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Que Jesus o abençoe.
Muita Paz
Ir: Ave, Cristo-Parte 2-Francisco Cândido Xavier
AVE CRISTO
FRANCISCO CÂNDIDO XAVIER
ROMANCE DITADO PELO ESPÍRITO EMMANUEL
Ave, Cristo!
Hoje, como outrora, na organização social em decadência, Jesus avança
no mundo, restaurando a esperança e a fraternidade, para que o santuário do
amor seja reconstituído em seus legítimos fundamentos.
Por mais se desenfreie a tormenta, Cristo pacifica.
Por mais negreje a sombra, Cristo ilumina.
Por mais se desmande a força, Cristo reina.
A obra do Senhor, porém, roga recursos na concretização da paz, pede
combustível para a luz e reclama boa vontade na orientação para o bem.
A idéia divina requisita braços humanos.
A bênção do Céu exige recipientes na Terra.
O Espiritismo, que atualmente revive o apostolado redentor do Evangelho,
em suas tarefas de reconstrução, clama por almas valorosas no sacrifício de si
mesmas para estender-se, vitorioso.
Há chamamentos do Senhor em toda a parte.
Enquanto a perturbação se alastra, envolvente, e enquanto a ignorância e
o egoísmo conluiados erguem trincheiras de incompreensão e discórdia entre
os homens, quebram-se as fronteiras do Além, para que as vozes inolvidáveis
dos vivos da eternidade se expressem, consoladoras e convincentes,
proclamando a imortalidade soberana e a necessidade do Divino Escultor em
nossos corações, a fim de que possamos atingir a nossa fulgurante destinação
na vida imperecível.
Alinhando pois, as reminiscências deste livro, não -nos pro pomos
romancear, fazer literatura de ficção, mas sim trazer aos nossos companheiros
do Cristianismo redivivo, na seara espírita, breve página da história sublime
dos pioneiros de nossa fé.
Que o exemplo dos filhos do Evangelho, nos tempos pós-apostólicos, nos
inspire hoje a simplicidade e o trabalho, a confiança e o amor, com que sabiam
abdicar de si próprios, em serviço do Divino Mestre! que saibamos, quanto
eles, transformar espinhos em flores e pedras em pães, nas tarefas que o Alto
depositou em nossas mãos!...
Hoje, como ontem, Jesus prescinde das nossas guerrilhas de palavras, das
nossas tempestades de opinião, do nosso fanatismo sectário e do nosso
exibicionism-o nas obras de casca sedutora e miolo enfermiço.
O Excelso Benfeitor, acima de tudo, espera de nossa vida o coração, o
caráter, a conduta, a atitude, o exemplo e o serviço pessoal incessante, únicos
recursos com que poderemos garantir a eficiência de nossa cooperação, em
companhia dele, na edificação do Reino de Deus.
Suplicando-lhe, assim, nos ampare o ideal renovador, nos caminhos de
árdua ascensão que nos cabe trilhar, repetimos com os nossos veneráveis
instrutores dos primeiros séculos da Boa Nova:
— Ave, Cristo! os que aspiram à glória de servir em teu nome te glorificam
e saúdam!
EMMANUEL
Pedro Leopoldo, 18 de abril de 1953.
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PRIMEIRA PARTE
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1
Preparando caminhos
Quase duzentos anos de Cristianismo começavam a modificar a paisagem
do mundo.
De Nero aos Antoninos, todavia, as perseguições aos cristãos haviam
recrudescido. Triunfantemente assentada sobre as sete colinas, Roma
prosseguia ditando o destino dos povos, à força das armas, alimentando a
guerra contra os princípios do Nazareno, mas o Evangelho caminhava sempre,
por todo o Império, construindo o espírito da Era Nova.
Se na organização terrestre a Humanidade se desdobrava em
movimentação intensa, no trabalho da transformação ideológica, o serviço nos
planos superiores atingia culminâncias.
Presididas pelos apóstolos do Divino Mestre, todos então na vida espiritual,
as obras de soerguimento humano multiplicavam-se, em vários setores.
Tornara Jesus ao sólio resplendente de sabedoria e de amor, de onde
legisla para todas as criaturas terrenas, mas os continuadores do seu
ministério, entre os homens encarnados, qual enxame crescente de abelhas da
renovação, prosseguiam ativos, preparando o solo dos corações para o Reino
de Deus.
Enquanto exércitos compactos de cristãos desapareciam nas fogueiras e
nas cruzes, nos suplícios intermináveis ou nas mandíbulas das feras, templos
de esperança se levantavam felizes, além das fronteiras de sombra, dentro dos
quais falanges enormes de Espíritos convertidos ao Bem se ofereciam para a
batalha de suor e sangue, em que, usando a vestimenta física, dariam testemunhos
de fé e boa vontade, colaborando na expansão da Boa Nova, para a
redenção da Terra.
Assim é que, em formosa cidade espiritual, nas adjacências da Crosta
Planetária, vamos encontrar grande assembléia de almas atraidas ao Roteiro
Divino, escutando a exortação de iluminado orientador, que lhes falava, de
coração posto nos lábios:
— Irmãos — dizia ele, envolvido em suaves irradiações de luz —, o
Evangelho é código de paz e felicidade que precisamos substancializar dentro
da própria vida!
O Sol que jorra bênçãos sobre o mundo incorpora-se à natureza,
sustentando-a e renovando-lhe as criações. A folha da árvore, o fruto nutriente,
o cântico do ninho e a riqueza da colméia são dádivas do astro sublime,
materializadas pelos princípios da Eterna Inteligência.
Cristo é o Sol Espiritual dos nossos destinos.
Urge, pois, associarmo-nos voluntàriamente aos ensinamentos dele,
concretizando-lhes a essência em nossas atividades de cada dia.
Não podemos esquecer, entretanto, que a mente do homem jaz petrificada
na Terra, dormindo nas falsas concepções da vida celeste.
A política de dominação militar asfixiou as velhas tradições dos primitivos
santuários. As cortes romanas abafaram as vozes da filosofia grega, como os
povos bárbaros enforcaram a revelação egípcia.
Adensou-se o nevoeiro da estagnação e da morte entre as criaturas.
As águias imperiais assentaram na cega idolatria de Júpiter a mentirosa
religião da vaidade e do poder...
E enquanto os deuses de pedra absorvem os favores da fortuna, alonga-se
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a miséria e a ignorância do povo, reclamando o pronunciamento do Céu.
Como se expressará, porém, a intervenção divina, sem a cooperação
humana?
Sem a heróica renunciação dos que se consagram ao progresso e ao
aprimoramento das almas, a educação não passará de letra morta.
Imprescindível, portanto, é que saibamos escrever com o nosso próprio
exemplo as páginas vivas do Cristianismo remissor.
O Mestre Crucificado é divino desafio.
Até agora, os conquistadores do mundo conseguiram avançar no carro
purpúreo da vitória, matando ou destruindo, valendo-se das legiões de
guerreiros e lidadores cruéis.
Jesus, no entanto, triunfou pelo sacrifício.
César, atado às vicissitudes humanas, governa os assuntos referentes à
carne em trânsito para a renovação.
Cristo reina sobre a alma que nunca morre, aos poucos sublimando-a para
a glória imperecível...
O tribuno venerável fizera uma pausa, como que intencional, porque o
clangor distante de muitos lítuos reunidos se fazia ouvir, em pleno céu, dando a
idéia de uma convocação para alguma batalha próxima.
As centenas de entidades que se conchegavam umas às outras, no
admirável recinto cuja abóbada deixava perceber a luz tremeluzente das
estrelas remotas, entreolharam-se, ofegantes...
Todos os Espíritos, ali congregados, pareciam ansiosos pela oportunidade
de servir.
Alguns traziam no semblante expressões de saudade e dor, qual se
estivessem ligados à batalha da Terra por feridas de aflição, somente curáveis
com o retorno às angústias do passado.
Mas, a expectação não durou muito.
Superando as clarinadas, que ecoavam pela noite, a voz do pregador
ressurgiu:
— Muitos de vós, amados irmãos, deixastes à retaguarda velhos
compromissos de amor e desejais voltar ao áspero trilho da carne, como quem
afronta as labaredas de um incêndio para salvar afeições inesquecíveis.
Entretanto, devotados agora à verdade divina, aprendestes a colocar os desígnios
do Senhor acima dos próprios desejos. Entediados da ilusão, consultais a
realidade, buscando engrandecê-la, e a realidade aceita o vosso concurso
decisivo para impor-se no mundo.
Não olvideis, todavia, que somente colaborareis na obra do Cristo,
ajudando sem exigir e trabalhando sem apego aos resultados. Como o pavio
da vela, que deve submeter-se e consumir-se a fim de que as trevas se
desfaçam, sereis constrangidos ao sofrimento e à humilhação para que novos
horizontes se abram ao entendimento das criaturas.
Por muito tempo, ainda, o programa dos cristãos não se afastará das
legendas do Apóstolo Paulo:
Em tudo (1) sereis atribulados, mas não aniquilados; perplexos, mas não
desalentados; perseguidos, mas não desamparados; abatidos, mas não
destruidos, trazendo sempre, por toda a parte, a exemplificação do Senhor
Jesus, no próprio corpo, para que a vida divina se manifeste no mundo. E,
assim, quantos renascerem nas sombras da matéria mais densa, estarão
incessantemente entregues ao sacrifício, por amor à verdade, a fim de que a
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lição do Divino Mestre brilhe mais intensamente nos domínios da carne mortal.
O mentor explanou ainda, por vários minutos, quanto aos deveres que
aguardavam os legionários do Evangelho, entre os obstáculos do mundo,
descendo,
(1) 2ª epístola aos Coríntios, capítulo 4, versículos 8 a 11. (Nota do Autor
espiritual.)
por fim, da tribuna dourada para o cultivo da conversação fraterna.
Vários amigos oscularam-lhe as mãos, comentando, com entusiasmo, os
mapas de trabalho a que se prenderiam, de futuro.
Diminuíam os entendimentos e as rogativas de proteção, quando o
pregador foi procurado por alguém com intimidade afetuosa.
— Varro! — exclamou ele, abraçando o recém-chegado e contendo a
emoção.
Tratava-se de velho romano, de olhar percuciente e triste, cuja túnica muito
alva, confundida com a roupagem brilhante do companheiro, assemelhava-se a
uma nesga de neblina apagada, de encontro a repentino clarão de aurora.
No amplexo de ternura que permutavam, era bem de ver-se a
reaproximação de dois amigos que, por momentos, olvidavam a autoridade e a
aflição de que eram portadores, para se transfundirem um no outro, depois de
longa separação.
Trocadas as primeiras impressões em que antigos eventos do pretérito
foram recordados, Quinto Varro, o romano de fisionomia simpática e amargurada,
explicou ao companheiro, então guindado a esfera superior, que
pretendia voltar ao plano físico, em breve tempo.
O representante da Esfera Mais Alta ouviu-o com atenção e obtemperou,
admirado:
— Mas, porquê? Conheço-te o acervo de serviços, não somente à causa
da ordem, mas igualmente à causa do amor. No mundo patrício, as tuas
derradeiras romagens foram as do homem correto até ao extremo sacrifício e
os teus primeiros ensaios na edificação cristã foram dos mais dignos. Não seria
aconselhável o prosseguimento de tua marcha, acima das inquietantes
paisagens da carne?
O interlocutor fixou um gesto silencioso de súplica e aduziu:
— Clódio, abençoado amigo! peço-te!... Sei que conservas o poder de
autorizar minha volta. Sim, sem dúvida, os apelos de cima comovem-me a
alma!. .. Anseio por reunir-me, em definitivo, aos nossos da vanguarda... No
entanto — e a voz dele se fêz quase sumida pela emotividade —, de todos os
que ficaram para trás, tenho um filho do coração, perdido nas trevas, que eu
desejaria Socorrer...
— Taciano? — indagou o mentor, intrigado.
— Ele mesmo...
E Varro prosseguiu, com encantadora humildade:
— Sonho conduzi-lo ao Cristo, com os meus próprios braços. Tenho
implorado ao Senhor semelhante graça, com todo o fervor de meu paternal
carinho. Taciano é para mim o que a rosa significa para o arbusto espinhoso
em que nasceu. Em minha indigência, ele é o meu tesouro e, em minha
fealdade, é a beleza de que desejava orgulhar-me. Daria tudo por dedicar-me a
ele, de novo... Acariciá-lo, junto do coração, para orientar-lhe os passos na
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direção de Jesus, é o Céu a que aspiro...
E, como se quisesse sondar a impressão que causava no amigo,
acrescentava:
— Porventura estarei errado em minha aspiração?
O velho orientador afagou-o, com visíveis demonstrações de piedade,
passou a destra pela fronte banhada de luz e falou:
— Não discuto os teus sentimentos, que sou constrangido a respeitar,
mas... valeria tamanha renunciação?
Como se articulasse as próprias reminiscências para exprimir-se com
segurança, fêz longa pausa, que ele próprio interrompeu, acentuando:
— Não acredito que Taciano esteja preparado. Vi-o, há alguns dias, no
Templo de Vesta, chefiando larga legião de inimigos da luz. Não me pareceu
inclinado a qualquer serviço do Evangelho. Vagueia nos santuários das
divindades olímpicas, promovendo arruaças contra o Cristianismo nascente e
ainda se compraz nos festins dos circos, encontrando incentivo e alegria nas
efusões de sangue.
— Tenho acompanhado meu filho, nesse lamentável estado — concordou
Quinto Varro, melancólico —, contudo, nos últimos dias, noto-o amargurado e
aflito. Quem sabe estará Taciano à beira da grande renovação? Compreendo
que ele tem sido recalcitrante no mal, consagrando-se, indefinidamente, às
sensações inferiores que lhe impedem a percepção de mais altos horizontes da
vida. Mas concluo, de mim para comigo, que algo deve ser feito quando temos
necessidade do reajustamento daqueles a quem amamos...
E talvez porque Clódio silenciasse, pensativo, o afetuoso pai voltou a dizer:
— Abnegado amigo, permite-me voltar...
— Estarás, todavia, consciente dos riscos da empresa? Ninguém salvará
um náufrago sem expor-se ao chicote das ondas. Para ajudar Taciano,
mergulhar-te-ás nos perigos em que ele se encontra.
— Sei disso — atalhou Varro, decidido, prosseguindo em tom de súplica —;
auxilia-me a pretensão, em nome de nossa velha amizade. Procurarei servir ao
Evangelho com todas as minhas forças, aceitarei todos os sacrifícios, comerei
o pão de fel embebido em suor e pranto; contudo, rogo permissão para
convocar meu filho ao trabalho do Cristo, por todos os recursos que estiverem
ao meu alcance... Certo, o caminho estará juncado de obstáculos, entretanto,
com o amparo do Senhor e com o auxílio dos amigos, conto vencer.
O respeitável mentor, francamente compadecido, como quem não
desejava delongar-se na conversação de ordem pessoal, indagou:
— Quanto tempo consideras imprescindível ao cometimento?
— Ouso colocar a resposta em teu próprio critério.
— Pois bem — concluiu o companheiro generoso —, endosso-te a decisão,
confiantemente. Concedo-te vinte lustros para o trabalho a realizar. Creio que
um século bastará. Determinaremos medidas para que sejas sustentado na
nova roupagem de carne. Teus serviços à causa do Evangelho serão
creditados em Esfera Superior e, quanto ao mérito ou demérito de Taciano, à
frente de tua renunciação, admito que o assunto será privativo de tua própria
responsabilidade.
Instado por amigos, na liquidação de outros problemas, Clódio lançou-lhe
compassivo olhar e finalizou:
— Não te esqueças de que, pela oração, continuaremos juntos. Ainda
mesmo sob o pesado véu do esquecimento na luta física, ouviremos teus
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apelos, amparando-te com o nosso esforço assistencial. Vai em paz, quando
quiseres, e que Jesus te abençoe.
Varro dirigiu-lhe comovedoras palavras de reconhecimento, reafirmou as
promessas que formulara e ausentou-se, cismarento, sem saber ao certo que
estranhas emoções lhe povoavam a alma, entre raios de alegria e dardos de
amargura.
Em esplêndido crepúsculo, enquanto o Sol, como um braseiro, tombava
para os lados de Óstia, o Espírito de Quinto Varro, solitário e pensativo, chegou
à Ponte Céstio, demorando-se na contemplação da corrente do Tibre, como
que detido por obcecantes recordações.
Brisas suaves deslizavam cantando, qual se fôssem ecos isolados de
melodias ocultas no céu escampo.
Roma engalanara-se para celebrar as vitórias de Séptimo Severo sobre os
seus temíveis competidores. Pescênio Níger, depois de tríplice derrota, fôra
colhido pelas forças imperiais e decapitado, às margens do Eufrates, e Albino,
o escolhido das legiões da Bretanha, seria vencido nas Gálias, matando-se em
desespero.
Diversos dias de festa comemoravam a glória brilhante do imperador
africano, mas, por solicitação dos augustais, o término das solenidades estava
marcado para a noite próxima, no grande anfiteatro, com todas as pompas do
triunfo.
Mostrando fisionomia expectante e entristecida, Varro atravessou o
pequeno território da ilha do Tibre e, ganhando o Templo da Fortuna, observou
a multidão dos grupos esparsos de povo, a se adensarem na praça, em direção
ao soberbo edifício.
As liteiras de altos dignitários da Corte, cercadas de escravos, dispersavam
pequenas assembléias de cantores e dançarinos. Bigas faustosas e carros
adornados varavam por entre a turba, conduzindo tribunos jovens e damas
patrícias de famílias tradicionais. Marinheiros e soldados querelavam com
vendedores de refrigerantes e frutas, enquanto a onda popular crescia sempre.
Gladiadores de corpo descomunal chegavam sorridentes, cortejados por
jogadores inveterados da arena.
E, enquanto os sons de alaúdes e atabales se misturavam ao distante
rugido das feras enjauladas para o soberbo espetáculo, a glória de Severo e o
suplício dos cristãos eram os temas preferidos de todas, as palestras.
O viandante espiritual fitava não só a multidão ávida de prazeres, mas
também as falanges bulhentas de entidades ignorantes ou perversas que
dominavam nas sombrias comemorações.
Varro tentou adiantar-se, revelando estar àprocura de alguém, mas a
pesada atmosfera reinante obrigou-o a recuar. Contornou o famoso anfiteatro,
palmilhou as vielas que se estreitavam entre o Célio e o Palatino, atravessou a
Porta Capena e atingiu o campo, dirigindo-se para os sepulcros da Via Apia.
A noite clara descera sobre o casario romano.
Milhares de vozes entoavam cânticos de júbilo, à prateada claridade do luar
em plenilúnio. Eram cristãos desencarnados, preparando-se para receber os
companheiros de sacrifício. Os mártires supostamente mortos iam saudar os
mártires que, nessa noite, iam morrer.
Quinto Varro uniu-se ao extenso grupo e orou, fervorosamente, suplicando
ao Alto forças para a difícil empresa a que pretendia consagrar-se.
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Preces e comentários santificantes foram ouvidos.
Depois de algumas horas, a enorme assembléia espiritual deslocou-se no
rumo do anfiteatro.
Hinos de alegria elevaram-se às alturas.
Não somente os mensageiros da Via Ápia alcançavam o anfiteatro em
harmoniosas orações.
Enviados do Monte Vaticano e trabalhadores espirituais dos grupos de
pregação evangélica do Esquilino, da Via Nomentana e da Via Salária, incluindo
representantes de outras regiões romanas, penetravam o tumultuário
recinto como exércitos de luz.
Introduzidos na arena para os derradeiros sacrifícios, os seguidores de
Jesus igualmente cantavam.
Aqui e ali, vísceras de feras mortas, de mistura com os corpos
horrivelmente mutilados de gladiadores e bestiários vencidos, eram retirados à
pressa por guardas de serviço.
Alguns discípulos do Evangelho, notadamente os mais idosos, atados em
postes de martírio recebiam setas envenenadas, incendiando-se-lhes depois os
corpos, a fim de servirem como tochas na festiva exibição, enquanto outros, de
mãos postas, se entregavam, inermes, aos golpes de panteras e de leões da
Numídia.
Quase todos os supliciados desprendiam-se da carne, no sublimado êxtase
da fé, recolhidos carinhosamente pelos irmãos que os esperavam em cânticos
de vitória.
Quinto Varro, no entanto, em meio da claridade intensa com que as legiões
espirituais haviam desintegrado as trevas, não se mostrava interessado na
exaltação dos heróis.
Relanceava o olhar pelas arquibancadas repletas, até que, por fim, se
deteve, com evidentes sinais de angústia, em álacre conjunto de Espíritos
turbulentos, em arrojadas libações.
Ansiosamente, Varro abeirou-se de um jovem que desferia estrepitosas
gargalhadas e, abraçando-o, com extremada ternura, sussurrava:
— Taciano, meu filho! meu filho!...
O rapaz que se mergulhava na mais profunda corrente de sensações
inferiores não viu o benfeitor que o conchegava de encontro ao peito, mas, tomado
de repentina inquietação, silenciou de imediato, abandonando o recinto,
dominado por invencível amargura.
O jovem não identificava a presença do venerável amigo ao seu lado,
contudo, abraçado por ele, experimentou imensa aversão pela odiosa solenidade.
Alheou-se dos companheiros e, sentindo fome de solidão, afastou-se,
rápido, devorando ruas e praças.
Desejava pensar e reconsiderar, a sós, a senda por ele mesmo percorrida.
Depois de longo trajeto, alcançou a Porta Pinciana, em busca de
insulamento. Nos jardins onde se venerava a memória de Esculápio, havia
soberba estátua de Apolo, junto da qual, por vezes, gostava de meditar.
O corpo marmóreo da divindade olímpica levantava-se, magnífico,
ostentando primorosa taça numa das mãos, de bordos voltados para o solo,
como se procurasse fecundar a terra-mãe.
Num recipiente, aos pés do ídolo, fumegava o incenso ali colocado por
mãos devotas e anônimas, embalsamando o sítio em aroma delicioso.
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Atormentado por insopitável angústia, Taciano chorava sem querer,
rememorando as próprias experiências.
Sabia-se fora do corpo físico, mas longe de encontrar as paisagens das
narrações de Vergílio, cuja leitura lhe merecera especial atenção, vira-se
incompreensivelmente atraí do para as bacanais da sociedade em decadência,
sendo surpreendido, depois do túmulo, tão somente por si próprio, com a sua
velha sede de sensações. Delirara em banquetes e jogos, sorvera o prazer em
todas as taças ao seu alcance, mas rendia-se ao tédio e ao arrependimento.
Em que se resumia a vida? — perguntava a si mesmo, em solilóquio doloroso
—onde se domiciliavam os deuses de sua antiga fé? Valeria a procura da
felicidade, na temporária satisfação dos sentidos humanos, depois da qual havia
sempre larga dose de fel? Como localizar as antigas afeições no misterioso
país da morte? por que razões vagueava preso ao reino doméstico, sem
equilíbrio e sem rumo? Não seria mais justo, se possível, adquirir novo corpo e
respirar entre os homens comuns? Suspirava por mais íntimo contacto com o
plano da carne, em cuja penetração poderia esquecer a si mesmo... Oh! se
pudesse olvidar os enigmas torturantes da existência, conchegando-se à
matéria para dormir e refazer-se! — meditava.
Conhecia amigos que, depois de longas súplicas ao Céu, haviam
desaparecido na direção do renascimento. Não ignorava que o espírito imortal
pode usar vários corpos, entre os homens; entretanto, não se sentia com a
força precisa para dominar-se e oferecer às Divindades uma prece fundamentada
no verdadeiro equilíbrio moral.
Naquele instante, porém, sentia-se mais angustiado que de outras vezes.
Saudade imensa e indefinível pungia-lhe o coração.
Depois de chorar em silêncio, fixou o semblante impassível da estátua e
suplicou:
— Grande Hélios! Deus de meus avós!... Compadece-te de mim! Renovame
o sentimento na pureza e na energia que encarnas para a nossa raça! Se
possível, faze-me esquecer o que fui. Ampara-me e concede-me a graça de
viver, de conformidade com o exemplo dos meus antepassados!...
Com as inexprimíveis reminiscências do seu antigo lar, Taciano, inclinado
para o solo, lamentava-se, amarguradamente; mas, quando enxugou as
lágrimas que lhe obscureciam a visão e tornou a fitar a imagem do deus, não
mais viu o ídolo primoroso e sim o Espírito de Quinto Varro, nimbado de
intensa luz, a olhá-lo com enternecimento e tristeza.
O jovem quis recuar, transido de assombro, mas indefiníveis emoções
subjugavam-lhe agora todo o ser.
Como que dobrado por forças misteriosas, ajoelhou-se ante a visita
inesperada.
Desejou falar, mas não conseguiu, assinalando estranha constrição nas
cordas vocais.
Pranto mais intenso jorrava-lhe dos olhos.
Identificou a personalidade do genitor e, esmagado por inexprimível
emoção, notou que Varro caminhava para ele, de afetuoso olhar encimando
triste sorriso.
A entidade amorosa afagou-lhe a cabeça atormentada e falou:
— Taciano, meu filho!... Que o Supremo Senhor nos abençoe a senda de
redenção. Deixa que as lágrimas te lavem todos os escaninhos da alma!
Milagrosa lixívia, o pranto purifica nossas chagas de vaidade e ilusão.
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Não te julgues relegado ao abandono!...
Ainda mesmo quando as nossas preces se expandam ardentes, perante os
ídolos sem alma, o coração augusto do Senhor as recolhe na misteriosa
concha do seu amor infinito, apressando o socorro às nossas necessidades.
Tem calma e confiança, filho meu! Voltaremos à experiência da carne para
resgatar e reaprender.
Nesse instante, Taciano, magnetizado pelo olhar paterno, tentou erguer-se
para abraçá-lo ou rojar-se até o chão, a fim de Oscular-lhe os pés; no entanto,
como se estivesse imobilizado por laços invisíveis, não conseguiu articular
qualquer movimento.
— Ouve-me! — prosseguiu Varro, compadecidamente - pedes o retorno à
liça terrestre, entediado de ti mesmo, e receberás semelhante concessão.
Estaremos novamente reunidos, na cela corpórea do mundo físico —
abençoada escola de nossa regeneração para a vida eterna, todavia, não mais
na exaltação do orgulho e do poder.
Nossos deuses de pedra estão mortos.
Júpiter, com o seu carro de triunfo, passou para sempre. Em lugar dele,
surge o Mestre da Cruz, o escultor divino da perfeição espiritual imperecível,
que nos toma por tutelados felizes do seu Coração.
Outrora, acreditávamos que a púrpura romana sobre o sangue dos
vencidos era o símbolo de nossa felicidade racial e admitíamos que os gênios
celestes deviam permanecer submetidos aos nossos caprichosos impulsos.
Hoje, porém, o Crísto nos orienta o passo por estradas diversas. A Humanidade
é a nossa família e o mundo é o nosso Lar Maior, onde todos somos
irmãos. Diante do Céu, não há escravos nem senhores e sim criaturas ligadas
entre si pela mesma origem divina.
Os cristãos que não compreendes agora são os alicerces da glória futura.
Humilhados e escarnecidos, vilipendiados e mortos no sacrifício, representam a
promessa de paz e sublimação para o mundo.
Um dia, ninguém se lembrará do fausto de nossas mentirosas celebrações.
A ventania que sopra dos montes gelados espalhará sobre o chão escuro a
cinza de nossa miserável grandeza, então convertida em lamentação e pó. Mas
a renúncia dos homens e das mulheres que hoje se deixam imolar por uma
vida melhor estará cada vez mais santificada e mais viva, na fraternidade que
reinará soberana!...
Talvez reparando a profunda surpresa do jovem que o escutava, trêmulo e
abatido, Quinto Varro acentuou:
— Prepara-te como valoroso soldado do bem. Em breve tempo,
regressaremos à escola da carne. Serás para mim a estrela da manhã,
indicando-me a chegada do Sol de cada dia. Certo, sofrimentos cruéis abaterse-
ão sobre nós, qual ocorre aos servidores da verdade nesta noite de
tormentosa flagelação. Indubitàvelmente, a dor espreitar-nos-á a existência,
porque a dor é o selo do aperfeiçoamento moral no mundo... Conheceremos a
separação e a desventura, o fel e o martírio, mas o pão da graça celeste entre
os homens por muitos séculos ainda será amassado no suor e nas aflições dos
servidores da luz! Seguirei teus passos, à maneira do cão fiel, e espero que,
unido ao meu coração, poderás repetir, mais tarde:
— Ave, Cristo! os que vão viver para sempre te glorificam e saúdam!...
O mensageiro fêz longa pausa, enquanto aves noturnas piavam,
doloridamente, no arvoredo mergulhado nas sombras.
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Roma dormia, agora, em pesada quietação.
Quinto Varro inclinou-se, carinhosamente apertou o filho de encontro ao
peito e beijou-lhe a fronte.
Nesse instante, porém, talvez porque sensações contraditórias lhe
turvassem o campo íntimo, Taciano cerrou os olhos para interromper a corrente
das lágrimas copiosas, mas, ao descerrá-los, de novo, observou que seu pai
havia desaparecido.
A paisagem fizera-se inalterada.
A estátua de Apolo brilhava, refletindo o luar esmaecido da madrugada.
Premido de angústia, Taciano alongou os braços para a noite que lhe
pareceu, então, desolada e vazia, bradando, desesperado:
— Meu pai! meu pai!...
E porque seus gritos se perdessem sem eco, no espaço imenso, cansado
e abatido estendeu-se na terra, soluçando...
Anos e anos se dobaram sobre estes acontecimentos...
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Corações em luta
Em sua vila adornada de rosas, no sopé do Aventino, para o lado do Tibre,
Quinto Varro, jovem patrício romano, meditava...
Regressara ao templo doméstico, depois de longo trabalho na galera da
frota comercial de Opílio Vetúrio, na qual desfrutava a distinção do comando,
para ligeiro descanso no lar, e, depois do beijo carinhoso à esposa e ao
filhinho, que se deliciavam brincando no triclínio, repousava agora, lendo algumas
sentenças de Emilio Papiniano, em florido caramanchão do jardim.
Roma atravessava, no ano 217, sob pesada atmosfera de crimes e
inquietações, os últimos dias do imperador Marco Aurélio Antonino Bassiano,
cognominado de Caracala (2).
Desde a morte de Papiniano, cruelmente assassinado por ordem do César,
desiludira-se o Império quanto ao novo dominador.
Bassiano, longe de respeitar as tradições paternas, na esfera
governamental, desmandara-se em vasta conspiração de tirania contra o
direito, não só alimentando a perseguição contra os grupos nazarenos, mais
humildes, mas também contra todos
(2) O governo de Caracala, conquanto fôsse um tanto benigno para os
cristãos situados em posição favorável na vida pública, permitiu a
perseguição metódica aos escravos e plebeus dedicados ao Evangelho,
então considerados inimigos da ordem política e social. — (Nota do Autor
espiritual.)
os cidadãos honrados que ousassem desaprovar-lhe a conduta.
Encantado com os conceitos sábios do célebre jurisconsulto, Varro
confrontava-os com os ensinamentos de Jesus, que detinha de memória, refletindo
sobre as facilidades da conversão da cultura romana aos princípios do
Cristianismo, desde que a boa vontade pudesse penetrar o espírito dos seus
compatriotas.
Descendente de importante família, cujas raízes remontavam à República,
não obstante a grande pobreza de bens materiais em que se debatia, era
apaixonado cultor dos ideais de liberdade que invadiam o mundo.
Doíam-lhe na alma a ignorância e a miséria com que as classes
privilegiadas mantinham a multidão e perdia-se em vastas cogitações para
encontrar um ponto final aos milenários desequilíbrios da sociedade de sua
pátria.
Reconhecia-se incapaz de qualquer mensagem salvadora e eficiente ao
poder administrativo. Não possuía ouro ou soldados com que pudesse impor as
opiniões que lhe fervilhavam na cabeça, entretanto, não ignorava que um
mundo novo se formava sobre as ruínas do velho.
Milhares de homens e mulheres modificavam-se mentalmente sob a
inspiração do espírito renovador. A autocracia do patriciado lutava, desesperadamente,
contra a reforma religiosa, mas o pensamento do Cristo, como que
pairava acima da Terra, conclamando as almas a descerrarem novo caminho
ao progresso espiritual, ainda mesmo àcusta de suor e sangue no sacrifício.
Abismado em reflexões, foi trazido à realidade pela esposa, Cíntia Júlia,
que veio ter com ele, guardando nos braços o filhinho Taciano, com apenas um
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ano de idade, a sorrir, doce e terno, como se fôra um anjo arrebatado ao berço
celeste.
Cíntia revelava nos olhos escuros a chama da vivacidade feminil, deixando
entrever, de imediato, a trama das paixões que lhe desbordavam da alma
inquieta. Largo peplo de nevado linho realçava-lhe as formas de madona e
menina, evocando o perfil brejeiro e lindo de alguma ninfa que se houvera
repentinamente transformado em mulher, contrastando com a severa
expressão do marido, que parecia infinitamente distanciado da companheira
pelas afinidades psíquicas.
Quinto Varro, não obstante muito moço, trazia a máscara fisionômica do
filósofo, habituado a permanente mergulho no oceano das idéias.
No contentamento de uma cotovia palradora, Cíntia reportou-se à festa de
Ülpia Sabina, a que comparecera na véspera, junto de Vetúrio, que lhe fôra
desvelado parceiro.
Deteve-se, entusiástica, na descrição dos bailados de invenção da própria
dona da casa, que aproveitara a vocação de escravas jovens, tentando repetir
para o esposo, com harmoniosa voz, alguns trechos da música simbólica.
Varro sorria, condescendente, qual se fôra um pai austero e bondoso
escutando as infantilidades de uma filha, e pronunciava, de quando em
quando, uma ou outra frase curta de compreensão e encorajamento.
A certa altura da conversação, fixando a esposa, como quem pretendia
tocar em assunto mais sério, observou:
— Sabes, querida, que hoje à noite será possível ouvir uma das vozes
mais autorizadas do nosso movimento nas Gálias?
E talvez porque a mulher silenciasse, pensativa, continuou:
— Refiro-me a Ápio Corvino, o velho pregador de Lião (3) que se despede
dos cristãos de
(3) No tempo da dominação de Roma, nas Gálias, o nome da cidade de
Lião era Lugdunum. — (Nota do Autor espiritual.)
Roma. Na mocidade, foi contemporâneo de Átalo de Pérgamo, admirável herói
entre os mártires gauleses. Corvino conta mais de setenta anos, mas, segundo
as impressões gerais, é portador de um espírito juvenil.
A jovem senhora esboçou largo gesto de enfado e murmurou:
— Porque nos preocuparmos tanto com esses homens? Francamente, da
única vez que te acompanhei às catacumbas, voltei aflita e desanimada.
Haverá qualquer senso prático nas divagações que ouvimos? Porque arrostar
com os perigos de um culto ilegal para somente insistir em desvarios da
imaginação?
Com ironia e agressividade, prosseguia para o esposo triste:
— Acreditas possa eu conformar-me com a louca renunciação de
mulheres, quais Sofrônia e Cornélia, que desceram do fausto patrício para a
imundície dos cárceres, ombreando com escravas e lavadeiras?
Desferiu rumorosa gargalhada e acrescentou:
— Faz alguns dias, quando ainda te encontravas em viagem na Aquitânia,
Opílio e eu conversávamos na intimidade, quando Popéia Cilene veio ter
conosco, pedindo esmolas para as famílias vitimadas nas últimas
perseguições, e, vendo os meus jarros, instou comigo para abandonar o uso de
cosméticos. Rimo-nos fartamente da sugestão. Para atendermos aos princípios
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de um homem que morreu na cruz dos malfeitores, vai para duzentos anos,
precisaremos adotar a indigência e vaguear no mundo, como se fôssemos
fantasmas? Nossos deuses não nos reservam um paraíso de mendigos
discutidores. Nossos sacerdotes guardam dignidade e compostura.
Após leve pausa, em que fitou o esposo sarcasticamente, aduziu:
— Aliás, devo dizer-te que tenho sacrificado a Esculápio, em teu favor.
Temo por tua saúde. Vetúrio é de parecer que os cristãos são dementes. Não
observas quanta modificação transparece do teu procedimento para comigo,
desde o início de tuas novas práticas? Depois de longas ausências da família,
não regressas na posição do marido afetuoso de antes. Em vez de te
reportares à nossa intimidade carinhosa, guardas o pensamento e a palavra
em sucessos do culto abominável. Há tempos, afirmava Sabina que a perigosa
mística de Jerusalém enfraquece os laços do amor que os numes domésticos
nos legaram e dir-se-ia que esse Cristo te domina por dentro, afastando-te de
mim...
Cíntia, agora, de semblante conturbado, enxugava o pranto nervoso,
enquanto o filhinho sorria, ingênuo, em seu regaço.
— Grande tola! — obtemperou o marido, preocupado — poderás admitir
que te possa esquecer? onde reside o amor senão no santuário do coração?
Quero-te como sempre. És tudo em minha vida...
— Mas... e a dependência em que vivemos? — clamou Cíntia,
descoroçoada — a pobreza é um espantalho. És empregado de Opílio e
residimos numa casa que ele nos cede por favor... Porque não te arrojares,
tanto quanto meu primo, no campo dos negócios, para que tenhamos também
navios e escravos, palácios e chácaras? Acaso não te sentes humilhado, ante
a nossa posição de inferioridade?
Quinto Varro estampou indisfarçável amargura no semblante calmo.
Afagou a linda cabeleira da esposa e objetou, contrafeito:
— Porque motivo te agastares assim? não apreciarás a nossa riqueza de
caráter? conviria o favor da riqueza sobre a desgraça de tantos? como reter
escravos, quando tentamos libertá-los? estimarias ver-me em transações
inconfessáveis, com a perda de nossa consciência reta?
A esposa chorava, desagradàvelmente, mas, evidenciando o propósito de
alterar o rumo da conversação, Varro acentuou:
— Esqueçamos as futilidades. Vamos! Ouviremos juntos a palavra de
Corvino? Um carro nos conduzirá à noitinha...
Para voltarmos ao lar, morrendo de fadiga? — respondeu a mulher,
derramando copiosas lágrimas. — Não! não irei! Estou farta. Que nos podem
ensinar os gauleses bárbaros, cujas pitonisas lêem os augúrios nas vísceras,
ainda quentes, de soldados mortos?
O jovem esposo deixou transparecer nos olhos invencível tristeza e
considerou:
— Crueldade nos gauleses? e nós? Com tantos séculos de cultura,
afogamos mulheres indefesas, na corrente viciada do Tibre, assassinamos
crianças, crucificamos a mocidade e desrespeitamos a velhice, sentenciando
anciães veneráveis ao repasto das feras, simplesmente porque se consagram
a ideais de fraternidade e trabalho com a dignificação da vida para todos.
Jesus...
Varro ia fazer uma citação evangélica, recorrendo às palavras do Divino
Mestre; Cíntia, porém, elevando o tom da voz, que se fêz mais áspera, gritou:
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— Sempre o Cristo!... sempre o Cristo!... Lembra-te de que a nossa
condição social é miserável... Foge à punição dos deuses, rendendo culto a
César, para que a Fortuna nos favoreça. Estou doente, alquebrada... Não
tenho a vocação da cruz! detesto os nazarenos, que esperam o Céu entre
discussões e piolhos!...
O moço patrício contemplou a companheira, compadecidamente, como se
deplorasse, no íntimo, a insensatez das palavras que pronunciava, e notando
que o pequenino chorava a estender-lhe os braços, tentou acariciar a criança,
observando:
— Porque tanta referência à pobreza? Nosso filhinhO não será, por si
mesmo, um tesouro?
Cíntia, contudo, arrebatou-o à ternura paterna e, recuando num salto
precipitado, exclamou:
— Taciano jamais será cristão. É meu filho! Consagrei-o a Dindimene. A
mãe dos deuses defendê-lo-á contra a bruxaria e a superstição.
Em seguida, buscou o interior apressadamente, tangida por
incomPreenSivel tortura moral.
Quinto Varro não tornou à leitura.
Perdido em profundas reflexões, debruçou-se no muro que separava o
jardim da via pública e demorou-se na contemplação de extenso bando de
meninos, que se ocupavam num jogo infantil, lançando pedrinhas sobre as
águas e, de pensamento centralizado em seu pequeno Taciano, sem saber
definir os escuros pressentimentos que lhe envolviam o peito, reparou que
estranha amargura lhe tomava o coração.
No crepúsculo adiantado, sem conseguir reaviStar-se com a esposa, que
se ocultara com o filhinho na câmara do casal, tomou o carro de um amigo que
o conduziu até à casa humilde do venerável Lisipo de Alexandria, um grego
ilustre, profundamente devotado ao Evangelho, que residia em desconfortável
choupana, a desmantelar-se na estrada de óstia.
Pequena assembléia de adeptos havia-se formado na sala simples.
Com surpresa, foi informado de que as despedidas do grande cristão
gaulês não se realizariam naquela noite e, sim, na seguinte.
Corvino achava-se, desse modo, à disposição dos amigos para um
entendimento familiar.
Não havia, porém, outro assunto mais fascinante para o grupo que as
reminiscências das perseguições de 177.
Os tormentos dos cristãoS lioneses eram narrados minuciosamente pelo
nobre visitante.
Enquanto o círculo ouvia, extático, o ancião das Gálias recordava, com
prodigiosa memória, os mínimos acontecimentos. Repetia os interrogatórios
efetuados, incluindo as respostas inspiradas dos mártires. Reportava-se às
preces ardentes dos companheiros da Ásia e da Frígia que, piedosamente,
haviam socorrido as comunidades de Lião e Viena (4). Falava, entusiasmado,
da imensa caridade de Vétio Epágato, o abnegado senhor que renunciara à
nobre posição que desfrutava, a fim de converter-se em advogado dos cristãos
humildes. Inflamava-se-lhe o olhar, comentando a estranha coragem de Santo,
o diácono de Viena, e o heroismo da débil escrava Blandina, cuja fé confundira
o ânimo dos carrascos. Pintou a alegria de Potino, o chefe da Igreja de Lião,
cruelmente ultrajado e espancado na rua, sem uma palavra de revolta, aos
noventa anos de idade.
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Por fim, deteve-se com misteriosa alegria, aljofrada de lágrimas, nas
aventuras e tormentos de Átalo de Pérgamo, que lhe fôra o iniciador na fé.
Relacionava todos os pormenores dos suplícios a que se submetera o
venerável amigo. Lembrava-se da dilação havida no processo, em razão da
consulta do Propretor a Marco Aurélio, e demorava-se na descrição dos últimos
sofrimentos do grande cristão, esmurrado, chicoteado, atado à cadeira de ferro
incandescido, e finalmente degolado, em companhia de Alexandre, o devotado
médico frigio que, em Lião, oferecera ao Senhor admirável testemunho de fé.
A assembléia escutava, embevecida com as referências. Mas, porque o
pregador teria trabalho intensivo na noite próxima, Lisipo mandou servir
algumas tigelas de leite e fatias de pão fresco e a conversação foi encerrada.
(4) Cidade da França, próxima de Lião. — (Nota do Autor espiritual.
De espírito edificado pelas narrativas do velho gaulês, Varro tornou a casa.
Regressava mais cedo e um só pensamento lhe absorvia agora a mente:
apaziguar a alma inquieta da companheira, propiciando-lhe calma e alegria,
com a reafirmação da sua ternura e devotamento.
Aproximou-se, devagarinho, no intuito de surpreendê-la, afetuoso.
Atravessou o pequeno átrio, varou a porta semicerrada, mas, diante da sua
câmara de repouso, estacou, intrigado.
Ouviu vozes em diálogo aceso.
Achava-se Opílio Vetúrio em seu quarto de dormir.
Tentou compreender a tempestade moral que lhe amarfanhava o destino.
Não supunha o homem para quem trabalhava capaz de atrair-lhe a esposa
a semelhante procedimento.
Opílio era primo de Cíntia e sempre fôra recebido ali como irmão. Era dez
anos mais velho que ele, Varro, e enviuvara, desde algum tempo. Heliodora, a
esposa morta, fôra para Cíntia uma segunda mãe. Deixara dois filhinhos,
Helena e Caiba, gêmeos infelizes, cujo nascimento ocasionara o falecimento
da genitora, e que residiam com o pai, cercados de escravos devotadíssimos,
em palacete magnífico, a ilustrar os brasões da família.
Trabalhava para Vetúrio nas embarcações e morava numa vila que lhe
pertencia.
Achava-se lamentavelmente empenhado a ele, desde o casamento, por
dívidas pesadas, que se propunha resgatar honestamente, com serviço
pessoal, respeitável.
Sentindo que a cabeça se lhe transformara num vulcão de perguntas,
Varro pensava...
Por que razão se entregava assim a esposa à aventura menos digna? Não
era ele um companheiro leal, extremamente dedicado à felicidade dela e do
filhinho? Ausentava-se comumente de Roma, guardando-nos no coração. Se
as tentações de ordem inferior lhe assediavam o espírito, durante as viagens
habituais, Cíntia e Taciano lhe eram a invariável defesa... Como ceder às
sugestões da maldade, quando se acreditava o arrimo único da mulher e do
anjinho que lhe povoavam a alma de santificadas aspirações? e porque Vetúrio
lhe conspurcava, assim, o lar? não se sentia na condição dum amigo
convertido em devotado servidor? Quantas vezes, em portos distantes, era
convidado ao ganho fácil e renunciava a qualquer vantagem econômica de
procedência duvidosa, atento às responsabilidades que o ligavam ao primo de
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sua mulher! Em quantas ocasiões, constrangido pela gratidão, era obrigado a
esquecer possibilidades seguras de melhoria da sorte, simplesmente por notar
em Opilio, não somente o patrono do seu pão material, mas também o
companheiro, credor do seu mais amplo reconhecimento!...
Angustiado e abatido, considerava consigo mesmo, dentro do aflitivo
minuto: Se Cíntia amava o primo, porque desposara a ele? Se ambos haviam
recebido uma bênção do Céu, com a chegada do filhinho, como repudiar os
laços conjugais, se Taciano era a sua melhor esperança de homem de bem?
Semi-alucinado, passou a refletir contra a própria argumentação. E se
estivesse prejulgando? e se Opílio Vetúrio ali estivesse em missão de auxílio,
atendendo a solicitação da própria Cíntia? Era necessário, pois, acalmar a
mente inquieta e ouvir com isenção de ânimo.
Colocou a destra sobre o coração opresso e escutou:
— Nunca te habituarás aos devaneios de Varro dizia Vetúrio, senhor de si
—, é inútil qualquer tentativa.
— Quem sabe? aventurou a prima, preocupada — espero deixará ele,
algum dia, a odiosa convivência dos cristãos.
— Nunca! — exclamou o interlocutor, rindo-se, francamente — não há
notícia de pessoas que voltassem inteiramente à razão depois de ambientadas
nessa praga. Ainda mesmo quando parecem trair os votos, com temor das
autoridades, à frente de nossos deuses, voltam mais tarde ao encantamento.
Tenho acompanhado vários processos de recuperação desses loucos. Dir-se-ia
sofrerem temível obsessão pelo sofrimento. Pancadas, cordas, feras, cruzes,
fogueiras, degolamentos, tudo é pouco para diminuir a volúpia com que se
entregam à dor.
— Realmente, estou farta... — suspirou a jovem senhora, baixando o tom
de voz.
Evidenciando a segurança dos laços afetivos que já lhe prendiam o espírito
à dona da casa, Opílio acentuou, decidido:
Ainda mesmo que Varro alterasse as próprias opiniões, não
conseguirias modificar a nossa posição. Pertencemo-nos mütuamente. Há seis
meses és minha e que diferença faz?
Sarcástico, observou:
— Acaso, teu marido disputa a mulher? acha-se demasiadamente
interessado no reino dos anjos... Não admito, sinceramente, esteja à altura de
tua expectativa. Por Júpiter! Todos os meus conhecidos que se renderam à
mistificação nazarena, afastaram-se da vida. Varro falar-te-á do paraíso dos
judeus, repleto de patriarcas imundos, em vez de conversar contigo sobre os
nossos jogos, e garanto que se desejares uma excursão alegre, mais que
natural em teu gosto feminino, conduzir-te-á sem dúvida a algum cemitério
isolado, exigindo que te regozijes ao lado de ossos podres..
Uma gargalhada irônica fechou-lhe a frase, mas notando, provavelmente,
algum gesto inesperado na prima, prosseguiu:
— Além disso, precisas considerar que teu marido não passa de
meu cliente (5). Tem tudo e nada tem. Mas, por Serápis, não lhe vejo qualidades
para cercá-lo de favores. Sabes que te amo, Cíntia! Não ignoras que te
queria, em silêncio, desde o primeiro instante em que te reconheci, jovem e
formosa. Nunca teria preferido Heliodora, se os serviços de César não me
tivessem mantido na Acaia por tanto tempo! Quando te encontrei, enamorada
de Varro, senti uma tormenta no coração. Fiz tudo por tua felicidade. Inclinei as
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simpatias de minha mulher, em teu favor, cerquei-te de mimos, ofereci-te uma
residência digna de teus dotes, para que jamais te confundisses com as
mulheres miseráveis, que a privação compele à velhice precoce e, por ti,
suportei até mesmo o esposo que te acompanha, incapaz de compreender-te o
coração! Que farás de mim, agora, viúvo e triste quanto estou? Nunca
proporcionei a Heliodora, depois de reencontrar-te, senão a estima respeitosa
de que se fazia credora pela virtude irrepreensível. Nossos escravos sabem
que te pertenço. Mecênio, meu velho pajem, veio trazer-me a notícia de que os
servos acreditavam Heliodora envenenada por mim, para que lhe tomasses o
lugar! E, realmente, que mãe mais honrada e carinhosa poderia encontrar para
meus filhos? Resolve, pois. Uma palavra tua bastará.
— E meu esposo? — indagou Cíntia, com inexprimivel temor na voz.
Houve um silêncio expressivo, dentro do qual Vetúrio parecia meditar,
intencionalmente, expressando-se, logo após:
— Pretendo oferecer ao teu esposo a quitação de todos os débitos. Além
disso, posso ampará-lo noutros setores da vida imperial. A distância de nós,
conseguiria dar expansão aos próprios ideais.
(5) Pessoa pobre, entre os antigos romanos, que se valia dos favores de
um amigo rico. — (Nota do autor espiritual.)
Temo por ele. As autoridades não perdoam. Daqueles cuja intimidade
desfrutamos, vários têm sido presos, castigados ou mortos. Aulo Macrino e
dois filhos foram encarcerados. Cláudia Sextina, por todos os títulos venerável,
apareceu assassinada em sua chácara. Sofrônio Calvo teve os bens confiscados
e foi apedrejado no fórum. Teu marido poderia dar vazão aos
sentimentos dele onde quisesse, menos aqui.
— Mas que seria feito de Taciano, se atingíssemos uma solução favorável?
— Ora, ora — aventou o interlocutor, como um homem não habituado a
ponderar obstáculos —, meus filhinhos estão na idade do teu. Cresceria ao
lado de Helena e de Galba na melhor ambientação. Não podemos esquecer,
igualmente, que a minha herdade, em Lião, necessita de alguém. Alésio e
Pontimiana, meus administradores, sempre reclamam a presença de pelo
menos um dos nossos familiares. Dentro de alguns anos, o pequenino Taciano
poderia transferir-se para a Gália e assumir, em nossa propriedade, a posição
que lhe compete. Viria a Roma, tanto quanto desejasse, e desenvolveria a
personalidade em ambiente diverso, sem qualquer ligação com a influência
paterna...
Nesse ponto da conversação, Varro não mais suportou.
Sentindo que um vulcão de angústia lhe rebentava no peito, arrastou-se
pelo corredor próximo, em busca do aposento onde o filhinho repousava, junto
de Cirila, jovem escrava de que Cíntia se fazia acompanhar.
Ajoelhou-se, ante o berço adornado, e, ouvindo a abafada respiração do
menino, deu campo largo às próprias emoções.
Como um homem que se visse arremessado a fundo abismo, dum
momento para outro, sem encontrar, de pronto, qualquer base firme para suster-
se, não conseguiu, por alguns minutos, conciliar os próprios pensamentos.
Recorreu à prece, a fim de apaziguar-se e, então, passou a refletir.
Contemplou a fisionomia calma da criança, através do espesso véu das
lágrimas, e indagou a si mesmo — para onde iria? como resolver o delicado
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problema criado pela mulher?
Não desconhecia, agora, a crueldade de Opílio. Sabia-o detentor das
atenções de César que, segundo a versão popular, lhe utilizara a cooperação
no assassínio de Geta, pelo que recebera enorme patrimônio de terras na Gália
distante e, naquele momento, não duvidava de que ele houvesse facilitado a
morte da abnegada Heliodora, movido de paixão por Cíntia.
Considerou a situação vexatória a que fôra projetado e asilou o propósito
de revide.
A inolvidável figura do Cristo, porém, assomou-lhe à imaginação
superexcitada...
Como harmonizar a vingança com os ensinamentos da Boa Nova, que ele
mesmo difundia em suas viagens? como destacar o impositivo do perdão para
os outros, sem desculpar as falhas do próximo? O Mestre, cuja tutela buscara,
havia esquecido os golpes de todos os ofensores, aceitando a própria cruz...
Vira muitos amigos presos e perseguidos, em nome do Celeste Benfeitor.
Todos demonstravam coragem, serenidade, confiança... Conhecia o devotado
pregador do Evangelho, na Via Salária, Hostílio Fúlvio, cujos dois filhinhos
haviam sido trucidados sob as patas de dois cavalos, conduzidos
intencionalmente sobre eles por um tribuno embriagado. Ele mesmo, Varro,
ajudara a recolher os despojos dos inocentes e vira que o pai, de joelhos,
orara, chorando, agradecendo ao Senhor os sofrimentos com que ele e a
família eram rudemente experimentados.
A aflição daquela hora não seria a mão de Deus que lhe exigia um
testemunho de fé?
Mas não seria melhor perecer no anfiteatro ou ver Taciano devorado por
animais ferozes que se confiarem ambos à vergonha da morte moral?
E, perguntava em pranto mudo: — como se portaria Jesus, se tivesse sido
pai? Entregaria uma criança inerme a um lobo terrível da floresta social, sem a
mínima reação?
Por si, não se notava com direito a qualquer exigência. Reconhecia-se na
posição do homem comum e, por isso mesmo, pecador, com a necessidade
indisfarçável de adaptar-se à virtude.
Não poderia reclamar devotamento à esposa, embora perdê-la lhe
custasse imensa dor.
No entanto, e o pequenino? Seria justo abandoná-lo à mercê do crime?
Ó Deus! — soluçava, intimamente — como lutar com um homem poderoso,
quanto Opílio Vetúrio, capaz de alterar as determinações do próprio César?
Que a mulher amada o seguisse era uma ferida que a esponja do tempo, de
certo, lhe absorveria no âmago da alma, contudo, como separar-se do filhinho,
que era a sua razão de viver?
Ergueu-se, maquinalmente, retirou o menino adormecido, dentre os panos
de lã em que descansava, e asilou a tentação de fugir.
Não seria, porém, indesculpável temeridade expor a criança à intempérie?
E como situaria a companheira, no dia seguinte, à frente da vida social?
Cíntia não havia pensado nele, pai carinhoso e amigo, mas poderia ele,
discípulo dos ensinamentos de Jesus, votá-la ao desprezo de si mesma ou à
desconsideração pública?
Qual se estivesse amparado por estranha força invisível, repôs o
pequenino no leito, e, depois de beijá-lo enternecidamente, inclinou-se demoradamente
sobre ele e chorou, humilde, derramando copiosas lágrimas, como se
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vertesse o cálido rodo do próprio coração na preciosa flor de sua vida.
Logo após, certificando-se de que o diálogo continuava na câmara íntima,
regressou à via pública, buscando ar renovado para o corpo enlanguescido...
Parou nas margens do Tibre, invocando à memória os padecimentos de
todas as vítimas daquelas águas misteriosas e tranquilas, que deviam ocultar
os gemidos de inúmeros injustiçados da Terra. A mudez do velho rio não
representava uma inspiração para o campo agitado de sua alma?
Os raros transeuntes e os carros retardatários não lhe notavam a presença.
Dividindo o olhar entre o firmamento cintilante e as águas tranquilas,
abismou-se em profundas indagações que ninguém poderia sondar...
Ao alvorecer, tornou a casa, apático e desorientado, e, cerrando-se num
cubículo, entregou-se a sono pesado e sem sonhos, do qual despertou ao sol
avançado, pelos gritos dos escravos que transportavam material para
construções próximas.
Quinto Varro procedeu à higiene da manhã e, procurado por Cirila e a
criança, afagou o filho, entre grave e afetuoso, recebendo um recado da
mulher, anunciando-lhe que se ausentara, em companhia de amigas, para uma
festividade religiosa no Palatino.
Acabrunhado, afastou-se da residência na direção da via de Óstia.
Desejava entender-se com alguém que lhe pudesse lenir a chaga íntima e,
recordando a nobre figura de Corvino, propunha-se fazê-lo confidente de todas
as mágoas que lhe fustigavam o coração.
Recebido por Lisipo, este informou bondoso que o ancião se ausentara,
atendendo a vários enfermos, acentuando, porém, que estaria ele à noite, na
Via Ardeatina.
O anfitrião, todavia, observou tamanha palidez no visitante inesperado que
o convidou a sentar-se e a servir-se de um caldo reconfortante.
Varro aceitou, experimentando grande melhora espiritual. A paz do recinto
singelo como que lhe acalmava o espírito desarvorado.
Adivinhando-lhe os tormentos morais, o velhinho desenrolou diversas
páginas consoladoras, que continham informações sobre o heroismo dos mártires,
como que pretendendo cicatrizar-lhe as úlceras invisíveis.
O jovem ouviu, atento; leu compridos trechos das descrições e, alegando
abatimento físico, deixou-se ficar, junto de Lisipo, até mais tarde, quando
ambos se dirigiram para os sepulcros num carro de velho amigo.
Alcançaram os túmulos dentro da noite.
Transpuseram a porta que um dos companheiros vigiava, atento, e
desfilaram nas galerias, junto de numerosos irmãos que seguiam, conduzindo
tochas, em conversações coroadas de esperança.
Os cemitérios cristãos, em Roma, eram lugares de grande alegria.
Inquietos e desalentados na vida de relação, com infinitas dificuldades para se
comunicarem uns com os outros, dir-se-ia que ali, no lar dos mortos que as
tradições patrícias habitualmente respeitavam, os seguidores do Cristo encontravam
o clima único, favorável à comunhão de que viviam sedentos.
Abraçavam-se aí, com indizível ternura fraterna, cantavam jubilosos, oravam
com fervor...
O Cristianismo de então não se limitava aos ritos sacerdotais. Era um rio
de luz e fé, banhando as almas, arrebanhando corações para a jornada divina
do ideal superior. As lágrimas não surgiam na condição de gotas de fel
incendiado, mas como pérolas de amor e reconhecimento, nas referências aos
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suplícios dos companheiros sacrificados.
Aqui e ali, sepulturas róseas e brancas ostentavam dísticos afetuosos, que
não lembravam qualquer idéia escura de morte. Só a bondade de Deus e a
vida eterna mereciam exaltação.
Varro relia com avidez as palavras que lhe eram familiares, buscando
apoio moral para a resistência íntima de que se reconhecia necessitado.
Não longe, a carinhosa amizade de alguém escrevera a saudação: —
“Festo, Jesus te abençoe.” Adiante, grafara um pai devotado: — “Gláucia,
querida filha, estamos juntos.” Acolá, brilhava a inscrição “Crescêncio vive”,
mais além, fulgurava outra, “Popéia glorificada”.
Nunca sentira Varro tamanha paz nos túmulos. Reconhecendo-se na
posição de um homem expulso do próprio lar, sentia agora na multidão
anônima dos companheiros a sua própria família. Detinha-se nos semblantes
desconhecidos, com mais simpatia e interesse, e pensava consigo mesmo que
naquela fileira de criaturas, que ansiosamente buscavam os ensinamentos do
Senhor, talvez existissem mais dolorosos dramas que o dele e chagas mais
profundas a lhes sangrarem nos corações. Sustentava Lisipo no braço robusto,
como se houvera reencontrado a alegria de ser útil a alguém e, pelos olhares
felizes que permutavam entre si, pareciam ambos agradecer a influência de
Jesus, que concedia ao velho afetuoso a graça de amparar-se num filho e ao
moço infortunado a ventura de encontrar um pai a quem poderia servir.
Em grande recinto iluminado, hinos de alegria precederam a palavra do
pregador que, assomando à tribuna, falou com indescritível beleza, acerca do
Reino de Deus, encarecendo a necessidade de paciência e de esperança.
Quando terminou a enternecedora alocução, Lisipo e Varro aproximaramse
para reconduzi-lo a casa.
Um carro, além dos sepulcros, aguardava-os, solícito.
E na intimidade doméstica, ante os dois velhinhos que o escutavam,
surpresos, o moço patrício, pontilhando a narrativa de lágrimas, expôs o que
sofria, nos recessos da vida particular, rogando a Corvino um bálsamo para as
feridas que lhe oprimiam o coração.
O velho gaulês fê-lo sentar-se e, acariciando-lhe a cabeça, como se o
fizesse a um menino atormentado, indagou:
— Varro, aceitaste o Evangelho para que Jesus se transforme em teu
servidor ou para que te convertas em servidor de Jesus?
— Oh! sem dúvida — suspirou o rapaz —, se a alguma coisa aspiro no
mundo é ao ingresso nas fileiras dos escravos do Senhor.
— Então, meu filho, cogitemos dos desígnios do Cristo e olvidemos nossos
desejos.
E, fitando o céu pela janela humilde, deixando perceber que solicitava a
inspiração do Alto, acrescentou:
— Antes de tudo, não condenes tua mulher. Quem somos nós para sondar
o coração do próximo? poderíamos, acaso, torcer o sentimento de outra alma,
usando a maldade e a violência? quem de nós estará irrepreensível para
castigar?
— Todavia, como extinguir o mal, se não nos dispomos a combatê-lo? —
ajuizou Varro, gravemente.
O ancião sorriu e considerou:
— Acreditas, porém, que possamos vencê-lo àforça de palavras bem
feitas? Admites, porventura, que o Mestre haja descido das Alturas,
24
simplesmente para falar? Jesus viveu as próprias lições, guerreando a sombra
com a luz que irradiava de si mesmo, até ao derradeiro sacrifício. Achamo-nos
num mundo envolvido em trevas e não possuimos outras tochas para clareá-lo,
senão a nossa alma, que precisamos inflamar no verdadeiro amor. O
Evangelho não é somente uma propaganda de idéias libertadoras. Acima de
tudo, é a construção dum mundo novo pela edificação moral do novo homem.
Até agora, a civilização tem mantido a mulher, nossa mãe e nossa irmã, no
nivel de mercadoria vulgar. Durante milênios, dela fizemos nossa escrava,
vendendo-a, explorando-a, apedrejando-a ou matando-a, sem que as leis nos
considerem passíveis de julgamento. Mas, não será ela igualmente um ser
humano? viverá indene de fraquezas iguais às nossas? porque conferir-lhe
tratamento inferior àquele que dispensamos aos cavalos, se dela recebemos a
bênção da vida? Em todas as fases do apostolado divino, Jesus dignificou-a,
santificando-lhe a missão sublime. Recordando-lhe o ensinamento, será lícito
repetir — quem de nós, em sã consciência, pode atirar a primeira pedra.
E, fixando significativamente os dois ouvintes, acentuou:
— O Cristianismo, para redimir as criaturas, exige uma vanguarda de
espíritos decididos a executar-lhe o plano de ação.
— No entanto — ponderou o jovem romano, algo tímido —, poderemos
negar que Cíntia esteja em erro?
— Meu filho, quem ateia fogo ao campo da própria vida, de certo seguirá
sob as chamas do incêndio. Compadece-te dos transviados! Não serão
suficientemente infelizes por si mesmos?
— E meu filho? — perguntou Varro com a voz embargada de pranto.
— Compreendo-te a aflição.
E, vagueando o olhar lúcido pela sala estreita, Corvino pareceu mostrar um
fragmento do próprio coração, acrescentando:
— Noutro tempo, bebi no mesmo cálice. Afastar-me dos filhinhos foi para
mim a visitação de terrível angústia. Peregrinei, dilacerado, como folha
relegada ao remoinho do vento, mas acabei percebendo que os filhos são de
Deus, antes de pousarem docemente em nossas mãos. Entendo-te o
infortúnio. Morrer mil vezes, sob qualquer gênero de tortura, é padecimento
menor que esse da separação de uma flor viva que desejaríamos reter ao
tronco do nosso destino..
— Entretanto — comentou o patrício, amargurado —, não seria justo
defender um inocente, reclamando para nós o direito de protegê-lo e educá-lo?
— Quem te ouviria, contudo, a voz, quando uma insignificante ordem
imperial poderá sufocar-te os gritos? E além do mais — aduziu o ancião,
afetuosamente —, se estamos interessados em servir ao Cristo, como impor a
outrem o fel que a luta nos constrange a sorver? A esposa poderá não ter sido
generosa para com o teu coração, mas provavelmente será abnegada mãe do
pequenino. Não será, pois, mais aconselhável aguardar as determinações do
Altíssimo, na graça do tempo?
Detendo-se na dolorosa expressão fisionômica do pai desventurado,
Corvino observou, depois de longa pausa:
— Não te submetas ao frio do desengano, anulando os próprios recursos.
A dor pode ser comparada a volumosa corrente de um rio, suscetível de
conduzir-nos à felicidade na terra firme, ou de afogar-nos, quando não
sabemos sobrenadar. Ouve-nos, O Evangelho não é apenas um trilho de
acesso ao júbilo celestial, depois da morte. É uma luz para a nossa existência
25
neste mundo mesmo, que devemos transformar em Reino de Deus. Não te
recordas da visita de Nicodemos ao Divino Mestre, quando o Senhor asseverou
convincente: —“importa renascer de novo”?
Ante o sinal afirmativo de Quinto Varro, o ancião continuou:
— Também sofri muito, quando, ainda jovem, me decidi ao trabalho da fé.
Repudiado por todos, fui compelido a distanciar-me das Gálias, onde nasci,
demorando-me por dez anos consecutivos em Alexandria, onde renovei os
meus conhecimentos. A igreja de lá permanece aberta às mais amplas
considerações, em torno do destino e do ser. As idéias de Pitágoras são ali
mantidas num grande centro de estudos, com real proveito, e, depois de ouvir
atenciosamente padres ilustres e adeptos mais esclarecidos, convenci-me de
que renascemos muitas vezes, na Terra, O corpo é passageira vestidura de
nossa alma que nunca morre. O túmulo é ressurreição. Tornaremos à carne,
tantas vezes quantas se fizerem necessárias, até que tenhamos alijado todas
as impurezas do íntimo, como o metal nobre que tolera o cadinho purificador,
até que arroje para longe dele a escória que o desfigura.
Corvino fêz ligeiro intervalo, como a dar oportunidade à reflexão dos
ouvintes, e prosseguiu:
— Jesus não falava simplesmente ao homem que passa, mas, acima de
tudo, ao espírito imperecível. Em certo passo dos seus sublimes ensinamentos,
adverte: “melhor será entrares na vida aleijado que, tendo duas mãos, te
aproveitares delas para a descida às regiões inferiores”. (6) Refere-se o Cristo
ao mundo, como escola em que procuramos o nosso próprio burilamento. Cada
qual de nós vem à Terra, com os problemas de que necessita. A provação é
remédio salutar. A dificuldade é degrau na grande subida. Nossos antepassados,
os druidas, ensinavam que nos achamos num mundo de viagens ou
num campo de reiteradas experiências, a fim de que possamos alcançar, mais
tarde, os astros da luz divina para sermos um com Deus, nosso Pai. Criamos o
sofrimento, desacatando as Leis Universais e suportamo-lo para regressar à
harmoniosa comunhão com elas. A justiça é perfeita. Ninguém chora sem
necessidade. A pedra suporta a pressão do instrumento que a desgasta, a fim
de brilhar, soberana. A fera é conduzida à prisão para domesticar-se, O homem
luta e padece para aprender a reaprender, aperfeiçoando-se cada vez mais. A
Terra não é o único teatro da vida. Não disse o próprio Senhor — a quem
pretendemos servir — que “existem muitas moradas na Casa de Nosso Pai”? O
trabalho é a escada
(6) Evangelho de Marcos, capítulo 9 versículo 43. (Nota do Autor
espiritual.)
luminosa para outras esferas, onde nos reencontraremos, como pássaros que,
depois de se perderem uns dos outros, sob as rajadas do inverno, se
reagrupam de novo ao sol abençoado da primavera...
Passando a mão pelos cabelos brancos, o velho acentuou:
— Tenho a cabeça tocada pela neve do desencanto... Muitas vezes, a
agonia me visitou a alma cheia de sonhos... Em torno de meus pés, a terra fria
me solicita o corpo alquebrado, mas dentro do meu coração a esperança é um
sol que me abrasa, revelando em suas projeções resplendentes o glorioso
caminho do futuro... Somos eternos, Varro! Amanhã, reunir-nos-emos, felizes,
no lar da eternidade, sem o pranto da separação ou da morte...
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Ouvindo aquelas palavras, repletas de convicção e de ternura, o moço
patrício aquietou o espírito atormentado.
Mais alguns minutos de animadora conversação correram céleres e, algo
refeito, dispôs-se a partir.
Uma biga ligeira, por ele solicitada, esperava-o a reduzida distância.
Quando o galope dos cavalos se fundiu no grande silêncio, à porta do
templo doméstico, o jovem, mais tranquilo, notou que poucas estrelas ainda
fulguravam pàlidamente, enquanto o firmamento se tingia de rubro.
Alvorejava a manhã...
Varro, contemplando o formoso céu romano e pedindo a Jesus lhe
conservasse a fé haurida no entendimento com o velho cristão gaulês, na estrada
de Óstia, julgou encontrar naquela madrugada de surpreendente beleza o
símbolo do novo dia que lhe marcava agora o destino.
27
3
Compromisso do coração
Dois dias sucederam-se uniformes para Quinto Varro que, apático e
melancólico, ouvia no lar as queixas infindáveis da esposa, azorragando-lhe os
princípios com o látego da crítica insidiosa e contundente.
Embora as mágoas lhe oprimissem a alma, não deixou perceber qualquer
sinal de desaprovação à conduta de Cíntia, que prosseguia ao lado de Vetúrio,
entre excursões e. entendimentos.
Recebendo, porém, a recomendação de partir na direção de um porto da
Acaia, não conseguiu sopitar o anseio de renovação do qual se via possuído.
Procurou Opílio, pessoalmente, e recebido por ele, com largas
demonstrações de cavalheirismo, expôs o que desejava. Sentia-se necessitado
de vida nova. Pretendia abandonar o tráfego marítimo e consagrar-se a tarefas
diferentes, em Roma.
Contudo, confessava, com desapontamento, os débitos que o retinham ao
serviço na frota.
Devia tão vasta soma ao chefe da organização que ignorava como encetar
a mudança de caminho.
Vetúrio, revelando grande surpresa, buscou disfarçar os verdadeiros
pensamentos que lhe brotavam no raciocínio. Risonho e acolhedor, abeirou-se
do visitante, afirmando, peremptório, que jamais o considerara empregado e
sim companheiro de trabalho, que nada lhe ficava a dever. Declarou
compreender-lhe a fadiga e justificou-lhe o propósito de reajustar-se na vida
romana.
Corado de vergonha, Varro recebeu dele a plena quitação de todas as
dívidas. Opílio não só lhe fazia semelhante concessão, como também se
colocava à disposição dele para qualquer novo empreendimento.
Indagou delicadamente dos planos que já houvesse delineado para o
futuro, mas o esposo de Cíntia, atônito com o fingimento do interlocutor, mal
sabia responder, alinhando monossílabos que lhe denunciavam a insegurança.
Despediram-se, cordialmente, prometendo Opílio acompanhar-lhe a
trajetória, com carinho fraternal.
Sentindo-se profundamente desajustado, Quinto Varro dirigiu-se ao Fórum,
na perspectiva de encontrar alguém que lhe pudesse conseguir trabalho
honrado; entretanto, a sociedade da época parecia dividir-se entre senhores
poderosos e escravos misérrimos. Não havia lugar para quem quisesse viver
de serviço enobrecedor. Os próprios libertos da cidade ausentavam-se para
regiões distantes do Lácio, buscando renovação e independência.
Efetuou variadas tentativas em vão.
Ninguém desejava ocupar braços honestos com remuneração condigna.
Alegava-se que os tempos corriam difíceis, salientava-se a retração dos negócios
com a provável queda de Bassiano dum momento para outro. As
insanidades governamentais tocavam a termo e os partidários de Macrino, o
prefeito dos pretorianos, prometiam revolta. Vivia Roma sob regime de terror.
Milhares de pessoas haviam sido mortas, em pouco mais de cinco anos, por
assassinos livres que desfrutavam polpudas recompensas.
O jovem patrício, algo desalentado, fixava a multidão que ia e vinha, na
praça pública, indiferente aos problemas que lhe torturavam a alma, quando lhe
apareceu Flávio Súbrio, velho soldado de duvidosa reputação, abrindo-lhe
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braços acolhedores.
Homem maduro, mas ágil e manhoso, Súbrio fôra ferido em serviço do
Estado, ao manter a ordem nas Gálias, razão por que, agora coxo, era utilizado
por vários nobres em expedientes secretos.
Longe de suspeitar estivesse ele atado aos interesses do perseguidor de
sua família, Varro correspondeu, afetuoso, ao gesto de fraternidade que lhe era
oferecido.
Aliás, aquela expressão prazenteira constituía-lhe valioso incentivo na
posição de incerteza em que se achava, O súbito aparecimento do antigo
soldado poderia ser o início de alguma empresa feliz.
A conversação foi encetada com êxito.
Depois de cumprimentá-lo, o ex-legionário atacou o assunto que o trazia,
acentuando:
— Filho de Júpiter, como agradecer aos deuses o favor de encontrar-te?
Serápis compadeceu-se de minha perna doente e guiou-me os passos.
Comprometi-me a buscar-te, mas os tempos andam secos e um carro é
privilégio de senadores. Felizmente, porém, não foi necessário moer os ossos
na caminhada difícil.
O moço patrício sorria, intrigado, e antes que pudesse ensaiar qualquer
pergunta, Súbrio relanceou o olhar astuto em torno, como se quisesse
perscrutar o ambiente, e falou, baixando a voz:
— Meu caro Varro, sei que te desvelas por nossos compatriotas
perseguidos, os cristãos. Francamente, por mim, não sei como separar-me dos
numes domésticos e preferirei sempre uma festa de Apolo a qualquer reunião
nos cemitérios, no entanto, estou convencido de que há muita gente boa no
labirinto das catacumbas. Ignoro se frequentas o culto detestado, mas não
desconheço a tua simpatia por ele. Com sinceridade, não posso atinar com a
epidemia de sofrimento voluntário que presenciamos há tantos anos.
Nesse ponto das considerações, ajeitou mentirosa expressão de tristeza
na máscara facial e prosseguiu:
- Apesar de minha indiferença para com O Cristianismo, aprendi com os
nossos antepassados que devemos fazer o bem. Acredito haver soado o
instante de prestares assinalado serviço à causa desprezada. Não compreendo
a fé nazarena, responsável por tanta flagelação e tanta morte, contudo, apiadome
das vítimas. Por isso, filho dileto de Júpiter, não menoscabes a missão que
as circunstâncias te oferecem.
Ante a muda ansiedade do interlocutor, acrescentou:
— O pretor Galo, advertido por Macrino, necessita do concurso de alguém
para certo serviço em Cartago. Admito que, se efetuado por ti, poderá
transformar-se em precioso aviso aos cristãos da África.
Varro, mais com o propósito de colocar-se em trabalho digno que com a
idéia de erigir-se em salvador da comunidade, perguntou sobre a tarefa a
executar.
Mostrando entusiasmo bem estudado, Súbrio esclareceu que o alto
dignitário chamava-o a palácio para confiar-lhe delicado negócio.
O rapaz não vacilou.
Acompanhando o experiente lidador, procurou Galo, na própria residência,
em vista do caráter confidencial que Súbrio imprimira à conversação.
O velho pretor, emoldurado nos mais arraigados costumes patrícios,
recebeu-o, amenizando o rigor da etiqueta, e foi, sem rodeios, ao assunto,
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depois das saudações usuais.
— Varro — iniciou ele, solene —, conheço-te a lealdade aos
compromissos assumidos e espero aceites importante incumbência. Nossas
legiões proclamarão o novo imperador, em breves dias, e não podemos
prescindir dos patriotas irrepreensíveis para auxiliar-nos a obra de reajuste
social.
O hábil político mordeu os lábios murchos, revelando ocultar as
verdadeiras intenções que o moviam, e continuou:
— Não sei se dispões de tempo adequado, de vez que não desconheço
as obrigações que te prendem à frota de Vetúrio...
O jovem apressou-se em notificar-lhe o desligamento dos serviços
habituais.
Achava-se realmente na expectativa de encargos novos.
O pretor sorriu, triunfante, e prosseguiu:
— Se me fôsse possível a ausência de Roma, iria eu mesmo, entretanto...
Diante da frase reticenciosa, Quinto Varro indagou em que lhe poderia ser
útil, ao que o magistrado ajuntou:
— Cartago deveria estar reduzida a cinzas, conforme o sábio conselho do
velho Catão, mas, depois do feito brilhante de Emiliano, arrasando-a, Graco fêz
a loucura de reconstruir aquele ninho de serpentes. Duvido haja outra província
capaz de trazer-nos maiores aborrecimentos. Se é possível combater aqui a
praga dos galileus, por lá o problema é cada vez mais complicado. Altos funcionários,
damas patrícias, autoridades e homens de inteligência devotam-se ao
Cristianismo, com tamanho desleixo por nossos princípios, que chegam a
promover reuniões públicas para fortalecimento do proselitismo desenfreado.
Não podemos, contudo, viver às cegas. Nossas providências não podem falhar.
Mergulhando os olhos indagadores no rapaz, como a sondar-lhe os mais
íntimos sentimentos, interrogou:
— Estás habilitado a conduzir determinada mensagem ao Procônsul?
— Perfeitamente informou Varro, decidido.
— Tenho uma relação de quinhentas pessoas que precisamos alijar da
cidade. Não obstante o edito de Bassiano, declarando cidadãos romanos todos
os habitantes do mundo provincial, que passaram a desfrutar, indebitamente,
direitos iguais aos nossOS, concordamos na eliminação sumária de todos os
portadores da mistificação nazarena. Os principais devem responder a
processos antes de sentenciados à morte ou ao cárcere, as mulheres serão
poupadas, segundo a classe a que pertençam, depois de advertência justa, e
os plebeus serão circunscritos em serviço nas galeras imperiais.
O moço patrício, esforçou-se por disfarçar as penOsaS impressões de que
se via possuído, fazia sinaiS afirmativOs com a cabeça, entendendo, por fim, o
que significava a insinuação de Flávio Súbrio.
Aceitando o convite, conseguiria salvar muitos companheiros. Poderia
penetrar Cartago, com tempo bastante para informar os perseguidOs. Não lhe
seria difícil. Teria consigo o nome de todos os implicados. Antes de falar ao
Procônsul, comunicar-se-ia com a Igreja africana.
Um mundo de possibilidades construtivas aflorava-lhe na imaginação.
O próprio Corvino talvez pudesse orientá-lo na exeCUçãO do encargo em
perspectiva.
— Podes viajar de hoje a dois dias? — trovejou a voz de Galo, irritado com
a pausa que o moço imprimira à conversação.
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— Ilustre pretor — respondeu Varro, polida-mente —, estou pronto.
Demonstrando despedi-lo com os gestos de enfado que lhe eram
característicos, o magistrado concluiu:
— Seguirás na galera comerCial de Máximo Pratense, sob o comando de
Hélcio Lúcio. Amanhã à noite, entregar-te-ei a mensagem aqui mesmo e
poderás combinar qualquer medida, referente à excursão, com Flávio Súbrio,
que seguirá na mesma embarcação, como assessor do capitão, em tarefas de
ordem política junto a amigos do Prefeito, domiciliados na Numídia.
O entendimento terminara.
Em plena via pública, Varro, reconhecido, abraçou o ex-legionário,
marcando um encontro no Fórum para o dia seguinte.
Embora amargosos pressentimentos lhe ocupassem o coração, com
respeito ao filhinho, o jovem estava satisfeito. Alcançara, conforme supunha, o
trabalho desejado. Não se sentia inútil. Ao regressar de Cartago, certo não lhe
faltariam oportunidades outras. A viagem conferir-lhe-ia meios de auxiliar os
irmãos na fé, representando igualmente o primeiro degrau de acesso a
responsabilidades maiores.
Depois de rápida permanência no lar, dirigiu-se à via de Óstia, ansioso por
entrar em comunhão com os velhos amigos.
Anunciou a Corvino e Lisipo a decisão de partir.
O ancião gaulês comentou os obstáculos que vinha encontrando, para
sair de Roma e, interpelado por Varro, quanto ao porto a que se destinaria,
esclareceu que lhe cabia visitar a comunidade cristã de Cartago, antes de
tornar a Lião, em definitivo.
O semblante do rapaz iluminou-se.
Porque não seguirem juntos?
Tinha roteiro idêntico.
Corvino vibrou de satisfação.
O moço patrício expôs em ligeiras palavras o seu plano de comunicar-se
com Flávio Súbrio, quanto ao novo companheiro de viagem, guardando, porém,
os reais objetivos da missão que o levava à África para entendimentos
posteriores com Ápio Corvino, quando estivessem a sós, no mar.
No dia seguinte, quando apresentou o assunto ao velho soldado coxo,
Súbrio acolheu a idéia com indefinível sorriso, acrescentando, bem humorado:
— Como não? O viajante pode ser tomado àconta de um parente. Tens
esse direito.
Varro aprestou-se para a excursão de acordo com o programa previsto.
Comunicou à esposa a resolução de alterar os rumos do próprio destino,
sendo ouvido por Cíntia com especial atenção. E, depois de particular entrevista
com o pretor, despediu-se dela e de Taciano, com o espírito afogado
em dolorosa emotividade.
Levando expressiva documentação, embarcou em Óstia, com a alma
absorvida em angustiosas expectativas.
Corvino reuniu-se a ele, agradecido. Com o amparo do jovem patrício e de
Flávio Súbrio, que estranhamente se desvelava na instalação dele, dispunhase
a partilhar a câmara estreita, reservada a Quinto Varro, junto ao alojamento
do capitão, na popa, mas estacou no estrado, que separava o aposento dos
bancos dos remadores, parecendo admirar a soberba trirreme em que
viajariam. Contemplava os mastros magníficos, contudo, alertado por Varro,
satisfeito com a possibilidade de proporcionar-lhe o formoso espetáculo, o
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velhinho respondeu:
— Sim, observo a largueza do céu e do mar, batidos de sol; sinto as
baforadas do vento livre que parece cantar a glória divina da Natureza, mas
penso nos escravos calejados nos remos.
O pregador ia continuar, no entanto, Subrio, que exercia inexplicável
vigilância sobre ele, percebeu o sentido evangélico do apontamento, mostrou
maior preocupação no semblante carrancudo e dirigiu-se a Quinto Varro,
exclamando:
— Agasalhemos teu hóspede.
O moço patrício, contrariado com a interferência, expressou o desejo de
apresentá-lo a Hélcio Lúcio, mas o assessor do comandante objetou, célere:
— Não, agora não. Hélcio está ocupado. Aguardemos um momento
propício.
Corvino foi internado no beliche, com a sua reduzida bagagem, que se
constituía de uma túnica surrada, uma pele de cabra e uma bolsa com documentos.
Para disfarçar a desagradável impressão deixada por Súbrio, em lhe
cortando abruptamente a palavra, o rapaz deixou-se ficar demoradamente junto
do ancião, escolhendo aquele minuto para estudar, em companhia dele, o
verdadeiro sentido de sua viagem.
Corvino escutou-o, com visível espanto.
Conhecia os patriarcas cartagineses e os adeptos mais destacados da
importante Igreja africana.
Varro deu-lhe a conhecer o nome das pessoas indicadas na relação do
pretor, que o valoroso missionário identificou, em grande parte.
Trocaram impressões quanto à época perigosa que vinham atravessando
e assentaram providências, como velhos amigos, para os dias mais escuros do
porvir, caso as tempestades políticas não fossem amainadas.
O ancião das Gálias falou detidamente sobre a igreja de Lião.
Propunha-se, ali, consolidar o vasto movimento de assistência social, em
nome do Cristo.
Os prosélitos não admitiam a fé inoperante. A igreja, no parecer deles,
devia enriquecer-se de obras práticas, à maneira de fonte incessante de
serviços redentores.
Recebiam, frequentemente, a visita de confrades da Ásia e da Frígia, dos
quais obtinham instruções diretas para a materialização dos ideais evangélicos,
e aceitavam a Boa Nova, não somente como senda de esperança para o Céu,
mas também como plano de trabalho ativo no aperfeiçoamento do mundo.
E assim, de consideração a consideração e de apontamento a
apontamento, permaneceram, ambos, absortos e felizes, estruturando projetos
e avivando a chama rósea dos sonhos.
Quando o navio se pôs em movimento, Ápio Corvino sorriu para o
companheiro, como se fõra uma criança viajando para uma festa.
A princípio, ouviram as pancadas rítmicas dos martelos que controlavam a
ginástica dos remadores, mas, em seguida, o vento começou a sibilar
fortemente.
Varro ausentou-se, prometendo buscar o amigo a fim de apresentá-lo ao
capitão; mais tarde, entretanto, Corvino pediu-lhe fôsse adiada a visita para o
dia seguinte, asseverando que pretendia orar e descansar.
O jovem afastou-se na direção da proa, onde passou a entender-se com
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alguns marinheiros. Tentou avistar-se com o comandante, mas Hélcio Lúcio,
em companhia de Flávio Súbrio e de mais dois patrícios destacados, trocava
idéias com eles, em mesa distante, conversando animadamente.
Anoitecera de todo.
Temendo a obrigação de sorver bebidas fortes, Varro refugiara-se em si
mesmo.
Procurou a câmara em que se alojara, de modo a oferecer algum alimento
ao velho companheiro, mas Corvino parecia dormir tranqüilamente.
Vendo que Hélcio Lúcio e os amigos prosseguiam bebendo e jogando
ruidosamente, a distância, o jovem patrício subiu à proa e buscou solitário
recanto para dar largos vôos ao pensamento.
Sentia sede de meditação e prece e suspirava por alguns minutos de
silêncio, nos quais, a sós consigo, pudesse rememorar os sucessos dos últimos
dias.
Contemplou as águas que a ventania cantante encrespava e deixou que as
rajadas refrescantes lhe acariciassem os cabelos soltos, com a idéia de que os
balsâmicos fluídos da Natureza lhe adoçariam as inquietações da cabeça
atormentada.
Fascinado pela calma noturna, fitou a Lua crescente que se elevava no
céu e vagueou o olhar pelas constelações faiscantes.
Que misterioso poder comanda a existência dos homens! — pensava em
solilóquio triste.
Alguns dias antes, estava longe de supor-se na aventura de uma viagem
como aquela.
Acreditava-se num roteiro seguro de felicidade doméstica, amparado pelo
mais amplo respeito social. Entretanto, notava o destino em franca
transformação. Onde estariam Cíntia e Taciano naquela hora? por que motivo
a conduta da mulher lhe alterara daquele modo a vida?
Sem a idéia do Cristo no coração, não contaria com maiores dificuldades
para resolver os problemas que lhe atormentavam o íntimo, contudo,
conhecera o Evangelho e não ignorava os testemunhos que lhe cabia
mobilizar. Se pudesse sobrepor-se à influência de Opílio... No entanto, não
seria lícito nutrir qualquer ilusão. Possuía parentes abastados em Roma que se
incumbiriam da manutenção do filhinho, até que pudesse enfrentar as
surpresas da sorte, com finanças mais firmes; todavia, na condição de adepto
do Cristianismo, não seria justo impor à Cíntia o suplício moral de que se via
objeto.
Detendo-se na visão da noite magnífica, orou fervorosamente, implorando
a Jesus lhe aliviasse o espírito dilacerado.
Lembrava amigos presos e perseguidos por amor à fé sublime a que se
dedicavam, arrimando-se nos exemplos de humildade da qual se faziam
padrão vivo, e rogava ao Benfeitor Celeste não lhe permitisse a queda em
desesperos inúteis.
Quanto tempo passou assim, consigo mesmo, na solidão?
Varro não pensava nisso, até que alguém lhe bateu nos ombros,
arrancando-lhe os ouvidos da assoviada melopeia do vento.
Era Súbrio, que parecia conter a respiração. falando-lhe, desajeitado:
— Escolhido dos deuses, creio haver chegado o instante de nos
entendermos francamente.
Havia naquelas palavras algo estranho, cuja significação Varro buscou
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debalde.
O coração bateu-lhe descompassado, no peito. Aquela fisionomia pálida
do companheiro habitualmente tão cínico denunciava algum doloroso acontecimento,
contudo, não se sentiu suficientemente corajoso para indagar.
— Há muitos anos — prosseguiu o soldado —, recebi de teu pai um favor
que jamais conseguirei esquecer. Salvou-me a vida na Ilíria e nunca pude
ajudá-lo em parte alguma.
Prometi, porém, à minha denegrida consciência o resgate dessa dívida e
admito que hoje posso atender ao compromisso que o tempo não conseguiu
apagar...
Mergulhando os olhos felinos no semblante torturado do rapaz, continuou:
— Acreditas que o pretor tenha solicitado a tua cooperação por julgar-te
bastante maduro? admites que Hélcio Lúcio ceder-te-ia um lugar ao lado dos
seus próprios alojamentos, por achar-te simpático? Filho de Júpiter, sê mais
avisado. Opílio Vetúrio tramou com eles a tua morte. O teu destaque social não
lhe ensejava uma arbitrariedade em Roma, onde, aliás, espera conquistar-te a
mulher. Lastimo-te a mocidade cercada de tão poderosos inimigos. Hélcio
guarda instruções para atirar o teu cadáver, ainda hoje, ao seio das águas.
Alguém foi indicado para roubar-te a vida. Para a sociedade romana,
deves desaparecer, nesta noite, para sempre..
Escutando semelhantes palavras, Quinto Varro fêz-se lívido.
Imaginou-se à frente dos derradeiros instantes no mundo.
Quis falar, mas não conseguiu. Intensa emoção constringia-lhe a garganta.
Observando a expressão indefinível do olhar de Súbrio, presumiu que o
assessor do comando vinha exigir-lhe a vida.
Porque a pausa se anunciasse mais longa, reuniu todas as forças que lhe
restavam e perguntou:
- Que queres de mim?
— Quero salvar-te — informou o soldado com ironia.
E, depois de certificar-se da ausência de outros ouvidos na sombra,
ajuntou:
— Mas preciso salvar a mim também. Devo ajudar-te, sem esquecer-me...
Segredando quase, acentuou:
— Uma vida, por vezes, pede outra. Esse velho que te acompanha é meu
conhecido. É um macróbio gaulês, fatigado de viver. Sei que arengou nas
catacumbas, pedindo esmolas aos parvos... Certo, dominou-te com mágicas,
no intuito de ganhar um prêmio de viagem a Cartago. A peregrinação dele,
porém, será mais longa. Deixei que embarcasse, em nossa companhia,
propositadamente. Era a única solução para o meu enigma. Como defender a
tua cabeça sem comprometer a minha? Ápio Corvino...
O moço patrício ouvia a confidência, trêmulo de pavor, mas, no instante
em que o nome do amigo era pronunciado, fêz um esforço supremo e inquiriu:
— Que ousas insinuar?
Flávio Súbrio, entretanto, era demasiado frio para empolgar-se de
compaixão. Embora desapontado com o sofrimento moral que impunha ao interlocutor,
sorriu mordaz e aclarou:
— Ápio Corvino morrerá em teu lugar.
— Não! isso não! — clamou Varro, sem forças para enxugar o suor da
fronte.
Fêz menção de seguir até à popa, apressadamente, mas Súbrio deteve-o,
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murmurando:
— É tarde. Alguém já manejou um punhal.
Varro, qual se fôra ferido de morte, sentiu-se baquear.
Reuniu, contudo, todas as energias que lhe restavam e ensaiou o impulso
de arrojar-se para a câmara em que se instalara; todavia, o assessor conteveo,
de um salto, advertindo:
— Cuidado! Hélcio pode observar-te. É possível que o ancião esteja morto,
mas, se pretendes ouvir-lhe qualquer adeus, segue, cautelosamente...
Entreterei o comandante e os amigos, por mais algum tempo, e procurar-te-ei
no aposento, antes de conduzir Lúcio até lá.
Nesse ponto da conversação, abandonou o companheiro à própria dor e
afastou-se.
O moço, contendo o pranto que se lhe represava no peito, arrastou-se, a
enlouquecer de angústia, até ao alojamento, onde Corvino, amordaçado,
mostrava larga rosa de sangue na cobertura de linho alvo.
Os olhos do ancião pareciam mais lúcidos. Cravou-os no amigo com a
ternura de um pai, a despedir-se de um filho querido, antes da longa viagem da
morte.
— Quem foi o miserável que se atreveu? —perguntou Quinto Varro,
libertando-lhe os movimentos da boca amordaçada.
Sustentando o tórax, com a destra rugosa, o velhinho esforçou-se e falou:
— Filho meu, porque encolerizar o coração, quando precisamos de paz?
Acreditas, acaso, que alguém nos possa ferir sem a permissão de Deus?
Acalma-te. Temos poucos instantes de entendimento.
— Mas, o senhor é tudo o que tenho agora! meu benfeitor, meu amigo,
meu pai!... — clamou o rapaz, soluçando, de joelhos, como se quisesse beber
as palavras ainda firmes do ancião.
— Eu sei, Varro, como te sentes — explicou Ápio, em voz sumida —, eu
também reconheci, de pronto, em teu devotamento, o filho espiritual que o
mundo me negou... Não chores. Quem te disse que a morte possa representar
o fim? Muitos companheiros nossos já vi sob a coroa da flagelação gloriosa.
Todos partiram para o reino celeste, exaltando o Mestre da Cruz e, enquanto
os anos me estragavam o corpo, muita vez indaguei por que razão vinha sendo
poupado... Temia não merecer do Céu a graça de morrer em serviço, todavia,
agora estou em paz. Tenho a felicidade do testemunho e, para cúmulo de
minha alegria, tenho alguém que me ouve no limiar da vida nova...
O velho fêz longo intervalo para recobrar as energias e Quinto Varro,
acariciando-o, em lágrimas abundantes, acrescentou:
— Como é difícil resignar-me à injustiça! o senhor está morrendo em meu
lugar...
— Como podes crer assim, meu filho? A Lei Divina é feita de equilíbrios
eternos. Não te revoltes, nem blasfemes. Deus dirige. Cabe-nos obedecer...
Após ligeira pausa, prosseguiu:
— Eu era pouco mais velho que tu, quando Átalo se foi... Despedaçou-seme
o coração, quando o vi marchando para o sacrifício. Antes, porém, de
entrar no anfiteatro, conversámos no cárcere... Prometeu acompanhar-me os
passos, depois da morte, e voltou a orientar-me. Nas horas mais aflitivas do
ministério e nos dias cinzentos de tristeza e indecisão, vejo-o e escuto-lhe a
palavra, junto de mim. Quem poderia admitir no túmulo o marco da separação
para sempre? não podemos olvidar que o próprio Mestre regressou do sepulcro
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para fortalecer os aprendizes.
Varro abraçou-o, com mais ternura, e aduziu:
— O senhor tem fé e virtudes que estou longe de possuir. Doravante,
sentir-me-ei sozinho, sozinho...
— Onde situas a confiança em Deus? És moço. Os dias amadurecem a
experiência.
Atende às instruções do Mestre e nova luz brilhará em tua alma... Em Lião,
muitos de nossos irmãos relacionam-se com os mortos, que são simplesmente
os vivos da eternidade.
Em nossos ofícios, comunicam-se conosco e amparam-nos cada dia... Em
muitas ocasiões, nos martírios, tenho visto companheiros que nos precederam
recebendo os que são perseguidos até o sangue... Acredito, pois, que
poderemos continuar sempre juntos... A Igreja, para mim, não é senão o
Espírito do Cristo em comunhão com os homens...
Nesse instante, Corvino arquejou penosamente Fitou no amigo os olhos
calmos, com mais insistência, e prosseguiu:
— Sei que te vês relegado à solidão, sem parentes, sem lar... Mas não te
esqueças da imensa família humana. Por muitos séculos, ainda, os servidores
de Jesus serão almas desajustadas na Terra... Nossos filhos e irmãos
encontram-se dispersos em toda a parte... Enquanto houver um gemido de dor
no mundo ou uma nesga de sombra no espírito do povo, nossa tarefa não
terminará... Por agora, somos desprezados e escarnecidos, no caminho do
Pastor Celeste que nos legou o sacrifício por abençoada libertação e, amanhã,
talvez, legiões de homens tombarão pelos princípios do Mestre, que, sendo tão
simples em seus fundamentos, provocam o furor e a reação das trevas que
ainda governam as nações... Morreremos e renasceremos na carne muitas
vezes... até que possamos contemplar a vitória da fraternidade e da verdadeira
paz... Contudo, é indispensável amar muito para, antes, vencermos a nós
mesmos. Nunca odeies, filho meu! Bendize constantemente as mãos que te
ferirem. Desculpa os erros dos outros, com sinceridade e pleno olvido de todo
mal. Ama e ajuda sempre, ainda mesmo os que te pareçam duros e ingratos...
Nossas afeições não desaparecem. Quem exercita a compreensão do
Evangelho acende lume no próprio coração para clarear a senda dos entes
queridos, na Terra ou além da morte... Tua mulher e teu filhinho não se
perderam... Tornarás a encontrá-los em novo nível de amor... Até lá, porém,
luta na conquista de ti próprio!... O mundo reclama servidores leais ao bem...
Não procures riquezas que o desengano enferruja... Não te prendas a ilusões e
nem exijas da Terra mais do que a Terra te possa dar... Só uma felicidade
jamais termina — a felicidade do amor que honra a Deus no serviço aos
semelhantes...
Em seguida, descansou por alguns momentos.
Com muita dificuldade, retirou de sob a túnica velha bolsa ensebada, que
continha um punhado de moedas, e deu-a ao rapaz, solicitando:
— Varro, na igreja de Lião, existe um antigo pregador de nome Horácio
Niger. É meu companheiro de trabalho, a quem te peço apresentar minhas
notícias e saudações... Quando possível, entrega-lhe as cartas de que sou
mensageiro e, em meu nome, confia-lhe estes recursos... Dize-lhe que é tudo
quanto pude recolher em Roma, em favor das nossas crianças, asiladas na
igreja...
O moço recebeu o depósito com respeitosa ternura.
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Logo após, com muito esforço, Corvino pediu-lhe abrisse alguma página
cristã para a leitura em voz alta.
Queria guardar um pensamento das Sagradas Anotações, antes de
morrer.
Quinto Varro atendeu com presteza.
Retirou, ao acaso, uma folha gasta do pergaminho, num rolo de instruções,
e, à claridade bruxuleante da tocha que ardia junto ao leito, repetiu as belas
palavras de Simão Pedro ao aleijado da Porta Formosa: — Ouro e prata não
tenho, mas o que tenho, isso te dou». (7)
(7) Atos dos Apóstolos, capítulo 3, versículo 6. — (Nota do Autor
espiritual.)
Corvino fitou o companheiro, desenhando largo sorriso nos lábios
descorados, como a dizer que oferecia naquela hora a Deus e aos homens o
seu próprio coração.
Compridos instantes desdobraram-se pesados e aflitivos.
O rapaz julgou que o venerando amigo houvesse alcançado o derradeiro
minuto, todavia, o ancião, qual se despertasse de curta mas concentrada
prece, falou ainda:
— Varro, se possível... desejaria ver o céu, antes de morrer...
O interpelado atendeu, de pronto.
Descerrou pequena abertura do interior da câmara, que funcionava à guisa
de janela.
O vento entrou, de imediato, em lufadas fortes e frescas, apagando a luz
mortiça, mas o luar, em prateado jorro, invadiu o recinto.
Com inexcedível carinho, o rapaz tomou o velho ao colo, dando a idéia de
satisfazer a uma criança doente, e conduziu-o à magnífica visão da noite.
Ao doce clarão da Lua, o semblante de Ápio Corvino assemelhava-se a
vivo retrato de algum antigo profeta que surgisse, ali, de improviso, nimbado de
esplendor. Seus olhos serenos e brilhantes devassaram o firmamento, onde
multidões de estrelas faiscavam, sublimes..
Depois de um minuto de silenciosa expectativa, falou em voz apagada:
— Como é linda a nossa verdadeira pátria!...
E, voltando-se com brandura para o moço em lágrimas, concluiu:
— Eis a cidade de nosso Deus!...
Nesse instante, contudo, o corpo do patriarca foi sacudido por uma onda
de vida nova. Seu olhar, que empalidecera, devagarinho, voltou a possuir
estranho brilho, como que reanimado por milagrosa força.
Denunciando uma alegria desvairada, bradou:
— Abriu-se o grande caminho!... É Átalo que vem!... Ó meu Deus, como é
sublime o carro de ouro!... Centenas de estrelas brilham !... Oh !... é Átalo e
Maturo, Santo e Alexandre... Alcibíades e Pôntico... Pontimiana e Blandina...
(8)
O ancião ensaiava o gesto de quem se dispunha a cair de joelhos,
totalmente esquecido da presença de Varro e da precariedade da própria
condição física.
— Oh!... Senhor! quanta bondade!... não mereço!... sou indigno!... —
continuava dizendo, em voz arrastada.
O pranto escorria-lhe agora dos olhos inexplicavelmente revigorados,
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contudo, Varro, cuidadosamente, reconduziu-o ao leito manchado de sangue.
Novamente deitado, o velhinho calou-se. Todavia, aos raios do luar que
iluminava a câmara, o moço patrício viu-lhe o olhar, nas vascas da morte,
coroado de indefiníveis fulgurações, parecendo fixar paisagens festivas, em
santo deslumbramento.
Com as mãos nas dele, notou que o agonizante lhe apertava a destra, a
despedir-se.
A corrente sanguínea parecia contida pela força mental do moribundo,
interessado em satisfazer aos últimos deveres, mas, quando a tranquilidade se
lhe estampou na fisionomia engelhada e nobre, o sangue jorrou
abundantemente da chaga aberta, encharcando o sudário de linho.
O rapaz notou que o fatigado coração do apóstolo parou devagar, à
maneira de máquina agindo sem violência. A respiração desapareceu, como a
de um pássaro que adormece na morte. O corpo inteiriçou-se.
Varro compreendeu que era o fim.
(8) O agonizante recebia a visita espiritual de alguns dos mártires cristãos
de Lião, flagelados no ano de 177. — (Nota do Autor espiritual.)
Sentindo-se, então, vergastado por uma dor sem limites, abraçou-se ao
cadáver, suplicando:
— Corvino, meu amigo, meu pai!... Não me abandones! De onde estiveres,
protege-me os passos. Não me deixes cair em tentação. Fortalece-me o ânimo
fraco! Dá-me fé, paciência, coragem... Os soluços do jovem repetiam-se
abafados, quando a porta foi escancarada, estrepitosamente, e Súbrio entrou
com uma tocha, iluminando o quadro doloroso. Vendo o rapaz agarrado ao
morto, sacudiu-O, violento, exclamando:
— Louco! que fazes? o tempo é precioso. Em breves minutos, Hélcio virá.
É indispensável que não te encontre. Embriaguei-o para salvar-te. Não poderá
ver o semblante do morto.
Afastou Quinto Varro, brutalmente, e envolveu o corpo agora inerte no
grande lençol, que foi amarrado, acima da cabeça hirta. Em seguida, dirigiu-se,
de novo, ao rapaz, em voz baixa e enérgica
— A esquerda, encontrarás uma escada, esperando-te e, sob a escada, há
um bote que eu mesmo preparei. Foge nele. O vento levar-te-â para a costa.
Mas, ouve! busca outras terras e muda de nome. A partir de hoje, para Roma e
para a tua família, estás sepultado nas águas.
O moço quis reagir e enfrentar dignamente a situaçãO, contudo, lembrou
que, se Corvino lhe havia tomado o lugar na morte, cabia-lhe substitui-lo na
vida, e, sentindo numa das mãos o peso da bolsa que o herói lhe havia
confiado, silenciou, humilde, em lágrimas.
— Conduze contigo a bagagem do velho, mas deixa os teus documentos
— avisou Flávio Súbrio, decidido —; Opílio Vetúrio deve certificar-se de que
desapareceste para sempre.
Todavia, quando o jovem reunira nas mãos a herança do apóStolO, o
bastãO de HélciO Lúcio tocou rudemente a porta.
Súbrio arrastou Varro para trás de um armário de bordo e atendeu.
O comandante ébrio entrou, desferiu uma gargalhada seca, ao observar o
fardo ensanguentado, e falou:
— Muito bem, Súbrio! A tua eficiência é de pasmar. Tudo pronto?
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— Perfeitamente — esclareceu o assessor, em atitude servil.
Cambaleando, Hélcio aplicou algumas bastonadas no cadáver e observou:
— Grande maroto, o nosso Opílio. Este pobretão de Varro poderia ter sido
liquidado em qualquer viela de Roma. Porque semelhante homenagem, a de
matá-lo no mar? Enfim, compreendo. Um patrício decente nunca deve ferir a
sensibilidade de uma bela mulher.
Reclamou do auxiliar a documentação do morto e, em voz pitoresca,
determinou:
— Dá comida aos peixes, ainda hoje, e não nos esqueçamos de esclarecer
a nobre Cíntia Júlia de que o marido, em missão de vigilância contra a praga
nazarena, foi assassinado por escravos cristãos na galera...
Com uma risada sarcástica, acentuou:
— Vetúrio incumbir-se-á de dizer o resto
O comandante despediu-se e, instado por Súbrio, Varro lançou um
derradeiro olhar nos despojos do amigo. Carregando consigo as lembranças
dele, afastou-se em passos vacilantes, desceu a escada de serviço e instalouse
no bote minúsculo.
Sozinho, na noite fria e clara, demorou-se longamente, no barco,
pensando, pensando...
O vento, a silvar, parecia lamber-lhe o pranto, induzindo-o a marchar para
a frente, mas o moço, pungido por amarga incerteza, no íntimo desejava
arrojar-se ao mar e igualmente morrer.
Corvino, porém, marcara-lhe o coração para o resto da vida, O sacrifício
dele impunha-lhe valorosa coragem. Era necessário lutar. Para Cíntia e para o
filhinho querido não mais existia, entretanto, havia um claro na igreja de Lião,
que lhe competia preencher.
Custasse o que custasse, alcançaria as Gálias com a resolução de
devotar-se à grande causa.
Confiando-se a Deus, o moço desamarrou o bote e, com uma e outra
remada, rendeu-se à ventania.
Indiferente aos perigos da viagem, não experimentou qualquer temor da
solidão sobre o abismo.
Arrastado fortemente sobre as águas, deu em extensa praia ao
amanhecer.
Trocou de vestimenta, envergando a túnica surrada de Corvino e, resoluto,
atirou o nobre traje patrício ao mar, deliberando volver ao mundo na feição de
outro homem.
Acolhido numa aldeia litorânea, onde conseguiu alimento, peregrinou até
alcançar Tarracina, florescente cidade balneária do Lácio.
Não teve dificuldade para identificar o domicilio de alguns companheiros de
fé. Apesar do terror que espalhava na vida pública, o governo de Bassiano-
Caracala deixava os cristãos em relativo repouso, embora a severa vigilância
com que lhes seguia os movimentos.
Declarando-se caminheiro do Evangelho em trânsito para as Gálias, Varro,
fatigado e enfermo, encontrou socorro na residência de Dácio Acúrsio, piedoso
varão que mantinha um albergue destinado a indigentes.
Amparado por amigos anônimos, delirou três dias e três noites, em febre
alta; todavia, a mocidade robusta venceu a moléstia que o absorvera, de
assalto.
Porque nada pudesse informar, a princípio, com referência a si próprio, e
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em face das mensagens que conduzia, da parte dos cristãos de Roma aos
confrades lioneses, nas quais o portador era nomeado como sendo o irmão
Corvino», por essa designação passou a ser tratado entre as suas novas
relações.
Animado de inspiração superior, ensinou a Boa Nova, pregando em
lágrimas, e a comunidade de Tarracina, tangida nas fibras mais íntimas, não
obstante desejasse retê-lo, auxiliou-o em sua viagem para as Gálias, onde o
rapaz aportou, depois de inúmeras dificuldades e enormes privações.
Findo certo período de permanência em Massília (9), chegou finalmente à
cidade a que se destinava.
Lião, pela sua admirável posição geográfica, desde a ocupação do
procônsul Munácio Planco, tornara-se expressivo centro político administrativo
do mundo gaulês. Para ela convergiam diversas estradas importantes,
convertendo-se, por isso mesmo, em residência quase que obrigatória de numerosas
personalidades representativas da nobreza romana.
Vipsânio Agripa, o genro de Otávio, fortalecera-lhe a situação privilegiada,
ampliando-lhe as vias de comunicação. Áulicos da corte de Cláudio haviam
construído nela magníficos palácios. As ciências e as artes, o comércio e a
indústria aí floresciam com imensa vitalidade.
Dentro de seus muros, reuniam-se, anualmente, junto do famoso altar de
Roma e Augusto, as grandes assembléias do «Concilium Calliarum», no qual
cada cidade das três Gálias possuía o seu representante.
As festas do primeiro dia de agosto, em memória do grande imperador
Caio Júlio César Otaviano, eram aí celebradas com significativas solenidades.
Numerosas embaixadas e milhares de estrangeiros aí se congregavam em
cerimônias brilhantes, em que o juramento de fidelidade aos deuses e às
autoridades se renovava, com jubilosas manifestações.
(9) Hoje, Marselha. — (Nota do Autor espiritual.)
A cidade, que fôra em outro tempo a metrópole dos segusiavos, desde a
ocupação imperial passara a viver sob o mais apurado gosto latino. Situada na
confluência de dois rios, o Ródano e o Saona, oferecia aos habitantes as
melhores condições de conforto. Dominada pela influência patrícia, mostrava
ruas e parques bem cuidados, templos e monumentos de grande beleza,
teatros e balneários, além de vilas soberbas, a se destacarem do casario
vulgar, como pequenos castelos encantadores, emoldurados em jardins e
vinhedos, onde magistrados e guerreiros, artistas e libertos ricos da capital do
mundo se insulavam para gozar a vida.
Ao tempo de Bassiano-Caracala, a quem servira de berço, Lião alcançara
imenso esplendor.
O novo césar, por várias vezes, dispensara-lhe graças especiais.
A corte aí se reunia, frequentemente, em jogos e comemorações.
Contudo, apesar da proteção que o imperador concedia ao torrão pátrio, a
cidade guardava, ainda, em 217, dolorosas e vivas reminiscências da matança
de 202, determinada por Séptimo Severo. Anos depois do triunfo sobre o
General Décio Clódio Séptimo Albino, o eleito das legiões da Bretanha, morto
em 197, instigado por seus conselheiros, o vencedor de Pescênio Niger
promulgou um edito de perseguição. Autoridades inescrupulosas, depois de
senhorearem o patrimônio de todos os cidadãos contrários à política
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dominante, realizaram tremenda carnificina de cristãos, dentro da cidade de
Lião e nas localidades vizinhas.
Milhares de seguidores do Cristo haviam sido flagelados e conduzidos à
morte.
Por vários dias perdurou a perseguição, com assassínios em massa.
Postes de martírio, espetáculos de feras, cruzes, machados, fogueiras,
lapidações, chicotes e punhais, sem nos reportarmos ás cenas de selvageria
para com mulheres e crianças indefesas, foram postos em prática por tropas
inconscientes.
Durante a matança, Ireneu, o grande bispo e orientador da coletividade
evangélica da cidade, foi torturado, com todos os requintes da violência
perversa, até ao último suspiro. Nascido na Ásia Menor, fôra aprendiz de
Policarpo, o abnegado e mui venerado sacerdote de Esmirna, que, por sua vez,
havia recebido a fé por intermédio do apóstolo João, o evangelista.
A igreja de Lião, em razão disso, sentia-se depositária das mais vivas
tradições do Evangelho. Possuía relíquias do filho de Zebedeu e de outros
vultos do Cristianismo nascente, que lhe fortaleciam o ânimo na fé. Em seu
círculo de profunda iluminação espiritual achava-se quase intacto o espírito
piedoso da comunidade de Jerusalém.
Enquanto Roma fôra iniciada por batismos de sangue, ao tempo de Nero, a
comunidade lionesa começara o serviço de evangelização em relativa calma.
Emissários da Palestina, da Frígia, da Síria, da Acaia e do Egito visitavamna,
incessantemente.
As epístolas enviadas da Ásia clareavam-lhe a marcha.
Por esse motivo, era o centro de porfiados estudos teológicos, no campo
das interpretações.
Ireneu dedicara-se a minuciosas observações da Escritura. Manejando o
grego e o latim com grande mestria, escreveu expressivos trabalhos, refutando
os adversários da Boa Nova, preservando as tradições apostólicas e
orientando os diversos serviços da edificação cristã.
Mas a coletividade não se caracterizava tão sómente pelas realizações
intelectuais.
Fazendo do santuário consagrado a São João o centro dos seus trabalhos
de ordem geral, a igreja primava pelas obras de assistência.
Dificilmente, à distância de séculos, poderá alguém perceber, com
exatidão, a sublimidade do Cristianismo primitivo.
Experimentados pela dor, amavam-se os irmãos na fé, segundo os padrões
do Senhor.
Em toda a parte, a organização evangélica orava para servir e dar, em vez
de orar para ser servida e receber.
Os cristãos eram conhecidos pela capacidade de sacrifício pessoal, a bem
de todos, pela boa vontade, pela humildade sincera, pela cooperação fraternal
e pela diligência que empregavam no aperfeiçoamento de si mesmos.
Amavam-se reciprocamente, estendendo os raios de sua abnegação
afetiva por todos os núcleos da luta humana, jamais traindo a vocação de
ajudar sem recompensa, ainda mesmo diante dos mais renitentes algozes.
Ao invés de fomentarem discórdia e revolta, entre os companheiros
jungidos à canga da escravidão, honravam no trabalho digno a melhor maneira
de amparar-lhes a libertação.
Sabiam apagar os pruridos do egoísmo para abrigarem, sob o próprio teto,
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os remanescentes das perseguições.
Inflamados de fé na imortalidade da alma, não receavam a morte. Os
companheiros martirizados partiam como soldados de Jesus, cujas famílias, na
retaguarda, lhes cabia proteger e educar.
Assim é que a comunidade de Lião guardava sob a sua custódia de amor
centenas de velhos, enfermos, mutilados, mulheres, jovens e crianças.
A igreja de São João era, pois, acima de tudo, uma escola de fé e
solidariedade, irradiando-se em variados serviços assistenciais.
O culto reunia os adeptos para a prece em comum e para a extensão das
práticas apostólicas, mas os lares de fraternidade multiplicavam-se. como
impositivo da obra espiritual em construção.
Muitas organizações domésticas tomavam a si a guarda de órfãos e o
cuidado para com os doentes; todavia, ainda assim, o número de necessitados
era, invariàvelmente, muito grande.
A cidade fôra sempre um ponto de convergência para os estrangeiros.
Perseguidos de vários lugares batiam às portas da igreja, implorando socorro e
asilo.
A autoridade da fé, expressa nos irmãos mais velhos e mais experientes,
designava diáconos para diversos setores de ação.
Os serviços de amparo e educação à infância, de conforto aos velhinhos
abandonados, de sustentação dos enfermos, de cura dos loucos, distribuíamse
em departamentos especiais, expandindo-se, assim, em moldes mais
completos, a primitiva organização apostólica de Jerusalém, na qual as obras
de amor do Cristo, junto aos paralíticos e cegos, leprosos e obsessos,
encontraram a melhor continuidade.
Todos os irmãos partilhavam o esforço da instituição entre o trabalho
profissional que lhes determinava o dever ao lado da família e as atividades
evangélicas que lhes assinalavam a obrigação de discípulos da Boa Nova,
junto da Humanidade.
Num crepúsculo de harmoniosa beleza, Quinto Varro, agora transformado
em «irmão Corvino», chegou à sala acanhada e pobre destinada às pregações
da igreja de São João, onde, segundo informações obtidas, encontraria Horácio
Niger para o anelado entendimento.
Num ângulo do recinto, um velho de longas barbas encanecidas, de rosto
avelado e nobre, ouvia jovem senhora de amargurado semblante.
Levantou-se, atencioso, para receber o recem-chegado, fê-lo sentar-se ao
lado dele, no banco de pedra, e continuou a conversar com a dama, em tom
paternal.
Tratava-se de humilde viúva que procedia de Valença, implorando socorro.
Ficara sem o marido na carnificina de 202. Desde então, morava com o genitor
e um tio na localidade mencionada, mas, a contragosto, envolvera-se em
grande infortúnio. Por negar-se aos caprichos de um soldado influente, vira os
dois familiares, com os quais residia, assassinados numa noite de angustiosa
provação.
Disposta a resistir, mas totalmente desamparada, fugira dali, em busca de
abrigo.
Chorando, acentuava, triste:
— Pai Horácio, não me abandones... Não temo o sacrifício por nosso
Divino Mestre, contudo, não concordo em render-me ao vício dos legionários.
Conserva-me, por amor de Jesus, nos serviços da igreja...
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O interpelado observou, atento:
— Sim, não me oponho. Entretanto, é preciso esclarecer que não
possuímos serviço remunerado...
— Não procuro compensações — disse a moça —, tenho necessidade de
arrimo.
— Então — explicou o interlocutor, satisfeito —, cooperarás no galpão dos
velhos enfermos. Realmente, perdeste o pai e o tio, no entanto, encontrarás
muitos outros parentes, junto dos quais o Cristo te pede carinho e proteção.
A humilde senhora sorriu tranquila e retirou-se.
Chegou a vez de o peregrino romano entrar em contacto com o ancião.
Varro, comedido e confiante, inteirou-o de todas as ocorrências havidas
com Ápio Corvino e com ele mesmo, desde o início do seu primeiro encontro
com o inolvidável amigo apunhalado no mar.
Horácio ouviu-lhe a narrativa, entre sereno e cortês, sem qualquer alarme,
diante do noticiário constrangedor.
Parecia calejado por dores maiores. Mesmo assim, quando o rapaz
terminou a confissão, falou sobre o amigo morto, comovidamente:
— Grande Corvino!... Seja ele feliz entre os servidores glorificados. Foi fiel
até ao fim.
Enxugando os olhos úmidos, acrescentou:
— Estará conosco em espírito. A morte não nos separa uns dos outros, na
obra do Senhor.
Em seguida, reportou-se ao companheiro desaparecido, com imensa
ternura. Ápio Corvino tomara a si o encargo de prover às necessidades das
crianças mantidas pela igreja.
Para esse fim, trabalhava em agricultura e jardinagem, além de viajar
frequentemente, angariando recursos.
Depois de 177, estivera largo tempo no Egito, onde adquirira valiosas
experiências.
Os meninos adoravam-no.
A senectude não lhe subtraira o entusiasmo pelo trabalho. Cultivava o solo
com alegre bando de rapazes, aos quais ministrava preciosos conhecimentos.
Assinalou, preocupado, a falta que a presença dele lhes faria, mas, ante o
oferecimento de Varro para substitui-lo quanto lhe fôsse possível, Horácio
alegrou-se intensamente, e acentuou:
— Bem lembrado. Aqui, na maioria dos casos, os colaboradores da igreja
trabalham de acordo com os desajustes espirituais de que são portadores. As
perseguições constantemente alimentadas provocam, entre nós, diversos tipos
de luta e sofrimento. Sei que trazes o coração paterno mortificado de
saudades. Trabalharás pelas crianças. Temos mais de trinta órfãos
pequeninos. Conversarei com as autoridades.
E, em voz mais baixa, rogou-lhe que a personalidade de Quinto Varro
fôsse para sempre esquecida. Apresentá-lo-ia a todos como sendo o irmão
Corvino, sucessor do venerável confrade. chamado ao Reino de Deus, e
afiançava-lhe que tantas nuvens de dor pesavam sobre a alma cristã, formando
dramas tristes a se desenrolarem na sombra, que ninguém se sentia com
bastante curiosidade para qualquer indagação.
O acolhimento carinhoso reaquecia o coração do viajante fatigado, quando
dois petizes, de três e cinco anos, respectivamente, penetraram o recinto.
O maior deles dirigiu-se ao ancião com os olhos interrogadores e
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perguntou:
— Pai Horácio, é verdade que o vovô Corvino já veio?
O patriarca afagou-lhe os cabelos encaracolados e informou:
— Não, meu filho. Nosso velho amigo viajou para o Céu, mas
enviou-nos um irmão que lhe tomará o lugar.
Ergueu-se, abraçou as crianças e, sentando-as nos joelhos do recémchegado,
falou, bondoso:
— Vamos, meus filhos! abracem o companheiro abençoado que chega de
longe.
Os meninos, com a doçura ingênua da infância, enlaçaram o mensageiro.
O moço patrício tomou-os de encontro ao coração e acariciou-os,
demoradamente; contudo, somente o velho Niger conseguiu ver o pranto que
lhe corria dos olhos.
Quinto Varro havia passado.
Os anos rolariam para a frente e o ministério do novo Corvino ia começar.
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4
Aventura de mulher
O ano 233, desdobrava-se, célere, sobre o drama das nossas
personagens.
Em Roma, a família Vetúnio desfrutava todos os favores da riqueza,
cercada de privilégios e de escravos.
Opílio, na madureza bem nutrida, parecia feliz em contemplar a si mesmo,
no destaque e no bem-estar da mulher e dos filhos, mas Cíntia, que o
desposara, desde a imaginária morte de Varro, no mar, exibia consideráveis
diferenças. Mais reservada, distanciara-se das paisagens festivas. Não se
ausentava de casa, voluntàriamente, senão para desincumbir-se de votos
religiosos, no louvor dos numes tutelares, aos quais oferecia a sua devoção.
Afeiçoara-se a Helena e Caiba, os rebentos de Heliodora, com a mesma
ternura que dedicava a Taciano, e recebia dos três análogos testemunhos de
respeito e de amor.
Semelhante comportamento da companheira querida cristalizara em
Vetúrio a veneração e o carinho. Espreitava-lhe os menores desejos para
executá-los como servo fiel.
Não se afastava da cidade, sem a companhia dela; não se confiava a
qualquer das suas realizações de homem prático, sem associar-lhe a
aprovação aos empreendimentos, e, não obstante romano de sua época, com
todos os delitos ocultos e vulgares numa sociedade em decadência, constituía
para Cíntia um amigo leal, procurando entendê-la e auxiliá-la nos mais íntimos
pensamentos.
Entre os jovens, todavia, a situação era diversa.
Helena, com a formosura grega dos dezessete anos, primava pelos
prazeres da vida social, entregando-se, inveteradamente, aos jogos e
distrações, sem qualquer apego a virtudes domésticas, e, enquanto Taciano se
dedicava ao estudo, fascinado pelas tradições patrícias, quase que
constantemente mergulhado na Filosofia e na História, Galba, que lhe
detestava o ambiente espiritual, não fazia segredo da sua intimidade com
tribunos mal-educados e proxenetas inconscientes. Não suportava a
superioridade intelectual do irmão. Turbulento, rixoso, alterava-se por nugas,
perdendo noites de sono, em companhia de criaturas menos dignas, apesar do
esforço paternal para trazê-lo à respeitabilidade.
Taciano, ao revés, aproveitava substanciosamente as oportunidades que a
vida lhe ofertava.
Embora menino e moço, trazia consigo a experiência de algumas viagens
das mais valiosas. Conhecia vastas regiões da Itália e da África, além de não
poucos lugares da Acaia. Falava o grego, com a mesma facilidade com que se
expressava no idioma pátrio, e comungava com os livros, na fome de luz que
assinala os homens inclinados à sabedoria.
Prendia-se, de modo particular, aos assuntos da fé religiosa, com ardente e
profundo fervor.
Não admitia qualquer restrição aos deuses olímpicos. Para ele, as
divindades familiares eram as únicas inteligências capazes de garantir a felicidade
humana. Extremamente afeiçoado ao culto de Cíbele, a Magna Mater,
visitava constantemente o templo da deusa no Palatino, aí descansando e
meditando, horas e horas, buscando inspiração. Acreditava que Júpiter Máximo
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era o orientador invisível de todas as vitórias imperiais, e, conquanto ainda
jovem, guardava idéias próprias nesse sentido, afirmando sempre que os
romanos deviam oferecer-lhe sacrifícios em caráter obrigatório, ou morrer.
Por isso mesmo, não obstante os dotes de espírito que lhe exornavam a
personalidade, não conseguia afinar-se com os princípios do Cristianismo.
O Evangelho, examinado por ele, de escantilhão, em conversa com
Vetúrio ou com rapazes de sua idade, parecia-lhe um amontoado de ensinamentos
incompreensíveis, destinados a sombrear o mundo, caso vencessem
na esfera da filosofia e da religião.
Perguntava a si mesmo por que motivo tantos homens e tantas mulheres
caminhavam para o martírio, como se a vida não fôsse uma dádiva dos
deuses, digna de espalhar a ventura entre os mortais, e confrontava Apolo, o
inspirador da fecundidade e da beleza, com Jesus Cristo, o crucificado,
admitindo no movimento cristão simples loucura coletiva que o poder
governamental devia coibir.
Poderia um patrício pensava ele — amar um escravo como se fôsse a si
mesmo? Seria justo perdoar aos inimigos, com pleno olvido da ofensa? Seria
aconselhável dar sem retribuição? Como conciliar a fraternidade geral com a
defesa da elite? Um magistrado romano poderia ombrear com um africano
analfabeto e categorizá-lo à conta de irmão? Por que processos rogar o favor
celeste para os adversários? Como aceitar um programa de bondade para com
todos, quando os maus se multiplicavam, em toda a parte, exigindo as
repressões da justiça? A própria natureza não constituía, por si, um campo de
batalha perene, em que as ovelhas eram ovelhas e os lobos não passavam de
lobos? De que modo aguardar vitórias sociais e políticas, sob a orientação de
um salvador que expirara na cruz? Os destinos da pátria estavam presididos
por gÊnios tutelares, que lhe conferiam a púrpura do poder. Porque desprezálos
em troca dos loucos que morriam, miseràvelmente, nas prisões e nos
circos?
Em muitas ocasiões, enquanto Cíntia admirava a conversação brilhante do
filho, Vetúlio ponderava a diferença que separava os dois rapazes, criados sob
os mesmos princípios e tão distanciados moralmente um do outro, lastimando a
condição de inferioridade em que se colocava Galba, o filho de sua esperança.
Num dia quente, ao crepúscUlO, vamos encontrar nOSSOS conhecidOs
num amplo terraço, em cordial aproximação.
Cíntia, silencioSa, tecia delicado trabalho de lã, não longe de Helena, que
se fazia acompanhada de Anacleta, a governanta que Opílio lhe escolhera,
entre antigos laços de parentela da primeira esposa.
Pouco mais velha que a filha de HeliodOra, Anacleta nascera em Cipro
(Chipre) e, desde cedo, fôra cambiada para Roma, aos cuidados de Vetúrio, a
pedido da genitora, antes de falecer. Órfã, a menina crescera sob a proteçãO
de Cíntia, fazendo companhia à enteada, que lhe devotava profunda afeição.
Transigente e bondosa, sabia acobertar todas as faltas de Helena,
constituindo para ela não somente uma servidora leal, mas também um refúgio
afetivo, em todas as circunstâncias.
Enquanto as duas moças conversavam, algo apreensivaS, perto de Cíntia,
que parecia exclusivamente interessada no trabalho do fio, em outro ângulo,
Vetúrio e os rapazes entendiam-se animadamente.
A palestra versava sobre os problemas sociais, com visível entusiasmo de
Taciano e indisfarçável retraimento de Galba.
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— Concordo em que a luta iniciada, há mais de cem anos — comentava
Opílio —, terminara naturalmente pela vitória do patriciado. Tenho grande
confiança em Alexandre, reconhecido como protótipo de prudência e justiça.
— Contudo — observou TacianO, tocado de juvenil indignação —, o
imperador tem a família infestada de mulheres nazarenas. Pelo lado materno,
está cercado de senhoras dementadas, que não se envergonham de receber
instruções religiosas de vagabundos da Ásia. A morte de Ulpiano, sem
nenhuma providência disciplinar, lhe revela o caráter enfermiço. É fraco e
indeciso. Pode ser um padrão de virtudes individuais, mas não mostra aptidão
para comandar a nossa vida política.
Sorriu, algo sarcástico, e anotou:
— Quando a cabeça é frágil, não vale o corpo forte.
— É provável que a razão esteja contigo —tornou Opílio bem humorado —
, entretanto, hás de convir que o governo não dorme. Não temos tido
espetáculos punitivos, mas a perseguição metódica vem sendo levada a efeito,
em moldes legais. A morte de Calisto, (10) por exemplo...
— Quem era Calisto senão um escravo fora da lei?
— Realmente — concordou Vetúrio —, não podemos comparar um
servidor de Carpóforo aos magistrados do Império.
— A perda de Ulpiano é irreparável...
— Mas, que temos nós com a vida alheia? - atalhou Galba, enfadado. —
Nunca hesitarei entre um copo de vinho e uma discussão filosófica. Que nos
adianta saber se o Olimpo está cheio de divindades ou se um louco morreu na
cruz há duzentos anos?
— Não te expresses assim, meu filho! — disse Vetúrio, preocupado — não
podemos olvidar os destinos do povo e da pátria em que nascemos.
O moço gargalhou, irreverente, e, tocando os ombros de Taciano,
perguntou:
— Que farias, mano, se a coroa do imperador te buscasse a cabeça?
(10) Referência ao Papa Calisto. — (Nota do Autor espiritual.)
O rapaz percebeu o sarcasmo da interpelação, mas respondeu, firme:
— Se me fôsse confiada qualquer tarefa administrativa, não somente
exterminaria o Cristianismo, aniquilando-lhe os prosélitos, mas também todos
os cidadãos relaxados e viciosos de que as nossas tradições se envergonham.
Galba corou, buscando o olhar paterno, como pedindo reprovação para o
filho de Cíntia, mas notando a firmeza com que Opílio, em silêncio, o
censurava, pronunciou algumas interjeições desrespeitosas e afastou-se.
A essa altura, Helena e Anacleta retiraram-se, de rosto sombrio, em
direção ao jardim.
Reparando que a jovem enxugava lágrimas, Taciano esqueceu-se dos
problemas sociais que lhe escaldavam a cabeça e indagou do pai adotivo
sobre as razões de semelhante transformação da irmã, habitualmente
despreocupada, sendo então informado de que o jovem Emiliano Secundino,
de quem a moça se aproximara com grande esperança de ligação afetiva, fôra
assassinado em Nicomédia, segundo notícias chegadas por um correio de horas
antes.
Taciano comoveu-se.
Conhecia o rapaz e admirava-lhe a inteligência. Como quem se valia da
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hora azada para entendimento difícil, Vetúrio abeirou-se do enteado, com
visível emoção, e falou-lhe, em voz baixa:
— Meu filho, os anos ensinam-nos, pouco a pouco, a necessidade de
refletir. Gostaria de ter em Galba um continuador seguro de meu trabalho,
entretanto, sabes que teu irmão, até agora, não se decidiu pela
responsabilidade. Apesar da verde juventude, é jogador e rixento contumaz.
Tenho estudado com tua mãe os problemas de nossa família e admito que
precisamos de tua cooperação nas Gálias, onde as nossas propriedades são
importantes e numerosas. Possuíamos, em Viena, um amigo prestimoso na
pessoa de Lamprídio Treboniano, mas Lamprídio morreu, há tempos. Alésio e
Pontimiana, nossos fiéis servidores em Lião, estão velhos e fatigados...
Perguntam, incessantemente, por ti e aguardam-te a presença, a fim de que
sejas ali o meu representante legal.
Opílio fêz ligeiro intervalo, verificando o efeito de suas palavras, e
interrogou:
— Concordarias em seguir, ao encontro da preservação de nosso
patrimônio provincial? Nossa residência lionesa, a meu ver, é mais confortável
que o nosso domicílio de Roma e a cidade desfruta a estima das famílias mais
representativas de nossa nobreza. Estou convencido de que farás valiosas
relações e encontrarás grande estímulo no trabalho. Nossas terras produzem
regularmente, mas não devemos relegá-las ao abandono.
O rapaz mostrou-se satisfeito e observou:
— Várias vezes minha mãe me tem falado sobre essa transferência. Estou
pronto a obedecer. O senhor é meu pai.
Vetúrio sorriu, confortado, e aduziu:
— Mas, não é tudo.
E, fixando nele os olhos com insistência, interrogou:
Já pensaste em casar, meu filho?
O moço riu-se, acanhado, e explicou:
— Positivamente, os livros ainda me não permitiram qualquer excursão
mental no assunto. É difícil sair da intimidade com Minerva para ouvir qualquer
conversação de Afrodite...
O tutor achou graça e prosseguiu:
— Para todos nós, porém, chega invariávelmente o instante de madureza
interior, que nos impele ao refúgio do lar.
Após longa pausa, dando idéia da questão delicada que a sua palavra
suscitaria, continuou:
— Ante a notícia da morte prematura de Emiliano, Cíntia está naturalmente
aflita com a mágoa de Helena, e, mãe devotada que é, depois de ouvi-la, instou
comigo para permitir-lhe um passeio até Salamina, onde Anacleta possui vários
parentes. Apolodoro, tio dela, segue para Cipro, na quinzena próxima, e tenho
a intenção de entregar-lhe as meninas para uma excursão que, a nosso ver,
lhes será extremamente proveitosa. Helena descansaria alguns meses das
agitações de Roma, refazendo-se para abraçar mais sérios deveres. Como pai
interessado na segurança do futuro, tenho pensado... pensado...
Diante do silêncio de Taciano, Opílio completou a exteriorização do
propósito que o atormentava:
— Confesso alimentar a esperança de que teu casamento com ela se
converta, mais tarde, em realidade... Não guardo a intenção de imppor-lhes
meus desejos. Sei que a ligação esponsalícia deve obedecer às afinidades de
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sentimento, antes de tudo, e reconheço que o dinheiro não traz a ventura do
amor; entretanto, nossa tranquilidade seria perfeita, se pudéssemos conservar
nossas possibilidades financeiras e territoriais tão sólidas amanhã, quanto hoje.
Não posso esperar que o nosso Galba nos compreenda as preocupações, à
frente do porvir. Perdulário e indisciplinado, tudo nos diz que será para nós um
companheiro difícil de carregar...
As considerações de Vetúrio eram ditas num timbre tão particularmente
enternecedor, que o moço sentiu incoercível emotividade a constringir-lhe o
peito. Apertou as mãos do padrasto, com ternura, e respondeu:
— Meu pai, disponha de mim, como desejar. Seguirei para Lião, quando for
de seu agrado e, quanto ao futuro, os deuses decidirão.
A palestra prosseguiu carinhosa e íntima, evidenciando a segurança
espiritual do filho de Quinto Varro. Mas, em gracioso caramanchão do pátio
florido, a posição da filha de Heliodora revelava-se diferente.
Abraçada à governanta, Helena chorava sob forte irritação, clamando em
desespero:
— Anacleta, haverá infortúnio maior que o meu? o desastre aniquila-me a
vida. Emiliano prometera falar a meu pai, tão logo voltasse da Bitinia... E
agora? que será feito de mim? Estávamos comprometidos, faz mais de três
meses... Sabes que a nossa união secreta devia ser consagrada pelo
matrimônio... Ó deuses imortais, compadecei-vos de meu amargo destino!...
A moça cipriota afagava-lhe os lindos cabelos, que dourada rede enfeitava,
e dizia, maternal:
— Acalma-te! o valor é qualidade para as grandes horas. Nem tudo está
perdido. Já nos entendemos com tua mãe, acerca das tuas necessidades de
medicação e repouso... Tio Apolodoro está de viagem para a ilha.
Conseguiremos a permissão de teu pai e seguiremos com ele. Lá, tudo será
fácil. Esperaremos com relativo descanso aquilo que os deuses nos reservam.
Tenho bons amigos em minha terra. Escravas fiéis auxiliar-nos-ão em
segredo... Não temas.
A jovem, contudo, voluntariosa e rebelde, objetava, inquieta:
— Como suportar a expectativa de tantos meses? Concordo com a viagem
como expediente de último recurso... Emiliano não podia morrer...
— Que sugeres então? — indagou Anacleta, aflita.
— Procuremos Orósio... Ele deve conhecer algum remédio que me
liberte...
— O feiticeiro?
— Sim, ele mesmo. Não posso entregar-me àmaternidade, com escândalo
público. Meu pai nunca me perdoaria...
A governanta, que lhe conhecia a luta Interior, tentou apaziguar-lhe a alma
opressa.
A menina, porém, a recriminar-se, em pranto, só muito tarde se recolheu
aos aposentos particulares, não conseguindo a bênção do sono.
Noite inteira, suspirou e chorou, atribulada.
Embora relutando, Anacleta conduziu-a, pela manhã, à residência de
Orósio, um velho de vil aparência que se escondia em miserável casebre do
Velabro.
Encarquilhado, entre pilhas de raízes e vasos diversos, transbordantes de
tisanas de odor desagradável, recebeu as visitantes, procurando sorrir.
Helena, que se ocultava com nome suposto, tentou explicar a razão que as
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trazia.
Não era a primeira vez que o procurava, esclareceu, atenciosa. Em outra
ocasião já lhe rogara socorro, com êxito, para certa amiga desamparada.
Agora, pedia para si mesma.
Achava-se doente, desesperançada, aflita. Desejava uma consulta aos
poderes sobrenaturais.
O mago recolheu, cuidadosamente, as moedas que a moça lhe oferecia,
por remuneração antecipada, e sentou-se à frente de uma trípode, sobre a qual
uma concha simbólica deixava escapar balsamizantes espirais de incenso.
Orósio repetiu algumas fórmulas em idioma desconhecido para elas,
estendeu as mãos descarnadas para a trípode e, de membros inteiriçados,
cerrou os olhos, exclamando:
— Sim!... Vejo um homem que se levanta do abismo!... Oh! foi
assassinado!... Mostra larga ferida no peito!... Pede perdão pelo mal que lhe
fêz, mas declara-se ligado, há muitos anos, ao seu destino de mulher... Chora!
quão amargosa é a dor que lhe explode no pranto!... Que lágrimas densas
prendem essa alma ao lodo da Terra!
Fala de alguém que nascerá... Estende os braços e roga socorro para uma
criança...
Depois de ligeira pausa, inquiriu o velho em transe:
— Oh! sim, tão jovem e será mãe? Por todas as bênçãos que descem das
Divindades, ele suplica de joelhos para que a senhora lhe poupe mais uma
dor... Não se desfaça do anjinho que tomará nova roupa na carne!...
Nesse ponto da estranha revelação, Orósio cobriu-se de tremenda palidez.
Suor abundante corria-lhe da face.
Parecia escutar, atentamente, o fantasma, cuja presença Helena e
Anacleta pressentiam, terrificadas.
Findos alguns momentos de torturante expectação, o mago retomou a
palavra e profetizou:
— Senhora, não recuseis a maternidade !... Ninguém foge, impunemente,
aos desígnios do Céu!... A criança ser-lhe-á proteção e consolo, reajuste e
arrimo... Mas, se for consumado o seu propósito de desvencilhar-se dela...
A voz de Orósio fêz-se rude e cavernosa, qual se fôsse mais diretamente
influenciado pela entidade que o assistia.
Ergueu-se animado de misterioso impulso e, dirigindo-se à filha de Vetúrio,
afirmou:
— ... então, a senhora morrerá banhada em sangue, vencida pelo poder
das trevas!...
Helena atirou-se aos braços de Anacleta, soluçando agitadamente.
Compreendeu que o Espírito de Emiliano interferia, ali, para acordar-lhe a
consciência na responsabilidade maternal, e, sentindo-se incapaz de
prosseguir em contacto com a inesperada manifestação, gritou para a
companheira:
— Não posso mais! Arrasta-me! Quero viajar, esquecer...
Orósio caíra novamente em torpor, deixando perceber extremo interesse
no colóquio com o invisível, mas ambas as moças, apavoradas, amparando-se
uma à outra, afastaram-se à pressa buscando a viatura que as esperava, a
distância.
Helena, em vez de encontrar remédio que a libertasse do compromisso
assumido, foi colhida por maior aflição.
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Tão intensa se lhe exteriorizou a melancolia em casa que o genitor,
inquieto, tratou de organizar-lhe o roteiro no mar.
Apolodoro, o amigo cipriota, foi chamado para entender-se com a família.
Vetúrio e Cíntia, depois de lhe entregarem respeitável quantia, confiaramlhe
as meninas para o longo passeio.
Embora garantidas por grandes economias particulares, as moças
empreenderam a viagem sem alegria. Profunda tristeza velava-lhes os semblantes.
Absortas na contemplação das águas calmas do Mediterrâneo, muitas
vezes se encontraram em conversação, quanto ao futuro...
Em muitas ocasiões, Helena divagava em silêncio, perguntando a si
mesma: — Seria lícito crer nas palavras que ouvira? Orósio era um bruxo. O
miraculoso poder de que se revestira, a fim de impressioná-la, derivava-se,
certo, da influência de seres infernais, ou quem sabe? talvez que a visão de
Emiliano não passasse de simples demência. Achava-se jovem, no começo da
vida. Sentia-se no direito de escolher o seu próprio caminho... Não seria mais
aconselhável desfazer-se da obrigação que lhe constituía escuro fardo? com
que direito a alma do amante regressava do túmulo para impor-lhe tão pesado
dever?
Sob constantes vacilações, chegou à ilha, carinhosamente assistida por
Anacleta e pelo velho tio.
Salamina, a antiga capital, dantes linda e próspera, fôra destruída por uma
tremenda revolução judaica, no Império de Trajano.
O êxodo da população era lento, mas progressivo. Diversas aldeiotas e
fazendas formavam-se nos arredores da cidade em decadência.
Num desses burgos pequeninos, Apolodoro situara o ninho doméstico.
Recebida com inequívocas provas de respeito e de estima, Helena,
invariàvelmente amparada por Anacleta, adquiriu os serviços de encanecida
escrava nubiana, Balbina, a quem prometeu libertação e retorno à pátria, logo
se visse desobrigada do tratamento de saúde a que se propunha submeter. E,
contra todos os protestos afetuosos do anfitrião, alugou uma vila confortável,
em pleno campo, alegando a necessidade de ar puro e absoluto descanso.
Os dias corriam sobre os dias.
Tomada de tédio e desesperação, a moça patrícia deliberou tentar algum
método de fuga.
Sutilmente conseguiu arrancar de Balbina algumas informações sobre as
ervas que pretendia aplicar.
A serva experiente, sem perceber suas intenções, ministrou-lhe os
conhecimentos de que dispunha. E a própria Helena, sem qualquer notificação
à governanta, preparou a beberagem, certa noite, e recolheu-se ao leito, para
sorvê-la, antes do sono.
Depositou a taça num móvel, ao alcance das mãos, e buscou refletir alguns
momentos. Mergulhou-se em funda abstração, e, quando se esforçou
mentalmente para tomar o prateado copo e beber-lhe o conteúdo, sentiu-se
envolvida por estranho torpor. Consciente embora, como quem sonhava
desperta, viu Emiliano pálido e abatido, junto dela.
Colocava a destra sobre o tórax ferido, como na visão de Orósio, e,
dirigindo-lhe a palavra, falou, triste:
— Helena, perdoa e compadece-te de mim!... Minha violenta separação do
corpo foi prova terrível. Não me recrimines! Daria tudo para permanecer e
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desposar-te, mas que podemos fazer quando os Céus se pronunciam contra os
nossos desejos? poderás imaginar o martírio de um homem, colocado além do
túmulo, sem meios de amparar a mulher que ama?
A moça, transitoriamente desligada do corpo físico, ouvia, aterrada... Se
pudesse, fugiria sem detença. Emiliano era apenas uma sombra do atleta
invejável que conhecera.
Assemelhava-se a um fantasma que a Parca vestira de dor. Somente os
olhos vivos e fascinantes eram os mesmos. Fez menção de recuar e esconderse,
entretanto, sentiu-se como que chumbada ao solo e presa por laços
imponderáveis ao amante redivivo.
Mostrando o propósito de tranqüilizá-la, o recém-desencarnado aproximouse
com mais carinho e falou:
— Não receies. A morte é ilusão. Um dia, estarás igualmente aqui, tal qual
todos os mortais... Sei quão tempestuoso te parece o horizonte. Quase menina,
foste surpreendida por dolorosos problemas do coração... No entanto, sempre
vale conhecer, mais cedo, a verdade...
No íntimo, a jovem desejou saber porque tornava ele do mundo das
sombras, amargurando-a.
Não possuía já suficientes razões para apoquentar-se?
E, pensando que o amante estivesse exonerado de todos os deveres
morais, considerava, no imo da consciência: — porque insistirá Emiliano em
acompanhar-me, quando se encontra livre? não fôra arrebatado da Terra à
moradia da paz?
Deixando transparecer que lhe percebia as palavras inarticuladas, o
inesperado visitante respondeu:
— Não creias seja o sepulcro uma passagem direta para o domicílio dos
deuses... Vivemos longe da luz quando não cogitamos de acendê-la no próprio
coração. Além da carne, em que nossa alma se agita, somos defrontados por
nós mesmos. Os pensamentos que alimentamos são teias escuras que nos
prendem à sombra ou às sendas de sublime esplendor, impelindo-nos para a
frente... Aqueles que deixamos para trás retardam nosso passo ou favorecemnos
o avanço, conforme os sentimentos que a nossa memória lhes inspira. Não
suponhas haja impunidade nos tribunais da justiça divina!... Recebemos
invariàvelmente, segundo as nossas obras...
Nesse ponto da singular entrevista, Helena recordou-se mais nitidamente
do enigma que a dilacerava...
Acaso Secundino voltava do sepulcro para lembrar-lhe as obrigações de
que pretendia desvencilhar-se?
Súbita aflição assomou-lhe à alma inquieta.
Como alijar o fardo de angústia?
Reconhecia-se entre o Espírito de Emiliano, a relembrar-lhe uma felicidade
que não mais lhe sorriria na Terra, e uma criança intrusa a ameaçar-lhe a
existência.
No fundo, queria ser mãe e desenvolver no próprio coração os potenciais
de ternura que lhe explodiam no peito, mas não nas circunstâncias em que se
achava.
Jamais sentira tão grande flagelação moral.
Lágrimas ardentes escaldavam-lhe os olhos.
Ajoelhou-se, desesperada, e gritou:
— Como me pedes compaixão, se sou mais desventurada?
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compreenderás, porventura, o tormento da mulher sob o grilhão de
compromissos que lhe deslustram a dignidade pessoal? sabes o que significa
esperar um acontecimento desonroso, sem o braço que nos prometeu
segurança e carinho? Ah!... os mortos não conseguem penetrar o infortúnio dos
vivos, porque, se assim não fôra, me levarias também... A convivência dos
seres infernais deve ser mais benigna que o contacto dos homens cruéis!...
O desfigurado mensageiro acariciou-lhe a cabeleira sedosa e observou:
- Não blasfemes! Venho para rogar-te valor... Não desprezes a coroa da
maternidade. Se aceitares a prova difícil, com submissão aos Divinos Desígnios,
não nos separaremos. Juntos, em espírito, prosseguiremos em busca
da alegria imortal... Suporta, com serenidade, os golpes do destino que hoje
nos fere. Não menoscabes o rebento do nosso amor... Às vezes, nos braços
tenros de uma criança, encontramos a força que nos regenera e nos salva...
Não recuses, pois, a determinação dos Céus! Guarda contigo a flor que
desabrocha entre nós. O perfume de suas pétalas alimentar-nos-á a
comunhão... E um dia reunir-nos-emos, de novo, nas esferas da beleza e da
luz!.
A jovem tentou prolongar o entendimento daquela hora inesquecível,
contudo, talvez porque expandisse a sensibilidade em desequilíbrio, a figura de
Emiliano como que se fundia em névoa esbranquiçada, afastando-se...
afastando-se...
Chamava-o, em alta voz, mas debalde.
Acordou a gesticular, no leito, bradando, desvairada:
— Emiliano!... Emiliano!...
Um dos braços agitados derrubou, involuntàriamente, a taça próxima,
entornando-lhe o conteúdo.
Perdera-se a criminosa tisana.
Helena enxugou o pranto copioso e, porque não mais pudesse conciliar o
sono, levantou-se e procurou o ar fresco da madrugada num terraço vizinho.
A visão do firmamento estrelado como que lhe suavizou o tormento Íntimo
e as veludosas virações que vinham do mar secaram-lhe os olhos úmidos,
acalmando-lhe o coração.
Mais reservada e mais abatida, esperou resignada a obra do tempo.
Anacleta, leal e amiga, obteve indiretamente, em conversações reiteradas
e supostamente sem importância, com Balbina, todos os informes imprescindíveis
à assistência que devia prestar-lhe e, depois de longas semanas,
em que se manteve acamada, a moça patricia deu à luz uma pequenina.
Assistida exclusivamente por Ãnacleta, que se desvelou pela tutelada na
posição de verdadeira mãe, Helena contemplou a filhinha, com insopitáveis
conflitos no coração.
Não sabia se a odiava com violência ou se lhe queria com ternura.
A governanta fê-la notar a coincidência de a menina haver herdado certo
sinal materno — uma grande mancha negra no ombro esquerdo.
Vestindo-a, carinhosamente, observou:
— Isso a tornará reconhecível em qualquer ocasião.
Não obstante fatigada, Helena respondeu resoluta:
- Não pretendo reencontrá-la.
— Entretanto — conjeturou a amiga —, o tempo corre atrás do tempo. Um
dia, será talvez possível a reaproximação. Custa-me pensar que nos
desvencilharemos de uma bonequinha como esta. Não surgirá um meio...
53
Helena, contudo, atalhou, firme:
— Ela deve desaparecer. É uma filha que não pedi e que não me cabia
esperar.
Anacleta, desapontada, conchegou-a, de encontro ao coração, envolveu-a
em panos de lã e, em seguida, apresentou-a ao angustiado olhar materno,
acrescentando:
— É tua... Dá-lhe alguma lembrança. Pobre avezinha! Como se portará na
ventania?
A moça, estranhamente dominada de pensamentos contraditórios, sufocou
as lágrimas nos olhos úmidos e, tomando de móvel próximo um belo camafeu,
em que se via a imagem de Cíbele, admiràvelmente esculpida em marfim,
adornou com ele o corpo da pequenina.
Logo após, recomendou, decidida:
— Anacleta, organiza-lhe a viagem. É preciso despachá-la num cesto
grande, sob qualquer árvore do campo. Evita confiá-la à porta de determinada
pessoa, de vez que não pretendo estabelecer qualquer laço de ligação com o
passado, que considero morto, a partir deste instante.
— Helena!... — suspirou a moça, com o evidente intuito de aconselhar.
— Não interfiras — afirmou a jovem mãe —; quando o dia clarear, serei
portadora de novo destino. Não me fales mais nisso. Saberei recompensar-te.
Dispõe de mim como quiseres.
Anacleta procurou ainda impor-se, mas a filha de Vetúrio, sem tergiversar,
exclamou:
— Não discutas, Os deuses decidirão...
Á sobrinha de Apolodoro cumpriu a ordem, choramingando, e, munindo-se
de agasalho, saiu conduzindo o pequeno fardo.
O dia estava prestes a alvorecer.
No horizonte, o Sol não tardaria em anunciar-se.
Anacleta foi visitada pela tentação de deixar a criança no limiar de alguma
herdade, onde conseguisse acompanhar-lhe a evolução, indiretamente;
todavia, embora não concordasse com a atitude de Helena, vivia, por sua vez,
na condição de subalternidade. Dependia da casa de Opílio e muito
particularmente da menina Vetúrio. Seguir a criança, ainda que de longe, seria
atrair aflições sobre a própria cabeça. Não desejava abandonar o destaque
social da casa de Cíntia. Era exageradamente feliz para perder com facilidade
as vantagens de que se rodeava na vida. Contudo, cortava-lhe o coração a dor
de abandonar a pequenina completamente à própria sorte. Seria justo entregar,
daquele modo, um ser humano, à furna dos animais? que destino poderia
esperar a inocentinha, em pleno matagal?
Fitou o rosto miúdo, mal velado pela cobertura envolvente, e a compaixão
intensificou-se-lhe ainda mais, em reconhecendo que a menina se deixava
conduzir, sem chorar.
Soprava o vento fresco, qual se fôra uma carícia do Céu.
A corajosa governanta havia caminhado aproximadamente três
quilômetros, no rumo de pequeno povoado próximo.
Não poderia prolongar demasiado a excursão, sob pena de denunciar-se.
Mas, como abandonar a, criança aos imprevistos da charneca? Não se
conformava à idéia de perpetrar semelhante crueldade. Guardá-la-ia num
ângulo de caminho, até que pudesse sentir-se segura.
E, em preces, rogava aos numes de sua fé encaminhassem até ali alguém,
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cuja presença a tranqüilizasse.
Preocupada, esperou.
E, quando a diurna claridade começou a espraiar-se, através dos lençóis
de névoa, notou que um homem, como quem cultivasse no campo a meditação
matutina, apareceu ao longe, caminhando devagar...
A moça ocultou-se, rápida, e a criança, pressentindo talvez o aparecimento
de mãos amigas, passou a vagir ruidosamente.
O passeante estugou o passo, abeirou-se dela e, ajoelhando-se, junto ao
cesto, bradou:
— Grande Serápis! que vejo? um anjo, ó deuses!... um anjo sem
ninguém!...
Inclinou-se, cuidadoso, afagou a cabecinha nua e, erguendo os olhos para
o alto, exclamou:
— Divino Zeus! há quinze anos conduziste Li-via, minha única filha e
consolo de minha viuvez, para a glória de teu seio!... Hoje, que me sabes um
peregrino sem apoio, ma restituis. Louvado sejas! Doravante não serei mais
sozinho...
Com extremada ternura, retirou a menina do berço improvisado e apertoua,
de encontro ao coração, sob as dobras da capa acolhedora em que se
envolvia e retomou o caminho por onde viera.
Os primeiros raios de ouro da manhã desvelaram a paisagem, parecendo
que o Céu reafirmava a sua proteção à Terra e os pássaros começaram a
cantar, melodiosamente, como se agradecessem à Divina Providência a alegria
de uma criança perdida. que havia encontrado a bênção de um lar.
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5
Reencontro
Ao término de 233, numa sala singela da igreja de São João, em Lião,
pequena assembléia de companheiros se instalara para o exame de assuntos
urgentes, relacionados com a obra do Evangelho.
Três homens de idade avançada, e um outro, em plena madureza,
discutiam as necessidades do movimento cristão.
O Império vivia assolado por uma peste que procedia do Oriente, fazendo
vítimas inumeráveis.
Em Roma, a situação era das mais graves.
A epidemia penetrara as Gálias e a comunidade cristã, em Lião, mobilizava
todos os recursos para amenizar os problemas do povo.
O mais jovem integrante do conjunto era o Irmão Corvino, que advogava a
causa dos enfermos abandonados e infelizes.
— Se desprezamos o próximo — comentava ele, inflamado de confiança —
, como atender ao nosso mandato de caridade? Cristianismo é viver o espírito
do Cristo em nós.
Vemos no estudo das narrativas apostólicas que as legiões do Céu se
apossam da Terra, em companhia do Senhor, transformando os homens em
instrumentos da Infinita Bondade. Desde o primeiro contacto de Jesus com a
Humanidade, observamos a manifestação do mundo espiritual, que busca nas
criaturas pontos vivos de apoio para a obra de regeneração. Zacarias
éprocurado pelo anjo Gabriel que lhe comunica a vinda de João Batista. Maria
Santíssima é visitada pelo mesmo anjo, que lhe anuncia a chegada do
Salvador. Um enviado celeste procura José da Galiléia, em sonho, para
tranqüilizá-lo, quanto ao nascimento do Redentor. E, erguendo-se o Mestre Divino,
entre os homens, não se limita a cumprir a Lei Antiga, repetindo-lhe os
preceitos com os lábios. Sai de si mesmo e coloca-se ao encontro das angústias
do povo. Limpa os leprosos da estrada. Estende mãos amigas aos
paralíticos e levanta-os. Restitui a visão aos cegos. Reergue Lázaro do sepulcro.
Restaura doentes. Reintegra as mulheres transviadas na dignidade
pessoal. Infunde aos homens novos princípios de fraternidade e perdão. Ainda
na cruz, conversa amorosamente com dois malfeitores, procurando
encaminhar-lhes as almas para o mais alto. E, depois dele, os apóstolos abnegados
continuam-lhe a gloriosa tarefa do reerguimento humano, prosseguindo
no ministério do esclarecimento da alma e da cura do corpo, devotando-se ao
Evangelho até ao derradeiro sacrifício.
— Compreendemos a sensatez da exposição —objetou o presbítero
Galiano, velho gaulês que se demorara por muito tempo, na Patagônia —, entretanto,
é preciso escapar às arremetidas do tentador. Penso haver chegado o
momento de cogitar da construção do nosso retiro nas terras que possuímos
na Aquitânia. Não podemos atingir o Céu sem a centralização de nossa alma
na prece...
— Como conseguiremos, porém, ajudar a Humanidade, simplesmente
orando? — ajuntou Corvino, seguro de si. — Temos companheiros admiráveis
estacionados no deserto. Organizam pousos solitários, desfiguram-se,
atormentam-se e crêem auxiliar, por esse modo, a obra de redenção humana.
Mas se devêssemos procurar a tranquilidade própria, a fim de servir ao Criador,
por que motivo teria Jesus vindo até nós, partilhando conosco o pão da vida?
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Em que luta condecorar-se-áo soldado que desiste do combate? em que país
haverá colheita valiosa para o lavrador que nada mais faz que contemplar a
terra, a pretexto de amá-la? como semear o trigo, sem contacto com o solo?
como plantar o bem, entre as criaturas, sem suportar o assédio da miséria e da
ignorância? não podemos admitir salvação sem a intimidade daquele que salva
com aquele que se encontra desviado ou perdido.
Ante a pausa que se fêz espontânea, Galiano considerou:
— As tuas ponderações são mais que justas, mas não podemos concordar
com o pecado e nem permitir que as almas desprevenidas dele se aproximem.
— Os pagãos nos acusam de ladrões da alegria — acentuou Pafos, um
diácono aureolado de cabelos brancos —, acreditam que o Evangelho é um
manto de tristeza asfixiando o mundo.
— E não falta quem veja na peste uma vingança das divindades olímpicas
— informou Ênio Pudens, excelente companheiro que o tempo encanecera —;
muita gente volta a clamar contra nós, supondo sejamos os causadores da ira
celeste. Valeriano, um amigo nosso que trabalha no Fórum, contou-me,
particularmente, que entre as solicitações formuladas pelo Concílio (11), na
festa de Augusto, consta um apelo para que sejamos de novo flagelados. E
afirmou que a execução de semelhante pedido vem tardando, porque o
Imperador Alexandre Severo não está suficientemente seguro.
Galiano sorriu e acrescentou:
— Mais um motivo para o insulamento dos que pretendem adorar a Deus,
sem a perturbação dos homens...
A frase reticenciosa ficara no ar, mas Corvino, tocado de profundo ardor
pela causa do Evangelho, retomou a palavra, decidido:
— Veneráveis irmãos, admito não nos caiba o direito de interferir na
resolução dos que buscam
(11) Assembléia gaulesa com direito de opinar diante da autoridade de
César. — (Nota do Autor espiritual.)
a solidão, contudo, creio não devamos incentivar o movimento que podemos
classificar por deserção. Estamos numa guerra de idéias. O primeiro legionário
que tombou, em holocausto à libertação do espírito humano, foi o próprio
Mestre, nosso Comandante Divino. Desde a cruz do Calvário, nossos
companheiros, em vasta frente de valoroso testemunho, sofrem o martirológio
da fé viva. Há quase duzentos anos somos pasto das feras e objeto
desprezível nos divertimentos públicos. Homens e mulheres, velhos e crianças
têm sido levados a arenas e cárceres, postes e fogueiras, revelando o
heroismo da nossa confiança num mundo melhor. Não seria lícito trair-lhes a
memória. Os adversários de nossa causa têm-nos como amargurados
portadores da indiferença pela vida, mas é que ignoram a lição do Benfeitor
Celeste que nos indicou no serviço da fraternidade a fonte do verdadeiro bem e
da perfeita alegria. Urge, assim, não nos afastemos do trabalho e da luta. Há
construções no plano do espírito, como existem no campo da matéria. A vitória
do Cristianismo, com a livre manifestação do nosso pensamento, é obra que
nos compete concretizar.
Surgiu pequeno intervalo na conversação, que a palavra de Ênio
interrompeu:
— No que se refere a serviço, nossa posição não é das melhores. Muitas
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famílias, pressentindo a perseguição, vêm dispensando os empregados cristãos.
Ainda ontem as oficinas de Popônio demitiram dez companheiros nossos.
— Mas temos o direito de esmolar para a igreja e a igreja precisa sustentálos
— observou Galiano, cuidadoso.
Corvino, porém, obtemperou, firme:
Sim, temos o direito de esmolar. Esse, contudo, é também o direito do
mendigo. Não nos cabe, segundo nos parece, olvidar a produção de benefícios
para o mundo. Temos terra disponível, sob a responsabilidade de vários
irmãos. O arado não mente. Os grãos respondem com fidelidade ao nosso
esforço. Podemos trabalhar. Não devemos recorrer ao concurso alheio, senão
em circunstâncias especiais. Não seria aconselhável manter a comunidade
improdutiva. Cabeça vaga é furna de tentações. Creio em nossa possibilidade
de auxiliar a todos, através do esforço bem dirigido. O serviço de cada dia é o
recurso de que dispomos para testemunhar o desempenho dos nossos
deveres, diante dos que nos acompanham de perto, e o trabalho espontâneo
no bem é o meio que o Senhor colocou ao nosso alcance, a fim de que
sirvamos à Humanidade, com ela crescendo para a Glória Divina.
O explicador ainda não havia terminado, quando a porta se entreabriu e um
companheiro anunciou:
— Irmão Corvino, a irmã Pontimiana roga-lhe a presença.
O presbítero pediu permissão aos confrades e retirou-se.
Na praça pobre de acesso ao templo, que mal começava a erguer-se, uma
senhora respeitável esperava-o.
Era a guardiã do palácio rural de Opílio Veturio.
Embora contrariando o esposo, fizera-se amiga fiel da igreja, ouvindo
Corvino, que lhe amparara a renovação espiritual, passo a passo.
Não obstante idosa, Pontimiana revelava extrema agudeza nos olhos
lúcidos, que sempre refletiam a cristalina bondade de sua alma.
Tantas vezes auxiliada pelo presbítero, convertera-se em prestimosa irmã
dêle, devotando-lhe estima sincera.
Sorridente, saudou-o e foi logo informando:
— Taciano, o menino agora rapaz que o senhor conheceu em Roma,
chegou hoje. Tratando-se de alguém cujo destino sempre lhe interessou, vim
trazer-lhe a notícia.
O semblante do religioso cobriu-se de extrema palidez.
Enfim, reveria o filho bem-amado.
Quase vinte anos haviam decorrido.
Constantemente, procurava-o no rosto dos órfãos e achara-lhe o carinho
no peito das crianças sem lar que o buscavam, trêmulas de frio. Em todas as
preces ao Senhor, lembrava-lhe o nome, no imo dalma. Consoante as lições do
apóstolo que lhe consolidara a fé, consagrara-se ao trabalho da terra.
Distanciara-se dos conhecimentos náuticos, renunciara à vocação do
comando, amaciara a voz e aprendera a obedecer. Tomando o velho Corvino
por padrão renovador, dividia a existência entre o santuário e o serviço comum.
Não se tornara famoso, em Lião, simplesmente pela abnegação com que se
dedicava aos enfermos, curando-os e reanimando-os através da oração, mas
também pela arraigada ternura com que se empenhava na proteção à infância.
Habitava numa propriedade da igreja com trinta meninos, aos quais servia
de mentor e de pai, seguido, de perto, pela cooperação de duas velhinhas.
Quinto Varro, convertido em presbítero, encontrara nos pequeninos o
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alimento espiritual da alma saudosa.
Apesar da prevenção reinante contra a igreja, a cidade respeitava-o.
Os pobres e os infelizes rendiam-lhe rasgado preito de amor. Mas não era
somente grande no apostolado da fé. Agigantara-se em humildade, fazendo-se
o jardineiro-chefe de cinco residências patrícias. Orientava os escravos com
tanta mestria no preparo do solo e na educação das plantas, que conquistara,
não apenas significativo salário, mas também admiração e preferência.
A casa senhorial de Vetúrio incluía-se entre as mansões aristocráticas
cuidadas por ele. Captara a confiança dos mordomos e a estima dos servos.
Era na extensa propriedade um cooperador e um amigo.
No fundo, Varro sabia que esse era o único recurso de rever Taciano e
oferecer-lhe os braços paternais.
Desvelara-se, por isso, na formação do parque, no meio do qual se
levantava a casa de Opílio. Nenhum jardim, em Lião, se lhe igualava em
beleza.
Informado por Alésio e Pontimiana, que algumas vezes visitavam Roma, de
que o filho era apaixonado por rosas rubras, com elas desenhou vastos
canteiros, dando-lhes a figura especial de um coração, marginado de flores, em
cujo centro acolhedores bancos de mármore, entre repuxos amenos,
convidavam à meditação e ao repouso.
Trabalhara muito durante os dezessete anos que o distanciavam do lar, a
fim de merecer o contentamento daquela hora.
Fizera-se mais experiente, mais esclarecido. Mantivera longo contacto com
os mestres do pensamento, em várias línguas. Sobrenadara a corrente de
aflições do próprio destino e procurara vencer todos os percalços para
comparecer, ainda que para sempre anônimo e irreconhecível, diante do filho
incessantemente lembrado, com a dignidade do homem de bem.
Como fazer face à surpresa daquela hora? Teria forças para abraçar
Taciano, sem comprometer-se?
A voz de Pontimiana veio arrebatá-lo da obcecante reflexão:
— Irmão Corvino, o senhor sente-se mal, porventura?
Como que acordando de um sonho atormentado, o presbítero recompôs a
fisionomia e respondeu, gentil:
— Desculpe, irmã. Estou bem.
— É que não disponho de muito tempo —tornou ela, preocupada. — O
jovem Taciano chegou doente.
— Doente?
— Sim, tudo indica seja portador da peste maldita.
E, ante o coração paterno, amargamente surpreendido, continuou:
— Vim até aqui, não somente para o comunicado, mas também para rogarlhe
o concurso.
Atendendo às perguntas que lhe foram dirigidas, a empregada de Vetúrio
esclareceu que o rapaz chegara com febre alta e vômitos frequentes, sofrendo
inquietante angina que lhe impedia a deglutição. Os escravos que lhe
formavam o séquito adiantavam que o moço parecia muito acabrunhado na
viagem, piorando, entretanto, somente na véspera, horas antes de alcançarem
a cidade. Ela e o marido haviam movimentado todas as providências. Taciano
instalara-se no quarto confortável que, desde muito, o aguardava, e um médico
de confiança fôra chamado. Não conhecia ainda os efeitos da inspeção,
todavia, resolvera pedir-lhe ajuda imediata, em razão da experiência que ele,
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Corvino, adquirira nas tarefas assistenciais que abraçara, junto dos pestosos.
Sabia, de antemão, que a casa seria marcada por zona perigosa e que o
esposo e ela não poderiam contar senão com servidores insipientes. Não podia
esperar a contribuição de romanos prestigiosos. Os patrícios de nomeada, em
maioria, estavam em vilas campestres, a longas distâncias, receosos de
contágio.
O presbítero ouviu, de coração opresso, desejando colocar-se junto do
filho, para o que desse e viesse. Mas, atento às responsabilidades que o
prendiam ao templo, prometeu visitar o enfermo, tão logo se desincumbisse
das obrigações mais urgentes.
Com efeito, ao entardecer, fêz-se substituído no lar dos meninos e, à
noitinha, dava entrada no aposento do filho.
Amparado por Alésio, o jovem agitava-se em náuseas aflitivas. O rosto
descarnado denunciava-lhe o abatimento.
Por mais que o mordomo apresentasse o religioso, Taciano, febril, não dava
conta de si mesmo.
O olhar esgazeado passeava pelo quarto, vagueando inexpressivo.
Enquanto Corvino lhe acariciava a cabeça suarenta, o guardião informava:
— Há duas horas começou a delirar.
Realmente, findos alguns minutos de pesada expectação, o doente pousou
no visitante os olhos empapuçados, alterando-se-lhes o brilho. Indisfarçável
interesse se lhe estampou na máscara fisionômica. Contemplou
demoradamente o presbítero, qual se houvesse enlouquecido e, tentando
afastar a delicada cobertura, bradou:
— Quem trouxe a informação da morte de meu pai? onde estão os
escravos que o assassinaram? Malditos! Todos serão mortos...
O benfeitor dos enfermos, colhido à queima-roupa por semelhantes
palavras, recorreu à prece para não trair-se.
Pálido e semi-aterrado, orava em silêncio, enquanto Taciano. como se
entrevisse a realidade nos desvarios da febre, prosseguia gritando:
— Conduzamos a galera até Cartago!... Não posso recuar... Conhecerei a
verdade por mim mesmo... Faremos um inquérito. Punirei os culpados. Como
puderam esquecer tamanho delito? Disse-me Opílio que há muitos crimes na
sombra e que a justiça é incapaz de todos os reajustes... mas serei o vingador
de meu pai... Quinto Varro sera reabilitado. Não perdoarei a ninguém... Aniquilarei
todos os patifes.
Preocupado talvez com a estranheza do irmão Corvino, o esposo de
Pontimiana falou-lhe, reservado:
— O rapaz, fora de si, lembra-se do pai assassinado, faz muitos anos, por
escravos nazarenos, na embarcação que o conduzia para a África, em missão
punitiva.
E provavelmente porque o interlocutor apenas se manifestasse, através de
monossílabos, acrescentou:
— Quinto Varro era o primeiro marido da patroa. Consta que viajava rumo
a Cartago, incumbido de providenciar o castigo de vários cristãos insubmissos,
quando foi apunhalado por servidores irresponsáveis e inconscientes...
Arejou um dos lençóis que envolviam o paciente e prosseguiu:
— Pobre menino! Embora educado por Vetúrio qual se lhe fôra filho,
revelou-se, desde cedo, atormentado pela memória paterna.
Em seguida, baixou o tom de voz e, abeirando-se, cuidadoso, do
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presbítero, observou, deixando-lhe perceber o constrangimento com que o
recebia na intimidade:
— A morte de Varro acirrou na família, como é justo, o ódio ao
Cristianismo. Taciano foi criado pela genitora na extrema veneração às
divindades. A senhora costuma dizer que preparou o filho para combater a
mistificação gallleia e não oculta o propósito de fazê-lo sustentáculo da
munificência imperial. Respeito, assim, a sua cooperação, na qual Pontimiana
deposita a maior confiança, contudo, sinto-me no dever de rogar-lhe cautela, a
fim de que o rapaz não se sinta ofendido em seus princípios.
O abnegado irmão dos pobres não se surpreendeu com a observação.
Não obstante sentido, agradeceu a advertência.
Que não faria para demorar-se, ali, junto ao doente que ansiava por asilar
nos seus braços?
Ocupou-se, carinhoso, em ministrar as beberagens indicadas pelo
facultativo, esforçando-se, com todos os recursos de que dispunha, na
enfermagem completa.
Taciano piorava sempre.
Noite alta, Alésio e a esposa se recolheram, recomendando a três escravos
prestimosos se revezassem no trabalho noturno de assistência.
O irmão Corvino, porém, não arredou pé do leito.
Demorava-se o moço na fase culminante da febre insidiosa. A escarlatina
complicada atingira o período de invasão.
Por trinta horas consecutivas, o religioso, entre a força da fé e a abnegação
do amor, acompanhou-o, com desvelada ternura, conquistando o
reconhecimento de todos os circunstantes.
No segundo dia, a erupção surgiu em manchas pequenas e vermelhas,
começando no tórax, e, por várias semanas, o rapaz foi objeto de meticulosa
atenção.
Muitas vezes, velando-lhe o sono, em lágrimas, o presbítero afagava-o,
paternalmente, e sofria a tentação de revelar-se.
Como, porém, abrir uma guerra de morte contra Cíntia? não esposara ele
no Evangelho um novo modo de ser? que testemunho de lealdade ao Cristo
poderia afirmar, semeando ódio e amargura no espírito do filho bem-amado?
adiantaria a Taciano qualquer atitude, tendente a impor-lhe afeição?
Em muitas ocasiões, orou, pedindo a Jesus o inspirasse, e vezes
frequentes contemplou o velho Corvino, em sonho, aconselhando-o a extrema
renúncia, qual se lhe trouxesse a resposta do Alto.
Na posição de expositor da Boa Nova, achava-se ligado a milhares de
pessoas, que lhe buscavam o exemplo e a palavra por respeitáveis diretrizes.
Não podia, desse modo, hesitar.
Grande era o amor pelo filho, no entanto, o amor sublime do Mestre era
maior e devia conservá-lo digno, nas responsabilidades supremas.
Quando o enfermo recuperou a lucidez, abraçou-o, reconhecidamente,
nele identificando, não só o jardineiro chefe da casa, mas também o benfeitor
inesquecível.
Sentindo-se infinitamente atraído para aquele homem humilde que o
visitava, perseverante, Taciano apreciava entreter-se com ele, por longas horas,
em explanações sobre ciência e arte, cultura e filosofia.
Ligavam-se nos mesmos temas e nas mesmas preferências.
Discutiam Vergílio e Lucrécio, Lucano e Homero, Epicuro e Timeu de
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Locros, Sêneca e Papiniano, com análogos pontos de vista.
Todavia, como se temessem perder a fascinante comunhão em que se
mergulhavam, pareciam linhas paralelas em religião.
Evitavam, sistemàticamente, qualquer comentário em matéria de fé.
Amparado pelo amigo, o rapaz já conseguia efetuar vários passeios no
parque enriquecido de suntuosa vegetação, e, ali, à sombra de vigorosos
abetos ou entre giestas em flor, entabulavam preciosas conversações,
sorridentes e felizes, à maneira dos antigos helenos, que preferiam a permuta
de avançados conhecimentos no santuário da Natureza.
Certa feita, espicaçado pela curiosidade, Taciano indagou quanto às
razões do seu insulamento na Gália, quando poderia ser, em Roma, festejado
professor. Donde vinha e porque se condenara à obscuridade colonial?
Relutante, Corvino confessou que nascera na metrópole dos Césares, mas
apaixonara-se pelo serviço junto à comunidade gaulesa e vira-se preso por
fortes laços do coração.
— Que trabalho, contudo, encarcerar-te-ia em Lião, a ponto de esquecerte?
— perguntou o jovem com espontâneo carinho. — Admito que os herdeiros
da glória patrícia não deviam abandonar a educação aos escravos. Um egípcio
ou um judeu não podem produzir os pensamentos de que carecemos para a
garantia da grandeza imperial.
— Sim, sem dúvida — concordou o amigo, bondoso —, entretanto, acredito
que também as províncias nos reclamam acurado interesse, O mundo está
repleto de nossos legionários.
Possuimos forças incoercíveis de civilização, em todas as frentes. Nossos
imperadores podem ser proclamados em variadas zonas da Terra. Em razão
disso, não podemos olvidar a necessidade de instrução, em todos os setores.
E, sorrindo, acentuou:
— Por este motivo, converti-me em mestre-escola.
Taciano partilhou-lhe o bom humor.
Nesse instante, uma idéia nasceu no cérebro de Varro.
E se lhe trouxesse as crianças para uma Visita de amor? Não seria a
maneira mais segura de tocar-lhe o coração para o despertamento evangélico?
o rapaz poderia ignorar-lhe a condição para sempre, mas seria justo não
convidá-lo para o banquete da luz divina? Quem adivinharia as vantagens de
semelhante realização? Pela inteligência de que se mostrava portador, o filho,
naturalmente, impusera-se na família. Percebia-se logo que as opiniões dele se
faziam respeitáveis. Apesar de extremamente jovem, era senhor das próprias
convicções.
Um cântico infantil conseguiria, decerto, sensibilizá-lo. Taciano
provavelmente se inclinaria a estudar as lições de Jesus, se os meninos lhe
alcançassem as cordas da alma...
Depois da reflexão de segundos, dirigiu-se ao convalescente, de olhos
iluminados por secreta esperança, e indagou como receberia ele a saudação
dos pequeninos de que se erigira guardião.
O pupilo de Vetúrio não regateou encômios à idéia.
Sentir-se-ia muito feliz com a homenagem, declarou. Sempre admitira que
o futuro pertence à criança. A civilização romana, a seu ver, não podia
descurar-se da preparação juvenil.
No dia previamente marcado, o próprio Taciano, com o auxílio de Alésio e
da mulher, organizou, na encantadora Praça das Rosas Rubras, deliciosa
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criação de Corvino, o ambiente festivo da recepção.
Cestos de frutos e cântaros com abundante provisão de suco de uvas
foram artisticamente espalhados entre os bancos de mármore.
O corpo musical da herdade, constituído por escravos jovens, foi trazido à
reunião.
Garbosos moços, empunhando liras e alaúdes, tambores e sistros,
improvisavam melodias alegres.
Dividia-se a fazenda em duas correntes partidárias: a dos servidores
cristãos, inflamados de júbilo e esperança, dirigidos pelo otimismo de Pontimiana,
e a dos cooperadores, devotos dos deuses olímpicos, capitaneados
por Alésio, que não enxergavam o acontecimento com bons olhos. De um lado,
surgiam preces e sorrisos de fraternidade, mas de outro apareciam impropérios
e rostos sombrios.
Com a sabedoria do apóstolo e com a ingenuidade da criança, o irmão
Corvino penetrou o recinto perfumado, conduzindo três dezenas de petizes, em
singela apresentação.
Orientados pelo mentor, chegaram cantando um hino simples, que exprimia
caricioso voto de paz.
Companheiro,
Companheiro!
Na senda que te conduz,
Que o Céu te conceda a vida
As bênçãos da Eterna Luz!...
Companheiro,
Companheiro!
Recebe por saudação
Nossas flores de alegria
No vaso do coração...
As vozes humildes assemelhavam-se a um coro de anjos que o bosque
recebesse pelas asas do vento.
Taciano acolheu, bondoso, a colmeia infantil.
Dois bailarinos executaram números cômicos, enquanto a petizada se ria,
feliz.
Alguns jogos inocentes foram postos em prática.
Seis meninos recitaram poesias de nobre delicadeza, através de
monólogos e diálogos que encantaram a assembléia da qual constavam muitas
dezenas de escravos em trajes festivos.
Em certo momento, Taciano tomou a palavra, referindo-se aos ideais da
pátria e da raça, no engrandecimento da Humanidade.
Logo após, a merenda farta espalhou o contentamento culminante.
O prestimoso jardineiro que se fizera o afortunado credor de tantas
atenções, trouxe ao jovem patrício o menor da turma. Era Silvano, um menino
de cinco anos apenas, filho de um legionário que morrera no porto. A desditosa
viúva, atacada pela peste, confiara-lhe o garoto, semanas antes.
Taciano abraçou-o, com sincera ternura, dirigindo-lhe a palavra,
carinhosamente.
O irmão Corvino declarou que lhe cabia providenciar o regresso das
crianças e, por isso, designava Silvano para dizer uma prece pela felicidade do
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anfitrião.
O pequeno, submisso, trocando jubiloso olhar com o orientador, procurou o
centro da praça.
O momento era de extrema expectativa.
Todos os circunstantes entreolharam-se, aflitos...
O pupilo de Vetúrio acompanhava a cena, sorridente, certo de que seria
lembrado numa oração comum às Divindades.
O pequeno, de cabeça erguida ao Céu, como um soldadinho triunfante,
começou a falar, comovidamente:
— Jesus, nosso Divino Mestre ! ... Ajuda-nos...
Nesse instante, porém, súbita palidez cobriu a face do moço patrício. A
fisionomia, dantes calma e educada, tornou-se-lhe irreconhecível. Feroz
expressão eclipsou-lhe a alegria. Repentinamente convertido numa fera
humana, rugindo cólera, clamou, terrível:
— Abaixo os nazarenos! abaixo os nazarenos!... Maldito Corvino!... Maldito
Corvino!... que desgraça! quem se atreveu a introduzir cristãos em minha
casa? Farei justiça, justiça! Acabarei com esta praga!...
Penosa surpresa dominou o recinto.
O paternal benfeitor aproximou-se dele e implorou:
— Piedade! Piedade!...
Taciano, contudo, não viu as lágrimas que fulguravam nos olhos dele.
Recuando, desesperado, respondeu em voz seca:
- Piedade? Reparem o velho refrão dos imundos galileus!.
E agitando um bastão de ponta metálica, rugia, estentórico:
— Fora daqui! para fora daqui, gênios infernais!... Víboras do monturo,
filhos das trevas, para fora daqui!...
O jovem parecia possesso de demônios do crime, tal a máscara de
indignação e perversidade que lhe surgira no rosto.
Os pequerruchos tremiam imóveis.
Entre eles e o filho encolerizado, o coração de Varro não sabia o que fazer.
Muitos servidores do grupo de Alésio passaram a gargalhar ruidosamente.
Taciano relanceou os olhos na assembléia e bradou para o capataz que
conhecia como sendo o mais ferrenho inimigo dos cristãos:
- Epípodo, traze o cão selvagem! Expulsemos a canalha! Aniquilemos os
embusteiros!...
O escravo não hesitou. Atendeu, presto, e, em poucos instantes,
aproximava-Se um cão enorme a ladrar e a rosnar com fúria.
Os meninos debandaram aos gritos, dilacerando-se muitos deles na
ramaria espinhosa das roseiras em flor.
O irmão Corvino, atônito, procurava acalmar os ânimos, entretanto, a fera
alcançou o caçula, abocanhando-lhe o corpo tenro.
Aos gemidos de Silvano, a esposa de Alésio avançou, corajosa, e arrebatou
a criança, contendo energicamente os movimentos do furioso mastim, que
obedeceu em ganidos estridentes.
Apressou-Se Varro a recolher o pequeno ferido que chorava a esvair-se em
sangue.
Aflito, tentava aliviá-lo, enquanto Taciano, desvairado, se dirigia ao interior
doméstico, repetindo:
— Todos pagarão!... todos pagarão!...
Rufo, velho escravo da quinta, abeirou-se do presbítero, oferecendo-lhe os
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préstimos.
O religioso aceitou-lhe a cooperação, rogando-lhe reconduzisse os meninos
ao lar, de modo a ocupar-se de Silvano, como se fazia mister.
Dispôs-se ao regresso, conchegando a inocente vítima, de encontro ao
peito.
Caminhava, lentamente, no trecho isolado que ligava a residência de
Vetúrio à cidade, absorto em escuros pressentimentos.
O menino, de tórax aberto, confrangia-lhe a alma. Em dado momento,
parou de gritar, embora a hemorragia prosseguisse, abundante.
O irmão Corvino percebeu-lhe a queda de forças e buscou repousar, sob
vetusto carvalho, a fim de ouvi-lo.
O pequerrucho fitou nele os olhos embaciados pela agonia...
Varro, em pranto, inclinou-se, paternalmente. e perguntou, com carinho:
— Estás recordando Jesus, meu filho?
— Estou sim senhor... — respondeu em voz débil.
Mas, revelando-se muito distante das questões transcendentes da fé —
flor humana sequiosa de ternura —, exclamou para o benfeitor:
— Papai, abrace-me... Tenho frio... Quinto Varro compreendeu. Estreitouo
contra o coração, como se desejasse aquecê-lo com o calor da própria alma.
Tudo em vão. Silvano estava morto.
O doloroso acontecimento traçava sombrios horizontes ao futuro da
igreja.
Abatido e desencantado, o presbítero perguntava a si mesmo se não fôra
precipitado na visita. Entretanto — refletia —, seria leviandade oferecer alguem
o que possui de melhor, com pureza de sentimento? Guardava nos pequenos
aprendizes do Evangelho a coroa do seu trabalho. Poderia ser acusado pela
circunstância de tudo fazer por despertar um filho para a verdade? Como
entender-se com Taciano, sem tanger-lhe as fibras mais íntimas?
Restabelecido no equilíbrio físico, o jovem seria convocado à vida social
intensa. Conhecer-lhe-ia o ministério. Seria constrangido a decidir-se. Não
seria, pois, aconselhável informá-lo, indiretamente, quanto às suas atividades
cristãs? e que melhor maneira de fazê-lo, além daquela de apresentar-lhe os
seus princípios numa demonstração prática de trabalho? Se o filho não
conseguisse ouvir qualquer referência à Boa Nova, através dos lábios de uma
criança, em prece, como suportaria qualquer alusão a Jesus, em discussões
estéreis? Não podia ele, Varro, hesitar entre qualquer sentimento pessoal e o
Evangelho. Seus deveres para com a Humanidade superavam-lhe as ligações
consanguíneas. Embora reconhecesse semelhante verdade, entendia lícito
operar, de algum modo, em favor do filho querido.
Taciano, porém, mostrara-se impermeável e rígido.
Parecia muito distante de qualquer acesso àprópria justiça.
Petrificara-se-lhe a mente no orgulho racial e na falsa cultura. Pela
explosão de cólera a que se atirara, ao ouvir a simples enunciação do nome do
Cristo, denunciara o antagonismo talvez irremediável que os separava...
Profundamente consternado, entregou-se ao refúgio da oração.
Na comunidade evangélica ninguém comentou desfavoràvelmente os
tristes sucessos que redundaram na morte da criança. O irmão Corvino era
demasiadamente respeitado para provocar qualquer crítica desairosa à sua
conduta.
Nos ajuntamentos da cidade, contudo, o assunto crescia esfervilhante.
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As correntes de opinião nascidas em casa de Vetúrio distendiam-se, agora,
por todos os lugares. Para a maioria dos espectadores, Taciano era apresentado
na condição de um herói, empunhando o gládio vingador das
divindades olímpicas, mas para o grupo simpatizante do Cristianismo surgia
como símbolo terrível de novas perseguições.
Os cristãos comumente eram acusados de encantamentos vergonhosos e
detestáveis e de práticas de bruxaria, das quais o infanticídio fazia parte. E, por
isso, não faltou quem visse na morte de Silvano alguma coisa relacionada com
feitiçaria e operações mágicas.
Quadros terríveis foram pintados pela imaginação do populacho exaltado e
a viúva Mércia, mãe do menino morto, foi convocada à acusação.
Nessa atmosfera asfixiante, o filho de Cíntia começou a receber a visita de
romanos destacados, que lhe felicitavam o espírito reacionário e vigilante.
Revigorado por semelhantes aplausos, sentia-se o rapaz habilitado para
atuação de maior vulto.
O próprio questor Quirino Eustásio, velho patrício aposentado das lides
políticas, mas influente junto à Propretura da Gália Lugdunense, veio ter com
ele para saudações em estilo pomposo.
Dentre os assuntos tratados, não podia faltar o tema preferido.
— Acredito que a mocidade romana não poderia enviar-nos à província
mais digno embaixador — encareceu o cortesão, com o calculado timbre de
voz das pessoas entregues à bajulice. — A deplorável doutrina dos judeus
proscritos insinua-se assustadoramente, ameaçando-nos as tradições. Esta
cidade vive cheia de anacoretas da Ásia, de profetas vagabundos, de
pregadores e fantasmas. Domiciliado aqui, desde os bons tempos de nosso
magnânimo imperador Séptimo Severo, que os deuses conservam em sua
glória divina, posso afirmar a minha convicção de que o movimento não passa
de loucura coletiva, capaz de arrastar-nos à perdição.
— Sim, sem dúvida — observou o jovem satisfeito —, compete-nos
recuperar o culto da pátria. A nosso ver, grande conjugação de energias se faz
indispensável, a fim de extinguirmos a quadrilha maléfica. Não compreendo em
que poderia repousar a grandeza de uma doutrina, cujos prosélitos se mostram
honrados com o cutelo na cerviz. Em Roma, tive conhecimento de muitos processos
alusivos às repressões e espantei-me com o teor das respostas dessa
gente infeliz. Repudiam os deuses com uma desfaçatez de assombrar. Creio
que as autoridades deveriam promover um expurgo social, em grande estilo.
O interlocutor, com o riso irônico de velho fauno, admiràvelmente
apresentado, acentuou, malicioso:
— Em razão disso, rejubilamo-nos com a sua presença. Se a juventude
patrícia não formular uma reação à altura de nossas necessidades, rumaremos
para a decadência. A sua coragem na expulsão desse renitente Corvino é um
desafogo para nós. Recebi a notícia, como justo regalo. Estou convencido de
que a nossa fé se sente agora menos ofendida. Não vemos com bons olhos
esse homem estranho, cuja procedência é ignorada de todos. Para mim, não
passa de um aventureiro ou de um louco a perturbar-nos o caminho.
O enteado de Vetúrio, mordiscando-se de curiosidade, indagou com
interesse:
— Não se sabe, assim, quem é ele? por que mistérios guarda consigo
tamanha cultura a estagnar-se em serviços de jardinagem?
O interlocutor piscou os olhos astutos e acrescentou:
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— Quem sabe? insinuou-se no espírito popular com incrível desenvoltura.
Há quem o tome por santo, contudo, inclino-me a crer que não passe de algum
feiticeiro, cercado de seres infernais. Trazia a aparência de um vagabundo
quando surgiu aqui. Pouco a pouco, adquiriu a fama de curar pelas preces
nazarenas, com imposição das mãos, e a primeira casa importante que lhe caiu
nas garras foi a de Artêmio Cimbro, cuja filhinha, ao que dizem, sofria grandes
perturbações mentais. Experimentado o tratamento de Corvino, parece que a
menina se impressionou favoràvelmente, recuperando-se, então, qual se fôra
um milagre. Daí para cá, fêz-se o jardineiro da nobre família, que o introduziu
em residências outras. Da sua vida profissional, é tudo quanto sei. Das
atividades do mago, porém, muito teria a dizer se pudesse. Refere-se o vulgo a
mil coisas. Se fôssem apenas os plebeus a se mostrarem maravilhados...
Entretanto, temos alguns patrícios ilustres enleados na rede. Dizem alguns que
a palavra dele está revestida de miraculoso poder, afirmam outros que ele cura
as mais complicadas enfermidades...
— É estranho ver uma cidade como esta, a desvairar-se por este modo! —
comentou Taciano, com interesse.
Por isso mesmo, necessitamos de elementos renovadores. A sua decisão,
rechaçando Corvino, é sumamente confortadora. Ele é incompetente para
conduzir crianças, mesmo desprezíveis. Sei que Artêmio lhe advoga a causa,
mas estou convencido de que poderemos interromper-lhe, doravante, as
mistificações. Zenóbio, um velho amigo que foi alto dignitário da imperial
munificência, comunicou-me, ontem à noite, informado por fontes dignas de
crédito, que o menino morto fôra encaminhado aos dentes do cão pelo próprio
Corvino, a fim de que a malta cristã obtivesse sangue inocente para os
mistérios negros das reuniões que praticam. É notório que ele foi a única
testemunha do ato final...
E, baixando o tom de voz, perguntou:
— Teria o dileto amigo observado isso? Seria muito importante registrar o
fato, através de sua própria boca...
Taciano, de rosto esfogueado, a exprimir o choque de contraditórias
emoções, esclareceu, presto:
— Nada posso adiantar nesse sentido. Quando ouvi o nome do crucificado,
a revolta subiu-me à cabeça. Não tive olhos senão para defender a nossa
propriedade contra a influência pestilencial. Determinei a soltura do cão de
guarda, possuído de extrema desesperação. Não me cabe, por isso, asseverar
aquilo que não verifiquei por mim mesmo.
Quirino, porém, mordeu os lábios, contrariado, e ajuntou:
— Fique certo, contudo, de que as coisas não terão ocorrido de outro
modo. Reajamos em conjunto. Nossos escravos não podem continuar à mercê
de bruxos inconscientes e nem será lícito permitir que pessoas de nossa
condição social se deixem embair sem defesa...
— Nisso, achamo-nos de pleno acordo — salientou o rapaz, resoluto —; de
minha parte, pretendo corrigir e selecionar a comunidade de servidores.
— E que plano traçou para esse serviço? gostaria de agir em minha casa
com uniformidade de vistas.
— Aguardo a vinda de meus pais, em breves dias, que trarão consigo
Helena, a minha futura esposa. Como passarei a residir aqui depois do meu
casamento, antecipei-me a eles, a fim de adaptar a vida da propriedade aos
hábitos de minha família e de modo a afeiçoar-me às usanças da província.
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Não desejo, todavia, que os meus encontrem os disparates surpreendidos por
mim. Pretendo reunir todos os servos, a fim de prestarem juramento aos
deuses que veneramos. Afastarei quem fugir ao justo compromisso. Em
seguida, penso instituir em casa o culto de Cíbele, começando com uma
cerimônia processional pelo nosso bosque. É indispensável purificar os
costumes e os ares.
Quirino concordou, entusiástico, e prometeu aderir ao programa. Não
somente faria o mesmo em seu domicílio, mas convocaria os amigos a
acompanhá-lo.
Estimava Opílio Vetúrio, de longos anos, e felicitava-se por ver-lhe a
organização doméstica zelosa e bem guardada.
Realmente, depois de alguns dias, quando os sofrimentos da peste
desapareciam no olvido comum, Taciano promoveu a grande assembléia do lar
para a reafirmação de fidelidade aos deuses.
Em vastíssima dependência da herdade, uma soberba estátua de Cíbele
fôra instalada para a recepção dos votos gerais, enquanto que à direita da
imagem, num alto palanque paramentado de seda carmezim e fios dourados,
instalaram-se Taciano, dois sacerdotes populares da deusa e o casal de
mordomos, Alésio e Pontimiana.
Numa extensa galeria, consideravelmente elevada, junto às portas de
acesso ao grande recinto, a nobreza citadina, trazida por Eustásio, rejubilavase
com as cerimônias.
Em baixo, acotovelavam-se todos os servidores da família, dentre os quais
alguns artistas repetiam cânticos consagrados à divindade.
Num pequeno altar, graciosamente florido, a imagem que Vetúrio importara
de Pessinunte figurava-se uma testemunha impassível.
Cíbele, ladeada por dois leões, esculpida em mármore imaculado,
representava realmente o símbolo de uma civilização bruxuleante, à frente do
olhar indagador e triste de dezenas de escravos, sob a orgulhosa exibição dos
senhores.
O primeiro a aproximar-se, criando naturalmente um padrão para ser
imitado, foi Taciano, que, reverente diante do ídolo, declarou em voz alta:
— Sob a invocação da Divina Cíbele, Mãe dos deuses e mãe nossa, juro
irrestrita fidelidade às crenças e tradições dos nossos antepassados e perfeita
obediência aos nossos eternos imperadores.
Frenéticos aplausos coroaram-lhe as palavras. Um hino sacro,
acompanhado por flautas frígias, fêz-se ouvir cadenciado e melodioso.
Em seguida, Alésio desceu do trono improvisado e, dando a idéia de que a
cena havia sido previamente estudada, pronunciou respeitosamente os
mesmos votos.
Logo após, veio Pontimiana.
A nobre senhora parecia doente e fatigada. Adivinhava-se-lhe a luta íntima.
Palidíssima, enviou ao marido suplicante olhar, mas, pela expressão rude
com que Alésio a fitou, era possível imaginar os duros conflitos em que se
haviam empenhado, antes da cerimônia...
Contida pelos olhos frios do companheiro, a orientadora da casa enxugou
as lágrimas e repetiu, pausadamente, as mesmas palavras, negando assim a
fé cristã que lhe atribuíam.
Triunfante sorriso pairou na máscara fisionômica de Alésio, enquanto se
alastrava cochichado sussurro em enorme agrupamento de servidores.
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Notas de amargurado assombro surgiram em vários rostos.
Todos os escravos, um a um, alguns enfáticos e outros humilhados,
reafirmaram as frases pronunciadas inicialmente pelo senhor.
O último foi Rufo.
Epípodo, o capataz, conhecia-lhe a firmeza de opinião e, por isso, deixarao
para o fim, temendo qualquer irregularidade tendente a estabelecer a
indisciplina.
De semblante austero, evidenciando aceitar plenamente as
responsabilidades daquela hora, ergueu o bronzeado perfil, como se
procurasse o céu e não a estátua impassível, exclamando em voz cristalina e
dominadora:
— Juro respeitar os imperadores que nos governam , mas sou cristão e
renego os deuses de pedra, incapazes de corrigir a crueldade e o orgulho que
nos oprimem no mundo.
Um burburinho percorreu a assembléia.
Taciano dirigiu-se, em voz baixa, ao sacerdote mais idoso e esse,
assumindo a função de juiz, clamou para o servo, em tom autoritário:
— Rufo, não te esqueças de tua condição.
— Sim — concordou o interpelado, valoroso —, sou escravo, e sempre
servi aos meus senhores com lealdade, mas o espírito é livre... Somente a
Jesus Cristo reconheço por Verdadeiro Senhor!...
— Exijo que te retrates perante Cíbele, a sublime Mãe dos Deuses.
— Nada fiz que não esteja aprovado pela retidão de minha consciência.
— Abjura e serás perdoado.
— Não posso.
— Sabes quais são as consequências de tua irreflexão?
— Creio falar com perfeito conhecimento de minha responsabilidade,
entretanto, quaisquer que sejam os resultados de meu gesto, não devo recuar
perante a minha fé.
Rufo relanceou o olhar pelos circunstantes e notou que dezenas de
companheiros concitavam-no à resistência. Pontimiana, algo desafogada,
enviava-lhe, em silêncio, muda mensagem de bom ânimo.
— Abjura! abjura! — trovejava a voz do padre com aspereza.
— Não posso! — repetiu Rufo, imperturbável.
Depois de ligeira confabulação com o jovem patrício, o improvisado
julgador convocou Epípodo ao chicote.
Rufo, por ordem do algoz, despiu a túnica de gala que envergara para a
festa e ajoelhou-se de mãos para trás.
O trançado fino e cortante lambeu-lhe a pele nua por três vezes,
provocando sangrentos vergões, mas o escravo não tremeu.
— Ainda há tempo, infeliz! — bradou, confundido, o sacerdote da Magna
Mater — abjura e a tua falta será relevada...
— Sou cristão — reiterava Rufo, sereno.
— O castigo poderá conduzir-te à morte!
— O sofrimento não me intimida... — suspirou a vítima com humildade. —
Jesus conheceu o martírio na cruz para salvar-nos. Morrer por fidelidade a ele
é uma honra a que devo aspirar.
O látego visitou-lhe o dorso com violência, abrindo-lhe feridas sangrentas,
mas, percebendo o mal-estar que a cena de selvageria impunha ao recinto,
Taciano recomendou fôsse o escravo recolhido ao cárcere, até resolver quanto
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à definitiva punição.
Terminado o serviço, começou a solenidade processional.
O filho de Cíntia desejava uma purificação completa da propriedade.
Considerável multidão apinhava-se nos pátios da casa, aguardando o
cortejo.
A estátua de Cíbele foi colocada sobre riquíssimo andor de prata,
ornamentado de lírios.
Jovens pares, rigorosamente vestidos de branco, simbolizando a castidade
e a beleza, abriam alas à frente, dançando, em rítmos graciosos, ao toque de
flautas e pandeiretas do culto.
Em seguida, todas as senhoras presentes, conduzindo palmas aromáticas,
anunciavam o ídolo que, suportado pelos ombros de Taciano e de outros
rapazes consagrados à deusa, se fazia seguir pelos sacerdotes em orações do
rito frígio e pelos incensadores.
Depois deles, uma jovem de rara beleza carregava o cutelo sagrado.
Acompanhando-a, vinha o conjunto de musicistas, usando trompas, flautas,
címbalos, tímpanos e castanholas, nos cânticos votivos, cujos trechos
harmoniosos se perdiam no matagal.
Os dignitários e os principais vinham, em fila, silenciosos e reverentes e, ao
fim do préstito, congregava-se a massa de escravos, mudos e tristes.
Os hinos de louvor à mãe dos deuses embalsamavam o bosque de doce
melodia, interrompendo o chilrear dos pássaros assustados...
A procissão, em diversas fases, contornou a herdade, através do arvoredo
bem cultivado e das vinhas extensas, tornando a casa, onde Cíbele foi
restituida ao templo minúsculo que Opílio Vetúrio, em outro tempo, lhe erigira
em pleno jardim.
Taciano, tomando a palavra depois das preces dos sacerdotes, agradeceu
a presença dos religiosos, das autoridades e do povo, enaltecendo a sua
confiança na proteção das Divindades Olímpicas.
Dispersou-se a colorida assembléia.
Entardecia...
Sozinho agora no amplo terraço, de onde podia descortinar o horizonte
lavado e límpido, o jovem, instintivamente, recordou o irmão Corvino, a morte
de Silvano e a reação de Rufo e, sem perceber, começou a lutar com a
influência do Cristo, não mais em derredor das próprias idéias, mas dentro
mesmo do coração.
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6
No caminho redentor
Dias amargos surgiram para a igreja de Lião, depois da morte de Silvano.
Gratificada por Eustásio, que odiava o Evangelho, a viúva Mércia, mãe da
criança, veio a público acusar o irmão Corvino, declarando-o feiticeiro e
infanticida. Afirmou, perante as autoridades, que o menino fôra vítima de
sortilégios malditos, chegando à crueldade de acrescentar que Silvano, órfão,
tinha sido fascinado por engodos do pregador.
Extremamente humilhado, o amigo dos pobres foi conduzido a
interrogatórios oficiais, em que se comportou com admirável nobreza.
Varro nada reclamou.
Esclareceu que visitara a residência de Vetúrio com a melhor intenção e
que, inadvertidamente, uma das crianças fôra atacada por um cão bravio, solto
não sabia como.
Não podia, desse modo, culpar a ninguém.
Não faltaram insultos, por parte de romanos sarcásticos, que ele suportou
com humildade e heroismo.
Contudo, quando a prisão dele se fazia iminente, Artêmio Cimbro, patrício
de grande fortuna e de não menor generosidade, advogou-lhe a causa,
empenhando privilégios e haveres por livrá-lo do cárcere. Mobilizando altos
valores políticos, junto ao legado propretor, conseguiu sustar a internação
temporàriamente, arquivando-se o processo para despachos ulteriores, mas o
risonho lar dos meninos desapareceu.
As crianças foram recolhidas à pressa, em vários domicílios de irmãos que
as receberam com amor.
Considerado, pelas autoridades, indigno de orientar a infância, o
companheiro dos sofredores sentiu despedaçar-se-lhe o coração, quando o último
petiz o abraçou, chorando, às despedidas.
Quinto Varro, o padrão varonil do bom ânimo e o exemplo da fé viva, não
obstante a fortaleza espiritual de que invariàvelmente dera testemunho, cedeu
à tortura que antecede o desalento.
Entre a paixão pelo filho inacessível e o amor pelas crianças de que fôra
irremediavelmente despojado, era surpreendido, vezes frequentes, entre
lágrimas.
Em muitas ocasiões, dentro da noite, via-se diante da chácara senhoril de
Vetúrio, tentando ver o rosto de Taciano, em algum ângulo das janelas
iluminadas e, não raro, horas mortas, buscava essa ou aquela residência
particular para avistar-se com algum dos filhinhos do coração.
Estudava intensamente, tentando fugir aos próprios pensamentos, em
longas vigílias que terminavam pela extrema fadiga. Mal se alimentava,
empenhando-se em trabalhos sacrificiais pelos doentes, receando talvez
mergulhar-se na amargura, da qual resvalaria fatalmente para o desânimo.
Apesar das advertências dos superiores e dos amigos, perseverara na
excessiva movimentação, até que caiu no leito, sob invencível cansaço. Febre
alta devorava-o, devagarinho, constrangendo-o a oscilar entre a vida e a morte.
Por fim, à custa de carinho e devotamento dos companheiros, venceu o
inquietante desequilíbrio, mas, apático e abatido, deixou-se permanecer na
enxerga do quarto humilde, sem coragem de levantar-se.
Certa noite, acariciado pelo vento fresco que passava, sussurrando
71
brandamente, lembrava ele o velho Corvino, com maior intensidade...
O luar e a atmosfera pura, a câmara pequena e a solidão compeliam-no a
recuar no tempo.
Sentia imensas saudades do apóstolo que lhe tomara o lugar nos braços
escuros da morte...
Esposara a missão evangélica com extremado fervor.
Dera à igreja os mais belos sonhos. Renunciara a todos os prazeres do
homem comum, para favorecer, em si mesmo, a obra da espiritualização.
Buscara esquecer o que fôra, para transformar-se no irmão de todos. Dividira o
tempo entre o enriquecimento da vida interior e o serviço constante, mas trazia
o espírito sequioso de amor.
Seria crime o propósito de aproximar-se do filho para consagrar-se a ele?
seria reprovável o desejo de ser igualmente querido?
Na condição de homem, procurara compreender a esposa e honrar-lhe, no
íntimo, a escolha feita. Cíntia poderia transitar no caminho que lhe aprouvesse.
Era livre e, em razão disso, a mulher não Lhe ocupava o pensamento, contudo,
a lembrança de Taciano vergastava-lhe o coração. O anseio de ajudá-lo
convertera-se-Lhe nalma em idéia fixa. Realmente, vira-o agressivo e cruel.
Jamais lhe olvidaria a revolta, em ouvindo o nome de Jesus nos lábios tenros
de Silvano. Entretanto — pensava —, o rapaz era fruto da falsa educação na
casa de Opílio. O homem que o condenara à morte física, sentenciara-Lhe o
filhinho à morte moral.
Seria aconselhável nada fazer pelo jovem que apenas começava a
existência? constituiria ato culposo devotar-se um pai ao próprio filho, com a
melhor intenção?
Recordando, porém, a grandeza do ideal que o impelia ao amor da
Humanidade, perguntava a si mesmo por que motivo queria ao rapaz assim
tanto...
Se a igreja povoava-se de meninos e jovens a lhe merecerem atenção e
ternura, que razões subsistiriam para concentrar-se em Taciano com tamanha
afetividade, quando não desconhecia os intransponíveis impedimentos que os
separavam.
Depois de muitos anos de resignação e heroismo, auscultando os enigmas
da própria alma, Quinto Varro rendia-se, não às lágrimas serenas, filhas da
sensibilidade comovida, mas ao pranto convulso. vizinho do desespero.
A brisa suave, em correntes refrigerantes, penetrava a janela aberta, como
se buscasse afagar-lhe a cabeça dolorida...
Agora, todavia, alheava-se dos encantos da Natureza.
Apesar da multidão dos amigos de Lião, sentia-se abandonado, sem
ninguém... A presença do filho seria provavelmente a única força capaz de
restituir-lhe a sensação de plenitude.
De pensamento voltado para a memória de Corvino, recordava-lhe os
minutos derradeiros. Falara-lhe o venerando amigo, em termos inesquecíveis,
quanto à sobrevivência da alma. Alentara-o com a certeza da irrealidade da
morte. Consolidara-lhe a confiança e investira-o na posse de imorredoura fé.
Ah! como necessitava, naquele instante, de uma palavra que o arrebatasse
ao torvelinho de angústia!
Ele, que ensinara a resistência moral, sentia-se agora frágil e enfermiço.
Pensou no amigo morto, como a criança transviada suspira por reencontrar
o regaço materno...
72
Relegado a si mesmo, na solidão do quarto, soluçava com a cabeça
dobrada sobre os joelhos, quando notou que leve mão lhe pousava nos ombros
recurvos.
Perplexo, ergueu os olhos, inchados de chorar. e — oh! surpresa
maravilhosa! — o ancião desencarnado regressara do túmulo e achava-se ali,
diante dele, revestido de luz... Era o mesmo apóstolo de outro tempo, mas o
corpo como que se fizera diáfano e mais jovem.
Irradiações de safirina claridade fulgiam-lhe na fronte e desciam como que
em jorro sublime do coração.
O presbítero quis gritar a felicidade que lhe invadia o espírito,
prosternando-se à frente do mensageiro do Céu, mas uma força incoercível
emudecia-lhe a garganta e chumbava-o ao leito pobre.
Com um sorriso inexprimível, traduzindo melancolia e saudade, amor e
esperança, a entidade falou-lhe com carinho:
— Varro, meu filho, porque desanimas, quando a luta apenas começa?
Reergue-te para o trabalho. Fomos chamados para servir. Divino é o amor das
almas, laço eterno a ligar-nos uns aos outros para a imortalidade triunfante,
mas que será desse dom celeste se não soubermos renunciar? O coração
incapaz de ceder a benefício da felicidade alheia, é semente seca que não
produz.
O emissário espiritual fêz uma pausa ligeira, como a impor ordem à
enunciação dos próprios pensamentos e continuou:
— Taciano é filho do Criador, quanto nós mesmos. Não reclames dele
aquilo que ainda te não pode dar. Ninguém se faz amado através da exigência.
Dá tudo! aqueles que desejamos ajudar ou salvar nem sempre conseguem
compreender, de pronto, o sentido de nossas palavras, mas podem ser
inclinados ou arrastados à renovação por nossos atos e exemplos. Em muitas
ocasiões, na Terra, somos esquecidos e humilhados por aqueles a quem nos
devotamos, mas, se soubermos perseverar na abnegação, acendemos no
próprio espírito o abençoado lume com que lhes clarearemos a estrada, além
do sepulcro!... Tudo passa no mundo... Os gritos da mocidade menos
construtiva transformam-se em música de meditação na velhice! Ampara teu
filho que é também nosso irmão na Eternidade, mas não te proponhas
escravizá-lo ao teu modo de ser! Monstruosa seria a árvore que se pusesse a
devorar o próprio fruto; condenável seria a fonte que tragasse as próprias
águas! Os que amam, sustentam a vida e nela transitam como heróis, mas os
que desejam ser amados não passam muitas vezes de tiranos crueis...
Levanta-te! Ainda não sorveste todo o cálice. Além disso, a igreja, casa de
Jesus e nossa casa, espera por ti... Os que lhe batem à porta, consternados e
desiludidos, são nossos familiares igualmente... Esses velhos abandonados
que nos procuram tiveram também pais que os adoravam e filhos que lhes dilaceraram
o coração... Esses doentes que apelam para a nossa capacidade de
auxiliar conheceram, de perto, a meninice e a graça, a beleza e a juventude!...
Nossas dores, meu amigo, não são únicas. E o sofrimento é a forja
purificadora, onde perdemos o peso das paixões inferiores, a fim de nos
alçarmos à vida mais alta... Quase sempre é na câmara escura da adversidade
que percebemos os raios da Inspiração Divina, porque a saciedade terrestre
costuma anestesiar-nos o espírito...
O mensageiro fêz breve silêncio, fitou-o com mais ternura, e, em seguida,
acentuou:
73
— Varro, procura teu filho, com a lâmpada acesa do amor, nos filhos
alheios, e o Senhor abençoar-te-á, convertendo-te a amargura em paz do
coração... Ergue-te e aguarda de pé a luta dentro da qual reeducarás aqueles
que mais amas...
O presbítero, num misto de dor e de alegria, de emotividade e de angústia,
refletiu sobre a exaustão que o torturava, mas o enviado espiritual, anotandolhe
os mais íntimos pensamentos, aconselhou:
— Não te rendas ao sopro frio do infortúnio, nem creias no poder do
cansaço... Que seria de nós se Jesus, entediado de nossos erros, se entregasse
à fadiga inútil? ainda que o corpo se recolha às transformações da
morte, mantém-te firme na fé e no otimismo... O túmulo é a penetração na luz
de novo dia para quantos lhe atravessam a noite com a visão da esperança e
do trabalho.
O religioso considerou intimamente quão proveitosa lhe seria qualquer
informação alusiva ao futuro... Poderia, acaso, esperar alguma aproximação
com Taciano? conseguiria reconstituir a escola que perdera?
Bastou que semelhantes indagações lhe assomassem ao cérebro para que
a entidade lhe dissesse bondosamente:
— Filho, não aguardes, por agora, senão renúncia e sacrifício... Jesus até
hoje não foi compreendido, mesmo por muitos que se dizem seus seguidores.
Auxilia, perdoa e espera!... As vitórias supremas do espírito brilham além da
carne.
Nesse instante, o apóstolo desencarnado inclinou-se e apertou-o nos
braços afetuosos.
Quinto Varro adivinhou-lhe a despedida.
Oh! daria tudo para abrir-lhe a alma e relacionar-lhe todos os
acontecimentos daqueles anos de saudade e separação, mas trazia as cordas
vocais entorpecidas.
Corvino osculou-lhe os cabelos, na atitude de um pai que se despede de
um filhinho, antes de adormecer, e, recuando até à saída, dirigiu-lhe
comovedor adeus.
Lá fora, a noite esmaltada de estrelas embalava-se de brisas perfumadas e
refrescantes.
Aquietou-se o doente no leito, com uma sensação de paz somente
compreensível por aqueles que vencem em si mesmos os grandes combates
do coração.
A breve tempo, qual se houvera sorvido brando entorpecente, dormiu
tranquilo.
No dia imediato, acordou registrando singular revigoramento.
Com espanto geral, dirigiu-se aos ofícios religiosos da manhã, para o culto
da alegria e do reconhecimento. Mal terminara as preces habituais, notou, não
longe do átrio, desusado movimento do povo. Gritaria ensurdecedora vagueava
no ar. Ante a silenciosa indagação que esboçava no rosto, alguém esclareceu
que alguns bailarinos mascarados se achavam em função na via pública,
anunciando o espetáculo de gala que se realizaria no anfiteatro, em
homenagem à união matrimonial do moço Taciano com a jovem patrícia
Helena Vetúrio.
A casa de Opílio tencionava solenizar o acontecimento com vários
divertimentos públicos, de vez que o ricaço, senhor de extensas propriedades,
pretendia fazer-se mais intensamente respeitado na comunidade citadina.
74
Com efeito, Vetúrio e a família, acompanhados de grande séquito de
clientes e aduladores, haviam chegado para a grande celebração.
A herdade, dantes simples, embora imponente, convertera-se em
verdadeiro palácio romano, superlotado de damas elegantes e de tribunos
discutidores, de políticos ociosos que comentavam as intrigas da Corte e de
bajuladores sorridentes àprocura do vinho farto.
Escravos inúmeros iam e vinham à pressa.
Movimentavam-se liteiras e carros, de variadas procedências.
Helena não cabia em si de júbilo, entre o carinho do noivo e a admiração de
quantos lhe cortejavam a beleza.
Extremamente adestrada na vida social, fazia prodígios para agradar à
aristocracia gaulesa, derramando-se em atenções por toda parte.
Cíntia, porém, viera transformada. Intencionalmente, fugia de todas as
festividades que lhe agitavam o lar. Ausente das conversações e dos saraus,
era dada por enferma na palavra de Vetúrio e de Taciano, ante as
interrogações das visitas.
Mas um homem antigo, velho associado de Opílio desde a mocidade,
asseverava, entre os íntimos. que a senhora se fizera cristã.
Esse homem era o mesmo Flávio Súbrio, o velho soldado coxo, renovado
também nas concepções da vida.
Súbrio recebera em Roma inestimáveis benefícios da coletividade
evangélica e alterara os princípios que lhe norteavam o destino.
Do ateísmo e do sarcasmo passara à crença e à meditação.
Não era um adepto do Cristo, na verdadeira acepção da palavra,
entretanto, fazia leituras edificantes, respeitava a memória de Jesus, dava esmolas
e evitava o crime que, em outro tempo, constituía para ele trivialidade
sem importância.
Por algumas vezes, comparecera às pregações das catacumbas e
modificara-se. Conseguira reter na consciência a bênção do remorso e
reconsiderara o caminho percorrido...
Todavia, de todos os dramas escuros que lhe povoavam o espírito, o
assassínio de Corvino era talvez o que mais lhe dilacerava o coração.
Em muitas ocasiões, perguntara, sem resposta a si mesmo, que teria sido
feito de Quinto Varro... Onde teria desembarcado? Conseguira sobreviver?
Nunca mais obtivera dele a menor notícia.
Jamais esquecera a expressão de calma dos olhos de Corvino, quando lhe
apunhalara o tórax envelhecido. Supôs que o apóstolo gritasse revoltado,
entretanto, em se descobrindo, angustiado, o ancião levou a destra ao peito
opresso, sem o mais leve gemido de reação.
Aliás, ao sair, notou que ele orava... Aquele quadro nunca mais se lhe
apagou da memória. Perseguia-o em todos os lugares. Se procurava
mergulhar-se em taças fascinantes ou se buscava outros ares e companhias,
com o intuito de fugir de si mesmo, lá se achava, no fundo da mente, a figura
indelével do velho pregador, retribuindo-lhe a punhalada com a oração.
Atormentado pela própria consciência, não tolerara o suplício que infligira a
si mesmo, e enlouquecera.
Nas provações da demência, fôra socorrido por um grupo de cristãos, cujas
preces lhe haviam balsamizado o espírito sofredor. Desde então, modificara o
modo de ser, não obstante conservar encerrados consigo os seus inquietantes
segredos, confiando-se aos braços renovadores do tempo.
75
Quando Opílio o convidou a transferir-se para a Gália, não hesitou.
Sabia que o missionário morto pertencera àcoletividade lionesa e
propunha-se algo fazer pela organização que ele tanto amara. Conhecia as
hostilidades de Vetúrio contra o Evangelho, no entanto, não lhe faltariam
recursos para ajudar, anônimo, àfamília espiritual que o irmão Corvino legara
aos companheiros.
Sempre ligado à casa de Vetúrio, fôra informado por uma escrava de
confiança que Cíntia, enferma, se dispusera a receber o auxílio cristão, nos
aposentos que lhe eram particulares e, restabelecida, alterara espiritualmente
os próprios rumos.
Simpatizara com a nova atitude da matrona, todavia, a esse respeito, nunca
pudera ter com ela a mais ligeira entrevista.
Efetivamente, essa informação era verdadeira. Cíntia tomara-se de súbita
inclinação para o Cristianismo.
Logo após a temporária separação do filho, fôra igualmente atacada pela
peste, somente debelada com a interferência de um santo homem que,
conduzido ao seu leito, às ocultas, por algumas escravas, lhe impusera as
mãos em prece, devolvendo-lhe a paz íntima.
Reerguera-se da cama, contudo sentia-se presa de insopitável melancolia.
As crises de coração eram frequentes.
Quando a casa se envolvia em silêncio, descia para o jardim, preferindo a
meditação a qualquer bulício doméstico. Nessas ocasiões, muitas vezes Opilio
a recolheu nos braços, enxugando-lhe as lágrimas abundantes.
Estabeleceu com ela discussões que, gradativamente, se fizeram
amargas e rudes e, por fim, considerou prudente afastar-se de Roma, por
tempo indeterminado, esperando que a palavra de Taciano a dissuadisse.
Em Lião, o padrasto entendeu-se com o rapaz, que, orgulhoso e inflexível,
lhe escutou as confidências, de semblante espantado e sombrio.
O moço aguardou uma oportunidade favorável ao tipo de conversação que
desejava e, na véspera do casamento, valendo-se de ensejo adequado, alegou
a necessidade de apresentar à mãezinha alguns novos trabalhos que vinha
movimentando e retiraram-se ambos para vinhedo próximo.
Ante o Sol que se afigurava um braseiro perdido no poente afogueado, o
jovem recordava, pelo caminho, que aquele era o seu último dia de mocidade
sem compromisso. Na manhã imediata, marcharia ao encontro de novo
destino.
Sob ramalhudo e anoso carvalho que parecia interessado em proteger a
plantação nascente, tomou as mãos maternas e comentou os receios que lhe
feriam a alma...
Porventura, teria ela esquecido os votos sagrados do coração? Soubera
pelo pai adotivo que vivia agora dominada pelos sortilégios nazarenos... Seria
isso verdade? Não podia conformar-se com a idéia de que houvesse alterado a
direção da fé. Sabia-a forte, como sempre consagrada aos numes domésticos,
sem qualquer traição aos antepassados, e nela confiaria até ao fim.
A genitora registrou-lhe as palavras, de olhos velados pela névoa do pranto
que não chegava a cair e, como se guardasse nalma a sombra do crepúsculo
que começava a vestir a paisagem, respondeu com amargura:
— Meu filho, amanhã terei cumprido integralmente a minha tarefa de mãe.
O teu casamento assinala o fim de minhas responsabilidades nesse sentido.
Podemos, pois, conversar, de coração para coração, como dois velhos
76
amigos... De alguns anos para cá, sinto muita sede de renovação espiritual...
— Mas porque renovação se o carinho dos deuses jaz sobre a nossa casa?
— atalhou o rapaz agastado e apreensivo. — Acaso nos falta qualquer coisa?
não vivemos uns para os outros na doce confiança recíproca que os protetores
celestes nos conferiram?
— A fartura de bens materiais nem sempre traz felicidade ao coração —
observou a matrona, sorrindo, triste —; a riqueza de Vetúrio pode não ser a
minha riqueza...
Pousou no filho os olhos molhados e calmos que o sofrimento íntimo
enobrecera e continuou, depois de longa pausa:
— Nossa personalidade, enquanto somos jovens, é semelhante a pedra
preciosa por lapidar. Mas o tempo, dia a dia, nos desgasta e transforma, até
que um novo entendimento da vida nos faça brilhar o coração. Sinto-me em
nova fase. És hoje um homem e podes entender... Há muito tempo observo a
decadência que nos rodeia. Decadência nos que governam, a expressar-se em
desmandos de toda a sorte, e decadência nos governados que fazem da
existência uma caça ao prazer... Noutra época, tive também os olhos
vendados. Por mais falasse teu pai, avisadamente, buscando acordar-me, mais
surdos se me faziam os ouvidos... Hoje, porém, as palavras dele ressoam em
minha consciência com mais nitidez. Achamo-nos atacados no lodo de vícios e
misérias morais. Só uma intervenção espiritual, diversa daquela em que até
hoje temos acreditado, pode solevar o mundo...
— Mas, meu pai — explicou Taciano, visivelmente contrafeito — era um
filósofo que não se afastou de nossas tradições. A documentação que nos
deixou atesta-lhe a cultura. Além do mais, foi assassinado quando cumpria
nobre dever no combate à praga cristã.
A senhora estampou indisfarçáveis sinais de amargura, na fisionomia
serena, e replicou:
— Enganas-te, meu filho! Cresceste ao lado de Vetúrio, sob a névoa
espessa que nos esconde o passado... Devo, porém, asseverar-te agora que
Varro era seguidor de Jesus...
Tomando conhecimento da inesperada revelação, o rapaz transtornou-se.
Estranho rubor subiu-lhe à face, intumesceram-se-lhe as veias do rosto,
crisparam-se-lhe os lábios e animalizou-se-lhe a expressão.
Amedrontada, Cíntia emudeceu.
Qual acontecera no dia da morte de Silvano, o jovem patrício colocou-se
fora de si.
Não podia insubordinar-se naquela hora, contudo, bradou em desabafo:
— Sempre defrontado por esse Cristo que não procuro! Pela glória de
Júpiter, nunca cederei, nunca cederei!...
A genitora recuou, possuída de forte espanto.
Jamais lhe percebera tamanho desequilíbrio.
Taciano apresentava a máscara indefinível do sofrimento e do ódio, qual
se estivesse, de chofre, à frente do seu mais terrível adversário.
Contemplou Cíntia, trêmula, e esforçando-se, em vão, por acalmar-se,
enunciou com um ar de desalento:
— Mãe, Opílio tem razão. A senhora está mesmo demente. A peste
enlouqueceu-a!...
E depois de alguns instantes de silêncio, em que apenas se lhe ouvia a
respiração ofegante, acrescentou, melancólico:
77
— Amanhã, desposarei Helena com um dardo envenenado a pungir-me o
peito.
Logo após, enlaçou-a, nervoso, com a preocupação de quem conduz um
doente grave e, sem qualquer palavra, deixou-a, aflita e desapontada, em
ataviada câmara de repouso.
Desde aquele crepúsculo inolvidável, Cíntia Júlia foi tida à conta de louca
no seio da família.
O casamento dos jovens realizou-se com solenidades excepcionais. Por
três dias consecutivos, a herdade e o anfiteatro regurgitaram de convidados
para os jogos e festejos gratulatórios, com alegres cerimoniais de louvor e
reconhecimento aos numes tutelares. Mas, no esplendor do regozijo público,
duas personagens jaziam estigmatizadas por infinita angústia. Opílio e Taciano,
constrangidos a manter a dona da casa no indevassável exílio doméstico,
guardavam o sorriso artificial de quem recebia o júbilo do povo como taça
brilhante cheia de fel.
Os aposentos da matrona permaneciam sob a guarda severa que Epípodo
dirigia.
Proibiu-se-lhe a ela a recepção de visitas.
A entrada dos próprios servidores passou a ser devidamente controlada. A
esposa de Vetúrio só poderia avistar-se com os mais íntimos.
E enquanto Opílio, agora mais estreitamente ligado a Galba, se devotava a
largos empreendimentos na pecuária, junto de Helena e Taciano que se
amavam, risonhos e felizes.
Varro, desacoroçoado de qualquer entendimento com o filho, voltava à
posição de protetor dos desamparados, dividindo-se entre as tarefas sacrificiais
de sempre e as pregações edificantes, em que a sua palavra sublime parecia
banhar-se de redentora luz.
A fama do irmão Corvino aumentava dia a dia, entre o ódio gratuito dos
romanos gozadores e o agradecimento das almas simples que buscavam nele
o refúgio e a consolação, a saúde e a esperança...
O ano 235, entrara sob escuros vaticínios.
Repletava-se o Império de incessante mal-estar. Importante corrente do
patriciado, sob a instigação de sacerdotes consagrados às divindades
olímpicas, acusava os adeptos da Boa Nova com referências amargas,
atribuindo-lhes a causa dos desastres que atormentavam a vida coletiva.
A peste que flagelava o mundo latino, em todas as direções, as colheitas
mirradas, as vicissitudes da guerra e a instabilidade política eram tidas como
consequência do trabalho punitivo dos deuses, que castigavam os cristãos,
sempre mais numerosos em toda a parte.
Nuvens terríveis acumulavam-se sobre os trabalhadores do Evangelho,
que, em preces, aguardavam o desabar de novos temporais.
Em meio de prognósticos sombrios, Caio Júlio Vero Maximino subira ao
trono romano.
Alexandre Severo fôra assassinado cruelmente, desaparecendo com ele a
influência das mulheres piedosas que amparavam o Cristianismo no trono
imperial.
O novo César assemelhava-se a um monstro que se apoderara da púrpura,
sedento de sangue e de poder.
Fortaleceu, à pressa, os tiranos da administração e do exército e vasta
perseguição aos prosélitos do Cristo foi reiniciada, com impulso avassalador.
78
Embora Maximino se mantivesse nas lides belicosas do mundo provincial,
o movimento de morte irradiou-se de Roma, despertando a autocracia e a
violência.
Diversas proclamações foram levadas a efeito, recomendando, a princípio,
apenas o assassínio dos bispos e dos religiosos que lhes acolitassem o ministério,
com anistia aos que abjurassem a fé, mas, a breve tempo, avolumouse
a onda arrasadora contra todos os profitentes do credo martirizado.
Inúmeras igrejas, levantadas desde a ascensão de Caracala, com ingentes
sacrifícios, foram vítimas de pavorosos incêndios.
Na metrópole, os perseguidos tornavam ao culto exclusivamente nas
catacumbas, e, nas cidades distantes, a repressão era graduada ao talante dos
principais.
Com os cultivadores do Evangelho reconduzidos aos tribunais, aos
calabouços e aos anfiteatros, recomeçou vasta efusão de sangue em toda a
parte.
Em Lião, a igreja de São João foi interditada e os objetos sagrados
passaram às mãos irreverentes de autoridades inescrupulosas. O corpo eclesiástico
e os religiosos de obrigações definidas foram expulsos
desapiedadamente, mas alguns deles, dentre os quais o irmão Corvino,
resistiram à situação e permaneceram na cidade velando pelo rebanho aflito.
Os seguidores de Jesus, nas Gálias, não obstante todos os reveses da
imensa luta, persistiram na fé, valorosos e invictos. Como os druidas, seus
heróicos antepassados, procuraram a floresta para os seus cânticos de louvor
a Deus. Depois do trabalho de cada dia, marchavam à noite, rumo ao campo
amigo e silencioso, em cujas catedrais de arvoredo, sob o firmamento
estrelado, oravam e comentavam as divinas revelações, como se respirassem,
por antecipação, as alegrias do Reino Celeste.
Quirino Eustásio, o questor, movimentou os mais escuros fios da intriga e
da calúnia, para que se efetuasse uma grande matança, mas Artêmio Cimbro,
patrício por todos os títulos venerável, opunha toda a sua poderosa influência
contra qualquer medida extrema.
Diante dos obstáculos que lhe estorvavam os desejos, Quirino aventou a
idéia de os grandes senhores realizarem, nas próprias casas, o que denominava
como sendo o «justo escarmento». Os escravos reconhecidamente
cristãos seriam condenados à morte, e seus descendentes vendidos para
outras regiões, a fim de que a cidade sofresse um expurgo tão completo quanto
possível.
Uma ordem do legado imperial, por ele obtida sem dificuldade, completoulhe
os propósitos, encetando-se o morticínio em seu próprio lar.
Seis homens cativos foram trucidados espetacularmente, ao toque de
músicas e entre júbilos populares, alastrando-se a medida por várias casas
nobres.
Chegada a vez do palácio rural de Opílio, o questor visitou-o para articular
as providências necessárias.
— Ao que me consta — informou Vetúrio, depois de interpelado —, temos
aqui tão somente um recalcitrante.
— Já sei — falou Eustásio, malicioso —, trata-se de Rufo, nosso teimoso e
velho conhecido.
Taciano foi chamado a opinar.
O filho de Cíntia trouxe pelo braço a jovem esposa, em cujo regaço dormia
79
Lucila, a primogênita recém-nata.
A conversação prosseguiu animada e ferina.
— Suponho — explicou o dignitário enfatuado — que não temos outra
alternativa. Exterminaremos a canalha ou seremos exterminados por ela.
Observo que alguns dos nossos compatriotas, e dos mais eminentes, receiam
afrontar a ameaça Galiléia, em nossa cidade, considerando talvez os seus
fatores numéricos. Entretanto, é imprescindível reagir. Lião é a metrópole moral
das Gálias, tanto quanto Roma é o centro do mundo. Que seria de nós
estimulando aqui o favoritismo? Que Artêmio Cimbro agasalhe os velhacos,
valendo-se do seu prestígio com senadores e altos magistrados de Roma, é
calamidade que não podemos evitar, mas procedermos nós do mesmo modo,
com servos imundos e ladrões, seria digno dos nossos foros de nobreza?
Os circunstantes aprovaram-lhe as palavras, com expressivos sinais de
simpatia.
— Os escravos — continuou Quirino, convincente — são instrumentos
passivos de trabalho e um instrumento, por si, não pode raciocinar. Somos nós
os responsáveis. Providenciar é nosso dever.
E talvez porque a pausa se fizesse mais longa, Helena opinou, com
firmeza:
— Concordo plenamente. Desde muito observo que a praga nazarena tem,
sobretudo, deletérios efeitos psíquicos. Parece desfigurar o caráter e apagar o
brio das pessoas.
Antigamente, os sentenciados à morte nos circos lutavam, denodados, com
as feras ou com os gladiadores, conseguindo, muitas vezes, recuperar o direito
de viver e a própria liberdade. Agora, contudo, com os ensinamentos do
homem crucificado, arrefeceu-se-lhes a galhardia. Há, por toda a parte, uma
enchente de vergonha. O combate nas festas sempre foi um belo símbolo.
Atualmente, porém, ao invés da lança em riste, vemos braços cruzados e
ouvimos cânticos até ao fim.
Eustásio soltou estentórica risada e acentuou:
— Bem lembrado! bem lembrado! se a moda pega, viveremos de joelhos
para que os vagabundos se mantenham de pé.
O entendimento prosseguiu demorado e minucioso.
Marcaram o dia da derradeira tentativa para a recuperação de Rufo.
Solenizariam o acontecimento.
Os escravos não seriam dispensados da cena final.
Eustásio traria consigo um comprador da Aquitânia e, se o renitente não
cedesse, vender-lhe-iam a esposa e as duas filhinhas, no instante em que se
lhe processasse a eliminação.
A medida seria uma advertência aos demais e, provavelmente, sustaria
novos surtos de indisciplina.
Examinaram entre si o gênero de morte mais adequado à situação, caso
Rufo se revelasse inflexível.
Salientou Vetúrio que um machado nas mãos de Epípodo não seria usado
em vão, mas Quirino, perverso, recordou que um servo delinqüente, arrastado
pela cauda de um potro selvagem, era sempre um quadro festivo, digno de ser
visto.
O dia do expurgo na fazenda de Opílio surgiu sob pesada expectação.
Indisfarçável angústia transparecia do semblante de numerosos
trabalhadores, concentrados em extenso pátio.
80
Vetúrio, Taciano e Galba, seguidos de Quirino, de outras personalidades
destacadas e do mercador de cativos, penetraram o recinto, empertigados, dominadores
e livres.
Rufo, ladeado por musculosos guardas, foi trazido ao centro da praça, em
cujos limites se amontoavam homens, mulheres e crianças.
Foi então que Vetúrio determinou que uma senhora e duas meninas se
aproximassem.
Eram Dioclécia, a esposa do prisioneiro, e as duas filhinhas Rufilia e
Diônia, que o abraçaram com sofreguidão e alegria.
— Papai! papaizinho!...
As vozes caridosas ecoaram, comoventes, arrancando lágrimas, enquanto
o escravo mostrava o pranto que lhe manava dos olhos, como gotas de orvalho
diamantino, deslizando sobre expressiva máscara de bronze.
Epípodo, atendendo a um sinal do senhor, separou o belo grupo familiar e
a voz de Opílio bradou, emprestando às palavras o máximo de energia:
— Rufo! chegou o momento decisivo! Jurarás fidelidade aos deuses e
serás salvo, ou seguirás o impostor galileu, sentenciando-te à morte e provocando
o banimento definitivo dos teus. Escolhe! não há tempo a perder!...
— Ah! senhor — chorou o servo, caindo de joelhos —, não me condeneis!
Compadecei-vos de mim !... sou escravo desta casa, desde que nasci!
O infeliz calou-se, dominado pela angústia, e a cabeça noutro tempo erecta
e altiva baixou o rosto até à poeira que Vetúrio pisava.
— Não invoques o passado! Atende ao presente! porque a ilusão nazarena,
quando as nossas divindades te propiciam o pão farto e a vida feliz?
Rufo, porém, reergueu a fronte, recuperando a serenidade.
Contemplou a esposa que o fitava, amargurada, e, em seguida, estendeu
os braços para Diônia, meigo anjo moreno de quatro anos, que se precipitou,
de novo, para ele, exclamando, confiante:
— O senhor vem conosco, papai?
O interpelado fixou a menina, com inexprimível ternura, mas não
respondeu.
Ninguém poderia conhecer o drama que se desenrolava por trás daquele
semblante sulcado pelo sofrimento.
Os olhos estáticos pararam de chorar.
Súbita e inabalável firmeza estampara-se-lhe no rosto.
Elevou a atenção para o céu, evidenciando íntima atitude de oração, mas
Opílio tornou a falar, contundente e gritante:
— Não delongues, não delongues! Renegas a superstição nazarena e
abominas agora o impostor da cruz?
— O Evangelho é revelação divina —. informou Rufo, possuído de calma
impressionante —, e Jesus não é um mistificador e sim o Mestre da Vida
Imperecível...
— Como ousas? — atalhou Vetúrio, encolerizado — a tua morte não
passará de suicídio e serás o verdugo da própria família. Dioclécia e as meninas
serão expulsas e, quanto a ti mesmo, em poucos momentos descerás ao
convívio das potências infernais.
Lançou-lhe rancoroso olhar e rematou, depois de ligeiro intervalo:
— Desgraçado, não temes?
O escravo, parecendo envolvido em vigorosas forças espirituais, fitou-o,
com tristeza, e esclareceu:
81
— Senhor, os que vão morrer colocam-se àfrente da verdade... Dói-me o
coração reconhecer a esposa e as filhinhas humilhadas pelo incerto destino
que as espera na Terra, entretanto, entrego-as nesta hora ao Juiz do Céu. Hoje
podeis sentenciar. A casa, o solo, o arvoredo e o ouro permanecem em vossas
mãos. Amanhã, porém, sereis chamado à prestação de contas nos tribunais
divinos. Onde estão aqueles que, em outro tempo, perseguiram e
condenaram? Arrojaram-se todos ao mesmo pó em que se confundem os
servos e os senhores. As liteiras da vaidade e do orgulho consomem-se no
tempo... Não temo a morte, que para vós é enigma e mistério, e para mim é
libertação e vida...
A grande assembléia escutava com insopitável torpor de assombro.
Opílio, manietado talvez por fios intangíveis, jazia imóvel como o bastão
lavrado em que se apoiava, por nota marcante de sua autoridade doméstica.
— Comentais a lamentável situação de minha companheira e de minhas
filhas — continuou Rufo, depois de curto intervalo —, em vista de vossa
resolução, exilando-as para outras terras, no entanto, com o respeito que a
vossa família sempre nos mereceu, sou levado a perguntar por vossos
antepassados... Onde viverão hoje vossos pais? Os títulos do patriciado não
exoneraram vossos avoengos dos deveres para com o sepulcro. Sois tão
separado deles, como serei doravante dos meus... E, enquanto a vossa
saudade vagar como sombra inútil, corvejando sobre os vossos dias, a dor de
minha mulher tanto quanto a minha própria dor produzirão em nós a
confortadora certeza de estarmos cooperando na edificação de um mundo melhor...
Somos escravos, sim, nascidos sob o jugo pesado de cruel cativeiro,
contudo, nosso espírito é livre para adorar a Deus, segundo a nossa compreensão.
Antes de nós, companheiros outros conheceram o martírio... Quantos
terão sido assassinados nos circos, nas cruzes, nas fogueiras e nos tribunais?
quantos terão demandado o túmulo, carregando espinhosos fardos de
aflição!... Entretanto, nossos corações feridos, como o lenho atirado ao fogo,
alimentam a chama do idealismo santificante que iluminará a Humanidade!
Nossos filhos jamais estarão órfãos. Tutelados do Cristo, no mundo,
constituem a herança abençoada de nossa fé, destinada ao grande futuro... A
felicidade celeste habita conosco nos cárceres da Terra. Nossos padecimentos
são semelhantes às sombras ralas da madrugada que se misturam à luz
nascente de novo dia!...
O prisioneiro fitou Vetúrio, de frente, com valorosa serenidade, e afirmou
sem afetação:
— Vós, porém, romanos dominadores, tremei, enquanto rides! Jesus reina,
acima de César!...
Vencendo a lassidão que o dominava, Opílio Vetúrio agitou os braços e
clamou:
— Cala-te! nem mais uma palavra! Epípodo, o chicote!...
O capataz estalou o rebenque no rosto do escravo enobrecido, enquanto
Vetúrio, em poucas palavras, concluía o negócio com o mercador.
Dioclécia e as filhinhas foram cedidas a preço ínfimo.
Enquanto o potro bravio era aparelhado, a esposa do mártir tentou lançarse
nos braços dele, mas algumas companheiras afastaram-na, com as
meninas, para recanto próximo.
Rufo ia ser atado à cauda do animal que relinchava, escouceante, quando
Berzélio, o comprador de cativos, abeirou-se dele e ciciou-lhe aos ouvidos:
82
— Tua família encontrará um lar em nossa casa da Aquitânia. Morre em
paz, eu também sou cristão.
Pela primeira vez, naquele dia de terríveis recordações, belo sorriso
estampou-se no semblante do mártir.
Mais tarde, algumas mulheres piedosas da igreja lhe recolhiam os despojos
em matagal próximo.
Emancipara-se Rufo para servir com mais segurança aos desígnios do
Senhor.
Da elevada janela dos seus aposentos de exílio, Cíntia acompanhara a
cena horrenda. Vendo o animal desembestar pelo bosque, arrastando a vítima
indefesa, desmaiara de pavor.
Escravas de confiança, orientadas por Helena, aflita, iam e vinham na
azáfama do socorro. Taciano esqueceu as visitas e colocou-se ao lado da
enferma, acabrunhado e abatido.
Duas horas de expectativa correram pesadas e tristes.
Depois de muitas massagens e de vários excitantes nas narinas, a senhora
acordou, mas, para espanto de todos, desferia estranhas gargalhadas.
Cíntia Júlia estava louca...
A família Vetúrio, desde então, cobriu-se de provas inquietantes.
Um ano decorreu sem novidades de vulto.
Excursões diversas nas Gálias foram efetuadas com a doente, na
companhia de Opílio e Taciano, em busca de melhoras que não apareceram.
Médicos e oráculos famosos foram consultados sem proveito.
Não obstante reforçado o serviço de vigilância em casa, a guarda da
enferma tornou-se mais difícil.
De quando em quando, era encontrada a falar consigo mesma, em voz
alta, com evidente alienação mental, mais acentuada.
Certa feita, burlando as sentinelas, caminhou para um velho tugúrio, onde o
irmão Corvino socorria os sofredores.
Quinto Varro orava com a destra suspensa sobre duas crianças paralíticas,
quando notou a presença da mulher amada, que ele, de pronto, identificou.
Irreprimível amargura envolveu-lhe o coração.
Cíntia era apenas uma sombra.
O corpo descarnado, as rugas numerosas, a cabeleira quase branca e os
lábios torcidos desfiguravam-na desapiedadamente.
Fixou-o, a princípio, com indiferença, mas observando-o sozinho, tão logo
se haviam retirado as visitas, iluminou-se-lhe a expressão de fé e confiança.
Acercou-se, respeitosamente, do apóstolo e rogou, humilde:
- Pai Corvino, há muito tempo ouço referências ao vosso trabalho. Sois um
intérprete de Jesus! Valei-me, por piedade! Sinto-me doente, cansada de
tudo...
E, provavelmente porque reparasse a perplexidade do benfeitor,
acrescentou, precipitada:
— Não me conheceis? Sou a segunda esposa de Opílio Vetúrio, um dos
inimigos dos cristãos! A família declara-me dementada... Oh! sim, quem sabe?
que pode fazer uma pobre mulher senão enlouquecer quando se vê
plenamente ludibriada pela vida? poderá o coração vencer as dores irremediáveis?
como conseguirá uma árvore resistir ao raio que a destrói? já vistes
alguém sustar a corrente de um rio com um simples ramo de parra? Noutro
tempo, fui a esposa de um homem que não soube compreender e sou mãe de
83
um filho que me não entende... Estou exausta... Errei, preferindo o inferno do
ouro, quando Deus me oferecia o paraíso da paz... Desprezei o companheiro
que realmente me queria para a glória do espírito e julgaram-me senhora de
robusto juízo... Agora, procuro recuperar minhalma e tratam-me por louca...
Estou farta de ilusões... Quero a bênção do Cristo consolador... Aspiro à
renovação...
A infortunada matrona enxugou as lágrimas, ante o missionário que a
fitava, aterrado e enternecido, e continuou:
— Avaliareis, por acaso, o sacrifício do coração materno, alimentando um
filho, dia a dia, orvalhando-o com o pranto de sua dor e fortalecendo-o com os
raios de sua alegria, para vê-lo, em seguida, conscientemente entregue à
ferocidade? Podereis imaginar os padecimentos da mulher que, vítima de si
mesma, permanece situada entre o desencanto e o remorso, ferida nas
menores aspirações? Ah! pai Corvino, por quem sois! compadecei-vos de
mim!... Desejo buscar o Mestre, mas estou condenada a respirar entre os
ídolos que me enganaram... Socorrei a minhalma que sangra!...
Ajoelhou-se como quem nada mais poderia dar de si própria senão a
suprema humildade e, com surpresa, verificou que o irmão dos infelizes tinha
lágrimas abundantes.
— Chorais? — bradou a enferma, perplexa —só um emissário do Senhor
pode assim proceder... Sou culpada! culpada!...
Lançando os olhos para o alto, começou a gritar com manifesto
desequilíbrio:
— Perdoai-me, ó meu Deus! meus pecados são enormes. Tenho crimes
que provocam o pranto dos vossos escolhidos!... Malditos os deuses de pedra
que nos arrojam aos despenhadeiros da ignorância! malditos os gênios do
egoísmo, do orgulho, da perversidade e da ambição!...
Quinto Varro, que a fisionomia envelhecida e a longa barba tornavam
irreconhecível, inclinou-se para ela e, dominado pelo carinho espontâneo, murmurou:
— Cíntia! espera e confia!... Deus não nos esquece, ainda mesmo quando
sejamos induzidos a esquecê-lo...
Estranho fulgor estampou-se no semblante da enferma, que lhe cortou a
palavra, exclamando:
— Oh! esta voz, esta voz!... quem sois? como soubestes meu nome sem
que eu vo-lo dissesse? Sereis, acaso, um fantasma que regressa do túmulo ou
a sombra de um homem que morreu sem nunca estar morto?
O missionário afagou-a com ternura e osculou-lhe os cabelos, copiando,
instintivamente, os gestos da mocidade.
Perplexa, a matrona recuou, exibindo no olhar profunda lucidez, qual se
fôra repentinamente chamada à realidade pela grande emoção...
Fixou o interlocutor, de frente, com inexprimível espanto, e gritou:
— Varro!...
Na inflexão com que pronunciara aquele simples nome, colocara todo o
amor e todo o assombro que era capaz de sentir.
O apóstolo, no entanto, debalde aguardou a frase que se lhe apagara nos
lábios descoloridos.
Cíntia contemplou-o por momentos curtos, emudecida, mantendo na
expressão fisionômica a extática felicidade de quem encontra um tesouro há
longo tempo acariciado...
84
Um peregrino da fé religiosa que surpreendesse o paraíso não revelaria
maior ventura que a daquela face transfigurada por suprema alegria interior.
O quadro inolvidável, porém, foi breve como um relâmpago dentro da noite.
Destrambelhado o coração pelo júbilo do reencontro, a pobre senhora
empalideceu repentinamente, os órgãos visuais arregalaram-se-lhe nas órbitas
e o corpo oscilou, desgovernado.
Varro, aflito, correu a ampará-la.
A agonizante aquietou-se-lhe nos braços com a submissão de uma criança.
O valoroso patrício, que a fé metamorfoseara em sacerdote, rociando-lhe o
rosto de lágrimas, cerrou-lhe os olhos, piedosamente.
Cíntia Júlia morrera como um passarinho, sem estertores, sem contrações.
Apertando-a, de encontro ao coração, Quinto Varro soluçou, balbuciando
uma prece.
— Senhor! — clamou ele — tu, que nos reúnes com bondade, não nos
separarias para sempre!
Amigo Divino, que nos concedes a luz do dia depois das sombras da noite,
dá-nos serenidade, finda a tormenta!... Ampara-nos o coração desarvorado nos
tortuosos caminhos do mundo e abre-nos o horizonte da paz! Tantas vezes
morremos nas trevas da ignorância, mas a tua compaixão nos ergue, de novo,
à claridade divina! Nada posso pedir-te, servo que sou agraciado por tantas
bênçãos imerecidas, mas, se possível, rogo-te proteção para quem hoje te
busca, com o espírito sedento de amor, Ó Mestre de nossas almas, socorrenos
na solução de nossas necessidades! Nada podemos sem a tua luz!...
Sufocado pela comoção, silenciou.
A oração falada morrera-lhe na garganta, mas o espírito fervoroso
prosseguiu em súplica silenciosa, que somente foi interrompida à chegada de
um irmão que o auxiliou a prestar as derradeiras expressões de carinho à
morta, cujos lábios se entreabriam, imóveis, num sorriso indefinível.
Um mensageiro de confiança foi expedido ao palácio de Vetúrio, mas,
temendo represálias, o emissário apenas notificou que a senhora, vítima de
inopinado mal-estar, exigia imediata assistência.
A notícia foi recebida desagradàvelmente.
Aquela fuga para o círculo cristão era detestável acontecimento.
Epípodo, o chefe da vigilância, foi advertido com severidade e um homem da
estima familiar, à frente de vários cooperadores, foi incumbido de superintender
a remoção da enferma para a casa.
Esse homem era Flávio Súbrio.
O velho soldado procurou o irmão Corvino e, surpreendido por aquela voz
que não lhe parecia estranha, veio a conhecer a deplorável ocorrência.
Lançando olhares desconfiados para o apóstolo, que tinha nome idêntico
ao da vítima que ele nunca esquecera, providenciou, respeitoso, o transporte
do cadáver, que Varro ajudou carinhosamente a instalar na carruagem,
convertida em coche mortuário.
Infinita consternação envolveu a residência romana, outrora fulgurante e
feliz, e, ao entardecer, um pelotão de legionários cercou o casebre em que o
irmão Corvino meditava...
Vetúrio reclamara-lhe a prisão para o inquérito que pretendia instaurar.
O presbítero foi acintosamente recolhido e encarcerado sem a menor
consideração.
O martírio supremo de Quinto Varro ia começar.
85
7
Martírio e amor
Atirado ao calabouço, o irmão Corvino passou a experimentar os efeitos da
implacável perseguição de Opílio Vetúrio.
Ordenações dos assessores de Maximino começaram a aparecer,
recomendando o suplício dos chamados «desordeiros galileus».
Artêmio Cimbro e alguns outros patrícios influentes embalde tentaram opor
resistência à chacina criminosa, porque o deplorável movimento alastrou-se,
irrefreável.
Álcio Noviciano, velho guerreiro da Trácia, chegou à cidade, em companhia
de alguns frumentários, na posição de enviado do tirano que comandava o
poder, sendo recebido festivamente.
Exibições no anfiteatro da cidade foram organizadas com esmero.
O amigo de Maximino era portador de cartas diversas às autoridades
lugdunenses, recomendando o maior rigor no castigo aos seguidores do culto
nazareno e, a fim de corresponder às mensagens ilustres, dezenas de plebeus
foram lançados à sanha carnívora de feras africanas, ao som de músicas
alegres.
O benfeitor dos pobres, entretanto, e outros prisioneiros altamente
categorizados pela opinião pública foram reservados a interrogatório dirigido
pelo destacado visitante.
No dia justo, o tribunal de audiências regurgitava de povo.
Vastas galerias jaziam apinhadas de gente.
Todos os adversários da nova fé como que se congregavam ali, para a
ironia e o escárnio.
Renteando quase com o embaixador do imperante, Opílio, Galba, Taciano
e Súbrio acompanhavam o desenrolar dos acontecimentos com sombrio
aspecto.
Vetúrio, denunciando no rosto envelhecido as extremas aflições que o
atormentavam, revelava-se inquieto, levando a destra aos olhos, de momento a
momento, evidenciando a emotividade de que se via possuído, enquanto
Taciano, recordando o enfermeiro abnegado, mostrava no semblante um misto
de compaixão e desprezo. Caracterizava-se Galba pela frieza habitual, mas
Flávio Súbrio, não obstante decrépito, espreitava os menores rumores do largo
recinto, com a vivacidade de um felino, parecendo disposto a registrar as
mínimas particularidades do espetáculo.
O irmão Corvino, escoltado por guardas numerosos, apareceu no grande
salão.
Esquelético e descorado, falava, sem palavras, da fome que curtia no
cárcere. No pulso, trazia feridas rubras e, na face, sinais de chicotadas revelavam
o martírio nas celas, onde legionários ébrios costumavam realizar
exercícios de crueldade, mas os olhos do condenado como que se mostravam
mais brilhantes. Não era só a paciência que se irradiava deles, demonstrandolhe
a grandeza espiritual, mas também uma superioridade indefinível,
misturada de compreensão e piedade pelos verdugos.
À frente do missionário, os representantes da casa de Opílio fizeram-se
pálidos.
Imprecações reboaram de todos os lados, acirrando os ânimos contra o
apóstolo indefeso.
86
— “Abaixo o feiticeiro! morte ao assassino! suplício ao matador de
mulheres e crianças!.
Impropérios como esses eram bramidos à solta por centenas de lábios
duros e espumejantes.
Quinto Varro, porém, que a consciência tranquila parecia coroar de
imperturbável serenidade, passeou o olhar calmo e bondoso pela assembléia
irritada e a multidão aquietou-se, de chofre, qual se fôra dominada por força
irresistível.
O próprio Álcio, habituado à agressividade da caserna, estava
surpreendido.
Levantou-se, imponente, e tentando, em vão, assumir o aspecto respeitável
de um magistrado, arengou, por alguns minutos, salientando as preocupações
do governo na eliminação do culto proibido e advertindo os cidadãos contra a
ideologia religiosa que pretendia confundir escravos e senhores.
Em seguida, dirigiu-se solenemente ao presbítero, notificando:
— Creio-me exonerado de qualquer consideração para com os prisioneiros
sem títulos que os recomendem ao respeito do Estado, contudo, tantos
empenhos foram interpostos, junto de minha autoridade, em vosso favor, tantas
famílias aristocráticas se interessam por vosso destino, que me sinto no dever
de ajuizar quanto à vossa situação com especial benevolência.
Corvino escutava o legado, serenamente, mas insopitável inquietude
dominava a multidão.
— Sois acusado de haver provocado a morte de uma criança — prosseguiu
Novaciano, empertigado —, para cultivar sortilégios malignos, e de haver
assassinado uma distinta dama patrícia, doente e irresponsável, depois de
atraí-la, provavelmente com promessas de cura imaginária. Todavia,
ponderando as solicitações de vários principais, dignar-me-ei analisar o
processo alusivo às culpas referidas, tratando-vos como cidadão do Império,
mas, antes de tudo, desejo certificar-me de vossa fidelidade às nossas
tradições e princípios, de vez que sois indicado como membro da seita
renegada, para cuja extinção não possuímos outros recursos que não sejam o
exílio, a punição ou a morte.
Fêz ligeiro intervalo, fixou o presbítero de frente, buscando, em vão,
suportar-lhe o olhar confiante e calmo e inquiriu:
— Em nome do Imperador Maximino, exorto-vos a jurar lealdade aos
deuses e obediência às leis romanas!
Varro, concentrado em si mesmo, evidenciando longa distância espiritual
da atmosfera de crueldade e pequenez que predominava no recinto, respondeu
com firmeza e simplicidade:
— Ilustre legado, consoante as lições do meu Mestre, sempre dei a César o
respeito que César espera de mim, no entanto, não posso sacrificar aos ídolos,
porque sou cristão e não desejo abandonar minha fé.
— Que ousadia! — exclamou Novaciano, encolerizado, enquanto o
populacho prorrompia em gritos: — “morte ao traidor! degolem o celerado!...”
O religioso, porém, não expressou a mínima alteração facial.
O juiz agitou pequeno martelete de bronze, exigindo silêncio, e voltou a
interpelar:
— Sois atrevido até ao insulto?
— Rogo-vos desculpas se a minha palavra incomoda, no entanto, indagais
e respondo por minha vez.
87
A atitude serena e digna de Corvino de novo impusera quietação à grande
assembléia.
Álcio enxugou o suor copioso que lhe corria da fronte enrugada e tornou:
— Confessais, então, vosso conúbio com a seita maldita dos nazarenos?
— Não vejo qualquer maldição nela — replicou o preso, sem azedume —,
os seguidores do Evangelho são amigos da fraternidade, do serviço, da
bondade e do perdão.
O emissário de César passou a destra pela calva oleosa, brandiu um
bastão de prata no estrado em que se apoiava e bradou:
— Sois apenas velha quadrilha de mentirosos! que fraternidade poderia
ensinar-vos um galileu desconhecido que vos induz ao suplício, há quase
duzentos anos? que serviço prestaríeis à coletividade, pregando a indisciplina
entre os escravos com falaciosas promessas de um reino celestial? que
bondade exerceríeis, conduzindo mulheres e crianças ao espetáculo sangrento
dos circos? e que perdão conseguireis exemplificar, quando o vosso heroismo
não passa de vileza e humilhação?
Varro percebeu a dureza intelectual do inquiridor e objetou:
— Nosso Mestre padeceu na cruz por sentir-se o irmão maior da
Humanidade, necessitada, não de força bruta ou de violência, mas de valor
moral para compreender a grandeza do espírito eterno; o serviço para nós não
é a exploração do homem pelo homem e sim o livre acesso da criatura ao
trabalho para o engrandecimento dos méritos pessoais de cada um; a
bondade, em nosso campo de ação, é...
Álcio, entretanto, cortou-lhe a palavra, gesticulando, furioso:
— Calai-vos! porque aturar o vosso sermão sem nexo? Ignorais,
porventura, que posso decidir sobre o vosso destino?
— Nossos destinos jazem nas mãos de Deus! — retorquiu Varro, sereno.
— Sabeis que posso lavrar a vossa sentença de morte?
— Respeitável legado, o poder transitório do mundo está em vossas
determinações. Obedecei a César, ordenando o que vos aprouver! Obedecerei
a Cristo, submetendo-me à vossa vontade.
Novaciano trocou expressivo olhar com Vetúrio, como se estivessem
acertando, em silêncio, os pontos de vista que lhes eram comuns e clamou:
— Não tolero o sarcasmo!...
Convocou um dos assessores e recomendou que o prisioneiro recebesse
três chicotadas de relho curto na boca.
Um guarda de aspecto feroz foi o escolhido.
Varro, enquanto açoitado, parecia em oração.
O sangue borbotava-lhe dos lábios, escorrendo sobre a túnica humilde,
quando um jovem, aproximando-se, ajoelhou-se, junto dele, e exclamou em
pranto:
— Pai Corvino, eu sou teu filho! Recolheste-me quando eu vagava na rua,
sem ninguém! Deste-me uma profissão e uma vida digna... Não sofrerás
sozinho! Estou aqui...
Todavia, no estupor geral que a cena impunha aos circunstantes, o
benfeitor ferido, embora sangrando, inclinou-se para o rapaz e rogou:
— Crispo, meu filho, não afrontes a autoridade! porque te rebelas, assim,
se ainda não foste chamado?
— Meu pai — soluçou o jovem, quase menino —, também quero o
testemunho! desejo provar minha fidelidade ao Senhor!...
88
E, voltando-se para o representante de César, declarou:
— Eu também sou cristão!
Corvino acariciou-lhe os cabelos em desalinho e continuou:
— Esqueceste que a maior exemplificação dos seguidores do Evangelho
não é a da morte e sim a da vida? Não sabes que Jesus espera de nós a lição
do amor e da fé onde respiramos? Meu testemunho no tribunal ou no anfiteatro
será dos mais fáceis, mas poderás honrar o nosso Mestre, de maneira mais
sacrificial e mais nobre, trabalhando por ele, em benefício dos nossos irmãos
em Humanidade e por ele sofrendo, dia a dia... Vai em paz! Não desrespeites o
mensageiro do Imperador!...
Como se o ambiente estivesse magnetizado por forças intangíveis, o moço,
enxugando as lágrimas, saiu sem ser molestado por ninguém.
Tornando a si da surpresa que o senhoreara, Novaciano reergueu a voz e
considerou:
— O legado de Augusto não pode perder tempo. Sacrificai aos deuses e o
processo que vos envolve o nome será examinado atenciosamente..
— Não posso! — insistiu Corvino, sem afetação — sou adepto do
Cristianismo e nessa condição desejo morrer.
— Morrereis então! — gritou Álcio, indignado. E assinou a sentença,
indicando o campo próximo em que o prisioneiro seria decapitado no dia
seguinte, ao amanhecer.
Varro escutou-a, sem modificar-se.
A fé e a tranquilidade imperturbáveis fulgiam-lhe no semblante.
Na assembléia, contudo, reinava amplo mal-estar.
Opílio e Galba abraçaram o legado com visíveis sinais de satisfação.
Taciano, porém, sentia-se inexplicavelmente angustiado, lutando consigo
mesmo para sobrepor-se a qualquer ato de simpatia. As conversações que
mantivera com o enfermeiro em outro tempo afloravam-lhe à memória. Aquele
homem ultrajado e abatido impunha-se-lhe à admiração, ainda mesmo contra a
sua própria vontade. Tudo faria para não pensar, mas a grandeza moral dele
confundia-o e o chamava à reflexão. Instintivamente, inclinava-se a defendê-lo,
contudo, não seria lícito conceder a si mesmo tal aventura. Corvino poderia ser
um gigante de heroismo, mas era cristão, e ele, Taciano, detestava os
nazarenos.
Afastou-se alguns passos, a fim de apreciar soberba estátua de Têmis que
jazia no recinto, mas alguém correu ao encontro do condenado, que voltava à
prisão, resignadamente.
Esse alguém era o velho Flávio Súbrio, que se abeirou do religioso e disselhe
em voz baixa:
— Reconheço-te! Agora, não alimento qualquer dúvida... Vinte anos não me
fariam olvidar-te!...
Quinto Varro lançou-lhe dolorido olhar, sem nada responder.
O antigo lidador, todavia, recebeu-lhe o silêncio como sendo a confirmação
que aguardava e, contendo a custo o pranto que lhe enevoava os olhos,
segurou-lhe as mãos que pesadas algemas enlaçavam e acentuou:
— Meu amigo, não teria sido mais suave a tua morte no mar? como me
pesa haver cooperado para o teu sacrifício! como lastimo a tua infortunada
sorte, observando o fardo de angústia que te verga os ombros!...
O interpelado, porém, sorriu, triste, e replicou:
— Súbrio, a escravidão a Jesus é a verdadeira liberdade, tanto quanto a
89
morte, em companhia do nosso Divino Mestre, é a ressurreição para a vida
imperecível! Só um fardo deveremos temer — o da consciência culpada!...
E, reparando-lhe, com surpresa, as lágrimas de sincera compunção, que
não chegaram a transbordar, acrescentou:
— Se procuras agora algum meio de acesso
à verdade, não deixes para amanhã o teu encontro
com o Cristo. Faze alguma coisa por tua salvação
e o Senhor fará o resto...
Nesse instante, porém, o chefe de vigilância, acreditando que Súbrio
insultava o prisioneiro, abeirou-se de ambos e vociferou, sarcástico:
— Nobre romano, deixa comigo este feiticeiro! Prepará-lo-ei a bastonadas
para o espetáculo de amanhã...
E antes que Súbrio, estupefato, pudesse mover-se, Varro foi arrastado, de
novo, para o cárcere.
Desde esse momento, porém, o velho guerreiro em disponibilidade pareceu
tomado de incompreensível perturbação.
Desligou-se dos amigos íntimos, dirigiu-se apressadamente à herdade,
retirou de antigo cofre todas as peças de ouro que possuía e voltou ao centro
da cidade, procurando os companheiros do irmão Corvino.
Nos arredores da igreja, num telheiro abandonado, encontrou Ênio Pudens,
por indicação de algumas mulheres piedosas.
Deu-se a conhecer ao clérigo respeitável e entregou-lhe, para a igreja de
São João, todo o dinheiro que pudera amealhar, durante anos, rogando-lhe
abençoar as suas novas resoluções.
Ênio, comovido, orou em companhia dele, deprecando a assistência
celestial e confortando-o com generosas palavras de bondade, compreensão e
fé.
Apesar de semelhante socorro, o velho soldado parecia diferente,
abstraído, dementado...
Em vão, Opílio procurou-o em casa, debalde Taciano buscou-lhe a
companhia.
Súbrio retirara-se para o campo, mantendo-se em meditação, a
reconsiderar os caminhos percorridos.
Tornou ao ambiente doméstico, nas primeiras horas da madrugada, mas
não conseguiu acalmar-se.
Quando Vetúrio veio acordá-lo, para seguirem juntos, no rumo do campo
da execução, já havia seguido para o local, onde Galba e o pai a ele se
reuniram.
Taciano absteve-se. Alegou súbita indisposição orgânica, a fim de subtrairse
ao espetáculo. Não desejava enfrentar a presença de Corvino, cuja
serenidade o molestava.
Não obstante a hora matutina, vasta multidão se aglomerava na praça livre,
não faltando grande número de personalidades eminentes, inclusive Novaciano,
que se sentira fortemente impressionado com a resistência moral do
prisioneiro.
Atendidas as formalidades, então vigentes, o representante de Maximino
ordenou ao carrasco se aproximasse.
O irmão Corvino, evidenciando indescritível ansiedade no olhar percuciente
e límpido, fitava o grupo de Opílio, à procura de alguém que não aparecia...
Pesados momentos transcorreram.
90
A Natureza, como que indiferente aos crimes e aos infortúnios dos homens,
engalanava-se de luz.
O Sol coroava a paisagem com raios de ouro, enquanto o vento cantava,
em sopros frescos, carreando para longe a fragrância das ramarias em flor.
Entristecido, de vez que não conseguira surpreender Taciano na
assembléia popular que o rodeava, Quinto Varro passou à oração silenciosa.
Espiritualmente distanciado do ensurdecedor vozerio, observou que vultos
luminosos o acariciavam... Lembrou-se, insistentemente, do venerando Corvino
e sentiu-se consolado com a perspectiva de igualmente morrer na reafirmação
de sua fé... Procurava aguçar os sentidos para penetrar com segurança no
mundo invisível, quando escutou os gritos estentóricos de alguém, junto dele.
Era Flávio Súbrio que bradava, possesso:
— Eu também sou cristão! Abaixo os deuses de pedra! Viva Jesus! Viva
Jesus! Prendam-me! Prendam-me com razão! Sou um assassino que se
transforma! Já matei muitos! Matem-me agora também!... Infelizes romanos,
porque converterdes a honra dos antepassados num rio de sangue! Somos
todos celerados sem remissão! Quero, por isso, a nova lei!...
Em meio da perplexidade geral, Vetúrio abeirou-se do aristocrático visitante
e informou:
— Ilustre Novaciano, apresse a execução. Flávio Súbrio é comensal de
minha casa, há muitos anos, e acaba de enlouquecer, talvez, em razão da
idade avançada. Incumbir-me-ei de afastá-lo, sem qualquer inconveniência.
A ordem foi expedida.
O condenado ajoelhou-se.
Artêmio Cimbro, que ninguém ousava incomodar, em virtude das suas
prerrogativas, aproximou-se dele, valorosamente, e cobriu-lhe o rosto com
pequena toalha de linho tenuíssimo, a fim de que a cena brutal lhe não ferisse
a visão.
Glabro Hércules, antigo gladiador do anfiteatro, agora convertido em
verdugo, ergueu o gládio, com mãos trêmulas, descendo o instrumento sobre o
pescoço da vítima. Todavia, poderes invisíveis atuavam para que o gume da
espada não atingisse o lugar visado. Havendo desferido o terceiro golpe,
recebeu do legado de César a determinação de sustar o Serviço.
Existia uma lei, proibindo o quarto golpe em qualquer decapitação.
Quinto Varro, banhado em sangue, foi, por isso, transferido para o
calabouço, onde, agora, lhe assistia o direito de morrer lentamente.
Vetúrio acompanhou as mínimas particularidades do quadro terrível, sem
alterar-se, e quando voltou a procurar por Flávio Súbrio, que se distanciara
para não ver a horrenda exibição, não mais o encontrou.
O cliente de Opílio tomara um carro e voltara, rápido, para casa.
Profundamente transtornado, quase irreconhecível, convocou Taciano a
entendimento particular e passou a narrar-lhe o passado, sintetizando quanto
possível.
O moço patrício, boquiaberto e aterrado, ouvia-lhe as reminiscências,
quando Vetúrio chegou suarento e aflito, e, adivinhando o que se passava,
tentou interrompê-lo.
— Flávio Súbrio enlouqueceu! — rugiu irado.
— Não, Taciano, não! — protestou ele, em voz firme — meu juízo não está
desequilibrado! Minha saúde nunca foi tão robusta quanto agora! Minha
consciência apenas acorda para justiçar a si mesma. Tenho crimes sobre
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crimes! Não perpetrarei mais esse — o de ocultar-te a realidade. Corre ao
campo da execução e, se teu pai ainda vive, não lhe prives do teu carinho à
última hora! Seguirei contigo, seguirei contigo!.
Opílio, desesperado, revelando comprometedor desequilíbrio que, de modo
algum, se coadunava com o seu temperamento calculado e cortês, interferiu,
gritando:
— Cão, recua! Não quebrarás a harmonia de minha casa! Não
menosprezes a memória do pai de Taciano, que sempre nos foi extremamente
sagrada!...
Com as veias intumescidas, denunciando a emotividade que lhe oprimia a
alma, Súbrio estampou feroz expressão na fisionomia, dantes fleumática e
impenetrável, e retorquiu:
— Não é verdade, Taciano! Opílio recomendou-me apunhalar Quinto Varro
sobre as águas, mas, por gratidão ao passado, poupei-o, assassinando um
apóstolo que o acompanhava e que, certamente, lhe legou o nome. Ainda que
eu morra, estou agora mais aliviado, quase feliz. Extravasei o fel que me
envenenava o coração, expeli algo de minha própria baixeza... Mas, não
percamos tempo, sigamos!
Vetúrio, porém, de imediato, cingiu-lhe a cintura e imobilizou-lhe os braços,
chamando os servos, alarmado e lívido.
Escravos musculosos, em obediência ao amo, trancafiaram-no em
aposento primorosamente mobilado, mas escuro e triste.
O lidador do pretérito, não obstante a senectude, mostrava naquela hora a
agilidade de um tigre posto a ferros, tentando reagir à altura da agressão.
Todavia, antes que Opílio e o esposo de Helena se retirassem, Súbrio
calou-se, inexplicavelmente.
Brilhavam-lhe, agora, os olhos, tomados de estranha lucidez, e,
transcorridos alguns instantes, falou, pausadamente:
— Taciano, minha história é a versão real dos fatos. Algo me diz ao espírito
que teu pai ainda não partiu. Vetúrio encarcerou-me, supondo asfixiar a
verdade... Naturalmente, acredita que poderá reter-me, quanto fêz com tua
desventurada mãe, entretanto, engana a si mesmo, mais uma vez... e já que
me sinto impossibilitado de uma confissão, à frente do legado de Augusto, a fim
de receber o castigo que mereço, morrerei para que creias em mim! Troco
minha vida prejudicial e inútil pelos momentos de consolo que Varro nos
merece...
Opílio desferiu uma risada nervosa, reiterando a convicção de que o
companheiro delirava.
Súbrio, no entanto, continuou calmo, dirigindo-se ao rapaz:
— Quando eu tiver punido a mim mesmo, pondera a minha revelação e não
vaciles...
Vetúrio, porém, impediu qualquer novo entendimento. Arrastou o genro
para o interior doméstico, convidando-o a preparar-se para a refeição.
No triclínio, buscou dissipar a tristeza do filho adotivo, ensaiando
conversação alegre e calmante, e, findo o repasto, passaram a breve repouso
em amplo terraço, ambos procurando distração e refazimento.
Quando o filho de Cíntia parecia mais animado, eis que surge Epípodo,
muito pálido, anunciando que o velho Súbrio se dependurara na grade mais
alta da câmara-prisão.
Enteado e padrasto entreolharam-se, apavorados.
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Correram, instintivamente, ao quarto sombrio c encontraram o corpo do
velho amigo a pender, inerte, de grossas vigas de madeira.
O antigo soldado cumprira a palavra, suicidando-se.
Taciano, então, qual se estivesse impulsionado por indomável energia, não
mais hesitou.
Afastou-se, presto, na direção da cavalariça e, quando se aboletava em
carruagem ligeira, foi abraçado por Opílio, que declarou:
— Vou contigo. Convencer-te-ás de que o miserável feiticeiro está morto e
de que Súbrio foi simplesmente vítima de loucura e ilusão.
O Sol das primeiras horas da tarde dardejava por entre as frondes dos
gigantescos carvalhos que protegiam o caminho pelo qual os dois associados
do destino seguiam silenciosos, ruminando, mentalmente, as próprias
reflexões. Contudo, enquanto Taciano, jovem e vigoroso, se perdia num
abismo de indagações, Opílio, encanecido e inquieto, afundava-se em
dilacerantes sofrimentos. Como escapar aos dissabores daquela hora, se o
condenado ainda estivesse vivo? como reaver a confiança do genro, se a
palavra de Súbrio fôsse confirmada?
À porta da enxovia, foram recebidos pelo administrador da prisão, com
especiais deferências, que, loquaz e gentil, informou achar-se o irmão Corvino
moribundo...
A pedido de Artêmio Cimbro, o carcereiro Edúlio prestava-lhe assistência,
mesmo porque o generoso patrício obtivera permissão para sepultar-lhe o
corpo, tão logo expirasse.
Opílio, trêmulo, rogou licença para visitarem o agonizante a sós, sendo
imediatamente atendido.
Afastado o enfermeiro, ambos penetraram a câmara estreita, onde o
condenado, de olhos imensamente lúcidos, aguardava o instante final.
Finíssimos lençóis, oferecidos por mãos anônimas, apresentavam-se
manchados de sangue.
Os golpes de Hércules tinham-lhe massacrado o omoplata, invadindo o
tórax, que se apresentava aberto.
Taciano, dominado por inenarrável angústia, permutou com ele
inesquecível olhar...
E, de espírito iluminado pela verdade, qual ocorre às grandes almas ao se
avizinharem da morte, Quinto Varro, com esforço, falou-lhe, abertamente:
— Meu filho, supliquei a Jesus não me permitisse a grande viagem, sem
reencontrar-te... Estou convencido de que Flávio Súbrio revelou ao teu coração
todos os sucessos que já se foram...
Porque o rapaz, aterrorizado, se voltasse para Vetúrio, o genitor continuou:
— Já sei... Este é Opílio, que te criou como pai. Compreendo o
constrangimento com que nos ouve, no entanto, rogo a ele me releve esta conversação
de última hora... Ontem, Cíntia ausentava-se da Terra, hoje sou eu...
A essa altura, o moribundo sorriu, conformado. O jovem, todavia,
evidenciando os próprios conflitos mentais, deixou que a emoção lhe extravasasse
do peito, interrogando:
— Se és meu pai, como compreender tamanha serenidade? Se Súbrio foi
verdadeiro, não tens em meu padrasto o maior inimigo? Se Vetúrio mandou
que te assassinassem para usurpar-te o destino de minha mãe, como pudeste
tolerar tão horrível situação, quando uma simples palavra tua conseguiria
clarear qualquer dúvida? Ó deuses, como vencer o tenebroso labirinto?.
93
O sentenciado, porém, recompondo a expressão fisionômica, tentou
esboçar um gesto de carinho e acrescentou, reticencioso:
— Taciano, não te perturbes, no justo momento em que nos despedimos.
Não consideres Vetúrio como adversário de nossa felicidade... Lembra-te, meu
filho, do afeto com que te orientou o desenvolvimento... Ninguém alcança a
dignidade pessoal sem abnegados condutores. Olvidas, porventura, o
devotamento com que te consagrou ao teu bem-estar? O agradecimento
sincero é uma lei para os corações nobres e leais. Ainda que fôsse ele um
criminoso comum, merecer-nos-ia respeito pela ternura com que te seguiu os
primeiros passos... Supões devamos identificar nele um inimigo de nossa casa,
entretanto, não poderemos esquecer haver sido ele o homem amado por tua
mãe... Sempre honrei os desejos de Cíntia nas menores particularidades e não
deixaria de compreendê-la numa escolha do coração...
O ferido interrompeu-se, por alguns instantes, readquirindo forças, e
prosseguiu:
— Não me creias transviado do sentimento.
Aprendi com Jesus que o amor, acima de tudo, é o meio de cooperarmos
na felicidade daqueles a quem nos devotamos... Amar é fazer a doação de nós
mesmos... Admito que o pretérito poderia ter sido orientado por outras normas,
entretanto, quem de nós poderá penetrar com segurança a consciência alheia?
que faríamos se estivéssemos no lugar deles? Opilio, decerto, foi querido com
infinito enternecimento pela alma a quem tanto devemos e, talvez por isso
mesmo, não hesitou em manifestar-lhe as mais íntimas aspirações...
— Se devo reconhecê-lo como pai — soluçou o moço, de joelhos —, não
entendo o perdão das ofensas!
Varro afagou-lhe a cabeça e, como que revigorado por forças
extraterrenas, considerou:
— És moço ainda para compreender as tempestades que nos
convulsionam o coração... Eu também comecei a perceber a vida pelas
tradições dos nossos antepassados. Júpiter enfeixava para mim o poder
supremo e acreditei que as criaturas fôssem apenas seres agraciados ou
perseguidos pelo favor ou pelo desagrado dos deuses... Mas depois encontrei
Jesus Cristo em meu caminho e percebi a grandeza da vida a que somos
destinados... Cada homem é um espírito eterno em crescimento para a glória
celestial. Somos felizes ou infelizes por nós mesmos... Por esse motivo, não
avançaremos para diante, sem a bênção da grande compreensão... A justiça
divina observa-nos... Como, pois, nos elevarmos pela virtude sem esquecer as
mãos que nos ferem?... Conforma-te!... O tempo é o calmante de todas as
aflições... Ajuda aos que te atormentam, ampara os que te não entendem...
Quantas vezes o criminoso é apenas infeliz?
Não te arrojes aos precipícios da vaidade e do orgulho!... És moço em
demasia... Podes aceitar o Evangelho do Senhor e realizar obras imortais!...
— Não posso, não posso!... — clamou o rapaz, abeirando-se do desespero
— sinto que não me é possível fugir à verdade! Sou teu filho, sim, mas sou
contra o Cristo... Não admito uma fé que anula o brio e o valor! Se não fôsses
cristão, provavelmente não teríamos atingido este abismo de sofrimento moral!
Morrerei com os nossos antigos orientadores. Consagrei minha total confiança
às divindades, não posso afastar-me do santuário de nossa fé!..
— Não te conturbes! — observou o pai, sereno e bondoso — não seria
agora, nos derradeiros instantes de meu corpo, que terçaria armas contigo, em
94
disputa religiosa...
Começas, presentemente, a viver. Quantos problemas te reserva o futuro?
quantas lições recolherás, em contacto com as dores humanas? enquanto os
nossos velhos deuses se arrojarão ao pó de que se formaram, Jesus viverá
eternamente. Ele te socorrerá em algum ângulo da estrada, como socorreu a
mim!... Amanhã, quando o muro de sombra estiver levantado entre nós,
continuarei velando por teus passos!
Seguir-te-ei a luta, de perto, e voltarei a estar contigo, possivelmente
noutro corpo.
Renasceremos sempre até o aprimoramento integral de nossa alma...
Aqueles que se amam jamais se separam... Morrer não é afastar-se de
maneira irremediável... De uma vida mais livre, podemos acompanhar os seres
amados de nosso roteiro, inspirando-lhes novos rumos... Por enquanto, nada
possuo de mim com que te possa auxiliar, contudo, confio na eficácia da
oração e continuarei implorando a bênção de Jesus, em nosso favor... Não
importa a transitória impossibilidade de crer em que te encontras... Por minha
vez, nada fiz ainda com que possa merecer a divina proteção e tenho recebido,
incessantemente, o amparo celeste...
Espiritualmente, meu filho, somos ainda crianças no grande e abençoado
caminho...
Qual acontece ao menino inconsciente, na infância terrestre, que se
desenvolve sem perceber a grandeza do Sol que nos sustenta, seguimos na
senda humana, ignorando a Infinita Sabedoria que nos ampara e dirige...
Apesar disso, por trás de todos os dons que nos felicitam, vive Deus que nos
criou para o Bem Eterno e que espera por nosso crescimento com desvelos
paternos...
Nesse instante, provavelmente pelo excesso de forças que despendera, o
moribundo caiu em perigosa crise hemorrágica.
Golfava o sangue, copioso, através da boca e das narinas, dificultando a
respiração.
Taciano inclinou-se, então, com filial piedade para o agonizante, buscando
socorrê-lo.
Sentia-se, enfim, tomado de compaixão.
Percebendo talvez o carinho que renascera no espírito do enteado, Vetúrio,
sem dizer palavra, retirou-se, deixando-os a sós. Entretanto, o presbítero não
mais tornou ao entendimento particular com o filho. Quando reabriu os olhos,
trazia-os desmesuradamente abertos, qual se estivessem postos em horizontes
diferentes da vida...
Quinto Varro não mais enxergou o recinto acanhado da clausura. As
paredes do cárcere, ante a visão dele, haviam desaparecido. O duro leito era o
mesmo e podia ver Taciano, junto de si, mas o espaço, em torno, estava
repleto de entidades espirituais.
Dentre todas, o agonizante reconheceu, de imediato, o velho Corvino e o
pequeno Silvano, que o olhavam afetuosamente.
O santo apóstolo que o precedera, na grande viagem da morte, sentara-se
à cabeceira e acariciava-lhe a fronte empapada pelo suor da agonia...
Silvano, por sua vez, fazia-se seguir de algumas dezenas de crianças,
sobraçando delicados instrumentos de música.
Varro estampara, no rosto, largo e belo sorriso.
Dirigindo-se a Corvino, com palavras que o jovem patrício passou a tomar
95
como sendo manifestação alucinatória, falou em voz baixa, estranhamente
reanimado:
— Benfeitor querido, este é o filho de minhalma!... é o doce menino, a
quem me referi, em nossas antigas conversações, em Roma... Cresceu em
outros braços e desenvolveu-se em outro clima!... Ó meu pai, tu sabes que
longas e torturantes saudades me dilaceraram o coração!... Tu sabes como
suspirei por esta hora de compreensão e harmonia!... Contudo, ai de mim! os
que se amam profundamente, na Terra, costumam reencontrar-se no justo
momento da grande separação... Ó pai querido, não me relegues à aflição que
trago no peito opresso... Balsamiza meu espírito ulcerado, sustenta-me para a
viagem da morte!... Dá-me forças, a fim de que eu possa seguir em paz,
avançando no caminho que o Senhor me traçou! Não permitas que os meus
pés venham a vacilar na jornada nova! Daria tudo agora para ficar e desvelarme
pelo filho inesquecido, no entanto, o nosso Divino Mestre honrou-me com o
seu testemunho de confiança!... Devo partir, deixando na retaguarda o fatigado
corpo que me serviu de tabernáculo!... Consola-me, porém, a certeza de que
prosseguiremos ligados uns aos outros pelos laços sublimes do amor que, em
toda a parte, é a herança gloriosa de Nosso Pai Celeste!... Perdoa-me a
insistência com que me prendo a Taciano, nos minutos supremos de minha
despedida da Terra!... Ele ainda está moço e inexperiente... Não tem ainda
suficiente altura espiritual para compreender o Evangelho, mas o futuro nos
auxiliará a vê-lo triunfante... Abnegado Corvino, não o abandones!... Ajuda-o a
refletir na grandeza da vida e a descobrir a luz do conhecimento cristão!...
O agonizante fêz longo intervalo, enquanto o rapaz lhe afagava as mãos,
sufocando as lágrimas.
Em seguida, retomou a palavra, exclamando:
— Sei que só a meditação na magnanimidade do Eterno devia ser agora o
meu pensamento único... Sei que só a Infinita Bondade do Senhor pode suprir
o vazio de minha insignificância, contudo... Taciano é meu filho e Jesus nos
prometeu ilimitado perdão quando muito amássemos!... Taciano...
O mártir parecia interessado em prosseguir e o filho mostrava-se ansioso
em continuar escutando, mas a resistência de Varro chegara ao fim...
O moribundo emudecera.
Somente os olhos, fitos no jovem angustiado, falavam sem palavras do
carinho e da inquietação que lhe vagueavam na alma.
Foi então que Silvano e a multidão dos meninos que o acompanhavam
cercaram-lhe a enxerga humilde e começaram a cantar...
Quinto Varro ouviu o velho hino, simples e terno, que ele mesmo
compusera para felicitar os visitantes de sua escola, enquanto as crianças repetiam:
Companheiro,
Companheiro!
Na senda que te conduz,
Que o Céu te conceda a vida
As bênçãos da Eterna Luz!...
Companheiro,
Companheiro!
Recebe por saudação
Nossas flores de alegria
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No vaso do coração.
Quando o coro infantil emudeceu, Varro levantou-se, admirado.
Contemplou o corpo que se imobilizara, abatido e exangue. A gratidão pelo
invólucro amigo, que lhe propiciara tantas lições, banhava-lhe agora a alma em
prece. Em minutos rápidos, reviu todas as lutas e dores do passado, com
indefiníveis sensações de paz e de alegria.
Corvino abraçava-o, com a ternura de um pai a um filho querido, enquanto
vários amigos, a distância, lhe dirigiam pensamentos de amor.
O presbítero desencarnado via-se, no fundo, aliviado, quase feliz, mas, de
inopino, como quem acorda pela manhã clara, retomando alguma preocupação
dolorosa da véspera, sentiu-se dominado por chaga invisível a corroer-lhe o
coração. Repentinamente fixou Taciano, que chorava em silêncio, e
reconheceu nele a sua única dor.
Inclinou-se, impulsivamente, sobre o rapaz e abraçou-o. Ah! o calor
daquele corpo como que lhe comunicava nova existência, os raios de
sentimento emitidos pelo coração filial pacificavam-lhe o íntimo, baLsamizandolhe
a mente atormentada!... Conchegou-o, de encontro ao peito, com infinito
desvelo, experimentando intraduzível alegria mesclada de amargura,
entretanto, o velho Corvino enlaçou-o brandamente, e falou:
— Varro, há mil meios mais seguros de auxiliar, acima das impressões
infrutíferas da tristeza ou da aflição. Reergue-te! Taciano é filho de Deus.
Muitos companheiros encarceram-se, após a morte, nas teias escuras da
afetividade menos construtiva, quais pássaros embaraçados em visco de mel,
e transformam-se em algozes carinhosos e inconscientes dos próprios
familiares... Levanta o teu padrão de sentimento e caminhemos. Voltarás, decerto,
a rever teu filho e estender-lhe-ás os braços robustos e generosos, mas,
por agora, Jesus e a Humanidade devem ser as nossas essenciais preocupações
de servidores do Evangelho.
O interpelado procurou recompor-se e ergueu ao Senhor o pensamento em
rogativa de paz...
Sentindo-se dono de faculdades mais sutis, assinalou vozes argentinas, ao
longe, num cântico de glorificação a Deus.
Varro lembrou-se, então, dos laços de trabalho e ideal que o ligavam à
comunidade cristã e encontrou forças para desprender-se do filho.
Obedecendo ao terno constrangimento de Corvino, afastou-se. Lá fora, no
campo, centenas de companheiros aguardavam-no, em regozijo. Numerosos
mártires das Gálias, ostentando palmas de luz que brilhavam de conformidade
com a elevação espiritual de cada um, cantavam, jubilosos, em homenagem ao
novo herói.
Quinto Varro, em pranto de alegria, recordou velhos amigos e lembrou-se
de Clódio, o antigo benfeitor, sendo informado de que encontraria o apóstolo
naquele mesmo dia, à noite, em Roma, no cemitério de Calisto.
Horas mortas, a luminosa assembléia se pôs em movimento, dando a idéia
de uma procissão de arcanjos, na direção da cidade imperial.
Em pouco tempo, espalhando bênçãos de harmonia no firmamento,
atingiram a grande metrópole.
Inúmeros missionários da Espiritualidade uniram-se aos irmãos gauleses,
de tal modo que, ao chegarem os viajores aos túmulos, constituíam imensa
multidão.
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Irmanados em pensamentos de amor, sustentados por misteriosa
comunhão, formavam prodigioso ambiente sob o manto da noite bordado de
lantejoulas a faiscarem, sublimes, em todas as direções.
Corvino pronunciou sentida oração de reconhecimento a Jesus e, quando
terminava a comovente prece de hosanas, um astro solitário surgiu no espaço,
descendo no rumo da luzente assembléia.
Pousando à pequena distância, transformou-se, rápido, num ancião
nimbado de luz.
Era Clódio que, aproximando-se, saudou, risonho, os companheiros de fé.
Recolheu Quinto Varro num longo e carinhoso abraço e, depois, passando
à tribuna, discorreu com indescritível beleza acerca das tarefas sacrificiais do
Evangelho, na redenção do mundo...
Todos os ouvintes lhe escutavam a palavra, tomados de jubiloso assombro.
A elevação geral do pensamento coletivo despedia feéricas irradiações em
torno, a incidirem nas lágrimas que inúmeros pioneiros da Boa Nova
derramavam, enlevados e comovidos...
Terminando, o lúcido orador considerou, com emoção:
— Celebramos hoje o regresso de Varro, nosso abnegado irmão de ideal e
de luta.
Paladino da nossa Causa, honrou todas as oportunidades recebidas.
Valoroso soldado do Cristo, quando ferido não feriu, quando humilhado, jamais
humilhou... Nas horas de treva, acendeu a claridade da própria alma, e, quando
o mundo julgava derrotá-lo, soerguia-se pela fé e pelo amor, dando ao Mestre
os mais altos testemunhos de confiança... Compreendeu o ensinamento
evangélico do sacrifício pessoal pela felicidade dos outros, e, oferecendo a
própria vida no corpo terrestre, reencontrou a si mesmo, na gloriosa
imortalidade!
Antigamente conosco, em recuados séculos, combatia a favor do mentiroso
poder humano, adquirindo aflitivas desilusões... Vexilário do ideal de
dominação política, não hesitava em submeter os semelhantes pela força, a fim
de alcançar os objetivos de vaidade e orgulho pessoais, mas, agora, em
legítimos combates consigo mesmo, expurgou sentimentos e propósitos,
redimindo-se e santificando-se, em longa e porfiada ascensão... Como filho,
cumpriu todos os deveres que lhe cabiam no lar; na condição de esposo,
exalçou a mulher que lhe partilhou os destinos, respeitando-lhe as idéias
diferentes das dele; como pai, soube sofrer até à suprema renunciação, de
modo a garantir a felicidade do filho que lhe possuía a afetividade, e, na
posição de homem, consagrou-se ao erguimento moral de todas as criaturas...
Campeão do serviço e da fraternidade, guerreou o ódio, exemplificando o
amor, e exaltou os dons imarcescíveis do espírito pela humildade com que se
devotou à expansão da Boa Nova!
Agora, que a sua alma, credora do nosso mais amplo reconhecimento, se
afinou, através de notáveis triunfos, com as mais elevadas esferas do Amor
Divino, saudemos nosso valoroso companheiro, em trânsito para resplendentes
cimos da vida!
Se quiser, poderá, presentemente, dos cumes do saber e da virtude,
colaborar com o Mestre em arrojados cometimentos, na santificação do mundo!
Que o Senhor o abençoe, na trajetória sublime que lhe cabe por gloriosa
conquista, em direção do porvir!...
Clódio, sorridente, dera por finda a saudação, enquanto comovedora
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melodia de hosanas vibrava sob o céu enxameado de cintilantes estrelas...
Chorando de alegria, o recém-desencarnado abeirou-se do excelso
mensageiro e exprimiu-se, humilde:
— Abnegado amigo, tuas palavras falaram fundo à minhalma. Recebo-as
por incentivo caridoso à minha pobre boa vontade, de vez que não as mereço,
de modo algum... Sei que a tua generosidade me descerra novos horizontes,
que a tua bondade pode conduzir-me às alturas, entretanto, se é possível,
deixa-me na Terra mesmo... Reconheço-me, por enquanto, incapaz de seguir
adiante, mesmo porque minha tarefa não foi concluída. Alguém...
Clódio acariciou-lhe a cabeça e cortou-lhe a frase, acentuando:
— Já sei. Referes-te a Taciano. Procede como desejares. A decisão te
pertence. Recebeste permissão para ajudá-lo, durante um século, e possuis
grande saldo de tempo.
Fixou nele os olhos doces e penetrantes que exteriorizavam a beleza de
sua alma, e perguntou:
— Como desejas alongar a tarefa?
— Gostaria de renascer na carne e servir junto do filho que o Céu me
confiou — esclareceu Varro, humildemente.
O emissário refletiu alguns instantes e declarou:
— Em nome dos nossos Superiores, posso autorizar a execução dos teus
propósitos, entretanto, devo notificar-te que Taciano perdeu as melhores
oportunidades da juventude física. Valiosos recursos lhe foram ofertados, em
vão, para que se erguesse à glória do bem.
Agora, não obstante amparado por teu carinho, será visitado pelo aguilhão
da dor, a fim de que desperte, renovado, para as bênçãos divinas.
Varro esboçou um sorriso de paciência e compreensão e pronunciou
sentido agradecimento.
O ágape fraterno prosseguiu brilhante, todavia, quando os companheiros
se despediam para o retorno a obrigações comuns, o herói de Lião, instado
pelo velho Corvíno ao descanso, desejou rever Taciano, antes de partir...
O venerando amigo atendeu-lhe à solicitação, prontamente.
Jubilosos e unidos, tornaram à Gália Lugdunense e penetraram, tranquilos,
na área do palácio de que o presbítero fôra modesto jardineiro.
Não precisaram recorrer ao interior doméstico:
Ao se aproximarem, perceberam os apelos mentais do jovem patrício, à
pequena distância...
Incapaz de desprender-se da angústia que o absorvia, desde o momento
em que se afastara do cadáver paterno, ralado de dor, Taciano abandonara os
aposentos particulares e descera ao jardim, em busca de ar fresco. Tomado de
terrível amargura, procurou a praça das roseiras, onde tantas vezes permutara
impressões com o genitor, então transformado em carinhoso enfermeiro.
Parecia-lhe ouvir, de novo, as referências e observações de outro tempo,
recapitulando preciosas conversações acerca de literatos e filósofos,
professores e cientistas.
Revia-lhe, na imaginação, o semblante calmo e, somente agora,
reconhecia naquela solicitude de todos os instantes a ternura familiar, que, em
sua impulsividade, não pudera discernir...
Profunda saudade misturada de irremediável aflição pungia-lhe o espírito.
Sob o pálio das constelações matutinas que tremiam alvinitentes, Quinto
Varro aproximou-se e osculou-lhe a face orvalhada de lágrimas copiosas.
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— Meu filho! meu filho!... — falou, abraçando-o — Deus é amor infinito!
não desfaleças!
A oportunidade de redenção ressurge sempre com
a divina misericórdia!... Reanima o coração perturbado e levanta-te! Nossa boa
e santificante luta apenas começa...
O rapaz não escutou com os ouvidos da carne as palavras que lhe eram
dirigidas, mas recolheu-as em forma de vibrações de incentivo e esperança.
Sentindo-se inexplicavelmente aliviado, enxugou o pranto e contemplou o
céu constelado de luz.
— Vamos!... — continuou o pai abnegado —não gastes inütilmente as
próprias forças!...
Enlaçado brandamente, ergueu-se o jovem, sem saber como, e,
sustentado pelo benfeitor espiritual, retomou o caminho de volta a casa,
entregando-se ao repouso.
O missionário invisível orou junto dele e impôs-lhe as mãos.
Envolvido nas ondas reconfortantes de doce magnetismo, Taciano
adormeceu...
Com a íntima ventura de quem cumpre um dever sagrado e belo ao
coração, Quinto Varro, amparando-se em Corvino, retirou-se, feliz.
Abraçados, os dois amigos alçaram-se ao santuário de paz e reconforto
que lhes serviria de residência, nas esferas da alegria imortal.
Em torno, a alvorada ruborizava o longínquo horizonte...
Esmaecia o fulgor das estrelas e passarinhos madrugadores anunciavam à
Terra que um novo dia começava a brilhar.
100
SEGUNDA PARTE
101
1
Provas e lutas
O ano 250, corria sob nuvens pesadas...
Desde a subida de Décio ao poder, a metrópole romana e as províncias
atravessavam enormes inquietações.
O novo Imperador odiava os postulados do Cristianismo e, por isso,
desencadeara terrível e sistemática perseguição contra os prosélitos do novo
ideal religioso.
Editos sanguinolentos, ordens rigorosas e missões punitivas foram
expedidas em variadas direções.
Ameaças, buscas, inquéritos e prisões espalharam-se em toda a parte.
Fogueiras, feras, espadas, unhas de ferro em brasa, ecúleos, tenazes e cruzes
foram trazidos fartamente aos processos de flagelação. Prêmios foram
estabelecidos para quem inventasse novos gêneros de tortura.
E os magistrados, quase todos dados ao culto do temor e da bajulice,
primavam na execução dos desejos do novo César.
Em Cartago, as famílias cristãs sofriam vexames e apedrejamentos; em
Alexandria, os suplícios se multiplicavam sem conto; nas Gálias, os tribunais
viviam repletos de vítimas e delatores; em Roma, intensificavam-se os
espetáculos de morte nos circos...
Entre os sucessos deploráveis da época, a vila Vetúrio, em Lião, mostravase
menos festiva, todavia, mais laboriosa e mais frutescente.
Desde a morte de Varro, Opílio retirara-se em companhia de Galba, para a
capital do mundo, sem jamais haver trocado palavra com o genro.
As terríveis surpresas havidas entre ambos, desde o suicídio de Flávio
Súbrio, cavaram, entre os dois, abismos de silêncio e fria animadversão, no
fundo dos quais as amargas revelações obtidas jaziam como segredos
indevassáveis do coração.
Desajustado, desde o instante em que tomara conhecimento da verdade
alusiva ao pretérito, Taciano buscava afogar no serviço as mágoas e as
preocupações que lhe conturbavam o mundo íntimo.
Devotado à esposa, que sempre lhe merecia o maior carinho, tentou
concentrar nela todos os seus cabedais afetivos; entretanto, Helena era
demasiado frívola para compreender-lhe a dedicação. Absorvida em atividades
sociais numerosas, viajava frequentemente, ora visitando relações de amizade
em localidades fronteiriças, ora seguindo ao encontro do pai e do irmão, na
metrópole imperial. Estranhara, a princípio, o afastamento paterno, cuja
verdadeira causa jamais conseguiu conhecer, mas habituou-se, por fim, com a
ausência de Vetúrio, supondo que o genitor encontrava mais alegria em
envelhecer, tranquilo, na cidade que lhe servira de berço.
Sempre acompanhada de Anacleta, sua antiga governanta, era assídua
frequentadora do teatro, do circo, das corridas e dos jogos.
Não valiam, para alterar-lhe a conduta, as solicitações reiteradas do
esposo, dado à meditação e à dignidade doméstica.
A jovem senhora encontrava cada dia mil pretextos de ausentar-se,
escrava da opinião pública, das convenções, das modas e dos folguedos
impróprios da sua condição.
Vetúrio realmente se desligara do enteado, mas não largara mão dos
interesses patrimoniais e, a fim de proteger-se, enviara à herdade um liberto
102
grego de sua confiança, de nome Teódulo, conferindo-lhe o direito de partilhar
com o genro os serviços administrativos.
Teódulo era um solteirão inteligente e astuto, invariàvelmente disposto à
curvatura da cerviz para auferir vantagens para si mesmo. Fizera-se amigo de
Taciano, mas em muito maior grau da esposa, cavando sutilmente a separação
entre os dois.
Se a dona da casa pretendia um passeio a Viena, ou a Narbona, era o
primeiro a apresentar-se para guiar-lhe a condução; se desejava cruzar o
Mediterrâneo, para excursões a Roma e adjacências, era ele a pessoa indicada
para segui-la, de perto, de vez que o marido, com estranheza para a mulher,
não parecia inclinado a qualquer reencontro com o sogro.
Taciano, não obstante o vigor juvenil dos trinta e quatro anos, revelava-se
profundamente modificado.
Não era mais o moço de outro tempo.
Ensimesmara-se.
Já que lhe não era possível encontrar na companheira a confidente
desejável, vivia psiquicamente insulado, aplicando no serviço do campo todo o
potencial de suas forças.
Não podia crer-se rico, de vez que se achava ligado aos interesses de
Vetúrio, preso à fatalidade doméstica.
A propriedade era quinhoada de rendas substanciosas, mas a sua posição
em família colocava-o em subalternidade econômica, de vez que, no fundo,
Helena era a filha legítima, com quem o dono da herdade se entendia
diretamente, através de correios constantes.
Muitas vezes, considerara a conveniência de adquirir um sítio, em que
pudesse exercer a autoridade que lhe era própria, entretanto, a realização
nunca saíra do projeto. As despesas da esposa eram demasiado expressivas
para que pudesse aventurar-se em semelhante cometimento.
Helena despendia somas enormes no fausto de sua carreira social.
Por isso mesmo, interrompida a intimidade dele com o padrasto, desde a
morte de Varro, via-se o rapaz torturado por incessantes problemas financeiros,
que as suas múltiplas atividades mal permitiam resolver.
A única compensação que usufruía era o consolo que lhe vinha da
constante ternura da segunda filha. Nascera Blandina, em 243, como se fôra
uma bênção que o Céu lhe houvera reservado ao coração. Enquanto a
primogênita, menina e moça, apegava-se ao espírito materno, copiando-lhe as
predileções e atitudes, a menor colava-se ao pai, exclusivamente.
Acompanhava-o em seus giros solitários pelo bosque, seguia-lhe as
meditações no jardim.
Não valiam ralhos da governanta, nem observações dos mais íntimos.
Blandina parecia uma flor permanente a engastar-se na destra paterna.
Diariamente, ao amanhecer, era a única pessoa de casa a orar, em
companhia de Taciano, ante a estátua de Cíbele, a deusa maternal.
Certa manhã, vamos encontrá-los conversando em extenso vinhedo.
- Papai — indagava ela, de cabelos soltos, beijados pela luz solar —, quem
fêz o campo, assim tão belo?
O genitor, sorrindo, respondeu feliz:
— Os deuses, filhinha, os deuses nos concederam as árvores e as flores
para o embelezamento de nossa vida.
A menina, embriagada de júbilo infantil, tomou um cacho de uvas
103
amadurecidas e perguntou, de novo:
— Mas, papai, qual dos deuses nos traz uvas tão doces?
O companheiro, satisfeito com a curiosidade dela, sentou-a nos joelhos,
explicando:
— Quem nos concede a bênção da colheita, é Ceres, a generosa deusa da
agricultura.
Talvez prevendo novas interrogações da pequena, continuou:
— Ceres fêz longas viagens entre os homens, ensinando-os a arar o solo e
a preparar boas sementeiras... Possuía uma filha, de nome Prosérpina,
carinhosa e bela como tu, mas Plutão, o rei dos internos, roubou-a, cruel...
— Oh! porquê? — interferiu Blandina, interessada.
E o moço prosseguiu, pacientemente:
— Plutão era tão feio, tão feio, que não achou mulher que o amasse.
Então, um dia, quando Prosérpina colhia flores nos campos sicilianos, o medonho
Plutão assaltou-a e conduziu-a para a sua horrível morada.
— Pobrezinha! — lamentou a pequerrucha, penalizada — e a mãe dela
não encontrou algum meio de salvá-la?
— Ceres sofreu muito até que lhe descobriu o paradeiro. Desceu aos
infernos, a fim de recuperá-la, mas a filha era meiga e bondosa e, por isso,
afeiçoara-se ao tirano que fôra obrigada a receber por marido. Compadecendose
do esposo, não mais quis voltar. Geres, então muito aflita, recorreu a
Júpiter, o senhor do Olimpo, mas tantas perturbações sobrevieram que o
grande deus julgou melhor determinar que Prosérpina, cada ano, passasse
seis meses em companhia da mãezinha, e os seis restantes junto do
companheiro.
A menina suspirou, aliviada, e comentou:
— Júpiter, nosso pai do céu, foi sábio e bondoso...
Em seguida, os olhinhos vivos e escuros se lhe iluminaram. Abraçou
Taciano, nervosamente, e indagou:
— Papai, se Plutão me roubasse, o senhor me procuraria?
— Sem dúvida — replicou Taciano, rindo-se —, mas não há perigo. O
monstro jamais nos incomodará.
— Como sabe o senhor?
O paizinho enlaçou-a, informando:
— Temos nossa mãe Cíbele, Blandina. Nossa divina protetora jamais nos
abandona.
A pequena, confiante, estampou satisfação e paz na fisionomia ingênua.
Enquanto o moço patrício passava a orientar o trabalho de alguns
escravos, a criança correu, alhures, encontrando grande borboleta a mover-se
dificilmente.
Blandina recolheu-a, com extremo cuidado, nas dobras do leve peplo de lã
e apresentou-a ao genitor, reclamando:
— Paizinho, será que as borboletas não possuem um deus que as ajude?
— Como não, minha filha? os gênios celestes cuidam de toda a Natureza.
— Mas onde estaria o socorro para uma pobre criatura como esta?
Taciano sorriu e, dando-lhe a mão, acentuou:
— Vamos comigo, vou mostrar-te.
Deram alguns passos e alcançaram límpida corrente.
Taciano, carinhoso, indicou-lhe o córrego cantante e esclareceu:
— As fontes, minha filha, são dádivas do Céu, em nosso favor. Deixa tua
104
borboleta ao pé das águas, ela está sedenta.
A pequena obedeceu, feliz.
E ambos, pelo dia a dentro, passearam juntos e juntos brincaram,
observando os lagartos que se arrastavam ao sol.
Para o filho de Quinto Varro, agora, introspectivo, a presença da menina
era talvez a única felicidade que desfrutava na Terra.
De retorno a casa, corados e bem dispostos, foram recebidos com grande
reboliço.
Chegara um correio de Roma e Taciano, desconcertado, sabia que um
acontecimento desses era sempre um sucesso desagradável para ele. A
esposa fazia-se mais exigente e mais áspera.
Com efeito, logo que se viu no interior doméstico, Helena convidou-o a
entendimento particular, apresentando-lhe longa mensagem paterna. Opílio
insistia pela viagem da filha e das netas à metrópole. Vivia saudoso e,
sobretudo, excessivamente preocupado com a situação de Galba, totalmente
entregue, como sempre, às companhias indesejáveis. Não se resignava à idéia
de que o rapaz prosseguisse solteiro. E, confidencialmente, rogava a Helena
estudasse com o genro a possibilidade do consórcio entre tio e sobrinha.
Lucila, a neta que ele vira nascer, atingira os quinze anos. Não seria
conveniente aproximá-la do solteirão, tentando-se algum esforço regenerativo,
apesar da diferença de idade?
A sociedade romana, dizia o velho, achava-se em decadência. Grandes
fortunas estavam dissipadas pela imprevidência de famílias patrícias tradicionais.
Não seria justo, perguntava, preservar os próprios bens com um novo
enlace no próprio ambiente doméstico?
Taciano leu a carta, mostrou no rosto o imenso desagrado que o possuía, e
comentou, entediado:
— O velho Opílio, decerto, respira ouro. Não tem outra idéia na cabeça que
não seja dinheiro, defesa do dinheiro e multiplicação do dinheiro. Creio viveria
ele descuidadamente no inferno, desde que o reino da sombra fôsse construído
sobre moedas. Que disparate! que felicidade poderá advir do casamento de
uma jovem de quinze anos com um libertino da qualidade de Galba?
A senhora fêz-se pálida e recomendou, transtornada:
— Não tolero qualquer referência desrespeitosa a meu pai. Ele tem sido
sempre amável e generoso.
E, mirando o esposo, de cima para baixo, prosseguiu:
— Que poderíamos oferecer a Lucila, na província repleta de escravos e
pobretões?
Além disso, o matrimônio de nossa filha com meu irmão seria um feito de
grande sabedoria. Meu pai sabe sempre o que faz.
O marido, no fundo, desejou prorromper em gritos de revolta.
Com que direito deliberavam, assim, quanto ao destino de sua
primogênita? era ela demasiado verde para qualquer escolha. Porque não
confiar-lhe o juvenil coração aos braços do tempo, de modo a decidir-se com
calma? Sabia, de experiência própria, que a felicidade nunca seria fruto de
constrangimento.
Renunciava, contudo, a qualquer argumentação.
Entre ele e Vetúrio existia um mar de lodo e sangue. Nunca lhe desculparia
o infortúnio paterno. A amizade que os ligava em outro tempo convertera-se em
105
ódio silencioso.
Entretanto, a esposa era filha dele e, no sangue das filhinhas, era obrigado
a receber-lhe a marca familiar.
Poderia discutir, contender, guerrear, contudo, era agora individualmente
pobre e não conseguiria vencer o gigante financeiro que o destino lhe impusera
por padrasto.
E a lutar verbalmente com Helena, não seria preferível calar-se?
Diante da sombria mudez do esposo, ela continuou:
— Há mais de um ano não vejo meu pai. Agora, devo seguir. Outra
alternativa não me resta. A embarcação estará em Massília provavelmente na
semana próxima... Desta vez, suponho contar contigo. Meu pai espera por ti há
muitos anos...
Como quem despertasse de um pesadelo, Taciano replicou, mal humorado:
— Não posso... não posso...
— É isto! Sempre que necessito de teu concurso para alguma excursão
importante, primas pela ausência. Temos um mundo vasto de alegrias e
divertimentos, mas preferes o cheiro de cabras e cavalos...
— Helena, não é bem assim — considerou o marido, apoquentado —, o
trabalho...
Ela, porém, interrompeu-lhe a palavra, entre irritada e áspera:
— Sempre o trabalho a eterna desculpa. Não te amofines. Seguirei com
Anacleta e Teódulo, em companhia das meninas.
O dono da casa sentiu-se ferido, só em pensar na separação da filha
menor, e observou, instintivamente:
— Precisarás de séquito assim tão grande?
— Não te queixes — falou a mulher, sarcástica —, cada qual recebe o que
procura. Se pretendes solidão, não te agastes por falta de companhia.
O marido não respondeu.
A filha de Vetúrio começou a providenciar.
Costureiras, floristas, ourives e artífices trabalharam com grande azáfama.
Todavia, no meio do entusiasmo geral, Blandína choramingava
incessantemente. Insistia em ficar. Não queria deixar o genitor. A dona da
casa, entretanto, não alterava a opinião. As netas deveriam partir, ao encontro
do avô.
Na véspera da viagem, tão lamurienta se mostrava a menina, que Taciano,
altas horas da noite, levantou-se a fixa de consolá-la, de vez que a esposa,
atarefada com preparativos diversos, ainda não se recolhera. Dirigindo-se de
um aposento a outro, ouviu rumores abafados em pequeno terraço próximo.
Sem ser percebido, lobrigou Helena e Teódulo em colóquio afetuoso. A
intimidade a que se entregavam não lhe propiciava ensejo à mínima dúvida,
quanto à comunhão amorosa entre os dois.
O coração bateu-lhe descompassado.
Sempre descansara, acerca do procedimento da esposa, apesar do
temperamento explosivo com que Helena se caracterizava.
Experimentou o impulso de estrangular Teódulo com mãos frias e
implacáveis, no entanto, os gemidos de Blandina despertavam-lhe os
sentimentos de pai. O escândalo não traria compensações. Ao invés de
refazer-lhes o destino, agora plenamente atormentado, recairia, como flecha
incendiária, sobre a família que o Céu lhe confiara.
Punir a esposa seria condenar as filhas.
106
Instintivamente, lembrou-se de Varro, e, pela primeira vez, refletiu
amplamente nas tempestades que haviam desabado no caminho paterno.
Que forças sobre-humanas teriam conseguido sustentá-lo? como pudera o
genitor suportar o infortúnio doméstico, sem trair a superioridade moral que lhe
conhecera?...
Rememorou as palavras que lhe ouvira «in extremis», detendo-se em
analisar a elevada concepção paternal com respeito aos direitos da mulher...
Desejaria possuir noções tão enobrecedoras, mas sentia-se distanciado de
tamanha conquista do espírito. Para ele o perdão era covardia e a humildade
expressava vileza.
Por outro lado, lembrou Cíntia, a mãe tristonha que lhe embalara o berço.
Compelia a imaginação a recuar até à meninice e verificava que, ainda mesmo
nos mais belos dias de consagração carinhosa do padrasto, nunca pudera
observar a genitora totalmente feliz. A matrona querida vivera longos anos de
alma velada por indefinível amargura.
Não estaria Helena adquirindo o mesmo patrimônio de dor?
Escutou algumas palavras afetuosas do amoroso par, que a aragem da
noite lhe trazia aos ouvidos, todavia, tal qual procedera Quinto Varro, quando
ainda não era ele Taciano senão um anjo tenro, retrocedeu e procurou a
câmara da filha.
Blandina abraçou-o, reconfortada, como quem sentisse todos os perigos
dissipados, ante a presença paterna, e, depois de beijá-lo, adormeceu,
tranquila.
O moço apertou-a, de encontro ao peito, e, intimamente angustiado,
recolheu-se, mudo.
No leito, recordou o pai com mais insistência e orou suplicando o socorro
dos deuses imortais de sua fé. Tentou sustentar-se em posição de vigilância,
mas a prece, à maneira de suave anestésico, oferecera-lhe brando torpor e
acabou envolvido em pesado sono.
Ao amanhecer do dia seguinte, foi ruidosa-mente acordado pela esposa, a
fim de despedir-se.
A caravana partia cedo.
Helena e os companheiros pretendiam efetuar breve parada em Viena, de
modo a rever amigos.
Taciano, amargurado e carrancudo, pronunciou alguns monossílabos, mas
quando chegou a vez de Blandina, que se lhe arrojou, em pranto, aos braços
ansiosos, o chefe da família pareceu emocionado e trêmulo.
— Não me deixe seguir, papai! quero ficar! tenho medo! leve-me para a
vinha! — soluçava a menina, em desespero.
O genitor beijou-a com ternura e recomendou:
— Acalma-te! atende aos desejos da mãezinha, o vovô espera-te, bondoso!
a viagem te fará feliz, minha filha!
— Não pode ser assim — gritou a criança, com os olhos inchados de chorar
—, quem rezará com o senhor pela manhã?
Fôsse pela tortura moral que trazia da véspera ou pela angústia daquele
adeus que lhe cortava o coração, o patrício sentiu que a emoção lhe sufocava
o tórax opresso. Entregou Blandina aos braços de Anacleta que a aguardava,
impaciente, e, num gesto brusco, demandou o interior, buscando a solidão para
desfazer-se em lágrimas. Queria desligar-se da amargura que lhe avassalava o
pensamento, contudo, quando os carros se afastaram entre as rumorosas
107
saudações dos escravos, ele quase enlouqueceu ao ouvir a estridente voz da
filha, reclamando:
— Papai!... papaizinho!.
Iniciada a excursão, Helena inquietou-se.
Blandina, apesar de todas as repreensões, recusou qualquer alimento. A
beleza da paisagem do Ródano não a interessava.
A chegada, pois, a Viena, depois de várias preocupações, realizou-se sob
pesada nuvem.
A pequena acusava febre alta e o coração parecia uma ave assustada na
gaiola do peito.
De olhos inconscientes, revelava-se completamente alheia à realidade.
Pronunciava o nome do pai através de gritos estranhos e dizia ver Plutão num
carro de fogo, procurando roubá-la.
Teódulo, aflito, chamou um médico, que considerou a menina em grave
posição orgânica, desaconselhando a viagem.
Em razão disso, o genitor foi imediatamente instado a socorrê-la.
Taciano, atormentado, atendeu presto e o grupo de Helena, restituída a
menina aos braços paternais, prosseguiu sem a pequerrucha, que, contente,
tornou a casa.
Começou então para o patrício e a filha admirável período de refazimento.
Amavam-se tão profundamente, com esse carinho doce e perfeito de quem
tudo procura dar sem nada receber, que realmente se bastavam um ao outro.
Totalmente entregues à Natureza, efetuavam encantadores passeios pelos
vinhedos e bosques, pelas pastagens e charnecas.
Mas não se restringiam agora às caminhadas no campo. Taciano adquirira
pequeno barco, no qual faziam longas incursões pelo Ródano.
De entendimento a entendimento, o genitor passou a conversar com a
menina, com respeito à educação.
Precisavam contratar os serviços de um professor condigno. Não
encontrava na fazenda nenhum escravo à altura de semelhante trabalho.
— Por que motivo o senhor mesmo não me ensina? perguntou, certa feita,
a criança, quando navegavam além dos muros da cidade, encantados com a
magnificência do rio, então enriquecido pelas últimas cheias da primavera.
— De mim mesmo, não posso — esclareceu Taciano, bondoso —, não
saberíamos nós dois garantir um programa disciplinar, como se faz imprescindível.
Blandina parou o olhar, no soberbo quadro em torno...
O crepúsculo descera vagaroso, mergulhando a terra em leve sombra, e as
constelações no alto começavam a luzir...
Taciano remava sem dificuldades, subindo a corrente, desde o ponto de
confluência do Saona, tornando ao centro da cidade, auxiliado pelas virações
vespertinas.
Pareciam absortos, no grande silêncio, apenas cortado, de quando em
quando, pelo vôo célere de passarinhos retardatários, quando ouviram aveludada
voz de mulher gorjeando na ribeira do rio...
Estrelas — ninhos da vida,
Entre os espaços profundos,
Novos lares, novos mundos,
Velados por tênue véu...
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Aladas rosas de Ceres,
Nascidas ao sol de Elêusis,
Sois a morada dos deuses,
Que vos engastam no céu...
Dizei-nos que tudo é belo,
Dizei -nos que tudo é santo,
Inda mesmo quando há pranto
No sonho que nos conduz.
Proclamai à terra estranha,
Dominada de tristeza,
Que em tudo reina a beleza
Vestida de amor e luz.
Quando a noite for mais fria
Pela dor que nos procura,
Rompei a cadeia escura
Que nos prenda o coração,
Acendendo a madrugada
No campo de Novo Dia,
Onde a ventura irradia
Eterna ressurreição
Dai consolo ao peregrino,
Que segue à mercê da sorte,
Sem teto, sem paz, sem norte,
Torturado, sofredor...
Templos do Azul Infinito,
Descerrai à Humanidade
A glória da Divindade
Na glória do vosso amor.
Estrelas ninhos da vida,
Entre os espaços profundos,
Novos lares, novos mundos,
Velados por tênue véu...
Aladas rosas de Ceres,
Nascidas ao sol de Elêusis,
Sois a morada dos deuses,
Que vos engastam no céu...
— Quem estará cantando assim? — perguntou Blandina, admirada.
Taciano, impressionado, remou quase que instintivamente na direção de
acolhedora praia vizinha e, à frente da jovem que cantava, ele e a filha não
puderam conter a simpatia que lhes nascera nos corações.
Amarrou o barco à margem e desceram.
A moça, surpreendida, veio ao encontro da pequena, exclamando:
— Bela menina, que os deuses te protejam ....
— E protejam também nossa bela desconhecida — murmurou Taciano,
bem humorado.
E, no propósito de dissipar-lhe a timidez, acrescentou:
109
— Por Serápis! nunca ouvi, antes, tão formoso hino às estrelas. Quem
teceu tão lindo poema?
— Foi meu pai, senhor.
O excursionista sentiu algo estranho no coração. Aquela voz penetrava-lhe
as fibras mais íntimas. Enterneceu-se-lhe inexplicavelmente a alma. Que faria
aquela mulher assim só, na praia agora povoada de sombras? Observando que
ela e Blandina se entendiam num abraço carinhoso e natural, esqueceu a idéia
de retornar ao batel e considerou, gentil:
— Francamente, ser-me-ia grato conhecer, de perto, o autor da delicada
composição.
— É fácil — explicou a moça, alegre —, moramos aqui mesmo.
Oferecendo a mão à menina, tomou a dianteira.
O trio, depois de alguns passos, penetrou uma casa singela, em cuja peça
mais importante, uma sala acanhada e desconfortável, um velho, à claridade
de duas tochas, consertava precioso alaúde.
Diversos instrumentos musicais amontoavam-se no recinto, revelando a
profissão do dono da casa.
Desajeitada, a jovem apresentou os recém-chegados, explicando:
— Papai, são dois viajantes do rio. Escutaram a canção às estrelas e
interessaram-se pelo autor.
— Oh! quão generosos! — e o velho acrescentou, mostrando largo sorriso:
— entrai! a casa é pequenina, mas é vossa.
Entendimento reconfortante foi entabulado.
O ancião, que se abeirava dos setenta anos, trazia nos olhos e nas
palavras irradiante vigor juvenil.
Biografou-se, sem afetação.
Chamava-se Basílio e nascera em Roma, filho de escravos gregos. Embora
endividado com o ex-senhor, Jubélio Carpo, que o alforriara, prosseguia na
posição de liberto, agindo por conta própria.
Carpo, nobre romano, era quase da idade dele. Meninos ainda, haviam
crescido juntos, e, por isso, casaram-se ambos quase ao mesmo tempo.
Cecília Prisciliana, a esposa do senhor, adoecera de peste, logo após o
nascimento do segundo filho, e Júnia Glaura, sua mulher, escrava e amiga,
devotara-se à matrona com tamanho desvelo que conseguira salvar-lhe a
existência, mas à custa da própria vida.
Adquirindo a perigosa moléstia, Júnia impusera-lhe a viuvez, deixando-lhe
uma filhinha de nome Lívia, que sobreviveu pouco tempo.
Compadecidos da sorte dele, os patrões emanciparam-no, sob a condição
de lhes pagar, em qualquer tempo, os pesados débitos que contraíra, para
socorrer os familiares.
Todavia, não pudera prosseguir em Roma, onde tantas recordações
dolorosas lhe martirizavam o espírito.
Desgostoso, retirara-se para a ilha de Cipro, onde passara muitos anos,
mergulhado em estudos filosóficos, buscando fugir de si mesmo.
Ali recebera como presente dos deuses — acentuava sorridente — a sua
nova filha, à qual deu o mesmo nome da primeira.
Lívia surgira-lhe no justo momento em que se via mais infortunado e mais
só.
Desesperado com os obstáculos constantes que se lhe deparavam, sem
nunca haver encontrado recursos para liquidar os compromissos econômicos
110
que o prendiam à casa do amo, dispunha-se a aguardar a morte, quando o Céu
lhe enviara a nova filhinha, por milagrosa via, refazendo-lhe as esperanças.
Desde então, investira-se de nova coragem para lutar.
Rearticulou as próprias energias para o trabalho e reassumiu as atividades
rotineiras de um homem com problemas mensais a resolver.
Restaurando instrumentos musicais, na profissão de afinador, reconheceu
que na ilha os rendimentos não responderiam aos novos encargos e, por isso,
transferiu-se para Massília, onde encontrou serviço farto e adequados recursos
para educar a menina.
Dissabores numerosos, porém, compeliram-no a mudar-se e escolhera
Lião para seu novo campo de ação.
Surpreendera-se diante da grande quantidade de harpas, alaúdes e cítaras
a reclamarem reajuste e, satisfeito com as novas perspectivas de melhoria
econômica, achava-se na cidade, havia seis meses, reorganizando o próprio
caminho.
Basílio falava com segurança e brandura, mas notava-se na voz dele algo
de dolorido que não chegava a exteriorizar-se. Chagas invisíveis de sofrimento
transpareciam-lhe da palavra vazada em risonha compreensão, mas tocada de
leve amargura.
O patrício animado e alegre encorajou-o, fazendo-lhe sentir novos
horizontes de trabalho.
Possuía muitos amigos e conseguir-lhe-ia rendosos serviços.
Para amenizar o ambiente que se anuviara demasiado com os temas
inquietantes da vida comum, Lívia atendeu a um pedido paterno, executando
alguns números de harpa que Taciano e Blandina ouviram, encantados.
A pequena, enlevada, aquietara-se meiga e silenciosa e o filho de Quinto
Varro, como que transportado a diferentes regiões, divagava, através de
múltiplas reminiscências, mal contendo o pranto de emotividade que lhe
assomava aos olhos.
Rememorou todos os dias do pretérito, tentando lembrar onde e como vira
em algum lugar e em algum tempo o ancião que o fitava, bondoso, e a jovem
que cantava com a voz misturada de alegria e de dor, mas debalde... Guardava
a impressão de conhecê-los e amá-los, mas a memória negava-se a identificálos
no tempo.
Lívia calara-se, mas o visitante prosseguiu absorto, pensando, pensando...
Foi Blandina quem lhe interrompeu as reflexões, inquirindo, carinhosa:
— Papai, o senhor não acha que Lívia poderia ser minha professora?
Um sorriso geral desabrochou na sala pobre.
A idéia foi jubilosamente aceita.
E naquela noite, quando o adeus se fêz sentir, revestido de compreensão e
ternura Taciano afastou-se, renovado. Esquecera as lutas e os problemas do
próprio destino, qual se houvera sorvido milagroso néctar dos deuses.
O coração do patrício, antes taciturno e angustiado, parecia reviver.
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Sonhos e aflições
De olhos postos no firmamento que se povoava de constelações, vamos
encontrar Basílio, envolvido pelas brisas suaves do rio, falando para os ouvidos
de Taciano, admirado:
— A vida para nós ainda representa impenetrável segredo celeste. Não
passamos de animálculos que pensam. O poder é uma fantasia na mão do
homem, assim como a beleza é um engodo no coração da mulher. Visitei o
Egito, em companhia de dois sacerdotes de Amatunte, e ali encontramos
variados remanescentes da sabedoria imortal. Estudei minuciosamente, nas
pirâmides de Gizé, os problemas da vida e da morte, entrando em cogitações
profundas sobre a transmigração das almas. O que aprendemos, em nossos
cultos exteriores, é mera sombra da realidade. A truculência política dos
últimos séculos prejudicou em toda a parte o serviço da revelação divina. Creio
assim que nos abeiramos de tempos novos. O mundo tem fome de fé viva para
ser feliz. Não admito estejamos limitados à existência física e o Olimpo há de
ampliar-se para responder às nossas aspirações...
— Não acreditas, porventura — interferiu o interlocutor, preocupado —, que
nos basta à felicidade coletiva a confiança pura e simples na proteção dos
deuses, dentro do culto aos nossos antepassados?
— Sim sim — considerou o ancião —, simplicidade é também uma das
faces do enigma, entretanto, meu caro, no caso do nosso tempo de
incomensuráveis desequilíbrios morais, avulta o problema do homem. Não
somos bonecos nos tentáculos da fatalidade. Somos almas, usando a vestimenta
de carne, em trânsito para uma vida maior. Pesquisei em todas as
grandes estradas da fé, nos arquivos da Índia védica, do Egito, da Pérsia e da
Grécia e, em todos os instrutores veneráveis, observei a mesma visão da glória
eterna a que somos destinados. Tenho de mim para comigo que somos um
templo vivo em construção, através de cujos altares se expressará no Infinito a
grandeza divina. Nas experiências da Terra, porém, conseguimos edificar tão
somente os alicerces do santuário, prosseguindo, além da morte do corpo, na
complementação da obra sublime. Nas lutas da existência animal,
desenvolvemos as potencialidades do espírito, habilitando-nos à elevação aos
pináculos da vida.
E, depois de uma pausa em que parecia refletir quanto aos conceitos que
enunciara, ponderou:
— Por isso mesmo, o problema é muitíssimo mais vasto. É indispensável
saibamos destacar a dignidade humana, imanente em todas as criaturas.
Escravos e senhores são filhos do mesmo Pai.
O amigo que lhe registrava atentamente as palavras, objetou, de chofre:
— Igualdade? isso, porém, viria contrariar a estrutura de nossa organização
social. Como nivelar as classes, sem ferir as tradições?
O velho, contudo, sorriu calmo e acentuou:
— Meu filho, não me refiro à igualdade por violência, que viesse enfileirar
na mesma categoria bons e maus, justos e injustos. Reporto-me ao imperativo
de fraternidade e educação. Compreendo que a vida é semelhante a grande
máquina, cujas peças vivas, que somos nós, devem funcionar harmoniosamente.
Há quem nasça para determinada tarefa, a distância da nossa,
como existe quem veja o caminho comum de maneira diferente dos nossos
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olhos. Atentos à certeza de que o nosso espírito pode viver na Terra vezes
inumeráveis, modificamos o curso de nosso trabalho, de existência a
existência, como o aprendiz de letras primárias evolve, pouco a pouco, para as
mais altas expressões de cultura. Não vemos, pois, como nivelar as classes, o
que seria impraticável. O esforço pessoal e o mérito resultante são fronteiras
naturais entre as almas, aqui e além. A hierarquia existirá sempre como
sustentáculo inevitável da ordem. Cada árvore produz, segundo a espécie a
que se filia, e cada qual merece mais ou menos estima, segundo a qualidade
dessa mesma produção. Substituamos, assim, as palavras «senhores» e
«escravos» por «administradores» e «cooperadores» e talvez atinjamos o
necessário equilíbrio em nosso entendimento.
Buscando suavizar o diálogo, o ancião fêz pequeno intervalo e
acrescentou, sorridente:
— Precisamos de mais humanidade para sermos realmente humanos. Não
é justo o cativeiro da sensibilidade e da inteligência e, a fim de que o nosso
mundo se adapte à perfeição que o espera, é imprescindível tenhamos
bastante coragem de raciocinar em termos diversos daqueles que vão regendo
a nossa jornada coletiva, de milênios para cá. As condições de luta e
aprendizado na Terra alterar-se-ão totalmente quando compreendermos que
somos irmãos uns dos outros.
Taciano, na essência, não esposava semelhantes pontos de vista. Nunca
pudera ouvir a palavra “fraternidade”, sem revoltar-se. Contudo, menos
impulsivo agora, rememorava as conversações que mantivera com o pai, em
outro tempo.
Basílio era um autêntico sucessor de Quinto Varro.
Admitiu que o novo amigo estaria igualmente impregnado da mística dos
nazarenos, mas detestava ainda o Cristianismo para fazer qualquer pergunta.
Para ele, as Divindades Olímpicas deveriam ser obrigatoriamente objeto de
exclusiva adoração. Anos antes, teria explodido em considerações rudes e
contundentes, mas o sofrimento moral lhe havia alterado o modo de ser e, no
fundo, não desejava desfazer tão bela amizade.
Por essa razão, procurou desviar o entendimento e, fixando-o no aspecto
filosófico, inquiriu:
— Julgas então que já vivemos outras vidas? que já respiramos juntos em
outros climas?
O velho bem humorado afirmou, convicto:
— Não tenho qualquer dúvida. E assevero, ainda mais, que ninguém se
encontra sem objetivo. A simpatia ou a antipatia não se fazem num minuto. São
obras do tempo. A confiança com que nos entendemos, os laços de afeição
que nos aproximam, desde ontem, não constituem simples eventualidade, O
acaso não existe. Certamente, forças superiores e intangíveis nos reúnem, de
novo, para algum trabalho a realizar. Procedemos do passado, assim como o
dia de hoje é a continuação do dia de ontem, na sequência das horas. Na
Terra, experimentamos e somos experimentados, em marcha constante para
outras esferas e, de mundo em mundo, como de degrau a degrau,
alcançaremos a gloriosa imortalidade.
As considerações transcendentes de certo iriam longe, mas Livia e
Blandina surgiram, de súbito, e os convidaram, prazenteiras, para um leve repasto
de frutas e refrescos.
Os dois amigos aquiesceram, contentes.
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(Ir Para a segunda parte, aqui postada)