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sábado, 29 de janeiro de 2011

Parnaso de Além-Túmulo-Parte 1-Francisco Cândido Xavier

PARTE1   -   PARTE2

 

PARNASO DE ALÉM-TÚMULO

FRANCISCO CÂNDIDO XAVIER

DITADO POR DIVERSOS ESPÍRITOS


À guisa de prefácio

A teoria, tanto quanto a prática espírita, apresenta, aos leigos e inscien­tes, aspectos e modismos inéditos, imprevistos, bizarros, surpreendentes.

Nos domínios da mediunidade, então, o reservatório de surpresas parece inesgotável e desconcerta, e surpreende até os observadores mais argutos e avi­sados.

Se fôssemos minudenciar, escarificar o assunto até às mais profundas raízes, poderíamos concluir que o comércio de encarnados e desencarnados, velho quanto o mundo, se indicia mais ou menos latente ou ostensivo, em todos os atos e feitos da Humanidade.

Inspirações, idéias súbitas ou pervicazes, sonhos, premonições e atos havidos por espontâneos e propriamente naturais, radicam muito e mais na influenciação dos Espíritos que nos cercam — por força e derivativo da mesma lei de afinidade incoercível no plano físico, quanto no psíquico — do que a muitos poderia parecer.

E assim como se não desloca nem se precipita, isoladamente, um Átomo no concerto sideral dos mundos infinitos, assim também não há pensamento, idéia, sentimento, isolados no conceito consciencial dos seres inteligentes, que atualizam e vivificam o pensamento divino, em ascese indefinida — semper ascendens...

É o que fazia dizer a Luisa Michel: “um ser que morre, uma folha que cai, um mundo que desaparece, não são, nas harmonias eternas, mais que um silêncio necessário a um ritmo que não conhecemos ainda”.

Mas, não há daí concluir que a criatura humana se reduza à condição de autômato, sem vontade e sem arbítrio, porque nada à revelia da Lei se ve­rifica; e no jogo dessa atuação constante, o ascendente dos desencarnados não vai além das lindes assinadas pela Providência; não ultrapassa, jamais, a capacidade receptiva do percipiente, seja para o bem, seja para o mal.

* * *

Não é, contudo, desse mediunismo sutil, intrínseco, consubstancial à na­tureza humana, que importa tratar aqui.

Nem remontaríamos aos filões da História para considerar-lhe a iden­tidade aos tempos da Índia, do Egito, da Grécia, das Gálias e de Roma. em trânsito para a Idade Média, na qual os médiuns eram imolados ao mais estú­pido dos fanatismos — o religioso. Hoje, fogueira e potro foram substituídos pela difamação, pelo ridículo alvar, pago em boa espécie monetária, ou ainda pelo cerco caviloso e interditório de quaisquer vantagens sociais.

A luta tornou-se incruenta, mas, nem por isso, menos áspera e porfiosa.

Assoalha-se que a mediunidade é fonte de mercantilismo: entretanto, nenhum grande médium, que o saibamos, chegou a acumular fortuna e ren­dimentos.

Muitos, ao invés, quais Home, Slade. Eusápia e d’Espérance, morreram paupérrimos e, o que mais é, tendo a panejar-lhes a memória o labéu de charlatães.

Mas houvesse de fato esse mercantilismo e nunca se justificaria, senão por abusivo e espúrio, de vez que a Doutrina o não autoriza, sequer por hipótese.

Porque, na verdade, assim se escreve a História e o maior dos médiuns, o Médium de Deus, só escapou ao estigma da posteridade pela porta escusa do concílio de Nicéia, numa divinização acomodaticia e rendosa ao formigamen­to parasitário e onímodo dos Constantinos, que, ainda hoje, lhe exploram os feitos e o nome augusto, com bulas políticas de vulpina retórica, factícios pru­ridos de grosseira mistificação, em bonsolatrias de cimento armado.

Entretanto, como a confIrmar a tradição — “os Santos Apóstolos fo­ram, em sua maioria, humildes pescadores” — e não só a tradição como a sen­tença de que os últimos seriam os primeiros —, não vêm hoje os vexilários da Verdade trazê-la aos magnatas da Terra. aos príncipes dos sacerdotes, escribas e fariseus hodiernos, disputantes à compita da magnífica carapuça e eles ta­lhada e ajustada. de vinte séculos, no capitulo 23º de Mateus.

Ao contrário, esses esculcas do Além parece preterirem os operários modestos, modestos e rústicos, rústicos e bons, como tão sutilmente os define o Eça em magistral mensagem:

“Tipos originais, mãos calosas que se entregam aos rudes trabalhos braçais, a fazerem a literatura do além-túmulo; homens a que Tartufo chama bruxos e Esculápio qualifica de basbaques, mistificadores, ou simples casos patológicos a estudar...”

É verdade tudo isso; mas. Convenhamos, também o é para maior glória de Deus.

Não ignoramos que homens de alta cultura e renome científico têm versado o assunto, investigado, perquirido e proclamado a verdade, acima e além das conveniências e preconceitos políticos, científicos, religiosos. Nomeá-los aqui, seria fastidioso quanto inútil.

O vulgo que não lê, ou que lê pela cartilha do Sr. vigário nos conse­lhos privados da família beata, não deitaria os seráficos olhares a estas pá­ginas e seguiria, clamoroso ou contente, de qualquer forma inconsciente, — infinitus stultorum numerus — a derrota do seu calvário, no melhor dos mundos, à Pangloss.

O outro, o vulgo que lê e compreende, mas para o qual o magister dixit é a melhor fórmula de concessão e acomodação consigo mesmo, estômago e vísceras em função, sofra a quem sofrer, doa a quem doer — esse, basofiando ciência em gestos largos de animalidade superior, se estas linhas chegasse a ler, haveria de esboçar aquele sorriso fino e bom que Bonnemére não sabia definir se seria de Voltaire, ou do mais refinado dos idiotas...

* * *

Adiante, pois, na tarefa nada espartana de apresentar esta prova opima das esmolas de luz que nos chegam em revoada de graças, a encher-nos o co­ração de alvissareiras esperanças.

Quem quiser certezas maiores, explanações técnicas e eruditas do fe­nômeno em apreço, que as procure no livro Do País da Luz, obra similar, edita­da há uma vintena de anos. psicografada pelo médium português Fernando de Lacerda, e que fez, nas rodas profanas de Lisboa, o mais ruidoso sucesso.

Nessa obra, o ilustre Dr. Sousa Couto, em magistral prefácio, esgotou o assunto ao encará-lo sob todos os prismas de uma severa crítica, para con­cluir pela transcendência do fenômeno, rebelde a todos os métodos de classi­ficação científica e, sem embargo. realíssimo em sua especificidade.

Pois, a nosso ver, maior é o mérito, por mais opulenta a polpa me­diúnica, desta obra.

É que lá em Do Pais da Luz, avulta a prosa, com raras exceções; ao passo que aqui desborda o verso, mais original, mais difícil, mais precioso como índice de autenticidade autoral.

Lá, as mensagens características são exclusivas de escritores lusos, únicas que podem, a rigor, identificar pelo estilo os seus autores.

As de Napoleão 1º, Teresa de Jesus, etc., são incontestavelmente belas no fundo e na forma, mas não características de tais entidades.

Aqui, pelo contrário, não só concorrem poetas brasileiros e portugueses, como retinem cristalinas e contrastantes as mais variadas formas literárias, como a facilitarem de conjunto a identificação de cada um.

Romantismo. Condoreirismo, Parnasianismo, Simbolismo, aí se osten­tam em louçanias de sons e de cores, para afirmar não mais subjetiva, mas objetivamente, a sobrevivência dos seus intérpretes.

É ler Casimiro e reviver Primaveras; é recitar Castro Alves e sentir Espumas flutuantes; é declamar Junqueiro e lembrar a Morte de Dom João; é frasear Augusto dos Anjos e evocar Eu.

Senão, vejamos:

Oh! que clarão dentro dalma.

Constantemente cismando.

O pensamento sonhando

E o coração a cantar,

Na delicada harmonia

Que nascia da beleza,

Do verde da Natureza,

Do verde do lindo mar!

É Casimiro...

Há mistérios peregrinos

No mistério dos destinos

Que nos mandam renascer;

Da luz do Criador nascemos.

Múltiplas vidas vivemos,

Para à mesma luz volver.

É Castro Alves...

Pairava na amplidão estranho resplendor.

A Natureza Inteira em lúcida poesia

Repousava, feliz, nas preces da harmonia!...

Era o festim do amor,

No firmamento em luz,

Que celebrava

A grandeza de uma alma que voltava

Ao redil de Jesus.

É Junqueiro...

Descansa, agora vibrião das ruínas.

Esquece o verme, as carnes, os estrumes.

Retempera-te em meio dos perfumes

Cantando à luz das amplidões divinas.

É Augusto dos Anjos.

E todos, todos os mais, aí estão vivos, ardentes, inconfundíveis na mo­dulação de suas liras encantadas e decantadas.

E na prosa — exceto a Fernando de Lacerda, cujo estilo não temos ele­mentos para identificar — o mesmo traço de originalidade personalíssima se impõe.

Duvidamos que o mais solerte plumitivo, o mais Intelectual dos nossos literatos consiga Imitar, sequer, ainda que premeditadamente, esta produção.

E isto o dizemos porque o médium Xavier, um quase adolescente, sem lastro, portanto, de grande cultura e treino poético, recebe-a de jacto, e mais — quando de alguns autores não conhece uma estrofe!

É extraordinário, será maravilhoso, mas é a verdade nua e crua; ver­dade que, qual a Luz. não pode ficar debaixo do alqueire.

Foi por assim pensarmos que conseguimos vencer a relutância do mé­dium em sua natural modéstia para lançar ao público, em geral, e aos confra­des, em particular, esta obra mediúnica, que, certo estamos, ficará como baliza fulgurante, na história a tracejar do Espiritismo em nossa pátria.

* * *

Mas, perguntarão: — quem é Francisco Cândido Xavier? Será um rapaz culto, um bacharel formado, um acadêmico, um rotulado desses que por ai vão felicitando a Família, a Pátria e a Humanidade?

Nada disso.

O médium polígrafo Xavier é um rapaz de 21 anos, um quase adoles­cente, nascido ali assim em Pedro Leopoldo, pequeno rincão do Estado de Minas. Filho de pais pobres, não pôde ir além do curso primário dessa pedagogia incipiente e rotineira, que faz do mestre-escola, em tese, um galopim eleitoral e não vai, também em tese, muito além das quatro operações e da leitura corrida, com borrifos de catecismo católico, de contrapeso.

Órfão de mãe aos 5 anos, o pai infenso a literatices e, ao demais, pra­mido pelo ganha-pão, é bem de ver-se que não teve, que não podia ter o estímulo ambiente, nem uma problemática hereditariedade, nem um, nem dez ci­reneus que o conduzissem por tortuosos e torturantes labirintos de acesso aos altanados paços do Olimpo para o Idílico convívio de Caliope e Polímnia.

Tudo isso é o próprio médium quem no-lo diz, em linguagem eloquente, porque simples como a própria alma cedo esfolhada de sonhos e ilusões, para não pretender colimar renomes literários.

Ao lhe formularmos um questionário que nos habilitasse a pôr de plano estes detalhes essenciais — de vez que, em obra deste quilate o que se Impõe não é a apresentação dos operários, mas da ferramenta por eles utilizada, tanto quanto do seu manuseio; e não querendo, por outro lado, endossar um fenô­meno cuja ascendência sobejamente conhecemos para não refusar, mas, cujo flagrante não presenciamos — ele, o médium, veio “candidamente” ao nosso encontro com Palavras minhas, nas quais estereotipa a sua figura moral, tanto quanto retrata as Impressões psicofísicas que lhe causa o fenômeno.

Nós mesmo vimos, certa vez, em São Paulo, o médium Mirabelli cobrir dezoito laudas de papel almaço, no exíguo tempo de 13 minutos marcados a relógio, enquanto conosco discreteava em idioma diverso da mensagem escrita.

É um fato. Do seu mecanismo intrínseco e extrínseco, porém, nada nos disse o médium.

Agora, diz-nos este que também as produções são recebidas de jacto.

Não há ideação prévia, não há encadeamento de raciocínios, fixação de imagens.

É tudo inesperado, explosivo, torrencial!

Do que escreve e sabe que está escrevendo, também sabe que não pen­sou e não seria capaz de escrever.

Há vocábulos de étimo que desconhece; há fatos e recursos de herme­nêutica. figuras de retórica, que ignora; teorias científicas, doutrinas, concep­ções filosóficas das quais nunca ouviu falar, de autores também ignorados e jamais lidos!

Como explicar, como definir e transfixar a captação, a realização essen­cial do fenômeno?

Só o médium poderia fazê-lo, e Isso ele o faz a seguir, de maneira impressionante, e de modo a satisfazer aos familiares da Doutrina.

Aos outros, aos cépticos, fica-lhes a liberdade de conjeturar, para me­lhor explicar, sem contudo negar, porque o fato aí está na plenitude de sua realidade, e um fato, por mais insólito que seja, vale sempre por mil e uma teorias, que nada explicam, antes complicam...

* * *

Como nota final aos argos da crítica, Catões e Zoilos de compasso e metro, faisqueiros de nugas e nicas, na volúpia de escandir quand même, di­remos que, encarregado de apresentar esta obra, não nos dispusemos a es­coimá-la de possíveis defeitos de técnica, não só por nos falecer autoridade e competência, como por julgar que tal ousio seria uma profanação.

Trata-se, precípuamente, de um trabalho de Identificação autOral, e de entidades hoje mais lúcidas e respeitáveis do que porventura o foram aqui na Terra.

Tal como no-lo deram, esse trabalho melhor corresponde à sua fina­lidade altíssima, e o que a legitima ética doutrinária aponta é que quaisquer lacunas, ou tallscas, devem ser atribuidas ou irrogadas ao possivelmente pre­cário aparelhamento de transmissão, ou a fatores outros, em suma, que mal podemos imaginar e que, no entanto, racional e logicamente devem existir, mais sutis e delicados do que esses que, amiúde, ocorrem na telepatia, na radiofonia, em tudo, enfim, que participa do meio físico contingente.

Que os arautos da Boa Nova aqui escalonados, por vindos de tão alto, nos perdoem a vacuidade e a insulsice destas linhas, e que os leitores de boa vontade as desprezem como Inúteis, para só apreçarem a obra que ora lhes apresentamos, na pauta evangélica que diz: — A árvore se conhece pelo fruto.

M. Quintão (*)

(*) MANUEL Justiniano de Freitas QUINTÃO, nascido em 28 de maio de 1874, na Estação de Quirino, Marquês de Valença, RJ, e desencarnado em 16 de dezembro de 1954. no Rio de Janeiro. Foi guarda-livros, depois de lutar com imen­sas dificuldades, como jovem sem recursos financeiros, nas posições mais modes­tas do comércio. Chefe de família numerosíssima, Estudioso Incansável, conseguiu, como autodidata, invejável cultura humanística. Foi jornalista. Ingressou na FEB em 1903, Integrando-lhe o quadro social por 44 anos. Médium curador e espírita militante durante mais de meio século, exerceu cargos na Diretoria da Federação Espírita Brasileira ao longo de vários decênios, Inclusive a Presidência nos anos 1915, 1918. 1919 e 1929. Como membro do Grupo Ismael” foi sempre dos mais assí­duos e proficientes no estudo do Evangelho de Jesus. Traduziu diversos livros espíritas e publicou alguns de sua autoria, muito apreciados, dentre eles “Cinzas do meu Cinzeiro” (coletânea de trabalhos publicados no “Reformador”) O Cristo de Deus. este último editado pela FEB. Em 1939, escreveu notas autobiográficas endereçadas ao Reformador, para serem publicadas após a sua desencarnação: estão estampa­das na edição de janeiro de 1955. (Nota do Editor.)


FRANCISCO CÂNDIDO XAVIER

NASCEU em Pedro Leopoldo, MG, em 2 de abril de 1910, onde residiu até dezembro de 1958. Transferiu-se para Uberaba, MG, em janeiro de 1959. Filho de João Cândido Xavier e de Maria João de Deus, desencarnados em 1960 e 1915, respectivamente. Aposentou-se como fun­cionário público federal. Médium de atividade ininterrupta há quase meio século, publicou, através da Casa-Máter do Espiritismo — a Federação Espírita Brasileira —, em julho de 1932, o Parnaso de Além-Túmulo, primeiro livro de suas faculdades mediúnicas e já em 9ª edição. Seguiram-se-lhe mais de 110 livros mediúnicos, diversos deles publicados em Esperanto, Castelhano, Japonês, Inglês e Francês. Os romances psicografados (entre eles Paulo e Estêvão, Há Dois Mil Anos. .. e Renúncia) são periodicamente radiofonizados e televisionados. Criatura simples, afável e operOSa, jamais se beneficiou dos direitos autorais da sua vasta produção mediúnica. Res­peitado e estimado em todo o Brasil, onde é popularíssimo, goza ele ainda de sincera admiração em outros paises. Viajou para o exterior algumas vezes, sempre no exercício do seu mediunato.


Palavras minhas

Nasci em Pedro Leopoldo. Minas, em 1910. E até aqui, julgo que os meus atos perante a sociedade da minha terra são expressões do pensamento de uma alma sincera e leal, que acima de tudo ama a verdade; e creio mesmo que todo os que me conhecem podem dar testemunho da minha vida repleta de árduas dificuldades, e mesmo de sofrimentos.

Filho de um lar muito pobre, órfão de mãe aos cinco anos, tenho ex­perimentado toda a classe de aborrecimentos na vida e não venho ao campo da publicidade para fazer um nome, porque a dor há muito já me convenceu da inutilidade das bagatelas que são ainda tão estimadas neste mundo.

E, se decidi escrever estas modestas palavras no limiar deste livro, é apenas com o intuito de elucidar o leitor, quanto à sua formação.

Começarei por dizer-lhe que sempre tive o mais pronunciado pendor para a literatura; constantemente, a melhor boa vontade animou-me para o estudo. Mas, estudar como?

Matriculando-me, quando contava oito anos, num grupo escolar, pude chegar até ao fim do curso primário, estudando apenas uma pequena parte do dia e trabalhando numa fábrica de tecidos, das quinze horas às duas da manhã; cheguei quase a adoecer com um regime tão rigoroso; porém, essa situação modificou-se em 1923, quando então consegui um empre­go no comércio, com um salário diminuto, onde o serviço dura das sete às vinte horas, mas onde o trabalho é menos rude, prolongando-se esta minha situação até os dias da atualidade.

Nunca pude aprender senão alguns rudimentos de aritmética, história e vernáculo, como o são as lições das escolas primárias. É verdade que, em casa, sempre estudei o que pude, mas meu pai era completamente avesso à minha vocação para as letras, e muitas vezes tive o desprazer de ver os meus livros e revistas queimados.

Jamais tive autores prediletos; aprazem-me todas as leituras e mesmo nunca pude estudar estilos dos outros, por diferençar muito pouco essas ques­tões. Também o meio em que tenho vivido foi sempre árido, para mim, neste ponto. Os meus familiares não estimulavam, como verdadeiramente não po­dem, os meus desejos de estudar, sempre a braços, como eu. com uma vida de múltiplos trabalhos e obrigações e nunca se me ofereceu ocasião de conviver com os intelectuais da minha terra.

O meu ambiente, pois, foi sempre alheio à literatura; ambiente de po­breza, de desconforto, de penosos deveres, sobrecarregado de trabalhos para an­gariar o pão cotidiano, onde se não pode pensar em letras.

Assim têm-se passado os dias sem que eu tenha podido, até hoje, realizar as minhas esperanças.

Prosseguindo nas minhas explicações, devo esclarecer que minha família era católica e eu não podia escapar aos sentimentos dos meus. Fui pois criado com as teorias da igreja, freqüentando-a mesmo com amor, desde os tempos de criança; quando ia às aulas de catecismo era para mim um prazer.

Até 1927, todos nós não admittamos outras verdades além das procla­madas pelo Catolicismo; mas, eis que uma das minhas irmãs, em maio do ano referido, foi acometida de terrível obsessão; a medicina foi impotente para con­ceder-lhe uma pequenina melhora, sequer. Vários dias consecutivos foram, para nossa casa, Pioras de amargos padecimentos morais. Foi quando decidimos so­licitar o auxílio de um distinto amigo, espírita convicto, o Sr. José Hermínio Perácio, que caridosamente se prontificou a ajudar-nos com a sua boa vontade e o seu esforço. Verdadeiro discípulo do Evangelho, ofereceu-nos até a sua re­sidência. bem distante da nossa, tanto à sua família, onde então, num ambien­te totalmente modificado, poderia ela estudar as bases da doutrina espírita, orientando-se quanto aos seus deveres, desenvolvendo, simultaneamente, as suas faculdades mediúnicas. Aí, sob os seus caridosos cuidados e da sua Excelentíssima esposa Dona Carmen Pena Perácio, médium dotada de raras faculdades, mi­nha irmã Háuria, para nosso benefício, os ensinamentos sublimes da formosa dou­trina dos mensageiros divinos; foi nesse ambiente onde imperavam os senti­mentos cristãos de dois corações profundamente generosos, como o são os daqueles confrades a que me referi, que a minha mãe, que regressara ao Além em 1915, deixando-nos mergulhados em imorredoura saudade, começou a di­tar-nos os seus conselhos salutares, por intermédio da esposa do nosso amigo, entrando em pormenores da nossa vida íntima, que essa senhora desconhecia. Até a grafia era absolutamente igual à que a nossa genitora usava, quando na Terra.

Sobre esses fatos e essas provas irrefutáveis solidificamos a nossa fé, que se tornou inabalável. Em breve minha irmã regressava ao nosso lar cheia de saúde e feliz, integrada no conhecimento da luz que deveria daí por diante nortear os nossos passos na vida.

Resolvemos, então, com ingentes sacrifícios, reunir um núcleo de crentes para estudo e difusão da doutrina, e foi nessas reuniões que me desenvolvi como médium escrevente, semi-mecãnico, sentindo-me muito feliz por se me apre­sentar essa oportunidade de progredir, datando daí o ingresso do meu humilde nome nos jornais espíritas, para onde comecei a escrever sob a Inspiração dos bondosos mentores espirituais que nos assistiam. (1)

Daí a pouco, a nossa alegria aumentava, pois o nosso confrade José Hermínio Perácio, em companhia de sua esposa, deliberou fixar residência jun­to a nós, e as nossas reuniões tiveram resultados melhores, controladas pela sua senhora, alma nobilíssima, ornada das mais superiores qualidades morais e que, entre as suas mediunidades, conta com mais desenvolvimento a clariaudiência. Nossas reuniões contavam, assim, grande número de assistentes, porém, a moral profunda que era ensinada, baseada nas páginas esplendorosas do Evangelho de Jesus, parece que pesava muito, como acontece na opinião de grande maioria de almas da nossa época, quase sempre inclinadas para as fu­tilidades mundanas, e, decorridos dois anos, os assistentes de nossas sessões de estudos escassearam, chegando ao número de quatro ou cinco pessoas, o que perdura até hoje.

Não desanimamos, contudo, prosseguindo em nossas reuniões. consti­tuindo para nós uma fonte de consolações isolarmo-nos das coisas terrenas em nosso recanto de prece, para a comunhão com os nossos desvelados amigos do Além. Continuei recebendo as idéias dos mesmos amigos de sempre, nas reuniões, psicografando-as, e que eram continuamente fragmentos de prosa sobre os Evangelhos. Somente duas vezes recebi comunicações em versos simples.

Em agosto, porém, do corrente ano, apesar de muito a contragosto de minha parte, porque jamais nutri a pretensão de entrar em contacto com essas

(1) Só nos últimos dias de 1931, com a graça de Deus, desenvolveram-se em mim, de maneira clara e mais intensamente, a vidência, a audição e outras faculdades mediúnicas. — (Nota do médium para a 4ª edição, em 1944.)

entidades elevadas, por conhecer as minhas imperfeições, comecei a receber a série de poesias que aqui vão publicadas, assinadas por nomes respeitáveis.

Serão das personalidades que as assinam? — é o que não posso afian­çar, O que posso afirmar, categoricamente, é que, em consciência, não posso dizer que são minhas, porque não despendi nenhum esforço intelectual ao gra­fá-las no papel. A sensação que sempre senti, ao escrevê-las, era a de que vi­gorosa mão impulsionava a minha. Doutras vezes, parecia-me ter em frente um volume imaterial, onde eu as lia e copiava; e, doutras, que alguém mas ditava aos ouvidos, experimentando sempre no braço, ao psicografá-las, a sen­sação de fluidos elétricos que o envolvessem, acontecendo o mesmo com o cére­bro, que se me afigurava invadido por incalculável número de vibrações indefiní­veis. Certas vezes, esse estado atingia o auge, e o interessante é que parecia-me ha­ver ficado sem o corpo, não sentindo, por momentos, as menores impressões físicas, e o que experimento, fisicamente, quanto ao fenômeno que se produz freqüentemente comigo.

Julgo do meu dever declarar que nunca evoquei quem quer que fosse; essas produções chegaram-me sempre espontaneamente, sem que eu ou meus companheiros de trabalhos as provocássemos e jamais se pronunciou, em par­ticular, o nome de qualquer dos comunicantes, em nossas preces. Passavam-se ás vezes mais de dez dias, sem que se produzisse escrito algum, e dia houve em que se receberam mais de três produções literárias de uma só vez.

Grande parte delas foram escritas fora das reuniões e tenho tido ocasião de observar que, quanto menor o número de assistentes, melhor o resultado obtido.

Muitas vezes, ao recebermos uma destas páginas, era necessário recor­rermos a dicionários, para sabermos os respectivos sinônimos das palavras nela empregadas, porque tanto eu como os meus companheiros as desconhecíamos em nossa Ignorância, julgando minha obrigação, frisar aqui também, que, ape­sar de todo o meu bom desejo, jamais obtive outra coisa, na fenomenologia espírita, a não ser esses escritos. (*)

Devo salientar o precioso concurso da bondosa médium Sra. Cármen P. Perácio, que através da sua maravilhosa clariaudiência me auxiliou muitíssimo, transmitindo-me as advertências e opiniões dos nossos caros mentores espirituais, e ainda o carinhoso interesse do distinto confrade Sr. M. Quintão, que tem sido de uma boa vontade admirável para comigo, não poupando es­forços para que este despretensioso volume viesse à luz da publicidade.

E aqui termino.

Terei feito compreender, a quem me lê, a verdade como de fato ela é? Creio que não. Em alguns despertarei sentimentos de piedade e, noutros, rizinhos ridiculizadores. Há de haver, porém, alguém que encontre consolação nestas páginas humildes. Um desses que haja, entre mil dos primeiros, e dou-me por compensado do meu trabalho.

A todos eles, todavia, os meus saudares, com os meus agradecimentos intraduzíveis aos boníssimos mentores do Além, que Inspiraram esta obra, que generosamente se dignaram não reparar as minhas incontáveis imperfeições, transmitindo, por intermédio de Instrumento tão mesquinho, os seus salutares ensinamentos.

Pedro Leopoldo, dezembro de 1931.

Francisco Cândido Xavier

(*) Ao escrever estas palavras, o Autor não se lembrou de que as suas relações constantes com Espíritos desencarnados, mantidas desde os 5 anos de idade, pertencem igualmente à fenomenologia espírita. Pensou em tenomenologia somente como prática consciente da mediunidade nas sessões espiritas; mas todas as pessOas de sua intimidade sabem que ele, desde a infância. confunde os habitantes dos dois mundos e muitas vezes pergunta ao amigo que esteja passeando com ele “Estás vendo ali um homem de barbas brancas, etc.?” Pela resposta do companheiro éque ele fica sabendo se está, diante de um habitante do nosso mundo ou de habitante do mundo espiritual. Também isso são fenômenos espíritas. — A Editora.


De pé, os mortos!

Pede-me você uma palavra para o intróito do “Parnaso de Além-Tú­mulo”, que aparecerá brevemente em nova edição. (1)

A tarefa é difícil. Nas minhas atuais condições de vida, tenho de des­toar da opinião que já expendi nas contingências da carne.

Os vivos do Além e os vivos da Terra não podem enxergar as coisas através de prismas idênticos. Imagine se o aparelho visual do homem fosse acomodado, segundo a potencialidade dos raios X: as cidades estariam povoa­das de esqueletos, os campos se apresentariam como desertos, o mundo consti­tuiria um conjunto de aspectos inverossímeis e Inesperados.

Cada esfera da vida está subordinada a certo determinismo, no domínio do conhecimento e da sensação.

Decerto, os que receberem novamente o “Parnaso de Além-Túmulo” di­rão mais ou menos o que eu disse (2). Hão de estranhar que os mortos prossi­gam com as mesmas tendências, tangendo os mesmos assuntos que aí consti­tuiam a série de suas preocupações.

Existem até os que reclamam contra a nossa liberdade. Desejariam que estivéssemos algemados nos tormentos do In­ferno, em recompensa dos nossos desequilíbrios no mundo, como se os nossos amargores, daí não bastassem para nos inclinar à verdade compassiva.

Individualmente, é indubitável que possuimos no Além o reflexo das nos­sas virtudes ou das nossas misérias.

Mas é rasoável que apareçamos no mundo, gritando como alucinados?

Os habitantes dos reinos da Morte ainda apreciam o decoro e a decência, e o nosso presente é sempre a experiência do passado e a esperança no futuro.

“Parnaso de Além-Túmulo” sairá de novo, como a mensagem harmo­niosa dos poetas que amaram e sofreram. Cármen Cinira aí está com os seus sonhos desfeitos, de mulher e de menina. Casimiro com a sua sensibilidade infantil, Junqueiro com a sua Ironia, Antero com a sua rima austera e dolorosa.

Todos aí estão dentro das suas características.

Os mortos falam e a Humanidade está ansiosa, aguardando a sua palavra.

Conta-se que na guerra russo-japonesa, terminada a batalha de Tsushima, o grande Togo reuniu os seus soldados no cemitério de Oogama, e na tristeza majestosa do ambiente. em nome da nacionalidade, dirigiu-se aos

(1) Refere-se à 2ª edição, publicada em 1935. — (Nota da Editora)

(2) Alude às crônicas que ele, quando encarnado, escrevera no Diário Car­ioca, em julho de 1932. ao surgir a 1ª edição do Parnaso. — (Nota da Editora.)

mortos em termos comovedores; concitou-os a auxiliar as manobras militares, a visitar os cruzadores de guerra, levantando o ânimo dos companheiros que ha­viam ficado nas pelejas.

Uma claridade nova cantou as energias espirituais do valente adversário da pátria de Stoessel e os filhos de Yoritomo venceram.

Na atualidade, afigura-se-nos que os brados de todos ad sofredores e infelizes da Terra se concentram numa súplica grandiosa que invade as vas­tidões como o grito do valoroso almirante.

— De pé, os mortos!... — exclama-se — porque os vivos da Terra se perdem nos abismos tenebrosos.

Os Institutos da Civilização têm sido impotentes para resolver o pro­blema do nosso ser e dos nossos destinos.

As filosofias e as religiões estenderam sobre nós o manto carinhoso das suas concepções, mas esses mantos estão rotos!... Temos frio, temos fome, te­mos sede!

E os considerados mortos falam ao mundo na sua linguagem de estra­nha purificação. A Ciência, zelosa de suas conquistas, ainda não ouviu a sua vibração misteriosa, mas os filhos do Infortúnio sentem-se envolvidos na onda divina de um novo Glória in excelsis, e a Humanidade sofredora sente-se no caminho consolador da sublime esperança.

Humberto de Campos (*)

(Espírito)

(*) HUMBERTO DE CAMPOS Veras, escritor brasileiro, membro da Academia Brasileira de Letras, nascido em Miritiba (hoje Humberto de Campos), MA, em 1886, e desencarnado no Rio de Janeiro, em 1934. Foi jornalista e deputado federal. Pro­dução literária variada quão vultosa, Conheceu em vida física a 1ª edição do Par­naso de Além-Túmulo, manifestando-se a respeito dela pelo “Diário Carioca”, edições de 10 e 12 de julho de 1932, com os artigos Intitulados “Poetas do outro mundo” e “Como cantam os mortos” (apud “A Psicografia ante os Tribunais”, de Miguel Timponi, páginas 60 a 64, 4ª ed. FEB). Liberto dos liames da carne, dois anos depois passou ele a valer-se, como Espírito, das faculdades mediúnicas de Francisco Cân­dido Xavier para a transmissão de Importantes mensagens, como a que se inseriu nesta página, acoplada ao mesmo “Parnaso” que ele conhecera aqui na Terra e oriunda do mesmo “Além-Túmulo” por ele tenuemente vislumbrado, entre o assom­bro e a esperança, Ditou-nos 12 livros, sendo? sob o pseudónimo de Irmão 10º, edita­dos pela FEB. Vale destacar “BRASIL, CORAÇÃO DO MUNDO, PÁTRIA DO EVANGELHO”, já em 9ª edição, o livro confirmador da miSsão espiritual do Brasil, que é a de levar as luzes do Evangelho do Cristo a todos os quadrantes do Mundo, vi­sando à cristianização da Humanidade, sob a orientação do Anjo Ismael, o Legado do Governador Espiritual do Planeta em Terras de Santa Cruz. (Nota da Editora.)


1

ABEL GOMES

Temos Jesus.

ESCRITOR, poeta e professor, nascido em Minas Gerais a 30 de dezembro de 1877 e falecido a 16 de agosto de 1934. Espírito dinâmico, posto que fisicamente inválido, deixou alguns livros inéditos, dos quais dois já editados pela Federação, além de copiosa obra esparsa.

Temos Jesus

Desaba o Velho Mundo em treva densa

E a guerra, como lobo carniceiro,

Ameaça a verdade e humilha a crença,

Nas torturas de um novo cativeiro.

Mas vós, no turbilhão da sombra imensa,

Tendes convosco o Excelso Companheiro,

Que ama o trabalho e esquece a recompensa

No serviço do bem ao mundo inteiro.

Eis que a Terra tem crimes e tiranos,

Ambições, desvarios, desenganos,

Asperezas dos homens da caverna;

Mas vós tendes Jesus em cada dia.

Trabalhemos na dor ou na alegria,

Na conquista de luz da Vida Eterna.


2

A. G.

Morte.

Morte

Silenciosa madona da tristeza,

A morte abriu-me as catedrais radiosas,

Onde pairam as formas vaporosas

Do país ignorado da Beleza.

Num dilúvio de lírios e de rosas,

Filhos da luz de uma outra Natureza,

Que entornavam no espaço a sutileza

Dos incensos das naves harmoniosas!

Monja de olhar piedoso, calmo e austero,

Que traz à Terra um tênue reverbero

Da mansão das estrelas erradias...

Irmã da paz e da serenidade,

Que abriu meus olhos na Imortalidade,

À esperança de todos os meus dias!


3

ALBÉRICO LOBO

Do meu porto.

NASCIDO na cidade do Rio de Janeiro em 1865 e desencarnado em fevereiro de 1942. Funcionário público, colaborou ativamente na im­prensa e deixou opulenta obra esparsa, em prosa e

em verso.

Do meu porto

Ao caro amigo M. Quintão

Viajor vacilante e extenuado,

Depois de atravessar a sombra imensa,

Encontrei o país abençoado

Onde vive a celeste recompensa.

Adeus mágoas da noite estranha e densa,

Das angústias e sonhos do passado,

Não conservo senão o Amor e a Crença,

Ante o novo caminho ilimitado.

É doce descansar após a lida,

Banhar o coração na luz da vida,

Rememorando as dores que passaram...

E dos quadros risonhos do meu porto,

Rogo a Jesus conceda reconforto

Aos corações amados que ficaram!


4

ALBERTO DE OLIVEIRA

Jesus - Ajuda e passa - Do último dia.

FLUMINENSE, nascido em Palmital de Saqüare­ma, em 1859, e falecido em Niterói, em 1937. Farmacêutico, dedicou-se principalmente ao Magistério. Membro fundador da Academia Brasileira de Letras, parnasiano de escol, foi tido como Príncipe dos Poetas de sua geração.

Jesus

Quanta vez, neste mundo, em rumo escuro e incerto,

O homem vive a tatear na treva em que se cria!

Em torno, tudo é vão, sobre a estrada sombria,

No pavor de esperar a angústia que vem perto!...

Entre as vascas da morte, o peito exangue e aberto,

Desgraçado viajor rebelado ao seu guia,

Desespera, soluça, anseia e balbucia

A suprema oração da dor do seu deserto.

Nessa grande amargura, a alma pobre, entre escombros,

Sente o Mestre do Amor que lhe mostra nos ombros

A grandeza da cruz que ilumina e socorre;

Do mundo é a escuridão, que sepulta a quimera...

E no escuro bulcão só Jesus persevera,

Como a luz imortal do amor que nunca morre.

Ajuda e passa

Estende a mão fraterna ao que ri e ao que chora:

O palácio e a choupana, o ninho e a sepultura,

Tudo o que vibra espera a luz que resplendora,

Na eterna lei de amor que consagra a criatura.

Planta a bênção da paz, como raios de aurora,

Nas trevas do ladrão, na dor da alma perjura;

Irradia o perdão e atende, mundo afora,

Onde clame a revolta e onde exista a amargura.

Agora, hoje e amanhã, compreende, ajuda e passa;

Esclarece a alegria e consola a desgraça,

Guarda o anseio do bem que é lume peregrino...

Não troques mal por mal, foge à sombra e à vingança,

Não te aflija a miséria, arrima-te à esperança.

Seja a bênção de amor a luz do teu destino.

Do último dia

O homem, no último dia, abatido em seu horto,

Sente o extremo pavor que a morte lhe revela;

Seu coração é um mar que se apruma e encapela,

No pungente estertor do peito quase morto.

Tudo o que era vaidade, agora é desconforto.

Toda a nau da ilusão se destroça e esfacela

Sob as ondas fatais da indômita procela,

Do pobre coração, que é náufrago sem porto.

Somente o que venceu nesse mundo mesquinho,

Conservando Jesus por verdade e caminho,

Rompe a treva do abismo enganoso e perverso!

Onde vais, homem vão? Cala em ti todo alarde,

Foge dessa tormenta antes que seja tarde:

Só Jesus tem nas mãos o farol do Universo.


5

ALFREDO NORA

Carta ligeira.

ALFREDO José dos Santos Nora nasceu em 18 de novembro de 1881, no município de Piraí, Estado do Rio, e desencarnou em 13 de no­vembro de 1948. Depois de estudar Engenharia até ao 4º ano do curso, tornou-se funcionário da Central do Brasil, aposentando-se como Agente de 1ª classe. Poeta e jornalista, colaborou em várias revistas e jornais.

Carta ligeira

Meu Lasneau, não é bilhete,

Não é oficio, nem ata.

É o coração que desata

Meus pesares num lembrete.

1

Lasneau amigo, esta choça,

Onde a carne, breve, passa,

Cheia de lama e fumaça,

É minúscula palhoça.

A Terra, ante o sol da Graça,

É feio talhão de roça,

Detendo por balda nossa

Descrença, guerra e cachaça.

Agora é que entendo isso,

Mas é triste a fé sem viço

Que o sepulcro impõe à pressa...

Espere sem alvoroço,

Além da prisão de osso,

A vida real começa.

2

Oh! meu caro, se eu pudesse

Dizer tudo o que não disse,

Sem a velha esquisitice

Que inda agora me entontece!

Entretanto, é clara a messe

Da sementeira de asnice.

Perdi tempo em maluquice

E o tempo me desconhece.

É natural que padeça

A minha pobre cabeça

Perante a Luz, face a face.

Não me olvide em sua prece,

Desejo que a luta cesse,

Que a coisa melhore e... passe.


6

ALPHONSUS DE GUIMARÃENS

Aos crentes – Redivivo - Sinos - Santa Virgo Vírginum.

AFONSO Henrique da Costa Guimarães, poeta mineiro, natural de Ouro Preto. Nasceu aos 24 de julho de 1870 e desencarnou em 15 de julho de 1921. Magistrado, jornalista e poeta, notabilizou-se principalmente pela tonalidade mística do seu astro, qual se afirma em suas obras: Dona Mística, Septe­nário das Dores, Kiriale, Escada de Jacob, etc.

Aos crentes

Ó crentes de uma outra vida,

Que andais no mundo exilados,

Nos caminhos enevoados,

Lendo o missal da amargura!

Esperai a sepultura,

Ó crentes de uma outra vida! ...

Tangei harpas de esperança,

Nas lutas de vossa esfera,

Porque a Morte é a primavera

Luminosa, eterna e imensa...

Filhos da paz e da crença

Tangei harpas de esperança!...

Redivivo

Sou o cantor das místicas baladas

Que, em volutas de flores e de incenso,

Achou, no Espaço luminoso e imenso,

O perfume das hóstias consagradas.

Almas que andais gemendo nas estradas

Da amargura e da dor, eu vos pertenço,

Atravessai o nevoeiro denso

Em que viveis no mundo, amortalhadas.

Almas tristes de freiras e sorores,

Sobre quem a saudade despetala

Os seus lírios de pálidos fulgores;

Eu ressurjo nos místicos prazeres,

De vos cantar, na sombra onde se exala

Um perfume de altar e misereres...

Sinos

Escuto ainda a voz dos campanários

Entre aromas de rosas e açucenas,

Vozes de sinos pelos santuários,

Enchendo as grandes vastidões serenas...

E seguindo outros seres solitários,

Retomo velhos quadros, velhas cenas,

Rezando as orações dos Septenários,

Dos Ofícios, dos Terços, das Novenas...

A morte que nos salva não nos priva

De ir ao pé de um sacrário abandonado,

Chorar, como inda faz a alma cativa!

Ó sinos dolorosos e plangentes,

Cantai, como cantáveis no passado,

Dizendo a mesma Fé que salva os crentes!

Santa Virgo Vírginum

Sobe da Terra, em ondas luminosas,

Um turbilhão de vozes e de lírios,

Buscando-vos nas Luzes Harmoniosas,

Oh! Virgem da Pureza e dos Martírios!

Imagens de turíbulos e rosas

Aromatizam todos os empíreos...

Há na Terra canções maravilhosas

Entre as luzes e as lágrimas dos círios.

Senhora, o mundo inteiro vos festeja,

Em magnificência ampla e radiosa,

Nos altares simbólicos da Igreja!

Eis, porém, que vos vejo nos caminhos,

Onde a vossa virtude carinhosa

Consola e ampara os fracos pobrezinhos...


7

ALMA EROS

O cálice – O irmão.

O cálice

A chuva benéfica e abundante cai dos céus

Mitigando a sede da terra.

Assim também, o Amado faz chover sobre os homens

Os poderes e as bênçãos.

No entanto, choras e desesperas...

Por que não recolheste a tempo a tua parte?

— Nada vi — responderás...

É porque teus olhos estavam nevoados na atmosfera do sonho.

O Senhor passa todos os dias,

Distribuindo os dons celestiais,

Mas as ânforas do teu coração vivem transbordando de substâncias estranhas.

Aqui, guardas o vinagre dos desenganos,

Acolá, o envenenado licor dos caprichos.

O Amado é incapaz de violentar a tua alma.

Seu carinho aguarda a confiança espontânea,

Seu coração freme de júbilo,

Na expectativa de entregar-te os tesouros eternos...

Mas, até agora,

Persegues a fantasia e alimentas curiosamente a ilusão.

Todavia, o Amado espera.

E dia virá,

Na estrada longa do destino,

Em que estenderás ao seu amor infinito

O cálice do coração lavado e vazio.

O irmão

Por que ajuizas com ironia,

Sobre as obscuridades do irmão que sobe dificilmente a montanha?

Quando atravessava a floresta

O pobrezinho julgou que o Amado lhe falava à mente pela voz do trovão

E lhe erigiu altares

Enfeitados de flechas.

Depois,

Quando penetrou noutros círculos,

Acreditou que o Senhor pertencia somente ao seu grupo

E que as outras comunidades humanas eram condenadas...

Lutou, sofreu, feriu-se em dolorosas experiências.

O Amado, porém, jamais o deserdou por isso.

Deu-lhe novas forças,

Concedeu-lhe oportunidades diferentes.

Por vezes,

Buscou-o no fundo dos abismos,

Como pai carinhoso,

Em busca da criancinha abandonada.

De tempos a tempos,

Fê-lo dormir no regaço,

Ao influxo do bendito esquecimento,

Para que o sol do trabalho lhe sorrisse outra vez.

Não observas em seu caminho áspero a tua própria história?

Não atormentes com palavras amargas o irmão que se eleva

Laboriosamente,

Dando ao mundo o que possui de melhor.

Ama-o, faze-lhe o bem que possas.

Se já atingiste

Algum topo de colina,

Contempla as culminâncias que te aguardam

Entre as nuvens,

E estende as mãos fraternas

Aquele que ainda não pode ver o que já vês.


8

ÁLVARO TEIXEIRA DE MACEDO

Depois da festa.

ÁLVARO Teixeira de Macedo nasceu no Recife em 13 de janeiro de 1807 e desencarnou em 7 de dezembro de 1849, na Bélgica, onde era encarregado dos negócios do Governo Imperial do Brasil. Publicou, em livro, um poema heróico-burles­co — A Festa de Baldo.

Depois da festa

Não te entregues na Terra à vil mentira,

Desfaze a teia da filáucia humana,

Que a Morte, em breve, humilha e desengana

A demência da carne que delira...

O gozo desfalece à própria gana,

Toda vaidade ao báratro se atira,

Sob a ilusão mendaz chameja a pira

Da verdade, celeste, soberana.

Finda a festa de baldo riso infando,

A alma transpõe o túmulo chorando,

Qual folha solta ao furacão violento.

E quem da luz não fez templo e guarida,

Desce gemendo, de alma consumida,

Ao turbilhão de cinza e esquecimento.


9

AMADEU (?)

O mistério da morte.

O mistério da morte

O mistério da morte é o mistério da vida,

Que abandona a matéria exãnime e cansada;

Que traz a treva em si e abre a porta dourada

De um mundo que entre nós é a luz desconhecida.

Também tive a minhalma outrora perturbada,

De dúvida, incerteza e angústias consumida,

Mas a morte sanou-me a última ferida

Desfazendo as lições utópicas do Nada.

A morte é simplesmente o lúcido processo

Desassimilador das formas acessíveis

A luz do vosso olhar, empobrecido e incerto.

Venho testemunhar a luz de onde regresso,

Incitando vossa alma aos planos invisíveis,

Onde vive e se expande o Espírito liberto.


10

AMARAL ORNELLAS

Ave Maria - O Tempo.

FUNCIONÁRIO público. Nasceu no Rio de Janeiro em 20 de outubro de 1885 e desencarnou a 5 de janeiro de 1923. Talento brilhante, deixou dois volumes de Poesia, consagrados pela crítica coeva, além de copiosa literatura teatral e doutri­nária.

Ave Maria

Ave Maria! Senhora

Do Amor que ampara e redime,

Ai do mundo se não fora

A vossa missão sublime!

Cheia de graça e bondade,

É por vós que conhecemos

A eterna revelação

Da vida em seus dons supremos.

O Senhor sempre é convosco,

Mensageira da ternura,

Providência dos que choram

Nas sombras da desventura.

Bendita sois vós, Rainha!

Estrela da Humanidade,

Rosa mística da fé,

Lírio puro da humildade!

Entre as mulheres sois vós

A Mãe das mães desvalidas,

Nossa porta de esperança,

E Anjo de nossas vidas!

Bendito o fruto imortal

Da vossa missão de luz,

Desde a paz da Manjedoura,

As dores, além da Cruz.

Assim seja para sempre,

Oh! Divina Soberana,

Refúgio dos que padecem

Nas dores da luta humana.

Ave Maria! Senhora

Do Amor que ampara e redime,

Ai do mundo se não fora

A vossa missão sublime!

O Tempo

O tempo é o campo eterno em que a vida enxameia

Sabedoria e amor na estrada meritória.

Nele o bem cedo atinge a colheita da glória

E o mal desce ao paul de lama, cinza e areia.

Esquece a mágoa hostil que te oprime e alanceia.

Toda amargura é sombra enfermiça e ilusória...

Trabalha, espera e crê... O serviço é vitória

E cada coração recolhe o que semeia.

Dor e luta na Terra — a Celeste Oficina —

São portas aurorais para a Mansão Divina,

Purifica-te e cresce, amando por vencê-las...

Serve sem perguntar por “onde”, “como” e “quando”,

E, nos braços do Tempo, ascenderás cantando

Aos Píncaros da Luz, no País das Estrelas!


11

ANTERO DE QUENTAL

Ciência ínfima - Rainha do Céu - À morte - Depois da morte – Soneto - O Remorso – Soneto – Deus – Consolai – Crença - Não choreis - Mão divina - Almas sofredoras - Supremo engano – Incognoscível – Fatalidade - Estranho concerto.

NASCIDO na ilha de São Miguel, nos Açores, em 1842, e desencarnado por suicídio, em 1891. É vulto eminente e destacado nas letras por­tuguesas, caracterizando-se pelo seu espírito filosófico.

Ciência ínfima

Onde o grande caminho soberano

Da. Ciência que abriu a nova era,

Investigando a entranha da monera,

A desvendar-se no capricho insano?

Ciência que se elevou à estratosfera

E devassou os fundos do oceano,

Fomentando o princípio desumano

Da ambição onde a força prolifera...

Ciência de ostentação, arma de efeito,

Longe da Luz, da Paz e do Direito,

Num caminho infeliz, sombrio e inverso;

Sob o alarme guerreiro, formidando,

Eis que a Terra te acusa, soluçando,

Como a Grande Mendiga do Universo!...

Rainha do Céu

Excelsa e sereníssima Senhora,

Que sois toda Bondade e Complacência,

Que espalhais os eflúvios da Clemência

Em caminhos liriais feitos de aurora!...

Amparai o que anseia, luta e chora,

No labirinto amargo da existência.

Sede a nossa divina providência

E a nossa proteção de cada hora.

Oh! Anjo Tutelar da Humanidade.

Que espargis alegria e claridade

Sobre o mundo de trevas e gemidos;

Vosso amor, que enche os céus ilimitados,

É a luz dos tristes e dos desterrados,

Esperança dos pobres desvalidos!...

À morte

Ó Morte, eu te adorei, como se foras

O Fim da sinuosa e negra estrada,

Onde habitasse a eterna paz do Nada

As agonias desconsoladoras.

Eras tu a visão idolatrada

Que sorria na dor das minhas horas,

Visão de tristes faces cismadoras,

Nos crepes do Silêncio amortalhada.

Busquei-te, eu que trazia a alma já morta,

Escorraçada no padecimento,

Batendo alucinado à tua porta;

E escancaraste a porta escura e fria,

Por onde penetrei no Sofrimento,

Numa senda mais triste e mais sombria.

Depois da morte

1

Apenas dor no mundo inteiro eu via,

E tanto a vi, amarga e inconsolável,

Que num véu de tristeza impenetrável

Multiplicava as dores que eu sofria.

Se vislumbrava o riso da alegria

Fora dessa amargura inalterável

Esse prazer só era decifrável

Sob a ilusão da eterna fantasia.

Ao meu olhar de triste e de descrente,

Olhar de pensador amargurado,

Só existia a dor, ela somente.

O gozo era a mentira dum momento,

Os prazeres, o engano imaginado

Para aumentar a mágoa e o sofrimento.

2

Misantropo da ciência enganadora,

Trazia em mim o anseio irresistível

De conhecer o Deus indefinível,

Que era na dor, visão consoladora.

Não o via e, no entanto, em toda hora,

Nesse anelo cruciante e intraduzível,

Podia ver, sentindo o Incognoscível

E a sua onisciência criadora.

Mas a insídia do orgulho e da descrença

Guiava-me a existência desolada,

Recamada de dor profunda e intensa;

Pela voz da vaidade, então, eu cria

Achar na morte a escuridão do Nada,

Nas vastidões da terra úmida e fria.

3

Depois de extravagâncias de teoria,

No seio dessa ciência tão volúvel,

Sobre o problema trágico, insolúvel,

De ver o Deus de Amor, de quem descria,

Morri, reconhecendo, todavia,

Que a morte era um enigma solúvel,

Ela era o laço eterno e indissolúvel,

Que liga o Céu à Terra tão sombria!

E por estas regiões onde eu julgava

Habitar a inconsciência e a mesma treva

Que tanta vez os olhos me cegava,

Vim, gemendo, encontrar as luzes puras

Da verdade brilhante, que se eleva,

Iluminando todas as alturas.

Soneto

Quisera crer, na Terra, que existisse

Esta vida que agora estou vivendo,

E nunca encontraria abismo horrendo,

De amargoso penar que se me abrisse.

Andei cego, porém, e sem que visse

Meu próprio bem na dor que ia sofrendo;

Desvairado, ao sepulcro fui descendo,

Sem que a Paz almejada conseguisse.

Da morte a Paz busquei, como se fora

Apossar-me do eterno esquecimento,

Ao viver da minhalma sofredora;

E em vez de imperturbáveis quietitudes,

Encontrei os Remorsos e o Tormento,

Recrudescendo as minhas dores rudes.

O Remorso

Quando fugi da dor, fugindo ao mundo,

Divisei aos meus pés, de mim diante,

A medonha figura de gigante

Do Remorso, de olhar grave e profundo.

Era de ouvir-lhe o grito gemebundo,

Sua voz cavernosa e soluçante!...

Aproximei-me dele, suplicante,

Dizendo-lhe, cansado e moribundo: —

“Que fazes ao meu lado, corvo horrendo,

Se enlouqueci no meu degredo estranho,

Acordando-me em lágrimas, gemendo?”

Ele riu-se e clamou para meus ais:

“Companheiro na dor, eu te acompanho,

Nunca mais te abandono! Nunca mais!”

Soneto

Mais se me afunda a chaga da amargura

Quando reflexiono, quando penso

No mar humano, encapelado e imenso,

Onde se perde a luz em noite escura...

Nesse abismo de treva a bênção pura,

Do espírito de amor ao mal imenso,

Sente o assédio do mal. É o contra-senso

Da luz unida à lama que a tortura.

Mais se me aumenta a chaga dolorida,

Escutando o soluço cavernoso

Da pobre Humanidade escravizada;

Sentindo o horror que nasce dessa vida,

Que se vive no abismo tenebroso,

Cheio do pranto da alma encarcerada!

Deus

Quem, senão Deus, criou obra tamanha,

O espaço e o tempo, as amplidões e as eras,

Onde se agitam turbilhões de esferas,

Que a luz, a excelsa luz, aquece e banha?

Quem, senão ele fez a esfinge estranha

No segredo inviolável das moneras,

No coração dos homens e das feras,

No coração do mar e da montanha!

Deus!... somente o Eterno, o Impenetrável,

Poderia criar o imensurável

E o Universo infinito criaria!...

Suprema paz, intérmina piedade,

E que habita na eterna claridade

Das torrentes da Luz e da Harmonia!

Consolai

Se eu pudesse, diria eternamente,

Aos flagelados e desiludidos,

Que sobre a Terra os grandes bens perdidos

São a posse da luz resplandecente.

A dor mais rude, a mágoa mais pungente,

Os soluços, os prantos, os gemidos,

Entre as almas são louros repartidos

Muito longe da Terra impenitente.

Oh! se eu pudesse, iria em altos brados

Libertar corações escravizados

Sob o guante de enigmas profundos!

Mas, dizei-lhes, ó vós que estais na

Terra, Que a luz espiritual da dor encerra

A ventura imortal dos outros mundos!

Crença

Minha vida de dor e de procela

Que se extinguiu na tempestade imensa,

Despedaçou-se à falta dessa crença,

Que as grandes luzes místicas revela.

E estraçalhei-me como alguém que sela

Com o supremo infortúnio a dor intensa,

Desvairado de angústia e de descrença,

Dentro da vida sem compreendê-la.

Ah! Crer! bem que, na Terra, não possui,

Quando entre conjeturas me perdi,

De tão pequena dor fazendo alarde...

Crença! Luminosíssima riqueza

Que enche a vida de paz e de beleza,

Mas que chega no mundo muito tarde.

Não choreis

Não choreis os que vão em liberdade

Buscar no Espaço o luminoso leito

Da paz, distante do caminho estreito

Desse mundo de dor e de orfandade.

O pranto é a flor de aromas da saudade,

Que perfuma e crucia o vosso peito,

Mas, transformai-o em gozo alto e perfeito,

Em santa e esperançosa claridade.

Chega um dia em que o Espírito descansa

Das aflições, angústias e cansaços,

Dos aguilhões das dores absolutas:

Feliz de quem, na Crença e na Esperança,

Procura a luz sublime dos espaços,

Buscando a paz depois das grandes lutas.

Mão divina

A luz da mão divina sempre desce,

Misericordiosa e compassiva,

Sobre as dores da pobre alma cativa,

Que está nas sendas lúcidas da Prece.

Se a amargura das lágrimas se aviva,

Se o tormento da vida recrudesce,

Aguardai a abundância da outra messe

De venturas, que é da alma rediviva.

Confiando, esperai a Providência

Com os sentimentos puros, diamantinos,

Lendo os artigos ríspidos da Lei!

Os filhos da Piedade e da Paciência

Encontrarão nos páramos divinos

A paz e as luzes que eu não alcancei.

Almas sofredoras

Passam na Terra como as ventanias,

Ou como agigantadas nebulosas

Provindas de cavernas misteriosas,

Essas compactas legiões sombrias;

Turbas de almas escravas de agonias,

Com que andei entre queixas dolorosas,

Ao palmilhar estradas escabrosas,

Entre as noites mais lúgubres e frias!

Oh! visões de martírios que apavoram,

Miseráveis Espíritos que choram,

Sob os grilhões de rude sofrimento!

Orai por eles, bons trabalhadores

Que estais colhendo sobre a Terra as flores

De um doce e temporário esquecimento.

Supremo engano

Vê-se da Terra o Céu, em toda a vida,

Como um vergel azul de lírios brancos,

Onde mora a ventura, e em cujos flancos

Repousa a grande mágoa adormecida.

Céu! quanta vez minhalma entristecida

Anteviu tua paz, sob os arrancos,

Sob os golpes da dor, rijos e francos,

Na escuridão espessa e indefinida!

Não sonhei com teus deuses venturosos,

Com teus grandes olimpos majestosos,

Cheios de vida e de infinitos bens...

Antegozei, somente, em minhas dores,

A paz livre de trevas é pavores,

Do imperturbável nada que não tens!

Incognoscível

Para o Infinito, Deus não representa

A personalidade humanizada,

Pelos seres terrenos inventada,

Cheia, às vezes, de cólera violenta.

Deus não castiga o ser e nem o isenta

Da dor, que traz a alma lacerada

Nos pelourinhos negros de uma estrada

De provação, de angústia e de tormenta.

Tudo fala de Deus nesse desterro

Da Terra, orbe da lágrima e do erro,

Que entre anseios e angústias conheci!

Mas, quanto o vão mortal inda se engana,

Que em sua triste condição humana

Fez a essência de Deus igual a si!

Fatalidade

Crê-se na Morte o Nada, e, todavia,

A Morte é a própria Vida ativa e intensa,

Fim de toda a amargura da descrença,

Onde a grande certeza principia.

O meu erro, no mundo da Agonia,

Foi crer demais na angústia e na doença

Da alma que luta e sofre, chora e pensa,

Nos labirintos da Filosofia...

E no meio de todas as canseiras

Cheguei, enfim, às dores derradeiras

Que as tormentas de lágrimas desatam!...

Nunca, na Terra, a crença se realiza,

Porque em tudo, no mundo, o homem divisa

A figura das dúvidas que matam.

Estranho concerto

Clamou o Orgulho ao homem: — “Goza a vida!

E fere, brasonado cavaleiro,

Coroado de folhas de loureiro,

Quem vai de alma gemente e consumida. .

Veio a Vaidade e disse: — “A toda brida!

Dominarás, além, no mundo inteiro,

Cavalga o tempo e corre ao teu roteiro

De soberana glória indefinida!...

Mas a Verdade, sobre a humana furna,

Gritou-lhe, angustiada, em voz soturna:

— “Insensato! aonde vais, sem Deus, sem norte?”

E impeliu, sem detença e sem barulho,

Cavaleiro e corcel, vaidade e orgulho,

Aos tenebrosos pântanos da Morte.


12

ANTÔNIO NOBRE

Quadras de um poeta morto - Do Além – Soneto - Ao mundo - À Mocidade.

NASCEU na cidade do Porto e faleceu na Foz do Douro aos 33 anos de idade, em 18 de março de 1900. Distinguiu-se pela suavidade e melan­colia do seu estro. Deixou um livro inconfundível e, ainda hoje, muito estimado — Só — e Despedidas, edição de 1902.

Quadras de um poeta morto

Coração, não vos canseis

De bater... que importa lá?

Porque os amores fiéis,

Nem a morte os vencerá.

Ó figuras de velhinhos

Que andais dormitando ao léu!

Como são belos os Linhos

Que vos esperam no Céu!

Dizem que os mortos não voltam...

Voltam sim. E por que não?

Os corpos daí nos soltam,

Como às aves o alçapão.

Nem gritos e nem cantigas

Entre vós que à noite andais;

As almas das raparigas

Inda sonham nos choupais.

Nas grandes mansões da morte

Inda há romance e noivados,

Venturas da boa sorte,

Corações despedaçados.

Quem riu ontem, quem ri hoje,

Nem sempre poderá rir...

Um dia o riso lhe foge,

Sem que o veja escapulir.

Riquezas, que valem elas

Se estão na sombra ou sem luz?

Tesouro são as estrelas

Da bondade de Jesus.

Pode-se amar o veludo

De uns olhos e os brilhos seus,

Porém, acima de tudo

Devemos amar a Deus.

Vós que amais a luz da Lua,

De vossa alma abri as portas

Para. os fantasmas da rua,

Que choram nas horas mortas.

Pensei que a. morte era o fim

Das ânsias do coração;

Contudo, não é assim...

Nem pó e nem solidão.

As vezes acham-se fojos

Onde há música e festins,

E há muitos cardos e tojos

Entre as flores dos jardins.

Se eu pudesse, estenderia

Minhas capas de luar,

Sobre os filhos da agonia

Que andam no mundo a penar.

A morte só pode ser

A vida risonha e pura,

Para quem a padecer

Vive aí na sepultura.

Mal vais, se vais caminhando

Na ambição de ouro e glória;

Nesse mundo miserando

Toda ventura é ilusória.

Chorai! chorai orfãozinhos,

Vossas dores amargosas:

Achareis noutros caminhos

As vossas mães extremosas.

Deixa cantar, ó menina,

Teu coração sonhador...

No sepulcro não termina

O novelário do amor.

Um anjo cheio de encanto

Vive sempre com quem chora,

Guardando as gotas de pranto

Numa urna cor da aurora.

No Universo há céus profundos,

Cheios de vida e esplendor,

Um céu é um ninho de mundos,

Um mundo é um ninho de amor.

A caridade é a beleza

De um divino plenhlúnio,

Luz que se estende à pobreza,

Na escuridão do infortúnio.

Aos mendigos desprezados

Não ridicularizeis,

São senhores despojados

Dos seus tesouros de reis.

Aqui, a alma inda espera

O alguém que na Terra amou,

O raio de primavera

Que aí jamais encontrou.

Há quem faça aí mil contas,

Que os interesses resuma,

Mas morrem cabeças tontas,

Sem fazer conta nenhuma.

Tecei sonhos, fiandeiras,

Oh! almas enamoradas,

Vivei aí nas clareiras

De luzes alcandoradas.

Ah! que sinto aqui saudades

Das noites de São João,

Sonho, estrelas, claridades,

Cantigas do coração.

Na minha vida de agora

Não canto as festas louçãs,
Naquelas toadas de outrora

As moçoilas coimbrãs.

Acompanha-me a tristeza

Das saudades, por meu mal;

Minha terra portuguesa! ...

Meu querido Portugal! ...

Do Além

Pudesse o nosso olhar, vagueando os ermos,

Ver através da própria soledade

A expressão luminosa da Verdade,

E da luz da Verdade não descrermos...

Preocupar-se aí, porém, quem há de

Com o problema de sermos ou não sermos,

Pois que o ardente desejo de o sabermos

É sempre o anelo falso da vaidade?

Peregrinos da dor, na dor andamos

Sem que a nossa miséria se desfaça

No escabroso caminho onde marchamos,

Seguindo a alma nos sonhos iludida,

Até que a dor unindo-se à desgraça

Descerre os véus que encobrem outra vida.

Soneto

“Quando cobrir-se o chão de folhas mortas

- Meu coração dizia em grave entono —

Extinguindo-se a vida que comportas,

Dormirás no meu seio o último sono...

E murmurava a alma — “Findo o Outono,

A Primavera vem por outras portas;

Não existe no túmulo o abandono,

Ou a dor amarga e rude em que te cortas.”

Escutava essas vozes comovido,

Morto de angústia, morto de incerteza,

Aguardando o sol-posto, entristecido;

E além da amarga vida de segundos,

Ressurgi da tortura e da tristeza,

Sob os ares sadios de outros mundos!

Ao mundo

A Terra é o vasto abismo onde a alma chora,

O vale de amarguras do Salmista,

Lodoso chavascal onde se avista

A podridão dos vermes que apavora.

Mas, para os grandes bens, para que exista

A perfeição da luz deslumbradora,

Precisamos da carne que aprimora

Com o camartelo mágico do artista.

Terra, tranqüilamente eu te abençôo...

Porque da tua dor alcei meu vôo

Para a mansão das luzes opulentas;

Teu rigor nos redime e nos eleva;

Mas és ainda o cárcere da treva,

Triste mundo de chagas pustulentas!

À Mocidade

Cantai! cantai, ó mocidade! Moira

Encantada que ri nos prados verdes,

Cantai o amor que é luz que se entesoira,

Vibrai na luz da vida em que viverdes.

Glorificai, ditosa, o sol que doira

O riso que espalhais sem compreenderdes,

Expandi-vos na primavera loira,

Nos poemas de luar que conceberdes!

Ide cantando, mocidade ardente,

Alvorada em abril, do sol-nascente,

Clareando o porvir almo e risonho;

Marchai sorrindo, doce juventude,

Na exaltação do amor e da saúde,

Ébria de aroma e luz, ébria de sonho!...


13

ANTÔNIO TORRES

Esquife do sonho – Nada.

NASCEU em Diamantina (Minas Gerais) em 1885, falecendo, em 1934, na cidade de Hamburgo, como cônsul adjunto do Brasil. Ordenou-se sacerdote, abandonando mais tarde a profissão ecle­siástica. Poeta e escritor.

Esquife do sonho

Tive um Sonho de Amor e de Inocência,

Cheio de luz das coisas invulgares,

Do qual perdi a luminosa essência

Na cristalização dos meus pesares.

Tarde reconheci minha falência,

Terminados os múltiplos azares,

De minha quase inútil existência,

No silêncio das cinzas tumulares.

E da Morte, no abismo indefinido,

Tombei exausto, amargurado e cego,

— Abismo tenebroso que eu transponho.

Infeliz do meu ser irredimido,

Pois triste e atordoado inda carrego

O negro esquife do meu próprio sonho.

Nada...

Nada! ... Filosofia rude e amara,

Na qual acreditei, com pena embora

De abandonar a Crença que esposara,

— A minha aspiração de cada hora.

Crença é o perfume dalma que se enflora

Com a luz divina, resplendente e rara

Da Fé, única Luz da única Aurora,

Que as trevas mais compactas aclara.

Revendo os dias tristes do Passado,

Vi que troquei a Fé pela Ironia,

Nos desvios e excessos da Razão;

Antes, porém, não fosse tão ousado,

Pois nem sempre a Razão profunda e fria

Alivia ou consola o Coração.


14

ARTUR AZEVEDO

Miniaturas da Sociedade elegante.

NASCIDO em São Luis, no Maranhão, a 7 de julho de 1855 e falecido na cidade do Rio de Janeiro a 22 de outubro de 1908. Diretor Geral de Con­tabilidade do Ministério da Viação. Poeta, comedió­grafo, jornalista e crítico. Membro e fundador da Academia Brasileira de Letras, onde ocupou a ca­deira de Martins Pena.

Miniaturas da Sociedade elegante

1

Adriano Gonçalves de Macedo,

Homem de cabedais e alma sem siso,

Penetrou no seu quarto com um sorriso

As dez horas da noite, muito a medo.

Uma carta de amante — era um segredo —

Ia abri-la, e, assim, era preciso

Que a sua esposa, dama de juízo,

Não na visse nem mesmo por brinquedo:

Dona Corália Augusta Colavida

Estaria nessa hora recolhida?

Levantou a cortina, devagar...

Mas, que tragédia após esse perigo...

Viu que a esposa beijava um seu amigo,

Sobre o divã, da sala de jantar.

2

No belo palacete do Furtado,

Palestrava a galante Mariquita

Com um pelintra afetado, assaz catita,

Bacharel delambido e enamorado.

De sobre a grande cômoda bonita,

Toma o moço um livrinho encadernado,

Revirando-o nas mãos, interessado,

Mas a jovem retoma-o, muito aflita:

- “Esse livro, Antonico, é meu breviário!”

Diz inquieta. E ele, cínico e falsário,

Arrebata-o às frágeis mãos trementes

Abriu-o. Mais o olhava e mais se ria...

Era um compêndio de pornografia,

Recamado de quadros indecentes.

3

Dom Castilho, notável latinista,

Realizara alentada conferência,

Sobre rígido assunto moralista,

Protegido dos membros da regência.

Foi um sucesso. E a esposa Ana Fulgência,

Nele via uma grande alma de artista,

Louvando-lhe a utilíssima existência

De homem probo e notável publicista.

Que primor de moral! e os companheiros

Escritores, poetas, conselheiros,

Foram levar-lhe um abraço camarada.

Numa corrida louca, esses senhores

Foram achá-lo em seus trajes menores,

No apartamento escuro da criada...


15

AUGUSTO DE LIMA

O doce missionário - O santo de Assis.

POETA mineiro, nascido em Sabará, Minas, em 5 de abril de 1859 e desencarnado no Rio de Janeiro em 22 de abril de 1934. Magistrado íntegro, orador e publicista, militou na Política e foi membro de realce da Academia Brasileira de Letras, tendo ocupado a presidência dessa instituição.

O doce missionário

Sertão hostil. Agreste serrania.

Tendo por companhia

A cruz do Nazareno, humilde e solitário,

Ali vivia Anchieta, o doce missionário,

Carinhoso pastor, espelho de bondade,

Abençoando o bem, perdoando a maldade,

Servo amado de Deus, imitador de Assis,

Que na humildade achara a vida mais feliz.

Naquele dia,

Era intenso o calor.

Ninguém! Nem uma sombra se movia,

Tudo era languidez, desânimo e torpor.

Além se divisava a solidão da estrada,

Amarela de pó, tristonha e desolada.

Na clareira, onde o Sol feria os vegetais,

Viam-se florescer bromélias e boninas,

E, elevando-se aos céus, esguios espinhais

Implorando piedade às amplidões divinas...

Eis que o irmão de Jesus, o humilde pegureiro

Avista um mensageiro.

Dirige-se-lhe a casa,

Pisando vagaroso o chão que o Sol abrasa.

— “Meu protetor — diz ele —, o bom pajé,

Convertido por vós à luz da vossa fé,

Que tem oferecido a Deus o seu amor,

Agoniza na taba, ao longe, em aflição.

Ele espera de vós a paz do coração

E implora lhe leveis a bênção do Senhor.”

- “Oh! doce filho meu, que vindes de passagem,

Que Jesus vos ampare, ao termo da viagem...”

E isso dizendo, o pastor prestamente

Toma da humilde cruz do Mártir do Calvário,

Abandonando o ninho agreste e solitário,

Para arrancar à dor o pobre penitente.

Há solidão na estrada,

Ferem-lhe os pés as pontas dos espinhos.

Que penosa jornada,

Em tão rudes e aspérrimos caminhos! ...

Pairam no ar excessos de calor,

Nem árvores umbrosas e nem fontes,

Somente o Sol ferino e destruidor,

Que calcina, inflamando os horizontes.

Eis que a sede o devora;

Entretanto, o pastor não se deplora;

A terna e meiga efígie de Jesus

É-lhe paz e alimento, amparo e luz.

Numa férvida prece,

Ele ainda agradece:

— “Sê bendito, Senhor, por tudo o que nos dás,

Seja alegria ou dor, tudo é ventura e paz.

Eu vejo-te no alvor das manhãs harmoniosas,

No azulíneo do céu, no cálice das rosas,

Na corola de luz de todas as florinhas,

No canto, todo amor, das meigas avezinhas,

Na estação outonal, na loura Primavera,

No coração do bom, que te ama e te venera,

Na vibração dos sons, na irradiação da luz,

Na dor, no sofrimento, em nossa própria cruz...

Tudo vive a mostrar tua pródiga bondade,

Eterno Pai de amor, de luz e caridade.

Abençoados são o Inverno que traz frio

E os calores do Sol nas estações do estio...”

Terminando a sorrir a espontânea oração,

Inspirada em tão santa devoção,

Anchieta escuta em torno os mais sutis rumores.

Eis que nos arredores

Congregam-se apressadas

Todas as avezinhas,

E, asas aconchegadas,

Juntinhas,

Numa ideal combinação

Formam um pálio protetor,

Cobrindo o doce irmão

Que ia ofertar amor,

Luz e consolação,

Em nome do Senhor.

Pelos caminhos,

Foi-se aumentando

O alado bando

Dos bondosos e ternos passarinhos,

Aureolando com amor o Discípulo Amado,

Modesto, casto, humilde e isento de pecado,

Que ia seguindo,

Lábios sorrindo,

Em meiga mansuetude.

O enviado do Bem e da Virtude

Agradecia ao Céu, o coração em luz,

Evolando-se puro ao seio de Jesus.

Chegara ao seu destino. Ia caindo o dia

No poente de paz e de harmonia,

Brilhava nova luz, feita de crença e amor:

Era a bênção dos Céus, a bênção do Senhor.

O santo de Assis

No suave mistério dos espaços,

Santa Maria dos Anjos inda existe,

Com a mesma luz divina dos seus traços,

Glorificando as dores da alma triste,

Repartindo a Virtude, a Graça e os Dons

Que a palavra divina do Cordeiro

Prometeu aos pacíficos e aos bons

Do mundo inteiro...

Uma nova Porciúncula, dourada

Pelos astros de mística alvorada,

Aí se rejubila,

Sob a paz de Jesus, terna e tranqüila,

Derramando no Além ignorado

Os sonhos de Virtude e Perfeição,

Daquela mesma Umbria do passado,

Cheia de encantamento e de oração.

A luz dos sóis da etérea Natureza,

Numa doce e ideal Eucaristia,

O Esposo da Pobreza

No seu manto de amor e de alegria

Inda abre os braços para os pecadores...

“Irmão Sol, irmãos Anjos, irmãs Flores,

Não nos cansemos de glorificar

A caridade imensa do Senhor,

Sua sabedoria e seu amor,

Procurando salvar

Os nossos irmãos Homens mergulhados

Entre as noites sombrias dos Pecados!...

E à voz suave e dúlcida do Santo,

A Terra escura e triste se povoa

De anjos de amor, que enxugam todo o pranto

E que levam consigo

Todo o consolo amigo

Da Esperança no Céu, singela e boa...

Das paragens etéreas

Da sua ideal igreja,

São Francisco de Assis abraça e beija

O homem que sofre todas as misérias,

Amparando-lhe a alma combalida

Nos desertos de lágrimas da Vida...

E o conduz

Ao regaço divino de Jesus!...

Santo de Assis, divino “poverello”,

Nas amarguras do meu pesadelo

De vaidade do mundo, que devasta

Todo o bem, vi tua luz singela e casta

Beijando as minhas lepras asquerosas...

Uma chuva de lírios e de rosas

Lavou-me o coração de pecador

E guardei para sempre o teu amor.

Santo de Assis, irmão da Caridade,

Que me curaste as lepras e a cegueira,

Depois da morte, à luz da imensidade,

Quero ainda abençoar-te a vida inteira...


16

AUGUSTO DOS ANJOS

Voz do Infinito - Vozes de uma sombra – Voz humana – Alma – Análise – Evolução – Homo - Incógnita - “Ego sum” - Dentro da noite - Homem-célula - Na imensidade - “Alter ego” - Aos fracos da vontade - Ao homem - Matéria cósmica - Raça adâmica - A subconsciência – Espírito - Vida e morte - Nos véus da carne - Homem da Terra - Nas sombras – Confissão - Homem-verme - Gratidão a Leopoldina - Civilização em ruínas - A Lei - A um observador materialista - Ante o Calvário – Atualidade.

PARAIBANO. Nasceu em 1884 e desencarnou em 1914, na cidade de Leopoldina. Minas. Era professor no Colégio Pedro 2º, inconfundível pela bizarria da técnica bem como dos assuntos de sua predileção, deixou um só livro — Eu — que foi. alias. Suficiente para lhe dar personalidade original.

Voz do Infinito

1

No excêntrico labor das minhas normas

Na Terra, muita vez me consumia

Perquirindo nas leis da Biologia

As expressões orgânicas das formas.

O fenômeno apenas, porque o fundo

Do númeno às eternas rutilâncias,

Eram partes do Todo nas Substâncias

Desde o estado prodrômico do mundo.

Com o espírito absconso em paroxismos,

No rubro incêndio de batalha acesa,

Via Deus adstrito à Natureza,

Deus era a lei de eternos transformismos.

Concepção panteística, englobando

As substâncias todas na Unidade,

Perpetuando-se em continuidade,

A essência onicriadora reformando.

O corpo, desde o embrião inicial,

Era um mero atavismo revivendo;

A alma era a molécula, sofrendo,

Afastada do Todo Universal;

Dominava-me todo o medo horrível,

Do meu viver, que eu via transtornado:

Eu era um átomo individuado

Em cerebralidade putrescível.

A luz dessa dourada ignorância,

E com certezas lógicas, numéricas,

Notava as pestilências cadavéricas

Iguais à carne Angélica da infância,

A sutilez do arminho que se veste,

A coroa aromática das flores,

Irmanadas aos pútridos fedores

De emanações pestíferas da peste!

Extravagância e excesso jamais visto,

De idéia que esteriliza e desensina,

Loucura que igualava Messalina

A pureza lirial da Mãe do Cristo.

Assim vivi na presunção que via,

Dos cumes da Ciência e do saber,

Os princípios genéricos do ser,

No pantanal da lama em que eu vivia.

Vi, porém, a matéria apodrecer,

E na individualidade indivisível

Ouvi a voz esplêndida e terrível

Da luz, na luz etérica a dizer:

2

“Louco, que emerges de apodrecimentos,

Alma pobre, esquelético fantasma

Que gastaste a energia do teu plasma

Em combates estéreis, famulentos...

Em teus dias inúteis, foste apenas

Um corvo ou sanguessuga de defuntos,

Vendo somente a cárie dos conjuntos,

Entre as sombras das lágrimas terrenas.

Vias os teus iguais, iguais aos odres

Onde se guarda o fragmento imundo.

De todo o esterco que apavora o mundo

E os tóxicos letais dos corpos podres.

E tanto viste os corpos e as matérias

No esterquilínio generalizados.

E os instintos hidrófobos, danados,

Em meio de excrescências e misérias

Que corrompeste a íntima saúde

Da tua alma cegada de amargores,

Que na Terra não viu os esplendores

E as ignívomas luzes da virtude.

Olhos cegos às chamas da bondade

De Deus e à divina misericórdia,

Que espalha o bem e as auras da concórdia

No coração de toda a Humanidade.

Descansa, agora, vibrião das ruínas.

Esquece o verme, as carnes, os estrumes.

Retempera-te em meio doS perfumes

Cantando a luz das amplidões divinas.”

3

Calou-se a voz. E sufocando gritos,

Filhos do pranto que me espedaçava,

Reconheci que a vida continuava

Infinita, em eternos infinitos!

Vozes de uma sombra

Donde venho? Das eras remotíssimas,

Das substâncias elementaríssimas,

Emergindo das cósmicas matérias.

Venho dos invisíveis protozoários,

Da confusão dos seres embrionários,

Das células primevas, das bactérias.

Venho da fonte eterna das origens,

No turbilhão de todas as vertigens,

Em mil transmutações, fundas e enormes;

Do silêncio da mônada invisível,

Do tetro e fundo abismo, negro e horrível,

Vitalizando corpos multiformes.

Sei que evolvi e sei que sou oriundo

Do trabalho telúrico do mundo,

Da Terra no vultoso e imenso abdômen;

Sofri, desde as intensas torpitudes

Das larvas microscópicas e rudes,

A infinita desgraça de ser homem.

Na Terra, apenas fui terrível presa,

Simbiose da dor e da tristeza,

Durante penosíssimos minutos;

A dor, essa tirânica incendiária,

Abatia-me a vida solitária

Como se eu fora bruto entre os mais brutos.

Depois, voltei desse laboratório,

Onde me revolvi como infusório,

Como animálculo medonho, obscuro,

Té atingir a evolução dos seres

Conscientes de todos os deveres,

Descortinando as luzes do futuro.

E vejo os meus incógnitos problemas

Iguais a horrendos e fatais dilemas,

Enigmas insolúveis e profundos;

Sombra egressa de lousa dura e fria,

Grito ao mundo o meu grito que se alia

A todos os anseios gemebundos: —

“Homem! por mais que gastes teus fosfatos

Não saberás, analisando os fatos,

Inda que desintegres energias,

A razão do completo e do incompleto,

Como é que em homem se transforma o feto

Entre os duzentos e setenta dias.

A flor da laranjeira, a asa do inseto,

Um estafermo e um Tales de Mileto,

Como existiram, não perceberás;

E nem compreenderás como se opera

A mutação do inverno em primavera,

E a transubstanciação da guerra em paz;

Como vivem o novo e o obsoleto,

O ângulo obtuso e o ângulo reto

Dentro das linhas da Geometria;

A luz de Miguel Angelo nas artes,

E o espírito profundo de Descartes

No eterno estudo da Filosofia.

Porque existem as crianças e os macróbios

Nas coletividades dos micróbios

Que fazem a vida enferma e a vida sã;

Os antigos remédios alopatas

E as modernas dosagens homeopatas,

Produto da experiência de Hahnemann.

A psíquico-análise freudiana

Tentando aprofundar a alma humana

Com a mais requintadíssima vaidade,

E as teorias do Espiritualismo

Enchendo os homens todos de otimismo,

Mostrando as luzes da imortalidade.

Como vive o canário junto ao corvo,

O céu iluminado, o inferno torvo

Nos absconsos refolhos da consciência;

O laconismo e a prolixidade,

A atividade e a inatividade,

A noite da ignorância e o sol da Ciência.

As epidermes e as aponevroses,

As grandes atonias e as nevroses,

As atrações e as grandes repulsões,

Que reunindo os átomos no solo

Tecem a evolução de pólo a pólo,

Em prodigiosas manifestações;

Como os degenerados blastodermas

Criam a descendência dos palermas

No lupanar das pobres meretrizes,

Junto dois palacetes higiênicos,

Onde entre gozos fúlgidos e edênicos

Cresce a alegre progênie dos felizes.

Os lombricóides mínimos, os vermes,

Em contraposição com os paquidermes,

Assombrosas antíteses no mundo;

É o gigante e o germe originário,

Os milhões de corpúsculos do ovário,

Onde há somente um óvulo fecundo.

A alma pura do Cristo e a de Tibério,

Vaso de carne podre, o cemitério,

E o jardim rescendendo de perfumes;

O doloroso e tetro cataclismo

Da beleza louçã do organismo,

Repleto de dejetos e de estrumes.

As coisas sustanciais e as coisas ocas,

As idéias conexas e as loucas,

A teoria cristã e Augusto Comte;

E o desconhecido e o devassado,

E o que é ilimitado e o limitado

Na óptica ilusória do horizonte.

Os terrenos povoados e o deserto,

Aquilo que está longe e o que está perto;

O que não tem sinal e o que tem marca;

A funda simpatia e a antipatia,

As atrofias e a hipertrofia,

Como as tuberculoses e a anasarca.

Os fenômenos todos geológicos,

Psíquicos, científicos, sociológicos,

Que inspiram pavor e inspiram medo,

Homem! por mais que a idéia tua gastes,

Na solução de todos os contrastes,

Não saberás o cósmico segredo.

E apesar da teoria mais abstrusa

Dessa ciência inicial, confusa,

A que se acolhem míseros ateus,

Caminharás lutando além da cova,

Para a Vida que eterna se renova,

Buscando as perfeições do Amor em Deus.”

Voz humana

Uma voz. Duas vozes. Outras vozes.

Milhões de vozes. Cosmopolitismos.

Gritos de feras em paroxismos,

Uivando subjugadas e ferozes.

É a voz humana em intérminas nevroses,

Seja nas concepções dos ateísmos,

Ou mesmo vinculada a gnosticismos

Nos singultos preagônicos, atrozes.

É nessa eterna súplica angustiada

Que eu vejo a dor em gozos, insaciada,

Nutrir-se de famélicos prazeres.

A dor, que gargalhando em nossas dores,

É a obreira que tece os esplendores

Da evolução onímoda dos seres.

Alma

Nos combates ciclópicos, titânicos,

Que eu às vezes na Terra empreendia,

Nos vastos campos da Psicologia,

Buscava as almas, seres inorgânicos;

Nas lágrimas, nos risos e nos pânicos,

Nos distúrbios sutis da hipocondria,

Nas defectividades da estesia,

Nos instintos soezes e tirânicos,

Somente achava corpos na existência,

E o sangue em continuada efervescência

Com impulsos terríficos e tredos.

Enceguecido e louco então que eu era,

Que não via, dos astros à monera,

As luzes dalma em trágicos segredos.

Análise

Oh! que desdita estranha a de nascermos

Nas sombras melancólicas dos ermos,

Nos recantos dos mundos inferiores,

Onde a luz é penumbra tênue e vaga,

Que, sem vigor, fraquíssima, se apaga

Ao furacão indômito das dores.

Voracidade onde a alma se mergulha,

Apoucado Narciso que se orgulha

Na profundeza ignota dos abismos

Da carne, que, estrambótica, apodrece;

Que atrofiada, hipertrófica, parece

Cataclismo dos grandes cataclismos.

Prendermo-nos ao fogo dos instintos,

Serpentes entre escrófulas e helmintos,

Multiplicando as lágrimas e os trismos,

Tendo a alma — centelha, luz e chama —

Amalgamada em pântanos de lama,

Em sexualidades e histerismos.

Misturarmos clarões de sentimentos

Entre vísceras, nervos, tegumentos,

Na agregação da. carne e dos humores,

Atrocidade das atrocidades;

Enegrecermos luminosidades

Na macabra esterqueira dos tumores.

E nisto achar fantásticos prazeres,

Ilusão hiperbólica dos seres

Bestializados, materializados;

Espíritos em ânsias retroativas,

No transcorrer das vidas sucessivas,

Nas ferezas do instinto, atassalhados..

Mas a análise crua do que eu via,

Hedionda lição de anatomia,

É mais que uma atrevida aberração:

Que se quebre o escalpelo de meus versos:

Entreguemos a Deus seus universos

Que elaboram a eterna evolução.

Evolução

Se devassássemos os labirintos

Dos eternos princípios embrionários,

A cadeia de impulsos e de instintos,

Rudimentos dos seres planetários;

Tudo o que a poeira cósmica elabora

Em sua atividade interminável,

O anseio da vida, a onda sonora,

Que percorrem o espaço imensurável;

Veríamos o evolver dos elementos,

Das origens às súbitas asceses,

Transformando-se em luz, em sentimentos,

No assombroso prodígio das esteses;

No profundo silêncio dos inermes,

Inferiores e rudimentares,

Nos rochedos, nas plantas e nos vermes,

A mesma luz dos corpos estelares!

É que, dos invisíveis microcosmos,

Ao monólito enorme das idades,

Tudo é clarão da evolução do cosmos,

Imensidade nas imensidades!

Nós já fomos os germes doutras eras,

Enjaulados no cárcere das lutas;

Viemos do principio das moneras,

Buscando as perfeições absolutas.

Homo

1

Ao meu tétrico olhar abominável,

O homem é fruto insólito da ânsia,

Heterogeneidades da Substância,

Argamassando um Todo miserável.

Psique dolorosa e inexpressável

Na mais remota epíspase da infância,

Desde a mais abscôndita reentrância

Da sua embriogenia detestável.

Do intravascular princípio informe,

Larva repugnante e vermiforme,

Nos íntimos recôncavos da placenta.

A quietação dos túmulos inermes,

Era um feixe de mônadas de vermes,

Dissolvidos na terra famulenta.

2

Após a introspecção do Além da Morte,

Vendo a terra que os próprios ossos come,

Horrente a devorar com sede e fome

Minhas carnes em lúbrico transporte,

Vi que o “ego” era o alento flãmeo e forte

Da luz mental que a morte não consome.

Não há luta mavórtica que o dome,

Ou venenada lâmina que o corte.

Depois da estercorária microbiana,

De que o planeta triste se engalana

Nas grilhetas do Infinitesimal,

Volve o Espírito ao páramo celeste,

Onde a divina essência se reveste

Da substância fluida, universal.

Incógnita

Por que misterioso incompreensível

Vomito ainda em náuseas para o mundo

Todo o fel, toda a bílis do iracundo,

Se eu já não tenho a bílis putrescível?

Insondável arcano! por que inundo

Meu exótico ser ultra-sensível

Em plena luz e atendo ao gosto horrivel

De apostrofar o pobre corpo imundo?

Fluidos teledinâmicos me servem,

Transmitindo as idéias que me fervem

No cérebro candente, igneo, em brasa...

De que concavidade do Universo

Vem-me o açoite flamívomo do verso,

Chama da mesma chama que me abrasa?

“Ego sum”

Eu sou quem sou. Extremamente injusto

Seria, então, se não vos declarasse,

Se vos mentisse, se mistificasse

No anonimato, sendo eu o Augusto.

Sou eu que, com intelecto de arbusto,

Jamais cri, e por mais que o procurasse,

Quer com Darwin, com Haeckel, com Laplace,

Levantar-me do leito de Procusto.

Sou eu, que a rota etérica transponho

Com a rapidez fantástica do sonho,

Inexprimível nas termologias,

O mesmo triste e estrábico produto,

Atramente a gemer a mágoa e o luto,

Nas mais contrárias idiossincrasias.

Dentro da noite

É noite. A Terra volvo. E, lúcido, entro

Em relação com o mundo onde concentro

O espírito na queixa atordoadora

Da prisioneira, da perpétua grade,

— A misérrima e pobre Humanidade,

Aterradoramente sofredora!

Ausculto a humana dor, que hórrida sinto,

Dalma quebrando o cárcere do instinto,

Buscando ávida a luz. Por mais que sonde,

Mais o enigma do mundo se lhe aviva,

Em diferenciação definitiva,

Mais a luz desejada se lhe esconde!

É o quadro mesológico, tremendo,

De tudo o que ficou no abismo horrendo

Da tenebrosa noite dos gemidos;

São uivos dos instintos jamais hartos,

As dores espasmódicas dos partos,

A desgraça dos úteros falidos.

É a ânsia afrodíslaca das bocas,

Que nas bestialidades se unem loucas,

As bactérias mais vis ambas trocando;

As dolorosas mágoas dos enfermos,

Sentindo-se em seus leitos como em ermos,

Deplorando o destino miserando.

São os ais dos leprosos desprezados,

Tendo os seus organismos devastados

Pela fome insaciável dos micróbios,

Sentindo os próprios membros carcomidos,

Verminados, cruéis, apodrecidos,

Plantando a dor no chão dos seus cenóbios...

É o grito, o anseio, a lágrima do homem

Agrilhoado aos prantos que o consomem,

Preso às dores que se lhe agrilhoaram;

É a imprecação de todos os lamentos

Dentro do mundo de padecimentos,

Dos desejos que não se realizaram.

Pábulo sou dessa hórrida agonia

E nos abismos de hiperestesia

Experimento, além das catacumbas,

Essa angústia indomável, atrocíssima,

Junto da emanação requintadíssima

Do ácido sulfídrico das tumbas,

Trazendo dentro dalma, envoltos na ânsia,

Asco e dó, piedade e repugnância

Pelo espírito e o corpo nauseabundo;

E com os meus pensamentos desconexos,

Vejo a guerra pestífera dos sexos,

Abominando as coisas deste mundo.

Terra!... e chegam-me fortes cheiros acres,

Como o cheiro de sangue dos massacres,

Fétido, coagulado, decomposto,

Escorrendo num campo de batalhas

Onde as almas se vestem de mortalhas,

Desde o sol-posto, ao próximo sol-posto.

Apavora-me o horror dessa miséria

E fujo da imundície da matéria,

Onde traguei meus grandes amargores;

Fujo... E ainda transpondo o Azul sereno,

Sinto em minhalma o tóxico, o veneno

E a desdita dos seres sofredores.

Homem-célula

Homem! célula ainda escravizada

Nos turbilhões das lutas cognitivas,

Egressa do arsenal de forças vivas

Que chamamos — estática do Nada.

Sob transformaçõeS consecutivas,

Vem dessa Origem indeterminada,

Onde se oculta a luz indecifrada

Dos princípios das luzes coletivas.

Vem através do Todo de elementos,

Em sucessivos aperfeiçoamentos,

Objetivando a Personalidade,

Até achar a Perfeição profunda

E indivisível, pura, e se confunda,

No transcendentalismo da Unidade.

Na imensidade

Alma humana, alma humana, tu que dormes

Entre os grandes colossos desconformes

Da carne, essa voraz liberticida,

Desse teu escafandro de albuminas,

Em tua mesquinhez não imaginas

A intensidade esplêndida da Vida!

Inda não vês e eu vejo panoramas

De luz em gigantescos amalgamas

De sóis, nas regiões imensuráveis,

Auscultando os espaços mais profundos

Na sinfonia harmônica dos mundos,

Singrando a luz de céus incomparáveis.

Do teu laboratório de arterites,

De gangliomas, úlceras, nevrites

Ao lado de humaníssimas vaidades,

Não podes perceber as ressonâncias,

Quinta-essências de todas as substâncias

Na fluidez das eletricidades.

Aqui não há vertigens de nevróticos,

Nem bisonhos aspectos de cloróticos

Nas estradas de eternos otimismos!

A vida imensa é coro de grandezas,

Submersão nas fluídicas belezas,

Envergando os etéreos organismos.

Ante a minhalma fulgem ideogramas,

Pensamentos radiosos como chamas,

Combinações no Mundo das Imagens;

São vibrações das almas evolvidas

E que, concretizadas e reunidas,

Formam luminosíssimas paisagens...

Em pleno espaço — Imensidade de ânsias,

Sem aritmologias das distâncias,

Sem limites, sem número, sem fim.

Deus e Pai, ó Artista Inimitável,

Deixai meu ser esdrúxulo, execrável,

No prolongado e edênico festim!

“Alter ego”

Da morte estranha que devora as vidas,

Eis-me longe dos rudes estertores,

Sem guardar os micróbios homicidas

De eternos atavismos destruidores.

Tenho outro ser talhado pelas dores

De minhas pobres células falidas,

Que se putrefizeram consumidas

Com os seus instintos atordoadores.

Não sou o homúnculo da hominal espécie,

Da terrigena raça que padece

Das mais pungentes heteromorfias.

Mas contérmino à carne, que me aterra,

Envolvo-me nos fluidos maus da Terra,

E sou o espectro das anomalias.

Aos fracos da vontade

Homem, levanta o véu do teu futuro,

Troca o prazer sensualista e obscuro

Pelo conhecimento da Verdade.

Foge do escuro ergástulo do mundo

E abandona o Desejo moribundo

Pelo poder da tua divindade.

Teu corpo é todo um orbe grande e vasto:

Livra-o do mal unífero, nefasto,

Com a espada resplendente da virtude;

Que o sol da tua mente, eterno, esplenda,

Dando a teu mundo a mágica oferenda

Da alegria em divina plenitude.

Deixa o conjunto de ancestralidades

Da carne — o eterno símbolo do Hades —

Onde o espírito clama, sofre e chora;

Deixa que as tuas glândulas do pranto

Te salvem do cadinho sacrossanto

Da lágrima pungente e redentora.

Mas, sobretudo, observa o pensamento,

Fonte da força e altíssimo elemento,

Em que toda molécula se cria:

Da existência ele faz sepulcro abjeto

Ou jardim luminoso e predileto,

De arcangélicas flores de Harmonia.

Ouve-te sempre a ronda do mistério,

Mas faze de tua alma um grande império

De beleza, de paz e de saúde:

Que as tuas agregações moleculares

Vivam livres de todos os pesares,

Com os tônicos sagrados da Virtude.

Tua vontade esclarecida e forte

Triunfará das angústias e da morte

Além dos planos tristes da matéria,

Mas a tua vontade enfraquecida

É a meretriz no báratro da vida,

Amarrada no catre da miséria!

Ao homem

Tu não és força nêurica somente,

Movimentando células de argila,

Lama de sangue e cal que se aniquila

Nos abismos do Nada eternamente;

És mais, és muito mais, és a cintila

Do Céu, a alma da luz resplandecente,

Que um mistério implacável e inclemente

Amortalhou na carne atra e intranqüila.

Apesar das verdades fisiológicas,

Reflexas das ações psicológicas,

Nas células primevas da existência,

És um ser imortal e responsável,

Que tens a liberdade incontestável

E as lições da verdade na consciência.

Matéria cósmica

Glória à matéria cósmica, a energia

Potencial que dá vida aos elementos,

Base de portentosos movimentos

Onde a Forma se acaba e principia.

Sistematização dos argumentos

Que elucidam a Teleologia:

Dentro da força cósmica se cria

A fonte-máter dos conhecimentos.

É do mundo o Od ignoto, o éter divino,

Onde Deus grava a história do destino

Dos seus feitos de Amor no Amor imersos.

Livro onde o Criador Inimitável

Grava, com o pensamento almo e insondável,

Seus poemas de seres e universos.

Raça adâmica

A Civilização traz o gravame

Da origem remotíssima dos Arias,

Estirpe das escórias planetárias,

Segregadas num mundo amargo e infame.

Árvore genealógica de párias,
Faz-se mister que o cárcere a conclame,
Para a reparação e para o exame

Dos seus crimes nas quedas milenárias.

Foi essa raça podre de miséria

Que fez nascer na carne deletéria

A esperança nos Céus inesquecidos;

Glorificando o Instinto e a inteligência,

Fez da Terra o brilhante gral da Ciência,

Mas um mundo de deuses decaídos.

A subconsciência

Há, sim, a inconsciência prodigiosa

Que guarda pequeninas ocorrências

De todas as vividas existências

Do Espírito que sofre, luta e goza.

Ela é a registradora misteriosa

Do subjetivismo das essências,

Consciência de todas as consciências,

Fora de toda a sensação nervosa.

Câmara da memória independente
Arquiva tudo rigorosamente

Sem massas cerebrais organizadas,

Que o neurônio oblitera por momentos,

Mas que é o conjunto dos conhecimentos

Das nossas vidas estratificadas.

Espírito

Busca a Ciência o Ser pelos ossuários,

No órgão morto, impassível, atro e mudo;

No labor anatômico, no estudo

Do germe, em seus impulsos embrionários;

Mas só encontra os vermes-funcionários

No seu trabalho infame, horrendo e rudo,

De consumir as podridões de tudo,

Nos seus medonhos ágapes mortuários.

No meio triste de cadaverinas

Acha-se apenas ruína sobre ruínas,

Como o bolor e o mofo sob as heras;

A alma que é Vibração,

Vida e Essência, Está nas luzes da sobrevivência,

No transcendentalismo das esferas.

Vida e morte

A morte é como um fato resultante

Das ações de um fenômeno vulgar,

Desorganização molecular,

Fim das forças do plasma agonizante.

Mas a vida a si mesma se garante

Na sua eternidade singular,

E em sua transcendência vai buscar

A luz do espaço, fúlgida e distante!

Vida e Morte — fenômenos divinos,

Na ascendência de todos os destinos,

Do portentoso amor de Deus oriundos...

Vida e Morte — Presente eterno da ânsia,

Ou condição diversa da substância,

Que manifesta o espírito nos mundos.

Nos véus da carne

Na ilusão material da carne espúria,

Sob o acervo das células taradas,

Choram de dor as almas condenadas

Ao cárcere de lágrima e penúria.

Entre as sombras das míseras estradas,

Vê-se a guerra da inveja e da luxúria,

Esfacelando com medonha fúria

O coração das almas bem formadas.

É nesse turbilhão de dor e de ânsia

Que o homem procura a eterna substância

Da verdade suprema, alta, imortal.

Deixando corpos pelos cemitérios,

A alma decifra o livro dos mistérios

De luz e amor da vida universal.

Homem da Terra

Na sombra abjeta e espessa das estradas,

Vive o homem da Terra adormecido,

No horrendo pesadelo de um vencido

Entre milhões de células cansadas.

Prantos sinistros! Loucas gargalhadas,

Pavorosos esgares de gemido,

E lá vai o fantasma embrutecido

Pelas sombras de lôbregas jornadas.

Homem da Terra! trágico segredo

De Miséria, de Horror, de ânsia e de Medo,

Feito à noite de enigma profundo!...

Anjo da Sombra, mísero e perverso,

És o sentenciado do Universo

Na grade organogênica do mundo.

Nas sombras

Bombardeios. Canhões. Trevas. Muralhas.

E rasteja o dragão horrendo e informe,

Espalhando a miséria e o luto enorme

Em miserabilíssimas batalhas.

Visões apocalípticas do mal,

Desenhadas por corvos vagabundos,

Gritam a dor de povos moribundos

Na sinistra hecatombe universal.

A civilização do desconforto,

De mentira e veneno cerebrais,

Vai carpindo nos tristes funerais

Do seu fausto de sombra, amargo e morto.

Quadros de sangue, lágrimas e horrores

Avassalam de dor o mundo inteiro,

É o triunfo terrível do coveiro,

Ossuários tremendos sob as flores.

Enquanto a desventura chora inerme,

O homem, filosófico ou sem nome,

Morre de frio e fel, de sede e fome,

Nas vitórias fantásticas do verme.

Ai de vós nos abismos da aflição,

Sem o raio de luz da crença amiga:

Desventurado aquele que prossiga

Sem o Cristo de Amor no coração.

Confissão

Também eu, mísero espectro das dores

No escafandro das células cativas,

Não encontrei a luz das forças vivas,

Apesar de ingentíssimos labores.

Bem distante, das causas positivas,

Na visão dos micróbios destruidores

Senti somente angústias e estertores,

No turbilhão das sombras negativas.

Foi preciso “morrer” no campo inglório,

Para encontrar esse laboratório

De beleza, verdade e transformismo!

A Ciência sincera é grande e augusta,

Mas só a Fé, na estrada eterna e justa,

Tem a chave do Céu, vencendo o abismo!...

Homem-verme

Desolação. Terror e morticínio.

O homem sôfrego e bruto, de ânsia em ânsia,

Sofre agora a sinistra ressonância

De sua inclinação para o extermínio.

É o doloroso e trágico domínio

Do “homo homini lupus” da ignorância,

Exaltando a vaidade sem substância,

Ídolo podre sobre o esterquilínio.

Por toda a parte, escorre o sangue horrível,

Ao crepitar de rúbidos incêndios,

Sobre a idéia cristã medrando em germe.

Em quase tudo, o pântano terrível,

De lodo e lama, em sombra e vilipêndios,

Atestando as vitórias do homem-verme!

Gratidão a Leopoldina (*)

Sem o vulcão de dor de hórridas lavas,

Beija, Augusto, este solo generoso,

Que te guardou no seio carinhoso

O escafandro das células escravas.

Aqui, buscaste o campo de repouso,

Depois das vagas ríspidas e bravas

No mundo áspero e vão, que detestavas,

E onde sorveste o cálice amargoso.

Volta, Augusto, do pó que envolve as tumbas,

Proclama a vida além das catacumbas,

Nas maravilhas de seus resplendores.

Ajoelha-te e lembra o último abrigo,

Esquece o travo do tormento antigo

E oscula a destra de teus benfeitores.

(*) Poesia recebida em 18 de junho de 1940, em Leopoldina, onde foi sepultado o poeta.

Civilização em ruínas

Todo o mundo moderno horrendo, em ruínas,

Deixa agora escapar o horrendo fruto

De miséria e de dor, de pranto e luto,

Feito de sânie e de cadaverinas.

Em vão, sobre o Calvário áspero e bruto,

Sangrou Jesus em lágrimas divinas,

Sob as ofensas torpes e tigrinas

A tentarem-lhe o espírito incorruto.

Saturada de treva, angústia e pena,

A Civilização que se condena

Suicida-se num báratro profundo...

Porque na luz dos círculos da Terra,

Nos turbilhões fatídicos da guerra,

Ainda é Caim que impera sobre o mundo.

A Lei

Em reflexões misérrimas, absorto,

Raciocinava: — “O último tormento

É regressar à carne e ao sofrimento

Sem o triste fenômeno do aborto! ...

Toda a amargura dalma é o desconforto

De retornar ao corpo famulento,

E apagar toda a luz do pensamento

Nas células de um mundo amargo e morto!...“

Mas, uma voz da luz dos grandes mundos,

Em conceitos sublimes e profundos,

Respondeu-lhe em acentos colossais:

— “Verme que volves dos esterquilínios,

Cessa a miséria de teus raciocínios,

Não insultes as leis universais.”

A um observador materialista

Busca o talão dos velhos calendários.

Desde o instante infeliz de Adão e Eva,

Encontrarás teus gritos solitários,

Enfrentando o pavor da mesma treva.

Sempre a dúvida estranha que se ceva

De terríveis problemas multifários,

O mistério da célula primeva,

Os impulsos dos sonhos embrionários.

Pára, amigo... Não sigas na consulta:

O detalhe anatômico te insulta,

A molécula morta desafia.

Se não tens coração que aceite a crença,

Espera a mão da morte excelsa, e pensa,

Que a carne volve ao pó, exangue e fria.

Ante o Calvário

Da terra do Calvário ardente e adusta,

Entre prantos pungentes, o Cordeiro

Da Verdade e da Luz do mundo inteiro

Vive o martírio de sua alma augusta.

Sobre a cruz infamérrima se ajusta

A crueldade do espírito rasteiro

Do homem, que é sempre o tigre carniceiro,

Enquanto grita a turba ignara e injusta.

Depois de vinte séculos ingratos,

Multiplicando Herodes e Pilatos,

Correm de novo as lágrimas divinas;

Pois, embora o Direito, o Livro e a Toga,

A Humanidade triste inda se afoga

No sangue escuro das carnificinas.

Atualidade

Torna Caim ao fausto do proscênio.

A Civilização regressa à taba.

A força primitiva menoscaba

A evolução onímoda do Gênio.

Trevas. Canhões. Apaga-se o milênio.

A construção dos séculos desaba.

Ressurge o crânio do morubixaba

Na cultura da bomba de hidrogênio.

Mas, acima do império amargo e exangue

Do homem perdido em pântanos de sangue,

Novo sol banha o pélago profundo.

É Jesus que, através da tempestade,

Traz ao berço da Nova Humanidade

A consciência cósmica do mundo.


17

AUTA DE SOUZA

Almas dilaceradas – Contrastes – Mágoa – Hora extrema - Em paz - Em êxtase – Mãe – Prece – Adeus – Almas - Almas de virgens - Carta íntima – Maria - Mensagem fraterna - Vinde! - O Senhor vem.

NASCIDA em 12 de setembro de 1876, em Macaíba, Rio Grande do Norte, desencarnou em 7 de feverei­ro de 1901, portanto, aos 24 anos, em Natal. Deixou um único livro, Horto, cuja primeira edição, prefaciada por Olavo Bilac, em outubro de 1899, apareceu em 1900 e se esgotou em três meses. A segunda edição, feita em Paris, em 1910, traz uma biografia da Autora por H. Castriano. Finalmente, teve uma terceira edição no Rio de Janeiro, em 1936, prefaciada por Alceu de Amoroso Lima. Espírito melancólico, sotredor, muito místico. Seu estilo simples e triste se reproduz perfeitamente nestes versos mediúnicos.

Almas dilaceradas

Quando, em dores, na Terra inda, vivia

Caminhando em aspérrimas estradas,

Via presas do pranto e da agonia,

Almas feridas e dilaceradas.

Escutava a miséria que gemia

Dentro da noite de ânsias torturadas,

Treva espessa da senda tão sombria

Das criaturas desesperançadas.

E eu, que era irmã dos grandes sofredores,

Sofria, crendo que tais amargores

Encontrariam termos desejados.

E confiada na crença que tivera,

Cheguei à luz da eterna primavera,

Onde há paz para os pobres desgraçados.

Contrastes

Existe tanta dor desconhecida

Ferindo as almas pelo mundo em fora,

Tanto amargor de espírito que chora

Em cansaços nas lutas pela vida;

E há também os reflexos da aurora

De ventura, que torna a alma florida,

A alegria fulgente e estremecida,

Aureolada de luz confortadora.

Há, porém, tanta dor em demasia,

Sobrepujando instantes de alegria,

Tal desalento e tantas desventuras,

Que o coração dormente, a pleno gozo,

Deve fugir das horas de repouso,

Minorando as alheias amarguras.

Mágoa

Muitas vezes sonhei na Terra ingrata

O paraíso doce da ventura,

Vendo somente o espinho da amargura

Que as nossas tristes lágrimas desata;

Somente a dor intérmina que mata

A alegria mais lúcida e mais pura,

O veneno da acerba desventura

Que fere em nós a aspiração mais grata.

Se apenas vi, porém, a mágoa intensa

Que rouba a luz, o amor, a paz e a crença,

É que a dor da minhalma em tudo eu via.

E aumentava minha íntima tristeza

Vendo em tudo, na própria Natureza,

A mesma dor que eu tanto padecia.

Hora extrema

Quando exalei meus últimos alentos

Nesse mundo de mágoas e de dores,

Senti meu ser fugindo aos amargores

Dos meus dias tristonhos, nevoentos.

A tortura dos últimos momentos

Era o fim dos meus sonhos promissores,

Do meu viver sem luz, sem paz, sem flores,

Que se extinguia em atros sofrimentos.

Senti, porém, minhalma sofredora

Mergulhada nas brisas de uma aurora,

Sem as sombras da dor e da agonia...

Então parti, serena e jubilosa,

Em demanda da estrada esplendorosa

Que nos conduz às plagas da harmonia!

Em paz

Tanto roguei a paz consoladora,

Durante os meus amargos sofrimentos,

Elevando a Jesus meus pensamentos,

Que recebi a paz confortadora!

Sentindo-me feliz, ditosa agora,

Nessas paragens de deslumbramentos,

Onde terminam todos os tormentos

Que inundam de amargor a alma que chora.

Jesus! doce Jesus meigo e bondoso,

Quanto agradeço a paz que concedestes

Ao meu viver tristonho e doloroso!

E desse lindo oásis encantado,

Canto de luz dos páramos celestes,

Bendigo o vosso amor ilimitado!

Em êxtase

Aos teus pés, meu Jesus, a vida inteira,

Abrasada de amor eu viveria,

Sorvendo a luz no cálix da harmonia,

Em paz serena, eterna e derradeira!...

Por teu amor, Jesus, inda quisera

Volver ao pó da carne dos mortais,

Para cantar a terna primavera

Do teu amor nas lutas terrenais

Depois da treva espessa da amargura:

Para exaltar as luzes que me deste

Na cariciosa e doce paz celeste,

Meu tesouro de fúlgida ventura;

Para contar tua bondade imensa

Aos meus irmãos, os homens pecadores,

Mergulhados na noite da descrença,

Nos abismos dos males e das dores;

Para falar a todas as criaturas,

Da tua alma esplendente de bondade,

Afastando as amargas desventuras

Do coração da pobre Humanidade!

Aos teus pés, meu Jesus, a vida inteira,

Abrasada de amor eu viveria,

Sorvendo a luz no cálix da harmonia,

Em paz serena, eterna e derradeira!...

Mãe

Ó minha santa mãe! era. bem certo

Que entre as preces maternas estendias

As tuas mãos sobre os meus tristes dias,

Quando na Terra — que era o meu deserto.

Nos instantes de dor, bem que eu sentia

As tuas asas de Anjo da Ternura,

Pairando sobre a minha desventura

Feita de prantos e melancolia.

Flor ressequida eu era, e tu o orvalho

Que me nutria, pobre e empalecida;

Era a tua alma a luz da minha vida,

Meu tesouro, meu dúlcido agasalho!...

Ai de mim sem a tua alma bondosa,

Que me dava a promessa da esperança,

Raio de luz, de amor e de bonança,

Na, escuridão da vida dolorosa.

E que felicidade doce e pura,

A que senti após a treva e a morte,

Findo o terror da minha negra sorte,

Quando vi. teu sorriso de ventura!

Então, senti que as Mães são mensageiras

De Maria, Mãe de anjos e de flores,

E Mãe das nossas Mães cheias de amores,

Nossas meigas e eternas companheiras!...

Prece

Estendei vossa mão bondosa e pura,

Mãe querida dos fracos pecadores,

Aos corações dos pobres sofredores

Mergulhados nos prantos da amargura.

Derramai vossa luz, toda esplendores,

Da imensidade, da radiosa altura,

Da região ditosa da ventura,

Sobre a sombra dos cárceres das dores!

Ó Mãe! excelsa Mãe de anjos celestes,

Mais amor, desse amor que já nos destes,

Queremos nós em cada novo dia;

Vós que mudais em flores os espinhos,

Transformai toda a treva dos caminhos

Em clarões refulgentes de alegria.

Adeus

O sino plange em terna suavidade,

No ambiente balsâmico da igreja;

Entre as naves, no altar, em tudo adeja

O perfume dos goivos da saudade.

Geme a viuvez, lamenta-se a orfandade;

E a alma que regressou do exílio beija

A luz que resplandece, que viceja,

Na catedral azul da imensidade.

“Adeus, Terra das minhas desventuras...

Adeus, amados meus...” — diz nas alturas

A alma liberta, o azul do céu singrando...

— Adeus... — choram as rosas desfolhadas,

— Adeus... — clamam as vozes desoladas

De quem ficou no exílio soluçando...

Almas

Ó solitário das estradas,

Desventurado pensador,

Há no caminho “almas penadas”

Que vão clamando desoladas

A dor e o pranto, o pranto e a dor!...

Vós, que o silêncio amais no mundo,

Em orações ao pé do altar,

Sob as arcadas silenciosas,

Almas feridas, desditosas,

Oram convosco a soluçar.

Ao descansardes, meditando,

A sombra de árvores em flor,

Sabei que às vezes sois seguidos

Pelas angústias dos gemidos,

De almas chagadas no amargor.

Clareie a luz do sol-nascente,

Negreje a treva na amplidão,

Gemem na Terra muitos seres

Pelos amargos padeceres

Depois da morte, na aflição.

Dai-lhes dos vossos pensamentos

Consolação que adoce a dor,

Dai um conforto à desventura,

A prece cheia de ternura,

Algo de afeto, algo de amor!...

Almas de virgens

Andam sombras errando abandonadas

Ao pé das lousas e das covas frias,

Almas de pobres freiras desamadas,

Perambulando pelas sacristias.

Almas das que não foram desposadas,

Como bandos de rolas erradias,

Angélicas visões de bem-amadas,

Mortas na aurora rútila dos dias...

Virgens mortas! Tristíssimas oblatas

De um sacrário de luz piedoso e santo,

Que sonhais entre os tálamos celestes,

Entoai nos céus as tristes serenatas

Com as vossas roxas túnicas de pranto,

Cantando à luz do amor que não tivestes!..

Carta íntima

Escuta, meu irmão! Pelo caminho

Da miséria terrestre, há muitas dores;

Muito fel, muita sombra, muito espinho,

Entre falsos prazeres tentadores.

Há feridas que sangram... Há pavores

De órfãos sem lar, sem pão e sem carinho:

Confortemos os pobres sofredores,

Almas saudosas do Celeste Ninho!

Jesus há de sorrir com o teu sorriso,

Quando faças no mundo o bem preciso,

Pelo que sofre em desesperação.

Todo o bem que plantares nessa vida,

Há de esperar tua alma redimida

Nos caminhos de luz e redenção!

Maria

Toda a expressão de ternura

Do mundo de provação,

Nos Céus ditosos procura

A sua excelsa afeição.

Consolo das mães piedosas,

Cheias de mágoa e de pranto,

Sobre quem atira as rosas

Do seu Amor sacrossanto.

Ninguém diz, ninguém traduz

Essa visão da Harmonia,

Visão de paz e de luz,

Paz dos Céus! Ave-Maria!

Mensagem fraterna

Meu irmão: Tuas preces mais singelas

São ou vidas no espaço Ilimitado,

Mas sei que às vezes choras, consternado,

Ao silêncio da força que interpelas.

Volve ao teu templo interno abandonado,

- A mais alta de todas as capelas —

E as respostas mais lúcidas e belas

Hão de trazer-te alegre e deslumbrado.

Ouve o teu coração em cada prece.

Deus responde em ti mesmo e te esclarece

Com a força eterna da consolação;

Compreenderás a dor que te domina,

Sob a linguagem pura e peregrina

Da voz de Deus, em luz de redenção.

Vinde!

Todo anseio da crença acalma as dores,

Toda prece é uma luz para quem chora,

A oração é o caminho cor de aurora

Para o sonho dos pobres pecadores!...

Ó corações que a lágrima devora!

Vinde, através dos rudes amargores,

Cantar na luz dos grandes esplendores

Vossa iluminação de cada hora!...

Vinde rememorar no espaço infindo,

Neste Lar de Jesus, ditoso e lindo,

As desventuras para bendizê-las...

Feliz o coração sereno e forte,

Que triunfa da lágrima e da morte,

Palpitando na esfera das estrelas!...

O Senhor vem...

E eis que Ele chega sempre de mansinho.

Haja sol, faça frio ou tempestade;

Veste o manto do amor e da verdade,

E percorre o silêncio do caminho.

Vem ao nosso amargoso torvelinho,

Traz às sombras da vida a claridade,

E os próprios sofrimentos da impiedade

São as bênçãos de luz do seu carinho,

Como o Sol que dá vida sem alarde,

Vem o Senhor que nunca chega tarde,

E protege a miséria mais sombria.

Ele chega. E o amor se perpetua...

É por isso que o homem continua

Ressurgindo da treva a cada dia.


18

B. LOPES

Miragens celestes – Cromos.

NASCEU Bernardino da Costa Lopes em Boa Esperança, município de Rio Bonito, no Estado do Rio, a 19 de janeiro de 1859, falecendo em 1916, no Rio de Janeiro, quando funcionário do Cor­reio Geral. Notabilizou-se no gênero descritivo, fi­cando célebre com o seu livro “Cromos” (1881).

Miragens celestes

1

Sublimes atmosferas,

Luminosas, rarefeitas,

Sem as medidas estreitas

Das horas que marcam eras.

E as almas puras, eleitas,

Quais flores das primaveras,

Buscando vão as esferas

Das alegrias perfeitas.

Vão todas, espaço em fora,

Como lírios cor da aurora,

Modeladas pela dor.

E onde passam sorridentes

Abrem-se rosas virentes,

Rosas de paz e de amor.

2

Uma campina de flores

Em pleno espaço infinito,

Onde desperta um precito

De um pesadelo de dores.

Envergara o sambenito

Dos pedintes sofredores,

Vivera entre os amargores

De um sofrimento bendito.

E nessa etérea campina

Recebe a esmola divina,

Nesse batismo de luz;

Recebendo entre outros gozos,

Dos lábios de anjos formosos,

O ósculo de Jesus.

Cromos

1

Na alcova desguarnecida,

Sobre uma enxerga, a doente

Soluça como quem sente

O fim nevoento da vida.

Beija-lhe a filha inocente,

Minúscula, embevecida,

Mirando-a enternecida,

Dizendo-lhe docemente: —

“Não chores mais mamãezinha:

Vou dar minha bonequinha

À santa lá do altar;

E com esta minha promessa,

Ela há de vir bem depressa

Para a senhora sarar.”

2

O mendigo desprezado

Olha as estrelas e chora,

Pois sente que se enamora

Do firmamento estrelado.

Ao seu Jesus bem-amado,

Cheio de lágrimas, ora,

E pede, suplica, implora

Perdão para o seu pecado.

Vêem-se raios formosos,

Dimanando luminosos,

Do clarão da sua fé;

E lá dos céus abençoa

Sua alma singela e boa,

O Jesus que ele não vê.


19

BATISTA CEPELOS

Sonetos.

POETA paulista, desencarnou no Rio de Janeiro, em 1915, atribuindo-se a suicídio o encontro do seu corpo entre pedras de uma rocha, na rua Pedro Américo. Esta versão parece confirmar-se agora nestes sonetos. Olavo Bilac, ao prefaciar-lhe Os Bandeirantes, exalta-lhe o estro espontâneo, ori­ginal e simples.

Sonetos

1

Eu fui pedir à Natureza, um dia,

Que me desse um consolo a tantas dores;

Desalentado e triste, pressenti-a

Cansada e triste como os sofredores.

Encaminhei-me à porta da Agonia,

Corroído por chagas interiores,

Buscando a morte que me aparecia

Como o termo anelado aos dissabores,

Desvendando esse trágico segredo

Que a alma decifra, pávida de medo,

Com ansiedade e temores dos galés...

Mas ah! que atroz remorso me persegue!

Choro, soluço, clamo e ele me segue

Nesse abismo que se abre ante os meus pés.

2

Ninguém ouve na Terra esse lamento

Da minha dor imensa, incompreendida,

Nas pavorosas trevas desta vida

Em que eu julgava achar o Esquecimento.

Tenebrosa, essa noite indefinida,

Cheia de tempestade e sofrimento,

No país do Pavor e do Tormento

Onde chora a minhalma enceguecida.

Onde o não-ser, a paz calma e serena,

Que me traria o bálsamo a esta pena

Interminável, rude, dolorosa?

Ninguém! Uma só voz não me responde!

Sinto somente a treva que me esconde

Na vastidão da noite tormentosa...

3

Sirva-vos de escarmento a dor que trago

Na minhalma infeliz e sofredora,

Este padecimento com que pago

O desvio da estrada salvadora.

Aqui somente ampara-me esse vago

Pressentimento de uma nova aurora,

Quando terei os bens, o brando afago

Da Luz, que está na dor depuradora.

Agora, sim! depois de tantos anos

De tormentos, em meio aos desenganos,

Espero o sol de novas alvoradas

De existências de pranto e de miséria,

Para beber no cálix da matéria

As essências das dores renegadas!


20

BELMIRO BRAGA

Rimas de Outro Mundo – Bilhetes – Quadras.

NASCEU a 7 de janeiro de 1870, em Juiz de Fora, Minas, e aí desencarnou em 1937. Iniciou-se na vida comercial e foi, depois, notário público. Poeta, comediógrafo e jornalista nato. Populari­zou-se, sobretudo, pela singeleza e espontaneidade da sua musa. Era membro de realce da Academia Mineira de Letras, da qual foi um dos fundadores. Chamaram-lhe — “Rouxinol Mineiro”.

Rimas de Outro Mundo

1

Cheguei feliz ao meu porto,

Estou mais moço e mais forte,

Encontrei paz e conforto

Na vida, depois da morte.

Eis as rimas de outro norte,

Que escreve o poeta morto.

2

Com a ignorância proterva,

Que a morte é o fim, o homem pensa,

Julgando no talo de erva

A paisagem linda e imensa.

Ah! feliz o que conserva

As luzes doces da crença.

3

Quanta gente corre, corre,

Ansiosa atrás do prazer,

Sonha e chora, luta e morre

Sem jamais o conhecer.

Não há ninguém que se forre,

Sobre a Terra, ao padecer.

4

Fecha a bolsa da ambição,

Não corras atrás da sorte,

Venera a mão que te exorte

Nos dias de provação.

Tem coragem, meu irmão,

Ninguém se acaba com a morte.

5

No mundo vale quem tem

Um cifrão de prata ou de ouro;

Mas, da morte ao sorvedouro,

Jamais escapa ninguém!

No Céu só vale o tesouro

Daquele que fez o bem.

6

Que tua alma em preces arda

No fogo da devoção.

Deus é Pai que nunca tarda

No caminho da aflição.

Nas mágoas do mundo, guarda

A fé do teu coração.

7

Entre a fé e o fanatismo,

Muito espírito se engana:

A primeira ampara e irmana,

O segundo é o dogmatismo,

Goela aberta de um abismo

Na estrada da vida humana.

8

A Terra, para quem sente,

Inda é torre de Babel,

Onde a prática desmente

As ilusões do papel:

Muita boca sorridente,

Corações de lodo e fel.

9

Suporta a dor que te cobre

Na estrada espinhosa e má,

Quem é rico, quem é nobre,

A essa estrada voltará.

É uma ventura ser pobre,

Com a bênção que Deus nos dá.

10

Na vida sempre supus,

Sem muita filosofia,

Que, em prol do Reino da Luz,

Basta, na Terra sombria,

Que o homem siga a Jesus,

Que a mulher siga a Maria.

Bilhetes

Se tens o leve agasalho

Do santo calor da crença,

Exemplifica o trabalho

Sem cuidar da recompensa.

Não peças aprovação

Do mundo pobre e enganado,

Recorda que o mundo vão

É grande necessitado.

Vais procurar a ventura?

Toma cuidado: os caminhos

São crivados de amargura,

Atapetados de espinhos.

Acalma-te na aflição,

Modera-te na alegria,

Não prendas o coração

Nos laços da fantasia.

No curso de aquisições,

Não vivas correndo a esmo;

Esquece as inquietações,

Toma posse de ti mesmo.

Recorda que tua vida

É sempre uma grande escola;

Muita fronte encanecida

É fronte de criançola.

Não perguntes ao passado

Pela sombra, pela dor,

O caminho é ilimitado,

Eterna a fonte do amor.

Olha o monte luminoso,

Que símbolo sacrossanto!...

Quem desce é riso enganoso,

Quem sobe é suor e pranto.

Não te aflijas. A bonança

É flor de sabedoria,

Não te esqueças que a esperança

É a bênção de cada dia.

No impulso que te conduz,

Age sempre com bondade,

Todo esforço com Jesus

É vida na eternidade.

Quadras

1

Ai de quem busca o deserto

De torturas da descrença:

Morrer é sentir de perto

A vida profunda e imensa.

2

Depois da miséria humana

Sobre a Terra transitória,

Lastimo quanto se engana

O ouro da falsa glória.

3

Dinheiro do mundo vão,

Mentiras da vaidade,

Não trazem ao coração

A luz da felicidade.

4

Bem pobre é a cabeça tonta

Dos perversos e usurários,

Que morrem fazendo conta

Nas cruzes de seus rosários.

5

É ditosa no caminho,

Alegre como ninguém,

A mão terna do carinho

Que vive espalhando o bem.

6

Angústias, derrotas, danos,

Tudo isso tenho visto.

Só não vejo desenganos

Na estrada de Jesus-Cristo.


21

BITTENCOURT SAMPAIO

À Virgem - À Maria - Às filhas da Terra - À Virgem.

SERGIPANO, nascido na cidade de Laranjeiras, em 19 de fevereiro de 1834, desencarnou no Rio de Janei­ro em 10 de outubro de 1895. Foi político ativo, deputado por sua província em duas legislaturas e Presi­dente do Espírito Santo. Diretor da Biblioteca Nacional e jornalista de mérito.

A fonte de onde respigamos estes dados, aponta Poe­sias (1859) e Flores Silvestres (1860), mas omite a maior das suas obras, que é A Divina Epopéia, ou seja o Evan­gelho de João, em magníficos versos brancos, tais como estes. Mas... é que Bittencourt Sampaio foi, no último quartel da vida terrena, um dos mais brilhantes e deste­merosos paladinos da Revelação Espírita. E, como tal, ainda hoje se manifesta, por dar-nos obras como Jesus perante a Cristandade, verdadeiro poema em prosa. Refor­mador, de 1937 (página 494), publicou-lhe a biografia.

À Virgem

Vós sois no mundo a estrela da esperança,

A salvação dos náufragos da vida;

A custódia das almas sofredoras,

Consolação e paz dos desterrados

Do venturoso aprisco das ovelhas

De Jesus-Cristo, o Filho muito amado!

Fanal radioso aos pobres degredados,

Anjo guiador dos homens desgarrados

Do Evangelho de luz do Filho vosso.

Virgem formosa e pura da bondade,

Providência dos fracos pecadores,

Astro de amor na noite dos abismos,

Clarão que sobre as trevas da cegueira

Expulsa a escuridão das consciências!

Virgem da piedade e da pureza,

Estendei vossos braços tutelares

À Humanidade inteira, que padece,

Espíritos na treva das angústias,

No tenebroso báratro das dores,

Mergulhados nas tredas tempestades

Do mal, que lhes ensombra a mente e a vista;

Cegos desventurados, caminhando

Em busca de outras noites mais escuras.

Legião de penitentes voluntários,

Afastados do amor e da verdade,

Fugitivos da luz que os esclarece!

Anjo da caridade e da virtude,

Estendei vossas asas luminosas

Sobre tanta miséria e tantos prantos.

Dai fortaleza àqueles que fraquejam,

Apiedai-vos dos frágeis caminhantes,

Iluminai os cérebros descrentes,

Fortalecei a fé dos vacilantes,

Clareai as sendas obscurecidas

Dos que se vão nos pântanos dos vícios!...

Existem almas míseras que choram

Amarradas ao potro das torturas,

E corações farpeados de amarguras...

Enxugai-lhes as lágrimas penosas!

Virgem imaculada de ternura,

Abençoai os mansos e os humildes

Que acima de ouropéis enganadores

Põem o amor de Jesus, eterno e puro!

Dulcificai as mágoas que laceram

Pobres almas aflitas na voragem

Das provações mais rudes e amargosas.

Estendei, Virgem pura, o vosso manto

Constelado de todas as virtudes,

Sobre a nudez de tantos sofrimentos

Que despedaçam almas exiladas

No orbe da expiação que regenera...

Ele será a luz resplandecente

Sobre a miséria dos padecimentos,

Afastando amarguras, concedendo

Claridades a estradas pedregosas...

Conforto às almas tristes deste mundo,
Porto de segurança aos viajantes,

Clarão de sol nas trevas mais espessas,

Farol brilhante iluminando os trilhos

De todos os viajores que caminham

Pela mão de Jesus, doce e bondosa;

O pão miraculoso, repartido

Entre os esfomeados e os sedentos

De paz, que os acalente e os conforte!

Virgem, Mãe de Jesus, anjo de amor,

Vinde a nós que na luta fraquejamos,

Ajudai-nos a fim de que a vençamos...

Vinde, piedosa Virgem de bondade,

Cremos em vós, na vossa alma divina!

Vinde! ... dai-nos mais força e mais coragem,

Derramai sobre nós o eflúvio santo

Do vosso amor, que ampara e que redime...

Vinde a nós! nossas almas vos esperam,

Almas de filhos míseros que sofrem,

Atendei nossas súplicas, Senhora,

Providência da pobre Humanidade!...

À Maria

Eis-nos, Senhora, a pobre caravana

Em fervorosas súplicas, reunida,

Implorando a piedade, a paz e a vida,

De vossa caridade soberana.

Fortalecei-nos a alma dolorida

Na redenção da iniqüidade humana,

Com o bálsamo da crença que promana

Das luzes da bondade esclarecida.

Providência de todos os aflitos,

Ouvi dos Céus, ditosos e infinitos,

Nossas sinceras preces ao Senhor...

Que a nossa caravana da Verdade

Colabore no Bem da Humanidade,

Neste banquete místico do amor.

Às filhas da Terra

Do Seu trono de luzes e de rosas,

A Rainha dos Anjos, meiga e pura,

Estende os braços para a desventura,

Que campeia nas sendas espinhosas.

Ela conhece as lágrimas penosas

E recebe a oração da alma insegura,

Inundando de amor e de ternura

As feridas cruéis e dolorosas.

Filhas da Terra, mães, irmãs, esposas,

No turbilhão dos homens e das coisas,

Imitai-a na dor do vosso trilho!...

Não conserveis do mundo o brilho e as palmas,

E encontrareis, em vossas próprias almas,

A alegria do reino de Seu Filho!

À Virgem

Do teu trono de róseas alvoradas,

Estende, mãe bendita, as mãos radiosas

Sobre a angústia das sendas escabrosas

Onde choram as mães atormentadas.

Mãe de todas as mães infortunadas,

Com tua alma de unos e de rosas,

Mitiga a dor das almas desditosas

Entre as sombras de míseras estradas.

Anjo consolador dos desterrados,

Conforta os corações encarcerados

Nas algemas do mundo amargo e aflito.

Ao teu olhar, as lágrimas da guerra

E os quadros de amargor, que andam na Terra,

São caminhos de luz para o Infinito.


22

CÁRMEN CINIRA

Minha luz - Aos Espíritos consoladores - Cigarra morta - Era uma vez. - À Juventude - O viajor e a Fé - O sinal - Na noite de Natal.

NOME literário de Cinira do Carmo Bordini Car­doso: nasceu no Rio de Janeiro, em 1902, e fa­leceu em 30 de agosto de 1933. Sua esponta­neidade poética era tão grande que ela própria acreditava serem os seus versos de origem mediú­nica. Glorificou o Amor, a Renúncia, o Sacrifício e a Humildade, em obras como: Crisálida, Grinalda de Violetas, Sensibilidade.

Minha luz

Eu era, Dor, a alma rubra e inquieta,

A pomba predileta

Do prazer, da ilusão e da alegria...

Meu coração, alegre cotovia,

Saudava alvoroçado

O segredo da noite e a luz clara do dia,

Quando chegaste de mansinho,

Pisando sutilmente o meu caminho...

E eu te enxerguei, despreocupada,

Em meu engano, em minha fantasia:

Primeiramente,

Foste, austera e inclemente,

A um dos belos tesouros que eu possuía

E mo roubaste para sempre...

Em fúria iconoclasta,

Como o simum que arrasta

As cidades repletas de tesouros

Confundindo-as no pó,

Foste aos meus ídolos mais caros,

Destruindo-os sem dó.

Prosseguiste, á divina estatuária,

Na tua obra silente e solitária,

E quebraste

Minhas cítaras de ouro,

Meus mármores de Paros,

Meus cofres de alabastros,

Minhas bonecas de biscuí,

Minhas estatuetas singulares...

E humilhaste

Meus sonhos de mulher e de menina,

Que eu pusera nos astros

Em meio às melodias estelares!

Mas, desde que chegaste,

Foste a sombra divina

Que acompanhou meus passos ao sepulcro...

Tudo sofri,

Ó Dor, por te querer,

Porque depois que vieste

Qual pássaro celeste

Para abrir rosas de sangue no meu peito,

Encheste a minha vida

De um estupendo prazer, quase perfeito!

Aos poucos me ensinaste a abandonar

Meus prazeres fictícios,

Trocando-os pela luz dos sacrifícios!

Por tudo eu te bendigo, á Dor depuradora,

Porque representaste em meu destino,

De alma sofredora,

O fanal peregrino

Que me guiou constantemente

Através das estradas espinhosas

Para as manhãs radiosas

Da Luz Resplandecente...

Sê, pois, bendita, á Dor linda e gloriosa,

Pois da volúpia estranha dos teus braços,

Vim pelas mãos da morte complacente

Para a vida sublime dos Espaços!...

Aos Espíritos consoladores

Donde éreis vós, á formas imprecisas

De arcanjos tutelares,

Cujas vozes suaves como brisas

Trouxeram-me nas dores,

No auge do meu sofrer, nos meus penares,

A irradiação de brando refrigério!...

Frontes aureoladas de esplendores,

Seres cheios de amor e de mistério,

Cujas mãos compassivas

Ungiram meu coração resignado

Com o bálsamo do olvido do passado,

E com os místicos olores

Das meigas sempre-vivas

Da fé mais luminosa e mais ardente...

Seríeis o fantasma imaginário

Da mórbida exaltação dalma do crente?

Não, porque sois os cireneus piedosos

Dos que vão em demanda do Calvário

Da Redenção, nos sofrimentos rudes;

Vindes das mais remotas altitudes

De sublimados mundos luminosos!...

Seres do Amor, jamais traduziria

O cântico de luz

Que trouxestes ao leito da agonia

Que eu transpus,

Cheia de desenganos e gemidos!...

Verto ainda os meus prantos comovidos

Lembrando-me do vosso Stradivárius,

Repetindo as cadências dos hinários

Dos orbes da Ventura e da Harmonia,

Onde habitais, glorificando o Amor

Que dalma faz um ninho de alegria

E um foco de esplendor!

Em que sol deslumbrante, em qual esfera

Viveis a vossa eterna primavera?

Ó irmãos consoladores,

Que vindes confortar os pecadores

Penitentes da vida transitória,

Dai-me um pouco de luz da vossa glória,

Estendei-me uma única migalha

Da vossa paz, que nutre e que agasalha

Os corações iguais ao meu!...

Tenho sede do amor que enfeita o Céu!

Espíritos da luz radiosa e infinda,

Minhalma é fraca e pobre ainda;

Todavia, imortal,

Quero ter dessa luz resplandecente,

E quero embriagar-me inteiramente

Com os vinhos da alegria celestial.

Cigarra morta

Chamam-me agora aí

Cigarra morta,

E não podia haver melhor definição,

Porque caí estonteada à porta

Do castelo em ruínas,

Do desencanto e da desilusão!...

Minhas futilidades pequeninas...

Meus grandes desenganos...

Eu mesma inda não sei

Se é ventura morrer na flor dos anos...

Sei apenas que choro

O tempo que perdi,

Cantando em demasia a carne inutilmente;

E vivo aqui, somente,

De quanto idealizei

De belo, de perfeito, grande e santo,

Que inda hei de realizar

Com a rima do meu verso e a gota do meu pranto.

Dá-me força, Senhor,

Para concretizar meu anseio de amor:

Evita-me a saudade

Da minha improdutiva mocidade!

Eu não quero sentir,

Como cigarra que era,

A falta das canículas doiradas

Sob a luz de ridente primavera.

Já que tombei cansada de cantar,

Calando amargamente,

Perdoa, Deus de Amor, o meu pecado:

Que eu olvide a cigarra do passado,

Para ser uma abelha previdente.

Era uma vez...

Era uma vez Cármen Cinira, Um coração

Cheio de sonho e flor, que mal se abrira

Nos jardins encantados da ilusão...

Estraçalhou-se para sempre

Na voragem

Das trevas, dos abrolhos!...

Era uma vez Cármen Cinira...

Uma suposta imagem

Da perene alegria,

Mas que trouxe em seus olhos,

Eternamente,

Essa amarga expressão de alma doente,

Cheia de pranto e de melancolia!...

Cármen Cinira! Cármen Cinira!

Que é da minha cigarra cantadeira?

Embalde te procuro.

Por que cantaste assim a vida inteira,

Cigarra distraída do futuro?

Perturbada,

Aturdida,

Busco a mim mesma aqui nestoutra vida...

Onde estou, onde estou?

Minha vida terrena se acabou

E sinto outra existência revelada!

Não sei por que me sinto amargurada...

Sinto que a luz me guia

Para a paz, para um mundo de alegria.

Mas, á imortalidade

Se na Terra eu te via

Como a aurora divina da verdade,

Não julguei que inda a morte me abriria

Esse cenário deslumbrante

De outros sóis e de outros seres,

E vejo agora

Que não amei bastante,

E não cumpri à risca os meus deveres!

A fagulha de crença

Que eu possuía,

Devia transformar numa fornalha imensa

De fé consoladora,

E incendiar-me para ser luzeiro.

Mas, ó Senhor da paz confortadora,

Eu vi chegar o dia derradeiro

Em minha dor, na máscara de festa,

E a morte me apanhou

Como se apanha uma ave na floresta.

Experimento a grande liberdade!

Todavia, Senhor, ampara-me e protege

Minha triste humildade!

Eu te agradeço a paz que já me deste,

Mas eis que ainda te imploro comovida,

Porque me sinto em fraca segurança;

Deixa que eu guarde ainda nesta vida

Meu escrínio de estrelas da Esperança.

À Juventude

Juventude linda e ardente,

Mocidade querida que eu exorto,

Meu coração de carne, esse está morto,

Mas minha alma que é eterna está presente.

Zelai pelo plantio, ó juventude,

Das flores perfumadas da virtude,

Porque depois dos sonhos terminados

Em nossos ermos e últimos caminhos,

Ai! como nos ferem os espinhos

Das belas rosas rubras dos pecados!

O viajor e a Fé

— “Donde vens, viajor triste e cansado?”

— “Venho da terra estéril da ilusão.”

— “Que trazes?”

— “A miséria do pecado,

De alma ferida e morto o coração.

Ah! quem me dera a bênção da esperança,

Quem me dera consolo à desventura!”

Mas a fé generosa, humilde e mansa,

Deu-lhe o braço e falou-lhe com doçura:

— “Vem ao Mestre que ampara os pobrezinhos,

Que esclarece e conforta os sofredores!...

Pois com o mundo uma flor tem mil espinhos,

Mas com Jesus um espinho tem mil flores!”

O sinal

Quando chegamos do País do Gozo,

Nossa alma sem repouso

Traz o sinal das trevas do pecado.

Nossa alegria é um riso envenenado.

A palavra disfarça o coração

E a nossa dor é desesperação.

Tudo é sombra. A verdade não tem voz.

Muita vez, tudo é queda dentro em nós.

Mas os que vêm do Mundo dos Deveres

Guardam a luz de místicos prazeres.

Não têm palmas da Terra impemtente...

Como tudo, porém, é diferente!...

Sua alegria é um fruto adocicado,

Sua palavra é um livro iluminado,

Sua dor alivia as outras dores.

Trazem o amor de todos os amores,

Revelando na vida transitória

O sinal do Calvário aberto em glória!

Na noite de Natal

Noite de paz e amor! Repicam sinos,

Doces, harmoniosos, cristalinos,

Cantando a excelsitude do Natal!...

A estrela de Belém volta, de novo,

A brilhar, ante os júbilos do povo,

Sob a crença imortal.

De cada lar ditoso se irradia

A glória da amizade e da harmonia,

Em festiva oração;

Une-se o noivo à noiva bem-amada,

Beija o filho a mãezinha idolatrada,

O irmão abraça o irmão.

Dentro da noite, há corações ao lume

E há sempre um bolo, em vagas de perfume,

Sob claro dossel...

Nascem canções e flores de mansinho,

Em édenes fechados de carinho,

De esperança e de mel.

Mas, lá fora, a tristeza continua...

Há quem chora sozinho, em plena rua,

Ao pé da multidão;

Há quem clama piedade e passa ao vento,

Ralado de tortura e sofrimento,

Sem a graça de um pão.

Há quem contempla o céu maravilhoso,

Rogando à morte a bênção do repouso

Em terrível pesar!

Ah! como é triste a imensa caravana,

Que segue, aflita, sob a treva humana

Sem consolo e sem lar...

Tu, que aceitaste a luz renovadora.

Do Rei que se humilhou na manjedoura

Para amar e servir,

Volve o olhar compassivo à senda escura,

Vem amparar os filhos da amargura,

Que não podem sorrir.

Desce do pedestal que te levanta

E estende a mão miraculosa e santa

Ao desalento atroz;

Para unir-nos no Amor, fraternalmente,

Desceu Jesus do Céu Resplandecente

E imolou-se por nós.

Vem medicar quem geme na calçada!...

Oferece à criança abandonada

Um velho cobertor;

Traze a quem sofre a lúcida fatia

Do teu prato de sonho e de alegria,

Temperado de amor.

Visita as chagas negras da mansarda

Onde a miséria súplice te aguarda

Em nome de Jesus.

Há muita crença enferma, quase morta,

Que só pede um sorriso brando à porta,

Para tornar à luz.

Natal!... Prossegue o Mestre, de viagem,

Em vão buscando um quarto de estalagem,

Um ninho pobre, em vão!...

E encontra sempre a cruz, ao fim da estrada,

Por não achar socorro, nem pousada

Em nosso coração.


23

CASIMIRO CUNHA

Na eterna luz – Anjinhos - Ascensão – Quadras - Supremacia da Caridade – Versos – Símbolo - Pensamentos espíritas - Sombra e luz - O beijo da morte - O engano - flores silvestres - Ao meu caro Quintão – Espiritismo - Aos companheiros da Doutrina.

POETA vassourense, nasceu aos 14 de abril de 1880 e desencarnou em 1914. Pobre, ao demais espírita confesso, não teve maior projeção no cenáculo literário do seu tempo, mau grado à suavidade da sua musa e inatos talentos literários. Há, na sua existência terrena, uma triste particularidade a assinalar, qual a de haver perdido uma vista aos 14 anos, por acidente, para de todo cegar da outra aos 16. Órfão de pai aos 7 anos, apenas freqüentou escolas primárias. Era um espírito jovial e forte no infortúnio, que ele sabia aproveitar no enobrecimento da sua fé. Se tivesse tido maior cultura, atingiria as maio­res culminâncias do firmamento literário.

Na eterna luz

Quando parti deste mundo

Em busca da Imensidade,

A alma ansiosa da Verdade,

Do azul imenso dos céus,

Fugi do pesar profundo,

Lamentando os sofrimentos,

As mágoas, os desalentoS,

Confiado no amor de Deus.

Mal, porém, abrira os olhos

Em meio de luzes puras,

Nas radiantes alturas,

Em célico resplendor,

Compreendi que os abrolhos

Que a, Terra me oferecera,

Eram mesmo a primavera

Do meu sonho todo em flor.

Disseram-me então: — “Ó crente

Que chegais a estas plagas,

Fugindo das grandes vagas

Do mar revolto das lutas,

Aportai serenamente

Nesta estância do Senhor,

Pois aqui existe o amor

Nestas almas impolutas!

Aqui existe a pureza,

A meiga flor da Bondade,

O aroma da Caridade

Perfumando os corações;

Não se conhece a torpeza

Da lâmina — hipocrisia,

Que mata toda a alegria,

Provocando maldições.

Aqueles que já sofreram

No dever nobilitante,

Cujo peito sempre amante

Só conheceu dissabores;

Aqueles que conheceram

As feridas dolorosas,

Dessas mágoas escabrosas

De um triste mundo de dores,

Encontram nestas moradas

Tão formosas, resplendentes,

Os clarões resplandecentes

De afetos imorredouros!

As almas imaculadas

São flores das boas-vindas,

Luminosas, sempre lindas,

Ofertando-lhes tesouros:

Os tesouros peregrinos,

Formados de amor e luz

Do Mestre Amado — Jesus,

Arauto do Onipotente;

Os reflexos divinos

Quais lírios iluminados,

Alvos, belos, deificados,

Penetrarão sua mente.

Acordai, pois, ó vivente,

Contemplai-vos nesta vida,

Que vossa alma ensandecida

Procure a luz que avigora.

O Senhor sempre clemente,

Concede-vos neste instante

A bênção dulcificante

Do seu amor — doce aurora.

Sacudi o pó da estrada

Que trilhastes na amargura,

Pois agora na ventura

Fruireis consolações;

Nesta esfera iluminada,

Que aportais neste momento,

Não vereis o sofrimento

Retalhando os corações.

Anjinhos

Só vereis clarões de luz

A despontar nestas almas,

Tornadas em belas palmas

Das mansões do Criador!

Bendizei, pois, a Jesus,

O Mestre da Caridade,

O Luzeiro da Bondade,

O grande Mestre do Amor!”

Então, eu vi que na Terra

Em meio da iniqüidade,

Na tremenda tempestade

Das dores e expiações,

A nossa alma que erra,

Tão longe das grandes luzes,

Só aproveita das cruzes,

Das amargas provações.

Venturoso, abençoei

A dor que amaldiçoara,

Que renegar eu tentara

Como os míseros ateus,

E feliz então busquei

As bênçãos, flores brilhantes,

Alvoradas fulgurantes

Do amor imenso de Deus.

Ó mães que chorais na vida

Os vossos ternos anjinhos,

Que quais meigos passarinhos

Cindiram o espaço azul,

Deixando-vos sem conforto,

O peito dilacerado,

O coração desolado,

A alma tristonha e exul,

Reconhecei que na Terra

Só se conhecem as dores,

Os prantos, os amargores,

As frias noites sem luz;

E os vossos filhinhos ternos,

Quais centelhas luminosas,

São as flores mais formosas

Das moradas de Jesus.

São mensageiros felizes

Nas radiantes alturas,

Em meio das luzes puras,

De outras rútilas esferas,

Resplandecendo imortais

Nos espaços deslumbrantes,

Quais reflexos brilhantes

Das celinas primaveras.

Visitam os vossos lares

Como gênios protetores,

Ofertando-vos as flores

Do seu afeto eternal;

Osculam-vos ternamente,

Insuflando-vos coragem,

Ao transpordes a voragem

Do abismo negro do mal;

Alegrai-vos, pois, ao verdes

Quando partem sorridentes,

Venturosos, inocentes,

Como fúlgidos clarões;

Eles farão despertar

As alvoradas formosas,

De luzes esplendorosas

Dentro em vossos corações.

Ascensão

Perguntai à flor virente,

De pétalas multicores,

Que com mágicos olores

Perfumam vosso ambiente,

O que fazem cá no mundo,

Tão viçosas, perfumadas,

Pelas sendas desoladas

Deste abismo tão profundo.

Como sorrisos dos Céus,

Essas flores perfumosas

Responderiam formosas:

— “Nós marchamos para Deus!”

A ave que poetiza

Com seus cânticos maviosos

Vossos campos dadivosos

Em beleza que harmoniza,

Se perguntásseis também,

Ela vos retrucaria:

- “Caminhamos na alegria,

Para a Luz e para o Bem.”

Tudo pois, em ascensão,

Marcha ao progresso incessante,

A alvorada rutilante

Da sublime perfeição.

Segui pois, irmãos terrenos,

Nessas trilhas luminosas,

Caminhai sempre serenos,

Entre lírios, entre rosas;

Entre os lírios da Bondade,

Entre as rosas da Ternura,

Espargindo a caridade,

Consolando a desventura.

Só assim caminharemos

Nessa eterna evolução,

E no Bem conquistaremos

A suprema perfeição.

Quadras

Ser cego e nada ver

Na triste noite escura,

E ver depois a luz

Da aurora de ventura;

Chorar na escuridão

Em dores mergulhado,

E após o sofrimento

Ter gozo ilimitado;

Sorver dentro da treva

O fel das amarguras,

Depois, buscar o amor

Nas lúcidas alturas;

É possuir tesouros

De paz, de vida e luz,

No sacrossanto abrigo

Do afeto de Jesus.

Supremacia da Caridade

A fé é a força potente

Que desponta na alma crente,

Elevando-a aos altos Céus:

Ela é chama abrasadora,

Reluzente, redentora,

Que nos eleva até Deus.

A esperança é flor virente,

Alva estrela resplendente,

Que ilumina os corações,

Que conduz as criaturas

As almejadas venturas

Entre célicos clarões.

A caridade é o amor,

É o sol que Nosso Senhor

Fez raiar claro e fecundo;

Alegrando nesta vida

A existência dolorida

Dos que sofrem neste mundo!

A fé é um clarão divino,

Refulgente, peregrino,

Que irrompe, trazendo a luz;

A caridade é a expressão

Da personificação

Do Mestre Amado — Jesus!

A esperança é qual lume,

Ou capitoso perfume

Que nos alenta na dor;

A caridade é uma aurora

Que resplende a toda hora,

Nada empana o seu fulgor.

Seja, pois, abençoada

Essa fúlgida alvorada

A raiar eternamente!

Caridade salvadora,

Pura bênção redentora

Do Senhor Onipotente.

Versos

Vivi na mansão das sombras,

Desterrado;

Na noite das trevas densas,

Sepultado.

Entrei no sepulcro escuro,

Nascendo;

E dele fugi feliz,

Morrendo.

É que a vida material

É a prisão,

Onde a alma é encarcerada

Na aflição;

E a vida da alma é a nossa

Liberdade,

Onde as luzes recebemos

Da Verdade.

Símbolo

Sobre a lama de um monturo

Um branco lírio sorria,

Alvo, belo, delicado,

Perfumando a luz do dia.

Vendo essa flor cariciosa

No pantanal sujo e imundo,

Via o símbolo do Bem

Entre os males deste mundo.

Pois entre as trevas e as dores

Da vida de provações,

Pode existir a bondade

Irradiando clarões.

E o coração que cultiva

A caridade e o amor,

É a flor cheia de aromas,

Cheia de viço e frescor.

Que mesmo dentro da treva

Do mundo ingrato, sem luz,

É lírio resplandecente

Do puro amor de Jesus.

Pensamentos espíritas

Dobram sinos a finados,

Com mágoa e desolação...

Porque não sabem que a morte

É a nossa libertação.

Toda a esperança da fé,

Que vive com a caridade,

É realizada no mundo

Da eterna felicidade.

A palavra que reténs

É tua serva querida,

Mas aquela que te foge

É dona da tua vida.

Todo suicida presume

Que a morte é o fim do amargor,

Sem saber que o desespero

É porta para outra dor.

Quem sofre resignado,

Após a morte descansa

Quem luta, sem naufragar,

Verá decerto a bonança.

Quem tem a flor da humildade,

Medrando no coração,

Tem o jardim das virtudes

Da suprema perfeição.

Volve ao Céu todo piedoso,

Coração que andas ferido!.

Deus cura todas as chagas

Do mal que tens padecido.

Sombra e luz

Vem a noite, volta o dia,

Cresce o broto, nasce a flor,

Vai a dor, surge a alegria

Dourando a manhã do Amor.

Assim, depois da amargura

Que a vida terrena traz,

A alma encontra na Altura

A luz, a ventura e a paz.

O beijo da morte

Para quem viveu na Terra

Em meio dos sofredores

E somente frias dores

No mundo ingrato colheu,

O frio beijo da morte

É o beijo da liberdade,

É um raio de claridade

Que vem da altura do Céu.

A vida terrena é a noite

Que precede as madrugadas

Das regiões aureoladas

De amor, de verdade e luz:

Sem paradoxo, portanto,

O gozo é o próprio martírio,

Que se fez excelso Lírio

Na devoção de Jesus.

A morte é a deusa celeste

Da vida, da plenitude,

Que a alegria da Virtude

Faz, linda, desabrochar;

Seu beijo é um raio de luz

Do dealbar das alturas,

Que na noite de amarguras

As almas vem despertar.

O engano

As vezes diz a Ciência

Que a crença é engano profundo,

Esperando uma outra vida

Noutros planos, noutro mundo...

E diz arrogante à Fé:

— “Estás louca! A morte apenas

É o sono eterno e tranqüilo

Depois das lutas terrenas.”

Ao que ela replica, humilde:

— “Mais tarde, Ciência amiga,

Serás o sósia da Fé,

Andarás ao Lado meu.

Se for sono, dormiremos,

Mas se não for, pois não é,

De quem será esse engano?

Será meu ou será teu?”

Flores silvestres

Já viste, filho, a floresta

Varrida pelas tormentas?

Partem-se troncos anosos,

Caem copas opulentas.

Mil árvores grandiosas

Esfacelam—se nos ares

Tombam gigantes da selva,

Venerandos, seculares.

Mas as florinhas silvestres

São apenas baloiçadas,

Continuando graciosas

A tapetar as estradas.

Zune o vento? geme a selva?

Não sabe a pequena flor,

Que perfumando o caminho

Compõe um hino de amor.

Flores silvestres!... Imagem

Dos bons e dos pequeninos,

Que sobre o mundo derramam

As graças dos dons divinos.

Na selva da vida humana

Caem grandes, poderosos:

Arcas repletas de ouro,

E frontes ébrias de gozos.

Mas, os humildes da Terra,

Dentro da fé que os conduz,

Não caem... São refletores

Da bondade de Jesus.

Flores silvestres da vida,

Não sabem se há tempestade

De ambições e se há no mundo

Leis de ódio e iniqüidade.

Nos dias mais tormentosos,

Sê, filho, como esta flor:

Chore o homem, grite o mundo,

Palmilha a estrada do amor.

Ao meu caro Quintão (*)

Quintão, eu sei da saudade

Que te aperta o coração,

Dos nossos dias passados,

Que tão distantes se vão.

(*) Ver nota 1 no final do volume.

Vassouras!... belas paisagens

Cheias de vida e de cor,

Um céu azul e estrelado

Cobrindo uns ninhos de amor.

Árvores fartas e verdes

Pela alfombra dos caminhos,

A ermida branca e suave

De ternos, doces carinhos.

O nosso amigo Moreira

E a sua barbearia,

Onde uma vez me encontraste

Na minha noite sombria.

Detalhes cariciosos

Da vida singela e calma,

Vida de encantos divinos

Que eu via com os olhos dalma.

Meus pobres versos — “Singelos”, “

Aves implumes” da dor,

Que traduziam no mundo

O meu pungente amargor.

A minha pobre Carlota,

A companheira querida,

O raio de claridade

Da noite da minha vida.

Os artigos do Bezerra

De outros tempos, no “O Pais”,

O mestre da Velha Guarda,

Unida, forte e feliz.

A tua doce amizade

A luz do Consolador,

Teu coração generoso

De amigo, irmão e mentor.

Ah! Quintão, hoje os meus olhos

Embebedam-se de luz,

Pelas estradas sublimes

Da santa paz de Jesus!

Mas não sei onde a saudade

É mais forte nos seus véus,

Se pelas sombras da Terra,

Se pelas luzes dos Céus.

Espiritismo

Espiritismo é uma luz

Gloriosa, divina e forte,

Que clareia. toda a vida

E ilumina além da morte.

É uma fonte generosa

De compreensão compassiva,

Derramando em toda parte

O conforto dÁgua Viva.

É o templo da Caridade

Em que a Virtude oficia,

E onde a bênção da Bondade

É flor de eterna alegria.

É árvore verde e farta

Nos caminhos da esperança,

Toda aberta em flor e fruto

De verdade e de bonança.

É a claridade bendita

Do bem que aniquila o mal,

O chamamento sublime

Da Vida Espiritual.

Se buscas o Espiritismo,

Norteia-te em sua luz:

Espiritismo é uma escola,

E o Mestre Amado é Jesus.

Aos companheiros da Doutrina

Examinada de perto,

A luz da nossa Doutrina

É sempre a lição que ensina

A paz do caminho certo.

Necessário é discernir

A mistura, a ganga, o véu;

Muita vez a água do céu

Torna-se em lama, ao cair.

O mal vem de ouvidos moucos

Ou de olhos nevoados,

Há sempre muitos chamados;

Escolhidos? muito poucos.

Verdade é que o coração,

Que abrace a nossa Doutrina,

Penetra numa oficina

De esforço, luta, e ação.

Já não deve andar a esmo

Nas estradas da ilusão,

Mas buscando a perfeição

Na perfeição de si mesmo.

Portanto, é nossa divisa

Oração e Vigilância,

No bem que é bem substância

Da crença que diviniza.

No Evangelho de Jesus,

Feliz quem pode guardar

A força de realizar

Os grandes feitos da Luz.

Que no altar do coração

Tenhamos o amor profundo

Daquele que é a Luz do Mundo,

— Eis meu desejo de irmão.


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CASIMIRO DE ABREU

À minha terra - A Terra – Lembranças – Recordando.

POETA fluminense, desencarnou aos 18 de outu­bro de 1860, na Fazenda de Indaiaçu, no então município de Barra de São João, hoje denomi­nado Casimiro de Abreu, com 21 anos de idade, acometido de tuberculose pulmonar. Figura lite­rária das mais típicas do seu tempo, o autor malogrado de Primaveras ainda aqui se afirma no seu profundo quão suave nativismo lírico. Suas compo­sições possuem “um saboroso estilo colorido, sensível e personalíssimo” — disse Ronald de Carvalho.

À minha terra

Que terno sonho dourado

Das minhas horas fagueiras,

No recanto das palmeiras

Do meu querido Brasil!

A vida era um dia lindo

Num vergel cheio de flores,

Cheio de aroma e esplendores

Sob um céu primaveril.

A Infância, um lago tranqüilo

Onde começa a existência,

Onde os cisnes da inocência

Bebem o néctar do amor.

A mocidade era um hino

De melodias suaves,

Formadas de trinos de aves

E de perfumes de flor.

O dia, manhã ridente,

Numa canção de alvorada;

A noite toda estrelada

Após o doce arrebol;

E na, paisagem querida,

Os ramos das laranjeiras

E das frondosas mangueiras

Douradas à luz do Sol!

Oh! que clarão dentro dalma,

Constantemente cismando,

O pensamento sonhando

E o coração a cantar,

Na delicada harmonia

Que nascia da beleza,

Do verde da Natureza,

Do verde do lindo mar!

Oh! que poema a existência

De infância e de mocidade,

De ternura e de saudade,

De tristeza e de prazer;

Igual a um canto sublime,

Como uma estrofe inspirada

Na noite e na madrugada,

Na tarde e no amanhecer.

De tudo me lembro e quanto!

A transparência dos lagos,

As carícias, os afagos

E os beijos de minha mãe!

Dos trinos dos pintassilgos,

Da melodia das fontes,

As nuvens nos horizontes

Perdidos no azul do além.

Quando eu cruzava as campinas,

Sem sombras de sofrimento,

Descalço, com o peito ao vento,

Num tempo doce e feliz!

Os pessegueiros floridos,

As frondes cheias de amora,

O manto de luz da aurora,

Os pios das juritis!

Se a morte aniquila o corpo,

Não aniquila a lembrança:

Jamais se extingue a esperança,

Nunca se extingue o sonhar!

E à minha terra querida,

Recortada de palmeiras,

Espero em horas fagueiras

Um dia poder voltar.

A Terra

(Aos pessimistas)

Se há noite escura na Terra,

Onde rugem tempestades,

Se há tristezas, se há saudades,

Amargura e dissabor,

Também há dias dourados

De sol e de melodias,

Esperanças e alegrias,

Canções de eterno fulgor!

A Terra é um mundo ditoso,

Um paraíso de amores,

Jardim de risos e flores

Rolando no céu azul.

Um hino de força e vida

Palpita em suas entranhas,

Retumba pelas montanhas,

Ecoa de Norte a Sul.

Os sonhos da mocidade,

As galas da Natureza,

Livro de excelsa beleza

Com páginas de esplendor,

Onde as histórias são cantos

De gárriilos passarinhos,

Onde as gravuras são ninhos

Estampados no verdor;

Onde há reis que são poetas,

E trovadores alados,

Heróis ternos, namorados,

Gargantas de ouro a cantar,

Saudando a aurora que surge

Como ninfa luminosa,

A olhar-se toda orgulhosa

No espelho do grande mar!

Onde as princesas são flores,

Que se beijam luzidias,

Perfumando as pradarias

Com seu hálito de amor;

Desabrochando às centenas,

Na estrada onde o homem passa,

Oferecendo-lhe graça,

Sorrindo, cheias de olor.

O dia todo é alvorada

De doces encantamentos;

A noite, deslumbramentos

Da Lua, em seus brancos véus!

A tarde Oscula as estrelas,

Os astros o Sol-nascente,

O Sol o prado ridente,

O prado perfuma os céus!...

Quem vive num éden desses,

É sempre risonho e forte,

Jamais almeja que a morte

Na vida o venha tragar;

Sabe encontrar a ventura

Nesse jardim de pujanças,

E enche-se de esperanças

Para sofrer e lutar.

Se há noite escura na Terra,

Abarrotada de dores,

De lágrimas e amargores,

De triste e rude carpir,

Também há dias dourados

De juventude e esplendores,

De aromas, risos e flores,

De áureos sonhos no porvir!...

Lembranças

No sacrário das lembranças,

Revejo-te, trigueirinha,

De negras e longas tranças,

Moreninha.

Teus lindos pés descalçados,

Pisando de manhãzinha

A verde relva dos prados,

Moreninha.

Os primorosos cabelos

Enfeitados, à tardinha,

De miosótis singelos,

Moreninha.

De olhar sedutor e insonte,

Quando o teu passo ia e vinha

Em busca da água da fonte,

Moreninha.

Teu vulto de camponesa

Era o porte de rainha,

Rainha da Natureza,

Moreninha.

Inda ouço os sons primeiros

Da tua voz na modinha

Modulada nos terreiros,

Moreninha.

Lavando a roupa às braçadas,

Nos fios dágua fresquinha,

Sob as mangueiras copadas,

Moreninha.

Os teus risos adorados,

Desferidos à noitinha,

Nos bandos de namorados,

Moreninha.

A tua oração ditosa,

Nas missas da capelinha,

Tão faceira! tão formosa!

Moreninha.

A placidez do teu rosto

Com teus modos de avezinha,

Fitando a luz do sol-posto,

Moreninha.

O teu samburá de flores

Que levavas à igrejinha,

Enchendo a nave de odores,

Moreninha.

O vestidinho de chita,

De rosas estampadinha,

Fazendo-te mais bonita,

Moreninha.

O nosso idílio encantado,

Quando te achavas sozinha,

Sob o luar prateado,

Moreninha.

Que terna recordação

De minhalma se avizinha!

De saudade, de paixão,

Moreninha.

Ai! Ai! meu Deus, quem me dera

Rever-te, doce rainha,

Rainha da Primavera,

Moreninha.

Recordando

Meu Deus, deixai que eu me esqueça

Da minha vida de agora,

Que apenas o meu passado

Eu possa alegre rever;

Deixai que me identifique

Com os raios da luz de outrora,

Daquela risonha aurora

Do meu passado viver.

Que eu sinta de novo a vida

Na infância Linda e ditosa,

Na alegria inalterável

Do lugar onde nasci;

Quero rever novamente

A paisagem luminosa,

Sentir a emoção grandiosa

De tudo o que já senti!...

Ah! que eu possa hoje olvidar

Imensidades, esferas,

Concepções mais perfeitas

No progresso que alcancei;

Que das ruínas, dos escombros,

Minhalma retire as heras,

E contemple as primaveras

Da vida que já deixei.

Quero aspirar os perfumes

Dos cendais cheios de flores,

Na fresca sombra dos vales,

Sob a luz do céu de anil!

Rever o sítio encantado

Da minha estância de amores,

Meus sonhos encantadores,

Minha terra, meu Brasil!

Escutar os sinos calmos

Sob a alvura das capelas,

Enchendo as longes devesas,

De convites à oração;

Sentar-me no prado agreste,

Beijar as flores singelas,

Mirar a luz das estrelas,

Ouvir a voz da amplidão!

Correr sob o sol-nascente

Até que chegue o luar,

Procurando os passarinhos

E as borboletas tafuis;

Que esperança, que ventura!

Viver, sofrer, e amar

A campina, o Sol, o mar,

Campos verdes, céus azuis

Ser homem e ser criança,

Toucar-se a alma das galas

Da poesia inexprimível,

Da alvorada e do arrebol...

Oh! Natureza da Terra,

Que tesouros não exalas,

Na, carícia dessas falas

Do passarinho e do Sol!

Eu gozo de quando em quando,

Revendo essa claridade,

Da existência transcorrida

Guardada no coração;

E dos cimos desta vida,

Na excelsa Imortalidade,

Verto prantos de saudade

A luz da recordação.


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CASTRO ALVES

Marchemos! - A Morte.

POETA baiano, desencarnou a 6 de julho de 1871, com 24 anos de idade. Mocidade radiosa, o autor consagrado de Espumas Flutuantes exer­ceu nas rodas literárias do seu tempo a mais justa e calorosa das projeções. Nesta poesia sente-se o crepitar da lira que modulou — O Livro e a América.

Marchemos!

Há mistérios peregrinos

No mistério dos destinos

Que nos mandam renascer:

Da luz do Criador nascemos,

Múltiplas vidas vivemos,

Para à mesma luz volver.

Buscamos na Humanidade

As verdades da Verdade,

Sedentos de paz e amor;

E em meio dos mortos-vivos

Somos míseros cativos

Da iniqüidade e da dor.

É a luta eterna e bendita,

Em que o Espírito se agita

Na trama da evolução;

Oficina onde a alma presa

Forja a luz, forja a grandeza

Da sublime perfeição.

É a gota dágua caindo

No arbusto que vai subindo,

Pleno de seiva e verdor;

O fragmento do estrume,

Que se transforma em perfume

Na corola de uma flor.

A flor que, terna, expirando,

Cai ao solo fecundando

O chão duro que produz,

Deixando um aroma leve

Na aragem que passa breve,

Nas madrugadas de luz.

É a rija bigorna, o malho,

Pelas fainas do trabalho,

A enxada fazendo o pão;

O escopro dos escultores

Transformando a pedra em flores,

Em Carraras de eleição.

É a dor que através dos anos,

Dos algozes, dos tiranos,

Anjos puríssimos faz,

Transmutando os Neros rudes

Em arautos de virtudes,

Em mensageiros de paz.

Tudo evolui, tudo sonha

Na imortal ânsia risonha

De mais subir, mais galgar;

A vida é luz, esplendor,

Deus somente é o seu amor,

O Universo é o seu altar.

Na Terra, às vezes se acendem

Radiosos faróis que esplendem

Dentro das trevas mortais;

Suas rútilas passagens

Deixam fulgores, imagens,

Em reflexos perenais.

É o sofrimento do Cristo,

Portentoso, jamais visto,

No sacrifício da cruz,

Sintetizando a piedade,

E cujo amor à Verdade

Nenhuma pena traduz.

É Sócrates e a cicuta,

É César trazendo a luta,

Tirânico e lutador;

É Cellini com sua arte,

Ou o sabre de Bonaparte,

O grande conquistador.

É Anchieta dominando,

A ensinar catequizando

O selvagem infeliz;

É a lição da humildade,

De extremosa caridade

Do pobrezinho de Assis.

Oh! bendito quem ensina,

Quem luta, quem ilumina,

Quem o bem e a luz semeia

Nas fainas do evolutir:

Terá a ventura que anseia.

Nas sendas do progredir.

Uma excelsa voz ressoa,

No Universo inteiro ecoa:

“Para a frente caminhai!

“O amor é a luz que se alcança,

“Tende fé, tende esperança,

“Para o Infinito marchai!”

A Morte

No extremo pólo da vida

Diz a Morte: — “Humanidade,

Sou a espada da Verdade

E a Têmis do mundo sou;

Sou balança do destino,

O fiel desconhecido,

Lanço Cômodo no olvido

E aureolo a fronte de Hugo!

O cronômetro dos séculos

Não me torna envelhecida;

Sou morte — origem da vida,

Prêmio ou gládio vingador.

Sou anjo dos desgraçados

Que seguem na Terra errantes,

Desnorteados viaj antes

Dos Niágaras da dor!

Também sou braço potente

Dos déspotas e opressores,

Que trazem os sofredores

No jugo da escravidão;

Aos bons, sou compensação,

Consolo e alívio aos precitos,

E nos maus aumento os gritos

De dores e maldição.

Sepultura do presente,

Do porvir sou plenitude,

Da alegria sou saúde

E do remorso o amargor.

Sou águia libertadora

Que abre, sobre as descrenças,

O manto das trevas densas,

E sobre a crença o esplendor.

Desde as eras mais remotas

Coso láureas e mortalhas,

E sobre a dor das batalhas

Minha asa sempre pairou;

Meu verbo é a lei da Justiça,

Meu sonho é a evolução;

Meu braço — a revolução,

Austerlitz e Waterloo.

Homem, ouve-me; se às vezes

Simbolizo a guilhotina,

Minha mão abre a cortina

Que torna o mistério em luz;

E por trabalhar com Deus,

Na absoluta eqüidade,

Sou prisão ou liberdade,

Nova aurora ou nova cruz.

Se o cristal que imita o céu

Da consciência tranqüila

É o luzeiro que cintila

Na noite do teu viver,

Oásis — dou-te o repouso,

Estrela — estendo-te lume,

Flor — oferto-te perfume,

Luz da vida — dou-te o ser!

Mas, também se a tirania

Arvora-se em lei na Terra,

Eu mando a noite da guerra

Fazer o sol do porvir;

Arremesso a minha espada,

Ateio fogo aos canhões,

Faço cair as nações

Como fiz Roma cair.

Foi assim que fiz um dia,

Ao ver o trono imperfeito

Estrangulando o Direito;

Busquei Danton, Mirabeau...

E junto ao vulto de Têmis

Tomei o carro de Jove,

E fiz o Oitenta e Nove

Quando a França me ajudou.

Então, implacavelmente,

Fiz a Europa ensangüentada

Ajoelhar-se humilhada,

Diante de tanto horror.

Das cidades fiz ossuários,

Dos campos Saaras ardentes,

Trucidei réus inocentes,

Apaguei a luz do amor,

Até que um dia o Criador

Sempre amoroso e clemente,

Que jamais teve presente,

Nem passado nem porvir,

Bradou do cume dos céus

Num grito piedoso e forte:

“Não prossigas! Basta, Morte,

Agora é reconstruir.”

Portanto, homem, se tens

Por bússola o Bem na vida,

Olha o Sol de fronte erguida,

Espera-me com fervor.

Abrir-te-ei meus tesouros,

Serei tua doce amante,

Cujo seio palpitante

Guardar-te-á — paz e amor.

Se às vezes se te afigura

Que sou a foice impiedosa,

Horrenda, fria, orgulhosa,

Que espedaça. os teus heróis,

Verás que sou a mão terna

Que rasga abismos profundos,

E mostra biliões de mundos,

E mostra biliões de sóis.

Conduzo seres aos Céus,

À luz da realidade;

Sou ave da, Liberdade

Que ao lodo da escravidão

Venho arrancar os espíritos,

Elevando-os às alturas:

Dou corpos às sepulturas,

Dou almas para a amplidão!”

A Morte é transformação,

Tudo em seu seio revive:

Esparta, Tebas, Nínive,

Em queda descomunal,

Revivem na velha Europa;

E como faz às cidades,

Remodela humanidades

No progresso universal.


26

CORNÉLIO BASTOS

Não temas.

PROFESSOR, poeta e jornalista. Nascido na ca­pital de São Paulo, a 26 de setembro de 1844 e desencarnado em Campos em 31 de janeiro de 1909. Foi grande abolicionista e espírita militante.

Não temas

Somente com Jesus a alma cansada

Volve à praia do amor no mar da vida,

O viajor errante encontra a estrada,

Que o reconduz à terra estremecida.

A esperança, adiada e emurchecida,

Refloresce ao clarão de outra alvorada;

Todo o trabalho e dor da humana lida

São luzes da vitória desejada.

Sem Jesus, cresce a treva entre os escombros;

Ama a cruz que te pesa sobre os ombros,

Vence o deserto áspero e inclemente.

A aflição inda é grande em cada dia?

Não desprezes a Doce Companhia,

Vai com Jesus! não temas! crê somente!


27

CRUZ E SOUZA

Ansiedade – Heróis - Aos torturados - A sepultura - Anjos da Paz - Alma livre - “Gloria victis” - Nossa mensagem - Oração aos libertos – Céu - Aos tristes - Beleza da morte – Mensageiro - Se queres - À dor - Noutras eras – Sofre – Exaltação – Vozes – Soneto - Glória da Dor - Quanta vez - Ide e pregai – Caridade – Renúncia - Tudo vaidade - Ouvi-me - Felizes os que têm Deus - Glória aos humildes - Aos trabalhadores do Evangelho.

CATARINENSE. Funcionário público, encarnou em 1861 e desprendeu-se em 1898, no Estado de Minas. Poeta de emotividade delicada, soube, mercê de um simbolismo inconfundível, marcar sua individualidade literária. Sua vida foi toda dores.

Ansiedade

Todo esse anseio que tortura o peito,

Estrangulando a voz exausta e rouca,

Que em cada canto estruge e em cada boca

Faz o soluço do ideal desfeito;

Ansiedade fatal de que se touca

A alma do homem mau e do perfeito,

Sobe da Terra pelo espaço eleito,

Numa imensa espiral, estranha e louca,

Formando a rede eterna e incompreendida,

Das ilusões, dos risos, das quimeras,

Das dores e da lágrima incontida;

Essa ansiedade é a mão de Deus nas eras,

Sustentando o fulgor da luz da Vida,

No turbilhão de todas as esferas!...

Heróis

Esses seres que passam pelas dores,

As geenas do pranto acorrentados,

Aluviões de peitos sofredores,

No turbilhão dos grandes desgraçados;

Corações a sangrar, ermos de amores,

Revestidos de acúleos acerados,

Nutrindo a luz dos sonhos superiores

Nos ideais maiores esfaimados;

Esses pobres que o mundo considera

Os humanos farrapos dos vencidos,

Prisioneiros da angústia e da quimera,

São os heróis das lutas torturantes,

Que são, sendo na Terra os esquecidos,

Coroados nas Luzes Deslumbrantes!

Aos torturados

Torturados da vida, um passo adiante,

Nos desertos dos áridos caminhos,

Abandonados, trêmulos, sozinhos,

Infelizes na dor a cada instante!

Sobre a luz que vos guia, bruxuleante,

E além dos trilhos de ásperos espinhos,

Fulgem no Além os deslumbrantes ninhos,

Mundos de amor no claro azul distante...

Chorai! que a imensidade inteira chora,

Sonhando a mesma luz e a mesma aurora

Que idealizais chorando nas algemas!

Vibrai no mesmo anseio em que palpita

A alma universal, sonhando, aflita,

As perfeições eternas e supremas!

A sepultura

Como a orquídea de arminho quando nasce,

Sobre a lama ascorosa refulgindo,

A brancura das pétalas abrindo,

Como se a neve alvíssima a orvalhasse;

Qual essa flor fragrante, como a face

Dum querubim angélico sorrindo,

Do monturo pestífero emergindo,

Luz que sobre negrumes se avistasse;

Assim também do túmulo asqueroso,

Evola-se a essência luminosa

Da alma que busca o céu maravilhoso;

E como o lodo é o berço vil de flores,

A sepultura fria e tenebrosa

É o berço de almas — senda de esplendores.

Anjos da Paz

Ó luminosas formas alvadias

Que desceis dos espaços constelados

Para lenir a dor dos desgraçados

Que sofrem nas terrenas gemonias!

Vindes de ignotas luzes erradias,

De lindos firmamentos estrelados,

Céus distantes que vemos, dominados

De esperanças, anseios e alegrias.

Anjos da Paz, radiosas formas claras,

Doces visões de etéricos carraras

De que o espaço fúlgido se estrela!.

Clarificai as noites mais escuras

Que pesam sobre a terra de amarguras,

Com a alvorada da Paz, ditosa e bela

Alma livre (*)

Um soluço divino de alegria

Percorre a todo Espírito liberto

Das pesadas cadeias do deserto,

Desse mundo de sombra e de agonia.

A alma livre contempla o novo dia,

Longe das dores do passado incerto,

Mergulhada no esplêndido concerto

De outros mundos, que a luz acaricia!

(*) Vide nota 2 no final do volume.

Alma liberta, redimida e pura,

Vê a aurora depois da noite escura,

Numa visão mirífica, superna...

Penetra o mundo da imortalidade,

Entre canções de luz e liberdade,

Forçando as portas da Beleza Eterna.

“Gloria victis”

Glória a todas as almas obscuras

Que caíram exãnimes na estrada,

Onde a pobre esperança abandonada

Morre chorando sob as desventuras.

Glória à pobre criatura desprezada,

Glória aos milhões de todas as criaturas,

Sob a noite das grandes amarguras,

Sem conhecer a luz de uma alvorada.

Glória Victis! Hosana aos desgraçados

Que tombaram sem vida, aniquilados,

Nos sofrimentos purificadores;

Que o Céu é a pátria eterna dos vencidos,

Onde aportam ditosos, redimidos,

Como heróis dos deveres e das dores!

Nossa mensagem

Essa mensagem de esperança e vida

Que endereçamos da imortalidade,

É a lição luminosa da Verdade

Que a Humanidade espera comovida.

Guardai a voz da Terra Prometida,

Nos exílios do pranto e da saudade;

Conservai essa vaga claridade

Da luz da eternidade indefinida.

Todo o nosso trabalho objetiva

Dar-vos a fé, a crença persuasiva

Nos caminhos da prova dolorosa.

Sabei vencer entre as vicissitudes,

Como arautos de todas as virtudes,

Sobre as ressurreições da alma gloriosa.

Oração aos libertos

Alma embriagada do imortal falerno,

Segue cantando, no horizonte claro,

O teu destino esplendoroso e raro,

Cheio das luzes do porvir eterno.

Mas não te esqueças desse mundo avaro,

O escuro abismo, o tormentoso Averno,

Sem as doces carícias do galerno

Das esperanças — sacrossanto amparo.

Volve os teus olhos ternos, compassivos,

Para os pobres Espíritos cativos

As grilhetas do corpo miserando!

Abre os sacrários da Felicidade,

Mas lembra-te do orbe da impiedade,

Onde venceste a carne soluçando.

Céu

Há um céu para o Espírito que luta

No oceano dos prantos salvadores,

Céu repleto de vida e de fulgores,

Que coroa de luz a alma impoluta.

A canção da vitória ali se escuta,

Da alma livre das penas e das dores,

Que faz da vida a rede de esplendores,

Na paz quase integral e absoluta.

Considerai, ó pobres caminheiros,

Que na Terra viveis como estrangeiros,

De alma ofegante e coração aflito:

Considerai, fitando a imensa altura,

Os deslumbrantes orbes da ventura

Por entre os sóis suspensos no Infinito!

Aos tristes

Alma triste e infeliz que se tortura

No tormento que punge e dilacera,

Para quem nunca trouxe a Primavera

Dos seus pomos dourados de ventura;

Sou teu irmão, e intrépido quisera

Trazer-te a luz que esplende pela Altura,

Afastando essa dor que te amargura

Nas ansiedades de uma longa espera.

Mas há quem guarde as gotas do teu pranto

No tesouro sublime e sacrossanto

Dos arcanos de luz da Divindade!

Há quem te faça ver as cores do íris

Da fagueira. esperança, até partires

Nas asas brancas da Felicidade.

Beleza da morte

Há no estertor da morte uma beleza

Transcendente, ignota, luminosa.

Beleza sossegada e silenciosa,

Da Luz branca da Paz, trêmula e acesa.

É o augusto momento em que a alma, presa

As cadeias da carne tenebrosa,

Abandona a prisão, dorida e ansiosa,

Sentindo a vida de outra natureza.

Um mistério divino há nesse instante,

No qual o corpo morre e a alma vibrante

Foge da noite das melancolias!.

No silêncio de cada moribundo,

Há a promessa de vida em outro mundo,

Na mais sagrada das hierarquias.

Mensageiro

Abri minhalma para os sofredores

Na vastidão serena dos Espaços,

Eu que na Terra tive sempre os braços

Presos à cruz tantálica das dores.

Epopéias de Sons e de Esplendores,

E os prazeres mais pobres, mais escassos,

E o mistério dos célicos abraços,

Dos Perfumes, das Preces e das Cores;

Tudo isso não vejo e vejo apenas

O turbilhão das lágrimas terrenas

— Taça imensa de gotas amargosas!

Da piedade e do amor eu trago o círio,

Para afastar as trevas do martírio

Do silêncio das noites tenebrosas.

Se queres

Se queres a ventura doce, etérea,

De outro mundo de luz, indefinido,

Serás na Terra o filho incompreendido

Do Tormento casado com a Miséria.

Viverás na mansão triste, funérea,

Do Soluço, do Pranto, do Gemido;

Dos prazeres mundanos esquecido,

Outro Job pelas chagas da matéria.

Serás em toda a Terra o feio aborto

Das amarguras e do desconforto,

Encarcerado nas sinistras grades;

Mas um dia abrirás as portas de ouro

E encontrarás o fúlgido tesouro,

De benditas e eternas claridades.

À dor

Dor, és tu que resgatas, que redimes

Os grandes réus, os míseros culpados,

Os calcetas dos erros, dos pecados,

Que surgem do pretérito de crimes.

Sob os teus pulsos, fortes e sublimes,

Sofri na Terra junto aos condenados,

Seres escarnecidos, torturados,

Entre as prisões da Lágrima que exprimes!

Da perfeição és o sagrado Verbo,

Ó portadora do tormento acerbo,

Aferidora da Justiça Extrema...

Bendita a hora em que me pus à espera

De ser, em vez do réprobo que eu era,

O missionário dessa Dor suprema!

Noutras eras

Também marchei pelas estradas flóreas,

Cheias de risos e de pedrarias;

Onde todas as horas dos meus dias

Eram hinos de esplêndidas vitórias.

Tive um passado fülgido de glórias,

De maravilhas de ouro e de alegrias,

Sem reparar, porém, noutras sombrias

Sendas tristes, das dores meritórias.

E abusei dos deveres soberanos

Sucumbindo aos terríveis desenganos

Do destino cruel, fatal e avaro;

Para encontrar-me a sós no mesmo horto

Que deixara, sem luz e sem conforto,

Sentindo as dores desse desamparo.

Sofre

Toda a dor que na vida padeceres,

Todo o fel que tragares, todo o pranto,

Ser-te-ão como trevas, e, entretanto,

Serás pobre de luz se não sofreres.

É que dos sofrimentos nasce o canto

De alegria dos mundos e dos seres,

Pois que a dor é a saúde dos prazeres,

O hino da luz, misterioso e santo.

Doma o teu coração, e, no silêncio,

Foge à revolta, humilha-o, dobra-o, vence-o,

Chorando a mesma dor que o mundo chora;

Abre a tua consciência para as luzes

E, no mundo que o mal encheu de cruzes,

Do Bem encontrarás a eterna aurora.

Exaltação

Harmonias do Som, vibrai nos ares,

Nos horizontes, nas atmosferas;

Exaltai minhas dores de outras eras,

Meus passados, recônditos pesares.

Desdobrai-vos luzeiros estelares,

Sobre o aroma das novas primaveras;

Cantem no mundo todas as quimeras,

Aves e flores, amplidões e mares!

Vibrai comigo, multidões de seres,

Na concretização desses prazeres

Do meu sonho de luzes e universos...

Exaltai-vos na vida de minhalma,

E na grandeza infinda que se espalma

Sobre a glória sublime dos meus versos!

Vozes

Há sobre os prantos, há sobre as humanas

Vozes que se lamentam nas torturas,

Outras vozes mais doces e mais puras,

Como um coro dulcíssimo de hosanas.

As primeiras são feitas de amarguras,

As segundas, de bênçãos soberanas,

Sobre as dores sagradas ou profanas

Que pululam nas sendas mais escuras.

Sobe da Terra a queixa soluçando,

Silenciosa, muda, suplicando,

Remontando aos Espaços constelados;

Desce dos Céus a voz amiga e mansa,

Fortificando a vida da Esperança

— Patrimônio dos seres desgraçados.

Soneto

Nos labirintos dessa eternidade

Que nós vivemos luminosa e pura,

A alma vive na intérmina procura

Do filão de ouro da felicidade.

Quanto mais sofre, tanto mais se apura

No pensamento excelso da Verdade,

Vendo na auréola da Imortalidade

A alvorada risonha da ventura.

E ao fim de cada noite tormentosa,

Que é a existência na prova dolorosa,

Canta e vibra num dia de bonança.

Em torno da Verdade a alma gravita

Buscando a Perfeição pura, infinita,

Nessa jornada eterna da Esperança.

Glória da Dor

Para aquém dessas cruzes esquecidas

Nas sepulturas ermas e desertas,

Há o turbilhão frenético das vidas

Sobre as estradas ásperas, incertas...

Inda há sânie das úlceras abertas

No coração das almas combalidas,

Gozadores de outrora entre as refertas

Das ilusões que tombam fenecidas.

Só uma glória mirífica perdura

Concretizando os sonhos da criatura

Cheia de crenças e de cicatrizes:

É a vitória da Dor que aperfeiçoa,

Luminosa e divina, humilde e boa,

Glória da Dor, que é pão dos infelizes.

Quanta vez

Quanta vez eu fitei essas fronteiras,

Horizontes, estrelas, firmamentos,

Presa de sonhos e estremecimentos

De esperança, nas horas derradeiras!...

Ah! meus longínquos arrebatamentos,

Amarguras e dores e canseiras,

Que vos fostes nas lágrimas ligeiras,

Como folhas levadas pelos ventos...

Quanta vez, abafando os meus soluços,

Como o errado viajor que cai de bruços

Sobre a íngreme estrada da agonia,

Ensináveis-me a ler a Bíblia santa

Desta vida imortal que se levanta

Numa alvorada eterna de alegria!

Ide e pregai

Vós que tendes as rosas da bonança

Enlaçadas na fé mais doce e pura,

Ide e pregai, na noite da amargura,

O evangelho do amor e da esperança.

Toda luz da verdade que se alcança

É um reduto de paz firme e segura:

Dai dessa paz a toda criatura,

Sobre a qual vossa vida já descansa.

Espalhai os clarões da vossa crença

Na pedregosa estrada dessa imensa

Turba de irmãos famintos, torturados!

Conduzi a mensagem luminosa

Da caridade, lúcida e piedosa,

Redentora de todos os pecados.

Caridade

Caridade é a mão terna e compassiva

Que ampara os bons e aos maus ama e perdoa,

Misericórdia, a qual para ser boa,

De bens paradisíacos se priva.

Mão radiosa, que traz a verde oliva

Da paz, que acaricia e que abençoa,

Voz da eterna verdade que ressoa

Por toda a parte, promissora e ativa.

A caridade é o símbolo da chave

Que abre as portas do céu claro e suave,

Das consciências libertas da impureza;

É a vibração do espírito divino,

Em seu labor fecundo e peregrino,

Manifestando as glórias da Beleza!.

Renúncia

Renuncia a ti mesmo! Renuncia

A mundana e efêmera vaidade:

Que em ti sintas a dúlcida piedade

Que as desgraças alheias alivia.

Do homem, esquece a lúrida maldade,

Prosseguindo na estrada luzidia.

E denodadamente engendra e cria

Teu próprio mundo de felicidade!

Parte o teu coração em mil fragmentos,

Ofertando-os ao mundo que te odeia,

Com a bondade mais pródiga e mais pura.

Não olvides em meio dos tormentos:

— Renunciar em bem da dor alheia,

É ter no Além castelos de ventura.

Tudo vaidade

Na Terra a morte é o trágico resumo

De vanglórias, de orgulhos e de raças;

Tudo no mundo passa, como passas,

Entre as aluviões de cinza e fumo.

Todo o sonho carnal vaga sem rumo,

Só o diamante do espírito sem jaças

Fica indene de todas as desgraças,

De que a morte voraz faz seu consumo.

Nesse mundo de lutas fratricidas,

A vida se alimenta de outras vidas,

Num contínuo combate pavoroso;

Só a Morte abre a porta das mudanças

E concretiza as puras esperanças

Nos países seráficos do gozo!

Ouvi-me

Ó vós que ides marchando, almas sedentas

De paz, de amor, de luz, sob as maiores

Desventuras do mundo, sob as dores

De misérias, batalhas e tormentas...

Também senti as emoções violentas

Que palpitam nos peitos sonhadores,

E sustentei, varado de amargores,

Surdas batalhas, rudes e incruentas.

Também vivi as lágrimas obscuras,

Iguais às vossas, míseras criaturas,

Que tombais nos caminhos sem dizê-las!

Exultai, que uma vida eterna e grande,

Além da morte, esplêndida se expande

No coração sublime das estrelas!...

Felizes os que têm Deus

Entre esse mundo de apodrecimento

E a vida de alma livre, de alma pura,

Ainda se encontra a imensidade escura

Das fronteiras de cinza e esquecimento.

Só o pensador que sofre e anda à procura

Da verdade e da luz no sentimento,

Pode guardar esse deslumbramento

Da Fé — fonte de mística ventura.

Feliz o que tem Deus nessa batalha

Da miséria terrena, que estraçalha

Todo o anseio de amor ou de bonança!...

Venturoso o que vai por entre as dores

Atravessando o oceano de amargores,

No bergantim sagrado da Esperança.

Glória aos humildes

Ai da. ambição do mundo, ai da vaidade

Que se mergulham sob a, noite escura,

Noite de dor que além da sepultura

Nos afasta da vida e da verdade.

Só o caminho divino da humildade

Pode ofertar a luz radiosa e pura,

Que vem salvar a mísera criatura

Confundida no abismo da impiedade.

Pobres da Terra, seres infelizes,

Cheios de prantos e de cicatrizes,

Levantai vosso olhar sereno e forte.

Não maldigais a ulceração da algema,

E esperai a vitória alta e suprema,

Que Jesus vos prepara além da morte.

Aos trabalhadores do Evangelho

Há uma falange de trabalhadores,

Espalhada nas sendas do Infinito,

Desde as sombras do mundo amargo e aflito

Aos espaços de eternos resplendores.

É a caravana de batalhadores

Que, no esforço do amor puro e bendito,

Rompe algemas de trevas e granito,

Aliviando os seres sofredores.

Vós que sois, sobre a Terra, os companheiros

Dessa falange lúcida de obreiros,

Guardai-lhe a sacrossanta claridade;

Não vos importe o espinho ingrato e acerbo,

Na palavra e nos atos, sede o Verbo

De afirmações da Luz e da Verdade.


28

EDMUNDO XAVIER DE BARROS

Vida - Diante da Terra.

EDMUNDO Xavier de Barros, filho de Pacífico Antônio Xavier de Barros, nascido em 1861, no Estado de Goiás. Desencarnou no Distrito Federal, como capitão da arma de Cavalaria, em 17 de janeiro de 1905. Foi poeta e desenhista notável.

Vida

Nem a paz, nem o fim! A vida, a vida apenas

É tudo que encontrei e é tudo que me espera!

O ouro, a fama, o prazer e as ilusões terrenas

São lodo, fumo e cinza ao fundo da cratera.

Esvaiu-se a vaidade!... Os júbilos e as penas,

A alegria que exalta e a dor que regenera,

Em cenário diverso aprimorando as cenas,

Continuam, porém, vibrando noutra esfera.

Morte, desvenda à Terra os planos que descobres,

Fala de tua luz aos mais vis e aos mais nobres,

Renova o coração do mundo impenitente!

Dize aos homens sem Deus, nos círculos escuros,

Que além do gelo atroz que te reveste os muros,

Há vida... sempre a vida.. a vida eternamente...

Diante da Terra

Fugindo embora à paz de eternos dons divinos,

Sem furtar-se, porém, à luta que aprimora,

O homem é o semeador dos seus próprios destinos,

Ave triste da noite, esquivando-se à aurora...

Em derredor da Terra, estrelas cantam hinos,

Glorificando a luz onde a Verdade mora,

Mas no plano da carne os impulsos tigrinos

Fazem a ostentação da miséria que chora!

Necessário vencer nos vórtices medonhos,

Santificar a dor, as lágrimas e os sonhos,

Do inferno atravessar o abismo ígneo e fundo,

Para ver a extensão da noite estranha e densa,

Que os servos da maldade e os filhos da descrença

Estenderam, sem Deus, sobre a fronte do mundo!...


29

EMÍLIO DE MENEZES

Eu mesmo - Aos meus amigos da Terra.

POETA brasileiro, nascido em Curitiba, em 1866, e desencarnado no Rio de Janeiro em 1918. Musa vivacíssima e fulgurante, sem deixar de ser profunda, era sobretudo ativamente humorística. Legou-nos Poemas da Morte, 1901, e Poesias, 1909, além de Mortalhas, versos satíricos postumamente colecionados. Distinguiu-se pela altaneza dos temas, quanto pela opulência das rimas.

Eu mesmo

Eu mesmo estou a ignorar se posso

Chamar-me ainda o Emilio de Menezes,

Procurando tomar o tempo vosso,

Recitando epigramas descorteses.

Como hei de versejar? Rimas em osso

São difíceis... contudo, de outras vezes,

Eu sabia rezar o Padre-Nosso

E unir meus versos como irmãos siameses.

Como hei de aparecer? O que é impossível

É ser um santarrão inconcebível,

Trazendo as luzes do Evangelho às gentes...

Sou o Emilio, distante da garrafa,

Mas que não se entristece e nem se abafa,

Longe das anedotas indecentes.

Aos meus amigos da Terra

Amigos, tolerai o meu assunto,

(Sempre vivi do sofrimento alheio)

Relevai, que as promessas de um defunto

São coisa inda invulgar no vosso meio.

Apesar do meu cérebro bestunto,

O elo que nos unia, conservei-o,

Como a quase saudade do presunto,

Que nutre um corpo empanturrado e feio.

Espero-vos aqui com as minhas festas,

Nas quais, porém, o vinho não explode,

Nem há cheiro de carnes ou cebolas.

Evitai as comidas indigestas,

Pois na hora do “salva-se quem pode”,

Muita gente nem fica de ceroulas...


30

FAGUNDES VARELA

Imortalidade.

ESTE é o sempre laureado cantor do Evangelho nas Selvas, a voz sonora e doce do Cântico do Calvário. Fluminense, desencarnou com 34 anos, em 1875 — depois de uma existência tormen­tosa.

Imortalidade

Senhor! Senhor! que os verbos luminosos

Do amor, da perfeição, da liberdade,

Inflamem minhas vozes neste instante!

Que o meu grito bem alto se levante,

Conduzindo a mensagem benfazeja

Das esperanças para a Humanidade!

Senhor! Senhor! que paire sobre o mundo

A luz do teu poder inigualável,

Que os lírios te saúdem perfumando

Os arrebóis, as noites, as auroras;

Hinos de amor, que os pássaros te elevem

Dos seus ninhos de plácida harmonia;

Que as fontes no seu doce murmúrio

Te bendigam com terna suavidade;

Que todo o ser no inundo se descubra

Perante a tua excelsa majestade,

Saturado do amor onipotente

Que promana abundante do teu seio!...

Senhor! que a minha voz altissonante

Se propague entre os homens; que a verdade

Resplandeça na terra da amargura!

Ó Pai! tu que removes o impossível,

Que transmudas em rosas os espinhos,

E que espancas a treva dos caminhos

Com a luz que afirma a tua onipotência,

Permite que minhalma seja ouvida

Na vastidão do mundo do desterro;

Que os meus irmãos da Terra me recebam

Como o ausente invisível, redivivo!...

Irmãos, eis-me de novo ao vosso lado!

Venho de esferas lúcidas, radiosas,

Atravessei estradas tenebrosas

E sendas deslumbrantes e estelíferas,

Empunhando o saltério da esperança.

Pude transpor abismos de ouro e rosas,

Sendas de sonho e báratros escuros,

Planetas como naus sem palinuros

Nos oceanos do éter Infinito!

Contemplei Vias-Lácteas assombrosas,

Visões de sóis eternos, confundidas

Entre estrelas igníferas, distantes;

Vastros portentosos, desferindo

Harmonias de amor e claridades,

E humanidades entre humanidades

Povoando o Universo esplendoroso...

Descansei sobre as ilhas de repouso,

Em lindos arquipélagos distantes,

Habitei os palácios encantados,

Em retiros de amor calmo e sereno,

Onde o solo é formado de ouro e neve,

Onde a treva e onde a noite são apenas

Recordações de mundos obscuros!

Onde as flores do afeto imperecível

Não se emurchecem como sobre a Terra.

Lá, nesses orbes lúcidos, divinos,

O amor, somente o amor, nutre e dá vida.

Somente o amor é a vibração de tudo!

Vi céus por sobre céus inumeráveis,

Mundos de dor e mundos de alegria,

Em luminosidades e harmonias

Aos beijos arcangélicos da luz,

Que é mensagem de Deus por toda a parte!

E apenas conheci um pormenor,

Um detalhe minúsculo, um fragmento

Da Criação infinita e resplendente.

Ah! Morte!... A Morte é o anjo luminoso

Da liberdade franca, jubilosa,

Quando a esperamos tristes e abatidos;

Quando nos traz imácula e sublime

A chama da esperança dentro dalma,

Amando-se da vida os bens mais nobres,

Se o mundo abafa em nós toda a alegria,

Roubando-nos afetos e consolos,

Martirizando o coração dorido

Na cruz dos sofrimentos mais austeros.

A morte corrobora as nossas crenças,

As nossas esperanças mais profundas,

Rompendo o véu que encobre à nossa vista

O eterno panorama do Universo,

E aponta-nos o céu, a imensidade,

Onde as almas ditosas se engrandecem,

Outras almas guiando em labirintos

Para a luz, para a vida e para o amor!

Que representa a Terra, ante a grandeza

De tantos sóis e orbes luminosos?

É somente uma estância pequenina

Onde a dor e onde a lágrima divina

Modelam almas para a perfeição;

É apenas um degrau na imensidade,

Onde se regenera no tormento

Quem se afasta da Luz e da verdade;

Ela é somente o exílio temporário,

Onde se sofre a angústia da distância

Dos que amamos com alma e com fervor.

Morte! que te abençoem sofredores,

Que te bendiga o espírito abatido,

Já que és a terna mão libertadora

Dos escravos da carne, dos escravos

Das aflições, das dores, da tortura!

Bendigo-te por tudo o que me deste:

Pela beleza da imortalidade,

Pela visão dos céus resplandecentes,

Pelos beijos dos seres bem-amados.

Senhor! Senhor! que a minha voz se estenda,

Como um canto sublime de esperança,

Sobre a fronte de todos quantos sofrem,

Ansiando mais luz, mais liberdade

No orbe da expiação e da impiedade!


31

GUERRA JUNQUEIRO

O padre João – Caridade – Romaria - Eterna vítima - A um padre - “Um Quadro da Quaresma”.

ABILIO Guerra Junqueiro, poeta português, nascido em 1850 e desencarnado em 1923, é assaz conhecido no Brasil como épico dos maiores da língua portuguesa e admirado por quantos não estimam na Poesia apenas o malabarismo das pala­vras, mas o fulgor das idéias. Notável, sobretudo, pela sua veia combativa e satírica, vemos, por sua pro­dução de agora, que os anos do além-túmulo não lhe alteraram a sadia e lúcida mentalidade, nas mes­mas diretrizes. E esta circunstância é tanto mais notável quando o Romantismo se ufana de uma irreal conversão ín extremis.

O padre João

Tombava o dia:

A luz crepuscular

Mansamente descia

Inundando de sombra o céu, a terra, o mar...

O meigo padre João,

Um puro coração,

Qual lírio a vicejar em meio a um pantanal,

Sonhava ao pé da igreja — um templo envelhecido

Ao lado de um vergel, esplêndido e florido —Sentindo dentro dalma um frio sepulcral.

O firmamento

Tingia-se de luz brilhante e harmoniosa,

A noite era de sonho e névoa luminosa.

Padre João meditava, orando ao Deus de amor:

Revia em pensamento

Uma luz singular nas dobras do passado;

Era um vulto sublime, excelso, imaculado,

Que fazia descer o amor às multidões,

Inflamado de fé, desatando os grilhões

Que prendiam a alma à carne putrescível,

Uma réstea de sol sobre a noite do Horrível,

Iluminando o mundo, Iluminando a vida,

Pensando docemente a pútrida ferida

Da imperfeição que rói a torva Humanidade,

Oferecendo amor em flores de bondade,

Aos pecadores dando amigas esperanças,

E aumentando nos bons as bem-aventuranças.

Era o meigo Pastor Irradiando a luz,

Era o Anjo do Bem, o imáculo Jesus.

O sacerdote, então,

Comparou, meditando, a fúlgida visão

Com aquele Cristo nu, de pau, inerte e frio,

Imóvel dominando o âmbito vazio;

Notando a diferença enorme, extraordinária,

Daquela igreja fria, a ermida solitária,

Da igreja de Jesus,

Feita de amor e luz,

De paz e de perdão,

O farol da verdade ao humano coração.

E viu da sua igreja o erro tão profundo,

Dourando os véus da carne e amortalhando o mundo

Em trevas persistentes,

Por anos inclementes

Em séculos sem fim.

Conhecendo no padre o gêmeo de Caim,

Afastado da luz, fugindo aos irmãos seus,

Fugindo desse modo ao próprio amor de Deus,

Padre João meditou nas lutas incessantes

Sustentadas na Terra em prol da evolução,

E viu no mundo inteiro as ânsias delirantes

De trabalho, de amor, de eterna perfeição.

Sentiu seu coração em dores lacerado,

E no sonho da luz fulgente do passado,

Penetrou soluçando a ermida então deserta.

Teve medo e receio, o espírito gelado,

Sentiu-se no seu templo um pobre emparedado...

E fugindo a correr da porta semi-aberta,

Com o coração sangrando em úlceras de dor,

Encaminhou-se ao campo, à natureza em flor.

Fitou extasiado a natureza em festa,
As árvores, a flor, os mares, a floresta,
E como se o animasse uma chama divina,
Despiu-se do negrume espesso da batina,
E fitando, a chorar, o céu estrelejado,

Encheu a solidão com as vozes do seu brado:

“Ó Igreja! não tens a idéia que eu sonhava,

A luz radiosa e bela, a luz eterna e rara

Que nos vem de Jesus;

Tua mão não conduz

As plagas da verdade

Mantendo inutilmente a pobre Humanidade

No mal da ignorância, túrbida e falaz,

Crestando a fé, roubando a luz, matando a paz.

Torturas a verdade, endeusas a matéria,

E transformas o padre em trapo de miséria,

Num farrapo de sombra, exótica e execrável,

Num fantasma ambulante em treva interminável!

É um blasfemo quem crê que em teus nichos e altares

Guarda-se a essência pura e imácula de Deus;

Eu vejo-o, desde a flor às luzes estelares,

Na piedade, no amor, na imensidão dos céus!

Ó Igreja! o dogma frio é um calabouço escuro,

E eu quero abandonar a noite da prisão;

Prefiro a liberdade e a vida no futuro,

Guiando-me o farol da fúlgida Razão.

Desprezo-te, ó torreão de séculos trevosos,

Ruínas de maldade estúltica a cair,

Eu quero palmilhar caminhos luminosos

Que minhalma entrevê na aurora do porvir!”

E o padre emudeceu. Submergido em pranto,

Achou mais belo o céu e o seu viver mais santo.

Pairava na amplidão estranho resplendor.

A Natureza inteira em lúcida poesia

Repousava, feliz, nas preces da harmonia!...

Era o festim do amor,

No firmamento em luz,

Que celebrava

A grandeza de uma alma que voltava

Ao redil de Jesus.

Caridade

Caía a noite em paz. Crepúsculo. Horas quedas.

Horas de solidão. Pelas planícies ledas,

A asa ruflando inquieta, os meigos passarinhos

Recolhiam-se à pressa, em busca dos seus ninhos!

Repousavam, tremendo, os colibris doirados;

Pipilavam febris no beiral dos telhados,

Reunidas no lar caridoso e terno,

Andorinhas gentis, tardígradas do inverno.

As árvores senhoris, despidas dos seus galhos,

Como braços em cruz, sangrentos nos trabalhos,

Elevavam-se ao céu silenciosas, mudas,

Sentinelas da dor nas regiões desnudas;

Chegavam aos ovis as ovelhinhas mansas;

Os risos dos aldeões e as orações das crianças

Casavam-se formando, em rimas soberanas,

Os poemas de luz, que nascem das choupanas,

Canções de oiro e de sol das almas virginais,

Exalando, a sorrir, o aroma dos trigais;

Almas puras, em flor, relicários da essência

Da verdade e do amor, do amor e da Inocência,

Almas feitas de luar, de cândida frescura,

Vivendo a vida doce, imaculada e pura,

De quem ama a existência plácida da aldeia,

Cujo sonho é candura e a vida uma epopéia

De louvores à dor, de exaltações, de prantos!...

Caía a noite em paz, por entre os negros mantos

De espessa escuridão. Sinistramente, a Lua

Rolava na amplidão como cabeça nua,

Como poça de sangue, horrendamente informe...

O silêncio pesava impressionante e enorme!

Nevava quase e a treva espessa e fria,

Era bem a visão da mágoa e da invernia;

Enchia-se o ar de gelo igual a açoite de aço,

Que vibrasse, cortando, a imensidão do espaço.

E eu pedia ao Criador da imensidade etérea,

Que estendesse o seu manto aos ombros da miséria,

Que agasalhasse o pobre e que desse ao mendigo

Um frangalho de pão e um momento de abrigo;

Que pusesse suas mãos benévolas e puras

Sobre o abismo voraz de tantas amarguras;

Que levasse o amor onde faltasse o lar,

Onde sobrasse a angústia, onde andasse o penar.

Em mim, sentia a dor dos que não têm carinhos,

Que se vão de longada ao longo dos caminhos,

Sem temer a hediondez das negras horas mortas,

Pedindo a soluçar um caldo negro às portas!

E sondava o amargor dos operários rudes,

Filhos da obediência, anhos de mansuetudes,

Que vão cedo ao trabalho, à lide que os consome,

Deixando a casa entregue às penúrias da fome...

Pesava toda a dor que o mundo inteiro cobre,

O castelo real e a cabana do pobre,

A dor que faz da Terra um ninho de infelizes,

Que palpita nos reis, que anda nas meretrizes;

A dor que dobra e vence as multidões ignaras,

Que derruba os casais e come o pão das searas,

Quando vi resplender nas bandas do ocidente

Uma excelsa visão, que andava mansamente:

Tinha nas mãos de luz ramalhetes de lírios

E no olhar a expressão de todos os martírios:

Digna como um juiz, fulgente como a luz

Que dimana do amor divino de Jesus!

Seu luminoso olhar, esplêndido e profundo,

Era como a piedade iluminando o mundo;

Suas faces e a fronte, alvas como alabastros,

Pareciam do alvor das estrias dos astros...

Emitia esplendor sua túnica de arminhos,

Dissolvendo os cendais das trevas dos caminhos!...

Quem és tu? — murmurei.

— “Meu nome é Caridade,

Emissária de Deus a toda a Humanidade:

Pairo por sobre um ser resplandecente e puro,

Como pairo a sorrir por cima de um monturo;

Desço das vastidões dentro das horas mudas,

Deixo Cristo na cruz para encontrar com Judas.

Amo os bons e protejo as almas vis e hediondas,

Ando por toda a terra, ando por sobre as ondas

Do oceano a rugir sob meus pés de névoa,

Para levar a luz, e com ansiedade levo-a

A quem, nas aflições, chama-me em altos brados

No turbilhão de horror de todos os pecados.

Para mim, não existe a classe, a seita e as gentes;

Abranjo em meu amor a alma dos continentes,

Atravesso o oceano e atravesso os países,

Vou onde haja a miséria e pranto de infelizes;

Sou o farol da legião dos pobres sofredores,

Levo sol, pão e luz, balsamizando as dores;

Conduzo com avidez o lúcido estandarte

Do bem, que ampara a dor e vela os sonhos darte.

Amo o labor da ciência e amo a existência honesta

Do ingênuo lavrador, que, em vez do sono à sesta,

Enche com o seu trabalho as lindas manhãs claras,

E quando a tarde chega, engendra a paz das searas.

Amo o trabalhador, como adoro as boninas

Que se entreabrem na estrada, adornando as campinas;

As rosas festivais das frescas alamedas,

Que abarrotam de olor as primaveras ledas.

Amo o goivo e o lilás, como amo o luto e a festa,

Amo a fera bravia, e as aves da floresta;

Guardo comigo a dor, as mágoas e esperanças,

Idolatro os senis, como idolatro as crianças.

Vivo fora do plano imundo da matéria,

Confortando o amargor, consolando a miséria;

É por isso, talvez, que, comovida, eu ouço

Do palácio o carpir e os ais do calabouço;

Visito os hospitais, creches e orfanatos,

Sem toques de clarins e sem espalhafatos;

Vou ao cárcere escuro, entro nos palacetes,

Desço ao antro abismal e ascendo aos minaretes.

Estou dentro do templo e dentro dos prostíbulos,

Ao pé do altar da fé, no sopé dos patíbuLos;

Oro em qualquer lugar, nas ermidas, nos montes,

Subo da Terra ao Céu. Não conheço horizontes.

Não conheço nações, corro do brejo aos sóis,

Beijo um cadáver nu, como osculo os heróis.

Nunca a lisonja fiz, nem recebo homenagens,

Trato com o mesmo amor os cultos e os selvagens.

Jamais pude escolher entre Roma e Paris,

Não me regem as leis que regem um país.

Minha missão é amar. Amo o templo e amo a escola,

Amo o bem que alivia, amo o bem que consola.”

“Caridade! — tornei. — Por que volves ao mundo?

O mundo é o mesmo caos, o mesmo charco imundo.

A Humanidade é a mesma, alma de fariseus,

Que não te quer, nem quer o amor do próprio Deus!

O homem não se mudou. E a tola sociedade

É o nojento paul da criminalidade,

Lodo fenomenal de descrença e malícia.

Vai! consulta as prisões e consulta a polícia.

Onde puseste a luz, onde fundaste a escola,

O homem pôs o missal, as batinas e a estola.

Onde foste ensinar cantigas às ceifeiras,

O homem fez barregãs que se vendem nas feiras!

Onde andaste a criar a cidade e os impérios,

Ele fez podridões de imundos cemitérios;

Onde criaste o ideal e a inspiração divina,

Fez a bomba explosiva, a forca e a guilhotina.

A sociedade vil é quase a mesma Impéria,

Rindo na podridão, transudando a miséria.

Morre o bem, morre o amor, causa nojo a política,

Ressumbra asco e pavor a velha sifilítica,

Que brada sem cessar: — “Inda grita a canalha?

Abra-se-lhe a prisão, jogue-se-lhe a metralha.

E se alguém reclamar, há canhões na Alemanha;

Se o canhão não chegar, há mosteiros na Espanha,

Onde existe o grilhão dentro de escuras celas,

Celas que são prisões, cheias de sentinelas.

E se o povo chorar, que se açoite esse povo!

Alguém, que reclamar, pague um tributo novo.

Mate-se a mocidade, asfixie-se a infância,

Propague-se impiedade, espalhe-se ignorância,

De nada serve o livro a um povo sempre cego.

E se a fome vier, ponha-se a honra ao prego.

Para que se não veja a ruína e os cemitérios,

Se o estrangeiro chegar — Bailes nos ministérios!

Músicas sobre a dor, flores sobre os lameiros,

Girândolas ao ar, honras aos forasteiros!

Cubram sedas a lepra, aromas os fedores,

Fogo a quem mendigar! morte a quem tiver dores!..

Ao raiar a manhã, toque-se para a missa,

Que esta plebe é de cães, que esta plebe é submssa.

E esse povo infeliz dorme pelas calçadas,

Almoça e ceia o luar, morre sob pauladas —

E à podre sociedade é igual a religião,

Que encarcera o ideal dentro da Inquisição!

Principalmente Roma, a esta nada escapa,

Demonstrando o conflito entre Jesus e o Papa:

Jesus amava a luz, o Papa o oiro vil,

Jesus amava o pobre, o Papa a Rotschild!

Que queres, Caridade? o mundo é sempre assim,

Sacrifica um Abel para aceitar Caim!”

- “Antes de tudo, amigo, eu não sei, não discuto;

Eu só quero saber onde há miséria e luto.

Raciocina, poeta!

A alma da caridade

Abomina o rumor que alimenta a vaidade;

Para o seu labutar, toma vestes singelas;

Para fazer o bem, corre o fecho às janelas.

Não lê Anacreonte e ignora Petrarcas;

Não reconhece a lei que emana dos monarcas.

Nunca soube notar, nem sabe discernir

Qual deles foi maior, se Goethe ou Shakespeare;

Se houve o pincel de Goya e o buril de Bordalo,

Se Calígula quis endeusar um cavalo;

Se o nome de Mafoma é o mesmo que Maomet,

Se houve no tempo antigo uma arca de Noé;

Se a Patti cantou bem pelas festas mundanas,

Se viveram maus reis, entre más soberanas;

Não entende Voltaire, nem más literaturas,

Somente lhe interessa a sorte das criaturas.

Nunca soube enxergar se há Lutero e Jesuítas,

Sabe somente ver as dores infinitas.

Não vai a Roma ver o Papa que se cobre

De fulgentes milhões para humilhar o pobre.

Não vai à Terra Santa em peregrinações,

Jamais toma lugar para fazer sermões.

Passa no mundo a pé, jamais anda de sege,

Nem sabe distinguir entre um pária e Carnegie.

Nunca aos concílios foi dar suas opiniões,

Nunca reza em latim, nunca fez procissões.

Jamais focalizou questões eleitorais,

E não vai desfolhar misérias nos jornais.

Entra no lupanar, não lhe estorva a política,

Não lhe pode abalar a opinião da crítica.

Nunca viu povoléus, nem divisa a ralé,

Nem problemas sociais, nem dogmas de fé!

Rejeita a excomunhão, jamais amaldiçoa,

Sabe somente que ama e também que perdoa.

Sabe apenas que há pranto ao longo dos caminhos,

Que falta o amor e o pão, água e calor nos ninhos.

Corre, sem se cansar, desde o nascer da aurora,

Para buscar a dor da orfandade que chora.

Reconhece na, treva a fonte dos pecados

E abraça com carinho os grandes torturados.

Sabe onde falta sol, onde escassa é a saúde,

Onde se mete a flor excelsa da, virtude.

Olha sem se anojar, mágoas, misérias, dor,

Não conhece opinião, segue a Nosso Senhor!

Anda no Novo Mundo, corre por toda a Europa,

Mendigando uma luz e um bocado de sopa,

Luz para desfazer a baixeza de instintos,

Sopa para matar a fome dos famintos.

Foge da discussão, não está nas pelejas,

Nem no ambiente hostil e estreito das igrejas.

Sabe amar e querer flores e passarinhos,

Os mendigos e os reis, os palácios e os ninhos!

Tem abnegação. Sabe rasgar o peito,

E escrever com seu sangue a Justiça e o Direito!

Sabe o amor. Sabe o bem. A alma da, caridade

Sabe endeusar a luz e adorar a verdade.

Vai a todo lugar, recôndito e diverso.

Não existe num mundo. Existe no Universo.

Poeta amigo, adeus! Há muito que me espera

A imensidão da dor. Procuro a pomba e a fera.

Tenho muito a prestar às ovelhas transviadas,

Que ouvem as tentações do beiral das estradas.

É preciso que eu vá visitar os covis,

Amparar o chacal, as aves e os reptis;

Necessário é que eu siga em minhas romarias,

Procurando os pardais, melros e cotovias.

Vou subir a colinas e descer aos valados,

Caçando o pranto e a dor dos pobres desgraçados.

Chama-me o sol redor, chama-me a orfandade,

Necessário é lhes leve a vida e a liberdade.

Se tua alma quiser inda encontrar-me um dia,

Desce ao antro sem paz, donde foge a alegria;

Vai sem medo e receio à lôbrega mansarda,

Onde tarda a saúde e onde o conforto tarda.

Vai às roças louçãs nas alvoradas claras...

Estou com o lavrador na tarefa das searas,

Como do seu farnel, tomo o arado e a charrua,

Lá me ponho a lidar e de lá volto à rua,

Para guiar os maus, para guiar felizes;

Minha missão é amar os vermos e os países!...”

Muito tempo passara e a noite inda era escura.

Noite de neve atroz, noite de desventura!

Foi-se a linda visão, dissipando as neblinas,

Repartindo o seu pão de carícias divinas.

Tudo voltou à paz silenciosa e calma!...

O inverno e o pesar; e aos olhos da minhalma,

O mundo famulento, a Terra, parecia

O planeta da sombra e a mansão da agonia!

Romaria

(Passeio matinal)

(Fim da poesia inserta em Poesias Dispersas.)

Não sabeis, não sabeis, filhas que adoro tanto,

Calcular a extensão de tantas amarguras,

Existências em flor, fustigadas de pranto,

Lírios no lamaçal das grandes desventuras...

Almas na escuridão da noite sem aurora,

Corpos de podridão, urnas de lama e pus,

Anjos açucenais que a miséria devora,

Pobrezitos sem pão, esquálidos e nus.

No entanto, há aroma e luz na beira dos caminhos,

Cantos de rouxinóis, árvores, fruto e flor,

Harmonias sutis, que se evolam dos ninhos

Dourados pelo sol dalvorada do amor!

Mocidade no abril resplandecente e loiro

De noivado e canção das almas virginais;

Entoando a sorrir mil ditirambos de oiro,

Como as aves gracis em vôos nos trigais.

A alegria taful das manhãs harmoniosas

Em que maio desfolha os cravos e os jasmins,

Espargindo dos céus as glicínias formosas,

Na esmeraldina cor do colo dos jardins!

E Deus que fez o Sol e a candura das crianças,

Fez também o soluço e a lágrima dorida,

E se fez a bondade envolta de esperanças,

Criou a dor clareando a escuridão da vida.

Há risos e esplendor e há prantos, filhas minhas,

Porque o pranto é que lava as manchas e os negrumes

De almas torvas e vis, misérrimas, mesquinhas,

Transformando-as em luz e em vasos de perfumes!...

A lágrima da dor é estrela que transluz,

Um coração que sofre é chama que se eleva

Da túrbida hediondez dos pantanais da treva,

As regiões da glória intérmina da luz.

Sobre o escuro, porém, das lepras mal cheirosas,

Paira o clarão do amor, edênico e sem par,

Que liga o verme ao mar, que une a pomba às rosas,

Que o grão de areia une ao roble secular.

O amor que fraterniza, o amor que dá saúde,

Que irmana a fera e a rosa, as aves e os chacais,

Que faz da Caridade a flama da Virtude,

Que sublime conduz aos planos celestiais.

Filhas que Deus me deu, vinde alegres, comigo,

Vinde comigo ver a dor dos desgraçados

Que chorando se vão, sem pátria e sem abrigo,

Cheios de sânie e pus, com os corpos cancerados.

Aproveitemos, pois, esta hora calma e mansa,

Em que há músicas no ar e olores nas estradas,

Hora em que a Terra acorda em haustos de esperança,

Ébria de aroma e luz das flores orvalhadas.

Saúdam o alvorecer as vozes das ovelhas,

Perpassam colibris, chilreia a passarada,

Zumbem sofregamente as trêfegas abelhas,

Compondo o hino de sol de esplêndida alvorada!

Partamos nós, também, por este mundo afora,

Nutrindo o coração na fonte da esperança,

Dando consolo à dor, à treva a luz da aurora,

A paz à guerra e à luta os lírios da bonança.

Conduzamos conosco a luz da Caridade,

Oferecendo o Bem aos pobres pequeninos,

Ofertando com amor a toda a Humanidade

Esse pão divinal que é dos trigais divinos.

Espalhemos a Fé, a Caridade e a Crença,

Tenhamos a nossalma em delubros de luz,

E acharemos no fim da romaria imensa,

O sol primaveril da graça de Jesus!

Eterna vítima

Na silenciosa paz do cimo do Calvário

Ainda se vê na cruz o Cristo solitário.

Vinte séculos de dor, de pranto e de agonia,

Represam-se no olhar do Filho de Maria.

Abandonado e só na aridez da colina

Sofre infindo martírio a vítima divina;

Açoitado, traído e calmo, silencioso,

Da Terra ao Céu espraia o seu olhar piedoso.

Dois mil anos de dor, e os seus cruéis algozes

Passaram sem cessar como chacais ferozes.

Caravanas de reis nos tronos passageiros,

Exaltados na voz das trompas dos guerreiros;

Os lendários heróis no dorso dos corcéis,

Inscrevendo com fogo as máximas das leis.

Cavalheiros gentis, valentes brasonados,

Nobres de sangue azul nos seus mantos dourados.

Viram-no seminu, na cruz, ensangüentado,

E puseram-se a rir do louco supliciado!

O Cristo continuou, humilde e silencioso,

Espraiando na Terra o seu olhar piedoso.

Sábios do tempo antigo abrindo os livros santos

Olharam-no também, partindo como tantos.

Artistas e histriões, poetas e trovadores,

Castelãs juvenis, turbas de gosadores

Inda vieram; depois, aqueles que em seu nome

Espalharam a treva, o pranto, a guerra e a fome.

Desolação e horror, mataram-se os irmãos,

Lobos, tigres, chacais, na capa dos cristãos.

Contemplaram Jesus no cume da colina,

Multiplicando a guerra, as lutas e a chacina.

O Mestre prosseguiu, sublime e silencioso,

Espraiando na Terra o seu olhar piedoso.

E na época atual a caravana estranha

Estaca no sopé da árida montanha;

Mas os soberbos reis e césares antigos,

Hoje mais nada são que míseros mendigos;

Os nobres doutro tempo, agora transformados

Nos párias do amargor, nos grandes desgraçados,

Agora vêem, sim, no topo do Calvário,

O sacrifício e a dor do eterno visionário,

Bradando com furor: — “Socorre-nos Jesus!

Que possamos vencer a dor em nossa cruz.

Sorvendo o amaro fel nas dores da aflição,

Temos fome de paz e sede de perdão!”

E o Mestre da bondade, o anjo da virtude,

Estende o seu perdão cheio de mansuetude.

E do cimo da cruz, calmo e silencioso,

Consola a multidão com o seu olhar piedoso.

A um padre

(Versos a um agressor do Espiritismo)

Ó padre lutador, procurai santamente

Apregoar ao mundo herético e descrente

Os dogmas ancestrais da vossa velha Igreja!

A árvore do progresso, esplêndida, viceja.

A Ciência caminha a passos de gigante

Para se unir à Fé, operosa e triunfante.

É preciso instalar a Inquisição de novo,

Contendo a aspiração indômita do povo,

De saber a verdade acerca do Destino.

Proclamai, proclamai o dogma divino!

Fazei bulas, torcei as leis, trazei Loiolas,

Ensinai catecismo em todas as escolas;

Ponde sobre a esperança o inferno que flameja,

Cheio de excomunhões e de mastins da Igreja!

Ensinai que Deus é o bramânico satrapa

Que enviou para o mundo os bergantins do papa,

Afirmai que um sacrista é um ministro do Eterno.

Comei Jesus no pão refogado em falerno;

Formai sob a batina as gerações vindoiras,

Tomai em vossas mãos das crísticas tesoiras,

Cortai a asa de luz de toda liberdade,

Afogai na descrença a pobre Humanidade,

Multiplicai no mundo as vossas benzeduras,

Multiplicai na Igreja os ritos e as tonsuras!

Teologicamente, anatematizai

Todo aquele que em Deus sentir o amor de um Pai,

Ponde em cada recanto um novo Torquemada,

E um trapo de batina ao pé de cada estrada;

Fazei autos-de-fé, pregai probabilismos

Dentro das liações e dos anacronismos,

Endeusai sobre o trono a fortuna dos Cresos,

Esquecei sobre a lama os pobres indefesos.

Transformai todo templo em balcão de bentinhos,

Com representações em todos os caminhos;

Interpretai Jesus no prisma do interesse,

Traficai com o altar, vendei o ensino e a prece,

Anatematizai todas as heresias;

Aprovai, aplaudi as grandes simonias,

Porque, em verdade, são como crimes sagrados

E a. estola de um sacrista é isenta de pecados.

Incensai Harpagões, absolvei magnatas,

Entre encomendações, discursos, sermonatas;

Lembrai a Inquisição e a história do papado,

Retende na memória os erros do passado.

Lede com desassombro o intrépido Barônio,

Sem o medo pueril do inferno e do demônio,

E vinde proclamar ao mundo fariseu

Que somente na Igreja há sendas para o Céu;

Só a Igreja possui a santa autoridade,

Dentro das presunções da infalibilidade.

Sobre o luxo gritai no púlpito florido,

Gritai que o mundo está perverso e corrompido.

Escrevei com furor contra as guerras tigrinas,

A abençoar fuzis, metralhas, carabinas,

A discórdia infundi! Nutri regionalismos,

Incentivai com ardor os rubros fanatismos.

Se puderdes, irmão, arma! nova fogueira

A quem asseverar que o Papado é uma feira

Onde Deus é um cifrão e onde se negocia

A bênção de Jesus, e a bênção de Maria;

Onde a verdade está sob as cavilações

Dos círculos hostis de torpes convenções!

Praticai e afirmai ainda mais do que isto.

Tendes a autoridade e a mansidão do Cristo...

Mas, ouvi minha voz impávida e serena!...

Fazendo-vos ouvir, tomando a vossa pena,

Jamais vos esqueçais de que a verdade é de ouro.

Afastarmo-nos dela. é andar no sorvedouro

Da calúnia que fere o coração mais rude,

Da mentira que, enfim, não alcança a virtude,

Que traz, porém, consigo o vírus que envenena!

Quem perpetra a inverdade a si mesmo condena.

A luta da verdade, a luta das idéias,

É feita nos clarões das grandes epopéias,

Abrindo o coração ao nobre sacrifício;

Cada gesto leal é sublime interstício

Por onde a Luz penetra em jorros cristalinos,

Clareando o porvir ignoto dos destinos.

Criar uma ficção e excomungar de oitiva,

É próprio das paixões e próprio da inventiva.

Nunca vos entregueis a tanto despautério,

Jamais enxovalheis o vosso ministério.

Acostumai-vos, pois, ao sol que tudo aclara;

Deixai a insensatez dos clérigos, da tiara,

Abandonai a treva e vinde para a luz!

Aprendei muito mais do exemplo de Jesus.

Olvidai convenções, congregações, papado,

Que a Verdade jamais se vende no mercado.

“Um Quadro da Quaresma”

Entre lamentações e estrídulas matracas,

Num cenário infantil, feito de gesso e lacas,

Representa-se a peça antiga da quaresma...

O pobre Senhor-Morto, um pálido abantesma,

Talhado de encomenda, em tinta espessa e forte,

Dorme grotescamente o sono dessa morte

De teatro burlesco, anual, que se repete,

Como as grandes funções do entrudo e do confete.

Imóvel, sob a luz esdrúxula das tochas

Que ilumina esse caos de tintas rubro-roxas,

É o ator da paixão, a vítima e comparsa

Do Papa, o explorador santíssimo da farsa,

Paródia de uma dor sublime e incomparável,

Filha da estupidez bisonha e condenável,

Que a Igreja representa, arrecadando esmolas,

Com latim, cantochãos, bandeiras e sacolas.

A função quaresmal prossegue. A multidão

Espera com ansiedade o clássico sermão.

Numa fantasmagoria esplêndida de aroma

Dos Incensos do altar, sobre o púlpito assoma

Uma figura heril de abade gordo e enorme,

Coquelin tonsurado, obeso, desconforme,

Que grita com estentor:

“Caríssimos Irmãos!

Nós somos sobre a Terra os únicos cristãos.

Fora das concepções altíssimas da Igreja,

Existe tão-somente o Inferno que despeja

O mal e as tentações no espírito perdido;

Rezai! que atualmente o mundo pervertido

Pretende esfacelar os dogmas romanos,

Sentinelas da fé, há quase dois mil anos!

Não busqueis progredir nas coisas transcendentes,

Porque o Papa é senhor de céus e continentes

E o Sílabus proíbe a evolução de tudo!

Eu só vos peço a fé, porqüanto a fé é o escudo

Que vos há de livrar dos gênios tentadores.

Evitai conviver com os livres pensadores!

A análise conduz à escuridão do Averno,

Voltaire e Galileu são ministros do Inferno,

Calvino, Comte, Wesley, seus embaixadores;

Das chamas infernais, criaturas inferiores

Dirigem, certamente, o espírito moderno.

Precisais cultivar o nosso dogma eterno,

De eterna submissão ao Papa que é infalível.

Toda ordem de Roma é boa e indiscutível.

É preciso antepor, a toda a Humanidade,

Sentimentos de fé e catolicidade.

Necessário se faz prender quem raciocine.

Reformistas quaisquer?... Satanás que os fulmine

A falta de fervor tem feito heresiarcas,

Tem até corrompido os padres e os monarcas.

Obedecei à Igreja em sua Santidade,

Que é o traço de união do arcano da Trindade.

O dogma é uma lei benigna e sublime,

Sofismá-lo, enformá-lo, é cometer um crime.

A Humanidade está sob o império do demo;

Oremos pelo mundo em desconforto extremo.

Vivei, caros irmãos, em santa penitência;

As mortificações recebem da indulgência

Os prêmios celestiais na Eterna Beatitude.

Sede firmes na fé, contentes na virtude,

Amando a caridade, a humilde singeleza,

Como Jesus amou a glória da pobreza!”

Condenando a Ciência, a Luz, a Liberdade,

E abominando o Cristo, o Senhor que ele esquece,

Terminou a oração, rogando que se desse

Uma estola ao Progresso e um véu à Humanidade.

Com um aceno abençoou, segundo o gesto em uso,

Resmungando um latim exótico e confuso;

E depois de exercer seu santo ministério,

Procurou lestamente o calmo presbitério.

Aguardava-o o jantar de finas iguarias:

Pratos de ostentação, recheios, ambrosias,

Licores, moscatéis, confeitos, doces raros,

Opíparo jantar regado a vinhos caros.

E após se abastecer pantagruelicamente,

Em paz sacramental, seu cérebro indolente

Desejou meditar nas cenas do Calvário...

Mas o sono roubou-lhe as preces e o breviário.

Terminada que foi a sacra pantomima,

Esquecido Jesus, olvidou-lhe a doutrina.

Sereno, adormeceu sem pensar que pusera

Em cada coração um coração de fera,

Com o seu rubro sermão, cavando um negro abismo,

Propagando a cegueira, a guerra e o fanatismo.

Olvidou o que Jesus obrara com o exemplo,

Dos atos a lição, da caridade o templo,

Sem artigos de fé, sem bispo e vaticano.

Não se lembrou que houvera o bom samaritano,

Porque a verdade pura, o lídimo Evangelho,

Era um livro escurril, inadequado e velho.

Da doutrina cristã, a sacrossanta essência

Ficou em pregação de mágica eloqüência.

Jesus apenas fora a máscara piedosa,

Para tanta extorsão impune e criminosa.

Por isso, ó meus irmãos do altar e da batina,

A Igreja que foi pura e que já foi divina,

Morre sem remissão de horrível carcinoma,

Nos pântanos letais e lúgubres de Roma,

Lá onde a cupidez fatídica se entrapa

E morre às próprias mãos sacrílegas do Papa!

 

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