientando-se que a maioria das pessoas nada enxerga além das últimas cinco, que são o azul, o verde, o amarelo, o laranja e o ver­melho, não registrando o índigo e o violeta. Exis­tem, porém, outras cores no espectro, correspon­dentes a vibrações para as quais o olho humano não possui capacidade de sintonia. Manifestam-se raios infravermelhos e ultravioletas que o pesqui­sador humano consegue identificar imperfeitamen­te, mas que não pode ver. Ocorre o mesmo com a potência auditiva. O ouvido da mente encarnada assinala apenas os sons que se enquadram na ta­bela de “16 vibrações sonoras a 40.000 por se­gundo”. As ondas mais lentas ou mais rápidas escapam -lhe totalmente. Há que obedecer às leis da gravitação e da estrutura das formas, na zona de matéria densa, para que a vida atinja seus di­vinos objetivos espirituais.

O ex-sacerdote fez breve parada, sorriu ama­velmente, e acentuou:

— Os movimentos de trabalho em nossa es­fera de luta, portanto, não podem ser vistos com a mesma deficiência de exame que antigamente nos presidia às observações. A matéria e as leis, em nosso plano, permanecem bastante diferenciadas, embora emanem da mesma Origem Divina.

As considerações eram sumamente interessan­tes para mim, em tal conjuntura, apesar de já não ser leigo no conhecimento da aplicação de energia elétrica, na colônia espiritual em que eu mantinha residência. As palavras de Hipólito tinham a vir­tude de aliviar-me o cérebro atulhado ainda de reminiscências viciosas da Crosta.

O estimado amigo, não obstante reconhecera leveza da substância etérica, em comparação com os fluidos grosseiros que constituem os corpos ter­renos, chamou-me a atenção para o esforço her­cúleo dos trabalhadores que articulavam diversos serviços atinentes à próxima modificação. A tarefa exigia decisão e boa vontade, assombrando o ânimo mais forte.

A utilização de recursos, ali, naquela casa de benemerência, insulada em tão escura paisagem, custava inauditos sacrifícios. A densidade da re­gião influía inequivocamente nos serviços, e os colaboradores despendiam atividades de gigantescas proporções.

Todo o pessoal disponível fora convocado ao trabalho dos motores e, quando me entregava a transportes admirativos, diante da maquinaria com­plexa, indescritível na técnica humana, a Irmã Zenóbia, através de Jerônimo, nos pediu colaboração nas defesas magnéticas, em vista da necessidade de empregar maior número de cooperadores na pre­paração ativa do vôo.

Não tínhamos tempo a perder. O próprio As­sistente que nos orientava, num belo exemplo de renúncia fraternal, tomou a dianteira, encaminhan­do-se para as faixas de defesa.

Não eram, essas, altas e verticais como as muralhas das fortificações terrestres, mas horizontalmente estendidas, formadas de substância es­cura, e emitiam forças elétricas de expulsão num raio de cinco metros de largura, aproximadamente, circulando toda a casa. Diversos focos de luz per­maneciam acesos e, em rápidos minutos, determi­nado responsável pela tarefa colocava-nos ao cor­rente do trabalho a executar.

Velaríamos pelo funcionamento regular de cer­tos aparelhos geradores de energia electromagnética, destinados à emissão constante de forças defensivas, e vigiaríamos o setor que nos fora con­fiado, de modo a sanar qualquer anormalidade.

Finalizando as explicações, assegurou o cola­borador:

— Temos determinação para receber todos os sofredores que se apresentarem renovados, facul­tando-lhes ingresso ao pátio interno. Nas últimas horas, a Irmã Zenóbia e os demais administradores da instituição ordenaram acolhimento a todos os transviados que se aproximassem de nós, com sinais legítimos de transformação moral para o bem.

Certo, Jerônimo estaria informado quanto às providências necessárias; entretanto, dentro de mi­nha ignorância, não contive a interrogação:

— Como nos asseguraremos, porém, dessa re­novação?

O prestimoso Assistente não permitiu que o interpelado me respondesse. Adiantou-se, ele mes­mo, e informou:

— Os sofredores, já modificados para o bem, apresentarão círculos luminosos característicos em torno de si mesmos, logo que, estejam onde esti­verem, concentrem suas forças mentais no esforço pela própria retificação. Os outros, os impenitentes e mentirosos sistemáticos, ainda que pronunciem comovedoras palavras, permanecerão confinados nas nuvens de treva que lhes cercam a mente endu­recida no crime.

O esclarecimento era bastante significativo; e silenciei, satisfeito, compreendendo, mais uma vez, a grandeza da purificação consciencial, em lugar dos protestos verbalísticos que se fazem através dos jogos brilhantes da palavra.

Entregávamo-nos, tranquilos, ao trabalho, quan­do indescritível choque atmosférico abalou o escuro céu. Clarão de terrível beleza varou o nevoeiro de alto a baixo, oferecendo, por um instante, as­sombroso espetáculo. Não era bem o relâmpago conhecido na Crosta, por ocasião das tempestades, porqüanto as descargas elétricas da Natureza, so­bre o chão denso, são menos precisas no que se refere à orientação técnica de ordem invisível. Ob­servava-se, ali, o contrário: a tormenta de fogo ia começar, metódica e mecanicamente.

Dominou-me angustioso pavor, mas o Assis­tente Jerônimo revelava-se tão calmo que a sua serenidade era contagiante.

— É o primeiro aviso da passagem dos desintegradores — explicou-nos, solícito.

A distância de muitos quilômetros, víamos os clarões da fogueira ateada pelas faíscas elétricas na desolada região.

Decorridos alguns minutos, chegaram novos re­forços para a guarda. Todos os servos do bem, em trânsito na Casa Transitória, foram chamados a cooperar na vigilância. O assessor que os distribuia, em variados setores do serviço, esclareceu que o instituto socorrista deveria partir dentro de quatro horas, e que, nesse tempo, em circunstâncias como aquelas, seria grande o número de Infortu­nados a procurar-lhe as portas, acentuando que não se dispunha de colaboradores em quantidade suficiente para atender às tarefas do átrio.

Antes de maiores explicações, ribombou novo trovão nas alturas. O fogo riscou em diversas di­reções, muito longe ainda, como a notificar-nos de sua aproximação gradativa. Dessa vez, todavia, recebi a nítida impressão de que a descarga elétrica não se detivera na superfície. Penetrara a substância sob nossos pés, porque espantoso rumor se fêz sentir nas profundezas.

Muitas vezes ouvira viajantes que afrontaram sinistros do mar, e todos eram unânimes em asseverar a beleza cruel das grandes tormentas no dor­so do abismo equóreo, bem como afirmavam que viajor algum, por mais incrédulo, conseguia sub­trair-se às ponderações místicas da fé, perante o turbilhão escachoante do desconhecido. Ali, no en­tanto, a emoção era mais solene, os fatores mais complexos, tal o patético do fenômeno.

Buscando talvez tranquilizar-me, o Assistente afiançou:

— O trabalho dos desintegradores etéricos, in­visíveis para nós, tal a densidade ambiente, evita o aparecimento das tempestades magnéticas que surgem, sempre, quando os resíduos inferiores de matéria mental se amontoam excessivamente no plano.

Jerônimo, experiente e bondoso, tentava sosse­gar-me o coração. Todavia, embora soubesse que não nos encontrávamos, ainda, diante da tormenta de forças caóticas desencadeadas sem rumo, con­fesso que sentia enorme dificuldade para desincum­bir-me das obrigações assumidas, em virtude da minha absoluta despreocupação do que ocorria fora do ambiente de serviço.

Desde aquele segundo estampido atordoante do firmamento, a Casa Transitória de Fabiano entrou em fase anormal de trabalho.

Servidores, embora sob impecável articulação, iam e vinham, apressados. Lá dentro, cogitava-se das derradeiras medidas, com valioso aproveitamen­to dos minutos. Aparelhos de comunicação funcio­navam em ritmo acelerado, anunciando o fato, em direções várias, avisando peregrinos da espirituali­dade superior, a fim de não se aproximarem da zona sob regime de limpeza. Trés quartas partes dos colaboradores efetivos de Zenóbia cuidavam das providências alusivas ao vôo próximo ou orga­nizavam acomodações para os necessitados que chegariam em bando.

Com efeito, justificavam-se as medidas, porque ouvíamos agora ensurdecedora algazarra de multi­dões que se aproximavam.

Sucederam-se outros ribombos ameaçadores, despejando fogo na superfície e energias revol­ventes no interior do solo que pisávamos.

Ondas maciças de sofredores aterrados come­çaram a alcançar as defesas. Era dolorosa a con­templação da turba amedrontada e expectante. Aproximamo-nos dela, quanto era possível.

— Socorro! socorro! — conclamavam infelizes em agrupamentos compactos.

Ameaçavam-nos outros:

— Fujam daqui! Atravessaremos a barreira de qualquer modo! O abrigo nos pertence! Vamos à força!

E não se limitavam às palavras. Avançavam, em massa, sobre as faixas horizontais, para recuarem, espavoridos.

— Ajudai-nos, por amor de Deus! — suplica­vam os menos atrevidos — Recolhei-nos, por cari­dade! Seremos perseguidos pelo fogo devorador!...

Entretanto, com maior ou menor intensidade, todos os sofredores exibiam escuros círculos de tre­va em torno de si.

Um deles atingiu-nos o círculo de atividade e Identifiquei-o. Não havia qualquer dúvida. Era o verdugo que me provocara tanta revolta Intima na véspera. Pastou-se de joelhos, não muito longe de nós, e implorou:

— Tende piedade de mim!... As fogueiras ameaçam-me! penitencio-me! penitencio-me! fui pe­cador, mas espero contar com o vosso auxílio para reabilitar-me!

As rogativas sensibilizariam qualquer cooperador menos avisado, mas, prevenidos quanto à senha luminosa, notávamos que o pedinte se cercava de verdadeiro manto de trevas. Dele se aproximou Luciana, quanto pôde. Fixou-o bem, fêz significativo gesto e exclamou, espantada, embora discreta:

— Oh! como é horrível a atividade mental deste pobre irmão! Vêem-se-lhe no halo vital deploráveis lembranças e propósitos destruidores. Está amedrontado, mas não convertido. Pretende alcançar a nossa margem de trabalho para se apro­priar dos benefícios divinos, sem maior considera­ção. A aura dele é demasiadamente expressiva...

Ia dizer mais alguma coisa. Bastou, entretan­to, um olhar do Assistente que nos dirigia, para que ela se calasse, humilde, reintegrando-se no tra­balho complexo que tínhamos em mão.

Dilatavam-se fogueiras enormes em direções diversas e raios fulgurantes eram metodicamente despejados do céu.

Vasta dose de paciência era despendida por to­dos nós, para conter a multidão furiosa. Impres­sionavam-nos as formas monstruosas e miseráveis a se arrastarem vestidas de sombra, quando co­meçaram a chegar entidades aureoladas de luz. Trajavam farrapos e traziam comovedores sinais de sofrimento. Dando a perceber que desejavam isolar a mente das centenas de revoltados que ali se congregavam em ativo movimento de insurrei­ção, contemplavam o Alto e cantavam hinos de reverência ao Senhor, em regozijo da própria re­novação, cânticos esses abafados pela algaravia dos rebeldes agitados. Reparava, pela expressão de quantos Iluminados se aproximavam de nós, que se esforçavam por manter o pensamento alheio às objurgatórias dos maus, temendo talvez o interesse mental pelo que emitiam, circunstância criadora de novos laços magnéticos favoráveis à dominação dos verdugos. Intentavam, por isso, alimentar o má­ximo desprendimento dos apodos que lhes eram lançados pela turba malévola e impenitente. Formavam agrupamentos de formosura singular. Su­blimes quadros de paraíso, no Inferno de atrozes padecimentos! Vinham, de mãos entrelaçadas, como a permutar energias, a fim de que se lhes aumen­tasse a força para a salvação, no minuto supremo da batalha que mantinham, talvez, desde muito antes. E esse processo de troca instintiva dos va­lores magnéticos infundia-lhes prodigiosa renovação de poder, porqüanto levitavam, sobrepondo-se ao desvairado ajuntamento. Emolduravam-lhes a fron­te belos círculos de luz, com brilho mais ou menos uniforme. Enquanto os tipos de semblante sinis­tro lhes dirigiam insultos, elas cantavam hosanas ao Cristo, entoando louvores, que, de certo, lem­bravam os júbilos dos primeiros cristãos, persegui-dos e flagelados nos circos, quando se retiravam sob os apupos de espectadores perversos.

Mas, para se acolherem ao asilo de Fabiano, necessitavam pousar rente a nós, que lhes abríamos passagem prazerosamente. Entretanto, para alcançarem o átrio da instituição, eram compeli­das à quebra da corrente de energias magnéticas recíprocas, mantendo-se de mãos separadas, e os recém-chegados, em sua maioria, desvencilhando-se, involuntariamente uns dos outros, tombavam enfra­quecidos após prolongado esforço, logo aos primei­ros passos na região interna da Casa Transitória. Semelhavam-se, assim, às aves esgotadas em labo­riosa excursão, depois de atingirem o objetivo que as fizera afrontar distâncias e tormentas.

Na qualidade de aprendiz incipiente, angustia­va-me a observação. Tudo, no entanto, fora previsto pelas autoridades administrativas do instituto.

Enfermeiros e macas, em grande número, esta­cionavam, não longe de nós, promovendo socorros imediatos.

Pequenos e admiráveis cordões de entidades, transformadas interiormente pelos dolorosos banhos de pranto santificador, chegavam agora de todos os lados. E as hordas ferozes e irônicas, rodeadas­ de trevas, multiplicavam-se também, em turbas compactas, ferindo-nos a audição com blasfêmias e injúrias contundentes. Entre os ingratos e rebe­lados, havia, contudo, criaturas que se mostravam, aflitas e, genuflexas, tocavam-nos o coração fra­terno com seus brados de socorro e amargurosas queixas, as quais, porém, não podíamos aliviar com qualquer beneficio precipitado, em virtude da pe­rigosa condição mental em que se mantinham, con­dição que lhes impunha sofrimentos reparadores.

Quase quatro horas difíceis se escoaram, exi­gindo-nos delicada atenção na tarefa. E, agora, a paisagem era mais sufocante, mais terrível... Ser­pentes de fogo desenovelavam-se dos céus e penetravam o solo, que começou a tremer sob os nossos pés. O calor asfixiava. Sentindo os elementos va­cilantes que nos ladeavam, recordei velha descrição do maremoto de Messina, em que, sob o auge do pavor, diante da Natureza perturbada, não sabiam as vitimas como se colocarem a caminho do salva­mento, porqüanto, em torno, a terra, o mar e o céu se conjugavam num ciclópico e sincrônico arra­samento.

A instituição, através de todos os administra­dores e auxiliares, operava com indescritível heroismo. Com franqueza, de minha parte aguardava, ansioso, o sinal de regresso ao interior, tal a im­pressão desagradável de que me sentia possuído. Fitas inflamadas do firmamento caíam, caíam sem­pre, em meio de formidáveis explosões, oriundas da desintegração de princípios etêricos...

Quando tudo fazia supor que não havia, nas vizinhanças, entidades em condições de serem socorridas, soou a clarinada equivalente ao toque de recolher.

Enfim! suspirei, aliviado.

Consoante instruções recebidas, abandonamos os aparelhos electromagnéticos da defensiva, em fun­cionamento indiscriminado, e afastamo-nos apres­sadamente.

Sorvedouros de chamas surgiam próximos e tamanha gritaria se verificava, em derredor, que tínhamos perante os olhos perfeita imagem de vas­ta floresta incendiada, a desalojar feras e monstros de furnas desconhecidas.

Atravessamos o pórtico do asilo seguidos de todos os companheiros que ainda se conservavam no exterior. Escutávamos, agora, o ruido leve dos motores. Lá fora, espessos bandos de entidades perversas tentavam ainda romper os obstáculos, invadindo-nos o abrigo prestes a partir. Aflitiva inquietude empolgava-me.

— Que seria de nós, se a multidão assaltasse o reduto? por outro lado, a queda contínua de faíscas chamejantes, a meu ver, punha em perigo a organização. Porque não desferir vôo imediatamente?

Era forçoso considerar que dentro do asilo reinava absoluta ordem, não obstante o ritmo apres­sado do trabalho. Acomodações simples, mas con­fortadoras, recebiam sofredores extenuados. E se­rena como sempre, como se estivesse habituada às perturbaçües externas, a irmã Zenóbia contro­lava a situação, ultimando providências.

Todas as portas de acesso fácil ao interior fo­ram hermeticamente cerradas.

Logo após, a orientadora chamou-nos à vasta sala consagrada à oração e esclareceu que a Casa Transitória, para movimentar-se com êxito, não ne­cessitava apenas de forças elétricas, baseadas em simples fenômenos da matéria diferenciada, mas, também, de nossas emissões magnético-mentais, que atuariam como reforço no impulso inicial de subida.

Zenóbia fora breve, dadas as circunstâncias do momento. Mantinhamo-nos todos em ansiosa ex­pectativa, concentrados na câmara da prece, com exceção dos companheiros que se achavam em ser­viço de assistência imediata aos recolhidos das úl­timas horas e de quantos se conservavam de sen­tinela, junto à maquinaria em funcionamento.

Funda emoção transparecia em todos os rostos. Lá fora, rugiam elementos em atrito. A diretora, após convidar-nos a transfundir vi­brações mentais, num só ato de reconhecimento ao Senhor, tomou entre as mãos lindo volume. Reconheci-o imediatamente. Era a Bíblia, nossa conhecida de tantos anos. Abrindo-a, atenciosa, a orientadora começou a ler o Salmo cento e quatro, em voz alta, pausada e solene:

“Bendize, ó minhalma, o Senhor...

Senhor, Deus meu, engrandecido

De majestade e de esplendor!

Revestido de luz, como dum manto,

Desdobraste o céu, como sagrada cortina da vida...

Construíste as sublimes câmaras das águas,

Fazes das nuvens o seu carro

E derramas teu hálito criador nas asas do vento.

Enches o Universo de mensageiros

E, por vezes, tomas por teu ministro o fogo devorador.

Fundaste-nos a Casa Terrestre em bases seguras,

Garantindo-nos a vida em séculos de séculos...

Deste-lhe abismos e píncaros por vestidura,

Santificaste as águas para que se elevem sobre os montes,

Mas, à tua voz de comando, todos os elementos se transformam,

Porque, se envias a música da manhã, envias Igualmente o trovão destruidor...

Elevam-se montanhas, descem vales

Ao lugar que lhes marcaste,

Sem que ultrapassem seus limites.

Fazes sair, Senhor, as fontes dos vales

Fertilizando os montes...

Dás de beber aos animais do campo

E sacias a sede às plantações silvestres,

Onde as aves do céu guardam seu ninho,

Louvando-te, dia e noite...

Irrigas o topo das montanhas, jorrando águas do céu,

Para que a Terra seja farta de frutos.

A leitura do Salmo ia em meio, quando o Ins­tituto, qual vigorosa embarcação aérea, principiou a elevar-se.

A devotada orientadora não lia apenas: pro­nunciava os vocábulos de louvor, compilados há tantos séculos, sentindo-os, intensamente. Oh! ma­ravilha! Tamanha era a comoção com que se diri­gia, humilde e reverente, ao Senhor do Universo, que o tórax de Zenóbia parecia misterioso foco res­plandecente.

Contagiados pela sua fé ardorosa, uníamo-nos na mesma vibração.

O oratório encheu-se de profusa claridade. Luz irradiante ganhava os compartimentos próximos e deveria espraiar-se, lá fora, no campo de sombras espessas.

Eminentemente comovido, observei que a Casa Transitória, deslocada vagarosamente de início, pu­nha-se agora em movimento rápido.

Não pude examinar particularidades do fenô­meno. A atitude recolhida de Zenóbia, em oração vigilante, compelia-nos a sustentar o mesmo tono vibratório ambiencial. Reparava, porém, que a ins­tituição socorrista subia sempre.

Decorrida quase uma hora de vôo vertical, al­cançamos uma região clara e brilhante. O sorriso do Sol trouxe-nos alívio.

Levantou-se a diretora e, seguindo-a, ergue­mo-nos, de novo, compreendendo que a fase peri­gosa passara.

Desde esse momento, a instituição movimen­tou-se em sentido horizontal, viajando sobre os elementos do plano. Das pequenas janelas, contem­plámos as coloridas auréolas do fogo devorador.

Grupos diversos puseram-se em palestra e ob­servação.

A Irmã Zenóbia, cercada de assessores, comen­tava as próximas medidas referentes aos serviços de readaptação.

Aproximando-me do Assistente Jerônimo e do padre Hipólito, que trocavam idéias entre si, pas­samos a analisar a grandeza do trabalho sob nossos olhos.

— Oh! — exclamei — se os homens encarna­dos entendessem a beleza suprema da vida! se apreendessem, antecipadamente, algo dos horizontes sublimes que se nos apresentam depois da morte do corpo, certamente valorizariam, com mais inte­resse, o tempo, a existência, o aprendizado!

Jerônimo sorriu e ponderou:

— Sim, André. Todavia, importa observar que o plano transitoriamente pisado pelos homens per­manece também repleto de mistério e encantamen­to. Para os que amam a glória de Deus, a Crosta Planetária oferece sublimes revelações, desde os estudos do infinitesimal até a contemplação dos grandes sistemas de mundos que se equilibram na imensidade!

E meditando sobre as horas inolvidáveis que passamos, desde a nossa descida ao abismo, ouvi ambos os companheiros trocarem impressões acer­ca dos problemas transcendentes da vida, como sejam o aprimoramento do Espírito e da forma, o planejamento dos destinos de orbes e seres, o governo místico da Terra em suas diferentes es­feras de atividade e evolução, os vários tipos de criaturas na Humanidade, as leis do progresso e da reencarnação, a extensão das forças condensadas no átomo etêrico, a energia dos elementos químicos no campo físico das manifestações plane­tárias, e o poder criador dos grandes mentores da sabedoria.

Escutava-os, entre o silêncio e a humildade, como aprendiz extasiado diante de mestres benévolos e experientes.

Em breve, porém, após haurir lições que ja­mais esquecerei, reparamos que a Casa Transitória descia suavemente. Regressávamos ao circulo de substância densa, embora menos pesada e menos escura. Dentro em pouco, pudemos localizar o abri­go de Fabiano em outra zona de serviço fraterno:

Extensa legião de servidores aguardava a nos­sa chegada, a fim de colaborar conosco no esforço de readaptação. Gastáramos na viagem três horas e trinta e cinco minutos.

Complexas atividades esperavam os obreiros dedicados.

Preliminarmente, porém, a Irmã Zenóbia, ra­diante, congregou-nos na jubilosa prece de agradecimento, após a qual Jerônimo nos convidou a sair. Cinco irmãos fiéis ao bem, já em vésperas de libertação da carne, aguardavam-nos o auxílio na Crosta da Terra e era necessário partir.


11

Amigos novos

Conduzindo equipamento indispensável ao tra­balho, despedimo-nos da instituição socorrista, co­locando-nos a caminho da Crosta.

Jerônimo dava-se pressa em auscultar os vários ambientes em que se verificaria nossa atuação.

Programou a tarefa com simplicidade e bom senso. Não nos distrairíamos com quaisquer investigações, além da missão prêviamente esboçada, e manter-noS-íamoS em ligação incessante com a Casa Transitória, para maior eficiência no dever a cumprir.

— Naturalmente — explicou — seremos força­dos a diversas atividades de assistência aos amigos prestes a se desfazerem dos elos corporais do plano grosseiro e a fundação de Fabiano será o nosso ponto principal de referência no trabalho. Nos Instantes de sono, conduzi-los-emos até lá, para que se habituem lentamente com a idéia de afas­tamento definitivo.

Intrigado, ao verificar tanta cautela, perguntei:

— Meu caro Assistente, todas as mortes se fazem acompanhar de missões auxiliadoras? cada criatura que parte da Crosta precisa de núcleos de amparo direto?

O amigo sorriu com indulgência, na superiori­dade legitima dos que ensinam sàbiamente, e esclareceu:

— Absolutamente. Reencarnações e desencarna­ções, de modo geral, obedecem simplesmente à lei. Há princípios biogenéticos orientando o mundo das formas vivas ao ensejo do renascimento físico, e princípios transformadores que presidem aos fenô­menos da morte, em obediência aos ciclos da ener­gia vital, em todos os setores de manifestação. Nos múltiplos círculos evolutivos, há trabalhadores para a generalidade, segundo sábios desígnios do Eterno; entretanto, assim como existem coopera­dores que se esforçam mais intensamente nas edi­ficações do progresso humano, há missões de or­dem particular para atender-lhes as necessidades.

Sentindo-me a estranheza, Jerônimo pros­seguiu:

- Não se trata de prerrogativa injustificável, nem de compensações de favor, O fato revela or­denação de serviços e aproveitamento de valores. Se determinado colaborador demonstra qualidades valiosas no curso da obra, merecerá, sem dúvida, a consideração daqueles que a superintendem, exa­minando-se a extensão do trabalho futuro. No pla­no espiritual, portanto, muito grande é o carinho que se ministra ao servidor fiel, de modo a pre­servar-lhe o devotado Espírito da ação maléfica dos elementos destruidores, com o desânimo e a ca­rência de recursos estimulantes, permitindo-se, si­multâneamente, que ele possa ir analisando a mag­nitude de nosso ministério na verdade e no bem, em face do Universo Infinito.

Ouvindo-lhe a elucidação, lembrei-me instinti­vamente dos tipos apostólicos que conhecera na experiência humana. Não haveria contradição no esclarecimento? os padres virtuosos, com os quais mantivera contacto no mundo, eram pessoas per­seguidas através de todos os flancos. Notava que criaturas de mais subido valor moral eram justa­mente as escolhidas para o assédio da calúnia constante. Sem relacionar apenas os de minha intimidade, recordava a própria história do Cristianismo.­ Não era porventura, cheia de exemplos? os temperamentos, por muitos anos fervorosos na fé, haviam sido pasto de feras. Os continuadores do Mestre foram vítimas de tremendas provações e Ele mesmo alcançara o Calvário em passadas do­lorosas...

O Assistente percebeu o jogo de raciocínios que se me desdobrava no Intimo e esclareceu:

— Suas objeções mentais não têm razão de ser. A concepção humana do socorro divino é viciada desde muitos séculos. A criatura pressupõe no amparo de Deus o protecionismo do sátrapa terrestre. Espera perpetuidade de favores materia­lísticos, injustificável destaque entre os menos felizes, dominação e louvor permanentes. Costuma aguardar serviço, estima e entendimento, mas des­denha servir, estimar e entender, quando não seja em retribuição. O subsídio celeste traduz-se por benditas oportunidades de trabalho e renovação; chega, muitas vezes, ao círculo da criatura, como se foram gloriosas feridas, magníficas dores, aben­çoados suplícios. Enquanto predominem na Crosta Planetária os impulsos de animalidade primitiva, os agraciados pela bênção divina serão, em sua maior parte, representantes do poder espiritual, os quais, de maneira alguma, ficarão isentos de tes­temunhos difíceis nas demonstrações imprescindí­veis. Não que o Senhor intente transformar discípulos em cobaias, mas pela imposição natural da obra educativa em que a lição do aluno atento e fiel deve Interessar à classe inteira. O que qua­se sempre parece sofrimento e tentação, constitui bem-aventurança transformando situações para o bem e para a felicidade eterna.

O argumento era lógico e incisivo. E porque o Assistente silenciasse, cogitando, talvez, do obje­tivo fundamental que nos conduzia ao trabalho previsto, procurei reter impulsos indagadores.

Orientados por Jerônimo, atingíramos pequena cidade do interior e dirigimo-nos a certa casa hu­milde, na qual, em breves minutos, nos apresen­tava ele determinado companheiro, em lamentáveis condições, atacado de cirrose hipertrófica.

— É Dimas! — exclamou, indicando o enfer­mo — assíduo colaborador dos nossos serviços de assistência, faz muitos anos. Veio de nossa colô­nia espiritual, há pouco mais de meio século, con­sagrando-se a tarefa obscura para melhor atender aos divinos desígnios. Desenvolveu faculdades me­diúnicas apreciáveis, colocando-se a serviço dos ne­cessitados e sofredores.

O quarto modesto permanecia cheio de radio­sos eflúvios, denunciando a incessante visitação de Espíritos iluminados.

— Nosso amigo — continuou o Assistente —fêz-se o credor feliz de inúmeras dedicações pela renúncia com que sempre se conduziu no minis­tério. Agora, é chegado para ele o tempo do des­canso construtivo.

Agradàvelmente surpreendido, reparei que o doente se apercebeu da nossa presença. Cerrou os olhos do corpo, enxergou-nos com a visão da alma e animou-se, sorrindo...

O enfraquecimento físico atingira o ápice e Dimas conseguia deixar o aparelho corporal, de certo modo, com extraordinária facilidade.

Vendo-nos, perto do leito, pôs-se em ardente rogativa, pedindo-nos colaboração. Estava exausto, dizia; no entanto, mantinha-se calmo e confiado.

Aconselhado por Jerônimo, acerquei-me do en­fermo, aplicando-lhe passes magnéticos de alívio sobre o tecido conjuntivo vascular. O abdômen con­servava-se pesado e enorme. Revelaram-se, porém, sensações imediatas de reconforto.

Seguindo-se ao meu auxílio humilde, Jerônimo dirigiu-lhe palavras de encorajamento e prometeu voltar, mais tarde.

Dimas, enlevado, endereçava ao Céu comove­dor agradecimento.

Em breves momentos, dois amigos espirituais dele vieram ter ao quarto, saudando-nos atencio­samente.

Nosso dirigente convidou-nos à retirada, ex­plicando-nos, depois que nos haviamos afastado:

— Após rápida visita aos Interessados, reuni-los-emos em sessão de esclarecimento, na Casa Transitória, de maneira a prepará-los para o fenô­meno próximo da libertação definitiva. Esperare­mos a noite para esse fim.

Da pequena cidade em que se localizava o primeiro visitado, dirigimo-nos ao Rio de Janeiro.

Utilizávamos a volitação, prazerosos e felizes.

Muito difícil descrever a sensação de leveza e alegria inerente a semelhante estado, após a per­manência na escura região de que procediamos. Fala-se, muitas vezes, entre os encarnados, na pos­sibilidade da criação do aparelho de vôo individual; todavia, ainda que se efetive a nova conquista, o peso do corpo físico, os cuidados exigidos pela má­quina de propulsão e os riscos de viagem não po­dem, de modo algum, substituir a segurança e a tranquilidade que nos enchem de tamanho bem-estar. Após a excursão normal, entre a Casa Tran­sitória de Fabiano e a Crosta Terrestre, dentro de harmoniosas condições conservávamo-nos descansa­dos e bem dispostos, operando muito fàcilmente a volitação, não obstante a densidade atmosférica.

Poucas vezes se me apresentara tão belo o espetáculo da paisagem terrena. Serras e vales, rios e arrolos marcando cidades e vilarejos, sob o espelho rutilante do Sol, falavam-me ao coração da misericórdia do Altíssimo congregando as cria­turas em ninhos floridos de trabalho pacifico.

Pensamentos de louvor ao Eterno Pai felici­tavam-me o espírito.

O casario compacto do Rio achava-se agora à nossa vista.

Não decorreu muito tempo e penetramos sin­gular residência, em bairro menos populoso, e deparamos com enternecedora paisagem doméstica.

Cavalheiro na idade madura, deitado em pe­queno divã, apresentando terríveis sinais de tuberculose adiantada, sustentava comovente palestra, dirigindo-se a dois pequeninos que aparentavam seis e oito anos, respectivamente. Formosa expressão de luz aureolava a mente do enfermo, que pousa­va nas crianças o olhar muito lúcido, falando-lhes paternalmente.

O próprio Jerônimo parou, a ouvi-lo, junto de nós, agradàvelmente surpreendido.

— Papai, mas o senhor acredita que ninguém morre? — Indagou o filhinho mais velho.

— Sim, Carlindo, ninguém desaparece para sempre e é por isso que desejo aconselhá-los, como pai que sou.

Fêz-se-lhe mais terno o olhar e continuou, ante o interesse agudo dos meninos:

— Creio que não me demorarei a partir...

— Para onde papai? — atalhou o menor.

— Para um mundo melhor que este, para lugar, meu filho, onde seu pai possa ajudá-los num corpo são, embora diferente.

As crianças, de olhos úmidos, protestaram, com carinho.

Esforçou-se o genitor, de modo visível, para dominar-se e prosseguiu:

— Não devem manifestar semelhantes receios. Já organizei todos os negócios e a mamãe traba­lhará, substituindo-me, até que vocês cresçam e se façam homens. Se eu pudesse, ficaria em casa, mas, como se arranjariam comigo, assim, impres­tável como estou? por essa razão, Deus me con­cederá outro corpo e eu estarei com vocês, sem que me vejam.

Sorriu, conformado, e ajuntou:

— Possívelmente, seremos até mais felizes... Há muitos dias pretendo falar-lhes, como agora, para que fiquem certos de meu amor constante. Logo após meu afastamento, sei de antemão que muita gente procurará desanimá-los. Dir-se-á que me afastei para nunca mais voltar, que a sepultura me aniquilou; entretanto, previno a vocês de que isso não é verdade. Viveremos sempre e amar-nos-emos uns aos outros, cada vez mais...

Reparei que o genitor doente sentia intenso de­sejo de afagar os rapazinhos, mas, controlado pela ameaça de contaminá-los, impunha imobilidade às mãos sequiosas de contacto afetivo.

Os meninos enxugavam as lágrimas discretas e, depois de longa pausa, tornou o enfermo, dirigindo-se ao filho mais velho:

— Diga-me, Carlindo, você acredita que seu pai venha a desaparecer? admite, porventura, que nosso amor e nossa união em casa, que nosso ca­rinho e entendimento sejam apenas cinza e nada?

Dominou-se o pequeno, a fim de parecer va­lente, e respondeu:

— Eu acredito, como o senhor, que a morte não existe.

— Quando eu partir — acentuou o pai amo­roso —, se vocês demonstrarem coragem e confiança em Deus, o papai estará mais corajoso e confiante e restaurará, em pouco tempo, as energias...

Houve comovente interregno, que o Assistente Jerônimo não desejou quebrar, tal a significação moral da cena cariciosa.

De olhos fixos nos rapazinhos, o extremoso genitor passou a considerar:

— Vai para três anos, instituimos nosso culto doméstico do Evangelho de Jesus. E vocês sabem hoje que nosso Mestre não morreu. Levado ao su­plício e à morte, voltou do sepulcro para orientar os amigos e continuadores. Ele, pois, nos auxiliará para que prossigamos unidos. Quando eu fizer a viagem da renovação, tenham calma e otimismo. Não chorem, nem desfaleçam. Com lágrimas não serão úteis à mamãe, que precisará naturalmente de todos nós. Deus espera que sejamos alegres na luta de cada dia para sermos filhos fiéis ao seu divino amor.

Nesse instante, apareceu a dona da casa, impondo modificações à palestra.

Valeu-se Jerônimo da circunstância para inter­vir, apresentando:

— Nosso amigo Fábio, em véspera da liber­tação, sempre colaborou com dedicação nas obras do bem. Não é médium com tarefa, na acepção vulgar do termo. E’, porém, homem equilibrado, amante da meditação e da espiritualidade superior e, em razão disso, desde a juventude tornou-se ex­celente ministrador de energias magnéticas, cola­borando conosco em relevantes serviços de assis­tência oculta. Vários mentores de nossa colônia têm em alta conta o seu concurso. Há muitos anos que se consagra ao estudo das questões transcen­dentes da alma e formou-se na academia do esfor­ço próprio, a fim de ser-nos útil. Livre de secta­rismo, infenso às paixões e amante do dever, nosso irmão Fábio instituiu, desde os primeiros dias de matrimônio, o culto doméstico da fé viva, prepa­rando a esposa, os filhinhos e outros familiares no esclarecimento dos problemas essenciais da com­preensão da vida eterna. Em virtude da perseve­rança no bem que lhe caracterizou as atitudes, sua libertação ser-lhe-á agradável e natural. Soube vi­ver bem, para bem morrer.

Aproximei-me do enfermo, perscrutando-lhe a situação orgânica.

A tuberculose minara-lhe os pulmões, impres­sionando-me as formações cavitárias e outros sin­tomas clássicos da terrível moléstia.

Fábio, a rigor, não precisava apoio para a fé que nutria. Revelava-se tranquilo e confiante, e embora o abatimento, natural em seu estado, ia en­sinando, aos seus, inesquecíveis lições de coragem e de valor moral.

— Vamo-nos! — chamou-nos o Assistente — nosso companheiro vai bem e dispensa-nos de maior colaboração.

Saímos admirados com o exemplo entrevisto. Dai a instantes, Jerônimo conduzia-nos a confortável apartamento em moderno arranha-céu de elegante bairro.

Entramos.

No leito, permanecia respeitável senhora de idade avançada, com evidentes sinais de moléstia do coração. Cercavam-na, atenciosas, duas senhoras ainda jovens, que a cumulavam de discretos cuidados.

— É nossa irmã Albina — explicou-nos o di­rigente amigo —‘ filiada a organizações superiores de nossa colônia espiritual. Tem inúmeros admi­radores em nossa esfera de ação, pelo muito que vem fazendo na esfera do Evangelho. Permanece, presentemente, em serviço nos círculos evangélicos protestantes. Fêz profissão de fé na Igreja Pres­biteriana e, viúva desde cedo, consagrou-se ao labor educativo, formando a infância e a juventude no ideal cristão.

Mais uma vez, maravilhou-me a grandeza da fraternidade legítima, imperante na vida superior. Não se buscava o rótulo das criaturas, não se co­gitava, em sentido particularista, de seus títulos religiosos ou sociais. Procurava-se o coração fiel a Deus, ministrava-se amparo reconfortador, sem qualquer preocupação exclusivista.

O Assistente Jerônimo aproximou-se dela, to­cou-lhe a fronte com a destra, e Albina, de semblante iluminado e feliz ao contacto daquela mão bondosa e acariciante, exclamou para uma das com­panheiras que a assistiam:

— Eunice, dá-me a Bíblia. Desejo meditar um pouco.

— Ó mamãe! — respondeu-lhe a filha — não será melhor descansar? Graças a Jesus, a dispnéia cedeu e a senhora parece tão bem disposta!

— A Palavra do Senhor dá contentamento ao espírito, minha filha!

Suplicante ternura acompanhou-lhe a expres­são verbal, e de tal modo que Eunice. vencida, apanhou o volume de sobre vasta cômoda e entre­gou-lho.

A respeitável anciã assumiu adequada posição para a leitura, recostou-se em travesseiros altos e, tomando os óculos, segurou, firme, o Testamento Divino. O Assistente Jerônimo ajudou-a a abri-lo, em determinado lugar, sem que a interessada lhe percebesse a cooperação. Patenteou-se-lhe o capí­tulo onze da narrativa de João Evangelista, alusivo à ressurreição de Lázaro.

A simpática velhinha leu-o, pausadamente, em alta voz. Terminando, exclamou comovidamente:

— Agradeço ao nosso Divino Mestre a alen­tadora leitura que nos mandou. Praza aos céus possamos todas nós encontrar a vida eterna, em Cristo Jesus! Assim seja.

As filhas acompanhavam-na, respeitosas.

Jerônimo recomendou-me aplicar à doente pas­ses de reconforto.

Depois da operação magnética, observei-lhe a insuficiência cardíaca, oriunda de aneurisma em condições ameaçadoras.

Dispunha-se o Assistente a conversar conosco, evidenciando as formosas qualidades da enferma. quando alguém de nosso plano assomou à porta de entrada. Era dedicada amiga que vinha velar à cabeceira. Cumprimentou-nos, bondosa, com en­cantadora simplicidade.

Jerônimo explicou-lhe nossa missão. A inter-locutora sorriu e considerou:

— Reconforta-nos a proteção de que nossa irmã é objeto. No entanto, creio que há forte pedido de prorrogação em favor dela. Todos somos de parecer que deva ser chamada à nossa esfera com urgência, para receber o prêmio a que fêz jus. Todavia, há razões ponderosas para que seja amparada convenientemente, a fim de que perma­neça com a família consanguínea, na Crosta, por mais alguns meses.

— Teremos prazer em todo serviço fraterno — acentuou Jerônimo, com afabilidade. Passare­mos por aqui diariamente, até que a tarefa ter­mine. Do que houver de novo, seremos informados.

A simpática visitante de Albina agradeceu e partimos.

Muito significativa para mim foi a ponderação ouvida, mas, reparando que o Assistente seguia atento ao trabalho que nos cabia desenvolver, abs­tive-me de qualquer Interrogação.

Varávamos, em breve, larga porta de movi­mentado hospital, defendido por grandes turmas de trabalhadores espirituais. Havia ai tanta atividade por parte dos encarnados, como por parte dos de­sencarnados. Seguindo, porém, as pegadas de nosso dirigente, não dispensávamos maior atenção aos desconhecidos.

Após atravessarmos corredores e salas, alcan­çamos grande enfermaria de amparo gratuito. A maioria dos leitos ocupados mostrava o doente e as entidades espirituais que o rodeavam, umas em caráter de assistência defensiva, outras em acir­rada perseguição.

Desdobravam-se-nos as mais diversas cenas.

Prevenindo, talvez, mais a mim que aos demais companheiros, o dirigente de nosso grupo reco­mendou:

— Não dispersem a atenção.

Decorridos alguns segundos, estávamos à fren­te dum cavalheiro maduro, rosto profusamente en­rugado e cabelos brancos, a cuja cabeceira vigiava excelente companheiro espiritual.

Apresentou-nos Jerônimo a esse último. Tra­tava-se do Irmão Bonifácio, que ajudava o doente.

Em seguida, indicou-nos o doente mergulhado em lençóis alvos e esclareceu:

— Aqui temos nosso velho Cavalcante. É virtuoso católico-romano, espírito abnegado e valo­roso nos serviços do bem ao próximo. Veio de nossa colônia, há mais de sessenta anos, e possui grande círculo de amigos pelos seus dotes morais. Sua existência, cheia de belos sacrifícios, fala ao coração. Aqui se encontra, junto dos filhos da indigência, abandonado da parentela, em virtude de suas idéias de renúncia às riquezas materiais. Mas não se acha desamparado pela Divina Misericórdia.

Findo ligeiro intervalo, adiantou-se Bonifácio, informando:

— A intervenção no duodeno foi marcada para amanhã.

Nosso dirigente, deixando perceber que já co­nhecia o caso, comunicou:

— Assisti-lo-emos no instante oportuno.

Obedecendo-lhe as recomendações, fiz aplica­ções magnéticas, detendo-me em particular sobre o aparelho digestivo, da glândula parátida ao reto, observando, além da ulceração duodenal, a infla­mação adiantada do apêndice, quase a romper-se.

Notei, todavia, que Cavalcante era absoluta­mente alheio à nossa influenciação. Nada percebia de nossa presença ali, verificando que ele, apesar das elevadas qualidades morais que lhe exornavam o caráter, não possuia bastante educação religiosa para o intercâmbio desejável.

Dos quadros que havíamos observado naquele dia, esse era, sem dúvida, o mais triste. Além das vibrações do ambiente perturbado, o operando não oferecia fácil ensejo à nossa atuação.

— Tenho tido dificuldade para mantê-lo tran­quilo — dizia Bonifácio, inclinando-se para o Assis­tente — em vista dos parentes desencarnados que o assediam de modo incessante. Não obstante os trabalhos de vigilância que garantem o estabeleci­mento, muitos deles conseguem acesso e incomo­dam-no. O pobrezinho não se preparou, convenien­temente, para libertar-se do jugo da carne e sofre muito pelos exageros da sensibilidade. E muito embora o abandono a que foi votado, tem o pen­samento afetuoso em excessiva ligação com aqueles que ama. Semelhante situação dificulta-nos sobre­maneira os esforços.

— Sim — concordou Jerônimo —, entendemos a luta. A deficiência de educação da fé, ainda mes­mo nos caracteres mais admiráveis, origina deplo­ráveis desequilíbrios da alma, em circunstâncias como esta. Conservar-nos-emos, porém, a postos, como retribuição ao devotado amigo pelos obsé­quios inúmeros que dele recebemos.

Quando nos despedimos, Bonifácio mostrou-se comovido e grato.

Transcorridos escassos minutos, ganhávamos o pórtico de notável, simples e confortável edifício, em que se asilavam numerosas criancinhas, em nome de Jesus. Tratava-se de louvável instituição espiritista-cristã, onde se sediava compacta legião de trabalhadores de nosso plano.

Bondoso ancião recebeu-nos afávelmente. Re­conheci-o, jubiloso. Achava-se, ali, Bezerra de Me­nezes. o dedicado irmão dos que sofrem.

Abraçou-nos, um a um, com espontânea jovia­lidade.

Ouviu as explicações de Jerônimo, com inte­resse, e falou, sorridente:

— Já esperávamos a comissão. Felizmente, porém, nossa querida Adelaide não dará trabalho. O ministério mediúnico, o serviço incessante em benefício dos enfermos, o amparo materno aos órfãos nesta casa de paz, aliados aos profundos des­gostos e duras pedradas que constituem abençoado ônus das missões do bem, prepararam-lhe a alma para esta hora...

Ele mesmo tomou-nos a dianteira, conduzin­do-nos a compartimento modesto, onde a médium repousava.

Na câmara solitária, não se via nenhum irmão encarnado; contudo, duas jovens cercadas de pra­teada luz permaneciam ali, acariciando-a.

Acercamo-nos da enferma, respeitosamente. Seus cabelos grisalhos semelhavam-se a formosos fios de neve. Indicando-a, falou Bezerra, contente:

— Adelaide sempre foi leal discípula do Mes­tre dos Mestres. Apesar das dificuldades, dos es­pinhos e aflições, perseverou até ao fim.

A digna senhora, após olhar demoradamente delicados ramos de rosas que lhe ornavam o quar­to, entrou em oração. De sua mente equilibrada, emanavam raios brilhantes. Não nos enxergou ao seu lado, exceção do devotado Bezerra de Menezes, a quem se unia por sublimes cadeias do coração. Ele saudou-a, afável e bondoso, endereçando-lhe palavras reconfortantes e carinhosas.

— Sei que é o termo da jornada, meu vene­rável amigo — disse a médium, em tom comovedor —, e estou pronta. — Desde muitos anos, rogo ao Divino Senhor me revele o caminho. Não desejo adotar outros desígnios que não pertençam a Ele, nosso Salvador. Todavia...

Não pôde continuar. Emoção profunda estran­gulara-lhe a voz e, logo após a reticência dolorida, copioso pranto começou a brotar-lhe dos olhos en­covados.

Bezerra acomodou-se junto dela, com intimi­dade paternal, afagou-lhe com a luminosa destra a fronte abatida e falou otimista:

— Já sei. Você pensa nos parentes, nos ami­gos, nos ôrfãozinhos e nos trabalhos que ficarão. Ó Adelaide! compreendo seu devotamento mater­no à obra de amor que lhe consumiu a vida. Entretanto, você está cansada, muito cansada e Jesus, Médico Divino de nossa alma, autorizou o seu re­pouso. Confie a Ele as penas que lhe oprimem o espírito afetuoso. Deponha o precioso fardo de suas responsabilidades em outras mãos, esvazie o cálice de sua alma, alijando amarguras e preocu­pações. Converta saudades em esperanças e desate os elos mais fortes, atendendo a ordem divina.

Adelaide pousou no benfeitor os olhos muito lúcidos, revelando-se confortada e, após breve pau­sa, Bezerra prosseguiu:

— Sua grande batalha está terminando. Você é feliz, minha amiga, muito feliz, porque seu Espí­rito virá condecorado de cicatrizes, depois de re­sistir ao mal durante muitos anos, como sentinela fiel, na fortaleza da fé viva... Ensinou aos que lhe cercaram o caminho todas as lições do bem e da verdade possíveis ao seu esforço... Entregue parentes e afeições a Jesus e medite, agora, na Humanidade, nossa abençoada e grande família. Quanto aos serviços confiados por algum tempo à sua guarda, estão fundamentalmente afetos ao Cristo, que providenciará as modificações que jul­gue oportunas e necessárias. Baste a você o júbilo do dever bem cumprido. Arregimente, pois, as suas forças e não se entristeça, porque é chegado para seu coração o prélio final... Coragem, muita co­ragem e fé!

A respeitável irmã sorriu, quase feliz.

Logo em seguida, pequena auxiliar do insti­tuto quebrou o colóquio espiritual, abrindo a porta inesperadamente e anunciando visitas.

Dona Adelaide, em face das circunstâncias, cen­tralizou a mente no círculo dos encarnados e per­deu o benfeitor de vista.

O venerando médico dos infortunados passou a entender-se com Jerônimo, acerca de vários pro­blemas que diziam respeito à nossa missão, en­quanto nos retirávamos, discretamente, proporcio­nando-lhes maior liberdade à permuta de idéias.


12

Excursão de adestramento

Nosso orientador sediara-nos a tarefa na Casa Transitória de Fabiano, deliberando, porém, que as nossas atividades na Crosta tomassem como ponto de referência o lar coletivo de Adelaide, onde, real­mente, os fatores espirituais eram mais valiosos.

— Aqui — esclarecera-nos de inicio — nos sentiremos à vontade. A organização é campo pro­pício às melhores semeaduras do espírito e ofere­ce-nos tranquilidade e segurança. Permaneceremos em comunicação contínua com o abrigo de Fabiano, para onde conduziremos os recém-desencarnados e condensaremos todas as atividades possíveis, con­cernentes aos outros amigos, nesta amorosa fun­dação.

De fato, aquele refúgio de fraternidade legí­tima era, sem dúvida, vasto celeiro de bênçãos.

Diversas entidades amigas operavam na ins­tituição, prestando assistência e cuidados. Encontrava ali um dos raros edifícios da Crosta, de tão largas proporções, sem criaturas perversas da esfera invisível.

Semelhando-se à Casa Transitória, de onde ví­nhamos, a vigilância funcionava severa.

Fôramos defrontados por vários sofredores, criaturas de bons sentimentos, que penetravam o asilo com prévia autorização.

Enquanto o Assistente se demorava em pales­tra com o dedicado Bezerra, tivemos permissão para visitar as dependências.

O padre Hipólito, Luciana e eu, em companhia de Irene, jovem colaboradora espiritual da casa, pusemo-nos em ação.

Em todos os compartimentos havia luz de nos­so plano, indicando a abundância dos pensamentos salutares e construtivos de todas as mentes que ali se entrelaçavam na mesma comunhão de ideal

Chegados à sala das reuniões populares, nossa nova amiguinha explicou:

— Esta é a região do abrigo que nos força a serviço mais árduo. Receptáculo das emanações mentais e dos pedidos silenciosos de toda gente que nos visita, em assembléias públicas, somos obri­gados, depois de cada sessão, a minuciosas ativi­dades de limpeza. Como sabem, os pensamentos exercem vigoroso contágio e faz-se imprescindível isolar os prestimosos colaboradores de nossa tare­fa, livrando-os de certos princípios destruidores ou dissolventes.

Tentando intensificar a conversação esclare­cedora, aduzi:

— Imagino a extensão dos afazeres... Há su­ficiente pessoal na cooperação?

— Sim — respondeu —, a legião dos colabo­radores não é pequena. Somos levados a servir, dia e noite, em turmas alternadas. Temos seções de assistência aos adultos e às criancinhas.

Vislumbrava ali, porém, tão grande número de trabalhadores de nosso plano que, por momentos, graves reflexões me afloraram ao cérebro. Tanta gente a contribuir, apenas no sentido de ampa­rar algumas dezenas de crianças desfavorecidas no campo material? Estabelecia paralelo entre a fun­dação de Adelaide e a Casa Transitória de Fabia­no. notando singular diferença. Lá, os rigorosos serviços de sentinela, o gesto de energia, a atenção do pessoal, verificavam-se em virtude das necessi­dades inadiáveis de certa quantidade de infelizes desencarnados, para os quais a caridade constituía lâmpada acesa, indispensável à transformação interior. Aqui, porém, via somente criaturinhas ten­ras que reclamavam de imediato, acima de qual­quer outra medida, leite e pão, primeiras letras e bons conselhos. Valeria, assim, o dispêndio de tanta energia de nossa esfera?

Mesmo assim, a delicada colaboradora, apreen­dendo-me as indagações intimas, ponderou:

— Cumpre-nos reconhecer, todavia, que esta obra não se dedica exclusivamente às necessidades do estômago e do Intelecto da infância desampa­rada. Os imperativos da evangelização preponde­ram aqui sobre os demais. Para infundir espiri­tualidade superior à mente humana urge aproveitar realizações como esta, já que é muito dificil obter espontâneo arejamento da esfera sentimental. Va­lemo-nos da casa, venerável em seus fundamentos de solidariedade cristã, como núcleo difusor de idéias salutares. A fundação é muito mais de almas que de corpos, muito mais de pensamentos eternos que de coisas transitórias. O diretor, o cooperador e o abrigado, recebendo as responsabilidades ine­rentes ao programa de Jesus, instintivamente se convertem nos instrumentos vivos da Luz de Mais Alto. Satisfazendo necessidades corporais, solucio­namos problemas espirituais. Entrelaçando deveres e dividindo-os com os nossos irmãos encarnados, no setor de assistência, conseguimos criar bases mais sólidas à semeadura das verdades imorredou­ras. Realmente, as outras escolas religiosas não se esqueceram de materializar a bondade em obras de alvenaria. A Igreja Católica Romana dispõe de institutos avançados, sob o ponto de vista mate­rial, abrigando a infância desfavorecida; entretan­to, aí, as concepções espirituais não se desenvol­vem, acanhadas que ficam nos moldes tirânicos dos dogmas obsoletos, O trabalho, pois, na maioria dos casos, circunscreve-se ao simples armazena­mento de pão efêmero. As Igrejas Protestantes possuem, por sua vez, grandes colégios e congre­gações, distribuindo valores educativos com a juventude; todavia, suas organizações se baseiam, quase sempre, mais na letra dos conceitos evangé­licos que nos conceitos evangélicos da letra...

Irene sorriu, fêz ligeiro intervalo e continuou:

— Não desejamos menosprezar os serviços ad­miráveis dos aprendizes do Evangelho nos variados campos religiosos. Todos são respeitáveis, se le­vados a efeito pelo devotamento do coração. Dese­jamos apenas destacar os valores iluminativos. Nos primórdios da obra cristã, não faltavam prestigio­sas providências da política imperial de Roma, a fim de que os famintos e esfarrapados recebessem trigo e agasalho e até mesmo preceptores seletos, filiados a famosos centros culturais de gregos e egípcios. Porém, no intuito de incentivar a obra de legítima iluminação do espírito, Simão Pedro e os companheiros de apostolado obrigaram-se a longo programa de socorro aos infortunados de toda sorte. Nem todos os seguidores do Evange­lho procediam das altas camadas sociais do Ju­daísmo, como Gamaliel, o venerando rabino cujo intelecto desenvolvido encontrou o Mestre. A maio­ria dos necessitados entraria em contacto com Jesus através da sopa humilde ou do teto acolhe­dor. Lavando leprosos, tratando loucos, assistindo órfãos e velhinhos desamparados, os continuadores do Cristo davam trabalho a si próprios, dedica­vam-se aos infelizes, esclarecendo-lhes a mente, e ofereciam lições de substancial interesse aos leigos da fé viva. Como não ignoram, estamos fazendo no Espiritismo evangélico a recapitulação do Cristianismo.

O padre Hipólito aprovou, benévolo:

— Sim, inegàvelmente; precisamos estimular a formação de serviços que libertem o raciocínio para vôos mais altos.

— Dentro de nosso esforço — prosseguiu fre­ne, com lhaneza —, o imperativo primordial con­siste na iluminação do espírito humano com vistas à eternidade. Urge, no entanto, compreender que, para a obtenção do desiderato, é imprescindível “fazer alguma coisa”. Onde todos analisam, admiram ou discutem não se levantam obras úteis para atestar a superioridade das idéias. Por isso, nos­sos Mentores da Vida Divina apreciam o servo pela dedicação que manifeste à responsabilidade. O necessitado, o beneficiário, o crente e o investi­gador virão sempre aos nossos centros de orga­nização da doutrina. E toda vez que exercitem o serviço cristão pela mediunidade ativa, pela assis­tência fraterna, pelos trabalhos de solidariedade comum, quaisquer que sejam, apresentam caracte­res mais positivos de renovação, porque a respon­sabilidade na realização do bem, voluntàriamente aceita, transforma-os em traços animados entre dois mundos — o que dá e o que recebe. Como vêem, a luz divina prevalece sobre a benemerência humana, porque esta, sem aquela, pode muitas ve­zes degenerar em personalismo devastador, com­preendendo-se, todavia, em qualquer tempo, que a fé sem obras é irmã das obras sem fé.

Continuou Irene, em sua brilhante argumen­tação, ensinando-nos, vivaz, a ciência da fraterni­dade e do entendimento construtivo. Ouvindo-a, percebi, acima de toda preocupação individualista, que a difusão da luz espiritual na Crosta Terres­tre não é ação milagrosa, mas edificação paciente e progressiva.

As casas de benemerência social, sobre as águas pesadas do pensamento humano, funcionam como grandes navios de abastecimento à coletividade faminta de luz e necessitada de princípios renovadores. Passei a ver o estômago dos pequeninos em plano secundário, porque era a claridade positiva do Evangelho que inundava agora minhalma, con­vidando-me à contemplação feliz do futuro maior.

Caíra a noite e continuávamos em companhia da estimada irmã que nos apresentava a instituição, comentando-lhe, com oportunidade e sabedoria, o salutar programa.

Observamos os serviços espirituais que se pre­paravam, ante a noite próxima.

Aqui, eram cuidadosas preceptoras desencarna­das que reuniriam as crianças nos momentos de sono físico, em ensinos benéficos; acolá, eram ben­feitores diversos a buscarem Irmãos para experiên­cias e dádivas preciosas, nos círculos de nossa mo­vimentação.

Refundi minha apreciação inicial, enxergando mais uma vez, naquele instituto, abençoada escola de espiritualidade superior, pelo ensejo de semea­dura divina que proporcionava aos missionários da luz.

Decorrido longo tempo, já noite fechada, o Assistente Jerônimo convocou-nos ao serviço.

Irene acompanhou-nos à câmara de Adelaide, onde o nosso dirigente se encontrava em conver­sação com outros amigos.

Foi breve nas determinações.

Após ouvir a nova amiguinha, que se coloca­va à nossa disposição para qualquer concurso fraterno, recomendou a Luciana e a Irene trouxessem a irmã Albina, ao passo que o padre Hipólito e eu deveríamos conduzir Dimas, Fábio e Cavalcante àquele compartimento, de onde seguiríamos para a Casa Transitória de Fabiano, em excursão de aprendizado e adestramento.

Ambos os grupos partimos em direção diversa.

Utilizando a volitação, com maestria, Hipólito Interrogou-me, bem humorado:

— Já participara você de serviço igual ao de hoje?

Confessei que não, rogando-lhe esclarecimento.

— É fácil — tornou. Os que se aproximam da desencarnação, nas moléstias prolongadas, comumente se ausentam do corpo, em ação quase mecânica. Os familiares terrestres, por sua vez, cansados de vigílias, tudo fazem por rodear os enfermos de silêncio e cuidado. Desse modo, não é difícil afastá-los para a tarefa de preparação. Geralmente, estão hesitantes, enfraquecidos. semi-in­conscientes, mas nosso auxílio magnético resolverá o problema. Conservar-nos-emos nas extremidades, segurando-lhes as mãos e, inipulsionados por nos­sa energia, volitarão conosco, sem maiores impedi­mentos.

Recebi a explicação com interesse e, em breve, penetrávamos a modesta residência de Dimas. Aliviado por injeção repousante, não encontramos di­ficuldade para subtrai-lo à atenção dos parentes.

Notando-nos a presença, sondou-nos a disposi­ção fraterna e perguntou:

— Ó meus amigos! será hoje o fim? como tenho suspirado pela libertação!...

— Não, meu caro — acentuou Hipólito, sor­rindo — é preciso tolerar mais um pouco... O descanso, porém, não tardará muito. Venha conos­co. Não temos tempo a perder.

O ex-sacerdote recomendou-me tomar a dian­teira e, de mãos dadas os três, rumamos para o Rio, em busca da moradia de Fábio.

Não se registraram obstáculos e, em reduzidos instantes, tomamo-lo à nossa conta.

O companheiro ligou-se, prazeroso, à peque­nina caravana.

Ia tomar o caminho do hospital, de modo a procurar o terceiro, quando Hipólito ponderou:

— Não convém conduzir todos de uma vez. Cavalcante permanece em grave desequilíbrio, exi­gindo cooperação mais substancial. Em vista disso, buscá-lo-emos na segunda viagem.

Lembrando-lhe os desvarios, não tive recurso senão concordar.

De regresso à câmara de Adelaide, encontra­mos os demais à nossa espera. Irene e Luciana haviam trazido Albina para os trabalhos prepara­tórios.

Sem perda de tempo, demandamos a grande casa de saúde, em busca de Cavalcante.

Hipólito adivinhara.

O doente mostrava-se muito aflito. Bonifácio, ao lado dele, cooperava devotadamente conosco, para desprendê-lo tem poràriamente do corpo opri­mido. O enfermo, no entanto, se deixara tomar por horríveis impressões de medo, dificultando os nos­sos melhores esforços.

Após trabalho ingente de magnetização do vago e em seguida à ministração de certos agentes anes­tesiantes, destinados a propiciar-lhe brando sono, retiramo-lo do corpo, que permaneceu sob os cuida­dos de Bonifácio.

Em minutos rápidos, púnhamo-nos de regresso.

Com aquiescência de Jerônimo, alguns amigos dos enfermos acompanhar-nos-iam à Casa Transi­tória. Dos cinco doentes, Adelaide e Fábio eram os únicos que revelavam consciência mais nítida da situação. Os demais titubeavam, enfraquecidos, baldos de noção clara do que ocorria.

O Assistente organizou a corrente magnética, tomando posição guiadora. Cada irmão encarnado localizava-se entre dois de nós outros, almas liber­tas do plano físico, mais experimentadas no campo espiritual. De mãos entrelaçadas, para permutar energias em assistência mútua, utilizamos intensi­vamente a volitação, ganhando alturas. Adelaide e Fábio, algo habituados ao desdobramento, assumi­ram discreta atitude de observação e silêncio. Os outros, porém, comentavam o acontecimento em al­tos brados.

— Ó grande Deus! — exclamava Albina, re­memorando passagens bíblicas — estaremos nós no glorioso carro de Elias?

— Dai-me forças, ó Pai de Misericórdia! —expressava-se Cavalcante, de alma opressa — fal­ta-me a confissão geral! Ainda não recebi o Viá­tico! Oh! não me deixeis enfrentar os vossos juízos com a consciência mergulhada no mal!...

Suas rogativas sensibilizavam-nos os corações.

Dimas, por sua vez, balbuciava exclamações ininteligíveis, entre assombrado e inquieto.

Atravessada a região estratosférica, a ionos­fera surgia-nos à vista, apresentando enorme diferença, por causa do afluxo intenso dos raios cós­micos em combinação com as emanações lunares.

Espantado, Dimas perguntou em voz alta:

— Que rio é este? Ah! tenho medo! não posso atravessá-lo, não posso, não posso!...

O impulso magnético inicial fornecido por Je­rônimo era, no entanto, excessivamente forte para sofrer solução de continuidade, ante tão débil re­sistência; e o grupo avançou, avançou sem recuos, até que, muito além, alcançamos o asilo de Fa­biano, onde a Irmã Zenóbia nos acolheu de braços carinhosos.

Congregávamo-noø todos nós os componentes da missão socorrista — os enfermos e mais seis amigos desses últimos, detentores de elevados co­nhecimentos.

Em pequena sala posta à nossa disposição, Gotuzo, por gentileza, aplicou vigorosos recursos fluídicos em nossos tutelados, que os receberam como crianças incapacitadas de imediato julgamen­to, exceção de Adelaide e Fábio, que se mantinham cônscios do fenômeno.

Em seguida, o prestimoso Jerônimo tomou a palavra e dirigiu-se a eles, comentando:

— Amigos, o concurso desta noite não se des­tina à cura do corpo grosseiro, posto agora a dis­tãncia pelas necessidades do momento. Tentamos revigorar-vos o organismo espiritual, preparando-vos o desligamento definitivo, sem alarmes de dor alucinatória. Devo confessar-vos que, retomando o vaso físico, experimentareis natural piora de vossas sensações, agravando-se-vos a tortura, porque os remédios para a alma, na presente situação, inten­sificam os males da carne. Certificai-vos, portan­to, de que as providências desta hora constituem ajuda efetiva à libertação. De retorno ao antigo ninho doméstico, encerrada esta primeira excursão de adestramento, encontrareis mais tristeza no terreno da Crosta, mais angústia nas células físicas, mais inquietude no coração, porque a vossa mente, no processo das recordações instintivas, terá fixa­do, com maior ou menor intensidade, o contentamento sublime deste instante. Preparai-vos, pois, para vir até nós; solucionai os derradeiros proble­mas terrestres e confiai na Proteção Divina!

Logo após, verificou-se breve intervalo, duran­te o qual permaneceríamos à vontade.

O Assistente fora rápido nas explicações, escla­recendo-nos que condensava os assuntos em curtas sentenças, atendendo à incapacidade mental dos beneficiários, Impotentes ainda para penetrar o sen­tido das longas dissertações. Com efeito, os com­panheiros recebiam parcialmente o alentador aviso. Eram atingidos pelo socorro magnético positivo, mas as idéias que faziam do acontecimento eram muito diversas entre si.

Cavalcante, com a expressão ingênua dum me­nino, chamou-me, em particular, indagando se es­távamos no paraíso. Sentia-se aliviado, feliz. Ale­gria enorme banhava-lhe o coração. E, contente, reconfortado, acentuava:

— Não será aqui o céu?

Não consegui fazer-lhe sentir o contrário.

Albina lembrava cenas bíblicas, em suas inter­pretações literais do texto sagrado. Depois de obser­var o nevoeiro exterior, circunspecta, perguntou a Luciana se aquela era a casa do Senhor, mencionada no capítulo oitavo do primeiro livro dos Reis, em vista da nuvem de matéria densa que cercava a paisagem.

Dentre os espiritistas, Adelaide e Fábio entre­gavam-se à reserva feliz da oração, mas Dimas, em­briagado de felicidade pelo provisório alivio, abei­rou-se, curioso, do padre Hipólito e inquiriu se a zona representava alguma dependência venturosa de Marte. O ex-sacerdote esboçou largo sorriso e respondeu, complacente:

— Não, meu amigo, isto aqui ainda é a Terra mesma. Estamos muito longe dos outros planetas...

Trocamos inteligente olhar, que traduzia bom humor. Antes de nossas considerações, talvez des­necessárias, Jerônimo interveio, acrescentando:

— O plano impressivo da mente grava as ima­gens dos preconceitos e dogmas religiosos com sin­gular consistência. A transformação compulsória, pelo decesso, reintegrará a criatura no patrimônio de suas faculdades superiores. O trabalho, porém, não pode ser brusco, sob pena de ocasionar desas­tres emocionais de graves consequências. Urge con­siderar a necessidade da medida, isto é, da gra­dação.

E, fitando-nos mais agudamente, prosseguiu:

— Há, contudo, observação valiosa a destacar. Como vemos, não é a rotulagem externa que so­corre o crente nas supremas horas evolutivas. É justamente a sementeira do esforço próprio, nos serviços da sabedoria e do amor, que frutifica, no instante oportuno, através de providências intercessórias ou de compensações espontâneas da lei que manda entregar as respostas do Céu “a cada um por suas obras”. Todo lugar do Universo, por­tanto, pode ser convertido em santuário de luz eterna, desde que a execução dos Divinos Desígnios seja a alegria de nossa própria vontade.

Finda a colheita de preciosos ensinamentos, começamos a regressar, terminando, assim, a nos­sa feliz excursão.

Devolvendo os enfermos aos leitos de origem, verificamos as impressões diferentes de cada um. Fábio demonstrava infinito conforto no campo in­timo. Cavalcante acordou, no organismo de carne, pensando em recorrer à eucaristia pela manhã, e Dimas, ao despertar, junto de nós, chamou a es­posa e afirmou em voz fraca:

— Oh! como foi maravilhoso meu sonho de agora! Vi-me à beira de rio caudaloso e brilhante, que atravessei com o auxílio de benfeitores invisíveis,­ chegando, em seguida, a grande casa, cheia de luz!

Pousou a descarnada mão na testa úmida, e exclamoU:

— Ah! como desejaria lembrar-me de tudo! Tenho a impressão de que visitei um mundo fe­liz, recebendo ensinamentos de grande significação, mas... a cabeça falha!...

A companheira tranquilizou-o, exortando-O a dormir.

Realizara-se a primeira excursão de adestra­mento com os amigos, que, dentro em breve, viriam ter conosco.

Congregados, de novo, na abençoada institui­ção de Adelaide, deliberou Jerônimo nosso retorno à Casa Transitória de Fabiano, para descansar e servir em outros setores, toda vez que a oportu­nidade de trabalho útil nos bafejasse com a sua bênção.


13

Companheiro libertado

Depois de vários preparativos, principalmente ao lado de Cavalcante, que piorara após a intervenção cirúrgica, Jerônimo articulou providências referentes à desencarnação de Dimas, cuja posição era das mais precárias.

De manhãzinha, após entender-se com a Irmã Zenóbia, quanto à localização do primeiro amigo a libertar-se dos laços físicos, o Assistente convi­dou-nos ao trabalho.

Compreendia, mais uma vez, que há tempo de morrer, como há tempo de nascer. Dimas alcan­çara o período de renovação e, por isso, seria sub­traído à forma grosseira, de modo a transformar-se para o novo aprendizado. Não fora determinado dia exato. Atingira-se o tempo próprio. Recordan­do, contudo, meu caso particular e sequioso de elu­cidações construtivas, ousei interrogar nosso orien­tador, enquanto regressávamos ao círculo carnal, pela manhã.

— Prezado Assistente — indaguei —, releve-me o desejo de saber particularidades do serviço... Poderá, todavia, informar-me se Dimas desencar­nará em ocasião adequada? Viveu ele toda a cota de tempo suscetível de ser aproveitada por seu Espírito na Crosta da Terra? completou a relação de serviços que o trouxera ao renascimento?

— Não — respondeu o interpelado, com fir­meza —, não chegou a aproveitar todo o tempo prefixado.

— Oh! — considerei, levianamente — terá sido, como fui, suicida inconsciente? Penetrei nossa colônia nessa condição e, antes de obter a graça do refúgio renovador, experimentei acerbos padecimentos.

Enunciando tal apreciação, ponderava sobre a tarefa especial de socorrê-lo. Razões fortes, de­certo, motivariam o esforço que se levava a efeito, mas a informação do orientador desconcertava-me. Se o irmão referido não completara o tempo pre­visto ao roteiro de obrigações que lhe fora tra­çado, porque tamanha consideração? Mereceria o movimento excepcional de assistência individuali­zada? que motivo impeliria a esfera superior a prestar-lhe tanta atenção?

Jerônimo compreendeu, sem dúvida, a vene­nosa preocupação que me dominava o pensamento, mas absteve-se de longas explicações, confirmando, simplesmente:

— Não, André, nosso amigo não é suicida.

Mais acertado seria silenciar raciocínios sus­peitos; entretanto, meu inveterado instinto de pesquisa intelectual era demasiado forte para que eu me dominasse.

Fixando-o, algo confundido, tornei a perguntar:

— Mas se Dimas não aproveitou todo o tempo de que dispunha, não terá também desperdiçado a oportunidade, como aconteceu a mim mesmo?

Meu interlocutor estampou no semblante leve sorriso e acentuou, compassivo:

— Não conheço seu passado, André, e acre­dito que as melhores intenções terão movido suas atividades no pretérito. A situação do amigo a que nos referimos, porém, é muito clara. Dimas não conseguiu preencher toda a cota de tempo que lhe era lícito utilizar, em virtude do ambiente de sacrifício que lhe dominou os dias, na existência a termo. Acostumado, desde a infância, à luta sem mimos, desenvolveu o corpo, entre deveres e abne­gações incessantes. Desfavorecido de qualquer vantagem material no princípio, conheceu ásperas obri­gações para ganhar a intimidade com as leituras mais simples. Entregue ao serviço rude, no verdor da mocidade, constituiu a família, pingando suor no sacrifício diário. Passou a vida em submissão a regulamentos, conquistando a subsistência com enorme despesa de energia. Mesmo assim, encon­trou recursos para dedicar-se aos que gemem e sofrem nos planos mais baixos que o dele. Rece­bendo a mediunidade, colocou-a a serviço do bem coletivo. Conviveu com os desalentados e aflitos de toda sorte. E porque seu espírito sensível encontrava prazer em ser útil e em razão dos ne­cessitados guardarem raramente a noção do equilibrio, sua existência converteu-se em refúgio de enfermos do corpo e da alma. Perdeu, quase inte­gralmente, o conforto da vida social, privou-se de estudos edificantes que lhe poderiam prodigalizar mais amplas realizações ao idealismo de homem de bem e prejudicou as células físicas, no acúmulo de serviço obrigatório e acelerado na causa do so­frimento humano. Pelas vigílias compulsórias, noi­te a dentro, atenuou-se-lhe a resistência nervosa; pela inevitável irregularidade das refeições, distan­ciou-se da saúde harmoniosa do estômago; pelas perseguições gratuitas de que foi objeto, gastou fosfato excessivamente e, pelos choques reiterados com a dor alheia, que sempre lhe repercutiu amar­gamente no coração, alojou destruidoras vibrações no fígado, criando afecções morais que o incapa­citaram para as funções regeneradoras do sangue. É verdade que não podemos louvar o trabalha­dor que perde qualquer órgão fundamental da vida fisica em atrito com as perturbações que com­panheiros encarnados criam e incentivam para si mesmos; no entanto, faz-se preciso considerar as circunstâncias em jogo. Dimas poderia receber, com naturalidade, semelhantes emissões destruti­vas, mantendo-se na serenidade intangível do le­gítimo apóstolo do Evangelho. Todavia, não se organiza de um dia para outro o anteparo psíquico contra o bombardeio dos raios perturbadores da mente alheia, como não é fácil improvisar cais se­guro ante o oceano em ressaca. Cercado de exi­géncias sentimentais, subalimnentado, maldormido, teve as reiteradas congestões hepáticas converti­das na cirrose hipertráfica, portadora da desinte­gração do corpo.

Interrompeu-se o orientador, e, como me sen­tisse fundamente envergonhado pelo paralelo que inadvertidamente estabelecera, Jerônimo acentuou:

— Segundo observamos, há existências que perdem pela extensão, ganhando, porém, pela in­tensidade. A visão imperfeita dos homens encar­nados reclama o exame acurado dos efeitos, mas a visão divina jamais despreza minuciosas investi­gações sobre as causas...

Calei-me, humilhado. O hábito de analisar pes­soas e ocorrências, unilateralmente, mais uma vez me impunha proveitosa decepção. Naturalmente, o Assistente conhecia-me a antiga posição, estaria informado de meus desvios anteriores, mas digna­va-se evitar-me desapontamento mais fundo com referências comparativas. Assomaram-me recorda­ções do passado, mais nítidas e esclarecedoras. Ine­gavelmente, conduzira minha última experiência como melhor me pareceu. Tomava refeições cal­mas e substanciosas, a horas certas; dera-me a estudos prediletos; dispunha de meu tempo com ri­gorosa independência nas decisões; cerrava a porta aos clientes antipáticos, quando me faltava dispo­sição para suportá-los; nunca molestara o fígado por sofrimentos alheios, porque era ele pequeno para conter as vibrações destruidoras de minhas próprias Irritações, ao sentir-me contrariado nos pontos de vista pessoais, e, sobretudo, aniquilara o aparelho gastrintestinal pelo excesso de comes­tíveis e bebedices aliados à sífilis a que eu mesmo dera guarida, levianamente. Havia, portanto, mui­ta diversidade entre o caso Dimas e o meu. O dedicado servidor do bem empregara as possibilidades que o Céu lhe confiara em benefício de outrem. Quanto a mim, centralizado em mim mesmo, goza­ra essas possibilidades até ao clímax, perdendo-me pela abusiva saciedade.

Jerônimo era, porém, suficientemente bom para não comentar realidades tão duras. Reafirmando a generosidade espontânea que o caracterizava, desar­ticulou minhas impressões desagradáveis, tangendo assuntos novos.

Em breve, chegávamos à residência do enfer­mo, cujo estado era gravíssimo.

Alguns amigos desencarnados velavam, atentos.

Iluminada entidade que evidenciava grande interesse pelo agonizante, acercou-se do Assistente, indagando se o decesso fora marcado para aque­le dia.

— Sim — esclareceu o interpelado —, a resis­tência orgânica terminou. Estamos autorizados a aliviá-lo, o que faremos hoje, alijando-lhe o tardo pesado de matéria densa.

A interlocutora consultou-o, ainda, sobre a oportunidade de reunir ali alguns beneficiados da missão cumprida pelo moribundo, que lhe deseja­vam testemunhar carinhoso apreço, no derradeiro dia carnal.

— Minha amiga compreende as dificuldades inerentes ao assunto — respondeu o nosso dirigente com gentileza. — Se Dimas estivesse plenamente senhor das emoções, não surgiria inconve­niente algum. Entretanto, ele permanece agora sob agitações psíquicas muito fortes. Conhece o fim próximo do aparelho carnal, mas não pode esquivar-se, de súbito, às algemas domésticas. Teme o futuro dos seus, conserva-se em total descontrole dos nervos e enlaça-se nas emissões de inquietude da esposa e dos filhos. Cremos ser inoportuna essa visita compacta, no decorrer das atividades da de­sencarnação, mesmo em se tratando dos melhores amigos do doente, para que se lhe não agrave o descontrole mental. Dimas poderá, não obstante, ser amparado pelo afeto dos que por ele têm afei­ção, logo se desfaça do corpo grosseiro. Além disso, sugiro que manifestação de carinho, merecida e justa, lhe seja prestada por quantos o estimam, no dia em que nos deslocarmos da Casa Transi­tória de Fabiano para as regiões mais altas. Nosso irmão e cooperador descansará, ali, sob atencioso cuidado, junto de outros amigos em condições aná­logas. Não faltaremos com o aviso prévio sobre sua partida, para que se congreguem conosco os seus afeiçoados, na prece de reconhecimento que elevaremos ao Todo-Poderoso.

A consulente manifestou sincera satisfação e acentuou:

— Bem lembrado! Esperaremos a comunica­ção no instante oportuno.

Logo após, despediu-se, afastando-se ao lado de outros visitantes de nossa esfera, que nos dei­xavam, agora, campo livre para a nossa necessária atuação.

O transe era, sem dúvida, melindroso.

A esposa do médium, ao pé dele, não obstante prolongadas vigílias e sacrifícios estafantes, que a expressão fisionômica denunciava, mantinha-se firme a seu lado, olhos vermelhos de chorar, emi­tindo forças de retenção amorosa que prendiam o moribundo em vasto emaranhado de fios cinzentos, dando-nos a impressão de peixe encarcerado em rede caprichosa.

Jerônimo apontou-a, bondoso, e explicou:

— Nossa pobre amiga é o primeiro empecilho a remover. Improvisemos temporária melhora para o agonizante, a fim de sossegar-lhe a mente aflita. Sômente depois de semelhante medida conseguire­mos retirá-lo, sem maior impedimento. As corren­tes de força, exteriorizadas por ela, infundem vida aparente aos centros de energia vital, já em adian­tado processo de desintegração.

Recomendou o Assistente que Luciana e Hi­pólito se mantivessem ao lado da senhora, modi­ficando-lhe as vibrações mentais, e Instruindo-me para coadjuvar-lhe a influenciação, como se fazia mister.

Enquanto mantinha as mãos coladas ao cé­rebro de Dimas, propiciando-lhe a renovação das forças gerais, Jerônimo aplicava-lhe passes longi­tudinais, desfazendo os fios magnéticos que se entrecruzavam sobre o corpo abatido.

Reparei que o moribundo se encontrava já em dolorosas condições. Plenamente desorganizado, o fígado começava definitivamente a paralisar suas funções. O estômago, o pâncreas e o duodeno apre­sentavam anomalias estranhas. Os rins pareciam pràticamente mortos. Os glomérulos prendiam-se aos ramos arteriais como pequeninos botões arro­xeados; os tubos coletores, enrijecidos, prenuncia­vam o fim do corpo. Sintomas de gangrena pesa­vam em toda a atmosfera orgânica.

O que mais impressionava, porém, era a mo­vimentação da fauna microscópica. Corpúsculos das mais variadas espécies nadavam nos líquidos acumu­lados no ventre, concentrando-se particularmente no ângulo hepático, como a buscarem alguma coisa, com avidez, nas vizinhanças da vesícula.

O coração trabalhava com dificuldade. Enfim, o enfraquecimento atingira o auge.

— Precisamos fornecer-lhe melhoras fictícias — asseverou o dirigente de nossas atividades

tranquilizando-lhe os parentes aflitos. A câmara está repleta de substâncias mentais torturantes.

O Assistente principiou, então, a exercer in­tensivamente sua influência.

Dimas, de raciocínio obnubilado pela dor, não divisava a nossa presença. Os atritos celulares, pelo rápido desenvolvimento dos vírus portadores do coma, impediam-lhe percepções claras. As provei­tosas faculdades mediúnicas que ele possuía ha­viam caído em temporário eclipse, ante os choques do sofrimento. Era, porém, extremamente sensível à atuação magnética.

Pouco a pouco, com a interferência de Jerô­nimo, o amigo acalmou-se, respirou em ritmo quase normal, abriu os olhos fundos e exclamou, recon­fortado:

— Graças a Deus! Louvado seja Deus!

Um dos filhos, a contemplá-lo, de olhos súpli­ces, seguiu-lhe as palavras, ansioso, indagando num gesto de alívio:

— Melhorou, papai?

— Oh! sim, meu filho, agora respiro mais li­vremente...

— Sente os amigos espirituais ao seu lado? —tornou o rapaz, cheio de fé.

O enfermo sorriu, algo triste, e retrucou:

— Não. Quero crer que o sofrimento físico cerrou a porta que me comunicava com a esfera invisível. Mesmo assim, estou muito confiante. Jesus não nos desampara.

Fixou a companheira em lágrimas e aduziu:

— Todos nós experimentaremos a solidão nos grandes momentos de aferir valores espirituais. Estou convencido de que os nossos Guias do Plano Superior não me olvidarão as necessidades... en­tretanto... não devo esperar que tomem cuidado permanente comigo...

Falava em voz quase imperceptível, em virtude do abatimento, entrecortando as palavras na res­piração opressa.

A senhora, vacilante, estava inteiramente am­parada por Luciana, que a abraçava, afetuosa. Viam-se-lhe os sinais de angustioso cansaço. Lágri­mas espessas corriam-lhe dos olhos congestionados.

Jerônimo, agora, pousava a destra na fronte do moribundo, proporcionando-lhe força, inspiração e idéias favoráveis ao desdobramento de nossos ser­viços. Dimas mostrou novo brilho no olhar, en­carou a companheira, esforçando-se por parecer tranquilo, e rogou:

— Querida, vá descansar!... Peço-lhe... Tan­tas noites a fio, de sentinela, acabarão por aniquilá-la. Que será de mim, doente e exausto, se o desânimo surpreender-nos a todos?

Fez mais longo intervalo e prosseguiu:

— Repouse a meu pedido. Ficaria tão satis­feito se a visse mais forte... Não se retarde. Sin­to-me muito melhor e sei que o dia será de calma e reconforto.

Cedendo às instâncias do esposo e docemente constrangida pela influência de Luciana e Hipólito, a matrona recolheu-se ao quarto.

Em vista das melhoras obtidas, houve expan­são de júbilo familiar. O médico foi chamado. Radiante, o clínico asseverou que os prognósticos contrariavam suposições anteriores. Renovou as in­dicações, dispensou os anestésicos e recomendou ao pessoal doméstico que entregasse o doente ao re­pouso absoluto. Dimas acusava melhoras surpreen­dentes. Era razoável, portanto, que a câmara fôsse deixada em silêncio para que ele tivesse um sono reparador.

O esculápio atendia-nos ao desejo.

Em breves minutos, o compartimento ficou so­litário, facilitando-nos o serviço.

O Assistente distribuiu trabalho a todos nós.

Hipólito e Luciana, depois de tecerem uma rede fluídica de defesa, em torno do leito, para que as vibrações mentais inferiores fôssem absorvidas, per­maneceram em prece ao lado, enquanto eu manti­nha a destra sobre o plexo solar do agonizante.

— Iniciaremos, agora, as operações decisivas — declarou-nos Jerônimo, resoluto —, antes, po­rém, forneçamos ao nosso amigo a oportunidade da oração final.

O Assistente tocou-o, demoradamente, na par­te posterior do cérebro. Vimos que o agonizante passou a emitir pensamentos luminosos e belos. Não nos via, nem nos ouvia, de maneira direta, mas conservava a intuição clara e ativa. Sob o controle de Jerônimo, experimentou imperiosa necessidade de orar e, embora os lábios cansados prosseguis­sem imóveis, assinalamos a rogativa mental que endereçava ao Divino Mestre:

— Meu Senhor Jesus-Cristo, creio que atingi o fim de meu corpo, do corpo que me deste, por algum tempo, como dádiva preciosa e bendita. Eu não sei, Senhor, quantas vezes feri a máquina fisiológica que me confiaste. Inconscicntemente, quebrei-lhe as peças com o meu descaso, menos­prezando patrimônios sagrados, cujo valor estou reconhecendo em mais de doze meses de sofrimento carnal incessante. Não te posso implorar a bênção da morte pacífica, porque nada fiz de bom ou de útil por merecê-la. Mas se é possível, Amado Mé­dico, socorre-me com o teu compassivo e desvelado amor! Curaste paralíticos, cegos e leprosos... Por­que te não compadecerás de mim, miserável pere­grino da Terra?...

Seus olhos deixaram escapar lágrimas abun­dantes.

Após breves minutos, observamos que o ago­nisante recordava a meninice distante. Na tela mi­raculosa da memória, revia o colo materno e sentia sede do carinho de mãe. Oh! se pudesse contar com o socorro da abençoada velhinha que a morte arrebatara há tantos anos! — refletia. Premido pelas doces reminiscências, modificou o quadro da súplica, lembrou a cena da crucificação de Jesus, insistiu mentalmente por vislumbrar o vulto subli­me de Maria e, sentindo-se de joelhos, diante dela. implorou:

— Mãe dos céus, mãe das mães humanas, re­fúgio dos órfãos da Terra, sou agora, também, o menino frágil com fome do afeto maternal nesta hora suprema! Oh! Senhora Divina, mãe de meu Mestre e de meu Senhor, digna-te abençoar-me! Lembra que teu filho divino pôde ver-te no derradeiro instante e intercede por mim, mísero servo, para que eu tenha minha santa mãe ao meu lado no minuto de partir!... Socorre-me! não me aban­dones, anjo tutelar da Humanidade, bendita entre as mulheres!

Oh! providência maravilhosa do Céu! Conver­tera-se o coração do moribundo em foco radioso e a porta de acesso deu entrada a venerável anciã, coroada de luz semelhando neve luminosa. Ela se aproximou de Jerônimo e informou, após desejar­-nos a paz divina:

— Sou a mãe dele...

O Assistente comentou a urgência da tarefa que nos aguardava e confiou-lhe o depósito querido.

Em breves instantes, tínhamos perante os olhos inolvidável quadro afetivo. Sentara-se a velhinha no leito, depondo a cabeça do moribundo no regaço acolhedor, afagando-a com as mãos caridosas.

Em virtude do reforço valioso no setor da co­laboração, Hipólito e Luciana, atendendo ao nosso dirigente, foram velar pelo sono da esposa, para que as suas emissões mentais não nos alterassem o esforço.

No recinto, permanecemos os três apenas.

Dimas, experimentando indefinível bem-estar no regaço materno, parecia esquecer, agora, todas as mágoas, sentindo-se amparado como criança semi-inconsciente, quase feliz. Ordenou Jerônimo que me conservasse vigilante, de mãos coladas àfronte do enfermo, passando, logo após, ao serviço complexo e silencioso de magnetização. Em pri­meiro lugar, Insensibilizou inteiramente o vago, para facilitar o desligamento nas vísceras. A seguir, utilizando passes longitudinais, isolou todo o siste­ma nervoso simpático, neutralizando, mais tarde, as fibras inibidoras no cérebro. Descansando alguns segundos, asseverou:

— Não convém que Dimas fale, agora, aos pa­rentes. Formularia, talvez, solicitações descabidas.

Indicou o desencarnante e comentou, sorrindo:

— Noutro tempo, André, os antigos acredita­vam que entidades mitológicas cortavam os fios da vida humana. Nós somos Parcas autênticas, efe­tuando semelhante operação...

E porque eu indagasse, tímido, por onde iría­mos começar, explicou-me o orientador:

— Segundo você sabe, há três regiões orgânicas fundamentais que demandam extremo cuidado nos serviços de liberação da alma: o centro vege­tativo, ligado ao ventre, como sede das manifes­tações fisiológicas; o centro emocional, zona dos sentimentos e desejos, sediado no tórax, e o centro mental, mais importante por excelência, situado no cérebro.

Minha curiosidade intelectual era enorme. En­tendendo, porém, que a hora não comportava lon­gos esclarecimentos, abstive-me de indagações.

Jerônimo, todavia, gentil como sempre, perce­beu-me o propósito de pesquisa e acrescentou:

— Noutro ensejo, André, você estudará o pro­blema transcendente das várias zonas vitais da individualidade.

Aconselhando-me cautela na ministração de energias magnéticas à mente do moribundo, come­çou a operar sobre o plexo solar, desatando laços que localizavam forças físicas. Com espanto, notei que certa porção de substância leitosa extravasava do umbigo, pairando em torno. Esticaram-se os membros inferiores, com sintomas de esfriamento.

Dimas gemeu, em voz alta, semi-inconsciente.

Acorreram amigos, assustados. Sacos de água quente foram-lhe apostos nos pés. Mas, antes que os familiares entrassem em cena, Jerônimo, com passes concentrados sobre o tórax, relaxou os elos que mantinham a coesão celular no centro emo­tivo, operando sobre determinado ponto do coração, que passou a funcionar como bomba mecânica, desreguladamente. Nova cota de substância des­prendia-se do corpo, do epigastro à garganta, mas reparei que todos os músculos trabalhavam forte­mente contra a partida da alma, opondo-se à liber­tação das forças motrizes, em esforço desespera­do, ocasionando angustiosa aflição ao paciente. O campo físico oferecia-nos resistência, insistindo pela retenção do senhor espiritual.

Com a fuga do pulso, foram chamados os pa­rentes e o médico, que acorreram, pressurosos. No regaço maternal, todavia, e sob nossa influenciação direta, Dimas não conseguiu articular palavras ou concatenar raciocínios.

Alcançáramos o coma, em boas condições.

O Assistente estabeleceu reduzido tempo de descanso, mas volveu a intervir no cérebro. Era a última etapa. Concentrando todo o seu potencial de energia na fossa romboidal, Jerônimo quebrou alguma coisa que não pude perceber com minúcias, e brilhante chama violeta-dourada desligou-se da região craniana, absorvendo, instantâneamente, a vasta porção de substância leitosa já exteriorizada. Quis fitar a brilhante luz, mas confesso que era difícil fixá-la, com rigor. Em breves instantes, porém, notei que as forças em exame eram dotadas de movimento plasticizante. A chama mencionada transformou-se em maravilhosa cabeça, em tudo idêntica à do nosso amigo em desencarnação, cons­tituindo-se, após ela, todo o corpo perispiritual de Dimas, membro a membro, traço a traço. E, àmedida que o novo organismo ressurgia ao nosso olhar, a luz violeta-dourada, fulgurante no cére­bro, empalidecia gradualmente, até desaparecer, de todo, como se representasse o conjunto dos prin­cípios superiores da personalidade, momentaneamente recolhidos a um único ponto, espraiando-se, em seguida, através de todos os escaninhos do or­ganismo perispirítico, assegurando, desse modo, a coesão dos diferentes átomos, das novas dimensões vibratórias.

Dimas-desencarnado elevou-se alguns palmos acima de Dimas-cadáver, apenas ligado ao corpo através de leve cordão prateado, semelhante a au­til elástico, entre o cérebro de matéria densa, abandonado,­ e o cérebro de matéria rarefeita do orga­nismo liberto.

A genitora abandonou o corpo grosseiro, rapi­damente, e recolheu a nova forma, envolvendo-a em túnica de tecido muito branco, que trazia consigo.

Para os nossos amigos encarnados, Dimas mor­rera, inteiramente. Para nós outros, porém, a ope­ração era ainda incompleta. O Assistente deliberou que o cordão fluídico deveria permanecer até ao dia imediato, considerando as necessidades do “mor­to”, ainda imperfeitamente preparado para desen­lace mais rápido.

E, enquanto o médico fornecia explicações téc­nicas aos parentes em pranto, Jerônimo convidou-nos à retirada, confiando, porém, o recém-desen­carnado àquela que lhe fora desvelada mãezinha no mundo físico:

— Minha irmã pode conservar o filho à von­tade até amanhã, quando cortaremos o fio derradeiro que o liga aos despojos, antes de conduzi-lo a abrigo conveniente. Por enquanto, repousará ele na contemplação do passado, que se lhe descorti­na em visão panorâmica no campo interior. Além disso, acusa debilidade extrema após o laborioso esforço do momento. Por essa razão, somente po­derá partir, em nossa companhia, findo o enter­ramento dos envoltórios pesados, aos quais se une ainda pelos últimos resíduos.

A anciã agradeceu com emoção e, dando a entender que lhe respondia às argüições mentais, o Assistente concluiu:

— Convém montar guarda aqui, vigilante, para que os amigos apaixonados e os Inimigos gratuitos não lhe perturbem o repouso forçado de algumas horas.

A mãe de Dimas revelou-se muito krata e par­timos, em grupo, a caminho da fundação de Fabia­no, de onde nossa expedição socorrista regressaria à Crosta, no dia seguinte.


14

Prestando assistência

Meus companheiros de missão pareciam menos interessados em seguir o caso Dimas, durante a noite, inclusive Jerônimo, reservando-se para a con­tinuidade do esforço no dia imediato, quando nos caberia transportá-lo até ao abençoado abrigo de Fabiano.

Não se verificava o mesmo quanto a mim.

Desembaraçando-me dos laços físicos, noutro tempo, não conseguira efetuar observações educa­tivas para o meu acervo de conhecimentos. O cho­que sensorial no transe, para a minha personali­dade ainda desatenta ante as questões do espírito eterno, impedira-me a análise minuciosa do assunto. Agora, porém, a oportunidade poderia fazer mais luz em minhalma, quanto à posição dos recém-desencarnados, antes da Inumação do envoltório grosseiro.

Expondo ao Assistente o meu propósito de aprender, recebi dele a mais ampla permissão. Poderia visitar a residência de Dimas, à vontade, lá permanecendo durante as horas que desejasse.

A aquiescência de Jerônimo enchia-me de pra­zer. Não só pela ocasião de enriquecer-me na es­fera prática, mas também porque o fato, em si, era bastante expressivo. Pela primeira vez, um companheiro de trabalho, com autoridade suficien­te, concordava com o meu desejo de humílimo ope­rário. O consentimento, portanto, representava pre­ciosa conquista. Constituía a liberdade instrutiva, com a responsabilidade de minha consciência e a confiança de meus superiores hierárquicos.

Deixando a Casa Transitória, em plena noite, vi-me, em breve, no ambiente doméstico onde o ami­go se desfizera dos elos da matéria mais espessa.

Entrei. A casa enchia-se de amigos e simpa­tizantes, encarnados e desencarnados. Não se articulavam quaisquer serviços de defesa. Notei que havia trânsito livre pelos grupos de variadas pro­cedências.

Em recuado recanto, ainda ligado às vísceras inertes pelo cordão fluídico-prateado, permanecia Dimas no regaço da genitora, ao pé de dois ami­gos que, cuidadosos, o assistiam.

A nobre matrona reconheceu-me, comovida, apresentando-me aos companheiros presentes.

Um deles, Fabriciano, acolheu-me, prestativo, interessando-se pelos Informes atinentes ao desen­lace. Relatei-lhe os trabalhos, pormenorizadamente. Em seguida, o interlocutor passou a explicar-se:

— Sempre tive por Dimas sincera admiração, pelo proveitoso concurso que soube oferecer-nos. Integro a comissão espiritual de serviço que vem atendendo aos necessitados, por intermédio dele, nos últimos seis anos. Foi sempre assíduo nas obri­gações, bom companheiro, leal irmão.

Surpreso com as referências, indaguei:

— Há, desse modo, comissões de colaboração permanente para os médiuns em geral?

— Não me reporto à generalidade — redar­guiu o interlocutor —, porque a mediunidade é título de serviço como qualquer outro. E há pes­soas que pugnam pela obtenção dos títulos, mas desestimam as obrigações que lhes correspondem. Gostariam, por certo, do intercâmbio com o nosso plano, mas, não cogitam de finalidades e respon­sabilidades. Em vista disso não se estabelecem conjuntos de cooperação para os médiuns em ge­ral, mas apenas para aqueles que estejam dispostos ao trabalho ativo. Há muitos aprendizes que não ultrapassam a fronteira da tentativa, da observação. Desejariam o caminho bem aplainado, exigindo a convivência exclusiva dos Espíritos genuinamente bondosos. Experimentam a luta construtiva, atra­vés de sondagens superficiais e, à primeira difi­culdade, abandonam compromissos assumidos. A aquisição da fortaleza moral não prescinde das pro­vas arriscadas e angustiosas. Entretanto, em face das exigências naturais do aprendizado, dizem-se feridos na dignidade pessoal. Não suportam a apro­ximação de infelizes encarnados ou desencarnados, estacionando à menor picada de dor. Para seme­lhantes experimentadores, seria extremamente di­fícil a formação de equipes eficientes, representa­tivas de nosso plano. Não se sabe quando estão dispostos a servir. Se recebem faculdades intuiti­vas, pedem a incorporação; se contam com a vi­dência, querem a possibilidade de exteriorizar flui­dos vitais para os fenômenos de materialização.

Escutei as observações sensatas do novo amigo e, registando-lhe a nobreza dalma, passei a con­siderações íntimas em torno da tarefa que nos levara até ali.

Porque se formara expedição destinada a so­corro de servidor que dispunha de amigos de tama­nha competência moral? Fabriciano demonstrava conhecimentos elevados e condição superior. O obse­quioso amigo, porém, evidenciando extrema acuida­de perceptiva, antes que eu fizesse qualquer per­gunta inoportuna, acrescentou:

— Não obstante nossa amizade ao médium, não nos foi possível acompanhar-lhe o transe. Te­mos delegação de trabalho, mas, no assunto, entrou em jogo a autoridade de superiores nossos, que resolveram proporcionar-lhe repouso, o que não nos seria possível prodigalizar-lhe, caso viesse direta­mente para a nossa companhia.

A palestra conduzia-se a interessantes ângulos do problema da morte. Seduzido pelas consideraões, interroguei sobre o que já sabia, mais ou menos, a fim de poder penetrar particularidades mais significantes:

— Nem todas as desencarnações de pessoas dignas contam com o amparo de grupos socorristas?

— Nem todas — confirmou o interlocutor, e acentuou —, todos os fenômenos do decesso contam com o amparo da caridade afeta às organizações de assistência indiscriminada; no entanto, a missão especialista não pode ser concedida a quem não se distinguiu no esforço perseverante do bem.

— Todavia — objetei, curioso, tangendo a cor­da que mais me interessava no assunto —, não há casos de criaturas, essencialmente bondosas, que se libertam dos laços físicos — mais ou menos entrosados em comissões de serviço espiritual de natureza superior — sem que haja missões salvacionistas, prêviamente designadas para socorrê-las?

Após breve pausa, acrescentei para fazer-me mais claro:

— Vamos que Dimas estivesse em ligação re­cente com a sua comissão de trabalho e desencar­nasse sem o cuidado dum grupo socorrista: seria deixado à mercê das circunstâncias?

Riu-se Fabriciano, com franqueza, e retrucou:

— Isso poderia acontecer. Temos precedentes. De maneira geral, ocorrem semelhantes casos com os trabalhadores aflitos por conseguir de qualquer modo a desencarnação, alegando necessidades de repouso. Muitas vezes, no fundo, são criaturas bondosas, mas menos lógicas e pouco inteligentes. Na semana finda, por exemplo, observamos um caso dessa natureza. Respeitável senhora, jovem ainda, pelas disposições sadias que demonstrou no campo da benemerência social, foi ligada a dedi­cada corrente de serviço, organizada por amigos nossos. Verificando-se, contudo, pequenas rusgas entre ela e o esposo, e tendo conhecimento da imortalidade da vida, além do sepulcro, desejou a pobre criatura ardentemente morrer. Tolas levian­dades do marido bastaram para que maldissesse o mundo e a Humanidade. Não soube quebrar a concha do personalismo inferior e colocar-se a caminho da vida maior. Pela cólera, pela intem­perança mental, criou a ideia fixa de llbertar-se do corpo de qualquer maneira, embora sem utilizar o suicídio direto. Conhecia os amigos espirituais a que se havia unido, mas, longe de assimilar-lhes ajuizadamente os conselhos, repelia-lhes as advertências fraternas para aceitar tão sômente as pa­lavras de consolação que lhe eram agradáveis, den­tre as admoestações salutares que lhe endereça­vam. E tanto pediu a morte, insistindo por ela, entre a mágoa e a irritação persistentes, que veio a desencarnar em manifestação de icterícia com­plicada com simples surto gripal. Tratava-se de verdadeiro suicídio inconsciente, mas a senhora, no fundo, era extraordinariamnte caridosa e ingênua. Não se recebeu qualquer autorização para conce­der-lhe descanso e muito menos auxilio especial. Os benfeitores de nossa esfera, apesar de eficiente intercessão em beneficio da infeliz, sômente pude­ram afastá-la das vísceras cadavéricas, há dois dias, em condições impressionantes e tristes. Não havendo qualquer determinação de assistência par­ticularizada, por parte das autoridades superiores, e porque não seria aconselhável entregá-la ao sa­bor da própria sorte, em face das virtudes poten­ciais de que era portadora, o diretor da comissão de serviço, a que se filiara a imprevidente amiga, recolheu-a, por espírito de compaixão, em plena luta, e ela se foi, de roldão, a trabalhar por aí, ativamente, em condições muito mais sérias e com­plicadas.

A elucidação atingira-me, fundo.

Informara-me sobre o que desejava. A lei di­vina, de fato, perfeita em seus fundamentos, é igualmente harmoniosa em suas aplicações.

Fabriciano, estampando belo sorriso, aduziu:

— Não frutifica a paz legitima sem a semea­dura necessária. Alguém, para gozar o descanso, precisa, antes de tudo, merecê-lo. As almas inquie­tas entregam-se fàcilmente ao desespero, gerando causas de sofrimento cruel.

Logo após, contemplando o recém-desencarnado, como a indicar que deveríamos centralizar todo o interesse da hora no bem-estar dele, considerou, acariciando-lhe a fronte:

- Nosso amigo repousa agora, terminada a tormenta das provas incessantes. Está enfraquecido, o pobrezinho. A sensibilidade, posta a serviço da obrigação bem cumprida, castigou-lhe a alma, até ao fim; todavia, plantou a fé, a serenidade, o otimismo e a alegria em milhares de corações, estabelecendo sólidas causas de felicidade futura. Por enquanto, permanecerá na posição de ave frá­gil, incapaz de voar longe do ninho.

— Felizmente — aventou a genitora, satisfeita -, vem melhorando de modo visível. Os resíduos que o ligam ao cadáver estão quase extintos.

Relanceou o olhar pelos ângulos da modesta residência e acrescentou:

— Se fôsse possível receber maior cooperação dos amigos encarnados, ser-lhe-ia muito mais fácil o restabelecimento integral. No entanto, cada vez que os parentes se debruçam, em pranto, sobre os despojos, é chamado ao cadáver, com prejuízo para a restauração mais rápida.

— Lamentavelmente, porém — tornou Fabri­ciano —, nossos irmãos encarnados não possuem a chave de reais conhecimentos para organizar ação adequada a esta hora.

— Em vista disso — revidou a genitora, con­formada —, insisto para que Dimas durma, embora o sono, que poderia ser calmo e doce, esteja po­voado de pesadelos.

Diante da surpresa que me absorvia, o compa­nheiro apressou-se a esclarecer-me:

— As imagens contidas nas evocações das pa­lestras incidem sobre a mente do desencarnado, mantido em repouso depois de rápido mergulho na contemplação dos fatos alusivos à existência finda. Não somente as imagens. Por vezes, nossos ami­gos presentes, fecundos nas conversações sem pro­veito. exumem, com tamanho calor, a lembrança de certos fatos, que trazem até aqui alguns dos protagonistas já desencarnados.

As afirmações ouvidas incitaram-me a curio­sidade. Fabriciano, entretanto, desejando prodigalizar-me experiência direta, aconselhou:

— Espere alguns minutos na sala contígua, onde os despojos recebem a visitação.

Obedeci.

O velório apresentava o aspecto usual. Flores perfumadas, semblantes sisudos e conversações dis­cretas.

Ao pé do cadáver, prôpriamente considerado, os amigos sustentavam reserva e circunspecção. A poucos passos, todavia, davam-se asas ao ane­dotário vibrante, em torno do amigo em trânsito para o “outro mundo”. Pequenas e grandes ocor­rências da vida do “morto” eram lembradas com graça e vivacidade.

Acerquei-me de roda compacta, em que se falava a respeito dele.

Certo rapaz dirigiu-se a cavalheiro muito idoso, perguntando:

— Coronel, recebeu a conta?

— Por enquanto, não — respondeu o velhote interpelado, preparando fumo de rolo para cigarro à moda antiga —‘ mas não me preocupo pela de­mora. Dimas foi sempre bom camarada e os filhos não olvidarão o compromisso paterno. Questão de tempo...

Interessado em ressaltar as qualidades distin­tas do “falecido” e revelando suas boas disposições de historiador municipal, prosseguiu:

— Dimas era um homem interessante e excepcional. Sempre lhe invejei a serenidade. Em matéria de prudência, raras pessoas conheci seme­lhantes a ele. É verdade que nunca me dei a es­tudos espiritistas, mas confesso que, ao lhe obser­var a maneira de proceder, sempre desejei conhecer a doutrina que lhe formava o caráter.

Até aí, tudo muito bem. Embora a invocação dos débitos do “morto”, o credor apenas pronun­ciava palavras de estimulo e paz.

Todavia, no estado atual da educação humana. é muito difícil alimentar, por mais de cinco minu­tos, conversação digna e cristalina, numa assem­bleia superior a três criaturas encarnadas.

O comentarista modificou o diapasão de voz, olhou na direção do cadáver e observou, em tom confidencial:

— Poucos homens foram de boca segura como este. Conheci Dimas, faz muitos anos, e estou cer­to de que foi testemunha ocular de pavoroso crime, que nunca se desvendou para os juizes da Terra.

Após ligeira pausa, acendeu o cigarro e per­guntou, reaguçando a curiosidade dos ouvintes:

— Nunca souberam?

Os presentes mostraram silenciosa negativa.

— Vai para trinta anos — continuou o nar­rador —, Dimas residia ao lado de nobre família, que guardava consigo valiosos patrimônios da cole­tividade, relativamente à orientação pública. Desse agrupamento doméstico, superiormente conceituado na apreciação geral, emanavam ordens e benefí­cios da mais elevada expressão para o bem-estar de todos. Como não ignoram, há três decênios a vida no interior ainda conservava expressiva he­rança do Brasil imperial. A economia centralizada mantinha a “casa grande” simbólica, onde se tra­çavam roteiros para o serviço popular. Situado na vizinhança de residência feudal como essa, nosso amigo levava existência humilde de trabalhador, organizando o futuro de homem de bem.

O cavalheiro, insciente dos problemas do espí­rito, enunciou nomes, relacionou datas e lembrou brejeiramente certos pormenores, prosseguindo com maliciosa jocosidade:

— Certa noite, pela madrugada, conhecido che­fe político saía do palacete residencial pelos fun­dos, acompanhado de uma senhora que aparentava excessiva despreocupação consigo mesma, ao des­pedir-se com intempestiva manifestação de afeto. Terminado o estranho adeus e, vendo-se sozinho, o “Dom Juan” deu alguns passos para a retirada, espiou, cauteloso, em torno, e ia continuar a mar­cha, quando reparou que alguém lhe observara a intimidade com a esposa de respeitável amigo. Era modestíssimo operário, que talvez estivesse ali por força de circunstâncias inapreciáveis. O político alcançou-o, dum salto. Homem de compleição ro­busta e paixões violentas, aproximou-se do especta­dor Inesperado e interpelou-o, brutalmente, ao que o mísero respondeu, humilde:

— Doutor — não estou espreitando, juro-lhe!

— Pois morrerá, de qualquer modo — adian­tou o atlético agressor, em voz sumida de cólera.

Agarrou-o pelo paletó e acentuou, de dentes cerrados:

— Vermes que perturbam, devem morrer.

— Não me mate, doutor! não me mate! —rogou o infeliz — tenho mulher e filhos! saberei respeitá-lo!...

Não valeu à vítima dobrar-se de joelhos, na súplica, porque o homem terrível, cego de fúria, tomou a arma e desfechou-lhe certeiro tiro no cora­ção, afastando-se precípite.

Dimas, tendo observado os fatos a curta dis­tância, gritou, fazendo-se ouvir pelo assassino, que o reconheceu pelas exclamações. Em seguida, cor­reu no sentido de amparar o ferido, que, entretanto, nem chegou a gemer. Tendo-se aproximado do as­sassinado, quando outras pessoas, em roupas brancas, acorriam igualmente à pressa, para verificar o ocorrido, manteve-se a cavaleiro de qualquer atitude suspeitosa: no entanto, chamado a esclarecimento pelas autoridades, ele, que tudo sabia, nada reve­lou. Protegeu o morto nos funerais, dispensou-lhe extremos cuidados, extensivos à família, portou-se como cristão fiel, esquivando-se, contudo, ao fornecimento de quaisquer indícios para que o cri­minoso fôsse capturado, alegando desconhecer qual­quer minúcia dos fatos que deram motivo ao acon­tecimento. E o caso policial foi encerrado, na suposição de latrocínio. A única testemunha, que era ele, considerava preferível o silêncio ao escân­dalo que traria enormes dissidências domésticas e sociais.

O narrador fixava os despojos e acentuava:

— Boca segura! não conheci homem mais dis­creto.

Certo ouvinte indagou, brejeiro:

— Mas, coronel, como veio a saber das parti­cularidades, se Dimas não chegou a denunciar?

O interpelado fêz um gesto de franca satis­fação e acrescentou:

— Vantagem da boa amizade com os sacerdo­tes. Meu velho amigo, o padre F... que Deus guarde, contou-me o fato, sumamente impressio­nado. Ouviu o assassino, em confissão, antes da morte dele e obteve todos os pormenores da obs­cura ocorrência. O homicida, cuidadoso na exposição das faltas, não se esqueceu de nomear Dimas ao vigário, como exclusiva testemunha do pecado mortal cometido. O padre, contudo, excelente ami­go, cheio de experiência do mundo, não trouxe o caso a público. As pessoas envolvidas no drama deixaram descendência distinta e seria crueldade rememorar acontecimento tão triste.

O narrador estampou curiosa expressão no ros­to e rematou, apagando o cigarro:

— Tudo passa... Morreram a vitima, a adúl­tera, o assassino, o confessor e, agora, a testemunha. Certo, haverá lugar, fora deste mundo, para fazer-se a justiça.

Nesse momento, horrível figura, seguida de ou­tras, não menos monstruosas, surgiu de inesperado. Acercando-se do leviano comentador, ouviu-lhe, ain­da, as últimas palavras, sacudiu-o e gritou:

— Sou eu o assassino! que quer você de mim? porque me chama? é juiz?!

O narrador não enxergara o que eu via, mas seu corpo foi atingido por involuntário estremeção, que arrancou abafado riso dos presentes.

Logo após, o homicida desencarnado, atraído talvez pelo cheiro forte das flores reunidas na eça improvisada, teve a perfeita noção do velório. Aba­lou-se, precipitado, pondo-se na contemplação do morto.

Reconheceu-o, estampou um gesto de profunda surpresa, ajoelhou-se e gritou:

— Dimas, Dimas, pois também tu vens para a verdade? onde estás, bom amigo, que me velaste a falta com o véu da caridade sem limites? Socorre-me! estou desesperado! onde encontrarei minha vitima para suplicar o perdão de que ne­cessito? Ajuda-me, ainda! Tem compaixão! deves saber o que ignoro! socorre-me, socorre-me!...

Ao lado do infeliz, em rogativa, diversas enti­dades sofredoras permaneciam extáticas.

Mas Fabriciano surgiu inesperadamente e or­denou aos invasores afastamento imediato.

Limpa a câmara, o novo amigo dirigiu-se a mim, observando:

— Garanto que este grupo entrou nesta casa por invocação direta.

Narrei-lhe, impressionado, o que vira.

Ouviu-me calmamente e ponderou:

— A observação, feita por nós mesmos, é sem­pre mais valiosa. Dimas, não obstante dedicado à causa do bem e compelido a grande esforço de cooperação na obra coletiva, descuidou-se de incen­tivar a prática metódica da oração em família, no santuário doméstico. Por isso tem defesas pessoais, mas a residência conserva-se à mercê da visitação de qualquer classe.

A elucidação era significativa. Comecei a com­preender a razão do sentimentalismo prejudicial da família inconformada. Desejando, porém, fixar o aprendizado da noite sobre assunto atinente à desencarnação, perguntei:

— Nosso amigo recém-liberto terá ouvido a súplica do irmão desventurado?

— Geme sob terrível pesadelo, nos braços ma­ternos — explicou Fabriciano, solícito —, ao recor­dar o fato relatado. Desde alguns minutos acom­panhamos a agitação dele, reparando que recebia choques desagradáveis, através do cordão final.

— Ouvindo e vendo os quadros invocados? —insisti, perguntando.

— Não chegou a ver, nem a ouvir, integral­mente, em face da perturbação espontânea, mas vislumbrou, sentiu, oprimiu-se e torturou-se, preju­dicando a reconquista de si mesmo. As forças men­tais estão revestidas de maravilhoso poder -

Indicando os grupos que continuavam conver­sando, acentuou, sem aspereza:

— Nossos amigos da esfera carnal são ainda muito ignorantes para o trato com a morte. Ao invés de trazerem pensamentos amigos e reconfor­tadores, preces de auxílio e vibrações fraternais, atiram aos recém-desencarnados as pedras e os es­pinhos que deixaram nas estradas percorridas. É por isso que, por enquanto, os mortos que entre­gam despojos aos solitários necrotérios da indigência são muito mais felizes -

Ainda não havia terminado, de todo, as con­siderações, quando a esposa de Dimas, num acesso de pranto, levantou-se do leito em que repousava e adiantou-se para o cadáver, repetindo-lhe o nome, comovedoramente:

— Dimas! Dimas! como ficarei? Estaremos separados, então, para sempre?...

Como Fabriciano se dirigisse apressado para o quarto humilde em que permanecia o desencar­nado, acompanhei-o. A genitora do médium fazia esforços para contê-lo, mas debalde. Pelo fio pra­teado, estabelecera-se vigoroso contacto entre ele e a companheira, porque Dimas se ergueu, cam­baleante, apesar do carinho materno. Estava lívido, semilouco. Avançou para a sala mortuária, rogando paz, mas antes que pudesse aproximar-se muito dos despojos, Fabriciano aplicou energias de prostração na esposa imprudente, que foi nova­mente conduzida ao leito, agora sem sentidos, en­quanto Dimas voltava ao regaço maternal, menos aflito.

O amigo esclareceu-me, sereno:

— Há situações em que o drástico deve ser medida inicial. Nosso irmão muito fêz pela harmonia dos outros, durante a existência, e merece libertação pacifica. Sinto-me, pois, no dever de ga­ranti-lo para que se desembarace dos últimos resí­duos que ainda o inclinam à matéria densa.

Outros amigos e afeiçoados do médium che­garam ao ambiente doméstico, interessados em aju­dá-lo e, como a noite ia muito alta, despedi-me dos companheiros, pondo-me de regresso ao acolhedor asilo de Fabiano.

No outro dia, ao me avistar, disse-me o Assis­tente Jerônimo, após a saudação inicial:

— Espero, André, que o velório lhe tenha tra­zido úteis e instrutivos ensinamentos.

Sim, o estimado Assistente falava com muita propriedade e razão. Eu aprendera muito, durante a noite. Aprendera que as câmaras mortuárias não devem ser pontos de referência à vida social, mas recintos consagrados à oração e ao silêncio.


15

Aprendendo sempre

Duas horas antes de organizar-se o cortejo fúnebre, estávamos a postos.

A residência de Dimas enchia-se de pessoas gradas, além de apreciável assembléia de entidades espirituais.

Jerônimo, resoluto, penetrou a casa, seguido de nós outros. Encaminhou-se para o recanto onde o recém-desencarnado permanecia abatido e sono­lento, sob a carícia materna. Reparei que o mé­dium liberto tinha agora o corpo perispiritual mais aperfeiçoado, mais concreto. Tive a nítida impres­são de que através do cordão fluídico, de cérebro morto a cérebro vivo, o desencarnado absorvia os princípios vitais restantes do campo fisiológico. Nosso dirigente contemplou-o, enternecido, e pediu informes à genitora, que os forneceu, satisfeita:

— Graças a Jesus, melhorou sensívelmente. É visível o resultado de nossa influência restauradora e creio que bastará o desligamento do último laço para que retome a consciência de si mesmo.

Jerônimo examinou-o e auscultou-o, como clí­nico experimentado. Em seguida, cortou o liame final, verificando-se que Dimas, desencarnado, fazia agora o esforço do convalescente ao despertar, es­tremunhado, findo longo sono.

Somente então notei que, se o organismo pe­rispirítico recebia as últimas forças do corpo inanimado, este, por sua vez, absorvia também algo de energia do outro, que o mantinha sem notáveis alterações. O apêndice prateado era verdadeira ar­téria fluídica, sustentando o fluxo e o refluxo dos princípios vitais em readaptação. Retirada a der­radeira via de intercâmbio, o cadáver mostrou sinais, quase de imediato, de avançada decomposição.

A análise do cadáver de Dimas causava tris­teza.

Inumeráveis germens microscópicos entravam, como exércitos vorazes, em combate aberto, liber­tando gases ocultos que revelavam o apodrecimento dos tecidos e líquidos em geral. Os traços fisionô­micos do defunto achavam-se alterados, degeneran­do-se também a estrutura dos membros. Os órgãos autônomos, por seu turno, perdiam a feição carac­terística, já tumefactos e imóveis.

Em compensação, Dimas-livre, Dimas-espírito, despertava. Amparado pela genitora, abriu os olhos, fixou-os em derredor, num impulso de criança alar­mada e chamou a esposa, aflitivamente. Dormira em excesso, mas alcançara sensível melhora. Sen­tia a casa cheia de gente e desejava saber alguma coisa a respeito. A mãezinha, porém, afagando-o brandamente, acalmou-o, esclarecendo:

— Ouça, Dimas: A porta pela qual você se comunicava com o plano carnal, somático, cerrou-se com seus olhos físicos. Tenha serenidade, confian­ça, porque a existência, no corpo físico, terminou.

O desencarnado não dissimulou a penosa im­pressão de angústia e fitou-a com amargurado espanto, identificando-a pela voz, um tanto vaga-mente.

— Não me reconhece, filho?

Bastou a pergunta carinhosa, pronunciada com especial inflexão de meiguice, para que o desen­carnado se abraçasse à velhinha, gritando, num misto de júbilo e sofrimento:

— Mãe! minha mãe!... será possível?

A anciã deteve-o ternamente nos braços e falou:

— Escute! Refreie a emoção, que lhe será extremamente prejudicial. Sustente o equilíbrio, dian­te do fato consumado. Estamos, agora, juntou, numa vida mais feliz. Não tenha preocupações acerca dos que ficaram. Tudo será remediado, como convém, no momento oportuno. Acima de qualquer pensamento que o incline à prisão no circulo que acabou de deixar, faça valer a confiança sincera e firme em nosso Pai Celestial.

— Ó minha mãe! e a esposa, os filhos?... A sábia benfeitora, todavia, cortou-lhe as pa­lavras, consolando-o:

— Os laços terrenos, entre você e eles, foram Interrompidos. Restitua-os a Deus, certo de que o Eterno Senhor da Vida, a quem de fato perten­cemos, permitirá sempre que nos amemos uns aos outros.

Contemplou-a Dimas, através de espesso véu de pranto, e, antes que ele enunciasse novas Inter­rogações, falou a genitora carinhosa, apresentan­do-lhe Jerônimo, que acompanhava a cena, como­vido:

— Eis aqui o amigo que o desligou das cadeias transitórias. Em breve, partirá você, em companhia dele, buscando o socorro eficiente de que necessita.

Embora atordoado, o filho esboçou silencioso gesto de contrariedade, ante a perspectiva de nova separação do convívio materno, mas a velhinha interveio, acrescentando:

— Vim até aqui porque você me chamou, re­correndo à Mãe divina; contudo, não estou habilitada a lhe proporcionar ingresso em meus tra­balhos, por enquanto. O irmão Jerônimo, todavia, é o orientador dedicado que conduzirá o serviço de sua restauração. Tenha confiança. Irei vê-lo quantas vezes for possível, até que nos possamos reunir noutro lar venturoso, sem as lágrimas da separação e sem as sombras da morte.

Em seguida, sussurrou algumas palavras que somente Dimas pôde escutar e, sob funda emoção, vi-o desvencilhar-se dos braços maternos e avan­çar, cambaleante, para Jerônimo, osculando-lhe res­peitosamente as mãos. O Assistente agradeceu o carinhoso preito de reconhecimento e amor e, de olhos marejados, explicou:

— Nada efetuamos aqui, senão o dever que nos trouxe. Guarde o seu agradecimento para Jesus, o nosso Benfeitor Divino.

O trabalhador recém-liberto trazia o olhar ne­voado de pranto, entre a alegria e a dor, a saudade e a esperança.

A devotada mãe amparou-o, mais uma vez, animando-o:

— Dimas, congregam-se, aqui, diversos ami­gos seus, em manifestação inicial de regozijo pela sua vinda. Entretanto, a sua posição é a do con­valescente, cheio de cicatrizes a exigirem cuidado. Fale pouco e ore muito. Não se aflija, nem se lastime. Por hoje, não pergunte mais nada, meu filho. Seja dócil, sobretudo, para que nosso auxílio não seja mal interpretado pela visão deficiente que você traz da esfera obscura. Acompanharemos seus despojos até à última morada, a fim de que você faça exercício preliminar para a grande via­gem que levará a efeito, dentro de breves minutos, sustentado pelos nossos amigos, a caminho do res­tabelecimento. Não tema, pois já se preparou para receber-nos a cooperação, semeando o bem, em lon­gos anos de atividades espiritistas. Não dê gua­rida ao medo, que sempre estabelece perigosas vi­brações de queda em transições como a em que você se encontra.

Em seguida, conduzindo-o à câmara mortuária, onde o corpo jazia imóvel, prestes a partir, acrescentou a anciã, sob o olhar de aprovação que Je­rônimo lhe dirigia:

— Venha ver o aparelho que o serviu fiel­mente durante tantos anos. Contemple-o com gra­tidão e respeito. Foi seu melhor amigo, companheiro de longa batalha redentora.

E como a viúva e os filhos chorassem lamentosamente, advertiu:

— Deploro os sentimentos negativos a que se recolhem os seus entes amados, despercebidos das realidades do Espírito. Não se detenha, Dimas, nas lágrimas que derramam, absorvidos em devasta­dora incompreensão. Este pranto e estas excla­mações angustiosas não traduzem a verdade dos fatos. Você sabe agora, mais que nunca, que a imortalidade é sublime. Nunca houve adeus para sempre, na sinfonia imorredoura da vida. Abstenha-se, pois, de responder, por enquanto, às argüições que sua mulher e seus filhos dirigem ao cadáver. Quando você estiver refeito, voltará a auxiliá-los, consagrando-lhes, ainda e sempre, inestimável amor.

Dimas procurou conter-se, ante a perturbação geral do ambiente doméstico, e, vacilante, debru­çou-se sobre o ataúde, vertendo grossas lágrimas. Via-se-lhe o inaudito esforço para manter sereni­dade naquela hora. Rente a ele, a esposa proferia frases de intensa amargura. Todavia, em obediên­cia às recomendações maternas, ele guardava dis­creta atitude de tristeza e enternecimento.

Notei que Dimas sentia dificuldade para con­catenar raciocínios, porque tentou em vão articular uma prece, em voz alta. Percebendo-lhe o intenso desejo, aproximou-se Jerônimo de sensível irmão encarnado, então presente, tocou-lhe a fronte com a destra luminosa e o companheiro, declarando sen­tir-se inspirado, levantou-se e pediu permissão para pronunciar breve súplica, no que foi atendido e acompanhado por todos -

Sob a influência do orientador espiritual, o companheiro orou sentidamente. Verifiquei que Dimas experimentava imensa consolação, graças ao gesto amigo de Jerônimo.

Logo após, ante as exclamações dolorosas dos familiares, o ataúde foi cerrado e iniciou-se o prés­tito silencioso.

Seguíamos, ao fim do cortejo, em número su­perior a vinte entidades desencarnadas, inclusive o irmão recém-liberto.

Abraçado à genitora, Dimas, em passos incer­tos e vagarosos, ouvia-lhe discretas exortações e sábios conselhos.

Entre os muitos afeiçoados do círculo carnal, reinava profundo constrangimento, mas, entre nós, imperava tranqüilidade efetiva e espontânea.

Prosseguíamos com as melhores notas de cal­ma, quando nos acercamos do campo-santo.

Estranha surpresa empolgou-me de súbito. Ne­nhum dos meus companheiros, exceção de Dimas, que fazia visível esforço para sossegar a si mesmo, exteriorizou qualquer emoção, diante do quadro que víamos. Mas não pude sofrear o espanto que me tomou o coração. As grades da necrópole es­tavam cheias de gente da esfera invisível, em gri­taria ensurdecedora. Verdadeira concentração de vagabundos sem corpo físico apinhava-se à porta. Endereçavam ditérios e piadas à longa fila de ami­gos do morto. No entanto, ao perceberem a nossa presença, mostraram carantonhas de enfado, e um deles, mais decidido, depois de fitar-nos com desa­pontamento, bradou aos demais:

— Não adianta! É protegido...

Voltei-me, preocupado, e indaguei do padre Hipólito que significava tudo aquilo.

O ex-sacerdote não se fêz de rogado.

— Nossa função, acompanhando os despojos — esclareceu ele, afàvelmente —, não se verifica apenas no sentido de exercitar o desencarnado para os movimentos iniciais da libertação. Destina-se também à sua defesa. Nos cemitérios costuma con­gregar-se compacta fileira de malfeitores, atacan­do vísceras cadavéricas, para subtrair-lhes resíduos vitais.

Ante a minha estranheza, Hipólito considerou:

— Não é para admirar, O Evangelho, des­crevendo o encontro de Jesus com endemoninhados, refere-se a Espíritos perturbados que habitam en­tre os sepulcros.

Reconhecendo-me a inexperiência no trato com a matéria religiosa, Hipólito continuou:

— Como você não ignora, as igrejas dogmá­ticas da Crosta Terrena possuem erradas noções acerca do diabo, mas, inegàvelmente, os diabos exis­tem. Somos nós mesmos, quando, desviados dos divinos desígnios, pervertemos o coração e a inte­ligência, na satisfação de criminosos caprichos...

— Oh! mas que paisagem repugnante! — ex­clamei, surpreendido, interrompendo a instrutiva explanação.

— É verdade — concordou o interlocutor —, é quadro deveras ascoroso; todavia, é reflexo do mundo, onde, também nós, nem sempre fomos leais filhos de Deus.

A observação me satisfez integralmente.

Entramos.

Logo após, ante meus olhos atônitos, Jerônimo inclinou-se piedosamente sobre o cadáver, no ataú­de momentâneamente aberto antes da inumação, e, através de passes magnéticos longitudinais, ex­traiu todos os resíduos de vitalidade, dispersan­do-os, em seguida, na atmosfera comum, através de processo indescritível na linguagem humana por inexistência de comparação analógica, para que inescrupulosas entidades inferiores não se apro­priassem deles.

Completada a curiosa operação, tive minha atenção voltada para gemidos lancinantes, emitidos de zonas diversas daquela moradia respeitável, ago­ra semelhante a vasto necrotério de almas.

Jerônimo entrara em conversação com várioS colegas, enquanto a maioria dos companheiros en­carnados, em obediência à tradição, atiravam a clássica pàzinha de cal ou poeira sobre o envoltório entregue à profunda cova.

Impressionado com os soluços que ouvia em sepulcro próximo, fui irresistívelmente levado a fa­zer uma observação direta.

Sentada sobre a terra fofa, Infeliz mulher desencarnada, aparentando trinta e seis anos, aproximadamente, mergulhava a cabeça nas mãos, las­timando-se em tom comovedor.

Compadecido, toquei-lhe a espádua e inter­roguei:

— Que sente, minha irmã?

— Que sinto? — gritou ela, fixando em mim grandes olhos de louca — não sabe? Oh! o senhor chama-me irmã... quem sabe me auxiliará para que minha consciência torne a si mesma? Se é pos­sível, ajude-me, por piedade! Não sei diferençar o real do ilusório... Conduziram-me à casa de saúde e entrei neste pesadelo que o senhor está vendo.

Tentava erguer-se, debalde, e implorava, es­tendendo-me as mãos:

— Cavalheiro, preciso regressar! conduza-me, por favor, à minha residência! Preciso retornar ao meu esposo e ao meu filhinho!... Se este pesa­delo se prolongar, sou capaz de morrer!... Acorde-me, acorde-me!...

— Pobre criatura! — exclamei, distraído de toda a curiosidade, em face da compaixão que o triste quadro provocava — ignora que seu corpo voltou ao leito de cinzas! não poderá ser útil ao esposo e ao filhinho, em semelhantes condições de desespero.

Olhou-me, angustiada, como a desfazer-se em ataque de revolta inútil. Mas, antes que explodisse em rugidos de dor, acrescentei:

— Já orou, minha amiga? já se lembrou da Providência Divina?

— Quero um médico, depressa! só ouço pa­dres! — bradou irritadiça — não posso morrer... despertem-me! despertem-me!...

— Jesus é nosso Médico Infalível — tornei — e indico-lhe a oração como remédio providencial para que Ele a assista e cure.

A infeliz, entretanto, parecia distanciada de qualquer noção de espiritualidade. Tentando agarrrar-me com as mãos cheias de manchas estranhas, embora não me alcançasse, gritou estentoricamente:

— Chamem meu marido! não suporto mais! estou apodrecendo!... Oh! quem me despertará?

Da fúria aflita, passou ao choro humilde, fe­rindo-me a sensibilidade. Compreendi, então, que a desventurada sentia todos os fenômenos da de­composição cadavérica e, examinando-a detidamen­te, reparei que o fio singular, sem a luz prateada que o caracterizava em Dimas, pendia-lhe da cabeça. penetrando chão a dentro.

Ia exortá-la, de novo, recordando-lhe os re­cursos sublimes da prece, quando de mim se apro­ximou simpática figura de trabalhador, informan­do-me, com espontânea bondade:

— Meu amigo, não se aflija.

A advertência não me soou bem aos ouvidos. Como não preocupar-me, diante de infortunada mu­lher que se declarava esposa e mãe? como não tentar arrancá-la à perigosa ilusão? não seria jus­to consolá-la, esclarecê-la? Não contive a série de interrogações que me afloraram do raciocínio à boca.

Longe de o interpelado perturbar-se, respon­deu-me tranqüilamente:

— Compreendo-lhe a estranheza. Deve ser a primeira vez que frequenta um cemitério como este. Falta-lhe experiência. Quanto a mim, sou do posto de assistência espiritual à necrópole.

Desarmado pela serenidade do interlocutor, re­novei a primeira atitude. Reconheci que o local, não obstante repleto de entidades vagabundas, não estava desprovido de servidores do bem.

— Somos quatro companheiros, apenas — pros­seguiu o informante —, e, em verdade, não pode­mos atender a todas as necessidades aparentes do serviço. Creia, porém, que zelamos pela solução de todos os problemas fundamentais. Apesar de nosso cuidado, não podemos todavia, esquecer o imperativo de sofrimento benéfico para todos aque­les que vêm dar até aqui, após deliberado desprezo pelos sublimes patrimônios da vida humana.

Atingi o sentido oculto das explicações. O cooperador queria dizer, naturalmente, que a presença, ali, de malfeitores e ociosos desencarnados se justificava em face do grande número de ocio­sos e malfeitores que se afastam diariamente da Crosta da Terra. Era o similia similibus em ação, cumprindo-se os ditames da lei do progresso. Cas­tigando-se e flagelando-se, mütuamente, alcança­riam os desviados a noção do verdadeiro caminho salvador.

Fitei a infeliz e expus meu propósito de au­xiliá-la.

— É inútil — esclareceu o prestimoso guar­da, equilibrado nos conhecimentos de justiça e seguro na prática, pelo convívio diário com a dor -, nossa desventurada irmã permanece sob alta desordem emocional. Completamente louca. Viveu trinta e poucos anos na carne, absolutamente dis­traída dos problemas espirituais que nos dizem res­peito. Gozou, à saciedade, na taça da vida física. Após feliz casamento, realizado sem qualquer pre­paro de ordem moral, contraiu gravidez, situação esta que lhe mereceu menosprezo integral. Com­parava o fenômeno orgânico em que se encontrava a ocorrências comuns, e, acentuando extravagân­cias, por demonstrar falsa superioridade, precipi­tou-se em condições fatais. Chamada ao testemu­nho edificante da abelha operosa, na colmeia do lar, preferiu a posição da borboleta volúvel, se­quiosa de novidades efêmeras, O resultado foi fu­nesto. Findo o parto difícil, sobrevieram infec­ções e febre maligna, aniquilando-lhe o organismo. Soubemos que, nos últimos instantes, os vagidos do filhinho tenro despertaram-lhe os instintos de mãe e a infortunada combateu ferozmente com a morte, mas foi tarde. Jungida aos despojos por conveniência dela própria, tem primado aqui pela inconformação. Vários amigos visitadores, em custo­sa tarefa de benefício aos recém-desencarnados, têm vindo à necrópole, tentando libertá-la. A po­brezinha, porém, após atravessar existências de sólido materialismo, não sabe assumir a menor ati­tude favorável ao estado receptivo do auxilio supe­rior. Exige que o cadáver se reavive e supõe-se em atroz pesadelo, quando nada mais faz senão agra­var a desesperação. Os benfeitores, desse modo, inclinam-se à espera da manifestação de melhoras Intimas, porque seria perigoso forçar a libertação, pela probabilidade de entregar-se a infeliz aos mal­feitores desencarnados.

Indiquei, porém o laço fluídico que a ligava ao envoltório sepulto e observei:

— Vê-se, entretanto, que a mísera experimenta a desintegração do corpo grosseiro em terríveis tormentos, conservando a impressão de ligamento com a matéria putrefata. Não teremos recursos para aliviá-la?

Tomei atitude espontânea de quem desejava tentar a medida libertadora e perguntei:

— Quem sabe chegou o momento? não será razoável cortar o grilhão?

— Que diz? — objetou, surpreso, o interlo­cutor — não, não pode ser! Temos ordens.

— Porque tamanha exigência — insisti.

— Se desatássemos a algema benéfica, ela re­gressaria, Intempestiva, à residência abandonada, como possessa de revolta, a destruir o que encon­trasse. Não tem direito, como mãe infiel ao de­ver, de flagelar com a sua paixão desvairada o corpinho tenro do filho pequenino e, como esposa desatenta às obrigações, não pode perturbar o ser­viço de recomposição psíquica do companheiro ho­nesto que lhe ofereceu no mundo o que possuía de melhor. E’ da lei natural que o lavrador colha de conformidade com a semeadura. Quando acal­mar as paixões vulcânicas que lhe consomem a alma, quando humilhar o coração voluntarioso, de medo a respeitar a paz dos entes amados que dei­xou no mundo, então será libertada e dormirá sono reparador, em estância de paz que nunca fal­ta ao necessitado reconhecido às bênçãos de Deus.

A lição era dura, mas lógica.

A infortunada criatura, alheia a nossa conver­sação, prosseguia gritando, qual demente hospitalizada em prisão dolorosa.

Tentei ampliar as minhas observações, mas o servidor chamou-me a outras zonas, de onde par­tiam gemidos estridentes.

— São vários infelizes, na vigília da loucura

— disse calmo.

E designando um velhote desencarnado, de cócoras sobre a própria campa, acrescentou:

— Venha e escute-o.

Acompanhando meu novo amigo, reparei que o sofredor mantinha-se igualmente em ligação com o fundo.

— Ai, meu Deus! — dizia — quem me guar­dará o dinheiro? Quem me guardará o dinheiro?

Observando-nos a aproximação, rogava súplice:

— Quem são? querem roubar-me! socorram-me, socorram-me!...

Debalde enderecei-lhe palavras de encoraja­mento e consolação.

— Não ouve — informou o sentinela, obse­quioso —, a mente dele está cheia das imagens de moedas, letras, cédulas e cifrões. Vai demorar-Se bastante na presente situação e, como vê, não po­demos em sã consciência facilitar-lhe a retirada, porque iria castigar os herdeiros e zurzí-los diariamente.

Porque não pudesse dissimular o espanto que me tomara o coração, o servidor otimista acentuou:

— Não há motivo para tamanho assombro. Estamos diante de infelizes, aos quais não falecem rproteção e esperança, porqüanto outros existem tão acentuadamente furiosos e perversos que, do fun­do escuro do sepulcro, se precipitam nos tenebrosos despenhadeiros das esferas subcrostais, tal o es­tado deplorável de suas consciências, atraídas para as trevas pesadas.

Sem fugir ao padrão de tranquilidade do cola­borador cônscio do serviço a realizar, acrescentou;

— Segundo concluímos, se há alegria para to­dos os gostos, há também sofrimento para todas as necessidades.

Nesse instante, Jerônimo chamou-me a postos.

Agradeci ao amável informante, profundamente emocionado pelo que vira, e despedi-me inconti­nenti. Esvaziara-se de companheiros encarnados a necrópole e o próprio coveiro dirigia-se à saída.

Foi comovente o adeus entre Dimas e a geni­tora, que prometeu visitá-lo, sempre que possível.

Após agradecimentos mútuos e recíprocos vo­tos de paz, sentimo-nos, enfim, em condições de partir por nossa vez.

Antes, porém, minha curiosidade inquiridora desejava entrar em ação. Como se sentiria Dimas, agora? não seria interessante consultar-lhe as opi­niões e os informes? Testemunho valioso poderia fornecer-me para qualquer eventualidade futura de esclarecer a outrem.

Em minha esfera pessoal de observação, não pudera colher pormenores, uma vez que a morte me surpreendera em absoluto alheamento das teses de vida eterna e, no derradeiro transe carnal, mi­nha inconsciência fora completa.

Nosso dirigente percebeu-me o propósito e fa­lou, bem humorado:

— Pode perguntar a Dimas o que você deseja saber.

Manifestei-lhe reconhecimento, enquanto o re­cém-liberto aquiescia, bondoso, aos meus desejos.

— Sente, ainda, os fenômenos da dor física? comecei.

— Guardo Integral impressão do corpo que acabei de deixar — respondeu ele, delicadamente.

— Noto, porém, que, ao desejar permanecer ao lado dos meus, e continuar onde sempre estive duran­te muitos anos, volto a experimentar os padeci­mentos que sofri; entretanto, ao conformar-me com os superiores desígnios, sinto-me logo mais leve e reconfortado. Apesar da reduzida fração de tempo em que me vejo desperto, já pude fazer semelhan­te observação.

— E os cinco sentidos?

— Tenho-os em função perfeita.

— Sente fome?

— Chego a notar o estômago vazio e ficaria satisfeito se recebesse algo de comer, mas esse desejo não é incômodo ou torturante.

—E sede?

— Sim, embora não sofra por isso.

Ia continuar o curioso inquérito, mas Jerôni­mo, sorridente, desarmou-me a pesquisa, asseve­rando:

— Você pode intensificar o relatório das im­pressões, quanto deseje, interessado em colaborar na criação da técnica descritiva da morte, certo, porém, de que não se verificam duas desencarnações rigorosamente iguais. O plano impressivo de­pende da posição espiritual de cada um.

Sorrimos todos, ante meus impulsos juvenis de saber, e, amparando Dimas, carinhosamente, efe­tuamos, satisfeitos, a viagem de volta.


16

Exemplo cristão

De conformidade com o roteiro de serviço tra­çado pelo Assistente, Hipólito e Luciana ficariam na Casa Transitória, atendendo as necessidades pre­mentes de Dimas recém-liberto, enquanto nós ambos acompanharíamos Fábio, em processo desencar­nacionista.

— Fábio permanece em excelente forma — esclareceu-nos o orientador — e não exigirá coope­ração complexa. Preparou, com relação ao aconte­cimento, não sômente a si mesmo, senão também os parentes, que, ao invés de nos preocuparem, como acontece comumente, serão úteis colaboradores de nossa tarefa.

Falava Jerônimo com sólida razão porque, em verdade, mostrava-se Dimas em lastimável abati­mento. Apesar da fé que lhe aquecia o espírito, as saudades do lar infundiam-lhe inexprimível an­gústia. Às vezes, finda a conversação serena em que se revelava calmo e seguro nas palavras, pu­nha-se a gemer doridamente, chamando a esposa e os filhos, inquieto. Em tais momentos, tornava aos sintomas da moléstia que lhe vitimara o corpo denso e, com dificuldade, conseguíamos subtraí-lo à estranha psicose, fazendo-o regressar à posição normal. Tentava desvencilhar-se de nossa influên­cia amiga, como se houvera enlouquecido repenti­namente, no propósito de fugir sem rumo certo. Gritava, gesticulava, afligia-se, como sonâmbulo in­consciente.

Não pude dissimular a surpresa que me assaltou diante da ocorrência. Se estivéssemos tratando com criatura alheia aos serviços da espiritualida­de superior, compreensível seria o quadro que se desenrolava aos nossos olhos; mas Dimas fora instrumento dedicado do Espiritismo evangélico, con­sagrara a existência às benditas realizações da consoladora doutrina do túmulo vazio pela vida eterna. De antemão, sabia na esfera carnal que seria submetido às lições da morte e que não lhe faltariam ricas possibilidades de continuar junto da parentela, já dele separada, aparentemente, se­gundo o simples ponto de vista material. Porque semelhantes distúrbios? não merecera ele excep­cional atenção de nossos superiores hierárquicos?

Vali-me de momento adequado e expus ao nosso dirigente as indagações que me absorviam o raciocínio. Sem qualquer nota admirativa, Jerô­nimo respondeu-me, bem humorado:

— Você deve saber, André, que cada qual de nós é, por si mesmo, todo um mundo. Esclareci­mentos e consolações são dádivas de Deus, Nosso Pai, mas convicções e realizações constituem obra nossa. Cada servidor tem a escala própria de edi­ficações, na tábua de valores imortais. A assem­bléia de aprendizes receberá a mesma bagagem de ensinamentos, de modo geral, organizada para todos os indivíduos que a integram. Diferenciam-se, porém, os alunos, na série do aproveitamento particular, O mérito não é patrimônio comum, em­bora seja a glória do cume, a desafiar todos os ca­minheiros da vida para a suprema elevação. Dimas foi destacado discípulo do Evangelho, principal­mente no setor de assistência e difusão, mas, quan­to a si mesmo, não fêz aproveitamento integral das lições recebidas. Espalhou as sementes da luz e da verdade, dedicou-se largamente à causa do bem, merecendo, por isso mesmo, socorro especia­líssimo. Contudo, no campo particular, não se pre­parou suficientemente. Qual ocorre à maioria dos homens, prendeu-se demasiadamente às teias do­mésticas, sem maior entendimento. Conferiu exces­sivo carinho à roda familiar, sem noção de eqüi­dade, no caminho terrestre. Certamente, sob o ponto de vista humano, consagrou-se o necessário à companheira e aos rebentos do lar; mas, se lhes prodigalizou muita ternura, não lhes proporcionou todo o esclarecimento de que dispunha, libertan­do-os da esfera pesada de incompreensão. E ago­ra, muito naturalmente, sofre-lhes o assédio. A inquietude dos parentes atinge-o, através dos fios invisíveis da sintonia magnética.

Sorriu, benévolo e continuou:

— Nosso irmão, inegàvelmente, fêz por mere­cer o auxilio de nosso plano, pois conseguiu enfileirar amigos prestigiosos que lhe dedicam valiosos serviços intercessórios, mas não se preparou, inte­riormente, considerando-se as necessidades do de­sapego construtivo. Gastará, desse modo, alguns dias para edificar a resistência.

O ensinamento significava muito para mim, que via tão dedicado servidor, cercado da mais honrosa consideração, por parte das autoridades de nosso plano, em porfiada luta consigo mesmo para res­taurar seu próprio equilíbrio. E conclui, mais uma vez, que o amor pode improvisar infinitos recur­sos de assistência e carinho, acordando faculdades superiores do Espírito, mas que a lei divina é sem­pre a mesma para todos. O obséquio é ofício su­blime, no culto ativo da cooperação fraterna; to­davia, cada homem, por si, elevar-se-á ao céu ou descerá aos Infernos transitórios, em obediência às disposições mentais em que se prende.

Atravessado curto período de proveitosas ob­servações e marcada a libertação do novo amigo, Jerônimo e eu tornamos à Crosta, de modo a de­sobrigar-nos da Incumbência.

Acercamo-nos do bairro pobre em que Fábio situara o ninho doméstico. A casinha singela en­cantava. Rodeada de folhagens e flores, via-se que todo o espaço merecera a ternura dos moradores.

De longe, chegava o barulho da enorme cidade. Espíritos vadios passavam de largo, em lamentável promiscuidade. Nas adjacências erguiam-se alguns bangalôs novos, que lhes ofereciam livre acesso, fa­zendo-nos adivinhar a triste influenciação de que eram objeto. Naquela residência pequena e humil­de, havia, no entanto, paz e silêncio, harmonia e bem-estar. A nossa apreciação, parecia delicioso oásis em meio de vasto deserto.

Entramos.

Três amigos espirituais receberam-nos. Um deles, Aristeu Fraga, conhecido pessoal de Jerônimo, abraçou-nos, festivo, e anunciou que faziam visita ao enfermo, então nas últimas horas do cor­po material. Agradeceu-nos o interesse pelo de­sencarnante e apresentou-nos o irmão Silveira, ge­nitor de Fábio na Terra, que desejava colaborar conosco, em favor do filho querido. Estava satis­feito, informou. O filho arregimentara todas as medidas relacionadas com a próxima libertação, submetendo-se, dócil, aos desígnios superiores - Ti­vera existência modesta; limitara o vôo das ambições mais nobres, no culto da espiritualidade re­dentora; esforçara-se suficientemente pela tran­qüilidade familiar; fora acicatado por dificuldades sem conta, no transcurso da experiência que ter­minava; deixava a esposa e dois filhinhos ampa­rados na fé viva, e, embora não lhes legasse facilidades econômicas, afastava-se do corpo físico, jubiloso e confortado, com a glória de haver apro­veitado todos os recursos que a esfera superior lhe havia concedido. Além de haver-se afeiçoado pro­fundamente ao Evangelho do Cristo, vivendo-lhe os princípios renovadores, com todas as possibili­dades ao seu alcance, Fábio conseguira iluminar a mente da companheira e construir bases sóli­das no espírito dos filhinhos, orientando-os para o futuro.

Elogiava-se de tal forma o companheiro, que, admitido à palestra, arrisquei uma pergunta:

— Fábio desencarnará na ocasião prevista?

— Sim — elucidou Jerônimo, com gentileza —, estamos de posse das instruções. Nosso amigo desencarnará no tempo devido.

— É verdade — confirmou o pai emocionado — ele aproveitou todos os recursos que se lhe con­feriram. malgrado o corpo franzino e doente, desde a Infância.

Traindo a condição de médico sempre interes­sado em estudar, considerei:

— É lamentável tenha renascido em seme­lhante organismo quem sabe servir com tanto va­lor à causa do bem...

O genitor sentiu-se na necessidade de esclarecer o assunto, porque prosseguiu, calmo:

— Este é, de fato, argumento humano dos mais ponderáveis. Quando na carne, frequentes vezes surpreendi-me com a saúde frágil de Fábio, em criança. Desde cedo, notei-lhe a virtude inata, o pendor para a retidão e para a justiça, as dis­posições congênitas para os trabalhos da fé viva. Passei longas noites na justa preocupação de pai, em vista do porvir incerto. Como poderia nascer alma tão sensível e formosa, como a dele, em vaso tão Imperfeito? Aos doze anos, foi atacado de pneumonia dupla, que quase o arrebatou de nos­so convívio. Clínico amigo chamou-me a atenção para a debilidade do rapazinho. Éramos, no entan­to, demasiadamente pobres para tentar tratamentos caros em estâncias de repouso. Antes dos cator­ze anos, terminado o curso das letras primárias, conduzi-o ao serviço pela exigência imperiosa do ganha-pão. Sabia, como pai, que Fábio desejava continuar estudando, para o aprimoramento das faculdades intelectuais, em face dos seus pendores para o desenho e para a literatura, porque, não poucas vezes, surpreendi-o namorando o educan­dário vizinho de nossa casa, ralado de inveja ao reparar os colegiais em bandos festivos. As nos­sas condições de vida, no entanto, nos reclamavam esforço ingente; e meu filho, atirado à luta, desde muito cedo, não encontrou ensejo para as construções artísticas que idealizava. Segregando-se na oficina de mecânica, em ambiente pesado demais para a sua constituição física, ele não o tolerou por muito tempo, contraindo com facilidade a tu­berculose pulmonar.

— Mas chegou a saber a causa determinante da posição física de Fábio, ao regressar ao plano espiritual? — indaguei.

— Isso representou um dos primeiros proble­mas que procurei elucidar. Passado algum tempo, fui devidamente esclarecido. Meu filho e eu fomos destacados fazendeiros na antiga nobreza rural fluminense. Nessa época, não muito recuada, Fá­bio, noutro nome e noutra forma, era igualmente meu filho. Eduquei-o com desvelado carinho e, por mais de uma vez, enviei-o à Europa, ansioso por elevar-lhe o padrão intelectual e cioso de nossa superioridade financeira. Ambos, porém, cometemos graves erros, mormente no trato direto com os descendentes de africanos escravos. Meu filho era sensível e generoso, mas excessivamente austero para com os servidores das tarefas mais duras. Congregava-os na senzala, com severidade rigoro­sa, e perdemos grande número de cooperadores em virtude do ar viciado pela construção deficiente que Fábio conservou inalterável, simplesmente para manter ponto de vista pessoal.

Os olhos do narrador brilharam mais intensa­mente. Pareceu menos bem, ao contacto das recor­dações, e acentuou com melancolia:

— O romance é longo e peço-lhes permissão para interrompê-lo.

Senti remorsos por haver provocado a dificul­dade, mas Jerônimo interveio em meu socorro.

— Não pensemos mais nisso — exclamou o Assistente, bem humorado —, nunca me conformo com a exumação de cadáveres...

E enquanto a alegria tornava ao ambiente, meu orientador acrescentou:

— Prestemos ao enfermo a assistência possí­vel. Nesta noite, afastá-lo-emos definitivamente do corpo carnal.

Levantamo-nos e penetramos o quarto.

Fábio, fundamente abatido, respirava a custo, acusando indefinível mal-estar. Junto dele, a es­posa velava, atenta.

Através da janela aberta, o doente reparou que a cidade acendia as luzes. Ergueu os tristes olhos para a companheira e observou:

— Interessante verificar como a aflição se agrava à noite...

— É fenômeno passageiro, Fábio — afirmou a esposa, tentando sorrir.

Entre nós, todavia, iniciaram-se providências para socorro imediato, O pai do enfermo dirigiu-se a Jerônimo:

— Sei que a libertação de Fábio exige grande esforço. Entretanto, desejava auxiliá-lo no derra­deiro culto doméstico em que tomará parte fisi­camente ao lado da família. Regra geral, as últimas conversações dos moribundos são gravadas com mais carinho pela memória dos que ficam. Em razão disso, ser-me-ia sumamente agradável ajudá-lo a endereçar algumas palavras de aviso e estímulo à companheira.

— Com muita satisfação — aquiesceu o As­sistente — colaboraremos também na execução desse propósito. É mais conveniente que a famí­lia esteja a sós.

— Bem lembrado! — disse o genitor, agra­decido.

Reparei que Jerônimo e Aristeu passaram a aplicar passes longitudinais no enfermo, observan­do que deixavam as substâncias nocivas à flor da epiderme, abstendo-se de maior esforço para alijá­-las de vez. Finda a operação, indaguei dos mo­tivos que os levavam a semelhante medida.

— Está muito enfraquecido, agonizando quase — informou o meu dirigente — e fazemos o pos­sível por beneficiá-lo, sem lhe aumentar o cansaço. As substâncias retidas nas paredes da pele serão absorvidas pela água magnetizada do banho, a ser usado em breves minutos.

Efetivamente, atendendo à influenciação dos amigos espirituais, que lhe davam intuições indiretamente, Fábio dirigiu-se à esposa, expressando o desejo de leve banho morno, no que foi atendido em reduzidos instantes.

Jerônimo e Aristeu ministraram à água pura certos agentes de absorção e ampararam a dedi­cada senhora, que, por sua vez, auxiliou o marido a banhar-se, como se estivesse satisfazendo o de­sejo de uma criança.

Notei, admirado, que a operação se fizera acompanhar de salutaríssimos efeitos, surpreendendo-me. mais uma vez, ante a capacidade absorvente da água comum. A matéria fluídica prejudicial fora integralmente retirada das glândulas sudorí­paras.

Terminado o banho, o enfermo voltou ao leito, em pijama, de fisionomia confortada e espírito bem disposto. Algumas fricções de álcool, levadas a efeito, completaram-lhe a melhora fictícia.

O relógio marcava alguns minutos além das dezenove horas.

Silveira, que se havia ausentado, voltou depres­sa, falando particularmente a Jerônimo, a quem informou:

— Tudo pronto. Conseguiremos a reunião ex­clusiva da família.

O Assistente mostrou satisfação e salientou a necessidade de acelerar o ritmo do trabalho. O bondoso pai desencarnado movimentou-se. A tecla mais sensível à nossa atuação foi quando Fábio se dirigiu à esposa, ponderando:

— Creio não devermos adiar o serviço da pre­ce. Sinto-me inexplicavelmente melhor e desejaria aproveitar a pausa do repouso.

Dona Mercedes, a abnegada senhora, trouxe ambas as crianças, que se sentaram na posição respeitosa de ouvintes. E enquanto a esposa se acomodava ao lado dos pequenos, o enfermo, auxiliado pelo pai, abriu o Novo Testamento, na pri­meira epístola de Paulo de Tarso aos Coríntios e leu o versículo quarenta e quatro do capítulo quinze:

— “Semeia-se corpo animal, ressuscitará cor­po espiritual. Há corpo animal, e há corpo espi­ritual.”

Fêz-se curto silêncio, que o doente interrom­peu, iniciando a prece, comovido:

— Rogo a Deus, nosso Eterno Pai, me inspire na noite de hoje, para conversarmos intimamente e espero que a Divina Providência, por Intermédio de seus abençoados mensageiros, me ajude a enun­ciar o que desejo, com a facilidade necessária. En­quanto possuimos plena saúde física, enquanto os dias e as noites correm serenos, supomos que o corpo seja propriedade nossa. Acreditamos que tudo gira na órbita de nossos impulsos, mas... ao chegar a enfermidade, verificamos que a saúde é tesouro que Deus nos empresta, confiante.

Sorriu, calmo e conformado. Até ali, via-se bem que era Fábio o expositor exclusivo das palavras. Expressava-se em voz correntia, ruas sem calor entusiástico, dada a sua situação de extrema fraqueza.

Findo intervalo mais longo, o genitor descan­sou a destra em sua fronte, mantendo-se na atitude de quem ora com profunda devoção. Reparei, surpreso, que luminosa corrente se estabelecera no organismo débil, desde a massa encefálica até o coração, inflamando as células nervosas, então se­melhando a minúsculos pontos de luz condensada e radiante. Os olhos de Fábio, pouco a pouco, adqui­riram mais brilho e a sua voz fêz-se ouvir, de novo, com diferente Inflexão. Dirigindo à esposa e aos filhinhos o olhar terno, agora otimista e percuciente, passou a dizer, inspirado:

— Estou satisfeito pela oportunidade de tro­carmos ideias a sós, dentro da fé que nos Identifica. É significativa a ausência dos velhos amigos que nos acompanham as orações familiares, desde muitos anos. Não é sem razão. Precisamos comen­tar nossas necessidades, cheios de bom ânimo, den­tro da noção da próxima despedida. A palavra do apóstolo dos gentios é simbólica na situação pre­sente. Assim como há corpos animais, há também corpos espirituais. E não Ignoramos que meu cor­po animal, em breve tempo, será restituido à terra acolhedora, mãe comum das formas perecíveis, em que nos movimentamos na face do mundo. Algo me diz ao coração que esta será talvez a última noite em que me reunirei com vocês, neste corpo... Nos momentos em que o sono me abençoa, sinto-me nas vésperas da grande liberdade... Vejo que amigos iluminados me preparam o coração e estou certo de que partirei na primeira oportunidade. Acredito que todas as providências já foram leva­das a efeito, em beneficio de nossa tranquilidade, nestes minutos de separação. Em verdade, não lhes deixo dinheiro, mas conforta-me a certeza de que construímos o lar espiritual de nossa união subli­me, ponto indelével de referência à felicidade imor­redoura...

Fitou particularmente a esposa, tomado de maior emoção, e prosseguiu:

— Você, Mercedes, não tema os obstáculos da sombra. O trabalho digno ser-nos-á fonte bendita de realização. Creia que a saudade edificante es­tará sempre em meu espírito, seja onde for, sau­dade de sua convivência, de sua afetuosa dedica­ção. Isto, porém, não constituirá algema pesada, porque nós dois aprendemos na escola da simpli­cidade e do equilíbrio que o amor legítimo e puri­ficado não prescinde da compreensão santificante. Decerto, necessitarei de muita paz, a fim de rea­daptar-me à vida diferente e, por isso, pretendo deixá-los com tranquilidade suficiente para que to­dos nos ajustemos aos designios de Deus. Conhe­ço-lhe a nobreza heróica de mulher afeiçoada ao trabalho, desde muito cedo, e entendo a pureza de seus ideais de esposa e mãe. Entretanto, Mercedes, releve-me a franqueza neste instante expressivo da experiência atual: sei que minha ausência se fará seguir de problemas talvez angustiosos para o seu espírito sensível. A solidão torna-se aflitiva, para a mulher jovem, sem a vizinhança dos carinhosos laços de pais e irmãos consangüíneos, que já não possuímos neste mundo, quando não é possível con­servar a mesma vibração de fé, através das diver­sas circunstâncias do caminho... Não posso exigir de você fidelidade absoluta aos elos materiais que nos unem, porque seria exercer cruel oDressão a pretexto de amor. Além disso, nada quebrará nos­sa aliança espiritual, definitiva e eterna.

Observei que Fábio arquejava, fortemente emo­cionado.

Transcorridos alguns segundos de breve pausa, continuou, irradiando seus olhos verdadeira afeição e sinceridade fiel:

— Por isso, Mercedes, embora tenhamos pro­videnciado sua posição futura no trabalho honesto, quero dizer a você que ficarei muito satisfeito se Jesus enviar-lhe um companheiro digno e leal ir­mão. Se isso acontecer, querida, não recuse. Feliz­mente, para nós, cultivamos a ligação imperecível da alma, sem que o monstro do ciúme desvairado nos guarde o castelo afetivo... Não sabemos quan­tos anos lhe restam de peregrinação por este mun­do. É provável que a Vontade Divina prolongue por mais tempo a sua permanência na Terra, e, se me for possível, cooperarei para que não fique sozinha. Nossos filhos, ainda frágeis, necessitam de amparo amigo na orientação da vida prática...

Dona Mercedes, enxugando os olhos lacrimosos, esboçou gesto de quem ia protestar, todavia, adiantou-se-lhe o doente, acrescentando:

— Já sei o que dirá. Nunca duvidei de sua virtude incorruptível, de seu desvelado amor. Nem estou a desinteressar-me da abnegada companheira de luta que o Senhor me confiou. Reconheça, po­rém, que temos vivido em profunda comunhão espi­ritual e devemos encarar, com sinceridade e lógica, minha partida próxima. Se você conseguir triunfar de todas as necessidades da vida humana, manten­do-se a cavaleiro das exigências naturais da exis­tência terrestre, certamente Jesus compensará seu esforço com a láurea dos bem-aventurados. Toda­via, não procure escalar o cume glorioso da plena vitória espiritual num só vôo. Nossos corações, Mercedes, são como as aves: alguns já conquis­taram a prodigiosa força da águia; outros, con­tudo, guardam, ainda, a fragilidade do beija-flor. Sofreria, de fato, por minha vez, se a visse afron­tando a montanha redentora, com falsa energia. Não tenha medo. Criaturas perversas não ame­drontam almas prudentes. Concedeu-nos o Senhor bastante luz espiritual para discernir. Você jamais poderá ser vitima de exploradores inconscientes, porque o Evangelho de Jesus está colocado diante de seus olhos’ para iluminar o caminho escolhido. Portanto, a observação e o juízo, o exercício espi­ritual e a inspiração de ordem superior, permane­cerão a serviço de suas decisões sentimentais. E creia que farei tudo, em espírito, por auxiliá-la nesse sentido.

Sorriu, com esforço, enquanto a esposa cho­rava, discreta. Após longo interregno, frisou:

— Se eu puder, trarei estrelas do firmamento para enfeite de suas esperanças. Você estará sem­pre mais viva em meu coração; amarei também a todos aqueles que forem assinalados por sua es­tima enobrecedora.

Em seguida, após fitar demoradamente os fi­lhinhos, aduziu:

— A palavra apostólica no Evangelho confor­ta-nos e esclarece-nos, como se faz indispensável. Em breve tempo, reunir-me-ei aos nossos na Vida Maior. Perderei meu corpo animal, mas conquis­tarei a ressurreição no corpo espiritual, a fim de esperá-los, alegremente.

Verificava-se que o enfermo despendera muito esforço. Fatigara-se.

O genitor retirou a destra da fronte de Fábio, desaparecendo a corrente fluídico-luminosa que o ajudara a pronunciar aquela impressionante alocução de amor acrisolado.

Demonstrando sublime serenidade nos olhos brilhantes, recostou-se nos volumosos travesseiros, algo abatido.

Dona Mercedes compôs a fisionomia, afastando os vestígios das lágrimas, e falou para o filhinho mais velho:

— Você, Carlindo, fará a prece final.

Fábio mostrou satisfação no semblante, en­quanto o rapazinho se erguia, obediente à recomendação ouvida. Com naturalidade, recitou curta oração que aprendera dos lábios maternos:

— Poderoso Pai dos Céus, abençoa-nos, conce­dendo-nos a força precisa para a execução de tua lei, trazida ao mundo com o Evangelho de Nosso Senhor Jesus-Cristo. Faze-nos melhores no dia de hoje para que possamos encontrar-te amanhã. Se permites, ó meu Deus! nós te pedimos a saúde do papai, de acordo com a tua soberana vontade. Assim seja!...

Terminada a rogativa e quando os pequenos beijavam sua mamãe, antes do sono tranquilo, o en­fermo pediu à esposa, com humildade:

— Mercedes, se você concorda, sentir-me-ia feliz por beijar, hoje, os meninos...

A senhora aquiesceu, comovida.

— Traga-me um lenço novo — solicitou o es­poso, enternecido.

A dona da casa, em poucos instantes, apresentava-lhe alvo fragmento de linho. Emocionado, vi que o pai cristão aplicou o nevado pano à cabe­leira das crianças e beijou o linho, ao invés de os­cular-lhes os cabelos. Contudo, havia tanta alma, tanto fervor afetivo naquele gesto, que reparei o jato de luz que lhe saia da boca, atingindo a mente dos pequeninos. O beijo saturava-se de magnetismo santificante. Jerônimo, comovido de maneira especial, dirigiu-me a mim, em voz sussurrante:

— Outros verão micróbios; nós vemos amor...

Logo após, a pequena família recolheu-se. O enfermo sentia-se singularmente melhorado, bem disposto.

Em nosso grupo havia geral contentamento.

As crianças dormiram sem demora e foram, por Aristeu, conduzidas, fora do corpo físico, a uma paisagem de alegria, de modo a se entreterem, descuidadas...

A sós com o doente e a esposa, que tentavam conciliar o sono, encetamos o serviço de libertação.

Enquanto Silveira amparava o filho, com inex­cedível carinho, Jerônimo aplicou ao enfermo passes anestesiantes. Fábio sentiu-se bafejado por delicio­sas sensações de repouso. Em seguida, o Assistente deteve-se em complicada operação magnética sobre os órgãos vitais da respiração e observei a ruptura de importante vaso. O paciente tossiu e, num áti­mo, o sangue fluiu-lhe à boca aos borbotões.

Dona Mercedes levantou-se, assustada, mas o esposo, falando dificilmente, tranqüilizou-a:

— Pode chamar o médico... entretanto, Mer­cedes... não se preocupe... é justamente o fim...

Enquanto prosseguia Jerônimo separando o organismo perispiritual do corpo débil, Dona Mercedes pediu o socorro de um vizinho, que saiu. prestativo, em busca do clínico especializado.

O médico não tardou, trazido cêleremente por automóvel, mas embalde aplicaram a solução de adrenallna, a sangria no braço, os sinapismos nos pés e as ventosas secas no peito. O sangue em golfadas rubras, fluia sempre, sempre...

Reparei que Jerônimo repetia o processo de libertação praticado em Dimas, mas com espantosa facilidade. Depois da ação desenvolvida sobre o plexo solar, o coração e o cérebro, desatado o nó vital, Fábio fora completamente afastado do corpo físico. Por fim, brilhava o cordão fluídico-pratea­do, com formosa luz. Amparado pelo genitor, o recém-liberto descansava, sonolento, sem consciên­cia exata da situação.

Supus que o caso de Dimas se repetiria, ali, minudência por minudência; porém, uma hora depois da desencarnação, Jerônimo cortou o apêndice luminoso.

— Está completamente livre — declarou meu orientador, satisfeito.

O pai enternecido depositou sobre a fronte do filho desencarnado, em brando sono, um beijo re­passado de amor e entregou-o a Jerônimo, asse­verando:

— Não desejo que ele me reconheça de pronto. Não seria aproveitável levá-lo agora a recordações do passado. Encontrá-lo-ei mais tarde, quando te­nha de partir da instituição socorrista para as zonas mais altas. Pode conduzi-lo sem perda de tempo. Incumbir-me-ei de velar pelo cadáver, inu­tilizando os derradeiros resíduos vitais contra o abuso de qualquer entidade inconsciente e perversa.

O Assistente agradeceu, emocionado, e parti­mos, conduzindo o sagrado depósito que nos fora confiado.

Enquanto prosseguíamos, espaço acima, con­templei, respeitoso, o primeiro anúncio da aurora e, observando Fábio adormecido, tive a impressão de que gloriosos portos do Céu se iluminavam de sol para receber aquele homem, de sublime exem­plo cristão, que subia vitorioso, da Terra...


17

Rogativa singular

Enquanto Dimas se restaurava paulatinamen­te, Fábio cobrava forças de modo notavelmente rápido. Os longos e difíceis exercícios de espiri­tualidade superior, levados a efeito na Crosta, frutificavam, agora, em bênçãos de serenidade e com­preensão. Ambos repousavam, na Casa Transitória, amparados pela simpatia geral da Instituição que a Irmã Zenóbia dirigia. Ao mesmo tempo, prosse­guíamos em constante cuidado, junto aos demais amigos, principalmente ao pé de Cavalcante, cuja situação orgânica piorava sempre, nas vizinhanças do fim.

Dimas, com o exemplo de Fábio, criara novo ânimo. Reagia, com mais calor, perante as exigên­cias da família terrena e consolidava a serenidade própria, com a precisa eficiência. O ex-tuberculoso, iluminado e feliz, notava que outros horizontes se lhe abriam ao espírito sensível e bondoso. Podia levantar-se à vontade, transitar nas diversas sec­ções em que se subdividiam os trabalhos do insti­tuto e dava gosto vê-lo interessado nos estudos referentes aos planos elevados do Universo sem fim. Experimentava tranquilidade. Não era um gênio das alturas, não completara suas necessida­des de sabedoria e amor; entretanto, era servo distinto, em posição invejável pelos débitos pagos e pela venturosa possibilidade de prosseguir a ca­minho de altos e gloriosos cumes do conhecimento. A Irmã Zenóbia dava-se ao prazer de ouvi-lo, nos rápidos minutos de lazer, e, freqüentemente, ma­nifestava a Jerônimo suas agradáveis impressões a respeito dele.

Tanta alegria provocou o discípulo fiel, com a disciplina emotiva de que dava testemunho, que o nosso Assistente tomou a iniciativa de trazer-lhe a esposa, em visita ligeira. Lembro-me da comoção de Mercedes ao penetrar o pórtico do instituto, pelo braço amigo de nosso orientador. Estava atô­nita, deslumbrada, extática. Não possuia consciên­cia perfeita da situação, mas demonstrava sublime agradecimento. Conduzida à câmara em que o com­panheiro a esperava, ajoelhou-se instintivamente. Sensibilizamo-nos todos, ante o gesto de espontânea humildade.

Fábio, sorridente, disfarçando a forte emoção, dirigiu-lhe a palavra, exclamando:

— Levante-se, Mercedes! comungamos agora na felicidade imortal!

A esposa, porém, inebriada de ventura, fecha­ra-se em compreensível silêncio. O amigo adiantou-se, ergueu-a e abraçou-a com infinito carinho.

— Não se amedronte com a viuvez, minha querida! — continuou — estaremos sempre juntos. Lembra-se de nosso entendimento derradeiro?

Mercedes entreabriu os lábios e fêz sinal afir­mativo.

— Dê-me notícias dos filhinhos! — pediu o consorte desencarnado, a sorrir — nada disse ain­da... Porquê? fale, Mercedes, fale! Mostre-me sua alegria vitoriosa!

A esposa fixou nele, com mais atenção, os olhos meigos e brilhantes e disse, chorando de júbilo:

— Fábio, estou agradecendo a Jesus a gra­ça que me concede... como sou feliz, tornando a vê-lo!...

Lágrimas copiosas corriam-lhe das faces.

Em seguida, após curto intervalo, informou:

— Nossos pequenos vão bem. Lembramo-nos de você, incessantemente... Todas as noites, reu­nimo-nos em oração, implorando a Deus, nosso Pai, conceda a você alegria e paz na vida diferente que foi chamado a experimentar.

Outra pausa em que a nobre senhora tentou conter o pranto.

— Quero avisá-lo — prosseguiu — de que já estou trabalhando. O senhor Frederico, nosso ve­lho amigo, deu-me serviço. Carlindo vela pelo ir­mão, enquanto me ausento, e creio que nada nos falta em sentido material. Temos apenas...

E a esposa dedicada interrompeu-se nas ex­pressivas reticências, receosa talvez de ofendê-lo.

— Continue! — falou o companheiro sensibi­lizado.

— Não se zangará — disse Mercedes, reani­mando-se — se eu reclamar contra as saudades imensas? Em nossas refeições e preces, há um lu­gar vazio, que é o seu. Creia, porém, que faço o possível por não feri-lo. Coloquei mentalmente a presença de Jesus, o nosso Mestre invisível, onde você sempre esteve. Desse modo, sua ausência em casa está cheia da confiança fervorosa nesse Amigo Certo que você me ensinou a encontrar...

Reparei que o esposo, não obstante a eleva­ção que o caracterizava, desenvolveu visível esforço para não chorar. Fazendo-se otimista, observou:

— Não apague a luz da esperança. Não me zango em sabê-los saudosos, pois também eu sinto falta de sua presença, de sua ternura, da carícia de nossos filhos, mas ficaria contrariado se sou­besse que a tristeza absorveu nosso ninho alegre. Tenha coragem e não desfaleça. Logo que for pos­sível, retomarei meu lugar, em espírito. Estarei com você no ganha-pão, assisti-la-ei nos exercícios da prece e respirarei a atmosfera de seu carinho. Para isso, por enquanto, preciso escorar-me em sua fortaleza de ânimo e não dispenso o seu amoroso auxilio. Sinto-me cercado de bons amigos que não nos esquecem e, quem sabe, estaremos, lado a lado, de novo, em porvir não remoto? Avisaram-me de que a Divina Bondade me concedeu ingresso em colônia de trabalho santificador, a fim de prosse­guir em meus serviços de elevação. Poderei talvez tecer diferente e mais belo ninho para aguardá-la. Ouço dizer, Mercedes, que o Sol é muito mais lindo nessa paisagem de encantadora luz e que, ànoite, as árvores floridas assemelham-se a formo­sos lampadários, porque as flores maravilhosas retêm o luar divino...

Nesse instante, determinada interrogação ir­rompeu-me no raciocínio. Se Fábio havia feito tantos amigos em nosso núcleo de serviço, desde outro tempo, a ponto de merecer-lhes especial considera­ção, como se mostrava adventício, a respeito do noticiário de nossa esfera? Sintetizando compridas indagações em pequenina pergunta ao Assistente Jerônimo, respondeu-me o orientador em duas sen­tenças curtas:

— A morte não faz milagres. Retomar a lem­brança é também serviço gradual, como qualquer outro que envolva atividades divinas da Natureza.

Calei-me, atento.

Fitando a visitante, enternecido, o marido re­cém-liberto considerava:

— Acredita que não vale a pena sofrer, de algum modo, para conseguir tão sagrado patrimônio? Nossos filhos crescerão depressa, as lutas se­rão breves, as situações carnais transitórias. Não desanime, portanto - A Providência jamais se em­pobrece e nos enriquecerá de bênçãos.

Mostrou a esposa formosa expressão de con­forto no semblante feliz e, mobilizando as mais íntimas energias da alma humilde, manteve-se, por alguns instantes, de mãos postas, como a agra­decer a Deus o imenso júbilo daquela hora -

Jerônimo fêz significativo sinal, avisando em silêncio que findara o tempo da visita.

A Irmã Zenóbia, que acompanhou a cena, co­movida, junto de nós, tomou de uma flor semelhante a uma grande camélia dourada e deu-a a Fábio, para que presenteasse a companheira.

Mercedes recebeu a dádiva, conchegando-a ao coração.

Nosso dirigente aproximou-se de mim e noti­ficou-me:

— André, acompanhe-nos à Crosta. Nossa ami­ga perdeu grande porção de forças com a emoção e ser-nos-á útil sua cooperação na volta.

Despediu-se a viúva e, em breve, era por nós reconduzida ao lar. E, ainda agora, ao relatar a experiência, recordo-me da estranha sensação de felicidade que Mercedes sentiu, ao despertar no lei­to com a perfeita impressão de guardar a delicada flor entre os dedos.

Tudo, pois, corria bem no círculo dos traba­lhos que nos foram cometidos, quando nosso mentor foi chamado por autoridade superior de nossa colônia. Esperei impaciente o regresso dele, porque Jerônimo, em obediência às determinações recebi­das, deveria partir, imediatamente, para entendi­mento inadiável.

Recomendou-nos aguardá-lo, em serviço na Casa Transitória, acentuando que seria breve.

De fato, não se demorou mais de um dia. E, ao regressar, cientificou-nos da novidade. A irmã Albina fora autorizada a permanecer na Crosta Planetária por mais tempo, razão por que a desencarnação fora adiada “sine die”. Certa rogativa influíra decisivamente no assunto. Entrara em jogo imperiosa exigência que nossa colônia examinara com a devida consideração. Em vista disso, reno­vara-se o programa da missão que trazíamos. Ao invés de auxílio para a liberação, a velha educa­dora receberia forças para se demorar na Crosta. Devíamos procurar-lhe a residência, sem perda de oportunidade, propiciando-lhe ao organismo os pos­síveis recursos magnéticos ao nosso alcance.

Quis perguntar alguma coisa, inteirar-me das particularidades. Todavia, Jerônimo costumava dizer com proveito tudo o que necessitávamos saber, e não me cabia constrangê-lo a qualquer informação antecipada. Porque se modificara decisão de tamanho relevo? quem possuia, afinal, tanto po­der na oração, para ter influência nas diretivas de nossa colônia espiritual? seria justo o adiamento? por que motivo determinada súplica impunha a renovação do roteiro a seguir?

O Assistente percebeu as indagações que se me entrechocavam no cérebro e adiantou:

— Não se torture, André. Saberá tudo no mo­mento oportuno.

E, traçando sintética programação de serviço, acrescentou:

— Vamo-nos, Hipólito e Luciana velarão pelos convalescentes.

Em caminho, porém, não resisti. Pedi permis­são para ouvi-lo, de maneira sumária, quanto à nova deliberação, e Jerônimo aquiesceu, esclarecendo:

- A medida não deve provocar admiração. Ninguém, senão Deus, detém poderes absolutos.

Todos nós, no desenvolvimento das tarefas con­feridas às nossas responsabilidades, experimentaremos limitações nos atributos ou no acréscimo de deveres, segundo os desígnios superiores, O fu­turo pode ser calculado em linhas gerais, mas não podemos prejulgar quanto ao setor da interferên­cia divina, O Pai efetua a organização universal com independência ilimitada no campo da Sabedo­ria Infalível. Nós cooperamos com relativa liber­dade na obra do mundo, sujeitos a necessária e esclarecedora interdependência, em virtude da im­perfeição da nossa individualidade. Deus sabe, en­quanto nós nem sequer imaginamos saber.

E, com expressivo gesto de bom humor, pros­seguiu:

— Não existe, portanto, novidade prôpriamen­te dita. Aliás, é justo considerar que a desencarnação de Albina não é suscetível de ser adiada por muito tempo - O organismo que a serve está gasto e a nova resolução destina-se apenas a re­medíar difícil situação, de modo a trazer benefícios para muita gente. A prece, em qualquer ocasião, melhora, corrige, eleva e santifica. Mas sômente quando estabelece modificação de roteiro, igual à de hoje, é que paira, acima das circunstâncias co­muns, o interesse coletivo. Ainda assim, a medida prevalecerá por reduzido tempo, isto é, apenas en­quanto perdurar a causa que a motiva.

Recordei uma experiência anterior (1), em que observara certo irmão recebendo alguns dias de acréscimo à existência no corpo, para poder solu­cionar problemas particulares, e compreendi a al­teração havida. De qualquer modo, porém, minha surpresa não era desarrazoada, porque constituía­mos comissão de trabalho definido, com atividades traçadas por superiores hierárquicos. No caso a que me reportava, vira amigos de nossa esfera in­tercedendo junto de outros amigos, em benefício de terceiro. Todavia, na questão em exame, trata­va-se de pedido da Crosta, atuando diretamente em nosso núcleo distante.

Conservando, pois, minha curiosidade insatis­feita, acompanhei o Assistente até ao apartamento confortável em que residia a interessada.

Os prognósticos acerca do estado físico da en­ferma eram desanimadoras. Seu espírito, no entan­to, mantinha-se calmo e confiante, a despeito da profunda perturbação orgânica.

Não só o coração e as artérias apresentavam sintomas graves: também o fígado, os rins, o apa­relho gastrintestinal. A dispnéia castigava-a, in­tensamente.

Chegáramos no instante em que gracioso grupo de jovens, catorze ao todo, fazia em derredor da enferma o culto doméstico do Evangelho. Enquan­to oravam, antes dos comentários construtivos, de

(1) Vide cap. 7º de “Missionários da Luz” — Nota do Autor espiritual.

alma voltada para a sublime fonte da fé viva, atiramo-nos ao trabalho, seguidos, de perto, por outros amigos de nosso plano, ligados à missão da nobre educadora.

O ambiente equilibrado pela prece e pelos pen­samentos de elevação moral contribuíam eficazmen­te na execução de nossos propósitos -

A zona perigosa do corpo abatido era justa­mente a que situava o aneurisma, provável portador da libertação - O tumor provocara a degenerescên­cia do músculo cardíaco e ameaçava ruptura ime­diata. Jerônimo, entretanto, revelou-se, mais uma vez, o médico experimentado e competente de nosso plano de ação. Começou aplicando passes de res­tauração ao sistema de condução do estímulo, de­morando-se, atencioso, sobre os nervos do tônus. Em seguida, forneceu certa quantidade de forças ao pericárdio, bem como às estrias tendinosas, asse­gurando a resistência do órgão - Logo após, meu orientador magnetizou, longamente, a zona em que se localizava o tumor bastante desenvolvido, iso­lando certos complexos celulares, e esclareceu:

— Poderemos confiar em grande melhora, que persistirá por alguns meses -

Com efeito, finda a complexa operação mag­nética, observei que o coração doente funcionava com diferente equilíbrio - As válvulas cardíacas pas­saram a denotar regularidade. Cessou a aflição, o que foi atribuído, e de fato, com razões pode­rosas, ao efeito da prece.

Albina sentiu-se reconfortada, mais calma. Fi­tou, comovida, as discípulas que se achavam pre­sentes em afetuosa homenagem a ela, e considerou, satisfeita:

— Como me sinto melhor! motivos fortes pos­suía o apóstolo Tiago, recomendando a prece aos enfermos!

As alunas e as filhas riram-se de contenta­mento e ergueram, em seguida, formosa oração gratulatória, emocionando-nos o coração.

Contrariando a expectativa geral, a enferma aceitou o oferecimento de um caldo confortante.

Em face da alegria que a todos empolgava, perguntei de súbito ao Assistente:

— Teria sido a súplica das discípulas o móvel da alteração? quem sabe? talvez lhes fizesse falta a venerável professora...

— Não, não é bem isto — elucidou o mentor -, a intercessão das meninas trouxe-lhe a cota natural de benefícios comuns; no entanto, acresce notar que Albina já cumpriu tarefa junto delas. Deu-lhes o que pôde, devotou-se quanto devia. Em virtude da abnegação da enferma, as aprendizes trazem o cérebro cheio de boas sementes... Com­pete agora às interessadas organizar condições fa­voráveis ao desenvolvimento intensivo dos tesouros espirituais de que são portadoras.

Curioso, arrisquei:

— Estaríamos, porventura, ante o resultado de requisição sentimental das filhas?

Jerônimo fitou ambas as senhoras que assis­tiam a doente com desvelada ternura, abanou a cabeça com gesto negativo e retrucou:

— Também não. Não se trata de resposta a semelhante rogativa. No desempenho dos sagra­dos deveres de mãe, Albina fêz tudo pelo bem-estar das filhas. Desvelou-se, quanto lhe era possível. Por elas perdeu compridas noites de vigília e en­cheu laboriosos dias de preocupação absorvente e redentora. Educou-as carinhosamente, encami­nhou-as na estrada da santificação e, sobretudo, ao prepará-las para a vida, entregou-as ao Pai Eterno, sem egoísmo destruidor. O trabalho materno foi completamente satisfeito. Doravante, cumpre às fi­lhas seguir-lhe o exemplo, imitando-lhe a conduta cristã. Os bons pensamentos do Loide e Eunice en­volvem-na toda em repousante atmosfera de amor. Entretanto, não seriam os rogos filiais, em circuns­tâncias como esta, que modificariam o roteiro das autoridades superiores no cumprimento das leis divinas. As súplicas de ambas partem de esferas de serviço perfeitamente atendidas pela missionária em processo de liberação e de modo algum as fi­lhas poderiam retê-la.

Nesse Instante, sentindo-se a enferma confor­tada pela inopinada melhora, dirigiu-se à filha mais velha, indagando:

— Loide, acredita você na possibilidade de tra­zerem o Joãozinho até aqui?

A interrogação enternecida, seguiu-se plena aprovação da filha e o telefone tilintou chamando alguém.

Ao passo que a senhora se entendia com o esposo, a distância, meu orientador anunciou, bem humorado:

— Em breves momentos, receberá você a cha­ve do problema.

Continuamos socorrendo a organização fisioló­gica da enferma, observando a alegria sincera das discípulas, que se retiravam, contentes. Mãe e fi­lhas voltaram a permanecer a sós conosco, junto de outros amigos espirituais que se dedicavam, no compartimento, à tarefa de auxílio, inclusive a sim­pática irmã que nos acolhera na visita inicial, fa­lando-nos, aliás, da probabilidade de prorrogação.

Processavam-se com extremado carinho os ser­viços de assistência, quando cavalheiro bem-posto deu entrada, conduzindo um menino miúdo, de oito anos presumíveis.

Varando a porta do quarto, o pequeno mos­trou-se cônscio do lugar em que se achava, cumprimentou as senhoras, respeitoso, e voltou-se, de olhos ansiosos, para a enferma, beijando-lhe a des­tra com indescritível ternura -

Albina rogou a Deus o abençoasse e o menino perguntou

— Vovó, como vai?

Designando-o, o Assistente esclareceu:

— A súplica dessa criança alcançou-nos a co­lônia espiritual e modificou-nos o roteiro.

— Quê?... — interroguei, sumamente sur­preendido.

Jerônimo, todavia, continuou:

— Não é neto consanguíneo da doente, embora se considere tal. É órfão que lhe abandonaram à porta, após o nascimento, e que Loide mantém no lar, desde que nossa irmã se recolheu à cama. Não obstante a prova, Joãozinho é grande e abne­gado servo de Jesus, reencarnado em missão do Evangelho. Tem largos créditos na retaguarda. Li­gado à família de Albina, há alguns séculos, tor­na ao seio de criaturas muito amadas, a caminho do serviço apostólico do porvir.

Ia formular perguntas novas, mas meu orien­tador, indicando a enferma que se abraçara à criança, aconselhou-me, solícito:

— Observe por si mesmo...

O diálogo entre ela e o pequenino adquirira encantadora suavidade.

— Tenho passado mal, meu filho — excla­mava a respeitável senhora em desabafo.

— Oh! vovó! — tornou o rapazinho, olhos radiantes de fé — tenho rezado sempre para que a senhora fique boa, depressa.

— Tem fé?

— Confio em Jesus. Na última vez em que estive na igreja, pedi a todos me ajudarem a ro­gar ao Céu pela sua saúde.

— E se Deus me chamar?

Os olhos se lhe umedeceram, mas acentuou em voz firme:

— Precisamos da senhora neste mundo.

Albina abraçou-o e beijou-o com meiguice ma­ternal e prosseguiu:

— João, tenho sentido muita saudade de seus hinos na escola. Tem louvado o Senhor, pontual­mente?

— Tenho.

— Cante para mim, meu filho.

O pequeno sorriu, jubiloso, por haver encon­trado

motivo de alegrar a doente querida e indagou, com naturalidade:

— Qual?

A enferma pensou, pensou, e disse:

— “Jesus, sendo meu”.

O menino modificou a expressão fisionômica, entristeceu-se instantaneamente, mas, colocando-se junto ao leito, e, na postura do crente submisso, ergueu os olhos ao alto e começou a cantar antigo e delicado hino das igrejas evangélicas:

“Jesus, sendo meu,

Sou muito feliz,

Eu vou para o Céu,

Meu lindo país....“

Expressava-se em voz tão dorida que o hino parecia amarguroso lamento. Finda a primeira qua­dra, esforçou-se para continuar, mas não conse­guiu. Profunda emoção sufocou-lhe a garganta, as lágrimas saltaram-lhe, espontãneas; tentou debal­de fixar Loide para ganhar coragem e, reparando que sua comoção contagiara a família, precipitou-se nos braços da doente e gritou, com força:

— Não, vovó, não! a senhora não pode ir ago­ra para o Céu! não pode! Deus não deixará!...

Albina recolheu-o, carinhosa, feliz.

— Que é isto, João? — perguntou, buscando sorrir.

Observei a mim mesmo e só então reconheci que eu também chorava...

Jerônimo, porém, mantinha-se firme e, rindo-se, bondoso, reafirmou:

— O menino tem razão. Albina não irá mes­mo desta vez...

Atendendo-me à curiosidade, entrou em expli­cações finais, advertindo:

— Que nota você de particular em Loide?

Recorrendo a observações que já levara a efei­to, respondi sem hesitar:

— Reparo que aguarda alguém; uma filhinha que já entrevimos... Desde o primeiro encontro, verifiquei que está em período ativo de maternidade, em vésperas da delivrança.

— Isto mesmo — confirmou o mentor amigo —, a prece de João é importante porque se reveste de profunda significação para o futuro. A meni­na, em processo reencarnacionista, é-lhe abençoada companheira de muitos séculos. Ambos possuem admirável passado de serviço à Crosta Planetária e escolheram nova tarefa com plena consciência do dever a cumprir. Foram associados de Albina em várias missões e, muito cedo, ser-lhe-ão con­tinuadores na obra de educação evangélica. Não são Espíritos purificados, redimidos, mas trabalha­dores valiosos, com suficiente crédito moral para a obtenção de oportunidades mais altas. Apesar da condição infantil, o servo reencarnado, pelas ri­cas percepções que o caracterizam fora da esfera física, recebeu conhecimento da morte próxima de nossa venerável irmã. Compreendeu, de antemão, que o fato repercutiria angustiosamente no orga­nismo de Loide, compelindo-a talvez a claudicar no trabalho gestatório, em andamento. A carga de dor moral conduzi-la-ia efetivamente ao aborto, imprimindo profundas transformações no rumo do serviço de que João é feliz portador. Socorreu-se, então, de todos os valores intercessórios, nos ins­tantes em que sua alma lúcida pode operar na au­sência da instrumentalidade grosseira que triunfou com as súplicas insistentes, obtendo reduzida dila­tação de prazo para a desencarnação de Albina.

Sempre comedido nas informações, Jerônimo calou-se, preparando a retirada.

A singular ocorrência enchia-me de encanta­mento e surpresa. E contemplando, sob forte enlevo, a pequena família em santificado júbilo do­méstico, eu chegava à conclusão de que, ainda ali, numa câmara de moléstia grave, a oração, filha do trabalho com amor, vencia o vigoroso poder da morte.


18

Desprendimento difícil

Agora, tínhamos sob os olhos o caso Caval­cante em processo final.

O pobre amigo permanecia agarrado ao cor­po pela vigorosa vontade de prosseguir jungido à carne. A intervenção no apêndice Inflamado, ao mesmo tempo que se buscava remediar a situação do duodeno, fizera-se tardia. Estendera-se a supu­ração ao peritônio e debalde se combatia a rápida e espantosa infecção.

O enfermo perdia forças, e porque não con­seguia alimentar-se, como devia, não encontrava recursos para compensar as perdas vultosas.

O Intestino inspirava repugnância e compai­xão. Qual estranho vaso destinado a fermentação, continha o ceco trilhões de bacilos de variadas es­pécies. Profundo desequilíbrio afetava as funções dos vasos sanguíneos e linfáticos no intestino del­gado - O cólon transverso e o descendente semelha­vam-se a pequenos túneis, repletos das mais diver­sas coletividades microbianas. As vilosidades per­maneciam cheias de sangue purulento, e, de quando em quando, abriam-se veias mais frágeis, provo­cando abundante hemorragia. Em todo o apare­lho intestinal, verificava-se o gradual desapareci­mento do tônus das fibras - O pâncreas não mais tolerava qualquer trabalho, na desintegração dos alimentos, e o estômago deixava perceber avançada incapacidade - As glândulas gástricas jaziam quase inertes - Distúrbios destrutivos campeavam no fígado, onde animálculos vorazes se valiam da pro­gressiva ausência de controle psíquico, manifestan­do-se ao léu, como microscópicos salteadores em sanha festiva.

O doente, por fim, já não suportava nenhuma alimentação. O estômago expulsava até a própria água simples, deixando-o exausto, em vista do tre­mendo esforço despendido nos reiterados acessos de vômito.

O sistema nervoso central e o abdominal, bem como os sistemas autônomos, acusavam desarmo­nia crescente.

Reconhecia, entretanto, ali, naquele agonizante que teimava em viver de qualquer modo no cor­po físico, o gigantesco poder da mente, que, em admirável decreto da vontade, estabelecia todo o domínio possível nos órgãos e centros vitais em decadência franca.

Decorridos mais de quatro dias, em que aten­távamos para o moribundo, cuidadosamente, Jerô­nimo deliberou fôssem desatados os laços que o retinham à esfera grosseira.

Bonifácio, prestimoso e gentil, coadjuvava-nos o trabalho.

Informando-se de nossa resolução, de modo vago, através dos canais intuitivos, o doente, pela manhãzinha, chamou o capelão, a fim de ouvi-lo, e, após breve confissão, que o sacerdote reduziu ao mínimo de tempo, em virtude das emanações desagradáveis que se desprendiam da organização fisiológica em declínio, o pobre Cavalcante, mal suspeitando a paz que o aguardaria na morte, pro­curou reter o eclesiástico, em contristadora con­versação:

— Padre — dizia ele, em voz súplice —, sei que morro, sei que estou no fim...

— Entregue-se a Deus, meu amigo. Só Ele pode saber em definitivo o que surgirá. Quem sabe se ainda tem longos anos à sua frente? tudo pode acontecer..

O capelão falava apressado, abreviando a pa­lestra e tentando dissimular suas penosas impressões olfativas, mas o moribundo continuou, Ingênuo:

— Tenho medo, muito medo de morrer...

— Bem — obtemperou o religioso, não ocul­tando um gesto de enfado que passou despercebido aos olhos do crente —, precisamos preparar o es­pírito para o que der e vier.

— Ouça, padre!... acredita que me salvarei?

— Sem dúvida. Você foi sempre bom cató­lico...

— Mas... escute! — e a voz do enfermo fêz-se triste, mais chorosa e sufocada — eu desejaria morrer noutras condições. Segundo lhe confessei, fui abandonado pela mulher, há muitos anos... Sabe que ela me trocou por outro homem e fugiu para nunca mais... Sempre admiti que experimentei semelhante prova por incapacidade de compre­ensão da parte dela, mas, agora, padre... enca­rando a morte, frente a frente, reflito melhor... Quem sabe se não fui o culpado direto? Talvez tivesse levado longe demais meu propósito de vi­ver para a religião, faltando-lhe com a assistência necessária... Lembro-me de que, às vezes, chama­va-me “padre sem batina”. Possívelmente minha atitude impensada teria dado origem ao desvio da minha companheira...

Após fitar o clérigo demoradamente, implorou:

— Poderá sua caridade continuar indagando por mim? Necessito vê-la, a fim de apaziguar a consciência... Há onze anos, perdi-a de vista...

O sacerdote, no entanto, não parecia Intima-mente interessado em satisfazê-lo e repetia com Impaciência:

— Descanse, descanse... Prosseguirei nas di­ligências. Tenha coragem, Cavalcante! é provável que tudo venha ao encontro de nossos desejos.

O moribundo, voz entrecortada pelo cansaço. murmurou:

— Obrigado, padre, obrigado!...

O religioso intentou sair, mas Cavalcante, ame­drontado, perguntou, ainda:

— Acha que me demorarei muito tempo no purgatório?

— Que idéia! — resmungou o interlocutor, en­tediado — falta-lhe suficiente confiança no poder de Deus?

Enunciou as últimas palavras com tamanha ir­ritação que o enfermo lhe percebeu o descontentamento, sorriu humilde e calou-se.

O sacerdote, ao se afastar, aliviado, encontrou certo médico e indagou:

— Afinal, que acontece ao Cavalcante? morre ou não morre? Estou cansado de tantos casos com­pridos.

— Tem sido gigante na reação — informou o clínico, bem humorado. — Considerando-lhe, porém, os males sem cura, venho examinando a possibi­lidade da eutanásia.

— Parece-me caridade — redargüiu o religio­so —, porque o infeliz apodrece em vida...

O esculápio abafou o riso franco e despedi­ram-se.

A cena chocava-me pelo desrespeito. Ambos os profissionais, o da Religião e o da Ciência, no­tavam situações meramente superficiais, incapazes de penetração nos sagrados mistérios da alma. Entretanto, para compensar tão descaridosa incom­preensão, Cavalcante era objeto de nosso melhor carinho - Por mim, não saberia ministrar-lhe bene­fícios, dada a insipiência de minha singela colabo­ração, mas Jerônimo e Bonifácio cercavam-no de singular cuidado, amparando-o como se fora bem-amada criança.

Quando o eclesiástico pisava mais longe, o meu Assistente considerou:

— O pobre sacerdote ainda não possui “olhos de ver”. Cavalcante foi, antes de tudo, perseve­rante trabalhador do bem.

Enquanto Isso, o enfermo buscava enxugar as lágrimas copiosas. A atitude do capelão adverti­ra-o do deplorável estado de seu corpo físico. Passou a sentir o cheiro desagradável das próprias vísceras, agravando-se-lhe o mal-estar. Sob incoer­cível angústia, pediu o comparecimento de deter­minada religiosa, dentre as diversas que atendiam a casa. Experimentava funda sede de consolo, necessitava coragem que lhe viesse do exterior. Provavelmente encontraria no coração feminino o reconforto que o confessor não lhe soubera prodi­galizar. Porém, a “irmã de caridade” não trazia consigo melhor humor. Fêz questão de escutá-lo, alçando desinfetante enérgico ao nariz, a infun­dir-lhe surpresa ainda mais dolorosa. Cavalcante chorou, queixou-se. Precisava viver mais alguns dias, declarou, humilhado. Não desejava partir sem a reconciliação conjugal. Rogava providências mé­dicas mais eficientes e prometia pagar todas as despesas, logo pudesse tomar ao serviço comum. Pretendia recorrer a parentes endinheirados que residiam a distância. Resgataria o débito até o derradeiro centavo.

A “irmã de caridade”, depois de ouvi-lo, com impassível frieza, foi mais sucinta:

— Meu amigo — disse, áspera —, tenha fé. A casa está repleta de enfermos, alguns em piores condições.

Como o doente insistisse nas solicitações, con­cluiu ríspida e secamente:

— Não tenho tempo.

O agonizante deu curso ao pranto silencioso. Recordou, de alma oprimida por angustiosa saudade, a infância e a juventude. Percorrera as es­tradas terrenas, de coração aberto à prática do bem. Não compreendia Jesus encerrado nos templos de pedra, a distância dos famintos e sofredores que choravam por fora. A doutrina que abraçara não lhe oferecia ensejo de mais vasta aplicação ao exemplo evangélico. Era compelldo a satisfazer obrigações convencionais e a perder grande tempo através de manifestações do culto externo; entre­tanto, valera-se de toda oportunidade para testemunhar entendimento cristão. Porque amara o exercício do bem, constante e fiel, era aborrecido aos sacerdotes e familiares em geral. A parentela, inclusive a esposa, considerava-o fanático, desequi­librado, imprestável. Perseverava mesmo assim. Embora as condições elevadas em que desenvolvera a fé, ignorava as lições do Além-Túmulo e receava a morte. Estimaria obter a certeza do destino a seguir. A visão mental do inferno, segundo as con­cepções católicas, punha-lhe arrepios no espírito exausto. A probabilidade dos sofrimentos purgato­riais enchia-o de temor. Desejava algo de melhor, de mais belo que o velho mundo em que vivera até então... Suspirava por ingressar em coletivi­dade diferente, em que pudesse encontrar corações a pulsarem sintonizados com o dele; sentia fome e sede de compreensão, de profunda compreensão, mas, prejudicado pelos princípios dogmáticos da escola religiosa a que se filiara, repelia-nos a ação.

O Assistente, pondo em prática recursos mag­néticos, tentou propiciar-lhe sono brando, de ma­neira a subtrair-lhe os temores em socorro direto, fora do corpo físico. Contudo, o moribundo lutou por manter-se vigilante. Temia dormir e não des­pertar, pensava, ansioso. Queria ver a esposa, antes do fim, dizia de si para consigo. Não era, efeti­vamente, provável? não seria justo morrer tran­quilo? Oh! se ela surgisse! — acariciava a possi­bilidade — penitenciar-se-ia dos erros passados, pedir-lhe-ia perdão. Tamanha humildade assomava-lhe ao ser, naquela hora de grande abatimento, que não se magoaria em receber-lhe a visita jun­to do “outro”. Porque odiar? porventura, não lhe ensinava a lição de Jesus que a fraternidade cons­titui sempre a bênção do Altíssimo? quem seria mais culpado? ele, que mantinha dobrada indife­rença para com as exigências afetivas da compa­nheira, pelo arreigado devotamento à fé, ou aquele homem, despreocupado de qualquer responsabili­dade, que a recolhera, talvez em desesperação? Se pugnara sempre pela prática da caridade, por que motivo ele, Cavalcante, faltara com a necessária demonstração, portas a dentro do próprio lar? Em verdade, as sugestões sublimes da fé religiosa in­flamaram-lhe o espírito de amor universal. Não tolerava a sufocação do idealismo ardente. Nin­guém poderia reprová-lo. Mas, se era esse o ca­minho escolhido, que razões o levaram a desposar pobre criatura, incapaz de apreender-lhe a fome de luz? porque fizera firmes promessas a um cora­ção feminino, ciente de que ele não poderia aten­dê-las? A dor desenha a tela da lógica no fundo da consciência, com muito mais nitidez que todos os compêndios do mundo. A morte próxima enchia aquela alma formosa de sublimes reflexões. En­tretanto, o medo alojara-se dentro dela como sicá­rio invisível.

Cavalcante, que via tão bem na paisagem dos sentimentos humanos, permanecia cego para o “ou­tro lado da vida”, de onde tentávamos auxiliá-lo, em vão.

Jerônimo poderia aplicar-lhe recursos extre­mos, mas absteve-se. Inquirido por mim acerca de seus infindos cuidados, explicou, muito calmo:

— Ninguém corte, onde possa desatar...

A resposta calou-me fundo.

Debalde, porém, procurou-se prodigalizar ao doente a trégua do sono preparatório e reconfor­tador. Cavalcante reagia, Insistente. Sentindo-nos a aproximação e interferência, de leve, fazia apres­sados movimentos labiais, recitando orações em que implorava a graça de ver a companheira, antes de morrer.

— Desventurado irmão! — comentou Bonifá­cio, comovido — não sabe que a consorte desen­carnou há mais de ano, num catre, vitima de uma infecção luética.

Jerônimo não se moveu, mas lutei contra mim para não disparar interrogações, a torto e a direito, em busca de pormenores. Coibi-me, felizmente. A hora não comportava perguntas inúteis. Meu Assistente, como se houvera recebido a mais natural das informações, dirigiu a palavra ao compa­nheiro, recomendando:

— Bonifácio, nosso amigo não pode suportar por mais tempo a existência do corpo carnal. A máquina rendeu-se. Dentro de algumas horas, a necrose ganhará terreno e precisamos libertá-lo. Teima em agarrar-se à carne apodrecida e pede, comovedoramente, a presença da esposa. Já tentamos auxiliá-lo a desprender-se, afrouxando os la­ços da encarnação no plexo solar, mas ele reage com espantoso poder. Resolvi, em vista disso, abrir pequenos vasos do intestino para que a hemorragia se faça ininterrupta, até à noite, quando efetuare­mos a liberação. Peço a você trazer-lhe a compa­nheira desencarnada, por instante, até aqui. O en­fraquecimento físico acentuar-se-á vertiginosamen­te, de ora em diante, e, com espaço de algumas horas, as percepções espirituais de Cavalcante se farão sentir. Verá, desse modo, a esposa, antes do decesso que se aproxima e dormirá menos inquieto.

Bonifácio pôs-se pronto para cumprir a ordem e assegurou integral cooperação.

Logo após, o Assistente operou, cauteloso, so­bre a região intestinal, rompendo certas veias de menor importância, atenuando-lhe a capacidade de resistência.

Ausentar-nos-íamos, por breves horas, consi­derando que o relógio assinalava poucos minutos além do meio-dia. Antes, porém, de nos afastar­mos, observando o quadro emocionante da enfermaria gratuita, a que o moribundo se recolhera, perguntei a Jerônimo, admirado:

— Já que o nosso tutelado se enfraquecerá, a ponto de fazer observações no plano invisível aos olhos mortais, chegará a ver também as paisagens de vampirismo que me impressionam no recinto?

— Sim — informou o orientador com espontaneidade.

— Oh! mas terá energia suficiente para tudo ver sem perturbar-se?

— Não posso garantir — respondeu, sorrin­do. — Naturalmente, qualquer Espírito encarnado, diante de um quadro desses, poderia ser vítima da loucura e, possívelmente, atravessaria algumas poucas horas em franco desequilíbrio, dada a no­vidade do espetáculo. Quando a luz aparece, em determinado plano, onde a criatura esteja “apta para ver”, tanto se enxerga o pântano como o céu. Questão de claridade e sintonia, simplesmente.

A notícia pôs-me frêmitos de piedade.

A enfermaria estava repleta de cenas deplo­ráveis. Entidades inferiores, retidas pelos próprios enfermos, em grande viciação da mente, posta­vam-se em leitos diversos, inflingindo-lhes padecimentos atrozes, sugando-lhes vampirescamente preciosas forças, bem como atormentando-os e per­seguindo-os.

Desde o serviço inicial do tratamento de Ca­valcante, desagradaram-me tais demonstrações na­quele departamento de assistência caridosa e che­guei mesmo a consultar o Assistente quanto à possibilidade de melhorar a situação, mas Jerôni­mo informou, sem estranheza, que era inútil qual­quer esforço extraordinário, pois os próprios en­fermos, em face da ausência de educação mental, se incumbiriam de chamar novamente os verdu­gos, atraindo-os para as suas mazelas orgânicas, só nos competindo irradiar boa-vontade e praticar o bem, tanto quanto fôsse possível, sem; contudo, violar as posições de cada um.

Confesso que experimentava enorme dificuldade para desempenhar os deveres que ali me retinham, porqüanto as interpelações de infelizes desencar­nados atingiam-me insistentemente. Pediam toda a sorte de benefícios, reclamavam melhoras, ex­plodiam em lamúrias sem fim. Sereno e forte, o meu orientador conseguia trabalhar de mente centralizada na tarefa, inacessível às perturbações exteriores. Quanto a mim, entretanto, não alcançara ainda semelhante poder. Os pedidos, os lamentos, os impropérios, feriam-me a observação, impedin­do-me de conservar a paz Intima.

Por isso mesmo, ao me retirar, pensei na sur­presa amargurosa do moribundo, ao se lhe abrir a cortina que lhe velava a visão espiritual.

Aguardei, curioso, o cair da noite, quando, em companhia do orientador, atravessei, de volta, o pórtico do hospital.

Cavalcante avizinhava-se do coma. O sangue alagava lençóis, que eram substituidos repetidamente. O enfraquecimento geral progredia, rápido.

O agonizante Inspirava dó. Abriram-se-lhe cer­tos centros psíquicos, no- avançado abatimento do corpo, e o Infeliz passou a enxergar os desencar­nados que ali se encontravam, não longe dele, na mesma esfera evolutiva. Não nos identificava, ain­da, a presença, como seria de desejar, mas obser­vava, estarrecido, a paisagem Interior. Outros en­fermos encaravam-no, agora, amedrontados. Para todos eles, o colega de sofrimento delirava, in­consciente.

— Estarei no inferno ou vivemos em casa de loucos? — bradava sob horrível tormento moral — oh! os demônios! os demônios!... Vejam o “espírito mau” roendo chagas!...

E, de fades contraída, apontava mísero ancião de pernas varicosas.

— Oh! que diz ele? — prosseguia, com visível espanto — diz que não é o diabo, afirma que o doente lhe deve...

Ouvidos à escuta, silenciava, ansioso por re­gistrar as palavras impensadas e criminosas do algoz desencarnado, mas, não conseguindo, desabafa­va-se em gritos lamentosos, infundindo compaixão. Não fora a fraqueza invencível, ter-se-ia levantado com impulsos de louco. Doentes e enfermeiros, alarmados, optavam pela remoção do moribundo. Tinham medo. Cavalcante desvairava. Consolavam-se, todavia, na expectativa de que a hemorragia abundante prenunciasse termo próximo.

Jerônimo ministrou-lhe, então, piedosamente, recursos de reconforto, e o agonizante aquietou-se, devagarinho...

Não se passou muito tempo e Bonifácio entrou conduzindo verdadeiro fantasma. A ex-consorte, convocada à cena, semelhava-se, em tudo, a sombra espectral. Não via o nosso cooperador, mas obe­decia-lhe à ordem. Penetrou o recinto, arrastan­do-se, quase. Satisfazendo o guia, automàticamente, veio ter ao leito de Cavalcante, fitou-o com intraduzível impressão de horror e gritou, longamente, perturbando-lhe a hora de alívio.

O moribundo voltou-se e viu-a. Alegre sorriso estampou-se-lhe no escaveirado rosto.

— Pois és tu, Bela? Graças a Deus, não mor­rerei sem pedir-te desculpas!.

A ternura com que se dirigia a tão miserável figura causava compaixão.

A esposa abeirou-se do leito, tentando ajoe­lhar-se. Ouvindo-o, assombrada, retrucou, aflita:

— Joaquim, perdoa-me, perdoa-me!...

— Perdoar-te de quê? — replicou ele, buscan­do inütilmente afagá-la. Eu, sim, fui injusto contigo, abandonando-te ao léu da sorte... Por favor, não me queiras mal. Não te pude compreender noutro tempo e facilitei-te o passo em falso, co­laborando, impensadamente, para que te precipi­tasses em escuro despenhadeiro. Não entendi o problema doméstico tanto quanto devia... Hoje, porém, que a morte me busca, desejo a paz da consciência. Confesso minha culpa e rogo-te per­dão... Desculpa-me...

Falava vencendo enormes obstáculos. No en­tanto, notava-se que aquele entendimento lhe fazia imenso bem. A mente apaziguara-se-lhe. Contem­plava a esposa, reconhecido, quase feliz.

— Ó Joaquim! — suplicou a mísera — per­doa-me! Nada tenho contra ti. O tempo ensinou-me a verdade. Sempre foste meu leal amigo e dedicado marido!

O moribundo escutou-a, esboçando expressão fisionômica de intensa alegria. Fitou-a, em êxtase, totalmente modificado e murmurou:

— Agora, estou satisfeito, graças a Deus!...

Nesse instante, o mesmo médico que víramos, pela manhã, avizinhou-se do leito para a inspeção noturna, acompanhado de diligente enfermeira.

Chamado por ele, voltou-se Cavalcante e, pon­do na boca todas as forças que lhe restavam, no­tificou, feliz:

— Veja, doutor, minha esposa chegou, enfim! E, interessado em conquistar a atenção do interlocutor, prosseguia:

— Estou contente, conformado... Mas minha pobre Bela parece enferma, abatida... Ajude-a por amor de Deus!

Relanceando, em seguida, o olhar pela extensa enfermaria e fixando os quadros tristes, entre en­carnados e desencarnados, inquiriu:

— Por que motivo tantos loucos foram inter­nados aqui? Olhem, olhem aquele! Parece sufocar o infeliz...

Indicava particularidade dolorosa, em que certa entidade assediava pobre doente atacado de asma cardíaca.

O médico, no entanto, contemplou-o, compa­decido, e disse à servente:

— É o delírio, precedendo o fim. Entrementes, Jerônimo recomendou a Bonifá­cio retirasse a sombria figura da ex-consorte de Cavalcante, acentuando:

— Não nos convém doravante a permanência de semelhante criatura. Já cumpriu as obrigações que a trouxeram aqui e ainda possui numerosos credores à espera.

A desventurada reagiu, procurando ficar, mas Bonifácio empregou força magnética mais ativa para alcançar o objetivo necessário.

Reparando, porém, que a ex-companheira se afastava aos gritos, o agonizante pôs-se a bradar, alucinado:

— Volta, Bela! Volta!

Esforçou-se o clínico por trazê-lo à esfera de observações que lhe era própria, mas debalde. Ca­valcante continuava Invocando a presença da espo­sa, em voz rouquenha, opressa, sumida.

O médico abanou a cabeça e exclamou quase num sussurro:

— É impossível continuar assim. Será aliviado. Jerônimo penetrou-lhe o íntimo, porque pas­sou a mostrar extrema preocupação, comunicando-me, gravemente:

— Beneficiemos o moribundo, por nossa vez, empregando medidas drásticas, O doutor pretende Impor-lhe fatal anestésico.

Atendendo-lhe a ordem, segurei a fronte do agonizante, ao passo que ele lhe aplicava passes longitudinais, preparando o desenlace. Mas o tei­moso amigo continuava reagindo.

— Não — exclamava, mentalmente —, não pos­so morrer! tenho medo! tenho medo!

O clínico, todavia, não se demorou muito, e como o enfermo lutava, desesperado, em oposição ao nosso auxílio, não nos foi possível aplicar-lhe golpe extremo. Sem qualquer conhecimento das di­ficuldades espirituais, o médico ministrou a chama­da “injeção compassiva”, ante o gesto de profunda desaprovação do meu orientador,

Em poucos Instantes, o moribundo calou-se. In­teiriçaram-se-lhe os membros, vagarosamente. Imo­bilizou-se a máscara facial. Fizeram-se vítreos os olhos móveis.

Cavalcante, para o espectador comum, estava morto. Não para nós, entretanto. A personalidade desencarnante estava presa ao corpo Inerte, em plena inconsciência e incapaz de qualquer reação.

Sem perder a serenidade otimista, o orientador explicou-me:

— A carga fulminante da medicação de des­canso, por atuar diretamente em todo o sistema nervoso, interessa os centros do organismo peris­piritual. Cavalcante permanece, agora, colado a trilhões de células neutralizadas, dormentes, inva­dido, ele mesmo, de estranho torpor que o inipossibilita de dar qualquer resposta ao nosso esforço.

Provavelmente, só poderemos libertá-lo depois de decorridas mais de doze horas.

Regressando Bonifácio, o meu dirigente pres­tou-lhe informações exatas e confiou-lhe o pobre amigo, que foi imediatamente transportado ao ne­crotério.

E, conforme a primeira suposição de Jerônimo, sômente nos foi possível a libertação do recém­-desencarnado quando já haviam transcorrido vinte horas, após serviço muito laborioso para nós. Ain­da assim, Cavalcante não se retirou em condições favoráveis e animadoras. Apático, sonolento, des­memoriado, foi por nós conduzido ao asilo de Fa­biano, demonstrando necessitar maiores cuidados.


19

A serva fiel

Liberto, Cavalcante oferecia-me amplo ensejo a infatigáveis pesquisas. A injeção sedativa, vei­culando anestésicos em dose alta, afetara-lhe o corpo perispirítico, como se fora choque elétrico. Devido a isso, ele permanecia quase inerte, ignorando-se a si mesmo. Inquirido por mim, vezes diversas, não sabia concatenar raciocínios para responder às ques­tões mais rudimentares, alusivas à própria identi­dade pessoal.

Notando o meu interesse a respeito do assun­to, Jerônimo, após ministrar-lhe os primeiros socorros magnéticos, na Casa Transitória, prestou-me os seguintes esclarecimentos:

— Qualquer droga, no campo infinitesimal dos núcleos celulares, se faz sentir pelas propriedades elétricas específicas. Combinar aplicações químicas com as verdadeiras necessidades fisiológicas, cons­tituirá, efetivamente, o escopo da Medicina no por-vir, O médico do futuro aprenderá que todo re­médio está saturado de energias electromagnéticas em seu raio de ação. É por isso que o veneno destrói as vísceras e o entorpecente modifica a na­tureza das células em si, impondo-lhes incapacidade temporária. A gota medicamentosa tem princípios elétricos, como também acontece às associações atô­micas que vão recebê-la. Segundo sabemos, em pla­no algum a Natureza age aos saltos, O perispírito, formado à base de matéria rarefeita, mobiliza igual­mente trilhões de unidades unicelulares da nossa esfera de ação, que abandonam o campo físico sa­turadas da vitalidade que lhe é peculiar. Daí os sofrimentos e angústias de determinadas criatu­ras, além do decesso. Os suicidas costumam sentir, durante longo tempo, a aflição das células violen­tamente aniquiladas, enquanto os viciados experimentam tremenda inquietação pelo desejo insatis­feito.

A elucidação era lógica e humana. Fui com­preendendo, por minha vez, pouco a pouco, a importância do desapego às emoções inferiores para os homens e mulheres encarnados na Crosta. Ma­téria e espírito, vaso e conteúdo, forma e essência, confundiam-se aos meus olhos como a chama da vela e o material incandescente. Integrados um no outro, produziam a luz necessária aos objetivos da vida.

O exame dos casos de morte trouxera-me sin­gular enriquecimento no setor da ciência mental. O Espírito, eterno nos fundamentos, vale-se da ma­téria, transitória nas associações, como material didático, sempre mais elevado, no curso incessante da experiência para a integração com a Divindade Suprema. Prejudicando a matéria, complicaremos o quadro de serviços que nos é indispensável e estacionaremos, em qualquer situação, a fim de restaurar o patrimônio sublime posto à nossa dis­posição pela Bondade Imperecível. Tanto seremos compelidos ao trabalho regenerador, na encarnação, quanto na. desencarnação, na existência da carne quanto na morte do corpo, tanto no presente quanto no futuro. Ninguém se colocará vitorioso no cume da vida eterna, sem aprender o equilíbrio com que deve elevar-se. Daí as atividades complexas do ca­minho evolutivo, as diferenciações inumeráveis, a multiplicidade das posições, as escalas da possi­bilidade e os graus da inteligência, nos variados planos da vida.

Para solucionar instantes problemas de Caval­cante, o nosso dirigente designou o padre Hipólito para segui-lo de mais perto, orientando-o quanto à renovação. O “convalescente” fixava-nos, receo­so, crendo-se vitima de pesadelo, em hospital diferente. Declarava-se interessado em continuar no corpo terrestre, chamava a esposa insistentemente, repetia descrições do passado com admirável ex­pressão emotiva. Por mais de uma vez, repeliu Jerônimo, com severa argumentação. Ao lado de Hipólito, porém, aquietava-se, humilde. Influiam nele o respeito e a confiança que se habituara a consagrar aos sacerdotes. Nosso companheiro pos­suía sobre o recém-liberto importante ascendente espiritual. Poderia beneficiá-lo com mais facilidade e em menos tempo. Apesar disso, contudo, nosso Assistente ministrava-lhe com regularidade recur­sos magnéticos, erguendo-lhe o padrão de saúde espiritual.

O desencarnado ia despertando com extremo vagar, demorando-se longo tempo a reapossar-se de si. Eram, todavia, impressionantes seus coló­quios com o irmão Hipólito, nos quais crivava o ex-sacerdote de intempestivas interrogações. À me­dida que as suas condições mentais melhoravam, apertava o cerco. Queria saber onde se localizavam o céu e o inferno; pedia notícias dos santos, pre­tendendo visitar aqueles a quem consagrava mais entranhada devoção; rogava explicações referentes ao limbo; reclamava o encontro com parentes que o haviam precedido no túmulo; solicitava elucida­ções sobre o valor dos sacramentos da Igreja Ca­tólica; comentava a natureza dos diversos dogmas, até que, certo dia, chegou ao despautério de per­guntar se não lhe seria possível obter uma audiên­cia com Deus, na Corte Celeste. Hipólito precisava mobilizar infinita boa-vontade para tratar com res­peito e proveito tamanha boa-fé.

A Irmã Zenóbia vinha frequentemente assistir ao curso dos surpreendentes diálogos e, de uma fei­ta, quando nos achávamos juntos, a pequena dis­tância do enfermo, comentou, risonha:

— Nossa antiga Igreja Romana, tão venerável pelas tradições de cultura e serviço ao progresso humano, é, de fato, na atualidade, grande especia­lista em “crianças espirituais”...

Examinando as dificuldades naturais do ser­viço de esclarecimento, Jerônimo recomendou a Hi­pólito e a Luciana dispensarem ao recem-liberto os recursos possíveis, em virtude da escassez de tempo.

Vinte e cinco dias já haviam transcorrido so­bre o início da tarefa.

— Precisamos regressar — informou o Assis­tente —, precisamos regressar logo se verifique a vinda de Adelaide, que não se demorará nesta fim­dação mais de um dia. Cumpre-nos, pois, acelerar a preparação de Cavalcante, com todas as possi­bilidades ao nosso alcance.

E os companheiros desvelavam-se, carinhosos. No fundo, todos sentíamos saudades do lar distan­te, que nos congregava em bênçãos de paz e luz. O próprio Fábio, equilibrado e bem disposto, cola­borava para a solução do assunto, suspirando pela penetração nos santuários de Mais Alto.

Atendendo à divisão dos serviços, Jerônimo e eu continuamos em ação no instituto evangélico, onde a serva leal de Jesus receberia a carta libe­ratória. Adelaide, porém, parecia não depender de algemas físicas. Não consegui, por minha vez, aus­cultar-lhe o espesso organismo, porque a nobre missionária, em virtude do avançado enfraqueci­mento do corpo, abandonava-O ao primeiro sinal de nossa presença, colocando-se, junto de nós, em sadia palestra.

Geralmente, companheiros distintos de nosso plano participavam-nOS dos ágapes fraternos.

Na antevéspera do desenlace, tive ocasião de observar a extrema simplicidade do abnegado Be­serra de Menezes, que se encontrava em visita de reconforto junto à servidora fiel.

— Não desejo dificultar o serviço de meus benfeitores — dizia ela, algo triste —, e, por Isso, estimaria conservar boa forma espiritual no supre­mo instante do corpo.

— Ora, Adelaide — considerou o apóstolo da caridade —, morrer é muito mais fácil que nascer. Para organizar, na maioria das circunstâncias, são precisos, geralmente, infinitos cuidados; para de­sorganizar, contudo, basta por vezes leve empurrão. Em ocasiões como esta, a resolução é quase tudo. Ajude a você mesma, libertando a mente dos elos que a imantam a pessoas, acontecimentos, coisas e situações da vida terrena. Não se detenha. Quan­do for chamada, não olhe para trás.

E sorrindo:

— Lembre-se de que a mulher de Lot, con­vertida em estátua de sal, não é símbolo inexpressivo. Há criaturas que, no instante justo de aban­donarem a carne, às vezes doente e imprestável, voltam o pensamento para o caminho palmilhado, revivendo recordações menos construtivas... Tro­peçam nas próprias apreensões, como se estas fôs­sem pedras soltas ao léu, na senda percorrida, e ficam longos dias fisgadas no anzol do incoerente e insatisfeito desejo, sem suficiente energia para uma renúncia nobilitante.

— Espero — asseverou a interlocutora, em tom grave — que os amigos me auxiliem. Sinto-me socorrida, amparada, mas... tenho medo de mim mesma.

- Preocupada assim, minha amiga? — tor­nou o antigo médico, satisfeito. Não vale a pena. Compreendo-lhe, todavia, a ansiedade. Também pas­sei por aí. Creia, entretanto, que a lembrança de Jesus, ao pé de Lázaro, foi ajuda certa ao meu coração, em transe igual. Busquei insular-me, cer­rar ouvidos aos chamamentos do sangue, fechar os olhos à visão dos interesses terrenos, e a liber­tação, afinal, deu-se em poucos segundos. Pensei nos ensinamentos do Mestre, ao chamar Lázaro, de novo, à existência, e recordei-lhe as palavras:

—“Lázaro, sai para fora!” Centralizando a aten­ção na passagem evangélica, afastei-me do corpo grosseiro sem obstáculo algum.

À simplicidade do narrador encantava.

Adelaide sorriu, sem no entanto disfarçar a preocupação Intima.

Valendo-se da pausa, Jerônimo aduziu:

— Aliás, cumpre-nos destacar as condições ex­cepcionais em que partirá nossa amiga. Em tais circunstâncias, apenas lastimo aqueles que se agar­ram em demasia aos caprichos carnais. Para esses, sim, a situação não é agradável, porqüanto o se­meador de espinhos não pode aguardar colheita de flores. Os que se consagram à preparação do futuro com a vida eterna, através de manifestações de espiritualidade superior, instintivamente apren­dem todos os dias a morrer para a existência inferior.

Reparei que a abnegada irmã se mostrava mais calma e confortada, a essa altura.

Interrompeu-se a conversação, porque Adelaide foi obrigada a reanimar repentinamente o corpo, a fim de receber a última dose de medicação no­turna. Ao regressar ao nosso plano, Jerônimo ofe­receu-lhe o braço amigo para rápida excursão ao estabelecimento de Fabiano.

A Irmã Zenóbia desejava vê-la, antes do de­senlace. A grande orientadora do asilo errático

admirava-lhe os serviços terrestres e, por mais de uma vez, valeu-se de seu fraternal concurso em atividades de regeneração e esclarecimento.

Adelaide acompanhou-nos, contente.

Em breves minutos, recebidos pela administra­dora, como que se repetia a mesma palestra de minutos antes, apenas com a diferença de que Ze­nóbia tomara a posição reanimadora do devotado Bezerra.

A bondosa discípula de Jesus, em vias de re­tirar-se da Crosta, era alvo do carinho geral.

Depois de considerações convincentes por par­te de Zenóbia, que se esmerava em ministrar-lhe bom ânimo, Adelaide, humilde, expôs-lhe as derra­deiras dificuldades.

Ligara-se, fortemente, à obra iniciada nos cír­culos carnais e sentia-se estreitamente ligada, não somente à obra, mas também aos amigos e auxilia­res. Por força de circunstâncias imperiosas, acumu­lava funções diversas no quadro geral dos serviços. Possuía toda uma equipe de irmãs dedicadíssimas, que colaboravam com sincero desprendimento e alto valor moral, no amparo à infância desvalida. Se estimava profundamente as cooperadoras, era, igualmente, muito querida de todas elas. Como se haveria ante as dificuldades que se agravavam? No íntimo, estava preparada; no entanto, reconhe­cia a extensão e a complexidade dos óbices men­tais. Seu quarto de dormir, na casa terrena, se­melhava a redoma de pensamentos retentivos a interceptarem-lhe a saída. Quanto menos se via presa ao corpo, mais se ampliava a exigência dos parentes, dos ....... Como portar-se ante essa situação? como fazer-lhes sentir a realidade? En­laçara-se em vastos compromissos, tornara-se, in­voluntariamente, a escora espiritual de muitos. Entretanto, ela mesma reconhecia a imprestabili­dade do aparelho físico. A máquina fisiológica atingira o fim. Não conseguiria manter-se, ainda mesmo que os valores intercessórios lhe conseguis­sem prorrogação de tempo.

A orientadora escutou-a, atenta, qual médico experimentado em face de doente aflito, e obser­vou, por fim:

— Reconheço os obstáculos, mas não se amo­fine. A morte é o melhor antídoto da idolatria. Com a sua vinda operar-se-á a necessária descen­tralização do trabalho, porque se dará a imposição natural de novo esforço a cada um. Alegre-se, minha amiga, pela transformação que ocorrerá den­tro em pouco. Reanime-se, sobretudo, para que a sua situação se reajuste naturalmente sem qualquer ponto de interrogação ao término da expe­riência atual.

Silenciou durante alguns momentos e notificou, em seguida:

— Temos ainda a noite de amanhã. Aprovei­tá-la-ei para dirigir-me aos seus colaboradores, em apelo à compreensão geral - Amigos nossos contri­buirão para que se reúnam em assembleia, como se faz indispensável.

A visitante agradeceu, penhorada.

Prosseguimos na mesma vibração de cordiali­dade, mas Zenóbia modificou o rumo da palestra.

Abandonando os assuntos de morte e sofri­mento, comentou os serviços edificantes que leva­va a efeito, junto de certa expedição socorrista, cujos membros realizavam admiráveis experiências no instituto, nos dias em que se desobrigavam dos trabalhos imediatos na Crosta. E discorreu tão brilhantemente sobre a tarefa, que Adelaide olvi­dou, por minutos, a situação que lhe era peculiar, interessando-se vivamente pelos lances descritivos. A providência coroava-se de animadores resulta­dos, porque a conversação diferente fizera-lhe enor­me bem, propiciando-lhe provisório apaziguamento mental.

A desencarnante tornou ao corpo, bem dispos­ta, reanimada.

No decurso do dia, Jerônimo e a diretora da Casa Transitória combinaram medidas relativas à reunião da noite. O Assistente empregaria todo o esforço para que a organização fisiológica da enferma estivesse nas melhores condições, enquanto dois ativos auxiliares de Zenóbia se incumbiriam de cooperar para a condução do pessoal de Ade­laide à assembleia.

O dia, desse modo, esteve cheio de tarefas re­ferentes à articulação prevista.

Através de reiterados passes magnéticos sobre os órgãos da circulação — nos quais o meu con­curso foi dispensado por desnecessário, em vista da extrema passividade da enferma —, Adelaide entrou em fase de inesperada calma, tranquilizando o campo das afeições terrenas.

Renovaram-se, de súbito, as esperanças. A rea­ção orgânica surgira, dentro de novo impulso, me­lhorando o quadro dos prognósticos em geral. Mul­tiplicaram-se as vibrações de paz e as preces de reconhecimento.

Em vista disso, iniciou-se, com grande facili­dade, após a meia-noite, o trabalho preparatório da grande reunião.

Auxiliadores de nosso plano trouxeram com­panheiros da instituição, localizados em regiões diversas, provisoriamente desenfaixados do corpo fí­sico pela atuação do sono.

Integrando a turma de trabalhadores que or­ganizavam o ambiente, reparei, curioso, que a maior percentagem de recém-chegados se constituía de mulheres e cumpre-nos anotar que dava satisfação observar-lhes a reverência e o carinho. Todos tra­ziam a mente polarizada na prece, em favor da benfeitora doente, para elas objeto de admiração e ternura. Fitavam-nos, respeitosas e tímidas, en­dereçando-nos pensamentos de súplica, sem lem­branças inúteis ou nocivas. Os poucos homens que compareceram estavam contagiados pela veneração coletiva e mantinham-se na mesma posição senti­mental.

A elevação ambiente espalhava fluidos harmo­niosos, possibilitando agradáveis sensações de con­fiança e tranqüilidade.

Por sugestão de Jerônimo, a reunião seria realizada no extenso salão de estudos e preces públicas, devidamente preparado. Para esse fim, não poupáramos esforço. Acionando peças de eficaz cooperação, submetemos a enorme dependência a rigoroso serviço de limpeza. Os componentes da assembléia podiam descansar tranqüilos, sem o as­sédio de correntes mentais inferiores. Luzes e flo­res de nossa esfera espargiam notas de singular encantamento. Por isso mesmo, era belo apreciar o contínuo ingresso das senhoras que, em oração, a distância do organismo grosseiro, irradiavam de si próprias admiráveis expressões de luz nitidamente diferençadas entre si.

Conservávamo-nos junto de todos, em atitude vigilante, para manter o imprescindível padrão vi­bratório, quando, em seguida à primeira hora, a Irmã Zenóbia, acompanhada de beneméritos amigos da casa, deu entrada no recinto, conduzindo Ade­laide, extremamente abatida.

A diretora da organização transitória de Fa­biano tomou o lugar de orientação e, antes de interferir no assunto principal que a trazia até ali, ergueu a destra, rogando a bênção divina para a comunidade que se reunia, atenciosa e reverente.

Tive, então, oportunidade de verificar, mais uma vez, o prodigioso poder daquela mulher santificada. Sua mão despedia raios de claridade sa­firina, com tanta prodigalidade, que nos proporcio­nava a idéia de estar em comunicação com extenso e oculto reservatório de luz.

Finda a saudação, pronunciada com formosa inflexão de ternura, mudou o tom de voz e dirigiu-se aos ouvintes, com visível energia:

— Minhas irmãs, meus amigos, serei breve. Venho até aqui somente fazer-vos pequeno apelo. Não ignorais que nossa Adelaide necessita passa­gem livre a caminho da espiritualidade superior. Enferma desde muito, cooperou conosco, anos con­secutivos, dando-nos o melhor de suas forçaz. Dó­cil às influências do bem, foi valioso instrumento na organização desta casa de amor evangélico. Administrou a obra com cuidado e, muita vez, em nosso instituto de socorro, fora dos círculos carnais, recebemos preciosa colaboração de seu esfor­ço, de sua boa vontade.

Endereçou o olhar firme à assistência e obtem­perou:

- Porque a detendes? Há dias, o quarto de repouso físico da doente que nos é tão amada per­manece enlaçado com pensamentos angustiosos. São forças que partem de vós, sem dúvida, companhei­ros ciosos do trabalho em ação, mas esquecidos do «faça-se a vossa vontade» que devemos dirigir ao Supremo Senhor, em todos os dias da vida. Lastimo as circunstâncias que me compelem a fa­lar-vos com tamanha franqueza. Entretanto, não nos resta alternativa diferente. Acreditais na vi­tória da morte, em oposição à gloriosa eternida­de da vida? Adelaide apenas restituirá maquinaria gasta ao laboratório da Natureza. Continuará, po­rém, contribuindo nos serviços da verdade e do amor, com ânimo inextinguível. Quanto a vós, não olvideis a necessidade de ação individual, no campo do bem. Que dizer do viticultor que estima o valor da vinha sômente através dos serviços de alheias mãos? como apreciar o amante das flores que nun­ca desceu a cultivar o próprio jardim? Não façais a consagração da ociosidade, mantendo-vos a dis­tância do desenvolvimento de vossas possibilidades infinitas. Indubitàvelmente, cooperação e carinho são estimulantes sublimes na execução do bem, mas, há que evitar a intromissão do fantasma do egoísmo a expressar-se em tirania sentimental. Não podemos asseverar que impedis propositadamente a liberação da companheira de cárcere. A exis­tência carnal constitui aprendizado demasiadamente sublime para que possamos reduzi-la à classe de mera enxovia comum. Não, meus amigos, não nos abalançaríamos a semelhante declaração. Referi­mo-nos tão só ao violento impulso de idolatria a que vos entregais impensadamente, pelos desvarios da ternura mal compreendida. A aflição com que intentais reter a missionária do bem, é filha do egoismo e do medo. Alegais, em favor do vosso indesejável estado dalma, a confiança de que Ade­laide se tornou depositária fiel, como se não devêsseis desenvolver as faculdades espirituais que vos são próprias, criando a confiança positiva em Deus e em vós mesmos, no trabalho improrrogável de auto-realização, e pretextais orfandade espiri­tual simplesmente pelo receio de enfrentar, por vós mesmos, as dores e os riscos, as adversidades e os testemunhos inerentes à iluminação do cami­nho para a vida eterna. Valei-vos da bendita opor­tunidade para repetir velha experiência de incom­preensível idolatria. Convertem companheiros de boa vontade, mas tão necessitados de renovação e luz quanto vós mesmos, em oráculos erguidos em pedestais de barro frágil. Criais semideuses e gastais o incenso de infindáveis referências pes­soais, estabelecendo problemas complexos que lhes reduzem a capacidade de serviço, olvidando as se-mentes divinas de que sois portadores.

Corporifi­cais o ídolo no altar da mente, infundindo-lhe vida fugaz e, indiferentes à gloriosa destinação que o Universo vos assinala, estimais o menor esforço que vos encarcera em automatismos e recapitula­ções. Se o ídolo não vos corresponde à expectativa, alimentais a discórdia, a irritação, a exigência; se falha, após o início da excursão para o conhecimen­to superior, senti-vos desarvorados; se rola do pe­destal de cera, experimentais o frio pavor do des­conhecido pelo auto-relaxamento na renovação pró­pria. Porque erigir semelhantes estátuas para a contemplação, se as quebrareis, inelutàvelmente, na jornada de ascensão? não vos fartastes, ainda, das peregrinações sobre relíquias estraçalhadas? Compreendendo-nos as deficiências mentais na conquis­ta da vida eterna, a vontade do Supremo Senhor colocou nos pórticos da legislação antiga o “não terás outros deuses diante de mim”. O Pai conhe­ce-nos a viciação milenária em matéria de inclina­ções afetivas e prevenia-nos o espírito contra as falsas divindades. Recorremos a semelhantes figu­ras, na reduzida esfera de nossas cogitações do momento, com o propósito de levar a vossa com­preensão a círculos mais altos, para assim vos desprenderdes­ prenderdes da irmã devotada e digna servidora, que vos precederá na grande jornada liberativa.

A palavra de Zenóbia causava extraordinária impressão nos ouvintes. As muitas senhoras e os poucos cavalheiros presentes, tocados pela intensa luz da orientação e desarmados pela sua palavra sábia e sublime, revelavam Indisfarçável emoção no aspecto fisionômico. A oradora fêz delicado ges­to de benevolência e prosseguiu:

— Não somos ínfensos às manifestações de carinho. A saudade e o reconhecimento caminham juntos. Todavia, no âmbito das relações amistosas, toda imprudência resulta em desastre. Que seria de nós, se Jesus permanecesse em continuado con­vívio com as nossas organizações e necessidades? não passaríamos, talvez, de maravilhosas flores da estufa, sem vida essencial. Por excesso de consulta e abuso de confiança, não desenvolveríamos a ca­pacidade de administrar ou de obedecer. Baldos de valor próprio, erraríamos de região em região, em compactos rebanhos de incapazes, à procura do Oráculo Divino. Talvez, em vista disso, o Mestre Sábio tenha limitado ao mínimo de tempo o apos­tolado pessoal e direto, traçando-nos serviços dig­nificantes para muitos séculos, em poucos dias. Deu-nos a entender, desse modo, que o homem é coluna sagrada do Reino de Deus, que o coração de cada criatura deve iluminar-se, como Santuário da Divindade, para refletir-lhe a grandeza augusta e compassiva. Não vos esqueçais, meus amigos, de que todos nós, individualmente considerados, somos herdeiros ditosos da sabedoria e da luz.

Zenóbia interrompeu-se e, nesse instante, como se lhe atendessem, de muito alto, os apelos silen­ciosos, começaram a cair sobre nós raios de luz balsamizante, acentuando-nos a sensação de felici­dade e contentamento.

Decorrido longo silêncio, durante o qual a di­retora do instituto de Fabiano pareceu consultar as disposições mais íntimas da assembléia, voltou a dizer, em tom significativo:

— Afirmam mentalmente que Adelaide é a viga mestra deste pouso de amor, que surgirão dificul­dades talvez invencíveis para que seja substituida no leme da orientação geral; entretanto, sabeis que vossa irmã, não obstante os valores incontes­táveis que lhe exornam a personalidade, foi apenas instrumento digno e fiel desta criação de beneme­rência, sem ter sido, porém, sua fundadora. Afei­çoou-se ao espírito cristão, ao qual nos adaptare­mos por nossa vez, e foi utilizada pelo Doador das Bênçãos nos trabalhos de extensão do Evangelho Purificador. Não lhe deponhais na fronte amiga a coroa da responsabilidade total, cujo “peso de glórias” deve repartir-se com todos os servos sin­ceros das boas obras, como se dividem, inevitàvel­mente, os valores da cooperação. Adelaide conhece a sua condição de colaboradora leal e não deseja lauréis que de modo algum lhe pertencem. Aguar­da, apenas, que os companheiros de luta transfiram ao Cristo o patrimônio do reconhecimento, rogando simplesmente as afeições, a simpatia e a compre­ensão para as suas necessidades na vida nova. Libertemo-la, pois, oferecendo-lhe pensamentos de paz e júbilo, partilhando-lhe a esperança na esfera mais elevada.

Logo após, a orientadora terminou, orando sen­tidamente e suplicando para todos nós a bênção divina do Pai Poderoso e Bom.

Diversos ouvintes não se demoraram no recin­to, regressando ao ambiente comum sob a custódia de amigos vigilantes. Algumas senhoras, contudo, aproximaram-se da oradora, endereçando-lhe pala­vras de alegria e gratidão.

Mais alguns minutos e a assembleia dispersa­va-se, tranquila. Por fim, despediram-se igualmente a Irmã Zenóbia e os outros companheiros.

Adelaide, ao retornar à matéria, respira, ra­diante. Entretanto, pelo soberano júbilo daquela hora, ganhou tamanha energia no corpo perispiri­tual que o regresso às células de carne foi com­plicado e doloroso. Súbito mal-estar invadiu-a, ao entrar em contacto com os depauperados centros físicos.

Tomava-os e abandonava-os, sucessivamente, como pássaro a sentir a exigüidade do ninho.

Indagando de Jerônimo quanto à surpresa, dele recebeu a explicação necessária.

— Depois da palavra esclarecida de Zenóbia — disse afavelmente o mentor —, extinguiram-se as correntes mentais de retenção que se mantinham pelo entendimento fraterno da comunidade reco­nhecida. Privou-se o corpo carnal do permanente socorro magnético, ao qual o afluxo dessas tor­rentes alimentava, atenuando-lhe a resistência e precipitando a queda do tono vital. Além disso, o contentamento desta hora robusteceu-lhe. sobre­maneira, os centros perispirituais. Impossível, dessa forma, evitar a sensação angustiosa no contacto com os órgãos doentios.

E, com benévola expressão, afagou carinhosa­mente a enferma, falando-lhe, em seguida a breve intervalo:

— Não se incomode, minha amiga! O casulo reduziu-se, mas suas asas cresceram... Pense, ago­ra, no vôo que virá.

Adelaide esforçou-se para mostrar satisfação no semblante novamente abatido e rogou, tímida, lhe fôsse concedido o obséquio de tentar, ela pró­pria, a sós, a desencarnação dos laços mais fortes, em esforço pessoal, espontâneo.

Jerônimo aquiesceu, satisfeito.

E, mantendo-nos de vigilância em câmara pró­xima, deixamo-la entregue a si mesma, durante as longas horas que consumiu no trabalho com­plexo e persistente.

Não sabia que alguém pudesse efetuar seme­lhante tarefa, sem concurso alheio, mas o orientador veio em socorro de minha perplexidade, es­clarecendo:

— A cooperação de nosso plano é indispensável no ato conclusivo da liberação; todavia, o serviço preliminar do desenlace, no plexo solar e mesmo no coração, pode, em vários casos, ser levado a efeito pelo próprio interessado, quando este haja adquirido, durante a experiência terrestre, o pre­ciso treinamento com a vida espiritual mais ele­vada. Não há, portanto, motivo para surpresa. Tudo depende de preparo adequado no campo da realização.

Meu dirigente explicara-se com muita razão. Efetivamente, só no derradeiro minuto interveio Jerônimo para desatar o apêndice prateado.

A agonizante estava livre, enfim !...

Abriu-se a casa à visitação geral.

Evangelizados pelo verbo construtivo de Zenó­bia, os cooperadores encarnados, embora não guar­dassem minudentes recordações, sustentaram dis­creta atitude de respeito, serenidade e conformação.

A denodada batalhadora, agora liberta, esqui­vou-se gentilmente ao convite para a partida imediata. Esperou a inumação dos despojos, consolan­do amigos e recebendo consolações.

Depois de orar, fervorosamente, no último pou­so das células exaustas, agradecendo-lhes o precio­so consurso nos abençoados anos de permanência na Crosta, Adelaide, serena e confiante, cercada de numerosos Amigos, partiu, em nossa companhia, a caminho da Casa Transitória, ponto de referência sentimental da grande caravana afetiva...


20

Ação de graças

Congregados, agora, no instituto socorrista de Fabiano, preparamo-nos para a ditosa viagem de regresso.

Efetivamente, as saudades de nossa vida har­moniosa e bela, nos planos mais altos, dominavam-nos os corações. O serviço nas regiões inferiores proporcionava-nos, é bem verdade, experiência e sabedoria, acentuava-nos o equilíbrio, enriquecia-nos o quadro de aquisições eternas; entretanto, o reconhecimento de semelhantes valores não impedia a sede daquela paz que nos aguardava, a distância, no lar tépido e suave das afinidades mais puras.

Em todos nós preponderava o júbilo decor­rente da tarefa exemplarmente realizada, mas o próprio Jerônimo não disfarçava o contentamento de regressar, na impressão de calma e bom ânimo que lhe fulgurava o semblante feliz.

Ao esforço sincero, seguia-se a tranquilidade do dever cumprido.

Marcada a reunião derradeira na Casa Tran­sitória, rodeavam-se os recém-libertos de vários amigos que lhes traziam alegres notícias e boas-vindas confortadoras. Dimas e Cavalcante, renovados em espírito, ignoravam como exprimir o re­conhecimento que lhes vibrava nalma, enquanto Adelaide e Fábio, mais evolvidos na senda de luz divina, comentavam problemas transcendentes do destino e do ser, através de observações formosas e surpreendentes, recolhidas na vasta esfera de experiências individuais. Notas de alegria e otimis­mo transpareciam de todas as palestras, projetos e recordações.

A Irmã Zenóbia solicitou que a esperássemos na câmara consagrada à prece, onde nos abraçaria, dando-nos as despedidas.

Reunidos em alegria franca, aguardávamos a diretora nas melhores expansões de entendimento fraternal.

Zenóbia, poucos momentos depois, dava entra­da no salão, seguida de grande número de auxilia­res, e, como sempre, veio até nós, bondosa e aco­lhedora. Estimava, sobremaneira, a expedição e devotara-se carinhosamente aos recém-libertos. Em vista disso, cercava-nos de atenção pessoal e direta, naquele momento de maravilhoso adeus.

Assumindo a posição de orientadora dos tra­balhos, exortou-nos, de modo comovente, à fiel exe­cução da Vontade Divina, comentando a beleza das obrigações de fraternidade que se entrelaçam, no Universo, fortalecendo a grandeza da vida. Por fim, saudando individualmente os recém-desencar­nados, recomendou a Adelaide pronunciasse, ali, a oração de graças, que faria acompanhar do hino de reconhecimento que ela, Zenóbia, nos ofereceria, em sinal de afetuoso apreço.

Adelaide levantou-se, em meio de profundo si­lêncio, e orou, fervorosa, comovida:

— A ti, Senhor, nossos agradecimentos por esta hora de paz intraduzível e de infinita luz. Agora, que cessou a nossa oportunidade de trabalho nos circulos da carne, nós te agradecemos os benefí­cios recolhidos, as aquisições realizadas, os serviços levados a efeito... Mais que nunca, reconhecemos hoje a tua magnanimidade indefinível que nos uti­lizou o deficiente instrumento na concretização de sublimes desígnios! Vacilantes e frágeis, como as aves que mal ensaiam o primeiro vôo longe do ni­nho, encontramo-nos aqui, venturosos e confiantes, ao pé de teus desvelados emissários que nos am­pararam até ao fim!... Como agradecer-te o tesouro inapreciável de bênçãos celestes? Teu carinho santificante seguiu-nos, passo a passo, em todos os minutos de permanência no vale das sombras e, não satisfeito, teu inesgotável amor acompanha-nos, ainda, nesta retirada da velha Babilônia de nossas paixões amargurosas e milenárias.

Quase sufocada de emoção, a missionária fêz reduzido silêncio para conter as lágrimas, e con­tinuou:

— Nada fizemos por merecer-te a assistência bendita. Nenhum mérito possuímos, além de boa vontade construtiva. Claudicamos, vezes sem núme­ro, dando pasto aos caprichos envenenados que nos obscureciam a consciência; falimos frequentemen­te, cedendo a sugestões menos dignas. Entretanto, Jesus Amado, converteste-nos o trabalho humilde em manancial de ventura que nos alimenta o co­ração, soerguido para as esferas mais altas. Des­culpa-nos, Mestre, a imperfeição de aprendizes, tra­ço predominante de nossa personalidade libertada. Não possuímos nada de belo para oferecer-te, óBenfeitor Divino! senão o coração sincero e humilde, vazio agora das abençoadas preocupações que o nu­triam na Crosta da Terra... Recebe-o, Mestre, como demonstração da confiança de teus discípulos pe­queninos, e enche-o, de novo, com as tuas sacrossantas determinações! Reconhecidos à tua inesgo­tável misericórdia, agradecemos a ternura de tuas bênçãos, mas, se nos deste proteção e consolo não nos retires o trabalho e o ensejo de servir. Conduze-nus aos teus “outros apriscos” e renova-nos, por compaixão, a bênção de sermos úteis em tua causa. Cheios de alegria, abençoamos o valioso suor que nos proporcionaste na esfera da carne purificadora, onde, ao influxo de tua benignidade retificamos velhos erros do coração... Bendizemos o caminho áspero que nos ensinou a descobrir tuas dádivas ocultas, beijamos a cruz do sofrimento, do testemunho e da morte, de cujos braços nos foi possível contemplar a grandeza e a extensão de tuas bênçãos eternas!..

Adelaide fêz nova pausa, enxugando o pranto de emoção, enquanto a seguíamos sensibilizados, e prosseguiu:

— Agora, Senhor, assinalando nossos agrade­cimentos aos teus emissários que nos estenderam mãos amigas, nas últimas dificuldades da moléstia depuradora, deixa que te roguemos amoroso auxi­lio para todos aqueles, menos felizes que nós, que ainda gemem e padecem nas sendas estreitas da incompreensão. Inspira os teus discípulos ilumina­dos para que te representem o espírito sublime, ao lado dos ignorantes, dos criminosos, dos des­viados, dos perversos. Toca o sentimento de cari­dade fraternal dos teus continuadores fiéis para que continuem revelando o benefício e a luz de tua lei. E, ao encerrar este ato de sincera gratidão, enviamos nosso pensamento de alegria e louvor a todos os companheiros de luta, nos mais diversos departamentos da vida planetária, convidando-os, em espírito, a glorificarem teu nome, teus desígnios e tuas obras, para sempre. Assim seja!

Finda a prece comovedora, a Irmã Zenóbia veio abraçar Adelaide, extremamente sensibilizada, e, logo após, reassumindo o lugar, recomendou aos auxiliares ajudassem-na no formoso cântico de agra­decimento ao círculo terreno que os irmãos libertos acabavam de deixar. Imergindo-nos num dilúvio de vibrações cariciosas que nos arrancavam lágri­mas de suave emoção, iniciou, ela própria, o hino de indefinível beleza:

Ó Terra — mãe devotada,

A ti, nosso eterno preito

De gratidão, de respeito

Na vida espiritual!

Que o Pai de Graça Infinita

Te santifique a grandeza

E abençoe a natureza

Do teu seio maternal!

Quando errávamos aflitos,

No abismo de sombra densa,

Reformaste-nos a crença

No dia renovador.

Envolveste-nos, bondosa,

Nos teus fluidos de agasalho,

Reservaste-nos trabalho

Na divina lei do amor.

Suportaste-nos sem queixa

O menosprezo impensado,

No sublime apostolado

De terno e infinito bem.

Em resposta aos nossos crimes,

Abriste nosso futuro,

Desde as trevas do chão duro

Aos templos de luz do Além.

Em teus campos de trabalho,

No transcurso de mil vidas,

Saramos negras feridas,

Tivemos lições de escol.

Nas tuas correntes santas

De amor e renascimento,

Nosso escuro pensamento

Vestiu-se de claro sol.

Agradecemos-te a bênção

Da vida que nos emprestas;

Teus rios, tuas florestas,

Teus horizontes de anil,

Tuas árvores augustas,

Tuas cidades frementes,

Tuas flores inocentes

Do campo primaveril!...

Agradecemos-te as dores

Que, generosa, nos deste,

Para a jornada celeste

Na montanha de ascensão.

Pelas lágrimas pungentes,

Pelos pungentes espinhos,

Pelas pedras dos caminhos:

Nosso amor e gratidão!

Em troca dos sofrimentos,

Das ânsias, dos pesadelos,

Recebemos-te os desvelos

De mãe de crentes e incréus.

Sê bendita para sempre

Com tuas chagas e cruzes!

Ás aflições que produzes!

São alegrias nos céus.

Ó Terra — mãe devotada,

A ti, nosso eterno preito

De gratidão, de respeito,

Na vida espiritual!

Que o Pai de Graça Infinita

Te santifique a grandeza

E abençoe a natureza

Do teu seio maternal!

Quando soou a derradeira nota do hino repas­sado de misterioso encanto, olhos nevoados de lá­grimas, trocamos com Zenóbia carinhoso abraço de adeus.

Nós outros, os da expedição socorrista, tomá­vamos os recém-libertos pelas mãos, imprimindo-lhes energia para a subida prodigiosa, cercados de amigos que nos seguiam, alegres e venturosos, a caminho das zonas mais elevadas.

Estranho e indefinível júbilo nos vibrava no peito, empolgado de vigorosa esperança, e, depois de atravessar os círculos de baixo padrão vibrató­rio, em que se localizava o instituto de Fabiano, ganhamos região brilhante e formosa, coberta pelo céu faiscante de estrelas!... Saudando-nos de mui­to longe, o astro da noite apareceu em maravilhoso plenilúnio, emitindo raios de doce e evanescente claridade que, depois de nos iluminar o caminho numa pulcritude de sonho, desciam, céleres, para a Crosta da Terra, espalhando entre os homens o convite silencioso à meditação na gloriosa obra do Deus.

Fim