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sábado, 29 de janeiro de 2011

Além da Morte-Divaldo Pereira Franco

Divaldo Pereira Franco

(Otília Gonçalves)

Além da Morte

Intróito

Além da Morte chegam, sem solução de continui­dade, as imensas caravanas de emigrantes da Terra. Procedentes dos mais variados rincões do Orbe, trazem estampados no espírito os sinais vigorosos que lhes refletem os últimos instantes no veículo ce­lular.

Aportam no grande continente da Erraticidade, conduzindo a bagagem dos feitos acumulados duran­te o trânsito pelo mundo das expressões físicas. Nem anjos nem demônios, mas homens que eram, homens que continuam. A desencarnação não lhes modificou hábitos nem costumes, não lhes outorgou títulos nem conquistas, não lhes retirou méritos nem realizações. Cada um se apresenta como sempre viveu. Não ocor­re milagre de transformação para os que atingem o grande porto...

Raros despertam com a consciência livre, após a inevitável travessia. A incontável maioria, vinculada atrozmente às sensações animalizantes, se jugula às lembranças daquilo em que se comprazia, e se de­mora, desditosa, em bandos, quais salteadores en­louquecidos, pervagando em volta do domicílio car­nal, até que a Lei Excelsa os recambie ao renascimen­to.

Muitos, quais doentes em processo de convales­cença de longo curso, são recolhidos a Colônias Espi­rituais, que abnegados missionários do amor e da ca­ridade ergueram nas proximidades do planeta, onde se refazem e retemperam as forças gastas, para re­começar, reaprender e exercitar a ascensão aos pla­nos mais felizes.

Da mesma forma que na Terra enxameiam as afei­ções intercessórias, além da morte não cessam as ma­nifestações do amor em intercâmbio contínuo, esta­belecendo os fortes laços da proteção e do socorro. O amor em todo lugar é a alma do Universo — ma­nifestação de Deus.

Mesmo os Espíritos calcetas, inveterados perse­guidores da paz de muitos outros Espíritos — infeli­zes que são em si próprios, espalhando, por isso, a infelicidade de que se encontram possuidos — não estão esquecidos do auxílio divino pelos mensagei­ros abnegados que por eles velam, que os assistem e amparam. Em toda parte e sem cessar, o devotamento dos bons reflete a paternal providência divina. Morrer, longe de ser o descansar nas mansões celestes ou o expurgar sem remissão nas zonas in­fernais, é, pura e simplesmente, começar a viver...

Evidentemente que as dimensões do céu, ou do inferno sem o caráter ad aeternitatem, encontram o seu correspondente em regiões aflitivas onde as cons­ciências empedernidas se depuram para futuros re­nascimentos na organização física em que se reajus­tam e se recompõem; ou estâncias de luz onde se comprazem e se reúnem os heróis anônimos do de­ver, os missionários dos labores humildes que passa­ram ignorados, os sacerdotes do trabalho aparente­mente desvalioso, os pais, irmãos e amigos ricos de abnegação desinteressada, os mantenedores do bem e da ordem, prosseguindo no programa de incessan­te evolução...

Após a disjunção celular, a consciência comanda o Espírito e o peso específico das vibrações, por afini­dade, se encarrega de fixar cada um no quadro das necessidades evolutivas.

Não faltam, todavia, aqueles que, na Terra, obje­tam e recalcitram em torno de tais afirmações. Não temos, porém, a pretensão de convencer este ou aquele aprendiz da vida em experiência liber­tadora. Todos os que se demoram no plano físico defron­tarão agora ou mais tarde as realidades espirituais e aprenderão de visu pelo processus da própria evolu­ção, retificando opiniões, disciplinando observações, experimentando...

A morte a todos os aguarda e a vida é a grande resposta a todos os enigmas. Preparar-se para esses imperiosos acontecimen­tos é tarefa inadiável, que ninguém pode desconsi­derar.

Pensando nisso, a nossa irmã Otília, em páginas que endereça à sua filha, ainda envolta nos tecidos da carruagem física, reúne apontamentos da sua ex­periência pessoal, que agora apresentamos em letra de forma, guardando a esperança de, com essas nar­rativas, oferecer advertências e considerações — con­siderações e advertências, aliás, que vêm sendo re­petidas desde os primórdios dos tempos e que, no Evangelho como na Codificação Kardequiana, atin­gem sua mais vigorosa expressão — aos que trafegam desatentos ou àqueles que buscam consolação e alen­to na Doutrina dos Espíritos.

A missivista não teve em mente apresentar novi­dade, considerando mesmo que novidade é tudo aqui­lo que alguém ignora, já que, “nada há de novo sob a luz do sol”, sendo a revelação sempre a mesma atra­vés das idades, surgindo hoje e ressurgindo amanhã, com aspecto, caráter e roupagens novas. Existem aqui e além-mar, em letras portuguesas e estrangeiras, excelentes informações sobre a vida além da morte. Muito se disse e muito se dirá ainda. Faz-se necessário, no entanto, repetir, divulgar, acos­tumar os homens às questões espirituais. A experiência da nossa mensageira desencarna­da foi individual, e a colheita que é sempre pessoal, pode, entretanto, sugerir lições e ensejar abençoa­das meditações ao leitor interessado. Em um momento sequer desejou a amiga espiri­tual fazer obra de literatura, por motivos facilmente compreensíveis. Ditou estas páginas nas sessões hebdomadárias do Centro Espírita Caminho da Reden­ção, entre os meses de março de 1958 e agosto de 1959, na sua quase totalidade em presença daquela a quem foram dirigidas.

Ao trazer o presente livro à divulgação fazemo-lo, também, homenageando o mestre lionês Allan Kardec, por ocasião do próximo centenário de A Gênese, em a qual se estudam questões transcenden­tes, palpitantes e atuais à luz clara e meridiana da razão e da ciência. Nossa homenagem singela reflete, mais que ou­tro sentimento, o da gratidão mais profunda, e do res­peito mais acendrado ao vaso escolhido, que se fez missionário do CONSOLADOR, no justo instante em que o espírito humano se desgoverna e se amesqui­nha ante as notáveis conquistas do engenho técnico, sem, contudo, os seus correspondentes morais.

A mensagem consoladora e clara das Vozes do Céu tem regime de urgência e, ante as perspectivas atraentes do amanhã com Jesus, formulamos votos de paz com as nossas sinceras escusas àqueles Espí­ritos valorosos, perspicazes e estudiosos que, certa­mente, não encontrarão aqui o de que necessitam para sedimentação da cultura ou ampliação do conhe­cimento. Exorando ao Senhor que nos abençoe a todos, dis­cípulos sinceros que buscamos ser de Jesus Cristo, sou a servidora,

Joanna de Ângelis

Salvador, 17 de julho de 1967.


ESCLARECIMENTOS OPORTUNOS

“Vi logo que cada Espírito, em virtude de sua posição pessoal e de seus conheci­mentos, me desvendava uma face daquele mundo, do mesmo modo que se chega a co­nhecer o estado de um país, interrogando ha­bit antes seus de todas as classes, não poden­do um só, individualmente, informar-nos de tudo

(Allan Kardec — Obras Póstumas — 11ª Edição da FEB — Página 241.)

À medida que recuperava a tranqüilidade Além da Morte, quando as vibrações da carne se diluíam no grande mar do esquecimento, longe das impres­sões mais fortes do plano físico, desejei retornar aos seres queridos que ficaram na retaguarda, para nar­rar-lhes a minha experiência.

Examinando, porém, as limitações que me incapacitam, compreendi, de cedo, a impossibilidade que dificultava a realização do meu desejo. Sem cultura intelectual acadêmica, habituada apenas aos proble­mas do lar humilde, sempre distante das belas letras, não fui aquinhoada, quando na Terra, com as dádivas do Saber. Desejava, entretanto, falar aos companhei­ros de luta, adverti-los, mostrar-lhes as surpresas da vida espírita, oferecer-lhes as impressões pessoais, concitando-os ao trabalho renovador que o Espiritis­mo oferece a todos, no abençoado campo das reali­zações imperecíveis.

Embora informada pela Doutrina Espírita de que a vida continuava, esclarecida pela Obra de André Luiz, a que me afeiçoara quando encarnada, esbar­rei, assim mesmo, com surpresas e inquietações, à semelhança de turista confuso que, em visita à gran­de cidade, embora conduza no bolso o livro-guia, pro­cura insistente e desarvoradamente endereços que não sabe onde se encontram...

Quantas aflições e remorsos, receios e ansieda­des visitaram minha alma, depois do túmulo, não sei dizer. Constatei que a vida prossegue sem grandes mo­dificações, oferecendo a cada alma, no cadinho evo­lutivo, as bênçãos ou punições de que se faz credora.

Atormentados do sexo continuam ansiosos. Escravos do prazer prosseguem inquietos. Servos do ódio demoram-se em aflição. Companheiros da ilusão permanecem engana­dos. Aficionados da mentira dementam-se sob ima­gens desordenadas. Amigos da ignorância caminham perturbados.

Somente as almas esclarecidas e experimenta­das, na batalha redentora, caminham em liberdade, desfrutando a dádiva da esperança entre sorrisos e realizações.

Verifiquei o significado real da Fé. Ao invés de ser aceitação passiva de crença religiosa é, antes, pro­grama de ascensão e renovação interior. Conduzir a claridade pura do Cristianismo, na mente e no coração, é alta concessão do Céu que nin­guém desrespeitará impunemente.

E afirmei a convicção de escrever algumas pági­nas sem a preocupação de fazer literatura nem apre­sentar soluções de transcendência metafísica aos velhos problemas da alma, tão bem estudados e debatidos desde há muito, nas Escolas que se preocu­pam com o assunto.

Objetivei, apenas, dar mais um grito de alerta, dirigindo à minha própria filha os apontamentos que agora vêm a lume. Deixei que a mente evocasse as cenas que vivi Além da Morte, amparada pelas irmãs Liebe e Zélia, benfeitoras incansáveis que se encar­regaram, desde as primeiras horas, de me sustentar a alma atribulada, ensej ando-me a longa caminhada de restabelecimento. Não me inspirou, uma só vez, a idéia de escrever um livro, considerando-me, conforme já o disse, inca­paz de o fazer. Amparada pelo meu Guia Espiritual, foi-me pos­sível, entretanto, realizar o mínimo que agora ofere­ço ao caro leitor para a sua meditação, rogando-lhe desculpas. São anotações de um coração para outro coração que se encaminha para o túmulo. São expres­sões que você mesmo encontrará mais tarde, queira ou não, acredite ou não. São referências escritas com lágrimas e sob terríveis acúleos de dor.

Não acalento outro anseio, senão despertar alguém na carne para a responsabilidade da vida, durante a travessia física no barco da existência planetária. Perdoe-me, pois, o leitor interessado em aprofun­dar conhecimentos, se pouco lhe pude oferecer. Conservo a alegria de trazer as minhas páginas a você, animada pelas expressões do Codificador do Es­piritismo quando afirma “que se chega a conhecer o estado de um país, interrogando habitantes seus de todas as classes...

Esse é o país da minha atual residência, relatado pelo amor de uma mãe que na vanguarda adverte a filha em caminho da Eternidade, apontando o velho roteiro evangélico, sempre atual: “FAZER A OUTREM O QUE SE DESEJA QUE OUTREM LHE FAÇA”. Agradecendo a Jesus e à Mãe Santíssima, sou a irmã humílima e reconhecida. Otília Gonçalves. Salvador, 15 de janeiro de 1960.

Além da Morte

Todos os dias chegam corações atormentados, alem da morte. E apezar do horizonte aberto, jazem no chão como pássaros mutilados... Loucos, sob a hipnose da ilusão. Suicidas, descrentes dos proprios méritos. Criminosos sentenciados no tribunal da consciencia. Malfeitores que furtaram de si mesmos. Doentes que procuraram a enfermidade. Infelizes a se imobilizarem nas Trevas.

Alcançando a Grande Luz assemelham-se a cegos da razão ante a sabedoria da natureza. Por mais se lhes mostre a harmonia do Universo e por muito se lhes fale dos objetivos da vida, continuam desdito­sos e dementados.

Ha quem diga que os chamados mortos nada tem a ver com os chamados vivos, entretanto, como os chamados vivos de hoje, serão os chamados mortos, de amanhã, com possibilidade de se perturbarem uns aos outros caso per­severem na ignorancia —, cultivemos na Doutrina Espírita o instituto mundial de esclarecimento da alma, a fim de que o pensamento regenerado consiga redimir as suas proprias cri­ações que substancializam a experiencia da Humanidade nas várias nações da Terra.

É por isso que saudamos neste livro mais um brado de renovação e esperança, concitando-nos ao aproveitamento das horas. Fixemos a atenção. O médium é o braço do semeador. A emissária é a mão que semeia. A mensagem é a semente de encarnados e desencarnados, a palavra de amor e exortação que nos é trazida ao entendimento, assimilando-lhe os valores impereciveis porque, em verdade, andam sempre avisados e felizes os que trazem consigo “os olhos de ver” e “os ouvidos de ouvir.”

André Luiz

(Página psicografada pelo médium Francisco Cândido Xavier na reunião mediúnica do Centro Espírita Uberabense, na noite de 13 de janeiro de 1960, em Uberaba, M”A GÊNESE”) (*) Ortografia conforme o original.

1 - A VIDA CONTINUA

Minha filha, que a paz do Senhor seja conosco!

Desde o momento em que o anjo da morte me dirigiu seu pensamento, enviando-me a lú­gubre mensagem da “angina-pectoris”, umtur­bilhão indescritível tomou conta do meu Espírito.

A princípio, com as carnes sacudidas pe­los estertores do coração que não mais podia cooperar com a vida física, inenarrável sofri­mento tomou-me todas as fibras, do peito ao cérebro e deste aos pés, fazendo-me enlouque­cer. Atormentada entre as idéias da “morte” apavorante que eu temia e a ansiedade da “vida” que escapava ao peso cruel do sangue que se negava a irrigar artérias, veias e vasos, senti que ia tombar.

Reuni as forças que desapareciam céleres, abandonando-me impiedosamente, tentando resistir à violência da dor que me despedaçava toda, e mais não consegui senão emitir gritos de­sesperados, semilouca. Tinha a impressão de que vi­gorosa mão de ferro me estraçalhava o coração e, a par da agonia que não posso descrever, sentia que a vida fugia rápida, fazendo-me desmaiar, sem que, con­tudo desaparecesse a dor superlativa que durante muito tempo iria conservar-me envolta em angústia sombria e inquietante.

Não poderei dizer o tempo em que demorei des­falecida. Guardo, ainda hoje, a impressão de que, em volta, um torvelinho me arrastava, dando-me a sen­sação de queda, em profundo abismo sem fim.

Subitamente, como se me chocasse de encontro ao solo, despertei agonizante, tateando em trevas aos gritos de lamentável perturbação. O peito conti­nuava a doer desesperadamente como se estivesse estilhaçado por violento projétil que o varasse, rom­pendo carne e ossos e deixando-o a sangrar... Oh! Jesus, o sofrimento daquela hora!...

O tempo passava sem que eu tivesse notícia, se­não através da agonia que parecia não ter fim.

Como a dor não cessasse, simultaneamente im­pressões diferentes me acudiram ao cérebro turbilho­nado, agigantando meu desespero. Frio glacial apo­derou-se lentamente dos membros inferiores, amea­çando imobilizar-me. Ante essa inesperada sensação, tive a impressão de que pesadelo muito cruel me tor­turava, mas do qual me libertaria em breve. Aquietei-me um pouco, acarinhando a expectativa do agradá­vel despertar... porque tudo aquilo não passaria cer­tamente de um sonho mau.

Além do frio, dores generalizadas paralisaram-me os movimentos, enquanto o enregelamento me tornara­ rígida, O pavor rondava-me, implacável. Sem poder mais raciocinar, sacudida nas ondas crispadas desse mar de desconhecidos sofrimentos, vislum­brei tênue claridade, como se a alva tocasse meus olhos. Tive, então, as primeiras noções do lugar em que me encontrava, permanecendo, entretanto, imóvel.

De início, turvas e embaçadas, as imagens não se tornavam reconhecíveis. Inquieta, percebi-me dei­tada no leito costumeiro, hirta e pálida. Desejei levantar-me, andar, correr, suplicar auxí­lio; estava paralisada, atada a cadeias poderosas. A língua já não se articulava. O cérebro parecia-me de­vorado por labaredas crepitantes. Os olhos, fechados, negavam-me fitar a luz, embora eu “visses tudo e acompanhasse os movimentos exteriores. Escorria-me o pranto incessante, queimando-me a face, e o pensamento se me afigurava qual incandescida cal­deira, cheia de desesperos a destruir-me. Não tinha idéia das horas.

Indagava mentalmente, no martírio, o que me acontecera. Onde estava o companheiro de tantos anos? Os irmãos de fé espírita, onde se encontravam eles que me não socorriam? Os cooperadores dedi­cados do nosso programa de assistência social, para onde fugiram? Para onde conduziram as criancinhas a que me acostumara a amar; por que não me fala­vam? E lembrei-me do Mestre bondoso que se fizera a segurança de todos os infelizes.

No tumulto do meu cérebro, a figura incompará­vel de Jesus tomou vulto, amenizando lentamente meus sofrimentos. Embora não cessassem de todo, as dores diminuiram e uma quietação momentânea aplacou-me o incêndio interior. Respirei algo facilmente.

De longe, pareciam-me chegar aos ouvidos sons e vozes abafados. Embora de olhos fechados, “vi” que algumas pessoas choravam.

Atraída, desejei erguer o corpo; senti-me sair de dentro do casulo carnal, que então pude ver. En­contrava-me deitada, no esquife mortuário, e de pé, ao seu lado, simultaneamente. Apalpei-me apres­sada e senti-me físicamente. Tudo em mim vibrava com a mesma intensidade doutrora, avolumando-se às impressões da carne a agressão da dor.

Procurei alargar os movimentos e percebi que o frio terrível desaparecia, desatando-me do porto da rigidez. Andei um pouco vacilante e, de súbito, na mi­nha mente brilhou inesperada idéia: eu não estaria morta, porventura! — indagava-me. Atirei-me apres­sadamente ao corpo, tentando erguê-lo para fugir a esse pensamento “tenebroso” e libertar-me das afli­ções. Não consegui, entretanto, o meu intento. As lá­grimas voltaram a romper as represas e corriam volu­mosas.

Não, não era possível, afirmava intimamente, ten­tando aquietar-me. Tudo aquilo não passava certa­mente de um sonho fantástico ou de um desdobra­mento mediúnico, no Reino da Morte. Não era crível que eu tivesse morrido. Sentia-me viva, não obstante as dores que me cruciavam. Encontrava-me lúcida, raciocinava, sofria... Não podia estar morta. Quando acordasse, oraria e procuraria apagar das lembran­ças aqueles momentos de pavor. Estive quase aliviada com esses raciocínios. No entanto, a realidade era outra.

Ao abraçar-me ao corpo, senti-lhe a frieza e ve­rifiquei, apesar de deitar-me sobre ele, que não me conseguia ajustar qual ocorre à mão calçada em luva apropriada. Esforçando-me “vesti-lo” outra vez, verifiquei, atribulada, que minha vontade não mais o acionava. Compreendi, embora relutante: estava “morta”.

Ao admitir esta idéia, fui acometida de profundo terror. Voltaram-me à mente as explanações do nos­so Diretor Espiritual, ouvidas em nosso Cenáculo de orações. Antes de refazer-me da surpresa, descobri-me profundamente ignorante em Doutrina Espírita, que é abençoado roteiro no país dos “mortos”. Ten­tei recapitular os ensinamentos ouvidos antes; toda­via, o inesperado daquela hora descontrolava-me, prostrando-me abatida, mais uma vez. O torpor, que, antes me invadira, retornou, dei­xando-me livre somente o pensamento que, agora, percorria célere as sendas das recordações mistura­das às lutas da existência, fazendo-me defrontar o corredor da loucura.

Surpreendi-me novamente fora do corpo, apesar de a ele estar atada por fortes cordões que não im­pediam que me distanciasse. Passei, então, a experi­mentar alívio novo e ouvi, emocionada, o murmúrio de preces intercessórias. Nossas crianças e com­panheiros, em volta do caixão funerário, oravam pela minha alma, que se iniciava na grande viagem. Pro­curei ajoelhar-me acompanhando aquele culto de sau­dade, mas, antes que pudesse coordenar os pensa­mentos, leve sono venceu-me, vagarosamente, as fi­bras cansadas, convidando-me ao repouso. Perdendo-me em remoinho, eu sentia afrouxarem-se-me os músculos, ao mesmo tempo em que meus pensamentos mergulhavam nas águas escuras do es­quecimento. Embora desejasse acompanhar o desen­rolar dos acontecimentos daquele instante máximo de minha vida, deixei-me arrastar pelo cansaço, ex­perimentando invencível torpor mental, enquanto re­cordava que a vida continua...

2 - A CAMINHO DO SEPULCRO

Não tive noção do tempo em que perma­necera em agitado sono, vencida por emo­çoes violentas e complexas. Ao despertar, guardava a sensação do intenso frio que me envolvia, enquanto as células de todos os ór­gãos continuavam a negar-se a atender ao comando do cérebro paralisado. Todo o meu corpo estava aniquilado ao impacto de for­ças desconhecidas.

Abri os olhos e, em verdadeiro pandemô­nio emocional, encontrei-me no salão da nos­sa Casa de Orações, com o corpo deitado no ataúde, visão essa que aumentava o meu so­frimento. A dor no peito ampliava-se, constringin­do-me a garganta sedenta. Desejei desespe­radamente um copo de água fresca, inutil­mente. Enquanto a sede me escaldava os lá­bios, ardiam-me os olhos, doía-me o corpo e o cérebro era devorado por inquietações crescentes. Ante a evidência da desencarnação, procurava orar, sem o conseguir, atormentada pela inconforma­ção. Portadora de alguns conhecimentos da Doutrina dos Espíritos — caminho de luz no mundo de trevas —, recusava-me, contudo, a aceitar a realidade inelutá­vel.

É certo que eu sabia, através de noções doutri­nárias do Espiritismo, que a morte não representa o fim, mas o princípio de uma vida imperecível, e acre­ditava-o de coração. No entanto, meditava, acomo­dando a Superior Vontade aos meus próprios capri­chos: eu não podia morrer ainda. Necessitava da ge­nerosidade do tempo para desincumbir-me das tare­fas a que ultimamente me entregara, no santificante serviço do amor. Recordava o passado próximo, as lutas mal sofridas, revia a taça de ilusões onde tantas vezes me embriagara, e compreendia a inadiável ur­gência de recuperação, no labor das horas novas, li­bertando-me, então, das pesadas algemas.

Em meio a esse conjunto de anseios e interpela­ções, entre evocações de enganos sofridos e receios dos efeitos que chegariam, vi-me, de súbito, diante do grande painel, ligado à minha mente, para o qual fui poderosamente atraida. Pude ver, como numa grande tela cinematográfica, o desenrolar dos fatos que representavam a minha existência, em miraculo­so retrospecto, repetindo-se em vertiginosa celerida­de, sem omissão de qualquer detalhe.

Revi-me na infância, programando os jogos do fu­turo no tabuleiro da inocência. Coisas e acontecimen­tos mortos em minhas lembranças surgiam-me com seus contornos e nitidez impressionantes, gritando-me à memória em brasa os erros e gravames das ati­tudes nem sempre dignas de antes.

E o incrível é que, para cada compromisso com o erro daquele tempo, surgiram-me agora as soluções que antes não me ocorreram, patenteando a Sabe­doria de Nosso Pai ao alcance de nossas mãos, mas nem sempre utilizada. Raciocinando, esquecida por um momento de todas as dores, reencontrava o Evan­gelho Redentor a apontar diretrizes para a alma ju­venil e que eu ouvira nas aulas de Catecismo ou junto ao coração materno. Retornei, por esse processo, às ruas do passado, revivendo as lágrimas e os sorrisos da existência.

Conservava a impressão de que todos os meus atos foram cuidadosamente anotados por criterioso e vigilante amanuense a quem nada escapara, regis­trando inclusive as idéias más que, um dia ou outro, me visitaram a tela mental. A perfeição dos escritos era tal que estes tomavam forma, movimentando-se à minha vista, cobrindo-me de vergonha e horror.

Quanta coisa negativa construíra nos meus dias, sem o perceber. Sabia não ser um anjo em viagem turística na Terra. Todavia, jamais supusera ter sido tão negligente no cumprimento do dever. Algo interi­or desejava protestar contra muitas cenas, agora em revisão. Mas a consciência, liberta das algemas da acomodação, impedia-me de mentir, ampliando ain­da mais as responsabilidades do momento.

Aterrada, cheguei à conclusão de que os pensa­mentos e atos da criatura se fixam no Além, por pro­cessos que me escapavam ao entendimento, perma­necendo vivos, mesmo quando deles nos esquece­mos.

Antes que pudesse alongar-me em meditações proveitosas, na inquietação que me sacudia, retornei à sala onde outra realidade me fazia mais desencan­tada e aflita... Não podia agora contestar a realidade da minha “morte”.

Observei que todos oravam, e, ouvindo alguém chamar-me com veemência, fui arrastada e deparei-me contigo, minha filha. Pude ver que recordavas os dias em que vivemos juntas, porqüanto os teus pen­samentos formavam quadros vivos onde eu me en­contrava também. Desejei abraçar-te, mas, quando me dispunha a isso, erguiam o caixão que me conduzia o corpo. O pavor do momento foi-me superior à capacida­de de calma e confiança. Procurei, no meu desespe­ro, correr para longe daquela cena pungente que me feria e amargurava; todavia, cordões espessos e es­curos ligavam-me aos despojos, arrastando-me com eles...

Reconheci as ruas por onde seguia o féretro, em­bora as notasse escuras e movimentadas, como se pesada sombra se abatesse sobre as casas, e multi­dão desvairada tivesse saído às calçadas. Escutei a voz dos transeuntes que pareciam revoltados, bran­dindo pedaços de madeira, como armas improvisa­das. Alguns me ameaçavam e, vendo-me a expres­são de horror, recuavam gargalhando, como loucos libertos de sanatório nefando.

Chegando ao Cemitério, ouvi gritos e lamenta­ções que me despedaçavam a alma. As vozes, que mais se assemelhavam a emissões animalescas, com­punham musicalidade infernal, indescritível. Massa humana, de grotesca forma, cercava-me o ataúde, comentando, zombeteira, a situação da recém-chega­da:

— Será discípula do Cordeiro ou irá engrossar nos­sas fileiras? — disse alguém com sarcasmo.

— Examinemos-lhe as emanações — retorquiu ou­tro.

— Cuidado com os vigilantes “miseráveis” — ad­vertiu um terceiro.

— Deve ser alguma “pobre ovelha do Rebanho”! —exclamou mais alguém. E com a mesma voz: — Olhem as defesas que a envolvem...

— Não nos impacientemos — gritou o primeiro. —Saibamos esperar e aguardemos os acontecimentos. Deixemos que os “comparsas de fé” lamuriem os ape­los ao Chefe e seus “sequazes”.

Tudo aquilo era um fenômeno novo e horripilan­te. Aconcheguei-me ao caixão, desejando arrebatá­lo e fugir dali com o fardo das minhas carnes. Não me pude demorar na contemplação daque­las cenas terríveis. Força incoercível detinha-me atenta no esquife que era depositado no fundo da sepultu­ra.

Escutei o som da laje a cobrir-me os despojos e o dos instrumentos que eram usados para o lacramen­to da campa. Apavorada, encontrei-me ligada às vís­ceras mortas, estando viva. Gritei desesperadamen­te, em lamentável estado, e caí desmaiada. Até o momento, não sei quanto tempo ali estive, em delírio. Despertei lentamente, conservando a cabeça atordoada, demorando-me a recompor os pensamen­tos que pareciam perdidos em brumas espessas. Doía-me o corpo, sacudido de quando em quando por terríveis arrepios.

A dor agudíssima do coração demorava a esmagar-me de uma vez. Verifiquei que, embora o corpo estivesse morto e começasse a avolumar-se, tomando aspecto horren­do, eu me sentia em um corpo gêmeo àquele que ca­minhava para a putrefação e, em tudo, idêntico a ele, inclusive no vestuário. Mas não dispunha de serenidade para meditar. Vagarosamente rememorei os últimos aconteci­mentos e, quando ao recordá-los, cheguei à certeza de que estava na sepultura, fui acometida de convul­sivo pranto.

3 - A SALVADORA PRESENÇA DE LIEBE

Odores pestilentos e desagradáveis inva­diam-me as narinas, causando-me sucessivas náuseas. Verifiquei que o meu corpo se torna­ra volumoso, começando a decompor-se, en­quanto aluvião de asquerosos vermes se locu­pletavam nas carnes entre as vestes úmidas e imundas. Era toda uma massa informe em apo­drecimento. Emanações insuportáveis asfixi­avam-me sob a laje de cimento que em repetidas tentativas de liberdade desejei erguer, re­dundando a luta em esforço inútil e cansativo.

Ciente da realidade de minha “morte”, cercada de compactas trevas, sabendo-me com o corpo em decomposição no Cemitério eu experimentava avassaladora angústia. Não conseguia demorar-me em conjecturas; não podia raciocinar mais demoradamente; não coordenava idéias; tudo se passava rápido, cruel, fugindo e retornando à retina mental em remoinhos sucessivos. E, acima de tudo, sentia neces­sidade de ar, de luz, de paz...

As lágrimas que me pareciam sair do coração fe­rido e amargurado banhavam-me sem que conseguis­sem lavar-me o lodo que também me empastava a forma nova, em tudo idêntica à que lentamente apo­drecia.

Apalpava-me e constatava a presença da dor fí­sica, embora desligada do corpo. Sentia-me pesada, raciocinando com dificuldade, esmagada na cova se­pulcral.

Num desesperado esforço, tentei fazer um balan­ço, reunindo todos os fatos da minha vida, até onde podia alcançar, procurando esquecer, por momento, a sensação da violenta dor que se demorava na re­gião cardíaca, e recordei, emocionada, a inadiável ne­cessidade de orar. Sim, a prece ser-me-ia a única fór­mula medicamentosa capaz de restituir-me a paz, a serenidade. Recordei-me, então, do Senhor Jesus, o Amigo dos aniquilados e Companheiro constante dos infelizes. A sua figura vitoriosa, além da Cruz, retor­nou à minha mente, trazendo-me revigorante calma. A princípio, vagamente, depois mais nítida, a lembran­ça do Cordeiro de Deus fez-me esquecer a própria aflição, ao compará-la com a Sua dor, no infinito des­conforto da Cruz, por amor a todos os homens — os companheiros ingratos. Pela primeira vez, minha fi­lha, experimentei tranqüilidade junto aos despojos carnais, no fundo da sepultura.

Reconheci-me como sou: ingrata e egoísta, pobre e sem valia. Enquanto Ele não pronunciara uma só queixa à frente dos inenarráveis sofrimentos e humi­lhações, eu me entregava à desesperança e à revolta. Sua lembrança tomou-me o espírito atribulado e a prece, clara e pura, repassada de fervor, saiu-me pe­los lábios, ditada pela fonte do sentimento.

Oh! o consolo que deriva da prece murmurada pelo espírito confiante, após a aflição! Somente po­derão sabê-lo aqueles que na última instância a ela se entregarem, esperançosos, rompendo as distân­cias, lançando a grande ponte entre o mundo propín­quo das dores e o Reino longínquo das misericórdias divinas. Ainda não havia terminado a rogativa, quando me chegou aos ouvidos, como em formoso sonho, doce e meiga voz que banhou de harmoniosa musicalidade o estranho recinto.

— Onde escutara antes aquela agradável entona­ção vocal? — interrogava-me. E, depois de breve re­memoração, identificava nos recônditos da alma a mensageira visitante. Era a irmã Liebe, não havia dú­vida. Era aquele anjo que tantas vezes, no Culto de nossas orações no Lar, nos convidara a seguir o Mes­tre, concitando-nos a amá-lo acima de todas as coi­sas terrenas. A mesma meiguice de outrora, o mes­mo carinho, o mesmo amor, numa mensagem do Céu ao abismo da minha indigência e agonia.

— Sou a tua irmã Liebe que vem das claridades da “morte” para o teu coração envolto nas trevas que circundam as cinzas da “vida”. “Trago-te o refrigério e a esperança em nome de Quem é toda a Misericórdia e Consolação. Antes de mais nada, silencia as indagações inoportunas e os anseios desordenados, e entrega-te aos sábios de­sígnios que escapam, momentaneamente, ao teu en­tendimento. “A Lei, acima de nossa compreensão faz-se res­peitar, seguindo a rota de sua direção. Confia, somen­te.”

Escutava-a, deslumbrada, sem, entretanto, ver-lhe o vulto querido. Desejando aproveitar ao máximo a felicidade do instante, não pude sopitar as indaga­ções que me fervilhavam no cérebro incendido:

— Que fazer, irmã querida, em tão trágicas circuns­tâncias? Como libertar-me daqui?...

— Tenho estado contigo desde o instante em que começaram as tuas aflições — respondeu bondosa. —Todavia, prendias-te mais à lamentação improdutiva que à fé, malbaratando o tesouro precioso da oportu­nidade de confiar e esperar. Quando, porém, resol­veste buscar a Fonte Viva, pela oração eficiente, rom­peste as algemas que retinham tua mente no oceano físico e emergiste da penosa faixa de vibrações.

“Lembra-te, entretanto, de que a caminhada será muito longa. E aconselhável não esqueceres a reco­mendação do Mestre, consoante as anotações de Marcos, a respeito da prece. Sabes que através da oração a alma, aspirante ao Céu, se veste de consola­dora paz e tem forças para a ascensão.

“Enquanto jornadeamos no mundo, perdemo-nos, invariavelmente, entre recitativos oracionais e amon­toado de inexpressivas fórmulas, pondo ao longe o sentimento devocional e o exame de consciência no culto da prece. Livres, entretanto, da carne, verifica­mos que a prece propicia o alargamento dos horizon­tes espirituais, favorecendo o intercâmbio que facul­ta o banho no infinito mar das formosas concessões.

“Ao orares, não arroles queixas nem lamúrias; não relaciones apontamentos apressados; não apresentes necessidades... O Senhor, que a todos nos conhece, sabe das necessidades que nos assinalam a existência e supri-las-á, naturalmente. Abre-Lhe o coração com amor e fala ungida de piedade e esperança. Colocando a alma em cada fra­se, recorda e repete a oração dominical (1) que o pró­prio Senhor nos ofereceu, como legado de amor, e con­fia na caridosa assistência que não tardará.”

Silenciando-se a voz carinhosa, procurei retem­perar o ânimo e, como se voltasse à casa materna, revi-me pequenina e pobre, vestida nos panos da sim­plicidade, junto ao colo protetor de mamãe, mãos unidas, em noite de frio, repetindo com ela o “PAI NOSSO”. Com a imagem fixa na mente, com toda a unção e o recolhimento, tentei naquela hora singular repetir as comoventes e claras expressões.

As palavras vestidas de emoção umedeciam meus olhos. As lágrimas então já não tinham o mes­mo sabor de agonia e revolta. Conquanto as dores não tivessem cessado de vez, a serenidade demorou em minha alma. Permaneci, olhos fechados, ajoelhada como nos tempos passados, orando demoradamente, esque­cida do cubículo infecto onde me encontrava. Ao descerrar as pálpebras, deparou-se-me sua­ve claridade a espraiar-se nas paredes e, sorrindo, surgiu o delicado e compassivo rosto de irmã Liebe, aureolado de fios dourados. Lentamente se foi deli­neando e, em breve, surgia-me deslumbrante e bela.

Do tórax estendiam-se raios de luz que me penetra­vam, banhando-me inteira. Vitalidade antes não ex­perimentada visitou-me, exuberante, reanimando-me fortemente.

Fitando-me com benevolente expressão, falou-me, confiante:

— Não temas. Vem! Saiamos daqui.

4 - AINDA NO CEMITÉRIO

Amparada pela alva mão de irmã Lie­be, tive a impressão de que a laje de cimen­to que tanto desejara erguer em busca dE liberdade, do ar e da luz, apresentava pos­sibilidade de ser transposta. Sem que o per­cebesse quase, atravessamos o obstáculo que tanto me afligira antes, e, em breve, as­pirei a longos haustos o ar da Casa dos Mor­tos, misturado a complexo aroma de flores desabrochantes e em decomposição.

A noite calma e o céu coruscante ofere­ciam acolhedora esperança ao meu espíri­to aflito. As estrelas mais se pareciam a jói­as engastadas em veludoso manto, acenan­do de longe, com suas luzes, as mensagens silenciosas da paz. A luz principiava a sua travessia pelo Infinito e para isso se cobrira de tênues véus de nuvens alvacentas, qual noiva jubilosa no momento da boda. E, certamente, era ela a noiva da Alva em cami­nho das suas núpcias com a luz.

Meus ouvidos espirituais escutaram o bater len­to das horas: meia-noite! Vento frio soprava dobran­do os ciprestes escuros banhados da claridade lu­nar.

Os vultos solitários dos anjos de pedra, sobre os jazigos, confundiam-se com as coroas de metal que tentavam imortalizar as expressões floridas da natu­reza e tomavam aspectos variados no claro-escuro do ambiente. Ainda me encontrava embevecida pela visão da noite argêntea, quando a irmã Liebe me convocou para a recordação do Evangelho, no que diz respei­to ao zelo pela prece e à vigilância para evitar mer­gulhos na tentação.

Busquei a meditação, tentando reequilibrar-me interiormente e, como se a vista me alargasse a per­cepção, notei que multidões pervagavam entre os túmulos, formando grupos vários que se confundi­am em confabulações...

Alguns, de ar escarninho, passavam gargalhan­do e satirizantes, proferindo expressões vulgares, zombeteiras e coléricas. Guardando carantonhas ri­dículas e disformes, surgiam de súbito, em esga­res infelizes, perdendo-se, logo após, no escuro dos jazigos. Outros conservavam-se ajoelhados, em ati­tude de oração, consoante suas confissões religio­sas, banhados de pranto, em imprecações deses­peradas. A medida que minha visão se tornava mais profunda, conseguia registrar as cenas em derredor, multiplicando-se as ocorrências. Notei que o núme­ro de visitantes aumentava consideravelmente.

— Observa o mausoléu ao lado — falou-me a irmã Liebe, sem afetação.

Olhei na direção indicada e defrontei-me com uma anciã, de venerandos cabelos brancos, ajoe­lhada junto a uma cruz, retorcida pelo tempo, oran­do com emoção e enternecimento. Dos seus lábios, coroando o murmúrio de prece, colorações de luz, em cambiantes multicores, caíam sobre a pedra tu­mular. Apesar de singelamente vestida, deixava perceber, à primeira vista, a nobre hierarquia espi­ritual a que pertencia. Tocada pela beleza da anciã, fui naturalmente impelida a indagar quanto à procedência de tão nobre matrona. Antes, porém, que eu enunciasse a questão, a amiga espiritual esclareceu:

— Trata-se de devotada mãe, em serviço de as­sistência à filha desencarnada há mais de cinco anos e que ainda se encontra presa às reminiscên­cias físicas. Ligada fortemente aos Espíritos infeli­zes, aos quais negara oportunidade de reencarna­ção, quando no plano carnal, sofre-lhes agora as funestas conseqüências.

Saída das zonas de recuperação espiritual —continuou a irmã Liebe —, ao nascer, trazia consigo o compromisso de receber nos braços, pela mater­nidade torturada, quatro adversários de outrora, com os quais deveria refazer os liames do amor pela sublimação nos testemunhos dolorosos.

“Filha da classe média, contraíra núpcias com antigo companheiro, cujos recursos valiosos se constituíam dos tesouros morais, pois que, na es­fera dos negócios era, apenas, servidor do comér­cio, sem muitas possibilidades. “Educada nos padrões imediatistas do plane­ta, apesar dos esforços e exemplos maternos, pre­ferira, logo depois do matrimônio, o jogo enganoso das ilusões, em detrimento das responsabilidades sagradas do Lar. “Alegando dificuldades de ordem financeira, não permitiu que a família crescesse além de um rebento que lhe constituía felicidade vaidosa, fe­chando as portas da oportunidade aos demais necessitados. Reiteradas vezes, solicitada à aquies­cência procriativa, negava-se, embora as admoes­tações da mãezinha, a esse tempo, ainda reencar­nada. Conselhos, advertências e apelos não lhe modificavam a atitude íntima. Todavia, descuidan­do da vigilância, por duas vezes se sentiu visitada pela presença do feto que impiedosamente expul­sou, revoltada, com o auxílio de drogas que igual­mente a minaram, dia a dia, através de enfermida­de desconhecida e pertinaz, com sede no útero. “A desvelada genitora, ao seu lado, desdobrou esforços e canseiras, assistindo-a com o carinho ne­cessário e a oração silenciosa, oferecendo-lhe ener­gias reparadoras à organização combalida. “Logo que se sentiu aparentemente recupera­da, a infanticida retornou ao lugar comum, longe do equilíbrio nobilitante e salvador. “Nesse ínterim, a mãezinha debilitada pelas noi­tes insones e longas, atravessadas nas laboriosas tarefas dos inadiáveis deveres, desencarnou entre preocupações e lágrimas. “Não passaram doze meses, depois do nefan­do crime do aborto — continuou a gentil mensageira, dando nova inflexão à voz, emocionada —, e a jovem sentiu-se novamente visitada pela bênção da oportunidade maternal. Todavia, assim que perce­beu a presença da vida, brotando dentro do ventre, deixou-se arrastar por ódio violento, tentando, por todos os meios, libertar-se do intruso, não soli­citado. “Sua mamãe, então desencarnada, portadora de bela folha de serviços, interferiu junto de Ami­gos Espirituais, conseguindo a dita de falar-lhe em sonho, sobre as responsabilidades sagradas da mulher, concitando-a à aceitação do dever, em cujo resgate estava empenhada a própria vida. Admo­estada pela abnegação maternal, comprometeu-se a conduzir os passos noutra diretriz, sem o confir­mar, entretanto. Ao despertar, embora guardando as impressões registradas no subconsciente, recon­duziu a mente às idéias habituais, procurando, des­vairada, o concurso de infeliz mulher, dedicada ao crime do infanticídio. “Executado o ato macabro, retornou ao lar, re­integrando-se no mundo calamitoso das aparênci­as. “Sentindo-se falido na tentativa, pela terceira vez, o Espírito, despejado violentamente, voltou a aderir psiquicamente nas paredes uterinas, provo­cando hemorragias violentas que não puderam ser sustadas, nem mesmo com imediata intervenção cirúrgica. “Vinculada poderosamente aos laços carnais, demora-se, até hoje, vampirizada pelo vingador im­placável, e perseguida por outros sicários dos quais procurou fugir, cerceando-lhes o acesso aos planos dos reajustes na carne.

— E quando se libertará? — perguntei, inquieta.

— Só Deus o sabe! — respondeu, penalizada.

— Precisamos recordar — acrescentou a presti­mosa enfermeira — que a pobrezinha dispôs de oito anos, abençoada pelas ensanchas do matrimônio e atendida seguramente pelo acolhimento socorrista e esclarecedor da genitora. Agora é com o tem­po...

Antes que a irmã-amiga encerrasse o assunto, indaguei, recordando de mim mesma:

— E a oração da mãezinha devotada oferecer-lhe-á algum efeito benéfico, uma vez que só o tem­po poderá libertá-la do desespero a que se atirou?

— Evidentemente — elucidou, bondosa. — A pre­ce, em todas as situações da existência, é um refri­gério e um bálsamo. Ela não sentirá o concurso ora­cional livrando-a do sofrimento, o que representa­ria ludíbrio à Lei. No entanto, experimentará trégua íntima, recordando os deveres traidos, o Lar des­troçado por sua culpa e, através de meditações e lágrimas, preparar-se-á lentamente para o futuro. Agasalhará no íntimo a esperança e lutará contra o ódio que a consome nas garras da desesperação. Profundamente impressionada, ensaiei íntima oração intercessória, esquecendo-me de mim mes­ma, como me acostumara a fazer nos dias passa­dos, no reduto das nossas comunhões mediúnicas com o Além-Túmulo. Pude verificar, em meu próprio ser, o quanto é a prece manancial de bênçãos, ao alcance das nossas mãos, o que nem sempre sabe­mos utilizar devidamente. Despertando-me das cogitações, a irmã Liebe convidou-me a sair do Cemitério, enlaçando-me com ternura carinhosa.

5 - À BEIRA MAR

Em breves palavras, a irmã Liebe falou-me da necessidade de contato mais amplo com os fluídos da Natureza, a fim de favore­cer a minha reabilitação. E como me encon­trasse depauperada, o meu transporte até à praia próxima seria feito sob ação de sono magnético.

Tocando-me as têmporas, levemente, tive a sensação agradável de sono invencível que me dominou. Despertei à beira-mar, num encantador recanto do litoral, bordado de coqueiros pra­teados pela luz da lua cheia. As ondas próxi­mas despedaçavam-se em brancas espumas que se desfaziam nas areias alvas e brilhan­tes, em ritmo bravo, incessante... Não se ouviam outras vozes senão o can­to do vento e o bramir do mar.

Relva baixa e verdejante margeava a praia como tapete macio convidando ao repouso e o cenário era, na sua beleza virgem, imperioso chama­mento à oração e à paz. Aspirei o ar puro da noite, tomada de emoção crescente. O odor agradável e balsâmico de flores do campo misturava-se ao agradável cheiro de algas ma­rinhas. Absorvia essas dádivas sublimes da Nature­za, que me beneficiavam a organização espiritual com­balida, de maneira salutar. A irmã Liebe, regozijante com a poesia da noite, chamou-me a atenção para as belezas do ambiente vibrante de vida e festa.

Encontrávamo-nos a poucas dezenas de metros das areias praieiras, em outeiro bordado de vegeta­ção luxuriante, junto a antiga construção de pedra que pertencera, no passado, a Senhores que haviam co­lonizado a região. Entre as velhas colunas e arcadas quebradas, a Lua desenhava caprichosas figuras, e, pelas frinchas da construção arrebentada, a noite murmurava quei­xas e saudades, na voz do vento. Apontando o casario abandonado, a zelosa ami­ga espiritual falou, dando origem a conversação edi­ficante:

— Eis ali um exemplo eloqüente da vacuidade da vida física. O esplendor sucedido pela decadência e glória seguidas pela ruína e pelo olvido. “Outrora, aqueles salões, hoje reduzidos a es­combros, vestiam-se de gala e luz, enquanto a sen­zala esquecida jazia na treva e na dor. “Com o passar do tempo, desapareceram os jú­bilos e os senhores, os cativos e as dores. Tudo foi reduzido a um monte de ruínas, coberto de vegetais vitoriosos. “Da construção e de seus donos, ficaram vivos os contos da tradição oral e os muros arrebentados...”

E após breve pausa:

— Também na vida física o fenômeno que comen­tamos é o mesmo para todos: berço e túmulo, como portas da existência; infância e velhice, como esta­ções de chegada e saída, e juventude e maturidade, como lugar de aprendizado, no campo emocional. Iní­cio e encerramento da viagem, meios e oportunida­des de utilização do ensejo, no jogo ilusório do corpo. Raros, entretanto, se dispõem verdadeiramente ao aproveitamento devido. Alguns seguem vitoriosos por fora, e escravos por dentro. São os que acreditam no poder temporário. Outros abandonam a luta dignifi­cante, matando o exterior, e despertam no silêncio aflitivo da inutilidade de que se fizeram mestres. So­mente poucos realizam o aproveitamento real, com a utilização dos bens terrenos, no programa de cons­trução da felicidade além do mundo.

E desejando, talvez, ampliar a oportuna disser­tação, prosseguiu, com voz pausada e clara:

—Enquanto não compreendermos a necessidade de valorizar a vida no plano físico, continuaremos in­vadidos pelo infortúnio a bater-nos desapiedado, com os chicotes resultantes das ações impensadas. A vida na carne é patrimônio que não merecemos. Significa concessão misericordiosa para renovação, aprendiza­do e libertação. Toda a luta deve ser dirigida para a realização dos objetivos essenciais do programa que nos conduz ao renascimento. “A alma mergulha na carne, cheia de boas inten­ções e desejosa da recuperação do tempo. Todavia, a boa intenção e o desejo, apenas, não respondem po­sitivamente pela felicidade. É imprescindível ação re­alizadora no campo do bem geral. Mas, o que acon­tece comumente é que o contato com o corpo, ocasi­onando a anestesia da memória, faz que o roteiro tra­çado com o concurso das lágrimas e do arrependi­mento fique a margem, voltando a criatura aos hábi­tos milenários onde pontificam o prazer, a cobiça e o crime. A perigosa e atraente rede da ilusão arrasta diariamente multidões descuidadas, que malogram desastradamente, adiando, por tempo indefinido, a ascensão aos planos mais altos...

Não me pude furtar a profunda meditação. Com­preendia, tardiamente, é certo, o manancial de luzes que o Espiritismo nos confere, e que eu não soubera aproveitar devidamente. Em pensamento, retomei àmesa simples das nossas sessões de mediunidade, em cujas tábuas tantas vezes colocara as mãos em busca do concurso da Espiritualidade. Recordei ad­vertências e ensinamentos, conselhos e roteiros ou­vidos, nos quais o convite ao trabalho e à oração, o apelo à vigilância e ao auxílio eram notas frisantes, e não pude conter as lágrimas que, sucessivas, me banharam o rosto.

Pela memória, acompanhei o desfilar de tantos Benfeitores Anônimos, generosos e com­passivos, que tantas vezes, enternecidamente, me dis­tinguiram o espírito, com expressões de bondade e zelo, verificando, aterrada, quanto fora negligente e descuidada no Campo do Senhor. O desânimo ia-me assenhoreando, quando a vigilante Benfeitora, inter­rompendo-me o curso das reflexões atalhou:

— Otília, minha irmã, recorda que Jesus não dese­ja a morte do pecador, mas a do pecado. Desanimar agora seria o mesmo que retroceder. O discípulo do Evangelho não dispõe de tempo mental para o receio ou para a dúvida. Não te lamentes! “Cristo, em nosso caminho, é uma permanente oportunidade nova. Se achas que não aproveitaste de­vidamente o ontem, lembra-te de que o amanhã per­tence à tua alma. “Robustece o espírito na fé e reanima-te, pois que muito terás a fazer. “Alegra-te no Senhor, que nunca nos abandona, e, sem perda de tempo, põe mãos à obra. Jesus es­pera muito de nós. Nossos irmãos choram em diver­sos planos do orbe e suas vizinhanças, aguardando socorro em nome do Céu. Não dispomos de tempo para a despesa da inutilidade. O passado pode cons­tituir-se de sombras; todavia, o amanhã é sempre uma luz nova, dissipando todas as trevas. Ergue-te e não temas!”

Com admoestações tão oportunas, alento novo invadiu-me confortadoramente. Modificando a inflexão da voz, após a pausa que se fizera, espontânea, Liebe, apontando as ondas in­quietas, prosseguiu:

— O mar é fonte de energia e vitalidade. Por en­quanto, o homem não tem sabido valorizar, devidamente, os benefícios magnéticos do Oceano. Labora­tório de forças vitais, depositário de gloriosas e ve­lhas civilizações, santuário de milhões de espécies vivas, é um mundo inexplorado, a conquistar. “Com Alberto, príncipe de Mônaco, começaram as primeiras excursões de pesquisa científica, medin­do-lhe a profundidade, conhecendo-lhe os acidentes, examinando-lhe a flora e a fauna. A Oceanografia moderna, entretanto, com os recursos técnicos de que dispõe, candidata-se a descobertas valiosas no seio grandioso das águas. Embora quanto já se conhece sobre a vida submarina, muito há escapado à obser­vação dos pesquisadores no que concerne aos fluxos e refluxos das marés com o seu potencial de energia pura que tantos benefícios produzem na organização físio-psíquica do animal e do homem.”

E como se perscrutasse a região, utilizando re­cursos que me eram desconhecidos, concluiu:

— Multidões de desencarnados nas cidades pró­ximas são aqui trazidos para necessário e inadiável refazimento. Outrossim, encontros espirituais de or­dem superior, entre os habitantes das duas esferas da vida, aqui se concertam, quando as dádivas do sono descem sobre os corpos cansados na luta hu­mana. Cuidadosos Benfeitores da nossa esfera con­duzem tutelados alquebrados e desfalecidos, para regiões semelhantes a esta, em toda a costa mari­nha, a fim de que o ar puro das praias restitua ao pe­rispírito as funções temporariamente traumatizadas pelo ranse desencarnatório.

Encontrava-me encantada. Quando encarnada sempre sentira inexplicável atração pelo mar, moti­vada talvez, supunha, pelas histórias ouvidas desde a infância, sobre os mistérios e belezas ocultas na pro­fundeza das águas. Agora, todavia, após os aponta­mentos da devotada irmã, começava a compreender os valores reais, descobrindo belezas, antes ignora-das. Muito longe, por detrás dos coqueiros, a madru­gada desenhava rastros de luz. Vento mais frio so­prava ligeiro, açoitando as ondas que se quebravam ao longe.

Acarinhando-me, a Benfeitora convidou-me ao re­pouso. Havia catorze dias, segundo informava a irmã Liebe, ocorrera a minha desencarnação. Embora todo o encantamento da paisagem e da palavra da esclarecida enfermeira, a sensação de dor persistia, se bem que menos acentuada. Após aquele repouso, seria transportada a uma Colônia Assistencial, próxima à crosta planetária, para tratamento e recuperação de energias, ingressando, assim, na realidade do mundo espiritual, onde estava dando os primeiros passos, com vacilação. Reclinadas em tufo de capim, recebíamos a brisa agradável da alva. Suave torpor envolveu-me, lenta­mente, fazendo-me adormecer.

6 - FRATERNIDADE – BÊNÇÃO DE DEUS

Quando o dia estava alto e a passarada inquieta entoava hinos ao Sol, despertei. Em­bora mais refeita, guardava sensação dorida na região do peito, a respiração difícil e a per­turbadora saudade. Com a paisagem vestida de luz, as lembranças se me acendiam na alma, comprimindo-me o coração. As dores aumentavam, e por mais buscasse esquecer, não conseguia libertar-me da sensação de dis­tância, debatendo-me mentalmente no desa­lento.

Compreendendo minha inquietação, a in­cansável irmã Liebe procurou tranqüilizar-me:

— Dentro de alguns minutos estaremos com os companheiros do círculo fraterno. É necessário não esqueceres que os problemas afetivos produzem desequilíbrios psíquicos que prejudicam a estabilidade da alma. No momento, tens de reunir os melhores esforços no sentido de lograr êxito no processo de liberta­ção.

“Estaremos com os amigos; no entanto, não lhes escutarás a voz, como antes. Sentir-lhes-ás os pensa­mentos e as orações, porqüanto, dentro de uma hora estarão reunidos no Culto da Boa Nova. Como te de­ves recordar, congregam-se hoje sob a responsabili­dade da nossa Auta de Souza, para debate e estudo do programa assistencial aos seus cuidados. Estamos no primeiro domingo do Ano Novo...

Ah! minha filha. A mente tem estranho poder. Ao enunciar Liebe o nome da nossa Auta de Souza, re­tornei como por milagre às nossas reuniões domini­cais. A aflição que parecia seguir-me de perto, aguar­dando oportunidade, voltou a perturbar-me, fazendo-me arder o cérebro, ansioso por notícias novas.

Mesmo assim, procurei haurir forças no robuste­cimento da alma, quando a irmã Liebe sugeriu:

— Reunirei algumas flores deste verdejante outei­ro e as levaremos aos nossos irmãos, como símbolo da pureza dos nossos sentimentos.

Acercou-se de plantas desprezadas e recolheu al­gumas de pequeninos botões perfumados.

Conduzida ao sono magnético, para o transporte até o Centro das nossas Orações coletivas, quando voltei a abrir os olhos, notei, surpresa, a presença de jovem Espírito que se aproximou sorrindo, qual ami­ga devotada e constante. Tentei recordar-lhe o vulto; antes, porém, de o conseguir, ouvi-a dizer:

— Sou Auta de Souza, a pobre cigarra potiguar. Decepcionada? — inquiriu com meiguice e bom humor.

Não pude responder. A voz ficou estrangulada e o pranto incessante — esse amigo dos que amam e sofrem — jorrou abundante. Senti-lhe a vibração de amor e ternura e, quando fui estreitada nos seus bra­ços, tive a impressão de retornar ao seio materno. A emoção sacudia-me e tremor incontrolável domina­va-me.

— Coragem, irmã querida — advertiu, bondosa, a cantora da Caridade.

Sua visita é aguardada com muita alegria. Te­nho acompanhado o seu renascimento e estou infor­mada das suas surpresas e dos progressos no novo caminho.

“Dentro de alguns minutos a reunião terá início. Estão se preparando para a oração de abertura. Eles nos sentem a presença e, por intuição, registram, pe­los canais mediúnicos, o seu progresso na senda da liberdade.”

Feito silêncio, notei que prateada chuva caía abundante, iluminando o recinto. Identifiquei, de ime­diato, o Cenáculo do nosso Templo. Revi os queridos irmãos de antes, olhos baixos, atitude respeitosa, bus­cando o concurso do Alto. Auta de Souza, ao lado do médium Marcos, inspirava-o fortemente.

A irmã Liebe murmurou:

— Estão orando; ajudemos. Unamo-nos num só pensamento ao Senhor Jesus, o Excelso Benfeitor.

Emoções desconhecidas e vibrações nunca an­tes experimentadas visitavam-me a alma, banhando-a de paz. Suave melodia, entoada por vozes infantis, enchia o ar de harmoniosa vibração musical. Deixar­me-ia arrastar demoradamente nessa chuva de bên­çãos, não fosse a interferência da irmã Liebe:

— Aproveitemos o momento. Os companheiros en­carnados sabem-na presente.

Tive, então, nítida visão da sala. Nuvens claras pa­reciam flutuar no recinto. Revi-te, então, filha minha, adornada de dor. Vis­lumbrei o companheiro de largos anos, em crescente emoção, e os irmãos de Crença Espírita, ao teu lado, sustentando-te na saudade. Ante o meu júbilo infini­to, porque filho da felicidade de comprovar a vida es­tuante além da morte, Auta de Souza informou-me, solícita, consolidando minhas esperanças:

— Fraternidade, bênção de Deus! Enquanto os ho­mens marcham em busca do amor puro, ensinado pelo Mestre dos mestres, a fraternidade que os reúne en­sina-lhes as edificantes lições do socorro e do bem.

“Fé, minha querida amiga — continuou —, significa conquista espiritual. Fé espírita, representa conquis­ta da alma nos domínios da evolução. A fé haurida no Espiritismo impõe a necessidade do conhecimento de si mesmo e oferece os instrumentos para que o ho­mem realize o autodiscernimento, o autocontrole, o autoconhecimento, para, seguro, avançar resoluto pela senda evolutiva. Por isso, a fé espírita é consola­dora. “Recordemos que o primeiro nome do Espiritis­mo veio de Jesus Cristo: O Consolador. E a doutrina de Jesus, em Espírito e Verdade. “Em razão disso mesmo, onde haja um Núcleo Es­pírita, haverá o bálsamo, o consolo. Sendo consola­ção é tudo: caridade, esclarecimento, força, diretriz, porque o consolo nasce não somente do pão, mas so­bretudo do esclarecimento. “Na multidão dos que sofrem indagando, o espí­rita é o único felicitado pela serenidade. Sua indaga­ção é feita sem dor íntima, porque ele já tem a felici­dade íntima. Indaga com alegria, porque sabe que ninguém foi criado para a tristeza.”

Estava deslumbrada. Senti que, embora desen­carnada, não estava esquecida. Notando os rostos to­mados de confiança, encontrei neles, igualmente, as marcas indeléveis da saudade e da dor, amparadas pelas dádivas consoladoras da esperança vivida na fé.

Não despertara das alegrias e irmã Liebe, presti­mosa e atenta, sugeriu-me colocasse sobre a mesa a nossa oferenda de flores silvestres. Amparada pelas duas benfeitoras, aproximei-me, vacilante, do móvel, onde tantas mãos repousavam no momento da comunhão com o Senhor, quando o nosso querido Marcos, colhido de surpresa, deparou comigo.

Nossos olhares se cruzaram, rápidos, porém significativos. Oh! minha filha; não poderei descrever-te o intenso prazer daquela hora. Aquele momento inesquecível marcou-me a jornada pelo reino novo da vida imperecível. Senti a emoção do médium, experimentando igualmente o mesmo estado. Depositei o improvisa­do “bouquet” sobre a toalha humilde, e, quando me voltei, ouvi da mãezinha espiritual do nosso movimen­to socorrista:

— A alegria é tônico da alma. Agradeçamos ao Celeste Doador este momento, comprometendo-nos a servi-lo sem cansaço.

Amparada ainda, fui conduzida a uma cadeira, da qual acompanharia a breve reunião.

7 - NO CENÁCULO

Lentamente a visão ia-se dilatando, per­mitindo-me distinguir, através da tênue corti­na prateada, os semblantes queridos dos en­tes inesquecíveis. Colorações suaves envolvi­am todos, vestindo nosso recinto de orações com as tintas miraculosas das grandes paisa­gens, somente possíveis na “Mansão do Rei­no”.

Deixava-me conduzir pelas delícias do mo­mento. Até então, jamais supusera lobrigar encantamento igual. Ao cérebro tumultuado por tantos acontecimentos chegavam-me, oportunos, os ensinamentos da Doutrina Con­soladora que na Terra fora um roteiro para a minha vida, nos últimos anos. Afigurava-se-me a verdadeira e única trilha para a felicidade, porqüanto só essa Mensagem sublime expli­ca ao viandante sem rumo a via certa da imor­talidade.

Quão poucas vezes me detivera a meditar na ex­celência da Crença desposada! Iniciada no Romanis­mo, habituara-me a enxergar na religião somente um campo para solicitações de toda ordem, à base de promessas materiais, perdendo-me, invariavelmente, nos meandros da revolta e da inquietação. Sem. o co­nhecimento da vida espiritual, pouco afeita embora àconfissão auricular, vivia ignorante dos problemas da alma. Com as primeiras luzes projetadas em meu cé­rebro pelo Espiritismo, esse farol abençoado, um mundo novo me apareceu, convidativo e maravilho­so, e que agora “de visu” podia constatar.

No entanto, enquanto encarnada, não supunha fosse o mundo do espírito algo tão concreto — embo­ra muito diverso do que, por concreto, nominamos na Terra —, qual aquele que me surgia a cada instante. Não tendo logrado a felicidade de realizar cultura in­telectual, não fosse a abnegação da irmã Liebe e de outros Instrutores, eu não poderia sequer escrever-te estas páginas; vivendo mais do trabalho, não pude penetrar devidamente nas lições preciosas de André Luiz, quando o lera, encarnada.

Todavia, amparada pelo imenso desejo de acer­tar o passo com o Bem, guardei na mente, indagado­ra e ansiosa, anotações e fatos narrados por aquele trabalhador incansável, e que agora eram de grande e salutar utilidade.

Enquanto a meditação me visitava, alargando-me os horizontes da alma, a reunião dos companheiros, sob as bênçãos do Senhor e o carinho de Auta de Sou­za, ia-se alongando em marcha para o término.

A irmã Liebe, que me acompanhava o pensamen­to com bondoso sorriso, murmurou:

— Escutemos a mensagem da generosa Mentora. Observei que a Benfeitora mergulhava em pro­funda meditação. Luminosidade esverdeado-violácea envolvia-lhe o tórax e a cabeça, banhando de clarida­de o médium Marcos, em concentração.

Decorridos breves minutos, como se obedeces­se a uma força de atração santificante, o espírito do médium pareceu afastar-se um pouco do corpo que, imediatamente, passava a ser atendido pela Instru­tora desencarnada.

Não pude compreender o mecanismo delicado da incorporação mediúnica, apesar da palavra de auxí­lio da irmã Liebe que me veio em socorro.

Nesse momento, a comunicante contribuía com as instruções do dia, traçando o abençoado roteiro de trabalho e auxílio, em favor dos menos favoreci­dos pela fortuna.

Entre os formosos conceitos enunciados pela En­tidade, falaram-me ao sentimento as expressões de oportuna advertência:

— Em nosso labor socorrista não permitamos que o convencionalismo, esse cruel carrasco da fé, pene­tre nos arraiais das realizações a que nos propomos. Ele sufoca o ideal e mata a iniciativa. Pela sua trilha seguem os excessos do preconceito da Terra. Contra esses excessos devemos brandir nossas armas, con­servando a simplicidade no trato e espontaneidade na ação. Recordemos a simplicidade de Jesus e a Sua grandeza. Tenhamos em mente a grandeza do que o Cristo não fez, e não apenas, daquilo que fez. Apesar dos recursos de que dispunha, viveu, no entanto, na condição de humílimo servidor.

“Recordemos, assim, o que estamos fazendo e o que estamos deixando de fazer. Recusemos o mal onde quer que se encontre, reduzindo-lhe a expres­são numérica e a expansão territorial nos corações!”

Chegado o momento da oração final, enquanto a comunicante se dirigia ao Celeste Benfeitor, pétalas delicadas, coloridas de rósea luz, caíam perfumadas no recinto, impregnando a todos com o magnetismo da paz e do consolo.

Estava concluída a reunião. Todos se ergueram. Nós outros, desencarnados, demoramo-nos, entretan­to, nas efusões do reencontro e da alegria, tecendo a coroa de júbilos. As grandes emoções que me sacudiram a alma deixaram-me, de certo modo, sinais dolorosos, por não me encontrar totalmente liberta das impressões físicas. A irmã Liebe, muito atenta, explicou-me, delica­da:

— Não podemos esquecer que regressaste há pou­co da esfera carnal, estando necessitada de repouso e medicação específica para o devido refazimento, bem como de adaptação à vida nova.

E com gentil sorriso, onde espelhava sua bonda­de, acentuou:

— Todos os que atravessamos o oceano físico sa­bemos quão difíceis são os primeiros tempos após o túmulo. A indumentária carnal que nos vestiu, por lon­gos anos, permanece a envolver-nos, retendo-nos no labirinto cruel das lembranças e das sensações habi­tuais.

E como se recordasse o seu próprio caso, após alguns momentos, prosseguiu, em tom grave:

— A reencarnação quase sempre é um mergulho nas águas escuras e perigosas do mar do esqueci­mento. A grande maioria das almas torna à carne como criminosos em exílio, para, no olvido, reconsi­derar atitudes mesquinhas e infelizes, retificando pen­samentos e aprendendo o respeito à vida, no contato com a dor. Ao chegarem à Pátria querida, receben­do-lhe a mensagem clara, nos dias de retorno, angus­tiam-se e sofrem, à semelhança de pássaro cativo por longos anos que, tendo perdido o hábito de voar, pre­fere a gaiola estreita à amplidão dos espaços que o chama.

“Outros Espíritos retornam à vida planetária se­dentos de liberdade e conquista e embaraçam-se nas dificuldades da recuperação, demorando-se, após a rutura dos laços, entre aflições e agonias, por longos anos a fio. “Somente aqueles que foram agraciados pelo crescimento no Bem, em labores incessantes, crucia­dos e perseguidos, tendo experimentado nalma as farpas cruéis dos testemunhos por amor à Verdade, podem, à semelhança das rosas, vencer os espinhos que a precedem, perfumando posteriormente o ar, onde flutuam. “Todavia, o Administrador Compassivo da Terra, sublime e generoso, ao distender-nos o Seu amor, con­fere-nos, em toda parte, a bênção dos recomeços, aju­dando-nos, incansável, no programa de libertação in­terior. “Busquemos-Lhe, assim, a valiosa contribuição e, no momento, utilizando-nos das vibrações do ambi­ente, conduzamos a recém-chegada à nova esfera de trabalho, onde o dever nos aguarda.”

Silenciando, deixava-me a sábia Enfermeira pre­ciosa advertência que não proferira e que, no entan­to, era mais expressiva, pela sua significação. A vida, minha filha, não é apenas uma sucessão de dor e alegria, lágrima e sorriso, rogo e agradeci­mento, em continuidade. É um patrimônio valioso ao nosso alcance, para utilização consciente em favor de nós mesmos. Abraçando-me com desvelo, Auta de Souza e Li­ebe, cortaram-me o curso de meditação e, sem mais delongas, informaram:

— Preparemo-nos. É hora de partir.


8 - HOSPITALIZADA

Minha filha, é inadiável e urgente o trabalho de espiri­tualização. Essa valiosa tarefa deve começar o quanto antes, consoante o ensinamento do Senhor: “enquanto estamos no caminho”, en­tre os homens.

As falsas concepções prendem-nos a so­frimentos que se prolongam indefinidamente, depois que o espírito abandona o fardo car­nal. É imperioso o trabalho de esclarecimento de almas, vencendo os apegos perigosos que dificultam a marcha ascensional e ensinando a todos os homens que o fenômeno da morte é o mesmo fenômeno da vida. Disso decorre o conceito de que cada um leva a vida que leva.

O caráter da evolução espiritual faz-se po­sitivo na razão direta em que o homem se de­sapega das coisas materiais, ensaiando os pri­meiros passos na senda da liberdade. Os pertences terrenos são apenas empréstimos de Deus para temporária permanência da alma no vaso car­nal.

A Doutrina Espírita é uma fortuna ao alcance de todos os ambiciosos dos tesouros eternos, mas que raramente é aproveitada. Quando precisamos de ori­entação, nela encontramos setas luminosas que indi­cam, como bússolas eternas, o caminho da nossa evo­lução. Muitos, entretanto, imprevidentes e insensatos, demoram-se na Doutrina Espírita, atrás da miragem do fenômeno como objeto essencial. Todavia, o fenô­meno é apenas simples moldura na grande tela da realidade, sendo secundário. Fundamental, é o fenô­meno da nossa transformação, vivendo a Mensagem Rediviva do Senhor, em todos os dias da existência.

Exercitar o espírito na simplicidade é imperioso. Transferir para outras mãos aquilo que está coa­gulado em nossas mãos é oferecer a outros o que está guardado por nós, sem imediata utilização; fomentar a distribuição de utilidades entre os que nada têm, dando vitalidade aos objetos mortos nos armários e gavetas do nosso lar, representa o culto da simplici­dade e da libertação. Por esse motivo, a Doutrina Es­pírita é também chamada de libertação, porque, con­solando, torna livre o ser, ajudando-o a fazer a maior transformação: a interior, a que o liberta de si mes­mo.

Quando nos apegamos às coisas e às criaturas, fazemos uma despesa de energia que debilita os re­cursos de crescimento espiritual, mediante a concen­tração mental no que constitui o motivo central do nosso querer. Enquanto a lição mais fácil e mais bela da simplicidade é o desapego, a loucura mais profun­da que se pode ter na Terra é a paixão à carne, que vai desaparecer, quando poderia essa concentração de afeto ser dirigida à alma que se eterniza.

Todos quantos se ligam mentalmente à vida físi­ca, pela fixação mental, se intoxicam espiritualmen­te, permanecendo presos aos centros em que con­centraram suas energias vitais.

Cabe-nos, diariamente, o aprendizado da lição de Evangelho no que concerne ao serviço de generali­zação do desapego, deixando de atender às nossas necessidades para atender às necessidades alheias que, em última análise, são as nossas próprias ne­cessidades.

Somos, portanto, obrigados a renovar para per­sistirmos na vida. Vida é renovação no seu sentido mais amplo.

Não foi por outra razão que o Sublime Pregador Itinerante da Galiléia nos ensinou, recordando o De­cálogo, a “amar o Pai sobre todas as coisas e o próxi­mo como a nós mesmos”, generalizando a dedicação entre as criaturas, sem a preferência perniciosa do individualismo, sem a escolha através dos laços de sangue e família.

Ao enunciado da partida, não pude dominar a inquietação, e, embora não falasse, as lágrimas vol­taram-me pressurosas aos olhos. Súbito temor visi­tou-me o espírito, fruto certamente da má educação mental sobre o problema da “morte”, que deve ser motivo de discussão, estudo e exame com mais fre­qüência, na família. Só assim se pode preparar o es­pírito para a adaptação natural e rápida no clima do Além-Túmulo.

Percebendo-me a emoção, a irmã Liebe concitou­-me com enérgica, porém, bondosa voz, ao sono mag­nético.

Não tenho idéia de como fui conduzida do nosso Cenáculo ao leito tépido e acolhedor onde despertei. Eloqüente silêncio falava na ampla enfermaria que ven­to brando cobria de agradável perfume de jasmim.

Alonguei o olhar e verifiquei não ser a única al­bergada no caridoso recinto. Outros Espíritos, com os sinais de desencarnação recente, repousavam em doce quietude, em número não superior a dez.

Recordando as enfermarias das antigas Casas de Misericórdia, iniciadas por Isabel de Aragão, apresen­tava impecável limpeza e suas amplas janelas, ras­gadas nas paredes alvas, ornavam-se de rosas colo­rias e aromáticas.

Não sabia como agradecer a dádiva sublime que Jesus me concedia, imerecidamente, quando peque­no rumor de vozes próximas me mudou o roteiro das observações.

Eram a irmã Liebe e outra senhora, de sorriso aco­lhedor, cujo rosto, de fulgurante bondade, logo me fas­cinou o coração. Não pude enunciar uma só palavra. Sentia uma sensação de profunda anemia e cansaço.

Foi, como das outras vezes, a mentora querida quem me apresentou à veneranda senhora.

— Esta é a nossa Zélia — esclareceu, prestimosa —a dedicada orientadora do núcleo de recuperação em que nos encontramos.

Estendendo-me a mão delicada, a anfitriã infor­mou com simplicidade, sem afetação:

— Esta Enfermaria faz parte do conjunto hospita­lar da Colônia Redenção, que a bondade do Mestre nos confiou para o trabalho dignificante e renovador. É uma estância de auxílio fraterno, onde companhei­ros, egressos da carne, podem repousar, traçando planos novos de serviço para os dias do futuro. Em verdade, nossa Colônia é uma das inúmeras células ligadas ao NOSSO LAR por serviços de socorro aos irmãos na carne, em cujo teto temos a felicidade de aprender, tentando servir melhor.

E depois de um sorriso:

— Sou apenas encarregada desta ala hospitalar.

Vibrações da mais pura cordialidade partiam da Senhora Zélia, cuja dignidade e simplicidade me to­cavam profundamente como auspiciosa promessa. Desejei expressar-lhe o contentamento e a grati­dão que me povoavam o espírito, mas, antes que o fizesse, a irmã Liebe, como se lesse o meu pensamen­to, apressou-se em explicar:

— Como sabes, Otília, deveres outros na Crosta me aguardam. Não poderei demorar mais longamen­te ao teu lado. A dedicada Zélia cuidará de prover, com o seu grande zelo e eficiência, as tuas necessi­dades de agora em diante. Não te faltarão o amor e a bondade dos lidadores deste santuário de trabalho; todavia, não esqueças, em hora alguma, de vigiar a mente saudosa, deixando que o tempo, dedicado e infatigável amigo, resolva os inúmeros problemas que a ansiedade te colocará no cérebro, inquietando-te.

As lágrimas voltaram-me estonteantes.

A irmã Liebe, com a sua juventude dedicada ao Mestre coroado de espinhos, representava a minha segurança e serenidade. Dispunha-me a rogar-lhe não me abandonasse, quando, igualmente emocionada, penetrando em meu íntimo com o seu dúlcido e cal­mo olhar, obtemperou, confortadora:

— Minha irmã; Jesus e só Ele é o nosso porto, nos­so barco, nossa segurança. Recorda dos Seus

ensi­nos: “Todo aquele que crê em Mim já passou da mor­te para a vida”. Confia e espera.

“Por enquanto não podemos permanecer juntas, contudo, não estaremos distantes. Ligadas ao mes­mo Chefe, somos soldados da grande legião do amor, na Seara bendita, sob as suas caridosas visitas. Esta­remos unidas quanto nos permitam as possibilidades de serviço e ser-lhe-ei correio fraternal, levando igual­mente suas notícias e lembranças aos amigos que con­tinuam na luta física.”

Não poderia esperar maior doação. Osculando-me a fronte, a querida Benfeitora des­pediu-se e, como um raio de luz em busca do Grande Sol, após despedir-se da Senhora Zélia, perdeu-se na glória do dever mais além. A guardiã da Casa, enxugando as lágrimas, fa­lou, atenciosa:

— Também eu, ao chegar à vida espiritual, experi­mentei essas dores e emoções. Todavia, com as ale­grias do trabalho, o tempo me enxugou o pranto e o futuro me falou, lentamente, da necessidade de recu­perar os dias perdidos. Igualmente vivi entre crian­ças, na vida física, trabalhando numa Agremiação Kar­decista, no Rio de Janeiro. Temos, em nossas vidas, muitos pontos de contato.

“No momento, não nos poderemos demorar em recordações que seriam mais prejudiciais que bené­ficas.” E sorrindo, acrescentou:

— O amor, quando descontrolado, é mais perigo­so do que pode parecer. Por isso mesmo, busca o repouso, a fim de que o mais breve possível recuperes as energias gastas no processo desencarnatório. “Amanhã o nosso médico virá cuidar da sua or­ganização perispiritual.”

Deixando-me mergulhada em profunda lucubra­ção, despediu-se com carinhoso sorriso.

9 - RESIDENTE DA COLÔNIA REDENÇÃO

Algo repousada, entreguei-me à multidão de pensamentos que estavam represados em minha mente. Desde o momento da desencar­nação, o receio e a dor me visitavam com ha­bitual freqüência. Encontrava-me quase feliz, se bem que as impressões físicas não me houvessem abandonado e eu conservasse ainda 7 as sensações que me eram comuns na roupa­gem material.

Verificava, admirada, que o milagre com que eu tanto sonhara era impossível quimera. A desencarnação não transformava os carac­teres do ser. Não havia a mudança repentina do homem em anjo, nem a metamorfose da carne bruta em falena luminescente dos jar­dins do céu.

A vida, podia agora comprovar, sofrera modificações, não perceptíveis imediatamen­te. Sob o meu corpo, que conservava sinais ar­roxeados, estava o leito, em tudo semelhante aos que conhecera antes. Aos meus olhos, perscru­tadores, na sala bem cuidada e em suas amplas ja­nelas, as rosas, vestidas de um crepúsculo dourado, tornavam-se mais rubras. E em mim mesma continu­ava a assinalar, além das emoções e estados espiri­tuais como a angústia e o anseio, o desfalecimento e o fervor, a impressão da fome, da sede e de outros fenômenos fisiológicos.

Mobilizando as idéias e as débeis energias, ten­tei organizar o meu panorama mental, de molde a for­talecer o espírito para a luta que se iniciava.

Em toda parte descobria a vida palpitante. Sem a febricidade típica das cidades modernas, o recinto guardava aspecto de atividade disciplinada.

Procurando concentrar-me, foi-me possível recor­dar alguns fatos esparsos, e, à lembrança dos meus últimos dias não me pude furtar, mais uma vez, à rea­lidade do momento: aquilo era a “morte”. Não a mor­te caricaturada no símbolo da foice, mas a realidade de mensageira incansável no trabalho de despertar.

Voltei, mentalmente, como me acontecera no tú­mulo, à infância. No momento, recordava o passado, por processo espontâneo, e quedei-me aparvalhada no exame de milhares de atitudes de toda uma exis­tência. Verifiquei, surpresa, com melhor precisão ago­ra, os chamamentos do Céu, dirigidos ao meu cora­ção, por meio de pequeninas vozes e de acontecimen­tos aparentemente insignificantes.

Do berço ao túmulo caminhamos tutelados pelo Senhor, sob a assistência de abnegados amigos de­sencarnados que não desfalecem nos seus deveres de nos guiar no roteiro nobilitante. Aqui é a inspira­ção alargando os horizontes para a nossa alma, fazendo-nos­ mergulhar na senda de indagações fasci­nantes, erguendo véus, aclarando conflitos, decifran­do problemas, oferecendo diretrizes. Ali é a natureza vestida de luz: córregos, rios e mares, flores e pássar­os, árvores vetustas e pequenos vegetais, animais e insetos que enxameiam em todo lugar, nascentes e repúsculos, sol e chuva, minerais de diversos valo­res que as ambições humanas, filhas do egoísmo e do orgulho, convencionaram em preciosos e vulgares, acendendo o fogo da posse, no qual tantos se afadi­gam e lutam.

Mais longe é a dor — mensageira da ver­dade, benfeitora anônima e incompreendida —, voz do sofrimento convidando à continência e ao equilíbrio, advertindo-nos quanto ao desgaste da preciosa má­quina física; a dor-moral chamando à meditação e ao exame das ações; a dor-espiritual, em ausências, frus­trações emocionais, agonias e solidões dalma, falan­do intuitivamente sobre o mau uso da liberdade, apri­sionando a mente em evocações dolorosas que, em­bora não se delineando de todo na tela da memória, marcam os sentimentos com os sinais da angústia; a dor-saudade e tantas dores... convidativas e perse­verantes, gritando-nos, advertindo-nos.

Ontem era o carinho materno, falando-me das coi­sas simples e belas do Céu e de Deus, ensinando-me a orar, insistindo no respeito à Lei, no longo curso dos deveres. As dificuldades domésticas de vária ordem, como mensagens-chamamento que teimei em não es­cutar.

Posteriormente, o raciocínio a desabrochar, a cul­tura em crescimento, os livros, tudo, e a religião fa­lando pela boca dos ministros diversos, nas várias escolas de fé. Por fim, o amadurecimento conduzindo-me ao Grande Senhor, aos deveres que temos para com Ele, enquanto eu não me achava disposta a estudar e ser­vir.

De mil maneiras, segue-nos e chama-nos o Senhor. Quando jovens, apegamo-nos às delícias do jar­dim dos prazeres e, buscando as flores da ilusão, gas­tamos impensadamente energias valiosas, no jogo das emoções. Quando velhos, prematuramente, desperdiçamos as últimas forças na travessia tormentosa do mar da revolta, sob raios de imprecações e trovões de de­sesperos injustificáveis, destruindo o vaso físico, de dentro para fora.

No trabalho educativo, dá-nos o Divino Governa­dor um celeiro para manutenção da vida e azeite para a lâmpada da fé. Imediatistas, porém, prostituímos o dever e anarquizamos o instituto do trabalho, justifi­cando-nos com a falsa necessidade de atender às exigências da carne e, desajustados no cumprimen­to das obrigações, constituímo-nos em falange de oci­osos e aproveitadores, para despertarmos, tardia­mente, nos braços do desequilíbrio, enxugando copi­osas lágrimas.

Oh! filha minha, como nos chama a voz do Amo­rável Rabi!

Tudo isto eu repassava na tela mental, jornade­ando pelas sendas percorridas, atravessando os ca­minhos da memória, miraculosamente lúcida. Não podia furtar-me à emoção, filha do arrependimento, sem revolta nem reclamação, desde que eu mesma era culpada, reconhecia-o agora.

Mergulhada na recordação, meditando seriamen­te, talvez pela primeira vez, não me apercebera da presença da Benfeitora Zélia, que se acercara do meu leito. Compreendendo-me o estado espiritual, chamou-me serenamente a atenção:

— É necessário não esquecer, minha irmã, que o arrependimento é um grande colaborador da nossa paz íntima, mas somente quando nos enseja o traba­lho que nos opere a renovação. Abater-se ao fardo do que “está feito”, é desperdiçar a oportunidade feliz de ressarcimento. Guarda as lágrimas e busca res­surgir intimamente do “túmulo das coisas mortas”.

E com um olhar que demonstrava conhecimento pessoal sobre o assunto, através da experiência pró­pria, aduziu, com segurança:

— Todos temos, no tempo, labores a reparar e es­tradas interrompidas na marcha evolutiva, a vencer. O tempo, esse mesmo silencioso e confiante amigo, esponja que tudo apaga, ensina-nos a não correr, pelo perigo que sofreremos de cansar e parar, e também nos elucida quanto ao estacionamento pelas proba­bilidades que apresenta de criarmos raizes... Viandan­te incansável, ele representa nossas melhores e mais caras esperanças. Para nossos espíritos endívidados, o tempo, ligado ao trabalho, é tesouro que não pode­mos desdenhar, e, além deles, a oração, esse tônico de reconforto e encorajamento, é um arrimo que não sabemos valorizar.

“Com o tempo, temos a oportunidade. “Com o trabalho, conseguimos o aproveitamento da oportunidade. E com a oração, santificamos a ocasião e a ação.”

Com um sorriso calmo, prosseguiu ela:

— Quem se dispõe à ventura da recuperação, bus­ca oportunidade de serviço e, enquanto procura, ora.

“Portanto, não tenhas pressa.”

Estava perplexa com a lógica dos seus argumen­tos, simples, mas profundos, onde eu encontrava cam­po para novas meditações. Depois de uma pausa, que se fez natural, conti­nuou com espontaneidade, dissertando, amável, nou­tro rumo da conversação:

— Nossa Colônia encontra-se próxima à Terra, so­frendo, conseqüentemente, as mesmas condições do planeta a que se encontra ligada. Irmanados ao des­tino do Brasil, nossos Instrutores trabalham infatiga­velmente, há mais de 250 anos, cooperando com as falanges de Ismael na construção da Pátria do Cru­zeiro. Fundada por abnegado Missionário da Carida­de, destinava-se, inicialmente, a socorrer escravos de­sencarnados ao peso de provações e expiações ama­ríssimas. Recolhendo os mais rebeldes, sedentos de vingança, auxiliava-os com esclarecimentos necessá­rios, reconduzindo-os ao Orbe para novas e redento­ras lutas. Incipiente a princípio, foi crescendo com o con­curso dos anos, aumentando suas possibilidades de socorro, em vista da cooperação de Espíritos abne­gados que passaram a contribuir para o seu desen­volvimento. Atravessou ásperos períodos, consoan­te consta nos arquivos que guardam sua história.

“Reiteradas vezes, as hostes do mal investiram furiosas e organizadas, sob o comando de cruéis ma­gotes de chefes bárbaros, cuja memória na face da Terra se encontra, até hoje, envolta nos mais hedion­dos crimes. Os pioneiros da obra iniciada, entretanto, não desanimaram, uma vez sequer. “Feridos na cruzada do amor, reorganizavam-se sempre, e, à medida que a região inóspita se povoa­va de vibrações edificantes, reservas de forças che­gavam de toda parte, em nome do Senhor Supremo, restabelecendo o ânimo e vitalizando o trabalho.”

Acompanhava a descrição da Senhora Zélia com emoção e curiosidade crescentes. Aproveitando-lhe a pausa, indaguei:

— E as lutas tinham o aspecto das que se obser­vam no planeta?

— Evidentemente — retrucou a esclarecida narra­dora. — E imprescindível não esquecer que nos encon­tramos muito próximos da Crosta terrestre, envoltos em vibrações igualmente materiais, cuja diferença es­trutural é facilmente compreensível.

“Essas entidades ligadas ao mal — continuou — or­ganizam-se em bandos perigosos, sob a a direção de mentes cruéis, dificultando a obra de evangelização do mundo. As guerras, os crimes e muitos desastres que se verificam na Terra estão ligados, de certo modo, a esses agrupamentos de gênios satânicos, que se demoram comprazendo no mal e, inconscientemen­te, funcionam como o necessário escândalo.”

E dando curso à narrativa histórica da Colônia, prosseguiu:

— O próprio Ismael visitou, por duas vezes, a Go­vernadoria, contribuindo com valiosos esclarecimen­tos e oferecendo preciosos recursos de auxílio ao pro­grama socorrista a que se liga.

“Temos depois, quando no Brasil as idéias aboli­cionistas fermentavam em vários corações e mentes, almas aqui atendidas, durante anos, retornaram à for­ma física na posição de escravocratas benignos que, ao lado dos libertadores, concederam, sem mais delongas, liberdade aos opressos, antes do inolvidável dia em que a Princesa transformou em Lei memorá­vel a abolição da escravatura nas terras de Santa Cruz.

“Com isso a Colônia granjeou o devotamento de novos e abnegados trabalhadores que se ofereceram a cooperar com o seu celeiro, resultando em cresci­mento e amplitude de serviços. “Atualmente, operando na Crosta, com um gran­de número de servidores do Bem, conta com alguns milhares de pupilos reencarnados, que continuam mantendo ligações mentais conosco, situados em ser­viços de recuperação e assistência a sofredores no plano físico. E, graças ao Espiritismo, na sua feição cristã, o número de candidatos ao serviço fraternal de socorro aumenta de maneira consoladora, apesar das quedas lastimáveis de quantos baqueiam nas re­levantes tarefas a que se propus eram.”

A narradora, depois de breve silêncio, acrescen­tou:

— A esta hora, diariamente, ligamo-nos em ora­ção com o Templo de comunhão.

Ante a notícia das preces em conjunto, no recin­to reservado a esse mister, indaguei, ansiosa:

— Poderia participar da prece em conjunto, ruman­do, igualmente, ao local onde os demais se encon­tram?

— Não — respondeu-me. — Ligar-nos-emos daqui mesmo, porqüanto o pensamento rompe todas as fronteiras. Ainda necessitas de guardar o leito por algum tempo, para adaptar-te com segurança a vida nova.

“Guarda-te em meditação — tranqüilizou-me com expressão de entendimento fraternal —, enquanto vi­sito e preparo nossos demais irmãos de enfermaria.”

10 - ORAÇÃO NA COLÔNIA

O Sol ainda não se ocultara de todo. Rai­os dourados brincavam nos ramos das rosei­ras que oscilavam lentamente sacudidas por suave brisa.

Grande transparência na atmosfera dei­xava desnudo um céu profundo e calmo, ba­nhado de azul sereno, convidando à medita­ção e ao silêncio.

Como se flutuassem no ar, notas melodi­osas de um mavioso órgão invadiram lenta e suavemente o recinto em que me encontrava. Os acordes harmoniosos tocavam-me sensi­velmente o coração e, sem que pudesse ex­plicar, surpreendi-me tomada por silencioso e confortador pranto. Traduziam essas lágri­mas aquele estado dalma, misto de felicida­de e recordação, que não se pode ou não se sabe bem definir.

As notas subiam e desciam em conjunto melodioso, parecendo falar às nossas almas saudo­sas e angustiadas, confortando -as miraculosamente.

Nesse momento, a Benfeitora Zélia deu entrada em nosso reduto acolhedor e, aproximando-se de uma mesa, no fim da sala, acercou-se de um aparelho se­melhante aos receptores de televisão da Terra e o li­gou, com movimento rápido. Surgiu-nos, então, à vi­são deslumbrada, amplo recinto, em forma semicir­cular, com aproximadamente 1.000 pessoas, sentadas, em atitude de profunda concentração.

Num estrado, ao fundo, singela tribuna, à feição dos púlpitos das Igrejas Reformadas, destacava-se, cercada por duas filas de poltronas, igualmente ocu­padas.

Festões de rosas desciam delicadamente enrola­dos nas colunas que cercavam o encantador auditó­rio, no cenário da noite em crepe transparente, orna­do das cascatas de luz poente.

Verdejante relva se derramava além das alvas co­lunas que pareciam construídas do mais fino mármo­re, a apontar o céu estrelado.

Jovem seráfica, sentada a grande órgão, conti­nuava a dedilhar o teclado alvo, sensivelmente emo­cionada. Todos pareciam participar da mesma emo­ção, porqüanto, de olhos fechados, deixavam trans­parecer, na face, a comunhão fraterna que se irradia­va, misturando-se harmoniosamente.

— Eis o nosso santuário de orações — informou a Enfermeira Zélia, aproximando-se de mim.

— A pulcra jovem organista — prosseguiu, jovial­mente — é Susana, que na Terra se dedicou à música de Bach, Wagner e Haéndel. No momento, prepara-nos o ambiente com o trecho da peça “XERXES” de Haêndel, denominado LARGO.

Tomada pelos acordes vibrantes, parecia recuar no tempo e evocava a melodia que tantas vezes es­cutara quando encarnada. Tinha a impressão de que a música, naquele momento, possuía uma linguagem mais compreensível, saturando de emoções superio­res a minha alma.

Envoltos nas vibrações do instrumento magnifi­camente conduzido, ouvimos as últimas notas perde­rem-se no ar. A jovem, entretanto, parecia vestida de suave e bela luminosidade. O rosto, pálido, coloriu-se de rubor expressivo e as lágrimas brilhavam nos seus grandes olhos negros. Pretendia indagar à bondosa mentora a respeito da jovem, solicitando mais algumas informações, quando esta me socorreu, esclarecendo, compreen­siva:

— Susana foi uma dessas heroínas anônimas que muito amou sem fruir ventura da retribuição. Entre­gou-se, por isso mesmo, à música, qual musa da arte, enquanto a tuberculose pulmonar lhe consumia a fra­gilidade orgânica. Chegou à nossa Colônia na condi­ção de vitoriosa, e aqui, desde há alguns anos, coo­pera no ministério da oração, ajudando com acendra­do devotamento os afeiçoados que continuam na re­taguarda.

Silenciando a voz pausada, observei que vene­rando ancião se ergueu de uma das filas laterais as­somando à tribuna sob a mais viva satisfação de to­dos os presentes.

— É o orientador Célsius, abnegado Instrutor de nossa Colônia — elucidou a amiga espiritual.

E após alguns momentos:

— É portador de grande soma de bênçãos em nos­sa Casa de carinho, que muito lhe deve ao labor ab­negado e incansável. Trabalha neste Hospital-Escola há mais de um século, segundo estou informada, com credenciais de demandar outra esfera de realização. Todavia, jamais utilizou o patrimônio que lhe exorna o espírito abençoado, para qualquer benefício pesso­al... As tarefas mais difíceis têm-lhe a preferência, ates­tando o seu alto coeficiente de renúncia e caridade.

“Regiões dolorosas de reparações punitivas —prosseguiu a lúcida matrona —, núcleos infernais de purificação, recebem-lhe, invariável e constantemen­te, o concurso valioso e, nas enfermarias reservadas aos loucos e possessos, sua figura é um convite hon­roso aos companheiros socorristas no sagrado minis­tério de ajudar.”

O ar balsâmico do anoitecer caía ameno. De nos­so leito, participávamos do culto que ora se iniciava.

O orientador Célsius, imóvel na tribuna, recebia no rosto aureolado a carícia do fugitivo dia. Ergueu os olhos e, ao baixá-los, fitou com imenso carinho a mul­tidão atenta, falando com voz clara e pausada:

— Irmãos em Jesus. Paz seja conosco.

“Infatigáveis companheiros nossos encontram-se no momento, nas frentes de luta das regiões purga­doras, combatendo, denodados, a serviço do Bem Sem Fim. “Enfrentando dificuldades indescritíveis sob tem­porais de revoltas e ódios, cooperam com Jesus nas ásperas jornadas de soerguimento das almas fracas­sadas e no despertamento de consciências entene­brecidas há muito tempo... “Constituem os braços da legião dos “Servidores da Cruz”, em nobilitante esforço salvacionista. “Também temos hoje ao nosso lado antigos companheiros que retornam sem luz, nem pão, nem es­perança. Alguns conservam ainda as fundas feridas das refregas em que foram batidos; outros guardam as impressões violentas das tormentas que os açoi­taram e em cujo vendaval foram levados até ao cri­me, pela inobservância dos deveres morais. Quase todos se apresentam desencantados, aturdidos, sem forças... Retornam ao Lar como náufragos desespe­rados aportam em acolhedora ilha, sem que, entre­tanto, possam repousar, tais as impressões que con­servam no íntimo, daqueles tormentosos dias e noi­tes de ansiedade e loucura ao sabor das águas revol­tas...

“São corações desesperados que nos pedem os melhores esforços, conclamando-nos, na sua desdi­ta, à vigilância e aguardando o concurso do nosso tra­balho assistencial para o redespertamento de cons­ciências enegrecidas pelo erro e intoxicadas pelo ópio dos prazeres absorventes.”

O narrador silenciou por momentos, para pros­seguir com outro timbre de voz, modulado em vibrações de muita ternura:

— Quantas vezes não tivemos igualmente batido a outras portas, apresentando os mesmos desequilí­brios? Quantos não conservamos, até este momen­to, úlceras ou cicatrizes que nos recordam loucuras idênticas? Quantos não carregamos reminiscências amargas e apreensões justas em relação a afeiçoa­dos enceguidos nas disputas da posse, nos resvala­douros da ingratidão e da “morte”? Quanto temos de fazer, por nós mesmos, para esquecer por superação, vencer através da renúncia total, crescer pela sen­da do sacrifício, a fim de conquistarmos os tesouros da paz e da imortalidade? São quesitos que não po­dem ficar esquecidos em nossa Agenda, para medi­tação.

Senti que, embora suas palavras não tivessem o tom amargo de acusação nem denotassem lamento, falavam verdades que me atingiam vivamente. Quan­tas oportunidades deixara escapar, quando mergu­lhada na carne? Como estaria minha filha, no lar, que me era tão querido? Que me reservaria o futuro nos ensejos de novas lutas? Não pude alongar-me nas divagações mentais. A voz do tribuno inspirado voltava à oração cativante:

— Somos devedores compulsórios da Misericórdia Divina — continuava, calmo —, que jamais nos abando­nou. Por essa razão, não podemos permanecer indi­ferentes à vasta cópia de dores que assalta outros corações, atingindo, assim, nossa alma.

“O Senhor Jesus Cristo deu-nos o exemplo, pelos longos testemunhos no campo do auxílio infatigável, na temporada vivida conosco, no mundo. E até agora, sem cansaço nem esmorecimento, prossegue o Tra­balhador Incessante, construindo para nós e por nós. “Conservemos em mente que a felicidade somen­te é possível quando conseguimos arrancar os tentá­culos do egoísmo e do imediatismo, esses vitoriosos adversários de nossa gloriosa destinação. E para tal desiderato a Caridade é o único meio de retirar as ventosas desse algoz titânico que nos suga as ener­gias, debilitando-nos o ânimo. Perseveremos no con­curso aos semelhantes e abriremos clareiras na mata de nossa ambição, permitindo, assim, que a luz de cima oscule as baixadas do nosso ser.”

Fez-se, novamente, uma breve pausa. Em todos os olhares brilhava o desejo de servir. Fitando o ora­dor nimbado de diamantina claridade, o auditório con­servava-se em expectativa silenciosa.

Erguendo novamente a voz, muito branda, qua­se além de um murmúrio, continuou o intérprete da Palavra Evangélica:

- Eis que temos por bem-aventurados os que so­frerem...

“... E a oração da fé salvará o doente, e o Senhor o levantará; e, se houver cometido pecados, ser-lhe-ão perdoados”. Assim nos fala o Apóstolo Tiago, na sua Epístola Universal, no capítulo cinco, versículo onze e quinze, concitando-nos ao culto da dor e da prece, principalmente quando, doentes e pecadores, estivermos juntos, buscando o Senhor.”

O órgão cantou dolente, sob as mãos leves de Susana.

Alçando os braços em atitude de súplica sem afe­tação, o respeitável ancião, então, orou:

“Jesus, Celeiro da Esperança, socorre-nos.

Sentinela luminosa de nossa noite, clareia-nos.

Alonga os teus ouvidos e ouve-nos a súplica.

Em nossa luta de toda hora, em ti confiamos.

Nas regiões de sofrimento-lição, ajuda-nos.

No abismo da ignorância milenar, abre-nos o ma­nancial da tua sabedoria.

Em nossa condição de delinqüentes, favorece­nos, outra vez, com a graça de nova oportunidade. Carregados de aflições e dores, consola-nos. E além de nós, Jardineiro das almas, favorece­nos, com a misericórdia da tua permissão, para levar adiante, embora não nos encontremos aptos: teu nome aos recintos de horror, tua paz aos penhascos da revolta, teu amor aos vales do ódio, tua luz aos abismos da treva, teu perdão às charnecas escuras da vingança, e tua esperança aos tortuosos rios do desalento.

Suplicamos, igualmente, pelos flautas vencidos nas viagens laboriosas e difíceis do mundo das tenta­ções e que retornam a estas praias desarvorados e tristes.

Por quantos seguiram animados e retornam pre­sos aos cipós intrincados das redes perigosas da in­vigilância e, principalmente, por aqueles que:ferem e sorriem em plena loucura, perseguem e dormem em total ignorância, malsinam e gozam em completo abandono de si mesmos.

Eles constituem “motivo de escândalo”, não te co­nhecem, e são, em conseqüência, os mais infelizes... por nós que te conhecemos e preferimos a tre­va à luz, a ventura enganosa e passageira à renúncia redentora. Senhor, tem piedade de nós!” Silenciou o abnegado Mensageiro da Luz. Gotas de evanescente claridade caíam sobre os assisten­tes.

O órgão continuava a entoar as excelências har­moniosas do Céu. A irmã Zélia acarinhou-me a cabeça. Todos cho­rávamos. A reunião terminava. Estrelas miúdas brilhavam no céu azul-escuro, muito longe. O aparelho foi desligado, mas, com o silêncio de­corrente, a meditação falava alto em nossas almas.

11 - O DOUTOR CLÉOFAS

Na manhã seguinte, após a frugal refei­ção, a bondosa Zélia apareceu acompanha­da, irradiando a jovialidade que lhe era habi­tual.

— Este é o nosso doutor Cléofas — falou, apresentando o simpático visitante —, que cui­dará de suavizar as impressões físicas que guardas no perispírito, desde o momento da desencarnação.

Realmente, ainda não haviam cessado as sensações dolorosas que me seguiam conti­nuamente. Embora os cuidados e a assistên­cia moral de que me via objeto, sentia as con­trações dolorosas que me visitavam com fre­qüência, o cansaço e a dificuldade respirató­ria. Sustentavam-me a fé e a esperança que desbordavam em meu espírito, mediante o consolo haurido na oração, mas as dores per­maneciam.

O médico, trazendo aos lábios sorriso afável, fi­tou-me, compreensivo, sentando-se ao meu lado, jun­to ao alvo leito.

O doutor Cléofas, soube-o mais tarde, fora dedi­cado cardiologista, desencarnado havia uma vintena de anos, na Capital de São Paulo. Chegara à Colônia, como portador de vários títulos de auxílio e humilda­de. Católico praticante, a princípio, encontrara nos enfermos o abençoado campo de serviço e aprendi­zagem. Coração sensível, alma evoluída, não se limi­tava ao estreito círculo das formas.

Cultor de privile­giada inteligência, defrontou-se com problemas fisi­ológicos inexplicáveis pelos métodos da experimen­tação científica, então vigentes, resolvendo-se à base do amor, em intermináveis testemunhos de abnega­ção. Pesquisador honesto e sedento de conhecimen­tos novos, ouviu notícias do Espiritismo, através de jovem médium, de apreciável faculdade, buscando conhecê-lo, ávido como sempre esteve, de respostas às inquirições que o atormentavam.

Com vasta clientela, reuniu, com a sucessão do tempo, apontamentos valiosos de observação e, fas­cinado pelos esclarecimentos fornecidos pelos Espí­ritos, embrenhou-se pelas investigações Metapsiqui­cas, vindo a conhecer a Doutrina de Allan Kardec, manuseando O Livro dos Espíritos. Tão fascinado fi­cou com a leitura desse magnífico compêndio de Fi­losofia transcendental que, em breve, consorciou-se com o pensamento Kardequiano.

Estudando as faculdades positivas do sensitivo, penetrou no umbral do Além-Túmulo, em memoráveis sessões de estudo e pesquisa. Voz direta, transpor­te, levitação, impressões em chapas fotográficas, des­dobramento, psicofonia, psicografia, xenoglos sia e tantos outros fenômenos contribuíram para levá-lo às questões fundamentais da vida imperecível.

Naquela época, reuniam-se homens de nomeada, conhecidos pelos valores morais e intelectuais, sele­cionados, exercendo rigoroso controle nas operações medianímicas, terminando por atestar a veracidade dos fenômenos experimentais sob a interferência de forças extrafísicas, publicando-se relatos dos traba­lhos em opúsculos que marcaram tempo. Todavia, passada a movimentação ruidosa das primeiras emo­ções, poucos se dedicaram à continuação dos experimentos mediúnicos.

Todavia, o raio de luz que rasgou a cortina das formalidades, abrindo o campo da vida nova ao dr. Cléofas, fecundou a semente do Evange­lho que dormitava no ádito do seu coração. Mergu­lhando as antenas psíquicas na fonte do conhecimen­to bibliográfico, fez das diretrizes da Boa Nova segu­ro roteiro para si mesmo, alargando as possibilida­des de serviço. Desencarnou, com a idade de 58 anos, aproximadamente, carregando consigo valiosos re­cursos espirituais.

De olhar bondoso, o esculápio amigo, com expres­são paternal, convidou-me a cuidadoso exame. Utili­zando-se do estetoscópio, à semelhança dos médi­cos terrenos, começou a perscrutar, atento, deixando transparecer na face os sinais de preocupação e zelo.

Após alguns minutos, diagnosticava, com um leve sorriso:

— A irmã Otília chegou à vida espiritual sob a ago­nia da Angor Pectoris. São ainda evidentes os sinais da dor constritiva nas artérias coronárias dilaceradas pelas contrações anginóides.

Devo confessar que até o momento de ouvir o mé­dico referir-se à minha causa mortis, eu a desconhe­cia totalmente. Suspeitava ter desencarnado de mo­léstia do coração, sem que, contudo, pudesse saber qual a enfermidade.

Aproveitando a pausa espontânea, esclareci, sur­presa:

— Benfeitor amigo, desejava informar que às vés­peras da minha desencarnação consultei jovem mé­dico, ao lado do meu companheiro que se encontrava enfermo, sendo tranqüilizada pela ótima disposição física. Após acurado exame, assegurou-me o doutor que eu era “portadora de um coração de ferro”. Como explicar a minha desencarnação por enfermidade do coração?

Sorriso largo espraiou-se no rosto do interlocu­tor, que acrescentou bem-humorado:

— Todavia, está comprovada a fragilidade do seu coração... Embora a informação do seu clínico, a bom­ba cardíaca não resistiu ao embate e, cansada, dei­xou de lutar...

Prosseguindo, considerou:

— Não discutiremos aqui a informação do colega terreno, mas é inegável que o seu processo desen­carnatório vinha sendo elaborado na máquina física, apesar da violência final, há mais tempo do que você possa imaginar. O aparelho respiratório deveria es­tar apresentando sinais de cansaço e deficiência des­de alguns meses antes; desde que o tônus vital que a animava, calculado cuidadosamente antes da reen­carnação, se encontrava esgotado, por motivos de “fim de prova

“Como você deve recordar-se, através das noções de Doutrina que possui, o organismo somático é man­tido pela vitalidade perispiritual, que é agente, e que conduz em germe os pródromos dos acontecimentos futuros para o berço e o túmulo, essas duas entradas principais da vida.

“Anemia, cansaço, uso de bebidas alcoólicas, sí­filis, produzem a angina, variando a nomenclatura em relação à etiologia. No seu caso, entretanto, tudo in­dica terem sido a anemia e o cansaço, junto a outros fatores que não vem ao caso examinar, que causaram o enfarte do miocárdio conseqüente à violenta crise anginosa.”

— Mas como é fascinante, doutor! — Interrompi.

— É compreensível — replicou, sorridente. — Nos centros de estudos das reencarnações e desencar­nações não se conhece a improvisação. Se a paz do mundo começa sob o teto da família, os fatos do futu­ro estão condicionados ao passado do espírito como decorrência dele. Assim, os acontecimentos da vida planetária estão ligados a razões adredemente pre­vistas e sabiamente movimentadas.

“Corpos belos e deformados são frutos de ensai­os e comparações, escolhas e imposições, tendo-se em vista os imperativos do mérito, no ajustamento às Leis de Causa e Efeito. Enfermidades passageiras e males crônicos, doenças breves e demoradas, tuber­culose, lepra, câncer, alienação mental... obedecem a programas estruturados nas bases das necessidades espirituais em cujas tarefas de renovação pela expe­riência provacional ou expiatória, em ajustamento ou resgate, o ser recupera o patrimônio da vida, antes mal aplicado pela orientação contraproducente do li­vre arbítrio.”

— Então — aduzi —, o determinismo é um fato!

— Evidentemente! — retrucou-me. — Não, porém, nas bases em que muitos o situam. Recordemos, ini­cialmente, que ninguém segue rumo à reencarnação para repetir experiências fracassadas. Mas, sobretu­do, para aprender e evoluir, valorizando a dádiva do tempo.

“O renascimento não é uma porta de cobrança por onde todos têm de passar compulsoriamente, ar­rastando penas e dívidas. Antes, é uma oportunida­de dadivosa para reparação e conquista. Quantos desrespeitem a Lei sofrer-lhe-ão a conseqüência. É justíssimo.

Assim, o determinismo não é uma imposição, mas uma conseqüência dos atos que criam motivos de resgate. Além disso, não olvidemos o patrimônio de conquistas na esfera do serviço humanitário, onde muito se pode realizar em favor de si mesmo, anulan­do causas determinantes de sofrimentos futuros. Não esqueçamos, também, que o amor anula e apaga tudo, porque o amor é manifestação luminosa da Di­vindade ao alcance do homem.”

Desejando dar maior ênfase ao assunto, prosse­guiu:

— Reconheçamos, ainda, que a alma em romagem pela Terra dispõe de múltiplos recursos para proce­der com eqüidade. Excetuam-se, naturalmente, aque­les que se encontram em rudes pelejas expiatórias, em as quais permanecem apagados os centros da inteligência para o necessário esquecimento liberta­dor. O homem comum, de mediana capacidade, dis­põe da razão, do livre arbítrio, do exame de consciên­cia, tendo ao seu alcance a prece e a intuição ou per­cepção espiritual. Com o Evangelho de Jesus Cristo, Nosso Senhor, o roteiro humano se ilumina, salvador. No entanto, mergulhando na carne, a alma se apega por teimosia rebelde ao prazer, longe do sacrifício renovador, debatendo-se no arbítrio torturado, e es­colhendo, invariavelmente, as sendas difíceis para a própria redenção. É natural que, caindo em inespera­dos abismos, sofra com a queda os danos pertinen­tes às arestas do despenhadeiro.

— É racional — assenti. — Quer dizer, então, que tudo é previsto antes do renascimento? — indaguei, curio­sa.

— Não exatamente tudo — esclareceu, paciente. —Digamos, antes, que é mais ou menos previsto. Des­de que toda ação gera uma reação, é admissível que a previsão esteja na razão direta das ações pratica­das no passado. Entretanto, através de novas ações, o panorama geral do reencarnado pode sofrer modi­ficações apreciáveis. Recordemos aqui o ensino do Mestre Nazareno, que é muito expressivo: — Não cai uma folha da árvore que não seja pela vontade de Deus” ou “... até os cabelos das vossas cabeças es­tão contados”, o que pode ser traduzido por um pré-conhecimento das coisas. Entretanto, lembremos, igualmente, que o sábio Senhor também afirmou:

—“Tudo quanto pedirdes ao Pai, orando, será concedi­do”, o que indica ser a felicidade algo ao nosso alcan­ce, dependendo somente de nos resolvermos a tal. Nas vicissitudes do caminho e dificuldades da luta, a prece da alma contrita chega aos ouvidos divinos, que retribuem a confiança com a temperança e o ânimo, a inspiração e o auxílio.

“Aceitar o determinismo absoluto — prosseguiu, atencioso, — seria o mesmo que negar a bondade Di­vina, aceitando o fatalismo negativista. Convenhamos ainda que nenhuma alma é destinada ao mal. O mal é somente uma manifestação do bem ausente.”

Estava profundamente comovida. Embora recor­dasse do que lera, na Terra, o assunto era sempre atraente. Invadia-me o ser preciosa sensação de con­forto e segurança, favorecendo-me a mente com no­vos rumos ao entendimento.

Depois de ligeira meditação, como se buscasse esclarecimentos novos, o venerável médico continuou:

— A reencarnação é abençoado ensejo, conces­são imerecida. E toda doação é sempre utilizada como melhor convém a quem a recebe. Muitos, inadverti­damente, atiram fora o que recebem, sem considera­ção ao benfeitor; outros utilizam-se da concessão, in­diferentemente; raros aplicam bem os valores rece­bidos. Tal benefício deve ser aproveitado, não para pagamento, peregrinando pelas sendas da amargu­ra, mas para aquisição de valores pelas vias do tra­balho. Na Contabilidade do Céu, a soma de ações no­bilitantes anula a coletânea equivalente de atos in­dignos, e todo amor ao próximo, em serviço educati­vo à Humanidade, é degrau de ascensão. Por essa razão, o momento que passa é de especial valor. Des­de que o nosso “hoje” se encontra radicado no “on­tem”, usemos o hoje-amanhã na edificação da ventu­ra por que ansiamos.

“Passado, presente, futuro... Hoje é o que impor­ta. Atendamos às tarefas que o Mestre nos confere, em oportunidades santificantes, e avancemos, sem cessar!”

Calou-se o lúcido visitante. Minha mente perdia-se se num mundo de cogitaçõeS novas. Vibraram em meu cérebro espiritual as palavras: reencarnação, desen­carnação, oportunidade, prova, expiação, resgate... E, sem que o percebesse deixei-me conduzir à nostal­gia absorvente, ao lembrar das perdas que pesavam sobre meus débeis ombros. Percebendo, porém, o meu pensamento, nubla­do pela súbita amargura, o Médico Espiritual atalhou-me a inquietação, asseverando:

— Sustente o bom ânimo! o arrependimento, quan­do muito freqüente, é mau conselheirO. Use a medita­ção como medida salutar, abandonando toda e qual­quer expressão de remorso deprimente. Utilize-se do momento para a planificação do porvir. Agora, exer­cite-se; amanhã, sirva.

E com voz grave, concluiu:

— Busque o repouso; é necessário e inadiável o pronto refazimento. Cuidarei de medicá-la devidamen­te, e, sempre que possível, estaremos ao seu lado, e Jesus conosco.

Despediu-se o novo amigo que, acompanhado da irmã Zélia, se dirigiu a outros necessitados, no subli­me mister de curar.

12 - EM MEDITAÇÃO

As palavras do dr. Cléofas conduziram o meu pensamento a um mundo de novas inda­gações. Pouco habituada aos exercícios men­tais, sentia dificuldades em ligar expressões esclarecedoras a acontecimentos ilustrativos para tirar os mais proveitosos ensinamentos. Por essa razão, sentia-me perturbar, embora a clareza com que as idéias me foram apre­sentadas.

Que magnífico tema esse — Livre arbítrio e Determinismo.

Raramente procuramos examinar os fatos que nos sucedem na vida, descobrindo neles as origens do livre arbítrio ou do determinis­mo. A grande maioria dos crentes deixa-se con­duzir pela sucessão natural dos acontecimen­tos, sem aprofundar-se nas causas determinan­tes, em acuradas e úteis observações. Diante de uma tragédia, duas atitudes comumente assaltam os homens: revolta injustificada ou resigna­ção desvitalizada, que traduzem, em ambos os casos, pobreza do conhecimento racional da Fé. Somente poucos indivíduos buscam apreender a razão basilar dos acontecimentos para, esclarecidos, dirimirem as conseqüências, preparando-se para a aceitação na­tural do fato.

Crença, compreendia-o agora, não significa, de maneira alguma, aceitação passiva dos postulados doutrinários de uma denominação religiosa. Antes de tudo, crer representa conhecer para crescer através do conhecimento. A crença é um meio de realização objetiva nos domínios da alma. Dessa forma, a fé éuma lanterna inextinguível clareando a senda evoluti­va do homem através do discernimento lógico, no in­trincado campo dos problemas subjetivos, materiali­zando-se na conduta social. E assim podia, melhor que antes, averiguar quanto é certa a ponderação que se exige no conhecimento religioso, como sói acontecer no Espiritismo.

Quantas vezes, interrogava-me, deixara-me entu­siasmar pelas pregações doutrinárias na Seara Evan­gélica, comovendo-me até às lágrimas, sem o cuida­do, porém, de, ao recolher-me ao lar, aprofundar a mente nas análises dos conceitos expendidos pelo dis­sertador, como frutos da inspiração divina, aplican­do-os na vida diária, em favor do porvir? Vezes ou­tras, nos dias destinados ao intercâmbio medianími­co, por momentos rápidos mergulhava o pensamen­to e o coração na leitura da Boa Nova, procurando, nos deveres da higiene preparar o corpo para o sono, sem outros cuidados para com a alma!

A mesa mediúnica, quando deveria cooperar com recursos valiosos da prece e da concentração, manti­nha apenas a atitude da face, sem o devido respeito à dor dos desencarnados, esmagados sob crudelís­simas cruzes. E quantas vezes me deixara conduzir, invigilante, tomada pela impiedade, acreditando es­tar diante de artifícios dos médiuns ou de enfermida­des características de maníacos e sugestionados? Ter­minado o intercâmbio, só excepcionalmente condu­zia comigo as impressões da noite de socorro para melhor e mais acurado exame.

Diante dos BenfeitoreS Espirituais, à hora das Ins­truções PsicofônicaS com que se encerravam as reu­niões, a minha atitude não era muito diversa da pos­tura que mantinha ao início assistencial. E, de inci­dência em reincidência, habituara-me ao serviço reli­gioso com a pontualidade e com postura de semblan­te, distante, porém, do interesse e da compenetra­ção que o Culto da Prece, convite ao homem para o encontro consigo próprio, nos impunha a todos. Tal fenômeno, entretanto, lamentaVelmente ainda ocor­re em muitas células espiritiStaS, exigindo dos seus dirigentes os mais reiteradoS esforços para a manutenção do nível necessário à coleta dos valores legíti­mos de produtividade intercambial e trabalho. Daí a necessidade constante de estudo com meditação e da sua natural aplicação diária na vida prática, para que o formalismo, tão comum em outras escolas de fé, não se amerceie das almas que se devem esclare­cer, tornando-as responsáveis em matéria religiosa.

Recordava as palavras do esculápio e emociona­va-me. De fato, era fácil constatar só há realmente destinação para o Bem, para a produtividade útil, consoante as lições serenas e sábias da vida.

O mineral, o vegetal, o animal, o homem, o anjo, todos caminhamos pelas rotas sem termo, para um único fim: a perfeição!

O primeiro sonha, o segundo sente, o animal so­fre, o homem conquista e cresce, e o anjo sublima-se. Com a aquisição do livre arbítrio, cada um esco­lhe o roteiro a perlustrar. As ações criam conseqüên­cias que, por sua vez, geram efeitos, mais ou menos graves, apressando, estagiando ou retardando a mar­cha.

Nos reinos primários da forma, a lei manifesta-se sábia e paciente, usando as dádivas do tempo em re­tortas e laboratórios transformistas da erraticidade. Nas fases inferiores da vida, o princípio anímico cami­nha com segurança rumo às escalas mais elevadas. Posteriormente, o princípio espiritual que despertou do sono letárgico do mineral, descortinou os horizon­tes da sensibilidade vegetal, desenvolveu o instinto animal, penetra nos domínios da mente, dispondo da possibilidade, concessão-divina, para encetar o avan­ço pelos trilhos da sabedoria, de que, em grau infini­tamente pequeno, já é possuidor.

Essa dádiva pode ser recebida como um empréstimo da misericórdia paternal de Deus; não é uma aquisição da alma, como muitos pensam. Do seu uso depende o futuro da sua felicidade pelo tempo e pelo espaço. Quantos malba­ratem essa preciosa bênção em jogos ilusórios, retor­nam ao caminho dos recomeços, até à hora, em que se resolvam despertar para o Ilimitado Amor.

Eu concluía, assim, que ninguém deve candida­tar-se ao Reino de Deus, se não deseja buscá-lo no próprio mundo íntimo. Por essa razão, afirmou Jesus, é que esse Reino “não vem com aparências exteriores”.­

Bendita Doutrina é o Espiritismo, que derrama lu­zes em abundância. Ditosos quantos podem, enquan­to na vida física, conhecer as láureaS do Além que lhes estão reservadas após o labor e as canseiras do sofrimento!

Minha filha; Espiritismo significa oferenda preci­osa do Excelso Pai, atendendo às rogativaS de Jesus Cristo, para a felicidade dos romeiros do mundo. Aproveitar tão alta doação é carregar um fardo, cer­tamente; no entanto, um precioSO fardo, sacrificando tudo, pela incomum felicidade de aproveitar o ensejo que, talvez, não se renove em tão próximo tempo. Pouco importam as dificuldadeS em torno do ideal espiritista.

É imprescindível lutar e lutar muito! O ho­mem, iluminado pela luz clara da Mensagem Karde­quiana, pode ser ridicularizado, nunca porém ridícu­lo; humilhado, porém, jamais humilhante; perseguido sem, porém, ser perseguidor abandonado, maltra­tado, sem jamais abandonar a fé generosa e pura que o aquece, conduz e anima.

No século da fotografia e das imagens em movi­mento, do telefone e da telegrafia, da máquina de va­por, do aeróstato, do submarino... das profecias de Maxwell e da obra gloriosa de Zamenhof, o Espiritis­mo pode ser considerado como a maior conquista do homem no campo da Filosofia, equiparando-se, pela sua harmoniosa amplitude, às Ciências vigentes e se tornando a Religião essencial.

Com a inteligência esclarecida, podendo exami­nar melhor os fatos e o seu encadeamento, quase re­tornei ao desânimo. Mas, antes que mergulhasse nas suas águas turvas, evoquei as palavras ouvidas nesses breves dias que me distanciavam da carne e procurei manter o equilíbrio necessário para o aproveitamento das horas. Jesus é o mesmo: ontem, hoje e amanhã — pare­cia escutar alguém murmurando aos meus ouvidos. E amparada nessa certeza consoladora, adormeci, con­fiante.

13 - O PASSE

Demorava-me sob as bênçãos da medita­ção salutar quando o dr. Cléofas retornou, no dia seguinte, constatando que a noite de re­pouso me fizera um grande bem. Fazia-se acompanhar de um rapaz, em cujo rosto a bon­dade se espraiava dadivosa.

— Apresento-lhe o jovem Adrião — falou o Médico com um gesto cativante.

Apertamo-nos as mãos e, envolvidos pelo halo de simpatia recíproca, escutei o Benfei­tor prosseguir, elucidando:

— Trata-se de companheiro que se dedica ao serviço de refazimento espiritual, median­te a contribuição socorrista de passes.

“Portador de nobres qualidades — infor­mou, solícito, o dr. Cléofas —, desde há muito se dedicou o jovem amigo ao sacerdócio do amor entre os enfermos e, conosco, sob as bênçãos de Jesus, atende ao programa da fraternidade, doando-se integralmente.”

Desculpando-se, delicado e discreto, das palavras de carinhoso estímulo do velho obreiro, o rapaz, que poderia ter sido um filho muito querido do meu afeto, acercou-se do leito quente e macio, falando-me com naturalidade espontânea:

— A visão feliz do abnegado Instrutor enxerga-me com recursos que realmente não possuo. Aqui me en­contro atendendo a imposições do dever. Trânsfuga da lei, em muitas etapas, sou hoje agraciado com a dádiva de oportunidades educativas que não posso menosprezar para a minha própria recuperação mo­ral. E, nesse sentido, tenho aqui recebido as maiores contribuições para o meu programa iluminativo de ascensão.

“Em diversas ocasiões — e olhou com expressiva vivacidade para o Médico silencioso e jovial — cheguei a recintos de socorro qual beduíno perdido e desar­vorado, carregando aflições e andrajos, coberto do pó dos desenganos e ferido pelo sabre impiedoso dos erros ultrizes. Não fosse a bondade do Vigilante In­cansável que me tem conduzido a este Plano de me­ditação e trabalho...”

Enxugando uma lágrima que lhe deslizou pela face, continuou:

— ... o infinito amor de Jesus Cristo, Nosso Senhor, porém, tem-me acolhido, retirando-me do infortúnio de mim mesmo, e essas mãos, que tantas vezes fo­ram utilizadas para a futilidade e o crime, agora se estão voltando para a tarefa justa de aplicação sadia, no serviço construtivo.

Silenciando, momentaneamente, continuou, mu­dando de assunto, sob as vistas compassivas do Be­nemérito Médico Espiritual:

— Sei que a irmã Otília, quando na Terra, foi espiri­tista convicta. Não desconhece, portanto, o quanto representa em responsabilidade o seu esponsalício com essa Doutrina, renascimento do Cristianismo pri­mitivo. Naturalmente, ligada a uma Organização de Assistência Social, traz consigo créditos que não se­rão esquecidos, graças aos esforços em favor dos pequeninos. Todavia, por enquanto, o seu estado pe­rispiritual não difere muito da situação em que se en­contram outros enfermos, aqui igualmente hospitali­zados, dependendo, a sua recuperação, dos esforços envidados na observância das prescrições que lhe serão ministradas.

— Já falei ao nosso Enfermeiro — explicou o dr. Clé­ofas — do seu caso e quais os recursos que devem ser movimentados para a sua medicação.

— Como é do seu conhecimento — prosseguiu Adrião, com muita lucidez —, todos os males proce­dem da mente”, quando desorientada. Assim sendo, as enfermidades são decorrência natural do mau uso da saúde e, naturalmente, da desorganização men­tal. Só as mentes habituadas a exercícios disciplina­res e educativos podem reunir recursos equilibran­tes para a manutenção de uma vida sadia. Já o velho ensinamento dos latinos traduz essa afirmativa, refe­rindo-se ao corpo são, mantido por uma alma sã.

Animada pela bondade do moço, formulei uma indagação em torno de assunto de que muito ouvira falar, repetidas vezes, quando encarnada:

— Poderia o bondoso amigo esclarecer-me algo a respeito da Ioga e dos diversos processos de menta­lização praticados pelos esoteristas, considerando-se os seus esclarecimentos há pouco enunciados?

— Naturalmente — respondeu-me. — Explico-me. A utilização da mente é o medicamento e a ginástica mais proveitosa para o espírito. Amar, servir, ajudar, edificar pela superação da comodidade, vencendo os filetes perigosos que nos invadem, em forma de cóle­ra, tristeza, inveja, queixa, é realizar exercício salutar. Nesse sentido, o Evangelho é um curso valioso de Educação Mental, à base do otimismo. Não deseja­mos aludir à cristalização mental em idéias nobres e belas, vibrações edificantes e generosas, distantes, todavia, da ação positiva, real e produtiva.

“Remontemos historicamente a algumas valiosas lições. “Zoroastro e seu primo Metyoma, quando da com­pilação do livro sagrado dos persas — o Zend-Avesta sintetizaram num programa simples o roteiro da sal­vação: Pensar com justiça e “aguçar a mente na pe­dra da experiências”, sentindo as penas alheias e ale­grando-se com as alegrias do próximo; falar com jus­tiça, fazendo da palavra um meio positivo, combaten­do o mal e defendendo a verdade, ajudando o fraco; depois, porém, de ter aprendido a pensar bem, a fa­lar com justiça, deve o homem, preparado como está, AGIR bem.

“Posteriormente Jesus conclamou-nos, no progra­ma singelo do amor e da caridade: — “a quem te pedir a túnica, dá igualmente a manta; a quem te pedir ca­minhar mil passos, segue dois mil”... ao serviço posi­tivo, pela ação valiosa e nobre. “Depreendemos que pensamento e ação são as linhas mestras da vida libertadora, para a felicidade geral da grande família humana. Entendeu?”

— Sim — respondi, emocionada.

— E a Ioga — exclamei, ansiosa —, realiza o aprimo­ramento da alma, consoante apregoam os seus afici­onados?

— Em verdade — retrucou, atencioso — a Ioga ope­ra modificações valiosas na alma, graças à austeri­dade disciplinar dos seus exercícios. “Fundada na Índia, segundo a tradição, por Pa­tanjali, é um sistema filosófico que ensina ser o esta­do perfeito a contemplação, conseguida pela imobili­dade absoluta, o êxtase, através de rigorosas práti­cas ascéticas. “Embora o seu grande valor, quando a alma re­torna da imersão no oceano profundo da meditação contemplativa, continua sedenta de novo êxtase, de nova libertação, não resolvendo, portanto, o indevas­sado problema da paz. “Temos observado que o estado beatífico no mundo espiritual varia profundamente de quanto se acredita vulgarmente. Ninguém contemplará a Face Soberana por meio de vôos individualistas, nas asas da mentalização. É imprescindível resgatar as divi­sas que a Mãe Terra concede, no ativo processo de intercâmbio fraterno, ajudando o berço generoso que nos recebeu, a ascender conosco, igualmente.”

E procurando fazer-se mais compreensível, acres­centou:

— O cristão que se afeiçoa ao trabalho, em favor de todos, guarda inestimável patrimônio, entesouran­do preciosas moedas que lhe conferem a entrada no Reino da Ventura.

E dando novo rumo à palestra, acentuou:

— Iremos atender-lhe à organização espiritual, utilizando-nos dos recursos do passe, esse admirável au­xiliar ao alcance das nossas intenções socorristas.

“Como é sabido — esclareceu, paciente —, no pas­se movimentamos preciosos recursos que, infelizmen­te, entre os encarnados permanecem ainda inexplo­rados, embora as luzes que o Espiritismo tem proje­tado sobre o assunto. Todos somos dínamos gerado­res de energias poderosas, consoante a diretriz dada aos pensamentos. Pela mente, construímos ou derru­bamos, ligando-nos às correntes com que melhor afi­namos. Sendo a enfermidade uma resultante da harmonia do espírito no processo de ajustamento ao de­ver, considerando, ainda, as ações pretéritas e atu­ais, para que cessem seus efeitos, faz-se necessário anular-lhe as causas. Pela utilização dos recursos da prece, da paciência e da resignação, acompanhados de trabalho ativo, dispõe-se o paciente ao reequilíbrio da mente, pela situação de sintonia receptiva em que se coloca. Funciona, então, o passe, como medicação benéfica e estimulante. Daí a necessidade de se liga­rem psiquicamente, agente e paciente, às Esferas Ele­vadas, para que a permuta de simpatia e entendimen­to seja de positivos resultados. “Busquemos, neste momento, passar da teoria àprática, recorrendo às fontes poderosas do Bem e su­plicando as dádivas da misericórdia divina.”

Calando-se, o jovem amigo quedou-se silencioso e, em breve, parecia em profunda concentração, ele­vado aos Céus. Procurei, igualmente, reunir as energias de que dispunha, e a oração, fácil e consoladora, fluiu-me à alma.

Oh! minha filha, quanto bem faz à alma esquecer tudo no momento da prece e banhar-se nas águas benditas da esperança.

A prece é uma ligação de luz que envolve os es­píritos em aspiral ascendente. Rompe abismos e difi­culdades e, qual telefone sublime, conduz tao grau de felicidade, que não é facilmente entendida pelas deduções mentais em processos comuns. Só aque­les que lhe experimentaram a emanação dulçurosa nos terríveis momentos da inquietação, podem tra­duzir-lhe a concessão divina, ao retornar do mundo metafísico. Apaga preocupações e anula ansiedades, conforta o espíritO e o mantém confiante.

Em breve sentia-se banhada por branda lumino­sidade que se desprendia do compassivO socorrista que continuava envolto na vibração oracional.

Ergueu os braços e, com movimentos rítmicos das mãos, muito discretamente, aplicou-me os passes magnéticos.

Como se obedecessem à movimentação passis­ta, forças estranhas sacudiram-me a organização pe­rispiritual e todas as fibras pareciam penetradas por eletricidade em movimentação. Sentia que da região cardíaca laços fortemente atados se desmanchavam, oferecendo-me um estado de libertação. A respira­ção se me tornava menos torturada e a sensação de dor diminuiu consideravelmente. A aplicação não foi além de dois minutos, após o que, agradável torpor inundou-me toda, induzindo-me a sono reparador. Quando despertei, horas depois, respirava livre­mente. Adrião, sorridente, informou-me que a mesma operação se sucederia, por vários dias consecutivos, até que me encontrasse em condições de prosseguir com a movimentação do esforço próprio, segundo as instruções do dr. Cléofas.

14 - A COLÔNIA POR DENTRO

Diariamente, às vésperas, antes das ora­ções do anoitecer, o jovem passista me trazia, com a sua bondade assistencial, elucidações e apontamentos sobre a água fluida, os pas­ses magnéticos, as vibrações mentais, a pre­ce e todo um cortejo de valiosos temas que me rasgavam horizontes ao entendimento, aclarando-me a visão.

A justiça de Deus tornava-me mais amo­rosa e instruída, desaparecendo em meu pen­samento as falsas conexões à base de tabus interpretativos, quanto às diretrizes superio­res.

Depois de um mês de contribuição mag­nética freqüente, já me era possível movimen­tar-me pela sala singela, interessando-me, mais de perto, pelos problemas dos demais compa­nheiros hospitalizados, ora em alguma pequena assistência mais direta, enfim, nessas pequenas coisas tão insignificantes, e tão importantes entretan­to, para quem tem ânsia de recuperação do tempo perdido e busca iluminação interior.

Verifiquei, tão logo me desembaracei do cansaço e do torpor que me prendiam ao leito, que o Santuá­rio hospitalar, que me acolhia, longe estava de ser a decantada “Mansão do Repouso” com que tanto so­nhamos na Terra.

A palavra TRABALHO não era apenas um vocá­bulo, mas sim uma realidade construtiva e ativa em todos os lados. Os residentes pareciam divididos em misteres especiais e não me recordo de ter visto, até hoje, um semblante sequer, onde a inércia se desen­volvesse. Certamente, enfermos de todos os matizes guardavam o leito por tempo indeterminado. Toda­via, a movimentação dos próprios esforços muito con­tribuía para o despertar, libertando-os dos tentácu­los porosos da doença demorada.

Aqui e ali identificava rostos sisudos, preocupa­dos; expressões de saudade e dor entre transeuntes e enfermeiros; todavia, as bênçãos vigorosas do ser­viço a que se dedicavam pareciam anunciar-lhes me­lhores horas, em próximos tempos. E cientes de que o trabalho é mensagem divina, em contribuição be­néfica, guardavam todos, na expressão do olhar, a presença da fada Esperança, como mensageira da fe­licidade plena.

Aclimatada, na Terra, aos labores humildes de lim­peza e asseio, ofereci-me à irmã Zélia, em dia de gran­de movimento, para contribuir de algum modo com os deveres de manutenção da Enfermaria, onde me encontrava, experimentando, com a sua aquiescên­cia, indizível júbilo.

À medida que era atraida para esse serviço sin­gelo, estranho revigoramento tomava corpo dentro de mim, entusiasmando-me e fazendo-me esquecer as preocupações e angústias lancinantes que ficaram no espírito, com a distância colocada pela morte

Num desses dias de trabalho habitual, enquanto reparava as peças do leito de um dos companheiros, que se demorava em terrível pesadelo, fui surpreen­dida pelo incondicional amigo Adrião, que me animou, bem humoradO

— O trabalho — informou gentil —, é o poderoso eli­xir de longa vida que fortifica todas as esperanças e esponja que apaga todas as preocUpaçõeS. A alma que labora não é colhida pelas malhas das tentações da dúvida e do medo, ficando distante do barco fraco dos receios. Enquanto revigora, o exercício do dever bem cumprido estimula energias, antes esquecidas, a dormitarem na inutilidade. Reabastece a organiza­ção psíquica e imprime ao espírito uma razão ope­rante de lutar e vencer, proporcionando a felicidade do ideal.

E prosseguindo, com entusiasmo crescente, con­tinuou:

— Com Jesus, aprendemos que todo trabalho é honrosa incumbênCia, constituindo-se concessão uti­líssima de elevação para todos. O próprio Mestre, desde as primeiras horas na Carpintaria de José, onde se exercitava, ensinou-nos o melhor meio de valori­zar o tempo, em aplicação das horas nos serviços hu­mildes, como base das grandes tarefas.

“Trabalhe quanto lhe permitam suas forças — es­timulou-me com simplicidade —, sabendo que o tra­balho é o melhor medicamento contra a perturbação. Poupe, por enquanto, as energias mais valiosas, que serão úteis mais tarde e, pela aplicação sadia dos minutos, seu pensamento adquirirá roteiro disciplinar indispensável à utilização inadiável do porvir.

“E quando o cansaço tomar suas fibras — arrema­tou com encantadora jovialidade —, lembre-se de que o Senhor até hoje trabalha por nós, sem desfalecimen­to.

Estava radiante e grata. Concluída a pequena ta­refa a que me dedicava, dispunha-me a buscar a pér­gula à porta da Enfermaria, quando o zeloso com­panheiro se aproximou de mim, oferecendo-se discreto:

— Hoje é domingo e encontro-me com um saldo de horas livres. Desejo oferecê-las a você e acredito que seriam de utilidade se as pudéssemos aprovei­tar numa pequena caminhada até o parque de repou­so, nas cercanias do Hospital, onde encontraríamos motivos de entretenimento e refazimento espiritual.

Não me fiz rogada. Ao contrário, exultei de incon­tida alegria. Senti mesmo uma grande emoção.

Momentos depois estávamos em plena rua. O mo­vimento fazia lembrar o das zonas residenciais da Ter­ra, nos dias de repouso comercial. Silêncio agradável pairava no ar, quebrado somente pelo brando cicio da brisa na ramagem do arvoredo.

Era minha primeira marcha, além das dependên­cias do pavilhão onde me encontrava em tratamento e, por isso mesmo, tudo tinha um sabor inusitado e delicioso. Parecia-me estar no próprio paraíso. Rapa­zes e velhos, jovens e matronas trajavam-se com dis­crição e decência; as mulheres, com leves túnicas, for­mavam pequenos grupos; todos passavam conversando na mais fascinante cordialidade, tocados por emo­ção muito diversa das intempestivas paixõeS do de­sejo.

Demorava-me extasiada na contemplação da ma­nhã fresca, fitando os quadros coloridos da natureza que, aos ósculos do dia em crescimento, mudava as tonalidades de luz na moldura das nuvens, em cam­biantes variados e harmoniosos.

Não cessava de admirar as belezas do caminho ajaezado de miosótis e tufos de violetas perfumadas que serviam de tapete colorido a hortênsias rosas, azuis e brancas.

Com sorriso bondoso, AdriãO chamou-me a aten­ção para os transeuntes que me fitavam alegres, no­tando a incontida satisfação com que me movimen­tava, traduzindo-lhes a minha situação de recém-che­gada, como acontecera a eles próprios em ocasiões passadas.

Após três quartos de hora, aproximadamente, chegamos a magnífico parque, arborizado, com jar­dins perfumados, onde algumas centenas de pesso­as se agrupavam no mais cativante contentamento.

— Falam de saudades — disse-me o cicerone que­rido —, planejando reencontros na crosta, nos dias do futuro.

“A Colônia Redenção, como você sabe, é um re­duto de preparação, ou melhor, um hospital-escola, como informaram, onde os doentes se refazem apren­dendo a terapêutica da alma, em quadros vivos, nos quais são cobaias e pacientes, laboratório de ensaio e clínica de recuperação, para depois recomeçarem a luta no abençoado campo que é a Terra, nossa Mãe imcompreendida e inesquecida. “Daqui podemos valorizar devidamente a existên­cia planetária, na indumentária da carne. Enquanto nos demoramos na vestidura física, desrespeitamos a concessão do Senhor entre revoltas injustificáveis e paixões cansativas. Depois, quando despertamos para os valores imperecíveis, nossas atenções se vol­tam desesperadamente para o plano material, onde a felicidade nos acena, através das oportunidades de reparação. A Terra é a formosa escola de caráter e elevação. “Todos que aqui chegam — continuou com expres­siva tonalidade na voz — carregam débitos para com o planeta que lhes serviu de berço, propiciando o co­meço na imortalidade. Por isso mesmo retornarão ao cadinho das transformações morais. Ninguém pleiteie racionalmente a entrada no Céu, antes do concurso santificante da experiência terrena. Ninguém aguar­de felicidade pessoal e ascensão, enquanto seus pés estejam presos a compromissos no Orbe. “O nosso Céu é conseqüência da felicidade de muitos a quem azorragamos por tempo sem conta, nas folhas da história, em épocas passadas, não mor­tas, todavia. “A bondade do Excelente Amigo, por amor, con­cede-nos a evolução através das miríades de pousa­das que o carinho de sacerdotes lídimos da Caridade construiu à semelhança desta, onde o Seu calor se encontra próximo da nossa frieza e o Seu olhar mag­nânimo nos segue sem cessar. “A passagem evangélica, referente às muitas moradas na Casa Universal do Pai, também alude a estas estâncias de socorro, onde a alma escala o seu percurso ascensional evolutivo...

Nesse momento, um casal de velhinhos, em cu­jos semblantes a esperança parecia residir, acercou-se, sorridente. Tratava-Se do casal Romero, estudantes da Re­forma Luterana, e que, durante O ultimo estagio na Terra, se ligaram à Igreja ProteStante. O Sr. Romero desencarnara primeiro, por volta de 1932, e demora­ra-se na Colônia Redenção enquanto se refazia do túmulo. Despertando para a luz meridiana do Evan­gelho, constatando em si mesmo a imortalidade da alma e renovando conceitos em torno da vida, procu­rou, em constantes tentativas mediúnicas, despertar a companheira para o movimento espírita, vigente e florescente nas terras do Brasil. Aferrada, porém, à letra bíblica, Dona Aurora não abria uma fresta aos insistentes alvitres do compa­nheiro desencarnado, continuando no estreito corre­dor literal, esquecida de que “a fé sem obras é mor­ta” consoante a feliz observação de Tiago, o Após­tolo intransigente.

Desencarnando, uma década de­pois, chegara àquela Casa de Benemerência, escra­va da pretensão religiosa, exigindo o Céu a que pen­sava ter feito jus... Longo foi o seu processo de reajustamento e des­pertar. Todavia, crente honesta e sincera, ao aperce­ber-se das diretrizes novas que o evangelho lhe apon­tava, candidatou-se ao encargo mediúnico, em dolo­rosa provação, no seio de uma família ligada a uma das Igrejas Reformadas, para onde retornaria em bre­ve, pelo processo santificante da reencarnação.

Rapidamente, sentimo-nos os quatro fortemen­te afins e interessados pelas questões da Doutrina Espírita — poderoso norteador de almas —, conduzin­do a Senhora Romero a conversação para a minha úl­tima experiência terrena, após o que, igualmente emo­cionada, me narrou os fatos citados. Demoramo-nos reunidos até horas avançadas, quando o dia, pleno e estuante, dominava a paisagem, coroando a fraternidade naquele recanto aprazível, com a mensagem dourada de sua benéfica luz.

15 - NO DEPARTAMENTO ESPERANÇA

Preparávamo-nos para as despedidas quando a Senhora Romero nos convidou para breve repasto no Departamento Esperança, onde, às catorze horas, seria pronunciada uma conferência sobre a língua espiritual-interna­cional — o Esperanto —, para interessados nos problemas das comunicações entre as almas.

Dispondo, realmente, de tempo, o moço Adrião aquiesceu à gentileza e rumamos para o quarteirão verde onde se erguia imponente edifício de linhas clássicas, ornado de altas co­lunas.

O casal Romero, demonstrando conhecer a zona em que se localizava o prédio, condu­ziu-nos por alamedas arborizadas que termi­navam em belos jardins. No centro, verdejan­te estrela pentagonal, de fícus, em alto rele­vo, bordada de miúdas flores douradas, arran­cou-nos uma expressão de admiração à sua beleza.

— É a estrela que identifica o Esperanto — infor­mou o Sr. Romero —, tecendo entusiásticos encômios à língua universal.

Repuxos caprichosos derramavam graciosos flu­xos dágua formando no ar desenhos geométricos, ani­mados de movimento, entre canteiros artisticamente desenhados e cobertos de gerânios, rosas, cravos...

Galgamos a escadaria de mármore alvo, marche­tado de fragmentos verdes que lhe davam comunica­tiva beleza.

Rumamos para amplo refeitório onde um grupo de gárrulos jovens, aos pares, se comunicavam em algaravia contagiante.

Sem que eu pudesse compreender-lhes as pala­vras, o anfitrião que nos convidara explicou tratar-se de um grupo de almas que se candidatavam à reen­carnação em países sul-americanos, principalmente no Brasil, e que ali se encontravam em estágio de aprendizagem dos futuros idiomas pátrios, bem como do Esperanto. Conduziriam o emblema verde e o sím­bolo do Cordeiro, transmitindo às crenças das suas novas pátrias a mensagem do Espiritismo Consola­dor.

Dirigimo-nos a uma mesa bem disposta, e, após a apresentação da carteira de Esperantista, o Sr. Ro­mero, sem dificuldades, conseguiu que fôssemos ser­vidos de agradável repasto.

Feita a refeição, demoramo-nos a percorrer as de­pendências do amplo edifício e, surpresa, verifiquei tratar-se de um Educandário de grandes proporções, à semelhança das Universidades da Terra.

Impressionou-me, sobremaneira, a Biblioteca de amplas estantes abarrotadas de livros, na Língua In­ternacional, arrumados e catalogados, com lombadas brilhantes.

Esclareceu-nos o Sr. Romero que ali estavam to­das as obras em Esperanto que se escreveram na Ter­ra e outras que seriam oportunamente ditadas por via inspirativa, para o deleite do mundo intelectual.

— Embora o Esperanto não tenha pátria nem seja uma língua de caráter religioso — informou o cicerone —, será, no futuro, o grande mensageiro do Espiritis­mo para a Humanidade, como já acontece no Brasil com as primorosas traduções que, de algum tempo para cá, se vêm fazendo com as Obras da Codifica­ção e outras psicografadas.

“Alguns dos livros em Esperanto que hoje se en­contram na Terra já eram aqui conhecidos, como sido escritos por ex-alunos do Educandário, hoje reencar­nados...”

Aproximamo-nos do Auditório. Era um amplo sa­lão de linhas austeras com quatrocentos assentos, aproximadamente.

À hora aprazada, depois de algumas músicas can­tadas em Esperanto, assomou à tribuna simpático ca­valheiro de meia-idade, que iria proferir a conferên­cia anunciada.

— É velho espiritista mineiro, desencarnado há al­gum tempo —, esclareceu a Senhora Romero, sentada ao meu lado. — Dedicado trabalhador da Causa do Amor Universal, demorou-se, enquanto na Terra, ao estudo e prática do Espiritismo e do Esperanto, des­fraldando muito alto a bandeira da Fraternidade. Aqui chegado, continua o mister de difundir os postulados esperantistas e espiritistas, oferecendo o melhor labor à preparação de almas para as grandes jornadas do futuro.

É-me impossível, por circunstâncias de vária or­dem, traduzir as magníficas expressões do inspirado orador. A palavra fácil escorria-lhe dos lábios aos nos­sos ouvidos, como música bem modulada. Entre ou­tros enunciados esclarecedores, assim se expressou o conferencista:

— Após os tumultuosos dias que culminaram, na Erança, com a eleição de Carlos Luís Napoleão Bonaparte para presidente da República, e que, posteriormente, degeneraram na sua proclamação a Impera­dor, o mundo receberia, através de Allan Kardec, O Livro dos Espíritos, em Paris, e na cidadezinha polone­sa de Bjalistok surgia a alma luminosa de Lázaro Lu­dovico Zamenhof. Descendo ao vale humano logo após as sanguinolentas lutas levadas a cabo pelo insolen­te Imperador francês com o imenso Império Moscovi­ta que então dominava a Polônia, tantas vezes dividi­da entre a Áustria, a Prússia e a Rússia, Zamenhof conduziria a flâmula ardente do ideal da compreen­são humana, para desfraldá-la, mais tarde, vestida da mensagem imperecível do Esperanto, o demolidor dos bastiões lingüísticos. Do seio da escravidão desse povo sofredor, que vivia no tumulto de línguas e dia­letos que reunidos somavam a mais de duzentos, o mundo receberia, como recebeu, a 15 de dezembro de 1859, o Missionário do Idioma Internacional.

“Constrangido por uma série de circunstâncias de meio ambiente e obsoletas idéias, Zamenhof sentiu a inspiração banhar-lhe a alma de desbravador, e, ante as injustiças que seus olhos diariamente contempla­vam, na forma de chicote no dorso nu das gentes de sua raça (judia), compreendeu a imperiosa necessi­dade de romper as barreiras que separavam os ho­mens, as raças, as religiões, através de algo que fos­se comum a todos, como auxiliar indispensável à Fra­ternidade que lhe fascinava a alma e o coração.

“Assim, entre longas meditações e demorados exercícios, conseguiu, com inauditos esforços, evocar, arrancando da tela da memória, como em processo quase adivinhatório, os vocábulos, raízes e fonemas, das línguas mais faladas no mundo, construindo “o Esperanto”, que significa: “o que espera”, atestando sua robusta força de confiança no futuro...

E mais adiante:

— Depois de inauditas dificuldades — prosseguiu o erudito orador —, retornando de Moscóvia para onde rumara a fim de doutorar-se em Medicina, teve a imensurável angústia de saber que seu pai, zelando pelo bom nome da família, incinerara aqueles papéis que, acreditava, fossem apenas o fruto imaturo do cé­rebro incendido de jovem inexperiente e entusiasta.

“O gigante, porém, não tomba ante dor tão gran­de. Antes, levanta-se e recompila, com mais acendra­do amor, a obra monumental que o imortalizou nas sendas do porvir. Com 28 anos de idade, lança seu primeiro livro, filho de incansáveis labores, e o mun­do desperta para uma nova era. Zamenhof informa­ria, mais tarde, que a atitude de seu pai somente lhe conferira ensejo de revisar, aprimorar, fortalecer o Es­peranto, sendo, portanto, um grande bem antes que um mal.”

O versado conferencista prosseguiu, fascinante, tecendo comentários em torno do Esperantismo, en­cerrando sua memorável narrativa com a seguinte pe­roração:

— Estudar o Esperanto, ensiná-lo e amá-lo é con­tribuir para a felicidade dos povos, construindo a fra­ternidade no imo de todos os seres.

“Sintonizados, pelo co-idealismo esperantista, com nossos irmãos de outras cores religiosas, alarguemos os domínios da Tolerância preconizada por Allan Kardec, amando e servindo a todos, indistinta­mente, aprendendo, pelo caminho da humildade, a respeitar todos os credos como roteiros iluminativos da alma, ante a nossa Doutrina de fé impersonaliza­da. “Ergamos alto a verde bandeira do nosso Ideal, como lema de união e entendimento! “Ridicularizados, continuemos! “Injustiçados, prossigamos! “Retendo nalma a certeza de que aquele “que espera” alcança, avancemos imperturbáveis. Ensi­nando e desculpando, como aquele que, vencendo o próprio “eu” vence as barreiras da intolerância e do vício, favorecendo a Humanidade com a melhoria pes­soal, ajudemos o mundo com as bênçãos dadivosas da Esperança!”

Encerrada a palestra, demandamos o jardim.

Guardamos no íntimo, como jatos de luz que nos davam melhor visão, as palavras ouvidas. Vibravam em nossos ouvidos os últimos hameios da agradável melodia entoada por todos, ao encerramento da reu­nião.

Recordava-me de ter escutado falar, vagamente, sobre o Esperanto, enquanto estivera na Terra. Jamais supusera, entretanto, que essa reunião de fonemas fosse a Grande Mensagem de Jesus ao mundo seden­to de compreensão. Ao nos despedirmos, reconhecidos, do casal Ro­mero, retornamos à Enfermaria, jubilosos, Adrião e eu.

16 - O TEMPLO DE COMUNHÃO COM O ALTO

Filha do meu coração, enquanto me demorava na Terra, recor­do-me de ter ouvido, em versos, o roteiro da felicidade, mais ou menos assim traçado: “essa felicidade que supomos... toda arreada de dourados pomos, e nunca a pomos onde estamos

E muita vez me perguntei se, em verda­de a felicidade existia. Hoje, após a claridade da sepultura, posso afirmar-te que a felicida­de existe e encontra-se ao alcance de quan­tos a queiram fruir. Sucede somente que, en­quanto a buscamos fora de nós, não a encon­tramos, porque a felicidade está dentro de nós, onde raramente a buscamos.

Para o homem comum a felicidade resu­me-se no problema da posse. Possuir ou não, ser dono de algumas moedas ou escravo de alguns milhões, eis o que comumente se acredita como felicidade. Alguns anseiam pelo gozo que a posse pode comprar. Outros se tranqüilizam com o que a posse já adquiriu. No entanto, tem-se consta­tado que não são felizes os que possuem a riqueza. A felicidade não é uma conseqüência do que se tem ou se deixa de ter. É uma construção íntima que de­pende da nossa atitude de encarar o que temos ou o que deixamos de ter. Muitas vezes, quem possui algo, torna-se dominado pelo que tem, assim como outros, que nada têm, se tornam escravos desse “nada ter”.

Quando Jesus nos falou da “pureza de coração”, ensinou-nos a adquirir tesouros inalienáveis do espí­rito, com os quais o homem é feliz.

Essa realidade, eu a compreendia agora. Embo­ra as circunstâncias em que transcorrera minha exis­tência física, podia, lentamente, ir adquirindo a felici­dade tão sonhada, através do descobrimento da fa­culdade essencial da alma: o amor. Com o amor po­demos aprender a ser puros de coração, exercitando essa pureza nas ações que o amor impõe.

Na Colônia, entre os demais sofredores, desco­bria o Amor de Jesus vestindo almas enregeladas pela indiferença, consolando corações revoltados, so­correndo espíritos desanimados. E um alento novo me animava iluminando minhas horas de meditação e pre­ce.

A cordialidade dos companheiros ensinava-me a fraternidade, exercitando meu espírito no roteiro da compreensão. O cooperativismo era uma realidade vibrante, entre todos. A semelhança de abelhas ope­rosas em colmeia disciplinada, todos trabalhavam ju­bilosos. O tempo transcorria cheio de esperança que se renovava.

No domingo seguinte, o amigo Adrião, em nome da Senhora Zélia, veio buscar-me para as orações em conjunto no Templo de comunhão com o Alto. Eram quase dezoito horas e o Sol derramava sua luz sobre a Terra, em poente dourado. A natureza emoldurava-se do ouro esvoaçante e púrpura, transformando-se numa tela de indescritível beleza.

Em breves minutos, fizemos o percurso entre o jardim de repouso e a praça Central, em cujo logra­douro se erguia o Santuário. Esperava-me o casal Ro­mero, que se tornava interessado no meu progresso espiritual e na adaptação à Colônia.

Guardava ansiedade crescente na medida que chegávamos ao recinto reservado às orações coletiv­as. Estava acostumada a freqüentar redutos de orações e igrejas, na Terra; todavia, a oportunidade que se me apresentava era, em tudo, diferente dos ense­jos antigos. Conhecia mais de perto o valor da prece e podia aquilatar os benefícios poderosos dela decor­rentes. Além disso, a ocasião oferecia-me nova opor­tunidade de comunicação com grande número de Espíritos que, à minha semelhança, se encontravam em processo de reajustamento e aprendizado.

A visão do Templo, de linhas austeras, destaca­va-se dos demais pela alvura das paredes e beleza clássica. Quadrangular, era de grandes proporções, fazendo lembrar velhas construções gregas.

Suaves harmonias envolviam a tarde em crepúscu­lo.

Largo hall cercado de colunas alvinitentes abria­se majestoso para o interior. Misturando-nos aos grupos que avançavam pe­las escadas brancas, nele penetramos e aos meus olhos ansiosos desdobrou-se a visão, imponente pela sua beleza, da Grande Casa de orações. Silêncio elo­qüente dominava o recinto, embora se encontrasse quase literalmente lotado. Agradável sensação de bem-estar se comunicava entre todos, infundindo profundo respeito.

Adrião, afeito ao culto da prece no austero recin­to, conduziu-nos, com prestimosa bondade, às pol­tronas laterais, donde podíamos descortinar todo o panorama. Era, sem dúvida, um dos celestes depar­tamentos reservados ao abastecimento das almas que granjearam méritos nas romagens sucessivas.

Enquanto assim eu pensava, o carinhoso amigo, que parecia comunicar-se com os meus colóquios ín­timos, interrompeu-me as conclusões apressadas e, sem afetação, no tom familiar que o caracterizava, esclareceu:

— Sem dúvida, minha irmã, todo lugar, em qual­quer parte, reservado ao Apostolado do Bem, é um departamento da Mansão Celeste. Mesmo nas regi­ões mais primitivas e incultas, constatamos a augus­ta bondade de Nosso Pai, que se utiliza de todo o ma­terial para a assistência misericordiosa das almas. Aqui é a disciplina educadora, noutra parte é o reco­meço coercitivo, mais longe são os sofrimentos em admoestações constantes.

“Este recinto é um santuário reservado ao culto da prece, onde podemos comungar com as Esferas mais Elevadas; no entanto, é igualmente reduto de meditações, escola de aprendizagem indispensável, onde recolhemos material doutrinário para a devida utilização, oportunamente.

“Como é sabido — continuou, pausadamente —, as telas da memória tudo recolhem, guardam, arquivam, selecionando ruídos e vibrações, para um dia devol­ver ao consciente, no devido lugar e na legítima acep­ção em que foi catalogado. Muitas vezes, padece-se de perda das lembranças. No entanto tal fato, de ca­ráter facilmente compreensível, é conseqüência do mau uso da faculdade retentiva, em vidas pregres­sas. A memória exercitada na astúcia política dos in­teresses imediatistas ou utilizada para recordar o “lado mau” das pessoas e fatos, perde a sua função nobre e enseja o crescimento de males que virão ator­mentá-la, mais tarde. Apesar disso, nada se perde; e como o espírito somente evolui pela prática e pelo exercício das virtudes, em múltiplos embates, a me­mória guarda as aquisições valiosas para as horas próprias da ascensão.

“Os apontamentos aqui recolhidos — continuou com naturalidade fascinante —, pela nossa ansieda­de, incorporam-se ao patrimônio de que já podemos dispor, ampliando ou esclarecendo os conhecimentos adquiridos para engrandecimento dos nossos recur­sos. Muitas lições, aqui ventiladas, recordam nossas quedas e fracassos, gritando alto em nosso espírito o apelo para as repetições reparadoras. Entretanto, a nossa Colônia é ainda Casa de Recuperação — mais hospital de emergência — onde a vigilante caridade do Céu recolhe desequilibrados que, se deixados no orbe a pervagar, entrariam em afinidade com encar­nados, sobrecarregando-os de dolorosos problemas, além dos que, por Lei purgativa, lhes cabem no rea­juste de si mesmos...

E encerrando os esclarecimentos, oportunos ali­ás, ratificou os argumentos, informando:

— Constitui-nos bênção imerecida, cada encontro sob a abóbada acolhedora que ora nos agasalha.

Só então olhei para cima e notei, surpresa, que o teto era realmente abobadado, rompendo-se em li­nha circular quando próximo à tribuna reservada ao parlamentário, situada sobre estrado atendido por seis degraus. Podia-se então distinguir uma pérgula ornada de rosas trepadeiras que bebiam as dádivas da noite que se avizinhava.

Suave perfume brincava no ar, carregado por ven­tos brandos. Nesse momento ouvimos o canto coral que pre­parava o ambiente para as orações. Ali se encontra­vam criaturas que pertenceram a várias correntes re­ligiosas da Terra.

Quando as vozes se quedaram, verifiquei que a emoção que eu experimentava era generalizada, porqüanto muitos choravam discretamente. A esse tem­po, respeitável ancião, envolto em alva túnica, debru­ada de azul, recordando venerável sacerdote de épo­cas mui recuadas, assomou à tribuna, ante a vibra­ção de simpatia geral.

— É o irmão Policarpo — murmurou Adrião, ao meu ouvido.

Com pausada voz, vibrante e melodiosa, come­çou o Instrutor:

— Irmãos, muito queridos,

seja conosco a paz do Cristo a Quem temos a hon­ra de amar e servir.

“Entoemos nosso cântico de júbilos por nos en­contrarmos na oficina redentora onde somos convi­dados a forjar, com sacrifícios renovados, a felicida­de antes malbaratada, por imprevidência e precipi­tação. “Nossa condição atual de Espíritos desencarna­dos, embora a diversificação de rotulagem religiosa, não difere muito do que fomos: nem anjos, nem de­mônios, mas homens, almas em aprendizagem segu­ra, apenas despojadas da carne. “A matéria que deixamos recentemente e que, du­rante algum tempo, foi motivo de queixas e impreca­ções, é o nosso abençoado campo de luta. Ninguém ascenderá sem o resgate com as sombras do passa­do, na Terra. Embora as ânsias de evoluir em alguns e a saudade cruciante em outros, a reencarnação é-nos ainda bendita oportunidade de evolução, através da qual espalharemos o cimento divino no solo das pró­prias cogitações para a construção eterna. “Por mais procuremos esquecer, ainda somos aquelas almas que ouviram as mensagens celestes pela boca da iniciação esotérica, na recuada Índia, no longínquo Egito, na remota Caldéia, na antiga flo­rescente Israel, abandonando imediatamente as ins­truções recebidas, descendo ao seio dos grandes rios, distendendo fronteiras de guerras, saquean­do e matando, em nome de mentirosas hegemoni­as políticas.

“Emocionados junto aos venerandos mistagogos, fascinados pelas revelações de Brama aos richis, des­lumbrados ao clamor das Vozes nas bocas de intér­pretes da Mensagem, tudo esquecíamos na ânsia do poder e da dominação. E depois do Mártir Nazareno, quantos continuamos na mesma tormenta de antes? “Pelas sendas da cobiça ampliamos o campo de batalha, invadimos lares honrados, poluimos famílias inteiras, dizimamos cidades... Cobrindo o pó das sandálias de Átila, Alarico, Gengis Khan ou, antes deles Alexandre, César... procuramos matar a sede de do­minação, com o sangue dos vencidos. E até o momen­to, vibram, em muitos de nós os monstros da animo­sidade, aguardando apenas o instante de crescerem, escravizarem, destruírem.

“Não tenhamos a louca pressa da libertação im­possível. É enganosa a felicidade solitária, enquanto vítimas e adversários de nossos Espíritos gemem em regiões desoladoras, imantados a ódios seculares ou atados a postes de dor inenarrável, suportando atro­zes padecimentos, devastados pela ânsia da vindita, aos quais temos de oferecer o concurso da nossa re­núncia salvadora. “A serenidade, que ora nos visita, representa uma trégua em nosso campo armamentista. E uma contri­buição da Misericórdia de Acréscimo, do Conquista­dor Inconquistado, que nos possibilita o ensejo de aprender para reparar, proporcionando-nos os instru­mentos do amor para o refazimento dos caminhos destroçados. Utilizemo-nos de tais graças e, no exer­cicio da meditação, esforcemo-nos para a realização mental de elevados ideais na matéria, a fim de que, ao soar o apelo de chamado ao retorno, não apresen­temos, vazios de sacrifícios, os celeiros de nossas dis­posições.

“Não aguardemos, porém, quando de partida para o terreno a recompor, comodidade sem priva­ções nem provações, amparo do entendimento, coo­peração da ternura, acompanhamento da felicidade, recompensas a que não podemos aspirar.

“O lavrador que se dispõe à sementeira, primei­ramente lavra o campo em fadigas incessantes, so­frendo, com as dores da terra, muitas dores. Depois, quando o solo está preparado, pensa em lançar sementes. “Assim também, não procuremoS lançar as se-mentes das nossas boas intenções, antes do traba­lho de destocagem e remoção de obstáCuloS. Os pri­meiros tempos nunca são fáceis. As grandes noites não permitem, aos que nelas vivem, a possibilidade de agradecer os primeiros jatos de luz. Estes, antes de beneficiarem, cegam aqueles que estão desacOstumados à sua claridade, produzindo cho­que. “Os grandes ódios, cercados do cortejo de vin­ganças e revides, não podem receber o penso medi­camentoso do entendimento e do amor, e submeter se rapidamente. “Reparação traduz participação. “Reparar o passado é sofrer-lhe as conseqüências. “Nossas vítimas ainda sofrem e, estando conos­co no caminho, em cada gesto nosso recordarão das traições, hipocriSiaS, armadilhas doutrora, revidan­do, contra o nOSSO carinho, com a rispidez, com a cólera... Não estando capacitados para um perdão que lhes foi negado, quando o suplicaram, não nos podem amar, e vêem-nos como lobos rapaces, ves­tidos de mansos cordeiros. E, de certo modo, têm razão...

“Deste, como de outros redutos de refazimento, diariamente partem viajoreS aos milhares, levando as marcas de seus compromissos com a vida incessan­te. Outros chegam desolados, carregando dores, sob indescritíveis flagelações. “Alguns seguem e tremem à frente da expectati­va feliz. Outros retornam como náufragos recolhidos, em desespero, nos escolhos da insensatez, no mar proceloso dos desequilíbrios. Vários, logo se encon­tram religados ao fardo material, desrespeitam os la­ços de santificante compreensão, reatando liames escravizantes, em afeições à base da ilicitude, retor­nando aos braços fantásticos do Moloc destruidor, jun­to de quem se comprazem, loucos. Afinam-se por invigilância a antigas afeições de desastrosos avata­res, seduzidos pelo contato com entidades malevo­lentes e irresponsáveis, para despertarem, mais tar­de, entre a insânia e a selvageria, adiando, indefini­damente, o processo de sublimação. Atravessam, en­tão, acerbas expiações, acolitados pela lixívia do tem­po, que através de milênios lhes reparam as arestas, dispondo-os novamente para os recomeços, exata­mente nas mesmas condições e circunstâncias em que fracassaram. E os insucessos se repetem...

“Ninguém burlará a Lei. Ela segue vibrante, co-fosco, no afã crescente de ajudar-nos, mas também de fazer justiça. Alma alguma será atendida em cir­cunstâncias especiais. “Não existem duas estradas: a de escabrosas ve­redas para uns, e outra alcatifada de conforto para outros. Todos seguirão o mesmo rumo, construindo o futuro com as atuações do presente. Não há para onde recuar. “Quando desejaremos, por fim, librar acima das vicissitudes? Só Deus o sabe! “De Jesus, nosso Modelo, temos advertências gri­tantes, no seu Testamento de luminosos alvitres. “Guardamos nos refolhos dalma o exemplo que marcou a História, beneficiados que ainda somos pelo calor da Sua luz e pela compaixão infatigável do Seu coração.

Ouvimos ainda a Sua voz, de mil modos, no co­ração e na mente, e no entanto permanecemos aguar­dando, cansados aparentemente, à espera de que Ele volte a morrer para nos animarmos ao trabalho e à ascensão. Será, então, crível que o Mestre desça no­vamente aos homens, apresentando-Se com a indu­mentária física, para refazer a via do Matadouro?

“Não, meus irmãos, não é necessário! “Recordemos que o Senhor jamais se apartou de nós. Seu ensinamento é luz em nosso caminho, au­mentando-nos as responsabilidades, principalmente quando esposamos qualquer rota de fé, nos diversos departamentos do Cristianismo.

“A Mensagem do Cristo permanece repetindo, in­cessantemente: “Buscai e achareis...” “Que mais desejamos? A Boa Nova não é apenas uma notícia a mais na História Universal. E da Histó­ria, todavia, muito maior do que a História dos tem­pos. “Além de notícia-lição de despertamento é, igual­mente, via libertadora. E nisso difere de todas as no­tícias chegadas ao mundo. Concita o homem a erguer-se, sacudir o pó do comodismo, reunir ferramentas para a realização e partir resoluto. “Antes da vinda do Mestre, acreditávamos no ar­rependimento inoperante e na compra dos favores celestes mediante oferendas e sacrifícios que aten­diam apenas a sede de espíritos infelizes que se com­praziam com a ignorância e a estimulavam. Com Je­sus, todavia, aprendemos que o sacrifício “que mais agrada a Deus” e o da própria imolação pela renún­cia pessoal, e da luta iluminativa, em favor de todos.

“A busca referida pelo Evangelho é veemente con­vite ao trabalho e não à procura ociosa. “Quem se erga resolutamente, enfrente os fan­tasmas que giram em torno de seus ideais e vença os óbices, terá encontro marcado. “Guardemos, assim, no espírito ansioso, o desejo de buscar a Vida Superior, vendendo as valetas do “eu” enfermiço, e, certamente, a Vida Maior será en­contrada, favorecendo-nos com a paz dos justos e a felicidade dos eleitos.”

Calou-se o ancião venerando. Todos guardamos solenemente as preciosas palavras no espírito. Sen­tia-se a geral preocupação, no ar, misturada àquele senso de responsabilidade que é apanágio das almas em despertamento, sob o aguilhão da dor. Alguns, como eu, emocionados, chorávamos, re­cordando, talvez, a condição de náufragos ali acolhi­dos.

Em seguida, jovem pucela ergueu-se e melodio­sa harmonia encheu o recinto de vibrações dulçuro­sas. Com surpresa, reconheci Susana. O venerando velhinho proferiu a prece que lhe bro­tava dos lábios e do coração, como lírios da terra fér­til das emoções e desatavam, em cascatas, vibrações renovadoras. Flores em forma de taças, transparentes e colori­das, voejavam no ar, como borboletas, caindo abun­dantes.

Ao mais leve contato, desmanchavam-se su­avemente, penetrando nos poros. No alto brilhavam as estrelas como olhos de an­jos engastados na cúpula do firmamento. Estava encerrada a reunião. Abandonamos o abençoado auditório e, silencio­sos, retornamos ao seio dos nossos agrupamentos.

17 - OUVINDO E APRENDENDO

Minha filha, somente poderás saber como são conso­ladoras as promessas do amanhã, através das atividades da hora presente, quando as diri­gires a elevados objetivos. Aproveitar o tem­po, com sabedoria, é muito expressivo. Rara­mente compreendemos a sua legítima valori­zação.

A vida espiritual é muito semelhante à cor­poral, muito embora, como disse esclarecido companheiro, “a vida daí não seja semelhan­te à daqui”. Todavia, no mundo da erraticida­de, o Espírito pode adquirir elucidações e en­sinamentos que não pode desdenhar, à vista da preciosidade de que são portadores. En­quanto caminhamos na carne, não dispomos dos cuidados especiais, necessários à obser­vação dos fatos, situando-os nos devidos lu­gares, como doações celestes a nossos espí­ritos sequiosos das mensagens que nos são dirigi-das, transferindo-os para o próximo e jamais aceitando-os como roteiro para nós mesmos. Na vida espíri­ta, porém, isso não é possível, porqüanto, despertos para a verdade e sedentos dela, procuramos, em cada acontecimento ou narração, aparentemente sem im­portância, o que nos possa ser útil, de modo a apazi­guar os conflitos íntimos e diminuir as aflições do ar­rependimento.

Dentre essas lições silenciosas, a que mais me tem falado é a do trabalho humilde e significativo que me coloca em frente de mim mesma, desnuda de apa­rências e formalidades, ensej ando-me acuradas me­ditações sobre a expressão do Mestre: — “e o Pai até hoje trabalha

Recordo-me, hoje, de haver lido, quando na Ter­ra, que “o trabalho ainda é a melhor forma de fazer o tempo passar”, o que, realmente, tem muita signifi­cação. Não é meu desejo dizer que se deve encontrar no trabalho um meio de libertação do tempo, fazen­do-o correr, mas, exatamente o contrário: fazer o tem­po passar, com o auxílio do trabalho, implica em apro­veitamento nobre desse tempo.

Encontrei no trabalho, como disse, um verdadei­ro lenitivo, minha filha. No entanto, tal lenitivo não es­tava nas grandes realizações e sim no trabalho sin­gelo, de pouca valia, de pequena monta, cuja obra ninguém vê, que não opera resultado imediatamen­te, nem apresenta benefícios facilmente identificáveis.

Tenho-me dedicado aos trabalhos de experimen­tação e aprendizagem, aos serviços de auxílio e de limpeza, da compaixão e da prece e, principalmente, da “gota dágua”, servindo nessas mil pequeninas coisas. Comentou-se, recentemente, no Círculo de ora­ções, quanto ao valor das pequenas coisas, dessas re­alizações quase sem valor, e um mundo novo se abriu ao meu atônito entendimento.

Velho trabalhador da Seara de Jesus, na Terra, apresentou, nessa animada converSação, aquilo que denominava como “minhas humildes sugestões” em torno do importante assunto, com inflexão de carinho na voz:

— Nas coisas mínimas — iniciou ele a conversação edificante — está a grandeza das máximas. O Univer­so, como patrimônio do átomo; e este, como filho da energia. Tudo gravita dentro de nós e fora de nós como resultado da partícula invisível, em graciosos movi­mentos de atração, coesão e repulsão.

E descendo as suas observações a assuntos mais comunS, asseverou:

—O discurso brilhante é o resultado da palavra que se arrima a outra palavras em arranjos graciosos.

“A palavra burilada é nascida da sílaba modesta que se ampara noutra. Esta, por sua vez, é filha da letra que renuncia a individualidade e se liga a outra, para contribuir no conjunto. “O pão suculento e apetitoso, saindo do trigo mer­gulhado na terra silenciosa e escura; a estrada con­fortável, por onde a comodidade roda, acolchoada em automóveis de luxo, como patrimônio da pedra ponti­aguda que se submeteu à máquina pesada, ou do asfalto de desagradável odor que se solidariza com o solo, em União valiosa; o ar que se respira, a água que se bebe, SãO expressões grandiosas das pequenas coisas, nas grandes realizações. “Nas cidades, o repouso da sociedade depende da vigilância de anônimos servidores noturnos. “A saúde é amparada, graças às mãos que cole­tam lixo.

O banditismo e o crime reeducam-se em Colôni­as Agrícolas Penais sob a assistência de homens que renunciam aos prazeres das vias movimentadas, na condição de guardas e zeladores. Da mesma forma, o farol derrama advertência, na noite escura, em avançadas pontas de terra ou ilho­tas esquecidas nas costas marinhas, assistidos pelo sacrifício de alguns homens sem nome. “A dama embriagada de vaidade que volteia nos salões festivos, coberta de sedas e tules, não recor­da a operária que, talvez chorando sobre o rico vesti­do, ao peso de amarguras e problemas, foi a realiza­dora da obra que lhe adorna e embeleza o corpo. “A estátua reluzente, que imortaliza em mármo­re as grandes vidas, guarda o nome do escultor, mas esquece o pedreiro humilde que lhe preparou a base com barro modesto, sustentando-a na praça. “O Hotel luxuoso, onde a vaidade se exibe, man­tém a nobreza do nome, felicitado pelo silêncio de arrumadeiras diligentes e submissas, bem como de modestos limpadores de pratos onde as iguanas des­filam. A jóia que fulgura em pedantif adornado, relu­zindo, não conserva o nome daquele que, em renún­cias e imposições continuadas, demorou no garimpo, talvez, a existência inteira.

“Enfim, a proliferação da vida vegetal, através do minúsculo pólen, e o homem, surgindo no pequenino óvulo...”

E sorrindo, arrematou com agradável humor:

— A grande caminhada nasce no primeiro passo; o tecido se origina no fio, o corpo humano na célula, assim como todos os corpos e o Universo incomensu­rável na vibração amorosa de Deus.

“Podemos esquecer as pequenas coisas e as coi­sas humildes. Nunca, entretanto, embora desrespei­tando-as, dispensá-las.”

Na conversação da nossa Enfermeira, na arruma­ç ão dos leitos e no amparo fraternO, com sorriso com­preensivo e prece socorrista aos companheiros de dor — conforme aludi —, encontrei-me a mim mesma.

Ao contato desse trabalho abençoado pude co­nhecer o infortúnio dos irmãos agasalhados pela Ca­ridade e misturar, com as suas, as minhas lágrimas e dores, aprendendo inolvidáveis lições que me alarga­ram os horizontes do esclarecimento, qual luz que penetrasse em grota escura e a libertasse discreta­mente das trevas e dos seus repelentes habitantes.

Aqui é a filha obsidiada pela recordação tortu­rante da ingratidão que fez sangrar o coração mater­no, resvalando nos abismos do remorso que a sepul­tura libertou... Ali é o médium que negligenciou com as sagra­das tábuas do intercâmbiO entre os dois mundos, aco­imado por memórias cruéis que o tempo não conse­gue apagar... Além é o marido infiel, que vivera empolgado pela sensualidade e hoje carrega o fardo da culpa, ao ter conhecimento do desespero da companheira que se atirou, invigilante e infeliz, à degradação, buscando derivativo e esquecimento...

Chorando, acolá, uma mãe descuidada dos sagra­dos deveres recorda, transtornada, a aplicação da eutanásia no companheiro, martirizado por enfermida­de atroz, supondo libertá-lo da dor, experimentando, agora, o clamor da consciência desvairada... adultério, lenocínio, roubo, assassínio, ciúme, ódio, gula, ambição e todo um séquito de misérias, são ali apresentados, no semblante desfigurado dos seus mais ardentes aficionados que no mundo rece­beram honrarias, mas de cujos crimes e tramas nin­guém soube.

A justiça conheceu alguns deles mas não pôde ou não quis puni-los com a morte; entretanto, os culpados não puderam fugir, evadindo-se da pri­são sem grades da consciência justiceira, em cujas teias e rédeas a Lei vigia incessantemente. Ouvindo e aprendendo. Ouvindo os comoventes estados dalma e aprendendo com alma para os es­tágios do futuro...

18 - A LOUCA

Eu fora informada de que naquela noite seria admitida em nossa Enfermaria, na Se­ção dos dementes, uma jovem Senhora, am­parada pela Caravana dos Mensageiros da Cruz após visita às regiões inferiores.

Aguardei o ensejo confiante na possibili­dade que me surgia de oferecer os meus cui­dados e assistência fraterna à doente.

Altas horas da noite, ouvi parar à porta o veículo que conduzia os enfermos. Corri para prestar auxílio e deparei-me com uma antiga carruagem, toda fechada, puxada por quatro corcéis brancos, de grande proporção. Enfermeiros prestimosos aguardavam, igualmente, os doentes anunciados. A movi­mentação se fez grande, momentaneamente. Ajudada por Adrião, aproximei-me da Benfeitora Zélia, que administrava com gran­de serenidade, transmitindo seguras orientações, obedecidas sem discussão.

Entre os doentes conduzidos para as Seções es­peciais do pavilhão em que eu me hospedava, não tive dificuldade em descobrir aquela de quem me fa­laram os amigos, com desvelada ternura. Dois moços conduziram-na em padiola ao leito adredemente preparado. O semblante pálido e sua­do trazia marcas de cruel agitação. Entretanto, pare­cia desmaiada. Poderia ter vivido apenas 40 anos, quando encarnada.

Acomodada com cuidado no leito acolhedor e alvo, a paciente permanecia sem sentidos.

Ao acenar-me com significativa expressão da face, aproximei-me da Administradora, que me con­citou, bondosa:

— Este momento representa sua oportunidade de integrar-se nos serviços de nossa Casa. Como você sabe, os mais singelos movimentos de auxílio trans­formam-se em luz, em nosso próprio caminho evolu­tivo. Não adie a hora que se lhe depara afortunada e vantajosa. Informe ao Adrião que Matilde requer as­sistência especial, logo lhe seja possível...

E dirigindo-se a servidores mais experientes, acrescentou, aludindo ao meu trabalho:

— Matilde é a sua oportunidade de recomeço.

Sorriu a Benfeitora e, felicitada pela grande opor­tunidade, agradeci, reconhecida, ao Pai Celestial.

Desde há algum tempo, habituara-me aos valio­sos serviços de prestar informações sobre doentes, recados de urgência de uma enfermaria a outra. Como as salas de assistência fossem próximas, dis­postas em alas retangulares, entremeadas de jardins, estava habilitada a acercar-me de várias delas, onde me dedicava aos misteres do asseio.

Sabendo que encontraria o incansável passista nas câmaras de repouso dos obsidiados em recupe­ração, não tive dificuldades em localizá-lo.

Notificado da necessidade da sua presença e dos motivos que o chamavam, o esclarecido e constante amigo denotou preocupação no semblante e, algo apressado, pôs-se a caminho, seguindo-lhe eu em­pós.

— Matilde — informou-me, prestimoso — é um caso que requer cuidados constantes. Tive ensejo de visi­tá-la nas regiões em que se demorava e inteirei-me da sua situação, por informações de amigos interes­sados no seu despertar. Confiemos, entretanto, e não nos deixemos desanimar.

Quando chegamos, a enferma apresentava-se for­temente inquieta por convulsões que a sacudiam in­cessantemente, contorcendo os lábios e agitando o corpo, como se estivesse dominada por visões terrifi­cantes.

A incansável Zélia, que naquele momento chega­va, como se desejasse fazer algo, sem mais delonga rogou-nos atenção:

- Unamo-nos mentalmente, suplicando as santas dádivas em favor da infeliz que ora aporta, de retor­no, ao lar generoso.

Em breves minutos, as lágrimas que se haviam tornado de há muito minhas constantes companhei­ras, escorriam serenas ao beneplácito da prece silen­ciosa. Era a primeira vez que participava de um servi­ço direto no ministério do passe e não me pude furtar à evocação do meu próprio caso, há mais de um ano, quando, então, recebera o auxílio magnético do colaborador abnegado. E sob a recordação das minhas necessidades, supliquei ao Mestre da Compaixão pela irmãzinha, vítima de si mesma, ali exausta e desnor­teada.

A enferma, que ainda se debatia, foi-se acalman­do lentamente sob o calor brando da prece. Bagas de suor afloravam-lhe no rosto, colando os cabelos desgrenhados à testa larga. Os olhos dilatados pare­ciam desejar romper os diques das órbitas que os de­tinham. Todavia, indicavam não perceber o recinto. Apresentavam-se apavorados, imersos em longín­quas, terríveis fixações. De quando em quando, toda a sua organização perispiritual, muito densa, era aco­metida de tremores nervosos descontrolados.

Adrião, em prece muda, mergulhava nas nascen­tes fecundas do Bem, aspirando o perfume do amor que o cobria todo como veste de tênue luz. Aproximando-se com inexcedível ternura, qual mãe desvelada junto ao berço onde dormita o filho, distendeu os braços e, movimentando energias que fluíam de seus músculos, deu início à aplicação dos passes magnéticos. Lenta, ritmada e seguidamente suas mãos escorriam da região frontal até os mem­bros inferiores da paciente. Em constante ritmia au­mentou a velocidade dos movimentos longitudinais.

Subitamente, a enferma começou a gemer, com voz sumida, enquanto, através da sua boca semi-aber­ta, escorria uma massa fluida nauseante e escura que impregnou o recinto de odores fétidos.

Os movimentos do passe continuaram ininterrup­tos, renovando as extrações de energia deletéria que combalia a sofredora em profundo estado de miséria vital. À medida que o socorro continuava generoso, foi-se atenuando a coloração e o aspecto da exalação que, após alguns minutos, se diluía em vapor parda­cento.

A irmã Zélia, desejando certamente elucidar-me, explicou à meia-voz:

— São energias longamente condensadas pela alma desavisada. Como é sabido, cada alma respira o clima mental da região em que sintoniza o pensa­mento. Nossa pobre amiga, embora forrada, a princí­pio, das melhores intenções, não se pôde guardar àdistância das vicissitudes humanas, em cujo fogo de prazeres empenhou as melhores possibilidades de re­ajustamento com a lei de reparações.

E dando curso à exposição, prosseguiu:

— A Terra não é um Éden, bem o reconhecemos. Todavia, é uma abençoada oficina em cujos cômodos exercitamos as tarefas de evolução. Quando ali reen­contramos as possibilidades de prazer, arrebentamos as cadeias do dever e imanamo-nos aos grilhões dos vícios que embriagam e aniquilam. Para libertar-nos desses males, as boas intenções ajudam, mas somen­te quando se fazem acompanhar das boas ações.

E depois de breve meditação, deu curso ao ensi­namento:

— Sob a assistência das forças positivas de Adrião, o organismo perispiritual foi sacudido e toda a orga­nização espiritual da enferma está sendo visitada por energia salutar que, à semelhança do que ocorre na fagocitose do vaso físico, terminará por vencer os mi­asmas mentais acumulados, que lhe prejudicam o re­equilíbrio psíquico.

Calou-se a Benfeitora. Pude ouvir, entretanto, a voz do passista, concitando a socorrida ao brando re­pouso:

— Durma!... Durma!... Esqueça!... Procure esque­cer!... Não receie!... Não receie!... Durma!... Sono repa­rador e calmante!... visitar-lhe-á, minha irmã... Não pense mais nada!... Esqueça!... É necessário esque­cer.

Aquela voz calma e lenta parecia possuir mágico condão, porqüanto, em breves momentos, com a res­piração acalmada, a doente adormeceu, cerrando, por fim, as pálpebras.

Estava encerrado o serviço assistencial do ins­tante, mas novos recursos seriam necessários para atender, devidamente, àquele Espírito aflito, sob nos­so olhar. Adrião sorriu, com simplicidade, como a descul­par-se e ponderou:

— Não nos esqueçamos da Caridade do Dispen­sador infatigável que não cessa de atender-nos em todos os momentos. O caso que temos no roteiro de deveres novos é bem um exemplo de alma naufraga­da nas procelas da carne, em flagrante desatenção às instruções do Nauta Divino. Apesar disso, Sua mi­sericórdia, em nome do Ilimitado, não a esqueceu e, vigilante incansável, distendeu braços protetores, sem que a aflita sequer o houvesse suplicado. “Repousará, um pouco — concluiu —, apagando momentaneamente, a chama da aflição que a devo­ra, para despertar, logo mais, vulcão tumultuado em plena erupção.”

E como notasse o espanto no meu rosto, acres­centou ainda:

— Não há que estranhar, minha irmã. Não nos en­contramos numa Gruta de Milagres, mas numa Casa Hospitalar dedicada à recuperação e ao reequilíbrio. O remédio aplicado diminui a dor sem eximir o doen­te de prestar contas com a consciência culpada. Fe­lizmente não existe, além da morte, a quitação indé­bita, mediante favoritismo especial para uns, em de­trimento de outros, filhos todos, igualmente, do mes­mo Pai. Cada espírito sofre depois da desencarnação a má Pedagogia a que se ajustou enquanto na Escola Terrena, carregando a canga a que se jungiu nos vári­os compromissos com a vida.

Talvez, desejando alongar-se para esclarecer me­lhor, aduziu humilde:

— Despertamos sempre com a angelitude ou com o satanismo que vitalizamos em pensamento e ações. Cada alma é o que pensa. O Céu e o Inferno são cons­truções pessoais de cada ser. E valiosa a boa inten­ção, de muitos, todavia, a construção eterna não é uma resultante somente do ensejo, mas principalmente do trabalho ativo.

E com firmeza:

— Repomos na Criação o que tiramos da vida. Na vida universal tudo são permutas, em incessantes transformações evolutivas. Não existe repouso, vácuo, silêncio. Se tal houvesse, significaria o caos do pró­prio Universo. Em toda parte, encontramos vida exu­berante cantando as glórias do Supremo Construtor, exaltando Sua obra.

A emoção embargava-me. Na minha simplicida­de mental, jamais me ocorreram semelhantes idéias. Nunca me lembrara de procurar o Pai Doador na obra gloriosa que nos felicita a eternidade da vida. E lem­brei-me daqueles que humanizam o Senhor, apiedan­do-me da sua ingenuidade.

— O pão que serve a mesa — ponderou a irmã Zé­lia até então silenciosa e atenta — saiu do lodo da ter­ra em milagroso sacrifício do grão de trigo que se dei­xou morrer. Vida: transformação, evolução!

Os conceitos hauridos junto à recém-chegada inundaram-me de paz. A esperança tão desconheci­da é, sem alarde, alguma filha da fé religiosa, legíti­ma. A fé é resultado do conhecimento, dileta amiga da razão. Quando não podemos raciocinar, aceitamos, mas não cremos. Daí a assertiva do Mestre da Codifi­cação do Espiritismo: “Fé inabalável só o é a que pode encarar frente a frente a razão, em todas as épocas da Humanidade”.

Quanto material, Deus meu! — pensava.

Como o Espiritismo é realmente o grande conso­lador dos espíritos! E me deixava arrebatar pela emo­ção de constatar que essa Doutrina, tão consoladora, liberta a alma e a prepara para enfrentar-se a si mes­ma. E recordava do enunciado de Jesus quanto ao Consolador prometido: “Muita coisa que ainda não podeis supor, ele vos ensinará.”

As horas avançam lentamente e a madrugada in­cendiava o céu que se ruborizava aos raios do Sol nas­cente.

Oferecera-me para velar, atentamente, a nova companheira, tarefa a que doava os melhores cuida­dos. Do posto de observação, acompanhei as orações do nascente, invadida de doces consolações. A natu­reza jamais me parecera tão bela e, dentro de mim mesma, coragem alentadora falava-me em promes­sas de ânimo.

A prece envolvia-me em brandas vibrações e a lembrança dos companheiros encarnados, que sempre me torturava, não dava amargo sabor naquele momento. Fitando as nuvens a galoparem além, não vi o momento em que o lúcido Adrião penetrara o re­cinto.

— Planejar o bem no futuro é viver o bem presente — falou-me, tocando-me o ombro, delicadamente.

Assustei-me e, ao fitar-lhe o rosto, não pude dei­xar de emocionar-me.

— Minha irmã — acrescentou —, Jesus é Vida e, como tal, deseja-nos ditosos e diligentes. A alegria é mensagem de saúde e paz. Rejubile-se, pois, com o Senhor e avance. Todas as grandes tarefas começam em longas jornadas de planificação mental. Hoje pen­samos e amanhã realizamos. Mente e mãos, pensa­mento e ação, cérebro e coração na obra de Deus, em favor da nossa redenção, eis o programa. Cristo é o Roteiro.

Ao ouvir o moço Adrião, eu sempre ficava extasi­ada. Escutando-o, retornava ao passado e evocava as preleções, através das quais fizera o meu ingresso na Doutrina da Consolação e da Esperança.

Nesse momento, a irmã Zélia chegou ao recinto e acercou-se de nós. Notamos que a enferma movimen­tava-se inquieta, no leito.

Ergueu-se repentinamente com os olhos esgaze­ados pelo pavor, e pôs-se a gritar, com evidentes si­nais de loucura:

— Os vampiros! Socorro! Perseguem-me os lobos! Acudam-me, por Deus!

Antes, porém, de atirar-se em disparada, jáos nos­sos amigos dela se acercaram, detendo-a com pala­vras de conforto, enquanto Adrião lhe aplicava pas­ses calmantes. A custo repousou, embora inquieta, tremendo em soluços. Notando-me a perturbação e o receio, o amigo tranqüilizou-me:

- Mais tarde você compreenderá. No momento, ore e ajude!

Acalmada a doente, estabeleceu-se que às 20 ho­ras, com auxílio do dr. Cléofas, prestar-se-ia assistên­cia mais específica.

19 - INVIGILANCIA E SIMONIA

Aguardei a hora anunciada, mantendo a mente atenta às recomendações dos Benfei­tores quanto ao concurso da oração. Quando soavam 20 horas, na noite plena, precedido pela irmã Zélia, Adrião e dois au­xiliares, o dr. Cléofas deu entrada em nossa Enfermaria, aureolado da bondade que o ca­racterizava. O sorriso cândido brincava-lhe no rosto sereno, como no dia em que o conhece­ra, durante a minha aflição. O amor fraterno que se lhe derramava dos olhos inundava-nos de dúlcidas emoções, e indagações acotove­lavam-se em meu espírito ainda não esclare­cido.

Depois das saudações gentis, sentamo­-nos em volta do leito, enquanto o venerável médico paulista, em breves e significativas palavras, rogava a inspiração e a assistência do Médico Divino.

Atendendo a um olhar expressivo do diretor do trabalho socorrista, o prestimoso passista aproximou-se da sofredora inquieta, em sono movimentado, cha­mando-a pausadamente, com voz firme, na qual se misturavam ternura e ordem, bondade e energia.

A doente descerrou as pálpebras com um olhar mortiço em que vagavam recordações longínquas e dolorosas.

— Não receie! — disse o magnetizador. — Confie em Jesus e tranqüilize-se. É necessário despertar para a verdade, minha irmã, embora nos custe o pesado ser­viço de carregar o fardo dos nossos desencantos e de nossa irresponsabilidade. Esteja certa da vitória final do Bem, sobre todas as coisas incertas e dúbi­as.

Ante o olhar espantado da doente, que racioci­nava vagarosamente, prosseguiu o prestimoso tra­balhador:

— Não tente resistir. Entregue-se ao Senhor que muito nos ama e sob cuja direção há oportunidade para mil recomeços. Liberte-se do passado culposo e volte ao presente. Ouça-me atenta!

E como a pobrezinha ensaiasse desespero e pran­to, a branda e enérgica voz do dr. Cléofas animou-a:

— Tenha a certeza de que a Justiça não castiga impiedosamente embora não olvide quantos a des­respeitam. Aos infratores, a Lei propicia recursos para a quitação oportuna, não favorecendo quantos a quei­ram infringir. Estão com o seu espírito aflito os com­panheiros afeiçoados de ontem, aqueles mesmos que a conduziram à neblina da carne, amparando-a outra vez.

“Escute e recorde... Vamos recuar no tempo, rompendo­ os elos que lhe detêm o pensamento nos últi­mos acontecimentos. Recue, Matilde... recue... não tema...”

A sofredora foi-se deixando conduzir, lentamen­te, pela voz amiga, e em breve mantinha o semblante sereno, como se agradáveis recordações inesperada­mente voltassem à retina da memória.

O dr. Cléofas aproximou-se do leito, e, tomando-lhe a destra umedecida de suor, concitou-a a um exa­me de atitudes que a levaram a tão rude fracasso, no mundo. E enquanto a magnetizada rememorava a existência, o compassivo orientador cientificou-nos:

— Invigilãncia! Eis o nome do “demônio” que ven­ceu a candidata ao trabalho.

E prosseguindo com sua habitual sabedoria, acrescentou

— Matilde, após fracassos sucessivos, em reen­carnações anteriores, retornou ao Orbe, decorridos dez anos de preparação em nossa Escola, depois de arrancada de dolorosas regiões onde tombara.

“Fui informado, ainda, de que ao reencarnar con­duzia consigo inestimável patrimônio de boas inten­ções, ansiosa pela sagrada dádiva do serviço ativo. “Eis, porém, como retorna: andrajosa e aflita, com o patrimônio despedaçado qual ocorreu ao filho im­prudente e incauto da Parábola Evangélica. Deduz-se que a boa vontade que conduzia ao viajar não re­presentou vitória. Só o esforço sacrificial aplicado no campo da luta ajuda o espírito a chegar à meta final, como único meio de crescimento.

Mal silenciou o lúcido Instrutor, a doente clamou em desespero:

— Que querem de mim? Quem ousa justiçar-me, apresentando-me como criminosa vulgar? Que fiz para tão cruéis padecimentos? Quem são os meus verdugos a punir-me antes de pronunciada a minha pena? Onde estão?

— Não somos seus algozes, mas seus irmãos que se encontram muito longe da posição de juízes ou ju­rados e que se apresentam vestidos somente com a toga da piedade e calçados com o entendimento fra­terno — respondeu o dr. Cléofas, com bondade.

— Será este o Céu que me prometeram os Espíri­tos ou aqui é uma estação purgatorial, a Caminho de Celeste Morada? — indagou a enferma, com revolta.

— Matilde, minha irmã — retrucou o generoso es­culápio —, o Céu vive em todos os lugares, conosco, quando o construímos na alma. Aqui não é o Céu, cer­tamente, nem o Purgatório, nem o Inferno. É somen­te um posto de socorro hospitalar para recuperação de almas fracassadas na romagem do mundo, entre o Céu e a Terra...

— Alma fracassada? — inquiriu a albergada, com desespero, em pranto. — Eu, fracassada? Não! Nun­ca! Deveria ser recebida com bênçãos de alegria. Quais os recursos de que dispus na Terra? Não cum­pri, porventura, com os meus deveres mediúnicos? Onde os arquivos de notas de trabalho?

—Na consciência do trabalhador, irmãzinha — elu­cidou o interlocutor. — Aqui não temos necessidade de anotações especiais, porqüanto, cada candidato ao estágio recuperador transpira o aroma das ativi­dades a que se entregou no plano físico. Os seus de­veres mediúnicos ficaram à margem quando as rela­ções sociais a convidaram ao parque ilusório dos tri­unfos mentirosos.

E dando nova inflexão à voz, continuou, convicto:

— Mediunidade é, antes de tudo, sacrifício e re­núncia incessante. Os que triunfam no mundo, aqui retornam como vencidos pelo mundo. Só os que reali­zam a vitória sobre si mesmos são aqui reconhecidos como triunfadores. Os mártires da Humanidade, a exemplo do Senhor Jesus, foram vencidos pelo mun­do, vencendo o mundo. Não desejamos — prosseguiu o mensageiro da saúde — inquietar-me a alma com recordações peno­sas. Entretanto, é necessário recordar-lhe que mediu­nidade com Jesus é apostolado santificante, em nome da Caridade. “Mediunidade é serviço. Serviço sem preço, sem retribuição. “A prática mediúnica é singela. Veste-se de sua­ves cores sem complicações nem artifícios. A mediu­nidade não pertence ao médium. É patrimônio da vida imperecível, talento emprestado ao jornaleiro para aplicação devida, que o transformará em valor inesti­mável. “Não creia, filha, que através de práticas exóti­cas e vulgares se tenha desincumbido da tarefa do auxílio fraterno.”

E ante o silêncio da enferma, prosseguiu:

— Quando o interesse pessoal perturba a mente do medianeiro e a dignidade do sacerdócio cede lu­gar à bajulação e ao agrado, imprimindo novos rumos às atividades cristãS, compromissos de difícil libera­ção envolvem o incauto. E o seu caso é daqueles a que se pode aplicar o nome de Simonia, cujas dano­sas conseqüências são ainda imprevisíveis.

A doente escutava, magnetizada. Exasperada, entretanto, pela retidão doutrinária do pensamento do interlocutor, gritou, desequilibrada:

— E o auxílio divino? Por que não me salvou na hora precisa? Onde o socorro dos Guias Espirituais, que me não advertiram com justas admoestações?

O esclarecido benfeitor, com humildade e com­paixão, retrucou:

— Não lhe faltou jamais o concurso do Senhor, de mil modos. Muitas vezes, nós mesmos visitamos o seu reduto de trabalho e falamos em nome dos compro­missos assumidos, à sua tela mental em desequilí­brio, seduzida pelas tentações da facilidade. No en­tanto, nossas instruções e aspirações eram recebi­das com positivas dúvidas por você, então preocupa­da na solução de problemas triviais, de cônjuges e negócios, de amigos novos, portadores de bolsa pol­puda que a visitavam...

— Todavia — afirmou com veemência e azedume, a doente —, trabalhei também de graça.

— Não lhe desconhecemos a bondade e esta não tem sido esquecida — respondeu, com zelo e carinho —. O nosso dever não é utilizar da vida para uso e gozo próprios. Temos deveres maiores...

E mudando de tom, falou, algo humorado:

— Até agora o Senhor nos serve paciente, sem exi­gência, bondosamente, de graça. Não se deixe mais envolver pela teimosia, escondendo-se na presunção. Medite, Matilde! Desejamos ajudá-la em nome do Compreensivo Médium de Deus, nosso modelo e guia.

Houve um profundo silêncio, cortado por uma voz harmoniosa que entoava o cântico à noite, essa ben­feitora constante. Acometida de súbito transe de loucura, a pobre mulher gritou apavorada:

— Sou uma desgraçada... Sim, sou uma louca! Olhem os lobos! Socorro!... Os vampiros...

Foram aplicados novos recursos magnéticos por Adrião e os dois auxiliares que se encontravam pos­tados ao lado do leito, atendendo, prestimosos, à irmã tresloucada.

— Por hoje não podemos fazer mais — explicou o médico —. Nossa irmã está com a mente muito abala­da, recordando as impressões post-mortem vividas no Despenhadeiro do Horror. Aguardemos o tempo e en­treguemo-la ao boníssimo coração da Mãe de Jesus, que tanto nos atende, e ofertemos-lhe o nosso cari­nho. Oração balsamizante, proferida pela sensibilida­de da irmã Zélia, coroou a reunião.

20 - MEDIUNIDADE FRACASSADA

Naquela noite, demorei a conciliar o sono. O caso Matilde voltava-me à mente com fre­qüência assustadora. Recordava-lhe as justifi­cações e parecia escutar as palavras proferi­das pelo médico. As expressões de advertên­cia e despertamento, invigilância e simonia, atormentavam-me, escaldando-me o cérebro.

Que lhe teria ocorrido realmente? Quais práticas teriam sido aquelas aludidas pelo dr. Cléofas? A quais vampiros se referia a infeliz? Seriam visões imaginativas ou experiências atormentadas que vivera?

Na manhã seguinte, quando a irmã Zélia veio visitar-nos, não pude sopitar por mais tem­po a ansiedade de esclarecimentos e atirei-me à sua fonte de experiência. As palavras ami­gas não se fizeram demorar.

— Otília, todos os nossos atos — começou a informar —, bem como nossos pensamentos, são vitalizantes de realidades que se materializam ou se consomem. Pensar e agir são forças que marcam o espírito. Por isso mesmo vivemos o que desejamos e sofremos o que geramos. Ninguém foge ao reajusta­mento. A carne é oportunidade; ninguém a malbara­tará irresponsavelmente.

“Matilde, ligada à nossa Colônia por compromis­sos múltiplos, rogou o ministério da mediunidade como um náufrago implora batei salvador. Não era por­tadora de méritos que liberassem a solicitação. To­davia, atendendo-se a interferência superior e consi­derando-se o valor da ocasião, foi-lhe outorgado o pe­dido, precedido de advertências, orientação e escla­recimento, permitindo-se-lhe um largo período de tem­po para meditação acurada em torno do assunto. “Em breve tempo retornava à carne sob a prote­ção de devotados amigos espirituais que a conduzi­ram a abençoado lar, onde foram previstas necessi­dades financeiras a fim de guardá-la dos perigos da futilidade, amparando-a com a dádiva da oportuni­dade de santificação no trabalho honesto, para a ma­nutenção da vida física. “A infância correu-lhe em paz, entre os jogos da inocência e as esperanças do futuro. Embora assisti­da por almas abnegadas, carregava compromissos que necessitavam ser resgatados, permanecendo li­gada a afeiçoados de outrora que foram conduzidos a sérios crimes, por sua irresponsabilidade. “Com a chegada da puberdade, enquanto o cor­po se modelava ao amadurecer da mente que se dila­tava no campo das recapitulações, a mediunidade de­sabrochou, abrindo-lhe as portas às interferências dos planos espirituais, começando para o espírito, sedento­ de renovação, as primeiras grandes lutas. “Os débitos do passado jungiam-na a obsessão secundária, sendo por isso, conduzida a veneranda Instituição Espírita de Salvador, onde deveria ter lu­gar a sua iniciação doutrinária. Ali, em contato com o trabalho da Caridade ativa aos desencarnados, dila­taram-se-lhe as possibilidades psíquicas e, sob a égi­de do Senhor, em breve emprestava a faculdade so­nambúlica ao serviço do esclarecimento dos sofredo­res de Além-Túmulo, concedendo, a alguns dos seus próprios algozes, ensejo de libertação.

“Atendida pela dedicação de amigos devotados ao trabalho que o Espiritismo concede a todos, não lhe faltaram, desde o início, diretrizes, carinho e so­corro. Na tribuna do esclarecimento, na mesa de co­munhão com o Alto, nos livros de estudo, na conduta dos diretores, estavam as bases para uma vida feliz, dignificante. “Incessantemente, chegavam-lhe à mente orien­tação e roteiro, através das palavras inspiradoras dos Instrutores maiores. Convites à humildade e adver­tências à vigilância não eram regateados, chegando-se-lhe ao pensamento, com freqüência...”

A narradora fez uma pausa longa. Parecia apro­fundar o raciocínio na justeza da Lei, contemplando apiedada a enferma que dormia profundamente. Com carinho na voz, prosseguiu: - ... apesar disso, com o desdobramento dos re­cursos mediúnicos, vieram os admiradores e, com eles, as tentações perigosas.

“Muitos que cercavam a candidata à renovação traziam angustiantes problemas do coração, rogan­do-lhe amparo e consolo. Os consulentes sucediam-se e as horas que Matilde deveria dedicar ao traba­lho do lar, na sua condição de mulher humilde, aplicou, inadvertidamente, atendendo a apelantes que, embora cientes da Imortalidade, se recusavam a as­sistir ao Culto no Templo Espírita, por circunstâncias óbvias.

“Perdendo o patrimônio das horas de aquisição do alimento, no trabalho normal, viu-se constrangida, de um momento para outro, a aceitar doações e pre­sentes que, embora filhos da amizade e da gratidão, conduziam veneno e ruína.”

Aproveitando a nova pausa que se fizera natural­mente, inquiri, ansiosa:

— E os Benfeitores Espirituais não advertiram a médium, nessa hora tão significativa para sua vida?

— Evidentemente! — retrucou. — Todavia, Matilde negava-se a ouvi-los, fascinada que se encontrava pela leviandade. Recordava as necessidades até então ex­perimentadas e justificava-se, retrucando, mental­mente. Repassava os problemas que lhe afligiam o ser, esquecida, certamente, de que a dor é mestra da vida, e murmurava: — Afinal de contas estou trabalhan­do mais do que nunca, em favor dos aflitos, e a doa­ção que recebo fica muito aquém dos benefícios que faço. Que mal existe nisso? Não fazem o mesmo os sacerdotes de outras crenças, vivendo da fé, com o auxílio dos religiosos? — Olvidava, enlouquecida que se encontrava, que o Espiritismo não pode ser com­parado às “outras crenças , porqüanto é da Lei que “cada um coma o pão com o suor do seu rosto”. E nesse sentido, o médium que não é um ser excepcio­nal; sendo apenas um instrumento, nada pode rece­ber, porque, quanto faz, procede sempre do Cristo e nunca dele mesmo. No entanto, as advertências con­tinuavam, constantes, embora não ouvidas.

“Por sua vez, os Espíritos maléficos se utilizavam dos consulentes desavisados e estes a envolviam nas suas solicitações, compensando todo o trabalho com moedas e auxílios adquiridos muitas vezes na deso­nestidade e no crime que procuravam com habilida­de acobertar.

E mudando o rumo da conversação, a Benfeitora esclareceu:

— Um dos maiores inimigos dos médiuns está na­queles que buscam o intermediário, com problemas, procurando “consultas”. Ninguém pode resolver pro­blemas de ninguém, especialmente por processos mediúnicos. Quem realmente se encontre angustia­do, busque a Doutrina Espírita e esta lhe dará os ins­trumentos de solução, não, porém, o médium, porqüanto este é, quase sempre, uma alma aflita, tam­bém avassalada por problemas, no trabalho de reno­vação.

E voltando ao assunto básico da palestra, conti­nuou:

— Atordoada, deslumbrava-se pelo alarido álacre das “novas e generosas afeições que lhe ofertavam o pão e a luz da felicidade na Terra”. Era necessário, meditava, afastar-se do Núcleo de trabalhos coleti­vos, onde ela se perdia na multidão, sem serem reco­nhecidos os seus dotes mediúnicos, para fazer a sua CASA DE CARIDADE. Além disso, arrematava, o nú­mero de pessoas que a procuravam era tão grande, que já não dispunha de tempo para procurar o Cen­tro Espírita.

Dando novo rumo à exposição, a irmã Zélia aproveitou o ensejo para esclarecer-me:

— Quando, minha filha, um médium abandona o Grupo de estudos e sob justificáveis motivos (nem sempre justos) edifica o “seu” Centro de atividades ou permanece “trabalhando” em casa, encontra-se em grave perigo.

“O Centro Espírita é uma fortaleza, um abrigo. Quando lhe faltam os requisitos que seriam de dese­jar, o médium tem obrigação de cooperar ainda mais, entregando-se ao serviço mediúnico com devotamen­to e deixando aos Mentores, que esclarecem e nor­teiam os companheiros, a tarefa de orientarem os di­retores para a ordem, dentro das bases de Kardec e as sublimes lições de Jesus Cristo.

“Aliás, preocupa-nos constatar que os Espíritos infelizes se utilizam da invigilância de médiuns e dou­trinadores, atualmente, dividindo, a seu bel-prazer, os corações, criando, cada dia, novos setores de traba­lho, em grupos, quase todos, da divisão, da vaidade e da pretensão.”

— Foi o que aconteceu à médium, objeto de nossa conversação — retornei ao tema.

— Cheia de entusiasmo — continuou a narrativa — abriu “as portas do Lar à Caridade total”, como cos­tumava expressar-se, iludindo-se terrivelmente. A medida que os favores humanos a cercavam, inaces­sível se tornava às vozes dos Amigos Espirituais.

“Cercada de entidades inoperantes e viciadas, com as quais afinava pelos pensamentos comuns, aturdida ante o volume de exigências da insaciável clientela sempre crescente, foi-se deixando, lentamen­te, conduzir pelas inspirações da desordem. Não de­sejando perder a posição granjeada de “pitonisa” mo­derna ou avalista de benefícios para almas, insensa­tamente se atirou a arrojadas aventuras no campo da Goécia, envolvendo-se nas malhas cruéis de peri­gosos labores que, por fim, a aniquilaram.

“Naturalmente, muitas vezes, quando a mente lhe ardia de inquietação, orava e, na doçura da prece, re­cordava o velho doutrinador de palavra sedutora e conduta salutar, deixando-se empolgar pelas lágrimas de saudade. Desejaria recomeçar, tornar aos dias idos, à necessidade de outrora. Mas, como? Tinha amigos (ou senhores inclementes?) a quem não se poderia furtar. Notava, desde há muito, a ausência das forças vitalizantes e, através das telas do pensa­mento, parecia descobrir entre espessas sombras uma forma hedionda a dominar-lhe o campo psíqui­co, arrastando-a e cingindo-a, empurrando-a para a frente escabrosa, com tenazes vigorosas.

“Torturada, exausta, adormecia sem forças de abandonar tudo e recomeçar, enquanto o tempo abençoava sua vida com oportunidades facilmente aproveitáveis. “No dia seguinte, entretanto, já cedo, antes de refazer-se da noite mal dormida, os semblantes sor­ridentes dos necessitados — falsos doentes e aflitos ociosos — buscavam-lhe o concurso em pactos terrí­veis com os espíritos da zombaria, da irresponsabili­dade, do mal... “Passaram-se os anos. Aos quarenta janeiros, Matilde era, em aparência e vitalidade, uma anciã. Os cabelos alvejavam rapidamente, os olhos cobriam-se de amargura e o coração ralava-se na angústia. Ti­nha conforto para o corpo — a que preço? — e muitas dores na alma.

“Alguns ainda a procuravam aflitamente. Deseja­vam lucros em negócios inescrupulosos, sorte em amores, regularização de compromissos e toda uma longa sorte de enganosas especulações. Outros, en­tretanto, maldiziam-na. O esquecimento de uns e a maledicência de outros cruciavam-na.

“Lentamente a obsessão de outrora retomou-lhe os centros neuro-psíquicos e, numa noite de horror, enlouquecida, ateou fogo às vestes rasgadas, sendo consumida pelas chamas, entre gargalhadas de pa­vor. Antes que qualquer recurso, por parte dos vizi­nhos, pudesse ser tentado, desencarnou, em circuns­tâncias apavorantes, lanceada no sentimento e fra­cassada na mediunidade.” Silenciou a amiga espiritual, e tomada de imensa piedade fitou a enferma que continuava a dormir com o semblante congestionado, como se fosse vítima de terríveis pesadelos.

21 - OBSESSÃO E SUICÍDIO

Eu permanecia perplexa, ouvindo a narra­tiva lúcida e calma da sábia Instrutora. Verificava, a cada instante, que, em reali­dade, o fenômeno era exatamente esse, a su­ceder, todos os dias, entre os homens contur­bados, em face dos deveres santificantes que o Evangelho desvelado pelo Espiritismo apon­ta. Estávamos a uma dezena de metros e ou­víamos os torturados suspiros da sofredora. Desejando novos esclarecimentos, indaguei, preocupada:

— Como teria despertado, além da cortina física? Em que condições atravessara a gran­de aduana?

A interlocutora, disposta a elucidar-me, ensaiando-me na sabedoria da Lei, respondeu, bondosa:

— Matilde foi, durante mais de quinze anos, devorada pelas dores do suicídio...

— Suicídio? — interrompi, alarmada.

— Como não? - redargüiu.

— Mas não se encontrava louca? — aventei, aturdi­da — perseguida pelos gênios titânicos que a arrasta­ram à desencarnação?

— Sim — concordou. — Muito embora a sua situação mental constitua-se um significativo atenuante, é ne­cessário não esquecermos de que a mente do médium jamais esteve sem o amparo divino. Se houve influen­ciação maléfica, a intermediária é a única responsá­vel pelo descaso à Lei e ao Dever. Todos os fatos pos­teriores a um desequilíbrio são decorrentes do dese­quilíbrio. No caso, a loucura foi uma conseqüência natural da fuga ao dever nobilitante. Quando nos ati­ramos a um abismo, não sofremos apenas a desloca­ção do corpo com o movimento, mas, também, a que­da e as dores advindas desta. Compreendeu?

— Certamente —, concordei.

— A Justiça Divina — prosseguiu, esclarecendo — éperfeita e a Lei é imutável. Durante os anos de lutas acerbas, quando sua mente, no Despenhadeiro de Hor­ror, conseguia pausas para a coordenação das idéi­as, era assaltada pelos gênios infernais, a que se li­gara. Recordava aqueles amigos que ainda se demo­ravam na carne e que, de certo modo, foram os cau­sadores da sua infelicidade, propiciando-lhe a fuga aos compromissos elevados, junto ao altar do dever.

“O pensamento desequilibrado era toldado, en­tão, pelo ódio e, rompendo espaços, ia ao encontro dos encarnados que, irresponsáveis, continuavam nos jogos da carne, entre as futilidades do caminho. Tão freqüentes se tornaram as recordações que a enfer­ma passou a transmitir, inconscientemente, as vibra­ções de que era portadora e que funcionavam nos antigos consulentes como pensamentos angustiados, pesadelos e inquietações em perfeitas afinidades.”

— Oh, Céus! — exclamei.

— Não há porque estranhar — retrucou-me a es­clarecida orientadora. E, prosseguindo, elucidou:

— As ações são agentes poderosos no intercâm­bio psíquico. Os erros e crimes de toda ordem ligam os seus servidores em elos vigorosos, feitos dos ele­mentos mentais alimentados pelas vibrações cons­tantes que os imantam. Caídos e derrubadores per­manecem ligados pela responsabilidade: vítima-al­goz.

“E não poderia ser diferente. Quantos contribuí­ram inicialmente para a ruína moral da médium, são co-autores da tragédia que arrastou a invigilante.

“Todos guardamos a idéia do Bem e da Dignida­de. Usar deliberadamente essa mensagem da Vida, acarreta-nos, como se pode facilmente depreender, os sucessos ou insucessos desse uso bom ou mau...

Estava profundamente preocupada. O esclareci­mento é luz de responsabilidade. Saber significa tam­bém sofrer o que já se fez. Meditando, entendia me­lhor o enunciado do Senhor: “a cada um será dado segundo as suas obras.”

— Essas são as malhas do crime — referiu-se a irmã Zélia. — Depois de atadas envolvem os criminosos e punem-nos até o momento em que a renovação se delineia alvissareira.

— E, agora — indaguei, penalizada —, que aconte­cerá à pobre asilada?

— Não lhe faltarão o auxílio e o amor — respondeu, calma — em nome do Grande Amor de todos os amo­res. Todavia, só o tempo, infatigável burilador, pode­rá responder. Aguardemos e aprendamos. Restitui­remos tudo quanto dilapidarmos na inconsciência e na ilusão.

Abraçando-me cordialmente, a benfeitora con­cluiu:

— Usemos o tempo e agradeçamos à dor. A árvo­re podada reúne as energias e volta a dilatar-se em vergônteas novas, resistindo às intempéries e voltan­do a dar sombra, flores e frutos. Dos seus ramos cor­tados nascem utensílios pela mão hábil do marcenei­ro.

E num sorriso, levemente sombreado de melan­colia, afastou-se em busca dos misteres sagrados, in­formando, ainda:

— Concluída a assistência mais urgente, Matilde será conduzida para as Câmaras de Retificação, onde será beneficiada, lentamente.

Fitei a albergada. Dormia inquieta, sobraçando a própria aflição. Eis ali um exemplo dos milhares que a Terra guar­da no seu dourado bojo de ilusões. Quantos outros corações, companheiros de mediunidade, não estari­am construindo a dor, entre os cipós enganosos das tentações, para expungi-los mais tarde, no Grande Amanhã! — pensava, intrigada.

A noite mergulhada em silêncio deixava-se abri­lhantar com os lampejos das estrelas, confabulando mensagens de paz. Soaram as vinte e duas horas. Não podia dormir. Após acontecimentos de tal natureza, ficava em vigília; não conseguia dormir. Saí ao jardim. O vento perfumado roçou-me o rosto que, sem que eu o percebesse, estava molhado de pranto.

Quão pouco meditara na Terra! Mais uma vez constatava a habilidade com que malbaratara o tem­po na inutilidade. Os problemas do corpo haviam re­cebido melhor assistência. Agora sofria as conseqü­ências. Recordando, não saberia explicar como gas­tara quase cinqüenta anos, na vida física, intercalan­do somente raros minutos de Espiritualidade, nessa metade de século.

Como me fora possível viver tanto tempo banha­da pela crença e tão sem comunhão com a Fé?

No momento, o acurado exame de todos os atos, a observação e guarda de palavras sábias, enseja­vam-me um mundo real, como jamais pudera imagi­nar. Ansiedade incontida crescia-me na alma, gritan­do-me a necessidade de dizer-te, minha filha, todas estas experiências e alertar os companheiros encar­nados com quem privara, quanto às realidades além da morte. Lembrava-me, porém, do Mestre Jesus que há tanto esclarecera o homem e não fora devidamen­te compreendido; do Espiritismo, menosprezado por uns e ridicularizado por outros, balsamizante e con­solador, desrespeitado até mesmo por aqueles que o dizem desposar, mas que não vivem de molde a atestar essa núpcia, nas relações humanas, e queda­va-me amargurada. Lembrava-me de que a evolução alcançará todos os seres, e que, à semelhança do que a mim mesma ocorrera, todos, em ocasião justa, trans­poriam igualmente a grande porta, despertando, en­fim.

Mas — porque não dizer? — o carinho humano e a afeição pessoal murmuravam-me: não seria lícito e justo que falasses aos teus amados, àqueles que con­fiam e esperam nas lides espiritistas? Talvez recebes­sem teus enunciados com orvalho lacrimal de emoção e como teu testamento fraterno de carinho. Simultaneamente, recordava o lúcido esclareci­mento do Instrutor Icaro: — não esqueçam de que Deus é Pai zeloso e Seu amor se distende igualmente, por todos... falando no Templo de Orações àqueles que ensejavam enviar notícias aos que ficaram no labirin­to da matéria.

Evocava que, noutro ensejo, ouvira observações em torno da obsessão como causa essencial do suicí­dio. E ficara surpresa ante as elucidações, porqüanto, em verdade, todo obsidiado que se deixou arras­tar ao desequilíbrio psíquico, por invigilância, é igual­mente um suicida, desde que descuida do precioso vaso da carne, diminuindo-lhe a resistência e abrevi­ando-lhe a caminhada. Mas os conflitos que me assaltavam eram mui­tos. Quantas vezes, eu mesma, com emoção e pieda­de, ouvira as manifestações psicofônicas de almas tor­turadas e mais não fizera do que balbuciar uma rápi­da oração intercessória! Não se repetiria agora o mes­mo fenômeno caso conseguisse o ensejo de um bre­ve colóquio com os irmãos encarnados?

A situação permanecia a mesma para eles, como fora para mim, antes da desencarnação. Mudara somente para a minha alma. Era, pois, imprescindível esperar e sobretudo con­fiar. A saúde, no entanto, dilacerava-me. A necessidade, minha filha, de falar-te, o anceio de retornar ao nosso lar, rever os amores, da retaguarda, angustiavam-me. Rogaria permissão à irmã Zélia, logo se me ensejasse ocasião. Confiaria ao futuro a minha ansiedade.

22 - CASTIGO AO CRIME

Entre os companheiros de Enfermaria, Clé­lia, a jovem epiléptica, era uma das interna­das a quem muito me afeiçoara. O seu rosto cândido e pálido, quase infantil, banhado por permanente nostalgia, falava-me muito à ter­nura.

Sempre que me encontrava a serviço, uti­lizando os panos da limpeza, demorava-me a fitá-la. E sempre que dispunha de alguns mi­nutos de repouso, aproximava-me do seu lei­to, procurando ser-lhe útil e animando-a com promessas de felicidade e júbilo. Entretanto, por mais insistisse, a jovem permanecia mer­gulhada em si mesma, qual pérola engastada no imo de concha consistente.

Intrigada e compungida, no ensejo mais próprio roguei ao Administrador Aurélio, que nos visitava quase diariamente, esclarecimen­tos que me favorecessem com as possibilidades de auxiliar com mais eficiência.

— É um caso típico — disse-me — de Castigo ao Cri­me. Ninguém malbaratará a existência na carne, des­respeitando o vaso físico e fugindo depois, à Justiça. Na Terra ainda é possível guardar-se o crime em mil malhas e escapar à Lei. Todavia, nenhum criminoso, por mais se adie o instante da reparação, escapará ao despertar da consciência, em qualquer tempo ou lugar, em nome da Verdade.

O crime, conhecido pela velha sabedoria como “sombra que persegue a alma”, faz se encontrem, no mundo espiritual, vítimas e algozes, na mesma trajetória. Por essa razão, a carne é uma bênção para a alma, pelas concessões que faculta: esquecimento temporário do passado, oportunidade de recomeço, ensejo de recuperação, campo de abençoadas disci­plinas, sendo a Terra a Oficina-Escola onde aprende­mos a construir o barco da felicidade.

“O espírito encarnado pode ser comparado a cor­po volátil em vasilhame fechado. Tem ação limitada e não sofre influências externas violentamente. Desen­carnado, porém, é como ácido livre a expandir-se, combinando-se com similares e misturando-se a eles. Reencontros, reajustamentos negligenciados, dívidas não resgatadas, remorsos candentes...”

E após breve silêncio:

— E o caso de Clélia. Guarda consigo um terrível drama, como nós mesmos, quando aqui aportamos, a pedir silenciosamente auxílio e entendimento. Aju­de-a como puder.

Compreendi a delicadeza e discrição do nosso ad­ministrador e sopitei o desejo de conhecer-lhe o labi­rinto de dor.

Busquei, desde então, cercá-la de orações e mais ternura animando-a ainda mais e falando-lhe do Pa­ternal Carinho de Deus, mostrando-lhe, enfim, que o passado está inevitavelmente conosco, com todo o caudal de conseqüências a rogar-nos ânimo e refazi­mento.

Todavia, mais do que palavras e compaixão, a do­ente necessitava do amor que gera entendimento fra­terno e compreensão. Para que se possa auxiliar de­vidamente, é imprescindível amar. Muitas escolas e organizações terrenas estão cheias de expoentes da palavra e de intercessores piedosos; no entanto, bem poucos se encontram cheios de amor para doar. As­sim, as palavras são mortas, porqüanto é inoperante todo conselho que não carrega o selo do entendimento e da caridade. Dispus-me a ver, na delicada sofredora, não so­mente a irmã, mas também a filha do coração que ne­cessitava de alguém.

Com o passar do tempo, a fonte do sentimento encarregou-se de transformar o meu cuidado em acen­drada ternura e, não raro, juntas, permutávamos nos­sas recordações sob emoção incoercível.

Clélia procedia de respeitável família paulistana, em cujo seio vivera quase cinco lustros.

Encarnara com graves problemas espirituais no lado afetivo, devendo demorar-se na honradez e na humildade para atrair os familiares à senda do enten­dimento da qual se afastaram desde priscas eras.

Bela e frágil, cedo constituiu-se o centro de inte­resse dos familiares e dos amigos alegres que lhe in­vejavam a beleza suave e as qualidades de inteligên­cia a se aformosearem, cada vez mais, com eméritos professores encarregados da sua formação cultural. Sorria-lhe a vida entre venturas e promessas de feli­cidade. No entanto, não se sentia feliz. Constantemen­te era presa de tormentosa tristeza que carregava de dor o solar imenso onde residia. Sentia-se presa a recordações dolorosas que se acentuavam quando em estado depressivo, como se vivesse a evocar pa­voroso passado, perdido em brumas e sombras. E nesses estados, invariavelmente era acometida de desmaios imprevistos, despertando, banhada de su­ores, sob atrozes padecimentos.

Consultados, os especialistas atestavam cansa­ço mental, necessidade de espairecimento, receios... Passada a crise, só a lembrança dolorosa, como ima­gem de sonho a diluir-se, e ela permanecia angustia­da, até quando os deveres voltavam a povoar-lhe a mente, tomando-lhe a atenção. Algo, porém, seguia-a freqüentemente, como um receio ou uma premoni­ção fantasmagórica.

Aos 22 anos, conheceu um jovem de procedência humilde, filho de imigrantes — Carlo —, que a sensibili­zou de imediato. Fascinada pelos encantos físicos do moço que servia numa das Organizações da família dela, não se receou de animar um romance que pre­nunciava, de início, conseqüências graves.

Todavia, apesar de reconhecer os obstáculos que surgiriam para a concretização de uma aliança feliz, não podia esquecer o homem que a arrebatava. Nessa ocasião, os estados angustiantes aumen­taram, conduzindo-a ao leito, para dissabor geral.

Acreditando que o agravamento da enfermida­de tivesse origem na excitação, fruto do romance que ocultava, resolveu falar à mãe, aconselhando-se. Na primeira ocasião, em pranto, narrou-lhe a sua aflição e, ante o espanto materno, compreendeu que jamais experimentaria a felicidade que ansiava, ao lado do amado, o que, logo após, pôde positivar.

Passados alguns dias, a conselho médico, seguiu para a França, a repousar nas águas famosas de Vi­chy, onde certamente se beneficiaria. Seis longos e tristes meses permaneceu no Velho Continente sob cuidados médicos e desvelos mater­nos, visitando cidades, demorando-se junto aos famo­sos lagos e montes da Suíça e nas ensolaradas praias da Riviera. Por mais tentasse esquecer o jovem, não o con­seguia, deixando-se lentamente consumir pelas vo­razes labaredas de desenfreada paixão que arquite­tava planos macabros quando do retorno.

Carlo, entretanto, dissipador e ingrato, reconhe­cendo a afeição da filha do patrão, aguardava somen­te lhe abrissem as portas de acesso à fortuna e ao poder. Esperava assim, a volta da inexperiente meni­na. Acreditando esquecido o romance da filha, Ma­dame M. retornou à Paulicéia, acompanhada da jovem que parecia aparentemente recuperada, embora con­servando os sinais habituais da melancolia.

No imo da moça, o vulcão do desenfreado amor não se apagara. Ao contrário, rugia violento. Retornando, tentou logo um encontro com o moço amado e, em breve, irresponsável, entregou-lhe o cor­po, como se assim testemunhasse a afeição de que se encontrava possuída. No lar tudo corria feliz...

Com algum tempo Clélia começou a sentir alar­mantes sinais... Consultou, incógnita, famoso gineco­logista. A resposta aniquilou-a: ia ser mãe! Retornou-lhe a inquietação, a necessidade de li­bertar-se do filho não solicitado. Veio à lembrança a honra da família, a vergonha... como se a desonra se constituísse, apenas, do conhecimento público da fal­ta e não do ato praticado.

Nas visões desordenadas que passou a experi­mentar, agora mais do que antes, obsidiavam-na vo­zes de alguém, ensangüentado, rogando-lhe pieda­de e socorro. A visão hedionda suplicava-lhe a opor­tunidade de renascimento, a bênção da vida. Desper­tava, subitamente, banhada de suores frios, com a idéia fixa, porém, do crime planejado.

Ao terceiro mês de gestação, assalariando hábil especialista da grande cidade, libertou-se do débil corpo e, após algum repouso na casa de campo, vol­tou ao convívio social. As crises, então identificadas como epilepsia, re­petiam-se amiúde, abatendo-a e apresentando sinais de enfermidade mais grave. Durante os acessos que se alongavam qual pesadelo cruel, voltava-lhe à men­te congestionada o extirpamento do filho que, aos seus olhos, crescia e se transformava numa visão te­nebrosa, como implacável algoz a apontar-lhe o cor­po retalhado, clamando em convulsões terrificantes:

— Vingança! Vindita! —, pondo-se a persegui-la até o total mergulhar nas águas escuras do desfalecimen­to.

Decorridos quase catorze meses do atentado, já não podia mais sequer erguer-se do leito. A tubercu­lose que a minava lenta e cruelmente, tomou vulto ameaçador, devorando-lhe as últimas energias do organismo combalido. A este tempo, acidentado na via pública, após uma noite de libações, Carlo desencarnava no Pronto Socorro, sem saber do estado daquela que tanto o amava.

Três dias depois, Clélia fez igualmente a grande viagem, ignorando a tragédia ocorrida com o seu amado.

Cercada do carinho do mundo, recebeu flores, se­pultamento honroso, lágrimas, adeuses e ofícios fú­nebres. Ninguém lhe soube o segredo nem o crime. Quando despertou no sepulcro lodoso onde se lhe decompunha o corpo, viu ao seu lado o fantasma en­sangüentado, como nos pesadelos anteriores. Ao ten­tar fugir, a forma grotesca ergueu-se e aqueles peda­ços, como se fossem emendados, celeremente avan­çaram com mãos crispadas em direção à sua gargan­ta, estrangulando-a impiedosamente. Horrorizada, escutou a narrativa dos seus crimes do ontem remo­to e próximo, e foi cientificada de sua desencarnação, enquanto aquelas tenazes cruéis a asfixiavam demo­radamente.

Tremiam-lhe todas as fibras e o coração arritma­do parecia arrebentar-se. Tinha a impressão de que logo sucumbiria. Ao aflorar à mente tal idéia, a mes­ma voz cavernosa lhe gritou: — Estás morta... Isto é a morte... É o fim... — e apontava-lhe dominador, os des­pojos em lama, naquele triste recinto.

Olhando, aparvalhada, em derredor, verificou que seus pés se encontravam atados às carnes a se des­mancharem, enquanto forte liame cinzento a ligava àcabeça inerte, deitada no esquife sedoso.

Angústia indescritível tomou-a de inopino. Era uma morta-viva no inferno.

As lembranças das narrativas religiosas, a que se ligara na Terra, surgiram, tomando corpo, apresen­tando figuras demoníacas que a torturavam até àexaustão. Os anos correram-lhe lentos e lúgubres, até quan­do, não saberia informar, foi conduzida ao nosso pla­no sob a piedade de Jesus Cristo. Embora esclarecida sobre a própria enfermida­de, tinha, através dos anos, longa estrada reparado­ra a percorrer.

Libertada da perturbação do desafeto, retorna­va psiquicamente, com freqüência, às recordações plasmadas na retina da memória, e as crises, de quan­do em quando, recrudesciam.

O filho rejeitado, motivo indireto da sua desen­carnação, era a mesma alma ferida de antes, que vol­tava ao seio materno para o reajustamento e a orien­tação. Com a reação descontrolada, entretanto, do seu caráter fraco, adiara injustificavelmente a reabili­tação, cavando um abismo de lágrimas e sangue, en­fermidade e dor para o futuro.

Oh! minha filha. No caminho da carne encontra­mos, a cada instante, edificações, aprimoramento e libertação, esperando por nós. Não desprezes a con­tribuição do sofrimento na tua marcha, em busca da Verdade. Serve-te da doação provacional com a mes­ma avidez e o reconhecimento com que o sedento rece­be o copo dágua fria.

As provações, conforme ensinaram os Espíritos do Senhor ao preclaro Codificador, na resposta à per­gunta 266, de O Livro dos Espíritos, são frutos de uma escolha. Quando o espírito “se desliga da matéria, cessa toda ilusão e outra passa a ser a sua maneira de pensar”, preferindo, por isso mesmo, as mais do­lorosas. Porque, comenta o sábio lionês: sob a influência das idéias carnais, o homem, na Terra, só vê das provas o lado penoso. Tal a razão de lhe parecer na­tural, sejam escolhidas as que, do seu ponto de vista, podem coexistir com os gozos materiais. Na vida es­piritual, porém, compara esses gozos fugazes e grosseiros com a inalterável felicidade que é dado entre-ver, e desde logo nenhuma impressão mais lhe cau­sam os passageiros sofrimentos terrenos”.

Abençoada é, pois, a lágrima que rola no silêncio da noite, quando a renúncia e a esperança envolvem o coração!

Enquanto nos demoramos a querer o mundo a gol­pes de ambição desequilibrada, alongando efêmera ilusão da felicidade pela posse ou pelo círculo de afe­tos, retardamos a ocasião da ventura legítima.

Todos reclamam quando sofrem e muitos debla­teram. As casas religiosas apinham-se de crentes que mais buscam a libertação dos problemas através de concessões indébitas, que propriamente solução aos problemas pelo trabalho sacrificial. Tornam-se nego­ciantes da felicidade.

Compram a paz com a prece rápida e o semblante falsamente pungido, enganan­do-se, positivamente. As concessões do Céu são misericórdia de acrés­cimo em favor da nossa debilitada esperança. A quantos sofrem na escalada evolutiva, digo:

Bom ânimo! Muito mais vale sofrer do que fazer sofrer;­ resgatar para ser livre; evoluir para ajudar. Na vanguarda ou na retaguarda, há muitos amores contando conosco. Os que seguem à frente, amparam-nos e inspiram-nos; os que seguem atrás, rogam au­xílio e confiam em nós. Conquistemos, assim, para doar; ascendamos para socorrer: redimamo-nos para salvar. Jesus e nós, nós e o próximo. O caminho é o mes­mo para o oásis bonançoso. Sigamos!

23 - DITOSO ENCONTRO

Os dias sucediam-se cheios de ensina­mentos. Quando, depois de grande período de ce­gueira, voltamos a enxergar, ficamos deslum­brados com a beleza da visão e quedamo-nos extasiados. Os cenários mais conhecidos apre­sentam novos motivos e detalhes que antes não foram percebidos, mas agora nos convi­dam a meticuloso exame e acurada observa­ção. Em relação à alma que regressa à Pátria espiritual o fenômeno é o mesmo.

A natureza que envolve o Educandário­Hospital de nossa Colônia, muito semelhante à paisagem terrena, diversifica-se somente pela exuberância de cores e o aformoseamen­to mais cuidado do ambiente. É que a visão ampliada favorece a observação. Mesmo na Terra, quantas vezes passamos por verdejan­te campina sem dar-lhe a menor atenção? Não são muitos os homens que se deixam extasiar por um crepúsculo, na quadra da Primavera, ou por uma noi­te enluarada, nos meses de Verão.

Com os olhos cobertos de tristeza, na jornada da carne, o homem tudo vê triste. No entanto, o Senhor povoou a habitação terrena com maravilhas deslum­brantes para encanto e felicidade dos espíritos em jornadas.

Em nossa esfera, porém, fascinados pela ânsia de crescer, evoluir e reparar, a Natureza é mensagem de constante harmonia, sublimando a saudade, con­citando ao alento e felicitando o coração.

Com o concurso do trabalho, as lembranças pou­co felizes deslizam da mente e mergulham no dever, impelidas pelas necessidades de renovação íntima. No meu segundo aniversário de desencarnação, fui surpreendida com uma notícia feliz, a mim trazida pelo desvelado amigo Adrião: ia receber a visita de mamãe. Tão grande foi a minha emoção que pensei ser vítima de um vágado. Esfogueamento inesperado to­mou-me a face, que se banhou de suor, e a mente re­tomou aos antigos sítios.

Recordava-me do coração materno com sauda­de e gratidão. Aquela figura alta de mulher humilde, acostumada ao sofrimento e à privação, que tanto se martirizara pelos filhos, novamente me voltou ao es­pírito. Em minhas indagações mudas, habitualmente buscava-a através dos colóquios da prece. Onde es­taria? Qual a sua situação? Seria feliz? Ainda estaria desencarnada ou já teria voltado à Crosta. Onde?...

Saber, no entanto, que iria recebê-la, apesar da indigência que eu carregava comigo, constituía uma ventura, minha filha, que te não posso descrever. O dia parecia não passar, embora os trabalhos normais me preenchessem as horas. Encontrar-nos-íamos às 22 horas, no jardim da Enfermaria, residên­cia onde me hospedava.

Quando a noite desceu, procurei repassar men­talmente os fatos da minha vida na Terra, e, embora emocionada, perturbava-me a lembrança de que car­regava mãos vazias ao ter de apresentar-me à ma­mãe. Se me perguntasse que fizera da existência físi­ca com que Deus me presenteara, através da sua re­núncia e da sua carne, que lhe responderia eu? Ma­quinalmente recordava a lição de O Evangelho Segun­do o Espiritismo no que diz respeito ao desvelo dos filhos para com os pais.

Afligia-me a lembrança de quantos sofrimentos causara à alma bondosa e sim­ples, e o remorso acudiu-me ao chamado. À hora aprazada, acompanhada da irmã Zélia, deu entrada no pequeno jardim aquela que agora, mais do que nunca, era uma felicidade para a minha alma. Procurei conter as lágrimas, sem o conseguir, porém. Vestia-se de branco tecido leve e notei quan­to estava bela. Sorria como outrora, sorriso mistura­do à mesma tristeza enigmática. Seus olhos grandes brilhavam também, banhados de lágrimas. Abraça­mo-nos demoradamente e todo um turbilhão de afli­ção que trazia comigo desatou em copioso pranto. Sentia-me pequena, outra vez, nos seus joelhos, àporta de nossa casinha humílima, sem palavras, sem raciocínio, sem indagações. A grande saudade tinha

sede de repouso, e, por mais desejasse falar, a pala­vra estrangulada na garganta não se fazia ouvida.

— Agradeçamos, minha filha, ao Senhor Jesus —foram as suas primeiras palavras —, a felicidade ime­recida desta hora.

— Mamãe! — eis quanto pude dizer.

Sua palavra clara, misturada a uma imensa ter­nura, fez-me relato ameno das suas atuais tarefas, bem como das lutas que precederam aquela hora, lou­vando o Mestre. Bendizia a extrema pobreza, as su­perlativas aflições e toda sorte de desgostos e aban­donos que experimentara, funcionando como ensina­mento corretivo e equilibrante para o seu espírito.

A Terra fora-lhe abençoada escola de redenção, em cujo seio aprendera a lição brilhante do sofrimen­to, reparando antigos desmandos. Desejava retornar, outra vez, para recomeçar; todavia, no momento não lhe era possível. Papai retornara já e encontrava-se na estância de abençoadas retificações...

Informou-me estar cooperando na Crosta com as equipes espirituais que ajudam os ébrios, na tarefa de libertação dos vampiros, atendendo aos implacá­veis perseguidores. Por essa razão e por outros im­positivos não me pudera visitar anteriormente, ape­sar do seu grande desejo. Estivera comigo nos pri­meiros minutos, após a minha desencarnação e en­quanto hospitalizada, na fase mais difícil da liberta­ção física. Eu não a percebera, entretanto. A querida Zélia seguia o nosso colóquio com acen­tuado interesse fraternal. Opinava, esclarecia, ajun­tava anotações, sempre que oportuno. O tempo escoava célere. Desejava indagar, apresentar a minha felicidade e as minhas inquietações. Mas antes de o fazer, a voz materna confidenciou-me:

— Filha, o tempo é precioso tesouro do Banco Di­vino. Não podemos malbaratá-lo em expressões ocas de júbilo inoperante nem com frases pessimistas de sofrimentos inexistentes. Rendamos graças, incessan­temente, e avancemos. Estou informada das suas no­vas responsabilidades e exulto com o mais puro con­tentamento. O verbo mais simpático para nós conju­garmos, no momento, é o REPARAR.

A alva banhava de claridade o promontório a dis­tância. Estivemos juntas mais de seis horas consecu­tivas. Chegava o momento das despedidas.

— Estaremos juntas pelo pensamento e ligadas pelos deveres no campo do Bem — falou mamãe. Re­encontrar-nos-emos sempre que as nossas tarefas nos permitam. Trabalhe, renove-se e persevere no ca­minho sacrossanto do auxílio. Não poupe esforços nem sacrifícios. A moeda do amor é de difícil aquisi­ção, filha, não esqueça. Abraçamo-nos e novas emoções nos tomaram a ambas. Além acenaram, irmã Zélia e mamãe, banha­das da luz nascente da madrugada. Não me pude recolher. Continuei no banco onde nos demoramos, recapitulando, recordando. Realmente o dia começa com a alva. Era neces­sário começasse o meu novo dia. Lembrei-me, então, de ti, minha filha, na caminha­da dos homens, e compreendi que necessitava cres­cer e desdobrar-me. Jesus convidava-me, em silên­cio, a seguir o rumo do sacrifício. Aspirei o ar balsâmico da manhã e pousei os olhos no disco solar. Delicada melodia varria a natureza. Seria externa ou era apenas a música de recolhimento e gratidão que o meu coração cantava?


24 - BOAS NOVAS

A esse tempo fora lotada na equipe da queles que aplicavam passes a recém-desen­carnados. As lições aprendidas com Adrião, junto ao leito de Clélia, abriram-me as portas às possibilidades do auxílio, como jamais po­deria supor antes.

Com o carinho do dr. Cléofas, que me in­cluiu entre os seus auxiliares, fui lentamente aprendendo novos métodos de assistência através dos recursos do passe magnético, com­preendendo o largo campo de socorro que te­mos ao alcance e de que raramente fazemos uso.

Compreendi que a condição essencial para o passe é o amor puro e desinteressado, liga­do ao espírito de renúncia e confiança nas da­divosas Fontes da Energia.

Aquele que perder a vida, ganhá-la-á — in­formou o Mestre. E o conceito do Divino Instrutor pode ser aplicado no mister passista, quando se vai a Seu serviço atender a quem sofre. O desejo de dar-se, de “perder a vida” para que outros sejam feli­zes, concede a vida plena ao doador e ao beneficia­do.

Diariamente, ao lado do dedicado Benfeitor, jun­to aos recém-chegados, colhia informações preciosas das malogradas experiências na carne. Verificava que na grande travessia, entre os homens, a grande mai­oria era colhida pelas tormentas do passado, incidin­do nos mesmos desequilíbrios, para cuja libertação reencarnaram. Aprendi que as idéias que mais per­turbam e as coisas que mais influenciam, devem ser vencidas a qualquer preço de dor. Carregamos na mente os valores de ontem que nos continuam a sub­jugar, conduzindo-nos a desmandos.

O amor selvagem, o desequilíbrio alimentar, o ál­cool, a cólera, o orgulho e o egoísmo eram os grandes responsáveis pela libertação precipitada das almas. Eles respondiam pela larga cópia de crimes no Orbe e pelos dolorosos estados de horror e loucura após a cortina tumular.

Constatei, muitas vezes, que o excesso de comi­da conduz maior número de almas à morte do que a carência de alimento. A paixão criminosa da posse apresentava grave índice de desequilibrados que, irracionalizados, se ati­ravam aos desvãos cruéis do anarquismo de toda or­dem. E por detrás de todos esses tremendos insu­cessos estavam os débitos de ontem, ligando almas a almas, erros a reparações frustradas, algozes a si­cários, em atritos continuados. E concluía que Jesus, dois mil anos depois de ter estado entre os homens, continuava ignorado. Tão fácil e clara afigurava-se-me a sua Doutrina, agora:

“Perdoar setenta vezes sete. Amar os inimigos. Desculpar os caluniadores. Marchar dois mil passos junto a quem nos pede uma caminhada de mil. Ignorar o mau e tolerar-lhe os males. Dar também a túnica àquele que pede a manta...” Recordava-me, filha minha, quantas vezes eu pró­pria desrespeitava esse código singelo e expressivo! Quantas quedas marcaram a minha alma por desa­tenção a essa preciosa síntese. E o orgulho, o egoís­mo e a ira eram os responsáveis pela desatenção. Ini­migo multimilenar de nossa integração no roteiro fra­ternista, o “eu” governa multidões e estilhaça cora­ções. O impacto da sua carga aniquila expressões valorosas de respeitáveis promessas.

“Aquele que quiser vir após Mim — ensinou o Mes­tre — renuncie-se a si mesmo, tome a sua Cruz e siga-me”. Desde a infância, habituamo-nos a ouvir essa lu­minescente advertência, no entanto... Eis os resulta­dos em toda parte.

A Terra era a abençoada promessa para a imor­talidade vitoriosa, de todos; no entanto, a multidão que chegava à Colônia, diariamente, mais se parecia a malogrados navegadores, colhidos por vendaval im­previsto. As câmaras reservadas à loucura apinha­vam-se, constituindo motivo de preocupação aos Mensageiros da Paz, na Administração da Casa, con­soante me informara o bondoso médico.

Os hipnotizados, em hibernação mental, enchiam várias Enfermarias, guardando a facies marcada pe­los horrores dos últimos dias na carne e os primeiros no Além, sob o acicate impiedoso dos adversários in­transigentes. Assemelhavam-se a mortos-vivos, mu­mificados, nos quais somente a débil respiração assi­nalava a presença da vida. Noutras horas, sob o be­nefício da prece e do passe, pareciam despertar, olhar esgazeado, estampando no rosto o pavor, monossila­bando com dificuldade de articulação sons incompre­ensíveis, para recaírem na mesma prostração de an­tes.

Era como um infinito desfilar de destroçados por guerra horrenda.

Dedicados cooperadores revezavam-se nos so­corros entre orações e auxílios de toda ordem, a cujo grupo fui incorporada, feliz e ansiosa da renovação íntima que se fazia inadiável.

Decorriam já três anos da minha desencarnação, quando a querida Zélia me acenou com a possibilida­de de um retorno ao Lar, em visita, por oito dias, fa­zendo parte de um grupo de companheiros sob a sua orientação, voltando ao seio das famílias.

Não me podia conter de expectativa e ansieda­de. Sabia não merecer essa desejada bênção. Vários amigos novos explicaram-me, anteriormente, as difi­culdades de conseguir-se ensejo para reencontros na Crosta. Ante essa promessa, não me podia dominar, visitada a todo instante pelo júbilo e pela emoção.

Depois de estafante tarefa de socorro a aciden­tados de Estrada de Ferro, recolhidos à nossa Colô­nia, a amiga espiritual informou-me que, no dia se­guinte, quarta-feira, às 19:30 horas, eu retornaria ao Lar, em programa de visita. Lembrei-me de que sempre escutava a tua voz, orando com meus netinhos, no Culto Doméstico do Evangelho, nos dias de quar­ta-feira. Sem conter a própria felicidade, osculei as mãos da Benfeitora, que sorriu feliz, deixando-me a conjeturar.

No dia aprazado, após os labores habituais, reu­nimo-nos no Templo, e a irmã Zélia esclareceu:

— Fomos agraciados com o feliz ensejo de reabas­tecimento de amor. Retornaremos ao seio carinhoso dos nossos familiares. Nem todos, entretanto, encon­traremos os entes queridos como desejaríamos. Dor, problemas, dificuldades, doenças, assinalam muitos dos lares programados. Tenhamos confiança em Je­sus. Já sabemos que a felicidade não se veste de ilu­são e que a paz legítima não é a resultante dos apa­ratos sociais do mundo. Temos aprendido aqui que o sacrifício e o sofrimento são instrumentos utilizáveis na construção do Reino de Deus. Não nos inquiete­mos, pois.

Depois de breve pausa, como que para reunir no­vas expressões, prosseguiu:

— A Justiça Celeste atende-nos em qualquer lu­gar e a Lei encontrar-nos-á em qualquer situação, buscando-nos para o reajustamento com a vida. Con­fiemos no Mestre Excelso e agradeçamos-Lhe a dá­diva de agora.

“Não temos o direito de tentar, sob qualquer pre­texto, em nome do amor, resolver os problemas que encontraremos na tela mental dos familiares, mas po­deremos inspirar-lhes ânimo e coragem para a luta, resignação e confiança na vitória do Bem. “Também não lhes devemos noticiar as próprias inquietações... “Utilizemo-nos da dádiva do Senhor como abe­lhas operosas que se comprazem na felicidade da flor!”

E como se fizesse continuado silêncio, a amiga espiritual concluiu:

— Formaremos um gupo de almas ligadas pela ora­ção, concentradas no serviço que nos aguarda, e uti­lizar-nos-emos da volitação para a viagem à Terra.

25 - RETORNO AO LAR

Quando soavam as vinte horas, de coração opresso entramos no Lar, irmã Zélia e eu. Pre­paravas a mesa, minha filha, para o banquete com o Evangelho.

Desde as vésperas — informara-me a Ori­entadora — foras avisada pelos teus dedicados protetores, quando o sono te desdobrou. Já de outras vezes nos encontráramos, em agradá­vel comunhão, sob a tutela do repouso físico. E por essa razão, guardavas a idéia de algo que não sabias explicar. Descompassada e celere­mente procuravas sondar as telas da memória anterior, procurando recordar a notícia que pre­nunciava as satisfações dos próximos momen­tos. Inutilmente, porem.

Também eu, embora amparada pela Ben­feitora prestimosa que se oferecera a auxiliar­me, guardava ansiedade e emoção indescrití­veis. Era a minha primeira excursão fora da Colônia e esta aventura se me afigurava uma concessão valiosa que não sabia aquilatar.

O reencontro, filha minha, é sempre uma emoção indefinível para aqueles que atravessam a porta do túmulo. Porqüanto, sensações que pareciam amorte­cidas, com a recordação momentânea, através da vi­são, retornam, convidando o espírito a estados angus­tiantes e lastimáveis.

Sem poder vencer as evocações ali tão vivas, re­tornei aos sítios das lembranças, enquanto pequenas aflições se sucediam em minha alma. Voltaram-me ao pensamento, como por magia, velhos e insignifican­tes hábitos diários, satisfações e preocupações, ago­ra em formas-pensamento, a povoarem o recinto que habitara. As vozes das crianças, buliçosas e álacres, sacudiam-me o ser, e um intenso desejo de falar-lhes, abraçá-las, comunicar a minha presença, no momen­to, aspirar o ar que outrora me enchia os pulmões, descontrolou-me momentaneamente o equilíbrio ain­da vacilante. A irmã Zélia que me acompanhava o dra­ma do momento, em que o tempo era vencido, desa­parecendo o passado para somente existir o presen­te, acudiu-me, zelosa:

— Otília, não permitas que a ansiedade destrua a presente concessão do Céu. Pensar fortemente é cons­truir, e recordar com demasiada intensidade é revi­ver. O momento não comporta lamentação mental nem desejo pessoal inoperante. Valoriza a jóia dos minutos e procura serenar a alma para o êxito do nos­so empreendimento.

Assim admoestada, procurei refazer-me sob a ins­piração da paciência, enquanto me entregava à mãos do Senhor, agradecendo-lhe a felicidade daquela hora. A noite contribuía para a justa felicidade do nos­so entrelaçamento afetivo. Uma grande serenidade passeava no ar leve, transparente, coroado de estre­las no Infinito. O velho companheiro, que me fora um anjo ben­feitor na romagem da carne, para a justa felicidade do nosso coração, estava à mesa, e as crianças o cer­cavam. Colocaste o vasilhame da água para a mag­netização e, iniciado o Culto Evangélico, o texto lido falava sobre “Parentela corporal e parentela espiri­tual.

Após a leitura, ante uma assistência atenta de companheiros desencarnados, instada pela devota­da Amiga, aproximei os meus lábios dos teus ouvi-dos e, pousando a mão espalmada sobre a tua cabe­ça, pus-me a falar-te sobre o trecho lido.

A tua mente foi-se banhando de filetes azulados de luz, à semelhança do gás néon, e, em breve, do centro da tua cabeça, uma grande flor, com pétalas brilhantes e múltiplas, parecia surgir, tomando forma, e crescendo e derramando tonalidades violeta-azu­láceas que corriam pelo sangue, colorindo lentamen­te a cabeça, tórax e todo o corpo.

De mão apoiada à testa, na região do olho de Silva, ligando as pontas dos dedos à minúscula glân­dula interna da cabeça, pequeninos fios coloridos tor­navam-se brilhantes, fechando um circuito elétrico que a ambas nos envolvia. Procurei falar-te, então, através de apelos reiterados:

— Fala, filha!... Fala!... Repete!...

E, paulatinamente, concentrando-se cada vez mais, traduziste o meu pensamento, explanando jun­tas, fundidas no grande ideal da Caridade, sob a égi­de do Cristo, o texto admirável. A palavra facilitada pela inspiração superior irrigava-me o cérebro e pas­sava a ti numa sincronização perfeita, em torno da­queles que, embora não pertencentes ao nosso cor­po nem ao nosso sangue, são irmãos nossos, filhos do Boníssimo Pai, em nosso caminho de reparações. Faziam parte da imensa caravana dos infelizes, fusti­gados pela fome, frio, enfermidades, ou eram seres tresmalhados, dominados pelo ódio, revolta, inquie­tação, atados à esteira da viciação, do crime, da mi­séria moral — mais infelizes do que os primeiros — ou aqueles outros que zarparam na embarcação da mor­te e agora, em terras bravias, se desesperavam, se­dentos de posse, dominados pelo horror. Todos éra­mos realmente irmãos, numa família ampliada e es­palhada por terras diversas, limitados por fronteiras de entendimento, mas todos amados e carentes de ajuda recíproca.

Nesse ínterim, Amigos prestimosos higienizavam nossa Casa, destruindo larvas de viciação psíquica, reinantes no ambiente, e guerreando bactérias men­tais, que infestavam, invariavelmente, os lares.

Entre os maiores benefícios prestados pelo Culto Doméstico, no campo da fé religiosa, além da frater­nidade e do entendimento, passe e magnetização da água, destaca-se o da harmonia e identificação do pensamento em torno da monoidéia elevada, propi­ciando campo e material ao combate às vibrações ne­gativas que grassam nos ambientes coletivos.

Nosso colóquio prolongou-se por vinte minutos, aproximadamente, quando conclamamos os ouvintes à Caridade, desde a compaixão emotiva ao auxílio socorrista, materializado em doações pessoais, como entendimento, distribuição de pão, remédio e agasa­lho.

Compreendemos que o homem, aparentemente mau, é apenas um enfermo, portador de muitos ma­les, e que o coração que se banha nas águas turvas do ódio é apenas um espírito desequilibrado, sem ro­teiro nem discernimento para utilizar com sabedoria as oportunidades do caminho. E, em face disso, nos­sa função é amparar o doente, combatendo-lhe a en­fermidade; ajudar o mau, guerreando o mal que lhe perturba a organização espiritual, consoante os ensinamentos de Jesus.

Apagadas as luzes para as vibrações e preces intercessórias, utilizei-me do momento para coope­rar na transmissão de energias, imitando os nossos Amigos mais lúcidos, oferecendo-te, e aos nossos, a doação materna, em carinho e coragem, confiança no futuro e entendimento na dor, essa grande libertado­ra, alargando, com o auxílio divino, os nossos celeiros e guardando neles os valiosos recursos do momento, para os dias do futuro.

Encerrada a reunião, acompanhei a alegria ge­ral, participando das conversações posteriores, liga­da pelos fios do pensamento e assegurando-te a con­fiança vacilante, quanto à minha estada, no Lar, na­quele momento.

Uma grande ventura invadia-me toda. Mais uma vez observava a excelência da fé e o valor do lar cris­tão nos grandes cometimentos da vida.

Voltou-me à mente o ensinamento do Divino Mes­tre: “Aquele que crê em Mim já passou da morte para a vida”, e senti na vida vitoriosa, além da morte, a Mensagem cristã como um farol abençoado.

Graças ao Espiritismo, que nos legou os meios que favorecem a comunicação entre os dois mundos, podem as almas trazer a notícia aos caminhantes da experiência física, revigorando-se pela permuta de amor, já que não cessam as emoções no intercâmbio da vida.

Graças a Allan Kardec, que “matou a morte”, po­demos hoje repetir que realmente “ninguém morre”. A vida é inextinguível. Com a destruição do corpo, o espírito libra-se acima das vicissitudes e continua. E ante a minha felicidade, não pude deixar de render o meu culto de gratidão ao Professor lionês que tanto sofreu, desde a chocarrice e o escárnio dos contem­porâneos até o opróbrio e a maldição, para positivar a continuação da vida, depois da destruição dos despojos materiais.

Somente quanto a noite seguia avançada e te re­comeste ao leito, pude receber-te nos braços, nas asas do sono, demandando, ao lado da abnegada Benfei­tora, o pouso onde nos demoraríamos, durante a ex­cursão de aprendizado na Crosta.

No alto, as estrelas prateavam de faiscantes e lu­minosos fios o veludo espesso com que se cobria a noite formosa. O ar misturado de ozone e iodo, vin­dos da viração marinha, brincava no silêncio noturno. Jesus parecia mais próximo de nós, certamente por­que, através do amor, estávamos mais próximos dEle.


26 - MEDIUNIDADE COM JESUS

No plano de estudos e trabalhos estava programada uma sessão de desobsessão, em nosso antigo Centro, onde, anos atrás, me can­didatara ao serviço do Bem.

Somente o fato de ali retornar, na condi­ção de desencarnada, revendo os amigos no afã do socorro mediúnico, entrelaçados pela prece, era algo que me comovia. Depois, a soma de conhecimentos que poderia armaze­nar, em apenas uma noite, corresponderia a significativa coleta de apontamentos expres­sivos que não podia desdenhar.

No dia aprazado, às dezoito horas, ruma­mos, em grupo, sob a direção da irmã Zélia, para tomar parte na preparação do recinto, para as operações mediúnicas da noite.

Àquela hora a azáfama era grande. Enti­dades laboriosas, postadas à entrada da sala, guardavam o recinto, defendendo-o da incursão dos Espíritos mal intencionados.

Uma estranha muralha, com dois palmos aproxi­madamente de espessura, circundava o recinto e, ante a minha admiração íntima, a Benfeitora esclare­ceu tratar-se de construção fluídica para defesa da Casa. No interior, Espíritos familiares desdobravam-se em cuidados meticulosos, desde a assepsia men­tal do recinto, até a colocação de aparelhagem com­plicada, em várias posições.

As dezenove horas, começaram a chegar as pri­meiras almas sofredoras e atribuladas no nosso pla­no, que se juntavam às que se encontravam no recin­to, desde a véspera. A princípio, aparentemente a sós, depois, em grupos, confabulando, inquietas, mergu­lhadas nos mais mesquinhos problemas que se lhes afiguravam importantes, eram conduzidas a lugares adredemente reservados. Outros vinham assistidos por enfermeiros de brancas vestes, amparados cor­dialmente e colocados em leitos, como nas Enferma­rias da Terra.

Uns traziam expressões de dor e inquietude, ge­mendo ou chorando, enquanto outros ostentavam semblantes de zombaria, gesticulando, arrogantes, embora o estado deplorável das vestes e da própria organização espiritual. Parecia não darem conta de si mesmos, aplicando o tesouro do tempo na ostenta­ção do orgulho e da crítica pertinaz. Religiosos mote­jadores, de aparência cruel, proferindo expressões rudes, não tiveram acesso à sala mediúnica, ficando à porta, coléricos, em atitudes lamentáveis. Alguns ficavam a certa distância, distinguindo as mãos ami­gas que os ajudavam, enquanto outros pareciam mui­to distantes, sem percepção nenhuma, sendo trazidos ao campo magnético dos trabalhos por inspira­ção irresistível dos seus tutores espirituais. Outros, ainda, alheados de tudo, apresentavam-se à vonta­de, constituindo o conjunto uma cena entristecedora e comovente.

Começavam a chegar os primeiros encarnados. Orientadas pela Benfeitora, verifiquei que alguns encarnados chegavam seguidos por grande número de Espíritos vulgares e viciosos, que ficavam fora das defesas magnéticas, sem as poderem atravessar com os seus tutelados habituais.

— Aguardarão suas vítimas — informou a Instruto­ra —, depois que se deslocarem da reunião. Muitos companheiros que vêm à sessão, logo que se afas­tam dos elos magnéticos da prece e do entendimen­to, no templo, retornam aos problemas mentais, semi-hipnotizados como vivem pelos obsessores que os seguem transmitindo errôneas idéias e hipóteses fal­sas, até que se lhes esgotam as precárias energias defensivas que conseguiram armazenar no serviço, retornando, de mãos vazias, aos braços dos vampi­ros com os quais sintonizam.

“Alguns — prosseguiu, penalizada —, embora liber­tados momentaneamente das expressões obsiden­tes, penetram o recinto, com desrespeito e indiferen­ça, entregando-se, durante o trabalho, ao sono repro­chável, resultante da intoxicação mental de que são portadores, ou se deixam conduzir pelos pensamen­tos habituais, refazendo as ligações mentais e amea­çando o serviço venerando, pela possibilidade de in­vasão intempestiva dos seus algozes revoltados, constrangidos, na retaguarda, e que, destarte, encon­tram brechas no conjunto que deve ser protegido e defendido por todos.

Às dezenove horas e trinta minutos, deu entrada na Casa o Mentor dos trabalhos, responsável pelo serviço da noite. Os cooperadores espirituais expuseram-lhe as ta­refas concluídas, apresentando as dificuldades e ex­plicando as diferentes qualidades de Espíritos desen­carnados presentes, as medidas tomadas e a situa­ção mental dos encarnados, no momento. Após carinhosa inspeção e rápidas observações, Entidades intercessoras rogavam-lhe permissão para se comunicarem com parentes presentes ou pediam providências para seres amados em situações deli­cadas. Continuavam imanados aos “velhos problemas da carne”, situando as ansiedades no socorro materi­al, com prejuízo da aprendizagem que se derivava do sofrimento dos seus queridos.

Algumas mães aflitas, esposos ansiosos, irmãos e amigos em sofrimento, solicitavam interferência di­reta e auxílio, e a grande maioria rogava oportunida­de de comunicação pelos instrumentos mediúnicos. Delicado, porém enérgico, o Instrutor explicava a uns, expunha a outros, que o serviço a realizar-se en­contrava-se programado com antecipação, e que, no momento, muitas eram as dificuldades a transpor no concernente à colheita de resultados. No plano físico, começavam a leitura e conversa­ções preparatórias. Conversação sadia, tertúlia edifi­cante.

— Muito embora as comunicações somente sejam possíveis às vinte horas — explicou a irmã Zélia —, esse espaço de tempo destina-se à desintoxicação ou de­sencharcamento mental dos encarnados e harmonização psíquica dos médiuns com os desencarnados que se vão comunicar.

Nesse momento, aproximando-se do nosso Gru­po, o Instrutor Espiritual saudou a irmã Zélia e con­gratulou-se conosco, pela presença no trabalho da noite. Velho amigo, abraçou-me, informando-me es­tar cientificado de que eu iria ocupar o canal psicofô­nico do médium Marcos, para breves palavras. O mé­dium — explicou-me ele —, por sua vez, estava instruí­do nesse sentido, desde as vésperas, embora não se recordasse, conscientemente.

— Como você sabe — esclareceu, sorrindo —, o aca­so é resultante de um trabalho feito com muita ante­cedência.

Desejando-me feliz intercâmbio, afastou-se para continuar os misteres que lhe diziam respeito.

Fiquei emocionada e reconhecida. Quase à hora da prece de início da operação de intercâmbio, dois retardatários deram entrada no re­cinto, prejudicando, seriamente, a estabilidade psí­quica geral.

— São infelizes indisciplinados, — obtemperou irmã Zélia ao constatar a consternação geral dos traba­lhadores presentes.

“Nossos irmãos — prosseguiu — infelizmente, se habituaram à negligência e, por mais os advirtamos, demoram-se na atitude indiferente, entre prazer e dever.

E continuando, arrematou:

— Agitados e confusos, como se encontram, não poderão tomar parte na reunião. Ficarão fora das de­fesas internas até que se ajustem mentalmente ao clima local.

A prece foi feita pelo Diretor encarnado que, a esse tempo, estava parcialmente incorporado pelo Ins­trutor espiritual e fortemente inspirado. As palavras simples e sinceras do “velho” amigo de ontem, comoveram-me ainda mais. Devotado Instrutor do nosso plano utilizou-se da organização do médium Marcos para as orientações de início. A primeira comunicação ocorreu logo. Era uma alma impertinente ligada ao médium, em difícil pro­cesso de reajustamento, sob o lastro de uma dívida que se repetiu em várias encarnações com insucesso de ambos — informou a orientadora, sempre presti­mosa. Nesse momento, notei que algumas manchas, à semelhança de bolas escuras, caíam sobre o médium. Com o olhar, interroguei irmã Zélia. O esclareci­mento veio rápido:

— São as vibrações da assistência encarnada — dis­se, tristonha. “Alguns companheiros nossos, do plano físico —prosseguiu à meia voz —, além de não cooperarem, atrapalham com pensamentos de dúvidas, indiferen­ça e até, não raro, de mofa. Não se apercebem do grande drama que envolve as duas almas e, por isso mesmo, prejudicam o registro das impressões, pela mente do médium que, assim, ainda mais se dese­quilibra.

Chamando-me, a amiga incansável apontou res­peitável senhora, indagando:

— Notas algo?

— Sim. Está dormindo.

— Exatamente. O fenômeno aí é hipnose à distância. Seu perseguidor ficou na retaguarda; no entanto, continua ligado ao seu pensamento pela idéia.

— E não se pode fazer nada por ela? —indaguei, penalizada.

— É o que estamos tentando, no presente momen­to respondeu —. Trabalhando e procurando ajudar, convidamo-la à colaboração e à vigília, em favor dos demais sofredores. Convém não esqueçamos que a Lei é a mesma e invariável, para todos. Cada alma ésempre socorrida, no entanto, a ascensão só se fará pelos pés em movimento no Bem, de quem deseje subir. “Infelizmente — continuava, esclarecendo, — a nos­sa consóror, como muita gente, em chegando à reu­nião, acomoda-se, e, distante da atenção séria e do respeito ao Senhor que nos rege os destinos, por can­saço ou negligência, entrega-se ao sono, sem lhe ofe­recer a menor resistência.”

— Que fazer? — Inquiri, condoída.

— Orar por ela e por todos, confiando no tempo. Ao fim de alguns anos, despertará, talvez, mais infe­liz, visto que a enfermidade obsessional se compli­cará, conduzindo-a a enfermidade mais séria. A lâm­pada somente acende quando provida de pavio, em­bora o óleo abundante onde flutua.

Outro senhor, em cadeira vizinha, demorava-se inquieto. Os bocejos sucediam-se, enquanto a mente derramava, qual fruto apodrecido quando comprimi­do, substância escura e viscosa.

— É um discípulo e escravo da gula — acentuou a delicada trabalhadora. Embora as advertências do Di­retor da reunião, bem como das regras de saúde, o nosso amigo sobrecarregara o estômago e chega à sessão semi-congestionado e enfadado, como se, in­disposto qual se encontra, tivesse vindo fazer um fa­vor desagradável, mas de que se não pode furtar.

E apontando vários fatores positivos de insuces­so nos trabalhos mediúnicos, por parte, quase na to­talidade, da irreverência dos encarnados, a prestati­va mensageira lembrava-me que este é o material com que o tempo e a perseverança do Mestre vão mode­lar a felicidade e a ventura do futuro.

As comunicações sucediam-se.

Enquanto o Diretor encarnado atendia aos comu­nicantes, Entidades esclarecidas pregavam a grupos compactos, enfermeiros ativos conduziam sofredores, passistas socorriam aflitos...

— Mediunidade nos dois planos da vida — elucidou a Senhora Zélia. — Mediunidade com Jesus, pensando feridas, consolando corações, instruindo mentes, acen­dendo luz e socorrendo. Mediunidade e Jesus aman­do o homem e renovando o mundo.

O tempo passava.

O Instrutor aproximou-se de mim e convidou-me à incorporação.

— A irmã dispõe de seis minutos — informou, bon­doso. — Seja breve, O essencial não é dizer muitas pa­lavras, mas dizer o máximo com o mínimo de expres­sões, no menor tempo possível.

Ajudada pela abnegada Orientadora, aproximei-me do médium e, orando, fui-me assenhoreando do aparelho psicofônico, experimentando as mais com­plexas sensações. Enquanto leve perturbação das fa­culdades mentais me preocupava, grande lucidez to­mava o médium em concentração. Como se fosse des­maiar, ouvi enérgica voz, ordenando-me:

— Pode falar. Você já está incorporada.

Súbita aflição povoou-me o cérebro, turbilhonan­do-me as idéias. Atropelavam-se, no meu mundo men­tal, evocações e desejos, misturados a inquietante re­ceio. Lembrei-me, então, do Celeste Amigo, e tentan­do reter-Lhe a veneranda figura, recordei-me de uma das oleogravuras terrenas em que Ele aparece medi­tativo, contemplando Jerusalém adormecida, e veri­fiquei que, ao desejar votos de felicidades e venturas aos irmãos, a boca do médium, abrindo-se, enunciou as primeiras palavras que se desenhavam na minha vontade.

Deslumbrada, notei que a organização me­diúnica do amigo encarnado emoldurava-se de sua­ve claridade e que, do cérebro e do coração, despren­diam-se, em colorido múltiplo, fachos brilhantes que variavam de intensidade, à medida que o meu pen­samento era registrado e transmitido. Reunindo todas as forças para deter a onda emo­tiva que me espreitava, recataloguei idéias.

E, à me­dida que a palavra, a princípio vacilante, depois mais ritmada, expressava os meus desejos, confundi-me na aura do instrumento, vivendo, em mim mesma, a felicidade de testemunhar, aos amados, a vitória da vida sobre a fragilidade da carne. O tempo corria e, sob o controle do Instrutor diri­gente dos trabalhos, senti a necessidade de limitar os anseios crescentes, despedindo-me, emocionada e jubilosa. Agradável bem-estar empolgava-me, e aos meus ouvídos continuava a escutar as palavras enunciadas, agradecendo ao Céu o contentamento imerecido da­quele instante.

Logo depois, o Amigo Espiritual, ocupando a mes­ma organização psicofônica do encarnado de que me utilizara, proporcionou elucidações cheias de alento, nas quais se misturavam sabedoria e bondade, recor­dando-nos o conhecido roteiro da Caridade e do Amor. À hora aprazada, depois da prece de reconheci­mento, foram encerrados os serviços.

27 - CARIDADE E RENÚNCIA

Concluída a tarefa mediúnica, no plano fí­sico, o movimento continuou, entretanto, na esfera dos desencarnados. Sofredores atendidos, durante as orações, permaneciam aguardando remoção, embora assistidos de perto por zelosos enfermeiros. A agitação de alguns Espíritos não aten­didos durante o programa socorrista, afligia-me. Todavia, a serenidade com que os desve­lados Benfeitores agiam, estimulava-me à co­ragem e à confiança.

Acesas todas as lâmpadas, os companhei­ros encarnados ofereciam atitude lamentável, em matéria de conduta espiritual. Rapidamente retomaram à bulha desres­peitosa, como se estivessem num recinto de­dicado ao prazer, esquecidos, talvez, de que o santuário onde a mediunidade labora é uma Enfermaria-Escola de auxílio imediato e aprendizado aproveitável.

Outros voltaram naturalmente às velhas idéias e opiniões a que se afeiçoaram, desde há muito, sem apresentarem, após tanto esforço dos seus Guias e Protetores, qualquer modificação no plano mental. Alguns semblantes apresentavam evidentes si­nais de tédio e cansaço, sem o menor vestígio de sa­tisfação ou conforto pelo ensejo de ajudar, ajudando-se. Noutros encarnados identifiquei indiferença pro­funda pelo trabalho a que assistiram e, orientada pela irmã Zélia verifiquei, surpresa, que nem sequer havi­am tomado parte, de qualquer forma, nas realizações da noite de atividades.

Somente em alguns poucos pude constatar o res­peito e a alegria íntima, fazendo análise sincera de tudo quanto ouviram, em exame cuidadoso. Obser­vei que esses poucos, mesmo encerrada a reunião, continuavam ligados à organização espiritual mante­nedora dos serviços oferecendo plasma mental e fluídos salutares que eram utilizados pelos operadores para assistência aos desencarnados socorridos.

As entidades infelizes, que permaneciam à entra­da, abraçavam, cheias de sarcasmo, seus habituais comensais psíquicos, entabulando, com risos e atitu­des ridículas, conversações de desrespeito e zomba­ria, das quais o encarnado participava, através da transmissão do pensamento, duvidando de tudo, sem consideração alguma pelo culto e atirando espinhos de suspeita infundada na honorabilidade dos media­neiros.

Aproximando-me de cavalheiro bem posto que eu havia conhecido nos dias da carne, observei-lhe as dú­vidas mentais, nas quais, a suspeita perigosa e a cru­eldade se davam os braços para alicerçarem pontos de vista, aparentemente respeitáveis, porém profun­damente falsos. Monologava negativamente, com sorriso superior.

Guiado por terrível vingador do Além, acercou-se do médium Marcos, desejando injetar-lhe fel de desconfiança e veneno de amargura.

O Instrutor dirigente que o observava, antecipan­do-lhe a planificação maléfica, envolveu o medianei­ro, atendendo-lhe o canal inspirativo e aguardando, sereno, a investida da impiedade.

— Interessante a comunicação da nossa Otília —, adiantou-se o suspeitador inveterado. “Notei-a elevada, com fraseado novo, vestindo as palavras com argumentações muito diversas da ca­pacidade que lhe era habitual. A voz, as expressões, diferenciavam-na bastante daquela que eu conheci.”

E num tom arrogante, desferiu o golpe, bem tra­çado:

— Não fosse por seu intermédio, confesso duvida­ria da autenticidade da comunicação. Somente a re­conheci, ao terminar, quando se identificou pelo pró­prio nome.

O médium, colhido de surpresa, tentou esclare­cer algo, acrescentando explicações sobre as possí­veis razões das diferenciações notadas.

— Em mediunidade — falou o instrumento, dese­jando esclarecer —, existem muitas sutilezas que es­capam a uma observação superficial. É necessário exame mais acurado, estudo das circunstâncias e dos impositivos do momento, para chegar-se a uma con­clusão a respeito do intercâmbio espiritual e...

Ia prosseguir. O mentor, entretanto, cioso das res­ponsabilidades da hora, não deixou que o trabalha­dor oferecesse qualquer resistência às investidas do desrespeito. Silenciou-o com oportuna sugestão men­tal, inspirando-lhe uma resposta vaga, inexpressiva.

— ... e, não sei mesmo explicar — arrematou.

Como o interlocutor tentasse insistir pertinazmen­te com indagações impenitentes, o médium, forte­mente atendido, encerrou o assunto, acrescentando:

— Não me recordo do que a amiga espiritual reco­mendou, entretanto sugeriria que o amigo, despre­zando a questão de identidade, examinasse os ensi­namentos e procurasse meditar com melhor proveito para si mesmo.

E, discretamente, desvencilhou-se, defendendo-se de novas investidas. O cidadão afastou-se agastado, prometendo não mais retornar e argumentando consigo mesmo, entre enraivecido e vitorioso: “Tudo é fraude!”

Decorridos alguns minutos, a sala voltava ao si­lêncio, com a saída dos companheiros encarnados.

Algumas entidades, igualmente ligadas a deve­res de outra ordem, demandaram seus compromis­sos.

O Instrutor-dirigente, porém, informou-nos:

— Sigamos o médium Marcos até o lar, porqüanto, logo mais, necessitaremos ainda da sua contribuição.

E voltando-se para mim, informou, bondoso:

— Mediunidade com Jesus é vivência na Caridade e na renúncia, no sacrifício e na abnegação. Somos constrangidos a utilizar os companheiros mais devo­tados, embora sobrecarregados, porqüanto os “de­socupados não dispõem de tempo para o trabalho”... “Naturalmente que “àqueles a quem muito foi dado, muito lhes será pedido”; bem assim, o que muito der em favor de outrem, muito receberá em nome de todos.”

E alongando explicações, continuou:

— Consideremos o médium como enxada valiosa para o benefício do solo. Quanto mais movimentada, mais brilhante. Ao revés, negando-se a contribuir no trabalho, gasta-se sob a ferrugem devastadora.

“Quando o Senhor organizou o Colégio galileu, preferiu homens rudes, mas afeiçoados ao trabalho cujo corpo, já cansado de lutas, estivesse habituado às pelejas. Não procurou os doutos, acostumados às sedas e às cátedras e pouco aclimatados às lides in­cessantes do trabalho.

“Na lição do Mestre encontramos o ensinamento de que melhor servidor é aquele que não mede es­forço na execução do trabalho, dispondo sempre de renovadas energias, quando se faz necessária a doa­ção de si mesmo.”

Nesse ínterim, chegamos à residência do mé­dium, que ainda não a havia atingido.

Um espetáculo inteiramente inédito me aguarda­va.

Entidades revoltadas sitiavam a residência do medianeiro em atitude combativa, discutindo, em al­tas vozes, os meios de destruir-lhe a influência junto às suas vítimas habituais.

Alguns comentavam, exaltados, sobre a possibi­lidade de o assassinarem, procurando meios que co­roassem de êxito o empreendimento. Outros sugeri­am lhe fosse intensificado o cerco, através de calúni­as bem urdidas e intrigas disfarçadas, colocando-se-lhe, no caminho, escárnio, dificuldades e inquietações. Jovem indigitado, desencarnado, gritou:

— Exploremos-lhe a fonte da sentimentalidade, cri­ando obstáculos afetivos e afastando-lhe os compa­nheiros mais próximos. Não há quem resista...

E depois de breve pausa, com sorriso vitorioso:

— A ingratidão e a calúnia, a solidão e o desprezo aniquilam qualquer resistência. Nessa hora, então...

Alguém arrematou:

— Está pra nós!

A discussão prosseguiu animada. Olhando-me, expressivamente, o Instrutor Élsior, que nos acom­panhava, acrescentou:

— Caridade e renúncia com oração e amor são as únicas armas de defesa que o médium pode utilizar nas abençoadas lides de manutenção da paz e do tra­balho.

Fazendo-nos identificar, o Benfeitor deu entrada no lar, seguido por nós outros, enquanto os Espíritos irresponsáveis debandavam ruidosamente proferin­do expressões grosseiras.


28 - DÍVIDA E RESGATE

Às vinte e três horas e trinta minutos, o mé­dium procurou o leito e, depois das orações habituais, antes de adormecer, procurou ligar-se ao Abençoado Mestre.

O Instrutor dirigente, Élsior, aplicando-lhe passes hipnóticos, procedeu-lhe ao desdobra­mento, através do sono.

Jovial e comunicativo, saudou-nos efusiva-mente. Decorridos alguns minutos, nós o tínhamos ao lado.

— Apressemo-nos — sugeriu o Instrutor. — O dever nos aguarda!

Rapidamente retornamos ao Núcleo, con­duzindo o companheiro, temporariamente li­berto. O recinto apresentava agora outro as­pecto. As cadeiras acomodavam Espíritos atentos e o ambiente era de profundo respei­to. Todos se encontravam mergulhados na oração, compenetrados das responsabilidades que lhes pesavam. Uma mesa, algo afastada dos assistentes, cer­cava-se de 10 cadeiras, onde Entidades trabalhado­ras igualmente mergulhavam a mente em meditação e recolhimento. As paredes da sala ofereciam, na sua simplicidade, brancura invulgar.

O Instrutor Élsior conduziu o médium a uma das cadeiras isoladas junto ao leito asseado onde repou­sava um Espírito de semblante implacável, em sono torturado.

— É o vingador de jovem que milita no Centro —informou-me a irmã Zélia —, e que vai ser atendido, logo mais.

Decorridos breves minutos, deu entrada no recin­to uma jovem, igualmente desdobrada pelo sono, apresentando no semblante os caracteres evidentes da obsessão acentuada que a consumia. Vinha assis­tida por dois devotados amigos da nossa Esfera.

Encaminhada carinhosamente ao assento vazio, conservava no rosto a mesma expressão de receio, embora fortemente atendida pelos recursos magné­ticos dos assistentes. Não parecia ter noção do que se passava, alheada a tudo.

Uma nova reunião mediúnica ia ter lugar. Permaneci ao lado da irmã Zélia, entre os assis­tentes.

Depois de expressiva oração proferida pelo Ins­trutor Élsior, a doente esboçou, algo serena, uma ex­pressão de lucidez, identificando, lentamente, o re­cinto.

Era o Centro familiar, onde, horas antes, estivera. A alegria delineou no seu rosto macerado um sorriso de contentamento. Ao identificar o médium, acenou-lhe discretamente e indagou-lhe da razão de tudo aqui­lo.

O médium Marcos, atento às orientações do Ins­trutor que a jovem não percebia, informou-lhe tratar-se de assistência ao seu perseguidor, atendendo a or­dem de natureza superior. Rogava-lhe, por isso mes­mo, calma e confiança, coragem e compaixão utilizan­do os valores da prece para o êxito da tarefa. Afir­mou-lhe a presença de devotados companheiros da esfera espiritual superior, tranqüilizando-a quanto à ausência de perigos, durante a entrevista.

— Desde há muito — continuou solícito, assistido de perto pelo amoroso companheiro desencarnado — fazia-se imperioso este empreendimento para enca­minhar o algoz à esfera física, em trabalho de reajus­tamento.

Depois de prepará-la com delicadeza e cuidado, o Instrutor Élsior fez-se notado e, apresentado pelo médium, concluiu, com esclarecimentos oportunos e justos, a realização significativa que ia desenvolver, tocando o centro da visão da enferma e dilatando-lhe a percepção visual do recinto.

O semblante de Ângela desenhou a alegria que lhe surpreendeu a alma sofredora. Depois, foi-lhe mos­trado, em sugestão hipnótica entorpecente, o infeliz perturbador que lhe assediava a casa mental.

Realizados os cuidados indispensáveis, assisten­tes calmos e cônscios dos seus deveres aplicaram pas­ses dispersivos sobre o obsessor, que despertou, a princípio modorrento, recuperando a expressão fria e impenitente, sob imprecações lastimáveis.

Desafiando as forças do Bem e deblaterando, ir­responsável, apresentava a outra face do homem, mais fera que criatura, acompanhando as palavras com gestos de profunda revolta. Instado pela palavra inspirada do medianeiro e sob recursos poderosos, acalmou-se para o reencon­tro com aquela que lhe sofria a ação corrosiva e preju­dicial, filha do ódio incessante. Ao se defrontarem, as duas almas, vítima e algoz recíprocos, a jovem apresentava-se amedrontada. Pa­lor e lágrimas cobriam-lhe o rosto, como se reconhe­cesse, subitamente, naquele adversário “gratuito”, al­guém muito amado, mergulhado nas águas turvas do ódio e da rebeldia. O perseguidor, porém, gargalhan­do, fitou-a friamente, indagando, impiedoso:

— Choras? Reconheces-me?

— Perdoa-me! — suplicou de joelhos, num movimen­to instintivo.

Como se a mente de Ângela fosse sacudida por um vendaval que a fizesse recuar no tempo, trans­portou-se até a Casa dos Braganças, nos agitados dias da transmigração da Família Real lusitana para o Brasil, no século XIX.

— Perdoar-te? Jamais!... Nunca te perdoarei — ru­giu o inditoso perseguidor. — Embora reencarnada, fu­gindo de mim e da minha justiça, desertora da honra que és, consegui, após exaustivos esforços, localizar-te e nunca mais te deixarei.

— Tem piedade! — suplicou a infeliz.

— E a tiveste para mim, para o meu lar, maldita? —retrucou.

— Pensei — respondeu amargurada — que tivesses morrido nas ruas de Lisboa, quando da chegada das tropas de Junot... Esperei tanto por noticias tuas!... Nunca mais me escreveste...

A voz morreu-lhe nos soluços. E, depois de muito esforço, continuou:

— A fome, a miséria, a necessidade de viver... Re­conheço que deveria, mil vezes, ter morrido a preva­ricar. No entanto, jovem e só, naqueles tormentosos dias de sobressalto, não tive outro recurso...

— Desavergonhada! — reagiu cruel. — Se pensas que me comovem tuas lamúrias, dá-te de lado, arreda-te porque não o conseguirás. Jurei vingar-me e vingar-me-ei. A nódoa com que me manchaste, lavá-la-ei, através dos tempos, com tuas lágrimas, até secar a fonte do teu choro e te arderes de agonia, como eu próprio, devorado pelo desespero.

— Esquece! — balbuciou, aniquilada. — Pelo amor de Deus, esquece!

Verifiquei que o Instrutor Élsior e os Assistentes Espirituais sustentavam a jovem, ao mesmo tempo em que procuravam transmitir compaixão ao desal­mado infeliz.

Ao mesmo momento quase, atendida pelo Irmão Élsior, Ângela pôs-se a orar. Suas palavras comoventes confessavam o erro cri­minoso e o resgate punitivo, nas vias da loucura, fru­to dos remorsos e dos excessos que a haviam condu­zido ao túmulo na segunda metade do século passa­do. À medida que suas palavras se orvalhavam dos puros desejos de reabilitação, oferecia-se a ajudar o ser amado de ontem, mesmo que o sacrifício lhe fos­se o preço do recomeço no Bem.

Desarvorado, tocado no imo pelo amor ainda la­tente, embora empanado pela revolta, Antônio dese­jou fugir. Semilouco, agredia-se, proferindo expressões de desesperado. Ao impacto magnético de energias bem dirigidas, voltou a adormecer, sendo conduzido à incorporação no aparelho psicofônico do médium presente, em cuja organização, com a memória parcialmente adormeci­da, ouviu a palavra sábia do lúcido Instrutor, quanto ao futuro na carne, em breves tempos.

Ângela voltaria a recebê-lo, não como esposo, mas na condição de filho. Não filho da carne, mas do coração, amargurando os próprios dias na Terra, sob o testemunho de suspeitas cruéis em sua honorabili­dade de moça.

Depois de doutrinado com carinho e removido para a Colônia preparatória da reencarnação, em bre­ve a reunião foi encerrada e reconduzidos, às esferas habituais, o médium e a jovem, participantes de tão importantes acontecimentos. Um mundo de indagações fervilhava no meu cé­rebro ávido, que, entretanto, não ousava inquirir. Encerrada a reunião, o Instrutor, aproximando-se da irmã Zélia, esclareceu, delicado:

— Nosso Antônio reencarnará em cidade próxi­ma, dentro de alguns meses. Ângela encontrar-se-á de licença para tratamento de saúde, na mesma oca­sião, procurando repouso para os seus males íntimos. Será conduzida, através de uma série de fatores que não vale a pena aqui enunciar, ao lar do recém-nato, prometendo guardá-lo, ante o leito mortuário da mãe­zinha tuberculosa e decaída.

E depois de breve pausa:

— Trá-lo-á para a Capital, sofrendo, em conse­qüência do seu gesto de caridade, renúncia e repara­ção do passado, o estigma da dúvida, por parte de muitos, quanto à origem da criança...

E arrematando com segurança, concluiu:

— É da Lei. Quantos a desrespeitam sofrer-lhe-ão o reajuste. A dívida clama pelo resgate, através dos tempos.

29 - ANOTAÇÕES VALIOSAS

Vivamente impressionada com o admirá­vel fenômeno de que acabara de participar, não pude sopitar o desejo de aprender, e logo, na primeira oportunidade, indaguei da irmã Zélia:

— Em referência ao trabalho socorrista, re­cordar-se-á o médium, do acontecido? E a jo­vem Ângela, guardará ela lembranças que lhe felicitem o Espírito?

Sempre generosa, a Benfeitora esclare­ceu:

— Certamente. Entretanto, as lembranças serão diversas, O médium, pelo fato de convi­ver mais com os problemas espirituais, sabe­rá que esteve em trabalho de auxílio, conservando vagamente, na memória, as cenas, em­bora não muito bem delineadas. Angela, to­davia, terá a recordação de um pesadelo apa­vorante, despertando assustada, em pranto e profundamente triste. Mas estará assistida pela In­finita Misericórdia do Céu, que a todos ajuda, indis­tintamente.

Era muito lógico o esclarecimento.

A este tempo, afastamo-nos da sala. A noite serena parecia invadida pelo canto da Imortalidade, interpretada nos seus mistérios e se­gredos. Os ensinamentos recolhidos conduziam-me a me­ditações em torno da mediunidade. Infelizmente não conduzia comigo uma bagagem intelectual que me facultasse penetrar as sutilezas dos novos ensina­mentos. Modesta dona de casa, Deus sempre se me afigurou como Pai Misericordioso. Amei-O com a ino­cência de alma simples que não vive sobrecarregada de indagações inquietantes. O Espiritismo ensinou-me a amá-lO como Pai Sapiente, e agora, ante as li­ções recebidas, lamentava a estreiteza do meu en­tendimento, que me impossibilitava a retenção de tão valiosos ensinamentos.

Notando-me o cenho carregado, a cuidadosa pre­ceptora indagou-me dos motivos de preocupação, e, quando cientificada, esclareceu, com renovada bon­dade:

— Não há motivo para se deixar abater. Recorde­mos que evolução é programa de eternidade. A vida física é degrau de ascensão que nenhum de nós des­prezará. Todavia, convém lembrar que, cessada a fase reencarnacionista, a alma continua crescendo em amor e conhecimento, fora das vibrações da Terra, noutros redutos evolutivos.

E depois de algum silêncio:

— Evoluímos por etapas. Numa encarnação adquirimos­ a coroa da cultura, noutra a palma do amor. Ra­ros conseguem adquirir sabedoria e bondade, cultura do cérebro e cultura do amor, de uma só vez. O mergu­lho na carne condensa vibrações que passam a sinto­nizar com o clima mental de outras vibrações resul­tantes de vidas pregressas, junto a outros seres, o que, de certo modo, nos dificulta a sublimação libertadora. Sem desdenhar a cultura, faz a alma um alto negócio quando desenvolve o sentimento, lapidando o caráter no buril da dor. Enquanto que nem sempre são felizes aqueles que muito desenvolvem o cérebro, sem cui­darem do sentimento.

Prosseguindo, aduziu, animadora:

— Se é verdade que o amor tudo pode, a alma me­nos culta, porém boa, encontra campo espiritual para retornar ao conhecimento recolhido em etapas pas­sadas e na memória, o que não se dá com a cultura sem bondade. O homem sábio, sem amor, pode tor­nar-se um monstro. Desencarnado, notará o cérebro cultivado e, portador de coração vazio, terá uma gran­de jornada de recomeço pela senda estreita do sofri­mento, sem o conhecimento, nas expiações purifica­doras.

E bem humorada, concluiu:

— Se me dado fosse escolher, para a próxima jor­nada ao mundo, as armas de progresso no jardim da cultura intelectual e do sentimento amoroso, conso­ante os ensinos do Mestre, muito feliz me daria por escolher o ensejo de amar e sofrer, aprendendo no livro do auxílio a interpretação dos enigmas da vida.

Um banho benéfico de paz lavou-me o coração. Tudo se me afigurava compreensível e um alento re­novado convidava-me a novo rumo pela estrada da evolução. Pude compreender, por mim mesma, que, embora não pudesse hoje digerir intelectivamente o aprendizado recolhido, em ocasião oportuna, guiada pela luz da razão esclarecida, poderia retornar à me­ditação do assunto, tirando-o do material guardado nos arquivos mentais.

Caminhávamos pela rua. A madrugada enluara­da é, sem dúvida alguma, uma bênção da grande mãe Natureza para o homem terreno. As vibrações de harmonia e serenidade desciam nos raios prateados e refrigeravam a Terra, envolven­do-a em paz.

A avenida deserta e silenciosa alongava-se. Ra­ros noctívagos provocavam ruídos. Com menor den­sidade mental, que o sono anestesiado, a noite aco­lhia visitantes de outras Esferas. Era a hora do socor­ro intensivo, das intercessões, das assistências, do afeto que nunca esquece. Grupos de entidades de­sencarnadas surgiam, repentinamente, desaparecen­do adiante, em algazarra desenfreada. Semelhavam­se a nuvem densa em desabalada correria.

Outros grupos passavam ligeiros, pardacentos, “úmidos”, com as ligações perispirituais apresentan­do semblante enfermiço e apavorante. Eram Espíri­tos viciados e inquietos, afinados a cômpares, em de­manda dos antros de perversão e animalidade. A Benfeitora, que seguia comigo, conduziu-me àbeira-mar e, ante o céu estrelado e o abismo líquido quase aos nossos pés, convidou-me à meditação si­lenciosa e ao repouso. Findo o prazo, retornamos felizes e saudosos...

Os dias de comunhão espiritual, contigo, minha filha, e com os irmãos da Fé, recordavam-me o tempo da estação na carne. Ali estivera na estância terre­na, vendo com a alma o jardim de nossa felicidade, onde temos de aprimorar-nos. Experimentara inexce­díveis alegrias no trabalho do intercâmbio, na sessão de evangelismo em torno da figura insuperável de Je­sus Cristo; vivera as promessas do Lar, no entanto, o dever convidava ao prolongamento da luta, no aben­çoado reduto em que me agasalhava.

O tempo passava cheio de obrigações que me fa­voreciam o estudo pelo exemplo e a iluminação ínti­ma pelo trabalho. Era indispensável recuperar as ho­ras desperdiçadas na inutilidade e na ignorância.

30 - RECEBENDO O COMPANHEIRO

As visitas à Terra faziam-se mais freqüen­tes. Alguns meses depois de ter voltado a pri­var do teu convívio, a irmã Liebe informou-me, numa das suas habituais estadas na Colônia Redenção:

— Otília — começou a dizer, — como não des­conheces, a enfermidade do Gonçalves agra­va-se, dia a dia. A idade avançada não lhe per­mite maior resistência. Acreditamos que a desencarnaçãO se dará em breves dias. Amigos Espirituais, que o seguem na presente etapa, comunicaram-me a aproximação da hora de retorno. Sendo do teu desejo, poderá a irmã Zélia dispensar-te, por cinco dias, para acom­panhá-lo à hora do traspasse.

Com um sorriso bondoso, onde vibrava a sua ternura, concluiu:

— Recorda-te da vigilância em todos os mo­mentos. O amigo é um irmão em Jesus e transporá a aduana da morte com os recursos que entesou­rou através dos anos, não podendo o teu auxílio carac­terizar-se por expressões de entusiasmo pessoal. Con­fia no Mestre e ora.

Fiquei jubilosa e ao mesmo tempo preocupada. O Gonçalves foi o pai que eu conheci na hora mais difícil da existência, oferecendo-me, bondoso, o braço nup­cial. Tê-lo ao lado era motivo de satisfação, entretan­to, talvez as circunstâncias não nos permitissem, por algum tempo, maior convivência. Aguardei, silencio­sa e confiante, o ensejo de recebê-lo.

Na manhã seguinte, domingo, pela alva, cheguei acompanhada do Espírito do frade franciscano Fran­cisco dÁvila, ao quarto em que o velho esposo de­sencarnava lentamente. A dispnéia atacava-o e o coração atribulado de­tinha-se nos estertores de demorada agonia. Um amigo encarnado, que se postara fiel duran­te a dificuldade da doença, dormia ao lado. Seu Espí­rito fraterno, no entanto, estava vigilante, assistindo­o. Identificou-nos à chegada, recebendo-nos com ca­rinho. O dr. Carneiro, velho cooperador desencarnado que colabora eficientemente nas orientações espiri­tuais da Casa, esclareceu-nos de imediato:

— A desencarnação está programada para estes dias. Já iniciamos o desligamento dos centros de for­ça. Nosso irmão, entretanto, por formação religiosa deficiente, guarda inexplicável pavor da morte. Em­bora recentemente ligado às fileiras do Espiritismo, conserva no subconsciente o fantasma do medo e, por isso mesmo, atém-se à carne, desesperado e receo­so.

“Pretendemos, dentro de alguns minutos, trazê­lo ao nosso campo vibratório, esclarecendo-lhe a ne­cessidade da confiança e da tranqüilidade, e pela manhã inspiraremos os encarnados que o cercam de afeto, para que a conversação seja feita em torno do problema da morte.”

Com a aplicação de passes cuidadosos, o enfer­mo querido, depois de longa vigília, adormeceu, e, desligado parcialmente pelo dr. Carneiro, escutou meio consciente, palavras estimulantes e roteiro para a viagem inadiável.

Despertou angustiado, embora conservasse na mente a idéia do termo da romagem física.

Mais tarde, quando os amigos se aproximaram para a conversação habitual, o dedicado médico ins­pirou a palestra, conduzindo-a para o palpitante pro­blema da vida nova. Tecendo comentários sábios e profundos em tor­no da vida, aquém e além da fronteira carnal, o ami­go transmitiu-lhe a notícia do decesso físico, animan­do-o para a bela excursão ao país da luz.

Feitas as orações e lidos alguns salmos espiritu­alizantes, o enfermo serenou, identificando a fé ro­bustecida pela certeza da imortalidade.

O dr. Carneiro informou-nos:

— Ele melhorará, aparentemente, para despren­der-se dentro de quatro dias, a fim de o pouparmos a choques para os quais não se encontra preparado. Assim, terá tempo de meditar, recolhendo os frutos da esperança.

Consoante a previsão do médico espiritual, de­corrido o prazo, em relativa melhora, o estado geral apresentou modificação súbita e os distúrbios cardí­aços, em desordenada repetição, precipitaram o pro­cesso desencarnatório.

Sentada ao seu lado, e cercados pelos amigos constantes, ouvi o dr. Carneiro acentuar:

— Inspiremos os amigos que se encontram em reu­nião doutrinária a apressarem os trabalhos, favorecen­do-nos com vibrações úteis.

No mesmo momento, claridade alaranjada, recon­fortante e balsâmica, banhou o aposento.

— São as vibrações de amor, dos irmãos na Fé — murmurou frei Francisco dÁvila que cooperava em pas­ses de desprendimento. Realizando a delicada operação de desligar os li­ames perispirituais, que, durante toda a existência, se imanam ao corpo, informou o médico:

— Desligar-se-á dentro de alguns minutos. Acompanhei o processo desencarnatório, emocionada. A morte não parece ser muito fácil. Observei que se desprendiam do corpo do moribundo, princi­palmente das zonas onde foram aplicados os recur­sos dispersivos, os fluídos que pareciam movimenta­dos por hábeis instrumentos, recompondo ao lado do corpo que estertorava um perfeito duplo em tudo igual ao complexo material. A respiração, antes ace­lerada, foi diminuindo até extinguir-se. Dera-se a mor­te física. Apesar disso, continuava ligado à zona coronária, um liame espesso, pardo-acinzentado.

Enquanto os encarnados oravam ou choravam dis­cretamente, o médico espiritual continuava o traba­lho de desligamento, informando-nos, obsequioso:

— Somente decorridas algumas horas procedere­mos ao corte da ligação epifisiária. Clinicamente o Gonçalves está “morto”. Sabemos entretanto que agora inicia a grande jornada para a sua alma lutado­ra. Saudemos o irmão que retorna, em nossas orações de reconhecimento ao Celeste Vivo.

Passados oito dias em os quais o companheiro se demorou em sono profundo, foi conduzido à Colônia, onde despertou em estado de inquietação e dor.

A enfermidade demorada deixou impressões pro­fundas. Continuou, assim, apresentando os sinais do cansaço, seguidos de longos minutos de dispnéia e sucessivos desmaios.

Assistido, entretanto, pelo dr. Cléofas, lentamen­te foi recobrando a serenidade, sendo conduzido a Enfermaria especializada. Passados quarenta dias, fui conduzida pela irmã Zélia ao encontro com o velho amor, já consciente e ansioso.

Cheia de expectativa, venci a pequena distância que nos separava, conversando com a Benfeitora prestimosa, e, chegando à sala, vislumbrei, ao lado do querido amigo, a figura delicada e jovial da amo­rosa Liebe. Recebida com ternura pela meiga mensageira do Céu, ouvi-lhe novamente a voz macia, ao mesmo tem­po em que, erguendo o recém-desencarnado, anun­ciava:

— Gonçalves, Jesus concede-lhe a satisfação do reencontro. Nossa Otília veio visitá-lo. Não há morte! Sinta a vida! Agora você está livre!

Aproximei-me do leito e, debruçando-me, abra­cei-o, feliz e reconhecida, beijando a cabeça ainda po­voada de recordações e tormentos, e, como outrora, reclinei-me no seu peito. Voltei a visitar o colaborador da minha alegria na Terra, quanto me permitiam as obrigações, respeitan­do, naturalmente, o regulamento do Nosocômio Espi­ritual.

Com o passar do tempo, convalescente, foi-nos permitido alongar a conversação, e, à medida que se ajustava ao nosso estado, pôde ensaiar os primeiros passos, no mundo novo. Na primeira oportunidade, a irmã Zélia convidou-nos a visitar o Jardim da Saúde. Era a primeira vez que ouvia falar em tal recanto e, desejosa de infor­mes, aguardei jubilosa o ensejo. Na noite seguinte, tomamos um veículo que nos conduziu os três aos arredores da cidade. Bosque co­lorido esplendia de luz e cor ao nosso olhar atônito. Flores miúdas embalsamavam o ar. Pareciam-se com as flores dos jardins terrenos, com a diferença única de serem luminosas. Ante o meu espanto, a dedicada Condutora ex­plicou:

— Trata-se de flores medicamentosas. Durante as horas do dia, absorvem os raios solares, e à noite, ao transmitirem a luz retida, favorecem os Espíritos al­quebrados com emanações fluídicas de alto teor me­dicamentoso. Aproximemo-nos!

Acercamo-nos de um canteiro de gerânios e ro­sas de alvura invulgar. Sentamo-nos num banco igual­mente alvo e macio que cedia anatômico ao pouso do corpo espiritual. Música melodiosa derramava-se na noite. Silenciosos, aquietamo-nos na contemplação abençoada do pomar da Natureza.

31 - ESPIRITISMO E CRISTIANISMO

Um ano depois da chegada de Gonçalves, eu já tomava parte ativa nas freqüentes ex­cursões ao Orbe, em aprendizado e tarefas de auxílio, quando o dr. Cléofas informou que po­deríamos acompanhá-lo à reunião da tarde se­guinte, a fim de ouvirmos a palavra sábia e con­soladora de dedicado pregador espírita desen­carnado havia alguns anos.

Chegando ao recinto, deslumbrei-me com a multidão expectante, em cujo semblante o júbilo vibrava, presente nas emoções gerais. Depois de alguns minutos, acompanhada do Diretor da Colônia, apareceu na platafor­ma, tomando assento à mesa, a figura vene­randa de José Petitinga, o esclarecido traba­lhador espiritista da Bahia.

O respeitável cristão, delicadamente apre­sentado, dirigiu-se à singela tribuna e, depois de breve reconhecimento, aureolado de claridade diamantina, saudou-nos com a alocução que o Mestre nos legou:

— Amados irmãos, paz seja convosco! “Uma grande noite abatera-se sobre a Terra, de­morando-se, impiedosa. A dor, zombeteira, escarnecia da Fé, derraman­do a sua taça de amargura e desespero. Respeitáveis patrimônios de crença desmorona­vam-se fragorosamente. Campeavam o crime e o medo. A imoralidade vencia as resistências e enxovalha­va os lares. Fermentavam ódios e vinditas enlutavam cora­ções, destruindo famílias inteiras. Santuários austeros eram violados pelo desres­peito dos próprios zeladores. A fauce hiante do horror apresentava-se e, gri­tando, feroz, a todos conclamava ao prazer animali­zante, à posse indébita, ao saque violento, à destrui­ç ão. Quantos obstinados que desejavam erguer bar­ricadas em torno dos tesouros da honra, da família, do Bem, eram massacrados e vencidos, O ridículo sor­ria em todas as bocas, e crer, vivendo a fé, represen­tava quase uma enfermidade que inspirava asco aos cínicos. Estabelecera-se o Reino da Loucura.

Depois de séculos de obscurantismo e domina­ções guerreiras, a Razão e a Justiça ergueram-se para destruir as algemas escravizantes, inaugurando uma era de novas misérias. Em nome da razão empírica, surgiram idéias ab­surdas destruindo venerandos princípios. Deus foi exilado de França como um réprobo e o materialismo, de­corrente dos conceitos ousados de pensadores preci­pitados, dilatou seus domínios. Quando a razão, apoiada no cientificismo moder­no, avançou, investigando, o desequilíbrio arrancou expressões que traduziam a loucura da época. —Ciên­cia e Razão, eis os meus deuses — gritaram os investi­gadores do fenômeno da vida, transtornados.

Concomitantemente a Justiça, que nascia como um Ideal e que ousava partir os grilhões do absolu­tismo do poder para proclamar os Direitos do Homem, em hora de desespero, também gerou hecatombes que dizimaram populações no último quartel do sé­culo XVIII. E o futuro que se delineava cheio de espe­ranças crispou as águas, ameaçando o barco da Hu­manidade, açoitado nas cristas gigantescas das on­das desvairadas, em tormentas incessantes. A Ciência examina e procura, libertando-se de to­dos os preconceitos, renovando concepções e ama­durecendo descobrimentos.

A filosofia indaga e cresce, elegendo ídolos e der­rubando-os logo depois na ânsia de encontrar respos­tas às indagações filosóficas. A alma do povo sofre o efeito do desequilíbrio dos dirigentes do pensamento universal. Todas as atenções se voltam para o Céu, que pa­rece distante dos terríveis problemas da hora. Mas, nesse momento de angústia, o Espírito lu­minoso de Allan Kardec, tantas vezes experimenta­do nos grandes testemunhos ao Bem, é chamado ao torvelinho da carne.

A França manda seus filhos estudar em outros países, depois da queda dos princípios filosóficos que derrubaram a Bastilha e geraram tanto horror. E o jo­vem Denizard Rivail é enviado a Yverdon, na Suíça, para, junto a Pestalozzi, o Professor ideal, burilar o pensamento, retemperando a moral diamantina para as grandes lutas em que se empenharia mais tarde. Chamado à liça, no momento das mesas girantes e falantes, recebe, frio a princípio, depois meticuloso e por fim entusiasta, a mensagem revolucionária do Além Túmulo, obedecendo ao convite para ajustar-se à Missão de propagar, viver e sofrer pelas idéias no­vas. As vozes voltam a falar. Os túmulos quebram o silêncio e os mortos ficam de pé.

Surge o Espiritismo clareando consciências e con­solando corações. Interrogações milenárias encontram respostas lú­cidas à luz meridiana da razão científica, que afirma a imortalidade, através dos seus mais altos expoen­tes.

Teorias estúpidas, secularmente aceitas, tremem nos seus fracos pedestais e edifícios de falso saber tombam, em nuvens de pó. Ideologias, guardadas pelo longo silêncio dos tempos, voltam à atualidade e impõem-se vitalizadas pela nova Filosofia. Os mistérios de Elêusis e Ísis são aclarados. A morte é vencida no reduto a que se acolhera, demorando-se esmagada sob a realidade do espíri­to livre. Kardec sai a campo. Encapeladas mareações são vencidas. Perseguições supremas tentam cercear-lhe a marcha, sem o conseguirem, todavia. Traz uma Mensagem para o mundo e dá-la-á com o ardor de um apóstolo e o entusiasmo de um esteta.

Sua palavra, concisa e lógica, enfrenta as supers­tições e as esmaga. Sua pena luminosa polemiza e esclarece. Sua vontade férrea fá-lo dominar a covardia de uns e o pieguismo de outros, continuando a jornada luminosa. A Doutrina Espírita brilha fulgurante, rompendo a noite e vencendo-a. Almas aflitas buscam o Consolador. Corações saudosos mergulham o pensamento em novas concepções e o amor se renova sob os auspíci­os da Eternidade.

Criaturas simples e sofredoras batem às portas do Paracleto, carregadas de problemas e inquieta­ções, e são atendidas com elucidações vitalizantes. Quando O Evangelho Segundo o Espiritismo difun­de as letras que guardam o Verbo do Mestre Incon­fundível, iluminadas pelas informações dos Imortais, a Religião Espírita planta a semente da Fé incompa­rável e cresce albergando multidões. É que no seio dessa Crença há lenço para todas as lágrimas, con­solo para todos os sofrimentos e remédio para todas as doenças. Jesus Cristo, que parecia longe do mundo, volta mundo e fulgura nos corações.

Deus, que fora exilado na Grande Convenção de França, volta e permanece acima de todas as Igrejas como o Supremo Arquiteto, amado e respeitado. O dogma enfermiço e obsoleto é substituído pelo livre exame. A intolerância é trocada pela compreensão. A supremacia religiosa é vencida pelo bom sen­so.

O egoísmo é dominado pela caridade. Os homens voltam a ser irmãos. Por isso afirmou o excelso Codificador: “A Carida­de é a alma do Espiritismo. Ela resume todos os deve­res do homem para consigo mesmo e para com seus semelhantes. E por isso que se pode dizer que não há verdadeiro espírita sem Caridade”. Retornava à Terra o Cristianismo puro, ensinado por Jesus e seus discípulos nos três primeiros sécu­los da nossa História. Com o Espiritismo, o amor volta a reinar glorioso. “Não temos o direito de ser felizes, mas o dever de fazer a felicidade do próximo” — afirmam as Vo­zes. Não somos credores de honra nem de alegrias, antes, devedores de graças e concessões valiosas. Não dispomos de títulos que nos permitam an­gelitude nem paz. Somos condutores de fichas com anotações que nos convocam à retaguarda para re­cuperações.

O homem chora — nossa oportunidade de servir;

O homem odeia — nosso ensejo de amar;

O homem se desespera — nosso momento de aju­dar;

O homem corre enlouquecido — nossa ocasião de amparar;

O homem anseia por liberdade — nossa hora de reencarcerar-nos na carne para ascender com ele àvida maior. Este o novo regulamento.

Jesus é a porta da felicidade. Kardec é a via de acesso. O Cristianismo é a resposta celeste ao angustian­te apelo do mundo. O Espiritismo é o condutor do homem aos braços do Pastor Divino. Avancemos no Bem, demoremos na bondade, exer­citemos na renúncia. Não tenhamos dúvidas de que o Senhor aguarda por nós. Resta-nos apenas a resolução de avançar para o Senhor. Paz seja convosco!”

Ao terminar, coroado de luz, afastou-se, humilde, demandando o lugar à mesa que ocupara antes. A emoção tomava-nos a todos. Júbilos e sauda­des, recordações e ansiedades múltiplas falavam em nossas almas. Delicadas pétalas de rosas caíam do teto e des­faziam-se no recinto, impregnando-nos de agradável e suave aroma. Era a resposta do Céu, naquela hora de comunhão com o Alto.

32 - CONFIANTE

O tempo abençoava-me a vida com as ex­celentes oportunidades de serviço e aprendi­zado. A morte não me ceifara a felicidade de tra­balhar. Ao contrário, desdobrara-me as possibilidades de produzir.

A vida que não cessa é acionada pelo tra­balho que não pára. Em toda parte o trabalho é a alavanca básica de movimentação mante­nedora do equilíbrio. Patrimônio legado pela Di­vindade, o trabalho representa honra e glória para o espírito sedento de evolução e aprimo­ramento.

Enquanto nos retemos na vida física, não sabemos valorizar-lhe a expressão contribuin­te para a integração no Bem Sem Limites. Cons­titui-se mais desagradável obrigação, da qual necessitamos libertar-nos, do que propriamen­te, bênção substancial de harmonia interior e satisfação evolutiva.

Por educação deficiente, vemos no trabalho um meio de subsistência e acúmulo de pertences que, en­tretanto, passam com o tempo.

No mundo do espírito, descobrimos surpresas, que tal mister, longe de ser uma imposição é, em realida­de, uma oportunidade abençoada, porqüanto, tudo gi­rando em torno da construção incessante, a alma se sente honrada com o prêmio de cooperar na sublima­ção de todas as coisas.

Entibiada pelo interesse imediatista, no plano fí­sico, a alma encarcera-se num modo deficiente de exa­minar a vida e desrespeita a concessão da luta, des­cobrindo meios de fuga e lucros. Através de leis sutis e hábeis, que encurtam o horário do labor, conclaman­do o homem à ociosidade e à insensatez, num repou­so imerecido, onde a mente livre de responsabilida­de e preocupação elevada se entrega aos hábitos de­pressivos, o homem perde a alegria e o ânimo, fazen­do do trabalho um adversário da paz íntima...

Sem o objetivo mais nobre que o trabalho suge­re, o homem se faz um autômato inconsciente, sem roteiro, perdendo-se em si mesmo, entre inquietações e repetições de falsas necessidades, adquirindo neu­roses e psicoses que terminam por destruir-lhe a von­tade.

Na esfera nova de lutas, onde me encontro, o Es­pírito deseducado no dever experimenta agonias in­descritíveis, porque evolução é fruto de lutas que não cessam e felicidade é resultado do dever bem cum­prido.

Só o dever realmente vivido pode responder com favores recíprocos aos apelos veementes do espírito.

Procurei, em razão de tudo isso, ajustar-me ao pro­grama de conquistas, alojando no íntimo os propósi­tos humildes de esforçar-me e vencer-me através do desenvolvimento de recursos, na dedicação ao servi­ço de cooperação.

Em face de tantas concessões da vida ao meu es­pírito atribulado e cheio de dívidas, um horizonte glo­rioso desabrocha risonho à minha alma ansiosa por liberdade e amplidão.

A misericórdia celeste pode ser entendida fora dos limites apertados dos dogmatismos religiosos e o Pai Amantíssimo parece crescer em mim, de maneira empolgante e entusiástica. Em toda parte, minha filha, a vida desenrola-se num dossel maravilhoso de promessas e harmonias.

A noite é sucedida pelo dia. A dor afastada pela saúde. O ódio superado pelo amor. O medo dominado pelo fervor da coragem. E a fé, rutilante e imponente, clareia-nos hoje a senda, convidando-nos à conquista.

Arrebentam-se as cadeias da crença tradicional e a realização intelectiva proporciona um patrimônio inestimável para a vitória certa. De alma confiante, contemplo o porvir. Muitos e sucessivos obstáculos se erguem ainda à minha frente, aguardando superação e conquista. Mas, com o Senhor no coração e na mente, não me atemorizo.

Com a claridade do entendimento lúcido, o res­gate que me convoca a retorno oportuno ao caminho do dever reencarnacionista, se, por um lado, me faz meditar profundamente, por outro, não me atemori­za, embora eu compreenda e sinta quantas quedas e recuos ocorrem na liça das batalhas. Encontro-me informada, hoje, de muitos que fra­cassam, nas tarefas em que seguem empenhados, muito antes de entrarem nelas. Os adversários do on­tem cerceiam-nos a marcha, dificultam-nos as possi­bilidades, distendem-nos espinhos ou nos amolecem o caráter na comodidade e no prazer. Mas sigo confiante no Senhor Jesus, Guia e Ami­go Nosso, que jamais Se esquece de socorrer os Nele confio. Nele deposito todas as esperanças, oferecendo-Lhe a existência, mil vezes, se necessá­rio, pela infinita ventura de honrá-lo e amá-lo.

33 - GRATIDÃO

Filha do meu coração, enxugo os olhos úmidos e deposito aos pés da Mãe Santíssima da Humanidade as flo­res débeis dos meus sorrisos de esperança. No seu amor que ameniza o sofrimento e acalma o desespero, tenho colocado a minha taça de solicitações incessantes, rogando-lhe auxílio e paz.

Endívidada, fracassada tantas vezes e ras­tejando em perigosos caminhos, tomada de ignorância e miséria, sou a filha pródiga que retorna aos braços da sua caridade e compai­xão. Sem fazer jus, ao menos, às concessões de esperança e trabalho que me enriquecem os dias, tive minhas horas utilizadas pela insu­perável alegria de poder falar-te, despertan­do-te a alma, com a preocupação que vive em todas as mães, para a utilização inteligente do tempo.

Nestas últimas palavras, através das quais ofere­ço o meu ósculo de carinho sem limite, ao teu coração inesquecido, tento erguer-me da pequenez que me ca­racteriza para falar à Rainha do Céu, enquanto lhe ofer­to o meu ramalhete de gratidão.

— Senhora!

Em nome de todas as mães sofredoras do Além Tú­mulo, ofereço-Vos a alegria destes momentos incompa­ráveis, eu que sou uma delas. Oh! Rosa Mística de Nazaré, tende piedade de quan­tas mulheres, desrespeitando o santuário da materni­dade, se atiram loucas nos abismos do crime. Mulheres que adiaram o santo ministério da procriação.­ Mulheres que se embriagaram na taça dos vícios. Mulheres que degradaram o vaso sublime da per­petuação da espécie. Mulheres que desdenharam o ideal supremo de toda mulher. Mulheres que envenenaram a existência com o li­cor da vaidade e da paixão, descendo à vala do assassí­nio. Mulheres enceguecidas pelo ciúme que se atiraram no despenhadeiro sem fundo do suicídio. E socorrei aquelas outras que: Mães, sacrificaram-se no anonimato e na renúncia. Mães, amarguraram no silêncio e no esquecimen­to, guardando a própria dor. Mães, desprezadas e vilipendiadas, permaneceram desconhecidas. Mães, lutaram e sofreram sem desânimo nem re­ceio. Mães, morreram no holocausto do lar, para que os filhos se tornassem filhos do vosso amor, dignos do vosso Filho. Oh! Vós que experimentastes todas as máximas agonias e sorvestes sem reclamação, até a última gota, a taça de fel e amarguras, por amor do amado Filho, perdoando aos seus algozes, descerrai vossos olhos e contemplai a mulher sofredora e desfalecente, ajudan­do-a e reconvocando-a aos sagrados deveres do Lar e da Maternidade. Senhora Nossa, ajoelhada aos vossos pés, ofereço a minha insignificância ao trabalho do amor, pelo me­nos, em favor de mim mesma.

Fim