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sábado, 29 de janeiro de 2011

Deus na Natureza-Camille Flammarion

Introdução

Destina-se esta obra a representar o estado atual dos nossos conhecimentos precisos, sobre a Natureza e o homem.

A exposição dos últimos resultados a que atin­giu a inteligência humana no estudo da Criação é, ao nosso ver, a verdadeira base sobre a qual se há-de fundar doravante toda a convicção filosó­fica e religiosa. Em nome das leis da razão, tão solidamente justificadas pelo progresso contemporâneo e por força dos inelutáveis princípios cons­tituintes da lógica e do método, pareceu-nos que só através das ciências positivas deveremos pros­seguir na pesquisa da verdade.

Se temos, de fato, a ambição de chegar pes­soalmente à solução do maior dos problemas; se estamos sôfregos de atingir, por nós mesmos, uma crença na qual encontremos repouso e pábulo de vida; se nos anima, ao demais, o legítimo desejo de transmitir ao próximo a consolação que já en­contramos; — não temamos nunca afirmá-lo ser na ciência experimental que devemos procu­rar os elementos de cognição, só com ela devendo marchar.

O cepticismo e a dúvida universal imperam no âmago de nossa alma e nosso olhar escrutador, que nenhuma ilusão fascina, vigila na cripta dos nossos pensamentos. Não nos despraz que assim seja. Não lastimemos que Deus não nos houvesse tudo revelado ao criar-nos, dando-nos contudo o direito de discutir. Essa prerrogativa do nosso ser é ótima em si mesma, como condição maior de pro­gresso. Mas, se o cepticismo nos atalaia vigilante, também a necessidade de crença nos atrai.

Pode­mos duvidar, certo, sem por isso nos isentarmos do insaciável desejo de conhecer e saber. Uma crença torna-se-nos imprescindível. Os espíritos que se vangloriam de não a possuírem são os mais ameaçados de cair na superstição ou de anular-se na indiferença.

O homem tem, por natureza, uma necessidade tão imperiosa de firmar-se numa convicção —, par­ticularmente quanto à existência de um coordena­dor do mundo e da destinação dos seres — que, quando não encontra uma fé satisfatória, experi­menta a necessidade de se demonstrar a si mesmo que esse Deus não existe e busca, então, repousar o espírito no ateísmo e no niilismo.

Diga-se, também, já não ser a questão que ora nos apaixona, a de sabermos qual a forma do Criador, o caráter da mediação, a influência da graça, nem discutir, tão-pouco, o valor de argumentos teológicos. A verdadeira questão é saber se Deus existe, ou não.

Note-se que, em geral, a negativa é patroci­nada pelos experimentalistas da ciência positiva, enquanto a afirmativa se ampara nos indivíduos estranhos ao movimento científico.

Qualquer observador atento pode, ao presente, apreciar no mundo pensante duas tendências dia­metralmente Opostas.

De um lado, químicos ocupados em tratar e triturar, nos seus laboratórios, os fatos materiais da ciência moderna, por lhes extrair a essência e quinta-essência, a declararem que a presença de Deus jamais se manifesta em suas manipulações.

Doutro lado, teólogos acocorados entre poei­rentos manuscritos de bibliotecas góticas compulsando, folheando, interrogando, traduzindo, compi­lando, citando e recitando versículos dogmáticos, e declarando com o anjo Rafael, que, da pupila esquerda à pupila direita do Padre-Eterno medeiam trinta mil léguas de um milhão de varas, cada qual equivalente a quatro e meia vezes o comprimento da mão.

Queremos crer que de ambos os lados haja boa fé, que os segundos, como os primeiros, este­jam animados do propósito de conhecer a verdade. Pretendem os primeiros representar a Filosofia do século 20, enquanto os segundos guardam, respei­tosos, a do século 15. Os primeiros, passam por Deus sem O ver, como o aeronauta que sulca o espaço celeste, enquanto os segundos focalizam um prisma que retrai a imagem, colorindo-a.

O observador imparcial e independente que pro­cura explicar-lhes suas tendências contrárias, adimi­ra-se de os ver obstinados no seu sistema particular e pergunta a si mesmo se será verdadeiramente impossível interrogar, de um modo direto, este vas­to Universo e chegar a ver Deus na Natureza.

Por nós, isento de qualquer sectarismo, sen­timo-nos à vontade em eqüacionar o problema. Diante do panorama da vida terrestre; no âmbito da Natureza radiosa à luz do Sol, beirando mares bravios ou fontes inúrmuras; entre paisagens de Outono ou florações de Abril; tanto quanto no silêncio das noites estreladas, temos procurado Deus. A Natureza, interpretada com a Ciência, foi quem nô-lo demonstrou num caráter particular. De fato, Ele está nela, visível, como a força íntima de todas as coisas. Temos considerado na Natureza as re­lações harmônicas que constituem a beleza real do mundo, e, na estética das coisas, encontrámos a manifestação gloriosa do pensamento supremo.

Nenhuma poesia humana se nos figurou com­parável à verdade natural, e o Verbo eterno nos falou com mais eloquência nas mais modestas obras da Natureza, do que o pudera fazer o homem com seus cantos mais pomposos.

Seja qual for a oportunidade dos estudos que este trabalho objetiva, não esperamos agradar a toda a gente, certo de haver muitos incapazes de acordar do seu sono, e outros tantos a quem longe estamos de lhes corresponder aos pendores.

Acusa-se de indiferentismo a nossa época. A acusação é merecida. Onde estão, com efeito, os corações palpitantes de puro amor à verdade? Em que alma — perguntamos — ainda reina a fé? Não diremos, já, a fé cristã, mas uma crença sin­cera, seja no que for. Onde se vão os tempos em que as forças da Natureza, divinizadas, recebiam homenagens universais?

Tempos nos quais o homem, contemplativo e deslumbrado, saudava com fervor a potência eterna e manifesta na Criação?

Que é feito daqueles tempos em que os homens eram capazes de derramar o sangue por um prin­cípio, quando as repúblicas tinham à sua testa um ideal e não um ambicioso?

Quem se lembra dos tempos em que o gênio de um povo, esculpido em Notre Dame, ou em São Pedro de Roma, ajoelhava-se e pedia, conchegado aos seus muros de pedra?

Que é feito da virtude patriótica dos nossos antepassados abrindo as portas do Panteão para acolher as cinzas dos heróis do pensamento, e re­legando à noite do olvido a falsa glória da ociosidade e das almas?

Não coremos de o confessar, já que temos a franqueza de suportar um tal aviltamento: saturados de egoísmo, nossa alma não alimenta outra ambição que a do interesse pessoal.

Riqueza cuja origem permanece equívoca, louros surpreendidos, antes que conquistados, uma doce quietação, uma profunda indiferença pelos princípios, quem não verá nisso o nosso galardão? A parte, contudo, fora do mundanismo empolgante e rumoroso, vivem os que não se conformam em baixar a fronte dian­te da hipocrisia. Esses, trabalham na solidão e esquadrinham em silenciosa meditação os abismos da Filosofia e, se se mantêm fortes, é porque não se atrofiam ao contacto das sombras. Na verdade, é um contraste penoso de assinalar, quando vemos que o progresso magnífico, sem precedentes, das ciências positivas; que a conquista sucessiva do homem sobre a Natureza, ao mesmo tempo que tão alto nos elevaram a inteligência, deixaram res­valar o sentimento a níveis tão baixos. Doloroso, sentir que, enquanto por um lado a inteligência mais demonstra a sua capacidade, extingue-se por outro lado o sentimento, e a vida íntima da alma mais se embota na geena da carne.

A causa da nossa decadência social (passageira, de vez que a História não pode mentir a si mesma) deve-se à nossa falta de fé. A primeira hora deste nosso século marcou o derradeiro alen­to da religião de nossos pais. Baldos serão quais­quer esforços de restauração e reconstrução. Tudo o que se fizer não passará de simulacro, pois o que está morto não pode ressurgir. O sopro de uma revolução imensa passou sobre as nossas ca­beças deitando por terra nossas velhas crenças, mas, entretanto, fecundando um mundo novo.

Estamos, ao presente, atravessando a fase crí­tica que precede a toda renovação. O mundo pro­gride. É em vão que homens políticos e homens eclesiásticos imaginam, cada qual do seu lado, pros­seguir na representação do passado, num proscênio em ruínas. Impossível impedir que o progresso nos conduza a todos para uma fé superior, que ainda não possuímos, mas para a qual já caminhamos. E essa fé, não será outra que a convicção cientí­fica da existência de Deus; numa escalada à ver­dade pelo estudo da Criação.

É preciso ser cego, ou ter interesse em ilu­dir-se a si e aos outros (quantos neste caso se encontram!), para não ver e não ajuizar a nossa atualidade pensante. Foi por ter a superstição matado o culto religioso, que nós o menosprezámos e abandonámos. E foi porque as características do verdadeiro se nos revelaram mais claramente, que a nossa alma aspira a um culto mais puro. E não foi senão por se haverem afirmado diante de nós os imperativos da justiça, que hoje reprovamos institutos bárbaros, tais como a guerra, que, ainda recentemente, recebia a homenagem dos homens. É, enfim, porque o pensamento rompeu os grilhões que o prendiam à gleba, que não mais admitimos, de boamente, quaisquer tentativas que nos aproximem de qualquer espécie de servilismo. Nada obstante, há em tudo, e sempre, um progresso. Na incerteza, porem, em que ainda permanecemos, en­tre as perturbações que nos agitam, a maior parte dos homens, ao perceberem que as suas impres­sões e tendências esbarram fatalmente na inércia do passado, ou se afastam silenciosos se lhes so­bra força e coragem de o fazerem, ou se deixam arrastar na corrente geral, pela atração vigorosa da fortuna. É nas épocas críticas que as lutas se intensificam, intermitentes, sobre os eternos problemas cuja forma varia à feição dos tempos, a revestirem-se de um aspecto característico.

Nesta nossa época de observação e experimentação, os materialistas procuram apoiar-se em trabalhos cien­tíficos, e pretendem deduzir da ciência positiva o seu sistema.

Os espiritualistas, em geral, acredi­tam, ao invés, poderem pairar acima da esfera experimental e assomar aos píncaros da razão pura. Ao nosso ver, o espiritualismo para triunfar deve medir-se com o adversário no mesmo terreno e com as mesmas armas deste. Ele não perderá nada do seu caráter, condescendendo em baixar à arena, e nada terá a recear nessa justa com a ciência experimental.

As lutas empenhadas e os erros a combater, longe estão de se tornarem perigosos para a causa da verdade. Com o exigirem um exame mais rigo­roso das questões versadas, essas lutas nos ense­jam a preparação de uma vitória mais completa.

A Ciência não é materialista, nem pode servir ao erro. Como, e porque, pois, haveriam de temê-la o espiritualismo e a verdadeira religião? Duas ver­dades não se podem opor a uma terceira.

Se Deus existe, sua existência não poderia ser suspeitada nem combatida pela Ciência.

Para nós, temos a convicção íntima de que, muito pelo contrário, no estabelecimento de conhe­cimentos exatos sobre a construção do Universo, sobre a vida e o pensamento, propicia-se atual­mente o único método eficiente ao aclaramento do problema. Só assim poderemos saber se devemos admitir a soberania da matéria universal, ou se importa reconhecer uma inteligência organizadora, um plano e um destino imanentes.

Tal, pelo menos, a forma por que o debate se nos apresenta e impõe à mente, neste nosso trabalho.

Esperamos que esta tentativa de versar a exis­tência de Deus pelo método experimental aproveite ao progresso de nossa época, por estar de acordo com as suas tendências características.

Ficaremos satisfeito se a leitura deste livro deixar cair uma fagulha luminosa nos espíritos indecisos. Mais, ainda, se depois de haver meditado fundo estes nossos estudos, alguma fronte se le­vantar cônscia de sua legítima dignidade.

Se, regra geral, os ideólogos franceses não têm aplicado o método científico aos problemas da filosofia natural, em compensação alguns sábios tra­taram o assunto do ponto de vista das relações gerais manifestadas no mundo, e que lhe consti­tuem a unidade viva. Com prazer assinalamos, en­tre as obras deste gênero, os diversos trabalhos do Sr. A. Langel, aqui mesmo utilizados várias vezes.

Problemas da Natureza e problemas da vida não conduzem eles, efetivamente, ao máximo problema? Examinar as forças ativas no organismo universal, não será o mesmo que examinar as diversas mo­dalidades da força essencial e original?

As investigações que focalizam o estudo da Natureza podem aproveitar à Filosofia com maior segurança, às vezes, do que os tratados ou os diti­rambos especialmente consagrados à Metafísica. Os próprios escritos dos senhores Moleschott e Büchner nos ofereceram elementos de refutação.

A circulação da vida, qual a expõe o primeiro, mostra na vida uma força independente e trans­missível, dirigindo os átomos, mediante leis deter­minadas e conforme o tipo das espécies. O exame da Força e da Matéria estabelece, por outro lado, a soberania da Força e a inércia da Matéria.

Sendo a Força e a extensão os primeiros princí­pios do conhecimento, e sendo a Filosofia a ciência dos princípios, poderia esta obra ser considerada antes como um estudo filosófico, se não houvéssemos resolvido limitar-nos a uma discussão pura­mente científica. Este, efetivamente, o seu fim precípuo e que, por bem dizer, oferece mais atrativos, mau grado à aridez aparente do trabalho.

Pensamos que o único meio eficaz de combater o negativismo contemporâneo é voltar contra ele o materialismo científico e utilizar as suas próprias armas para derrotá-lo.

Esse discrime compete antes à Ciência que àFilosofia.

A Ideologia, a Metafísica, a Teologia, mesmo a Psicologia, dele se afastaram quanto possível.

Nós não razoamos com palavras, mas com fatos.

As verdades significativas da Astronomia da Física e da Química, como da Fisiologia, são, de si mesmas, as defensoras intrépidas da realidade essencial do mundo.

Por mais difícil que à primeira vista pareça a refutação científica do Materialismo contemporâneo, nossa posição é belíssima, desde que nos colo­camos no mesmo plano dos nossos adversários.

E nesta guerra eminentemente pacífica, estamos de

antemão seguros da vitória.

Basta-nos, com efeito, de vez que o inimigo está em falsa posição, descobrir a fraqueza dessa posição e desequilibrá-lo.

O método é simples e infalível, tão seguro que não o escondemos: deslocado o centro de gravida­de, sabe qualquer mecânico que o individuo colhido de surpresa cai, imediatamente, a procurá-lo no solo. Eis o quadro que se nos vai deparar. Críticos houve que pretenderam ver em nosso método laivos de sorriso e um tanto de ironia.

Não podemos ser juiz em causa própria, mas, ainda que a acusação tivesse fundamento, não nos caberia culpa alguma e sim, e só, aos acontecimen­tos, nos quais o grotesco teria momentaneamente empanado o sério, graças aos adversários tantas vezes arrastados ás consequências mais curiosas.

Referindo-nos à forma, devemos pedir ao leitor acredite, que, se por acaso tratarmos mais asperamente um que outro adversário, não é a nós que a falta deve ser imputada, visto não utilizarmos esses recursos extremos senão nos casos (muito frequentes talvez para eles) em que os adversários se obstinam em não se deixarem vencer. Somos, então, bem a nosso pesar, levados a feri-los com uma tática mais rude, forçando-os a convir, pelos argumentos irresistíveis do mais forte, que são eles de fato os mais fracos nesta guerra de princípios.

De resto, não há necessidade de acrescentar que são sempre esses princípios que atacamos, e nunca a personalidade dos que os advogam. Assim, considerando-se a índole mesma da questão, exclusas ficam as pessoas do campo de batalha.

Além disso, em consciência, não acreditamos pratiquem os adversários o materialismo absoluto — o dos seus interesses e das paixões egoístas e, portanto, não temos outra intenção que discutir as suas teorias.

Dividiremos nossa argumentação geral em cin­co partes, no intuito de demonstrar em cada uma a proposição diametralmente contrária à sustentada pelos eminentes advogados do ateísmo.

Assim, na primeira, lidaremos por estabelecer, preliminarmente, pelo movimento dos astros e depois pela observação do mundo inorgânico terrestre, que a Força não é atributo da Matéria, mas, ao contrário, a sua soberana, a sua causa diretora.

Na segunda parte, verificaremos, pelo estudo fisio­lógico dos seres, que a vida não é propriedade for­tuita das moléculas que a compõem e sim uma força especial a governar átomos, conforme o tipo das espécies. O estudo da origem e progressão das espécies também aproveitará à nossa doutrina.

Na terceira parte observaremos, examinando as rela­ções do pensamento com o cérebro, que há no ho­mem algo mais que a matéria, e que as faculdades intelectuais distinguem-se das afinidades químicas. A personalidade da alma afirmará o seu caráter e a sua independência.

A quarta evidenciará em a Natureza um plano, uma destinação geral e particular, um sistema de combinações inteligentes, no seio das quais o olhar desprevenido não pode dei­xar de admirar, mediante sadia concepção das cau­sas finais, o poder, a sabedoria e a previdência que coordenam o Universo.

A quinta parte, enfim, como centro de conver­gência das vias precedentes, nos colocará na posi­ção científica mais favorável para julgar simultaneamente a misteriosa grandeza do Ente Supremo e a cegueira inconteste dos que fecham os olhos para se convencerem de que Ele não existe.

O verdadeiro título desta obra deveria ser: — “A contemplação de Deus através da Natureza”.

Há alguns anos que se anuncia, como estando no prelo, este trabalho, e nós lhe temos modificado várias vezes o título, que, de início era puramente científico. (Da Força, no Universo.)

Acabamos, finalmente, por nos fixarmos neste. Sem dúvida, um título não tem essencial importância para que o autor se explique tão formalmente a respeito.

Mas, no caso vertente, julgamos útil declarar desde logo que todos quantos vissem nas quatro palavras da capa a expressão de uma doutrina, errariam completamente. Aqui não há panteísmo, nem dogma. Nosso objetivo é expor uma filosofia positiva das ciências, que, em si mesma, comporta uma refutação não teológica do materialismo con­temporâneo. É, talvez, imprudentíssima ousadia o tentar assim uma senda isolada, entre os dois ex­tremos, que sempre aliciaram poderosos sufrágios; mas, de vez que nos sentimos impelidos e susten­tados por uma convicção particular, tanto quanto por ardente amor a um novo aspecto da verdade, podemos, porventura, resistir ao impulso interior que nos inspira?

Ao leitor compete examinar a obra e decidir se alguma ilusão nos seduz e se nos oculta, sob o prestigio da verdade.

Não podemos, todavia, eximir-nos de confessar que, desde que lemos em Augusto Comte que a Ciên­cia aposentara o Pai da Natureza e acabava de »re­conduzir Deus às suas fronteiras, agradecendo os seus serviços provisórios” — sentimo-nos algo ofen­didos com a vaidade do deus-Comte, e nos deixamos empolgar pelo prazer de discutir o fundo científico de semelhante pretensão.

Verificamos, então, que o ateísmo científico éum erro e que a ilusão religiosa é outro erro. (De passagem digamos, o Cristianismo nos parece ainda esotérico.) Nossos atuais conhecimentos da Natu­reza e da vida nos representaram a idéia de Deus sob um prisma cujo valor a teodiceia, como o ateís­mo, não podem menosprezar.

Aos nossos olhos, o homem que nega simples­mente a existência de Deus e o que definiu esse Desconhecido e lhe debita em conta a explicação embaraçante, são ambos criaturas ingênuas, equi­valentes na erronia.

Mas, também não compete nos engajarmos aqui assim no método antinômico, e, sobretudo, não que­remos revestir-nos de aparências misteriosas.

Entremos, portanto, sem mais detença no âma­go do assunto, declarando que nos esforçamos por explanar com a mais sincera independência o que acreditamos ser a verdade.

Possam estes estudos ajudar a escalada, na trilha do conhecimento, a quantos tomam a sério a sua passagem pela Terra e o progresso da Hu­manidade.

Paris, Maio 1867.

PRIMEIRA PARTE

A Força e a Matéria

1

POSIÇÃO DO PROBLEMA

SUMÁRIO — Papel da Ciência na sociedade moderna. — Sua potência e grandeza. — Seus limites e tendências a ultrapassá-los. — As ciências não podem dar ne­nhuma definição de Deus. — Processo geral do ateísmo contemporâneo. — Objeções à existência divina, infe­ridas da imutabilidade das leis e da íntima União entre a força e a matéria. — Ilusão dos que afirmam OU negam. — Erros de raciocínio. — A questão geral resu­me-se em estabelecer as relações recíprocas da força e da substância.

O século que vivemos está desde já inscrito com caracteres indeléveis nas páginas da História. A partir dos mais remotos tempos, das velhas civilizações, nenhuma época viu, qual a nossa, esse magnífico despertar do espírito humano, para simultaneamente afirmar os seus direitos e a sua força. O mundo já não é o vale de lágrimas me­dieval, onde a alma vinha expiar a falta do primitivo pai e, confundindo-se no isolamento e na oração, acreditava conquistar um lugar no paraíso, ciliciando o corpo e cobrindo-se de cinzas.

Os frutos da inteligência já não atestam as longas, abstrusas e infindáveis discussões de esté­ril metafísica, construí das de palitos e escoradas em sutilezas escolásticas, a que se entregaram cegamente poderosos gênios, consagrando-lhes uma preciosa vida de estudos e despercebidos de assim perderem não apenas o seu tempo, mas o de algu­mas gerações.

Lá, onde em murados claustros se concentra­vam monjes e oratórios, ouve-se agora o ruido das máquinas, o ranger das engrenagens e o silvo do vapor das caldeiras combustas.

Se as instituições monásticas tiveram o seu papel no período das invasões bárbaras, nem por isso deixou de soar a sua hora extrema, como su­cede a todas as coisas perecíveis: o trabalho fecundo do operário e do agricultor substitui a deca­dência senil pela juvenilidade operosa e fecunda.

No anfiteatro das Sorbonnes, onde se discu­tiam exaustivamente os seis dias da Criação, as línguas de fogo da Pentecoste, o milagre de Josué, a passagem do Mar Vermelho, a forma da graça atual, a consubstancialidade, as indulgências par­ciais ou plenárias, etc., etc., e mil assuntos outros difíceis de profundar, vemos hoje instalar-se o la­boratório químico, no ambiente do qual a Matéria se faz docilmente pesar e mensurar; a mesa do anatomista, sobre cujo mármore se desvendam o mecanismo orgânico e as funções vitais; o micros­cópio do botânico, que surpreende os primeiros, os­cilantes passos da esfinge da Vida; o telescópio do astrônomo, que deixa entrever, para além dos céus transparentes, o movimento majestoso dos sóis gi­gantescos, regulados pelas mesmas leis que acionam a queda de um fruto; a cátedra de ensinamento experimental, à volta da qual as inteligências po­pulares vêm grupar suas filas atentas.

O próprio globo terrestre transformou-se. Cir­cunavegaram-no, mediram-no, e já não haverá Car­los Magnos que pretendam enfeixá-lo na mão, O compasso do geômetra destituiu o cetro imperial.

Oceanos e mares, em todas as latitudes, fen­dem-se ao impulso das quilhas levadas por velas pandas, ou pela rotação das hélices potentes e tre­pidantes.

Também — dragão flamívomo — a locomotiva percorre célere os continentes e, graças ao telé­grafo, podemos falar de um a outro hemisfério. O vapor deu vida nova e inesperada a inúmeros motores; a eletricidade nos permite auscultar, num momento e de conjunto, as pulsações da Humani­dade inteira.

Certo, a Humanidade jamais conheceu fase como esta; jamais se repletou em seu seio, de tan­ta vida e tanta força; jamais seu coração enviou, com tamanha pujança, a luz e o calor às mais longínquas artérias. Nem nunca o seu olhar se ilu­minou de um tal clarão. Por mais vastos que se deparem os progressos ainda conquistáveis, nossos descendentes serão sempre forçados a reconhecer que a Ciência deve à nossa época o estribo do seu Pégaso e que, embora engrandecendo-se e vendo o Sol ascender ao zênite, brilhante não lhes fora o dia se o não precedera a nossa aurora.

Mas, o que à Ciência outorga força e poder, convém sabê-lo, é ter por base de estudo elemen­tos determinados, que não abstrações e fantasmas. Assim é que, na Química, ela investe com o volume e peso dos corpos, examina-lhes as combinações, determina-lhes as relações; na Física, investiga-lhes as propriedades, observa-lhes as relações e as leis que as regem; na Botânica, aborda o estudo das primeiras condições da vida; na Zoologia, acompanha as formas existenciais e registra as funções orgânicas peculiares, os princípios da circulação da matéria nos seres vivos, sua manutenção e meta­morfoses; na Antropologia, constata as leis fisiológicas em atividade no organismo humano e deter­mina o papel dos diversos aparelhos que o com­põem; na Astronomia, inscreve o movimento dos corpos celestes e daí deduz a noção de leis directi­vas universais; e na Matemática, finalmente, formu­la essas leis e reconduz à unidade as relações numé­ricas das coisas.

Essa exata determinação de objetivo dos seus estudos é que dá valor e autoridade à Ciência. Aí temos como e porque a Ciência se engrandece. Mas, esses títulos também lhe acarretam um imperioso dever. Se, deslembrada dessa condição de poderio ela se desvia desses objetivos fundamentais para divagar no vácuo imaginário, perde simultânea-mente o seu caráter e a sua razão de ser.

E, desde então, os argumentos que pretende impor, nesses domínios exorbitantes do seu alcance e finalidades, deixam de ter valor científico, e mais ainda do que isso, porque ela se desqualifica e já não pode reivindicar o nome de ciência. Torna-se, por assim dizer, em soberana que acaba de abdicar e não é mais a ela que se ouve, mas aos sábios que peroram, o que nem sempre é a mesma coisa. E estes sábios, seja qual for o seu valor, já não serão mais intérpretes da Ciência, uma vez operando fora da sua esfera.

Ora, esta é, precisamente, a situação dos de­fensores do Materialismo contemporâneo, aplicando a Astronomia, a Química, a Física, a Fisiologia, a problemas que elas não podem resolver. E note-se que tais sábios não só constrangem essas ciências a responderem a problemas que lhes escapam à alçada, como ainda as torturam, quais pobres ser­vas, para que confessem a seu mau grado, e fal­samente, proposições de que jamais cogitaram. São, assim, inquisidores do fato, e não da palavra. Mas, dessarte, não é a Ciência, é um simulacro de ciência que manejam.

Nas seguintes controvérsias, demonstraremos que esses cientistas se encontram absolutamente fora da Ciência, que se enganam e nos enganam, que os seus raciocínios, deduções e consequências são ilegítimos, e que no seu louco amor por essa virginal ciência eles a comprometem simplesmente e chegariam a lhe alienar de todo a estima pública, se não houvesse o cuidado de mostrar que, ao in­vés da realidade, eles não possuem dela mais que uma ilusória sombra.

A circunstância mais penosa e a razão predo­minante que nos impelem a protestar contra as explorações de um falso rótulo, radicam-se ao fato de estarmos vivendo um tempo em que se sente, ou pelo menos se pressente, universahnente, o pa­pel e a finalidade da Ciência. Compreende-se que, fora dela, é que não há salvação, e que a Huma­nidade tanto tempo balouçada no oceano do igno­rantismo, só tem um porto a proejar — o da terra firme do saber. Também por isso, o espírito pú­blico se volta, convicto e esperançoso, para a Ciên­cia. Tantas provas de seu poder e riqueza tem ele recebido, de um século a esta parte, que se pre­dispôs a acatar-lhe, com simpatia e reconhecimento, todos os ensinos e teorias. Mas, nisso está, precisamente uma armadilha para o Espiritualismo. É que um certo número de cultores da Ciência, que a representam ou que se fazem dela intérpretes, ensinam falsas e funestas doutrinas.

Os espíritos sôfregos e despercebidos, que pro­curam em seus livros os conhecimentos de que necessitam, absorvem neles um tóxico pernicioso e suscetível de lhes destruir no âmago uma parte dos benefícios do saber.

Eis porque se impõe sobrestar um tão deplorá­vel arrastamento, aliás, tendente a universalizar-se.

Eis porque se torna absolutamente indispensá­vel discutir essas doutrinas e demonstrar que longe estão elas de entrosar na Ciência, com tanto rigor e facilidade, quanto pregoam, mas, ao invés, que são o produto grosseiro de pensamentos sistemáticos, que, perpêtuamente voltados sobre si mes­mos, têm a ilusão de se crerem fecundados pela Ciência, embora do radioso sol que ela simboliza não hajam recebido mais que um tênue raio des­viado de sua direção natural.

Há umas tantas questões profundas que, no curso da vida humana, nas horas de silêncio e solitude, se nos apresentam como outros tantos pon­tos de interrogação, inquietantes e misteriosos.

Tais os problemas da existência da alma, do seu futuro destino, da existência de Deus e das suas relações com a Criação.

Vastos e imponentes problemas, estes nos en­volvem e dominam em sua imensidade, pois senti­mos que nos aguardam e, na ignorância deles, não poderemos razoàvelmente alienar um tal ou qual temor do desconhecido.

Assim é que, já o dizia Pascal, um desses pro­blemas — o da mortalidade da alma — é tão importante, que é preciso haver perdido toda a cons­ciência para ficar indiferente ao conhecimento de si mesmo. O mesmo se poderá dizer quanto à exis­tência de Deus. Quando meditamos essas verdades, ou apenas na possibilidade da sua existência, elas nos aparecem sob aspecto tão grandioso que a nós mesmos interrogamos como podem criaturas inteligentes, seres racionais, pensantes, entregar-se uma vida inteira a Interesses transitórios, sem se abs­trairem uma que outra vez da sua apatia para aten­der a essas interrogativas preciosas.

Se é verdade, qual o temos observado, que há neste mundo homens absolutamente indiferentes, que jamais sentiram a magnitude desses proble­mas, menos não é que eles nos inspiram verda­deira piedade. Aqueles que, no entanto, mais agra­vam a bruteza da indiferença e, de caso pensado, desdenham alçar-se ao nível destes assuntos Im­portantes, preferindo-lhes os doces gozos da vida material, esses, — declaramo-lo alto e bom som —nós os deixamos sem pesar, entregues à sua inércia, para considerá-los fora da esfera intelectual.

O problema da existência de Deus é primacial a todos. Nem por outro motivo é que, contra ele, se assestam as principais, as mais possantes bate­rias do Materialismo que nos propomos combater. Pretende-se provar, com a ciência positiva, a ine­xistência de Deus e que uma tal hipótese não passa de aberração da inteligência humana. Um grande número de homens sérios, convencidos do valor desses pretensos raciocínios científicos, enfileira­ram-se ao redor desses inovadores recidivos, en­grossando desmesuradamente as hostes materialis­tas, primeiro na Alemanha e depois na França, na Inglaterra, na Suíça e na própria Itália.

Ora, nós não tememos dizer que, mestres ou discípulos, quantos se apóiam em testemunhos da ciência experimental para concluir que Deus não existe, cometem a mais grave inconsequência.

Acusando-os dessa erronia, haveremos de jus­tificar-nos, ainda que os incriminados possam, sob outro prisma, ser considerados homens eminentes e respeitáveis. De resto, é mesmo em nome da ciência experimental que vimos combatê-los.

Deixamos de lado toda a ciência especulativa e colocamo-nos, exclusivamente, no mesmo terreno dos adversários.

Não pensamos com Demócrito que, vazar os olhos, para evitar as seduções do mundo exterior, seja o melhor meio de cultivar frutuosamente a Filosofia, e, muito pelo contrário, permanecemos firmes na esfera da observação e da experiência.

Nessa posição, declaramos que por um lado não se prende imediatamente à existência de Deus, mas, por outro lado, desde que venhamos aplicar ao problema os atuais conhecimentos científicos, longe de conduzirem à negativa, afirmam eles a in­teligência e sabedoria das leis da Natureza.

A elevação para Deus, mediante o estudo cien­tífico da Natureza, nos mantém em situação equi­distante dos dois extremos, isto é: — dos que negam e dos que se permitem definir, simploriamente, a causa suprema como se houveram sido admitidos ao seu concelho. Assim, com as mesmas armas, com­batemos duas potências opostas: — o materialismo e a ilusão religiosa.

Pensamos que é igualmente falso e perigoso crer num Deus infantil, quanto negar uma causa primária.

Em vão se nos objetará não podermos afirmar a existência de uma entidade que não conhecemos. Precatemo-nos de presunções que tais. Certo, não conhecemos Deus, mas, sem embargo, sabemos que existe. Também não conhecemos a luz e sabemos que ela irradia das alturas celestes. Tão-pouco, conhecemos a vida e sabemos que ela se desdobra em esplendores na superfície da Terra.

“Longe estou de crer — dizia Goethe a Ecker­mann — que tenha uma exata noção do Ser supremo. Minhas opiniões, faladas ou escritas, resu­mem-se nisto: Deus é incompreensível e o homem não tem a seu respeito mais que uma noção vaga e aproximativa. De resto, toda a Natureza, e nós com ela, somos de tal modo penetrados pela Di­vindade que dela nos sustentamos, nela vivemos, respiramos, existimos. Sofremos ou gozamos em conformidade de leis eternas, perante as quais re­presentamos um papel ativo e passivo ao mesmo tempo, quer o reconheçamos, quer não. A criança regala-se com o bolo, sem cogitar de quem o fêz, o pássaro belisca a cereja, sem imaginar como a mesma se formou. Que sabemos de Deus? E que significa, em suma, essa íntima intuição que temos de um Ser supremo? Ainda mesmo que, a exemplo dos turcos, eu lhe desse cem nomes, ficaria infinita­mente abaixo da verdade, tantos são os seus inu­meráveis atributos... Como o Ente supremo, a que chamamos Deus, manifesta-se não só no homem como no âmbito de uma Natureza rica e poten­te quanto nos grandes acontecimentos mundiais, a idéia que dele se faz é, evidentemente, exígua.”

A idéia que os antepassados formavam de Deus, em todas as épocas, sempre esteve de acordo com o grau de ciência sucessivamente adquirido pela Humanidade. Tal como o saber humano, essa idéia é variável e deve, necessàriamente, progredir, pois, seja como for, cada uma das noções que consti­tuem o patrimônio da inteligência deve seguir a par com o progresso geral, sob pena de ficar dis­tanciada.

No conjunto de um sistema em movimento, toda a peça que se obstinasse em estacionar, recua­ria realmente. Em nossos dias, já não é admissí­vel dizer-se, dogmàticamente, que tal ou tal noção é perfeita e deve guardar o ataque da infalibilidade: ou se faz, ou se não faz parte da marcha progressiva do espírito. No primeiro caso, importa acompanhá-lo integralmente e, no segundo, há que confessar-se em atraso. Eis o que precisa ficar bem claro.

Digamo-lo francamente: em ciência experimen­tal, Deus não pode ser admitido a priori e muito menos a destinação, ou finalidade, que presumimos apreender nas obras da Natureza.

As doutrinas apriorísticas caducaram, já se não admitem.

Confessemo-nos com os materialistas e per­guntemos se os que tomaram Deus e não a Natureza como ponto de partida explicaram, algum dia, as propriedades da matéria ou as leis que gover­nam o mundo. Puderam eles dizer-nos da mobi­lidade ou imobilidade do Sol? — se a Terra era plana ou esférica? — quais os desígnios de Deus, etc.? Absolutamente. Mesmo porque, seria impos­sível. Partir de Deus para investigação e exame da Criação é processo baldo de nexo e de sentido. Esse precário método para estudar a Natureza e inferir consequências filosóficas, no pressuposto de poder, com uma simples teoria, construir o Universo e fixar as verdades naturais, desacreditou-se, felizmente, há muito tempo.

Mas, pelo fato de havermos substituído a hipó­tese precedente pelos resultados do exame a pos­teriori, segue-se que devamos fechar os olhos e negar a inteligência, a sabedoria, a harmonia re­veladas pela própria observação? Haverá motivo para repudiar toda e qualquer conclusão filosófica e ficar a meio caminho, temerosos de atingir o fim? E deveremos, por isso, rendermo-nos aos cép­ticos contemporâneos que, sem embargo de evi­dência, rejeitam toda luz e toda conclusão?

Pensamos que não. Muito ao contrário, pelo método que preconizam, constatamos as suas recusas e inconsequências.

Antes de qualquer controvérsia, importa deter­minar as posições recíprocas, por evitar mal-enten­didos, esperando nós que as declarações precedentes bastem para esclarecer categoricamente a nossa atitude.

Combateremos francamente o materialismo, não com as armas da fé religiosa, não com os argu­mentos da fraseologia escolástica, não com as au­toridades tradicionais, mas pelos raciocínios que a contemplação científica do Universo inspira e fe­cunda.

Examinemos preliminarmente, num lanço-de-olhos, de conjunto, o processo geral do ateísmo hodierno.

Esse processo assemelha-se sensívelmente ao de que se utilizou o barão de Holbach, nos fins do século passado, para fundamentar o seu famoso Sistema da Natureza, obra de um materialismo vulgar, para a qual achava Goethe não haver su­ficiente desprezo e costumava averbar de — “legí­tima quintessência da senectude, inepta e insulsa”. O novo processo, mais exclusivamente científico, todavia, consiste principalmente em declarar que as forças que dirigem, não dirigem o mundo, isto é: que em vez de governarem a matéria, antes se lhe escravizam e que é a matéria (inerte, cega, desprovida de inteligência) que, movendo-se de si mesma, se governa mediante leis, cujo alcance ela não pode, todavia, apreciar.

Pretendem os nossos materialistas atuais que a matéria existe de toda a eternidade, revestida de umas tantas propriedades, de certos atributos e que essas propriedades qualificativas da matéria bastam para explicar a existência, estado e con­servação do mundo.

Dessarte, substituem um Deus-espírito por um Deus-matéria.

Ensinam que a matéria governa o mundo e que as forças químicas, físicas, mecânicas, não passam de qualidades.

Para refutar um tal sistema, há que tomar, por conseguinte, o partido contrário e demonstrar um Deus-espírito, antes que um Deus-matéria, in­compreensível, a reger a matéria; estabelecer que a substância é escrava antes que proprietária da força; provar que a direção do mundo não cabe às moléculas cegas que o constituem, mas a forças sob cuja ação transparecem as leis supremas.

Fundamentalmente, o problema se resume nes­ta demonstração e nós esperamos que ela ressal­tará brilhante dos estudos objetivados neste nosso trabalho.

E de vez que os adversários se apóiam em legítimos fatos científicos para estabelecer o erro, cumpre-nos contrabatê-los com esses mesmos fatos.

A bem dizer, ainda que se demonstrasse que o Universo não é mais que um mecanismo material, cujas forças não se conjugam a um motor, mas remontam a matéria, subindo e descendo in­cessantes num sistema de motilidade perpétua, nem por isso a causa divina estaria perdida.

Contudo, desde os primórdios da Filosofia, a partir de He­ráclito e Demócrito, o sistema mecânico do mundo constituiu-se o refúgio e o argumento dos ateus, enquanto o sistema dinâmico albergava e escorava os espiritualistas.

Nós, por princípio, filiamo-nos à concepção di­nâmica e combatemos o sistema incompleto de um mecanismo sem construtor. Muito judiciosamente, diz Caro: (1) — por um lado o mecanismo tudo explica, mediante combinações e agrupamentos de átomos eternos. Todas as variedades de fenôme­nos, o nascimento, a vida, a morte, mais não são que o resultado mecânico de composições e decom­posições,

(1) La Philosophie de Goethe, capítulo 6º.

a manifestação de sistemas atômicos que se reúnem e se separam.

O dinamismo, ao contrário, subordina todos os fenômenos e todos os seres à idéia de força.

O mundo é a expressão, seja de forças opostas e har­moniosas entre si, ou seja de uma força única, cuja metamorfose perpétua engendra a universalidade dos seres.

Pode constatar-se que, não obstante ser a ex­plicação secundária das coisas, até certo ponto, in­dependente da primária, ou metafísica, a História atesta o fato constante de uma afinidade natural: de um lado, entre a explicação mecânica e a hipó­tese supressiva de Deus; e de outro lado, entre a teoria dinâmica e a hipótese que diviniza o mundo em seu princípio.

A teoria mecânica, estabelecendo a pura ne­cessidade matemática nas ações e reações que for­mam a vida do mundo, é incompleta, por isso que suprime a causa e dissipa em névoa o mundo mo­ral. A teoria de uma força única, universal, sem­pre atual e formando a variedade dos seres pelas suas metamorfoses, ajusta essa misteriosa univer­salidade a uma força primordial.

Poder-se-ia, portanto, acusar simplesmente o processo geral dos nossos contraditores de um erro gramatical, atribuindo à matéria um poder só ca­bível à força, e pretendendo não passar esta de mero adjetivo qualificativo, quando lhe cabem os mesmos direitos daquela, na classe dos substantivos.

Examinemos agora, nesta mesma visada de conjunto, quais os grandes erros que marcham de paralelo e sustentam essa conduta e que havemos de encontrar sob várias formas, no curso das nos­sas contraditas.

O primeiro erro geral de que abusam os ma­terialistas é imaginarem que, pelo fato de existir Deus, importa atribuir-lhe uma vontade caprichosa e não constante e imutável, em sua perfeição.

Ersted, por exemplo, sábio escrutador do mun­do físico, exprimiu sensatamente as relações de Deus com a Natureza, dizendo que “o mundo é governado por uma razão eterna, cujos efeitos se manifestam nas leis da Natureza”.

O Dr. Büchner opõe a esse conceito a seguinte especiosa objeção: — “Ninguém poderia compreen­der como uma razão eterna, que governa, se con­forme com leis imutáveis. Ou são as leis naturais que governam, ou é a razão eterna. Que umas ao lado de outras entrariam, a cada instante, em colisão. Se a razão eterna governasse, supérfluas se tornariam as leis naturais, e se, ao revés, gover­nam as leis imutáveis da Natureza, elas excluem toda intervenção divina.” — “Se uma personali­dade governa a matéria num determinado sentido — opina Moleschott — desaparece da Natureza a lei da necessidade. Cada fenômeno se torna par­tilha de jogo do acaso e de uma arbitrariedade sem pelas.”

Havemos de convir que esta grave objeção é singularissima.

É um raciocínio extravagante que cai pela base. A nós nos parece, pelo contrário, que a inteligência notória nas leis da Natureza demonstra, no mínimo, a inteligência da causa a que se devem essas leis, que são, elas mesmas, precisamente a expressão imutável dessa inteligência eterna.

E não será algo ridículo pretender que essa causa deixe de existir, pelo motivo do íntimo acor­do com essas mesmas leis?

Vejamos, por exemplo, um excelente harpista: a sua virtuosidade é tão perfeita que os acordes frementes parecem-nos identificados com a poesia da sua alma! Diremos, então, que essa alma não existe, visto que para lhe admitir existência fora preciso que ela estivesse eventual e arbitrariamente em desacordo com as leis da Harmonia! Essa maneira de raciocinar é tão falsa que os próprios autores que a utilizam são os primeiros a reconhecê-lo implicitamente. Assim é que Büchner, referindo-se a milagres e ao fato de haver o clero inglês solicitado a decretação de um dia de jejum e de preces para conjurar a cólera, elogia Palmara­ton por haver respondido que o surto epidêmico dependia mais de fatores naturais, em parte co­nhecidos, e poderia melhor jugular-se com provi­dências sanitárias, antes que com preces.

Muito bem! O autor, melhor ainda, acrescenta: “Essa res­posta lhe acarretou a pecha de ateísmo e o clero declarou pecado mortal não crer pudesse a Provi­dência transgredir, a qualquer tempo, as leis da Natureza.”

Mas, que singular idéia faz essa gente de Deus que por si criou! Um legislador supremo a deixar-se comover por preces e soluços, a subverter a ordem imutável que ele mesmo instituiu, a violar por suas próprias mãos a atividade das forças naturais! — “Todo o milagre, se existisse — diz também Cotta — provaria que a Criação não me­rece o respeito que lhe tributamos, e os místicos deveriam deduzir, da imperfeição do criado, a im­perfeição do Criador.”

Aí temos os adversários em contradição con­sigo mesmos, quando, por um lado, não querem admitir uma razão eterna em concordância de leis imutáveis, e por outro pensam conosco, que a idéia de imutabilidade ou, pelo menos, a regularidade, identifica-se muito melhor com a perfeição ideal do ser desconhecido que denominamos — Deus, do que a idéia de mutabilidade e arbitrariedade, que umas tantas crenças pretendem impor-lhe.

Um segundo erro geral, não menos funesto que o precedente e que por igual ilude nossos contra­ditores, é o de acreditarem que, para existir Deus, importa colocá-lo fora do mundo.

Não vemos pretexto algum racional que possa justificar uma tal necessidade. E antes do mais, que significa essa idéia de uma causa soberana extra-mundo? Onde os limites do mundo? Pois o mundo, isto é, o espaço no qual se movem estrelas e terras, não é infinito por sua mesma essência?

Imaginais um limite a esse mesmo espaço e supondes que ele se não renova além? Será, então, possível traçar limites à extensão? Onde, pois, ima­ginar Deus fora do mundo? Será fora da matéria, o que se quer dizer? Mas, que é a matéria em si? — agrupamentos de moléculas intangíveis. Por­tanto, impossível determinar uma semelhante po­sição. Deus não pode estar fora do mundo, mas no mesmo lugar do mundo, do qual é o susten­táculo e a vida.

Não fôsse temer a pecha de pan­teísta e ajuntaríamos que Deus é — a alma do mundo. O Universo vive por Deus, assim como o corpo obedece à alma. Em vão pretendem os teólogos que o espaço não pode ser infinito, em vão se apegam os materialistas a um Deus fora do mundo, enquanto sustentamos que Deus, infi­nito, está com o mundo, em cada átomo do Universo — adoramos Deus na Natureza.

Entretanto, nossos adversários combatem es­tultamente o seu fantasma. “Não há considerar o Universo — diz Strauss — como ordenação regra­da por um espírito fora do mundo, mas, como razão imanente às forças cósmicas e às suas relações.”

A essa razão, chamamo-la — Deus, enquanto os modernos ateístas aproveitam essa declaração para sentenciar que, em não existindo fora do mun­do, é que Deus não existe.

“Tudo, — diz H. Tuttle — desde a tinha (perdoem a expressão) que baila aos raios do Sol, à inteligência humana, que verte das massas medulosas do cérebro, está submetido a princípios fixos. Logo, não existe Deus.” Logo, existe — dizemos nós — “Livre é cada qual de franquear os limites do mundo visível — pondera Büchner — e de procurar fora dele uma razão que governa, uma potência absoluta, uma alma mum­dial, um Deus pessoal”, etc. Mas, que é o que vos fala disso? “Nunca, em parte alguma — diz o mes­mo literato — nos mais longínquos espaços reve­lados pelo telescópio, pôde observar-Se um fato que fizesse exceção e pudesse justificar a necessidade de uma força absoluta, operando fora das coisas.”

“A força não impelida por um Deus, não é uma essência das coisas isoladas do princípio material” — adverte Moleschott.

Ninguém terá visão tão limitada — afirma ele alhures — para enxergar nas ações da Natureza forças outras não ligadas a um substrato mate­rial. Uma força, que planasse livremente acima da matéria, seria uma concepção absolutamente balda de sentido.

Positivamente, ainda hoje existem cavaleiros errantes, à guisa dos que outrora manobravam em torno dos castelos do Reno, e de bom grado arre­metem moinhos de vento. Lídimos heróis de Cervantes, visto que, no fim de contas, qual o filósofo que hoje propugna um Deus ou forças quaisquer fora da Natureza?

Vemos em Deus a essência virtual que susten­ta o mundo em cada uma de suas partes microscópicas, daí resultando ser o mundo como que por ele banhado, embebido em todas as suas partes e que Deus está presente na composição mesma de cada corpo.

Dessarte, a primeira trincheira cavada pelos adversários para bloquear o Espiritualismo foi por eles mesmos entulhada; e a segunda, nem sequer objetiva a cidadela, e os nossos soldados alemães não fazem mais que bater o campo.

Um terceiro erro, capital e imperdoável em cientistas de certa idade, é imaginarem-se com direito de afirmar sem provas, a embalarem-se com a doce ilusão de serem os outros obrigados a acre­ditar sob palavra. Coisas que a verdadeira Ciência profundamente silencia, afirmam-nas eles, categó­ricos. Afirmam, como se houvessem assistido aos concelhos da Criação, ou como se fôssem os pró­prios autores dela.

Eis alguns espécimes de raciocínios, cuja infa­libilidade é tão ciosamente proclamada.

Que os espíritos um tanto afeitos à prática científica se dêem ao trabalho de analisar as seguintes afirmações:

Moleschott diz que a força não é um deus que impele, não é um ser separado da substância ma­terial das coisas (quer dizer separado ou distin­to?). É a propriedade inseparável da matéria, a ela inerente de toda a eternidade. Uma força, não ligada à matéria, seria um absurdo. O azôto, o carbono, o oxigênio, o enxofre e o fósforo têm propriedades que lhes são inerentes de toda a eternidade... Logo, a matéria governa o homem.”

Cada uma destas afirmativas, ou negativas, éuma petição de princípios, a depender do sentido que dermos aos termos discutíveis, utilizados; mas, em suma, o que elas resumem é que a força vale como propriedade da matéria. Ora, essa é, preci­samente, a questão. Os campeões da Ciência, que pretendem representá-la e falar com e por ela, não se dignam de seguir o método científico, que é o de nada afirmar sem provas. Nas dobras do seu estandarte, com letras douradas, estereotiparam uma legenda fulgurante, a saber: — toda a pro­posição não demonstrada experimentalmente só me­rece repúdio — e, no entanto, logo de início, es­quecem a legenda. São pregadores de uma nova espécie: façam o que digo e não o que eu faço.

Veremos, com efeito, que, quantos afirmam que a força não impulsiona a matéria, exprimem um con­ceito imaginativo, nada científico.

Ouçamos, ainda, outras afirmativas gerais: “A matéria — diz Dubois-Reymond — não é um veícu­lo ao qual, à guisa de cavalos, se atrelassem ou desatrelassem alternativamente as forças. Suas pro­priedades são inalienáveis, intransmissíveis de toda a eternidade.”

Quanto ao destino humano, eis como se expri­me Moleschott: «Quanto mais nos convencemos de trabalhar para o mais alto desenvolvimento da Hu­manidade, por uma judiciosa associação de áci­do carbônico, de amoníaco e de outros sais; de ácido húmico e de água, mais se nobilitam a luta e o trabalho”, etc.

E também em nosso país: “Uma idéia — diz a Revista Médica — é uma combinação análoga à do ácido fórmico; o pensamento depende do fós­foro; a virtude, o devotamento, a coragem, são correntes de eletricidade orgânica”, etc.

Quem vos disse tal coisa, senhores redatores? Olhem que os leitores hão-de pensar que os vossos mestres ensinam esses gracejos, quando tal se não dá, absolutamente. Mesmo porque, do ponto de vista científico, esses raciocínios são totalmente nu­los. De fato, não se sabe o que mais admirar em tais expoentes da Ciência: se a singular audácia, se a ingenuidade de suas presunções.

Newton não se cansava de repetir: parece-nos, e Képler dizia: submeto-vos estas hipóteses... Aque­les outros, porém dizem: afirmo, nego, isto é, aqui­lo não é, a Ciência julgou, decido, condenou, pos­to que no que dizem não haja sombra de argumento científico.

Um tal método pode ter o merecimento da clareza, mas ninguém o inquinará de modesto, nem de verdadeiramente científico.

É que tais senhores têm a ousadia de impu­tar à Ciência a carga pesada das suas próprias heresias. Se a Ciência vos ouvisse, senhores (mas deve ouvir, porque sois seus filhos) — se a Ciên­cia vos ouve, não pode deixar de sorrir das vossas ilusões.

A Ciência, dizeis, afirma, nega, ordena, proí­be... Pobre Ciência, em cujos lábios pondes grandes frases, atribuindo-lhe ao coração um descomunal orgulho.

Não, meus senhores, e vós bem o sabeis (cá entre nós) que, nestes domínios, a Ciência nada afirma, nem nega, porque apenas procura.

Refleti, pois, que a armadura das vossas par­landas ilude os ignorantes e pode induzir em erro quantos não tiveram a faculdade de perlustrar os vossos estudos, e considerai que, quando nos arro­gamos o título de intérpretes da Ciência, ficamos na obrigação de não falsear o título, de permane­cer-lhe fiel e, por consequência, modestos tradu­tores de uma causa que tem na modéstia o seu primacial merecimento.

Se, da questão da força, em geral, passarmos à da alma, observaremos que, na esfera da vida animal, ou humana, os adversários não vacilam em afirmar, igualmente sem provas, que não existe personalidade no ser vivente e pensante; que o espírito, como a vida, mais não é que o resultado físico de certos grupamentos atômicoS, e que a ma­téria governa o homem tão exclusivamente quanto, a seu ver, governa os astros e os cristais, O fe­nômeno mais curioso é o de imaginarem que acla­ram o problema com as suas explicações obscuras:

— “O espírito, diz o Dr. Hermann Scheffler (2), outra coisa não é senão uma força da matéria, ime­diatamente resultante da atividade nervosa”...

Mas... de onde provém essa atividade ner­vosa?

— Do éter (?) em movimento nos nervos. De sorte que, os atos do espírito são o produto ime­diato do movimento nervoso, determinado pelo éter, ou do movimento deste nos nervos — ao qual im­porta ajuntar uma variação mecânica, física ou química, da substância imponderável dos nervos e de outros elementos orgânicos...

— Eis aí, suponho, bem esclarecida a questão. Virchow diz que “a vida não é mais que modali­dade particular da mecânica”; e Büchner afirma que “o homem não passa de produto material; que não pode ser o que os moralistas pintam; que não tem faculdade alguma privilegiada”.

— Que há em todos os nervos uma corrente elétrica — predica Dubois-Reymond — e que o

(2) Körper und Gelst, etc.

pensamento mais não é que movimento da maté­ria. Para Vogt, as faculdades da alma valem como funções da substância cerebral e estão para o cérebro como a urina para os rins (3). E Moleschott, assegura que a consciência, a noção de si mesmo, mais não é que movimentos materiais, ligada a correntes neuro-elétricas e percebidas pelo cérebro.

Teremos ensejo de assinalar, mais adiante, um ditirambo deste mesmo autor sobre o fósforo, o peso do cérebro, as ervilhas e lentilhas. Por agora, limitemo-nos a estes edificantes testemunhos.

Admiremos, sobretudo, a conclusão fundamen­tal: “E aí temos nós porque os sábios definem a força uma simples propriedade da matéria”. Qual a consequência geral e filosófica desta noção tão simples quanto natural? É que aqueles que falam de uma força criadora, tendo de si mesma origi­nado o mundo, ignoram o primeiro e mais simples princípio do estudo da Natureza, baseados na Filo­sofia e no empirismo.”

E, acrescentam — “qual o homem instruído, com um conhecimento mesmo superficial das ciên­cias naturais, capaz de duvidar não seja o mundo governado como geralmente se afirma, e sim que os movimentos da matéria estão submetidos a uma necessidade absoluta e inerente à própria matéria?“

Assim, pela só autoridade de alguns alemães, que vêm ingenuamente declarar não admitirem, seja como for, a existência de Deus e da alma, agar­rando-se embora a uma sombra de noção cientí­fica por justificar as suas fantasias, teríamos nós, ao seu ver, de abjurar a Ciência, ou deixar de crer em Deus.

Tivessem tido apenas a precaução de aplicar as regras do silogismo ao seu método; tivessem tido o cuidado de propor, primeiramente, as pre­missas irrefutáveis e não tirar delas senão uma

(3) Physiologische Briefe.

conclusão legítima, e poderíamos acompanhá-los no raciocínio e conferir-lhes um prêmio de retórica. Mas, vede em que consiste o seu processo:

Maior — A força é uma propriedade da ma­téria.

Menor — Portanto, uma propriedade da ma­téria não pode ser considerada superior, criadora ou organizadora dessa matéria.

Conclusão — Logo, a idéia de Deus é uma concepção absurda.

É assim que arvoram, antes de tudo, em prin­cípio a tese a discutir.

Combatendo cerradamente os métodos do Cris­tianismo, essa gente muito se assemelha aos que, no intuito de provarem aos Romanos a divindade de Jesus, assim começavam: — Jesus é Deus, e desse princípio não provado extraiam todas as de­duções.

Convicto estamos de honrar grandemente esses escritores, aplicando aos seus postulados as re­gras do raciocínio, que eles talvez nunca sonharam seguir.

Também poderíamos submeter-lhes as pretensões a uma outra forma mais ingênua, assim:

Antecedente — Matéria e força encontram-se sempre associadas.

Consequente — Logo, a força é uma quali­dade da matéria.

Aí temos, penso, um entimema de novo gêne­ro e de consequências bem evidentes, pois não? Mas, é assim que os senhores Alemães raciocinam, bem como os seus clarividentes imitadores, positi­vistas da nossa moderna França.

No primeiro caso, o raciocínio peca pela base; e, no segundo, ném mesmo faz jus a esse reproche, porque é uma infantilidade.

Certo, pesa dizê-lo, mas é a essa puerilidade, ou melhor — perversão da faculdade de raciocinar — que se reduz o movimento materialista dos nos­sos tempos. E nunca, como aqui, vem a pêlo a frase do misantropo que dizia não ser o homem um animal pensador, mas, falador.

Todo o fundamento desta grande querela, toda a base deste edifício heterogêneo, cujo desmorona­mento pode esmagar muitos cérebros sob os es­combros; toda a força deste sistema que pretende dominar o mundo, presente e futuro; todo o seu valor e potência, repousam nessa assertiva fanta­siosa, arbitrária e jamais demonstrada, de ser a força uma propriedade da matéria.

E é fingindo acompanhar a rigor as demons­trações científicas e só se apoiar em verdades re­conhecidas; é confungindo-se ao estandarte da Ciên­cia, apropriando-se de suas fórmulas e atitudes; é, enfim, com ela mascarando-se, que os pontífices do ateísmo e do niilismo proclamam as suas belas e edificantes doutrinas.

Mas a Ciência não é uma mascarada. A Ciên­cia fala de viseira erguida, não reivindica falsas manobras, nem luzes de falso brilho. Serena e pura na sua majestade, ela se pronuncia simples, modes­tamente, como entidade consciente do seu valor intrínseco. Nem procura impor-se, e, sobretudo, não aventa coisas de que não possa estar segura. Em vez de afirmar ou negar, investiga e prossegue, laboriosamente, no seu mister.

A exposição precedente já deixou adivinhar, sem dúvida, a tática do ateísmo contemporâneo.

Ele não é fruto direto do estudo científico, mas procura insinuar-se com essa aparência.

Evidente a ilusão, nesses filósofos, pois sabemos que há en­tre eles uns tantos conceitos sinceros. É à força de quererem conjugar à Ciência as suas teorias, que acabaram por embutir no cérebro essa união clandestina. Estas teorias não podem invocar a seu favor qualquer das grandes provas científicas da nossa época e, sem embargo, dão-se como re­sultantes de todo o moderno trabalho científico.

Isso repetem, e é com essa hermenêutica que abusam dos ignorantes e da juventude despreca­vida e entusiasta, tendendo a lhes fazer crer que as ciências, à força de progredirem, acabaram por descobrir e demonstrar que não há Deus nem alma. São eles que fazem a Ciência.

Dir-se-ia, em os ou­vindo, nada haver além deles. Os grandes homens da antigüidade e da Idade Média, tanto como os modernos, são fantasmas, e toda a Filosofia deve desaparecer diante do ateísmo pretensamente cien­tífico.

Preciso se faz que a imaginação popular não se deixe iludir por simples jogo de palavras, que mais valem, às vezes, por verdadeira comédia. Im­porta que as criaturas pensem por si mesmas, julguem com conhecimento de causa e adquiram a certeza de que os fatos científicos, perquiridos sem prevenção, não comportam as conclusões dogmáti­cas que lhes querem impor.

Vista de perto, a pedra angular a grande custo lançada pelo materialismo contemporâneo deixa en­trever que ela não passa de velho e carcomido tronco de madeira podre, e, no fundo, os partidá­rios do sistema não estão mais seguros do seu cepticismo do que o estariam os calvos discípulos de Heráclito ou de Epícuro.

Ainda que queiram convencer-nos do contrá­rio, todo o seu sistema não passa de hipótese, mais vazia e menos fundamentada que muitos romances científicos.

E uma vez que são eles próprios a declarar que toda hipótese deve ser banida da Ciência, não há como deixarmos de começar por esse banimentO.

Realmente, com que direito fazem da força atributo da matéria?

Com que direito afirmam que a força está sub­metida à matéria, que lhe obedece passivamente aos caprichos, escrava absoluta de elementos iner­tes, mortos, indiferentes, cegos? Maior e mais fun­dado é o nosso direito de inverter-lhes a proposi­ção, derrubando-lhes o edifício pela base.

Terminemos assim esta exposição do problema, decidindo que o discrime se coloca nestes termos fundamentais: é a matéria que domina a força, ou antes esta que domina aquela?

Trata-se de discutir e escolher uma ou outra, ou, para falar com mais exatidão — trata-se de observar a Natureza e optar depois.

E, pois que os honrados campeões da matéria afirmam, com tanta segurança, o primeiro enunciado, começamos revocando-o em dúvida e pro­pondo a alegação contrária.

*

No rostro desta obra inscrevemos, por conse­guinte, esta pergunta:

A força rege ou é regida pela matéria? Este o dilema que os fatos de si mesmos devem resolver.

O panorama geral do Universo vai oferecer-nos uma primeira demonstração de soberania da força e da ilusão dos materialistas.

Da matéria, nos elevamos às forças que a di­rigem; destas, às leis que as governam, e destas, ainda, ao seu misterioso autor.

A harmonia repleta o mundo dos seus acordes e o ouvido de alguns ínfimos seres humanos recu­sam-se a escutá-los. A mecânica celeste lança, ou­sadamente, no espaço, o arco das órbitas e o olho de um parasita desses orbes desdenha a grandeza da sua arquitetura.

A luz, o calor, a eletricidade, pontos invisíveis projetados de uma a outra esfera, fazem circular nos espaços infinitos o movimento, a atividade, a vida, a radiação do esplendor e da beleza, e as im­beles criaturas, apenas desabrochadas à superfície de um parasita desses orbes desdenha a grandeza a confessar a fulgurância celeste! É loucura ou é to­lice? É orgulho, ou ignorância? Qual a origem e a finalidade de tão estranha aberração? Porque a for­ça vital, álacre e fecunda, palpita no Sol como na borboleta que morre com a manhã; no carvalho anoso das florestas como na primaveril violeta? — porque a vida magnificante doura as messes de Julho e os cabelos anelados da juventude petulante e freme no seio virginal das noivas? — porque ne­gar a beleza, mascarar a verdade e desprezar a inteligência? Porque envenenar as virtudes eternas que sustentam a estrutura do mundo, e eclipsar, tristemente, a luz imácula que desce dos céus?

Antes de penetrar os mistérios do reino tão rico e interessante da vida, devemos considerar o esboço material do Universo, começando por de­monstrar a soberania da força no tracejar desse mesmo esboço. Dividiremos esta primeira em duas partes: o Céu e a Terra, para estabelecer em pri­meiro lugar, por leis astronômicas e depois pelas terrestres, que, onde quer que exista a matéria, jamais deixou de ser escrava servil, universalmente dominada pela energia que a rege. Esta divisão não deve sugerir, de modo algum, a velha compa­ração do céu com a Terra, que bem sabemos serem termos incomparáveis. Considerado como valor absoluto, o céu é tudo e a Terra nada é. A Terra é átomo imperceptível, perdido no seio do Infinito; o céu a envolve no ilimitado e a integra na popu­lação astral, sem exceção nem privilégio particular.

Reunir os dois vocábulos, é como dizer: os Al­pes são uma pedrinha, o Oceano é uma gota dágua e o Saara um grão de areia. É comparar o todo

a um mínimo do mesmo todo.

Importa, portanto, não interpretar literalmente a nossa divisão, que só se justifica por colimar maior clareza do assunto. Para nós, terricolas, este globo é alguma coisa, assim como para a minúscula lagarta, que aflora numa folha, esta folha que algo vale, mau grado à sua insignificância no conjunto da pradaria.

Nossa esfera de observação divide-se também, naturalmente, em duas partes: o que pertence e o que não pertence ao nosso mundo.

Ora, vamos estabelecer que, fora do nosso mundo, assim como nele, a matéria está em tudo e por toda a parte e não passa de coisa inerte, cega, morta, composta de elementos incapazes de se di­rigirem por si mesmos; que não agem nem pen­sam por impulso próprio e que, nos sendais invisíveis do espaço, tanto como nos canais da seiva ou do sangue, o que aglutina em átomos, dirige as moléculas e conduz os mundos, é uma Força na qual transparece o plano, a vontade, a inteligência, a sabedoria e o poder do seu amor.

2

O CÉU

SUMÁRIO — As harmonias do mundo sideral — Leis de Képler. — Atração universal. — Coordenação dos mun­dos e dos seus movimentos. — A força rege a matéria. — Caráter inteligente das leis astronômicas; condições da estabilidade do Universo. — Potência, ordem, sabe­doria. — Negação ateista, inquinações curiosas ao or­ganizador, objecões singulares ao mecânico. — Será verdade que não existe no parque da Natureza sinal qualquer de Inteligência? — Resposta aos julgadores de Deus.

A contemplação da Natureza oferece ao homem culto, incontestavelmente, inefáveis, particulares en­cantos. Na organização dos seres descobre-Se o in­cessante movimento dos átomos que os compõem, tanto quanto a permuta constante e operante entre todas as coisas.

Justa é a nossa admiração por tudo o que vive na superfície da Terra. O mesmo calor solar, que mantém no estado líquido a água dos rios e dos mares, conduz a seiva à fronde das árvores e faz pulsar o coração dos abutres e das pombas. A luz que espalha a viridência nos pra­dos, e nutre as plantas com um sopro impalpável, também povoa a atmosfera de maravilhosas bele­zas aéreas. O som que estremece a folhagem, can­ta na orla dos bosques, ruge nas plagas marinhas. Em tudo vemos, enfim, uma correlação de forças físicas, que abrange num mesmo sistema a tota­lidade da vida sob a comunhão das mesmas leis. Ora, quanto mais fervente for a nossa admiração pelo radiamento da vida planetária, mais extensiva e aplicável se tornará, em relação aos mundos que aí fulguram acima de nossas cabeças, no cenáculo das noites silenciosas. Esses mundos longínquos que, qual o nosso, se embalam no mesmo éter, sob o império das mesmas energias e das mesmas leis, são igualmente sedes de atividade e vida. Podería­mos apresentar este grandioso e magnífico espetáculo da vida universal como eloquente testemunho da inteligência, sabedoria e onipotência da causa anônima, que houve por bem reverberar, dos pri­mórdios da Criação, o seu mágico esplendor no espelho da Natureza criada. Mas, não é sob este prisma que desejamos aqui desdobrar o panorama das grandezas celestes. Apenas, para o teatro das leis que regem o nosso mundo, queremos convocar os negadores da inteligência criadora.

Se, abrindo os olhos diante desse espetáculo, eles persistirem em sua negativa, já não teremos como nos eximir de responder-lhes, em consciência, que tàmbém duvidaremos de suas faculdades men­tais. Porque, para falar com franqueza, a inteli­gência do Criador nos parece infinitamente mais curta e incontestável que a dos ateus franceses e estrangeiros.

E, como o método positivo consiste em não julgar antes de observar os fatos, corre-nos o de­ver que examinar primeiro os fatos astronômicos de que falamos, e depois da interpretação com que se satisfazem os nossos antagonistas. Se, depois disso, essa sua interpretação satisfizer, subscreveremos de antemão as suas doutrinas; mas, se, ao contrário, revelar-se insensata, temos, como dever de honra e por amor à verdade, de a desmascarar e entregar ao apupo da platéia.

Esqueçamos por momentos o átomo terrestre, no qual o destino nos fixou por alguns dias. Que o nosso Espírito se lance ao espaço e veja rolar diante de si o mecanismo gigantesco — mundos e mundos, sistemas após sistemas, na infinita su­cessão de universos estrelados. Ouçamos, com Pi­tágoras, as harmonias siderais nas amplas e céleres revoluções das esferas e contemplemos, na sua realidade, esses movimentos simultâneamente vertiginosos e regulares que enfeudam as terras celestes nas suas órbitas ideais. Observamos que a Lei suprema, universal, dirige estes mundos. Em torno do nosso sol, centro, foco luminoso, elétrico, calo­rífico do sistema planetário, giram os planetas obe­dientes. Os mais extraordinários labores do espí­rito humano deram-nos a fórmula da lei, que se divide em três pontos fundamentais, conhecidos em Astronomia por leis de Képler, operoso sábio que a descobriu graças ao seu gênio, como à sua pa­ciência, e que discutiu opiniaticamente, 17 anos, as observações do seu mestre Ticho-Brahe, antes que distinguisse sob o véu da matéria a força que a rege.

Esses três pontos são:

1º — Cada planeta descreve em torno do Sol uma órbita elíptica, na qual o centro do Sol ocupa sempre um dos focos.

2º — As áreas (ou superfícies) descritas pelo raio vector (4) de um planeta em redor do foco solar são proporcionais aos tempos que levam a descrevê-las.

3º — Os quadrados dos tempos de revolução planetária, em torno do Sol, são proporcionais aos cubos dos grandes eixos orbitários.

A síntese destas leis integra o grande axioma que Newton foi o primeiro a formular na sua obra imortal sobre os Princípios.

Neste livro, ensina-nos ele — como bem adver­te Herschel — que todos os movimentos celestes são consequências da lei, isto é: — que duas mo­léculas materiais se atraem na razão direta do vo­lume de suas massas e na inversa do quadrado das distâncias.

(4) Assim se denomina a linha Ideal que liga um pla­neta ao Sol.

Partindo deste princípio, ele explica como a atração exercida entre as grandes massas esféricas, componentes do nosso sistema, é regulada por uma lei cuja expressão é exatamente idêntica, como os movimentos elípticos dos planetas ao redor do Sol e dos satélites ao redor dos planetas, tal como os determinou Képler, se deduzem consequentes ne­cessários da mesma lei, e como as próprias órbitas dos cometas não são mais que casos particulares dos movimentos planetários. Passando em seguida às aplicações difíceis, faz-nos ver como as desigual­dades tão complicadas do movimento lunar pren­dem-se à ação perturbadora do Sol, assim como se originam as marés da desigualdade de atração que esses dois astros exercem sobre a Terra e o oceano que a rodeia. E demonstra-nos, enfim, como tam­bém a precessão dos equinócios não passa de con­sequência necessária da mesma lei.

Pois é à execução dessas leis que está confia­da a harmonia do sistema planetário; é a elas que os mundos devem os seus anos, as suas estações, os seus dias; é nelas que haurem a luz e o calor distribuídos em diversos graus pela fonte cintilan­te; é delas que derivam a eclosão da vida, a forma e ornamento dos corpos celestes. Sob a ação incoer­cível dessas forças colossais, os mundos se trans­portam no espaço com a rapidez do relâmpago e percorrem centenas de mil léguas por dia, sem pa­rar, seguindo estritamente a rota certa e prêvia­mente traçada por essas mesmas forças.

Se nos fora dado libertar-nos um momento das aparências, sob cujo império nos acreditamos em repouso no centro do Universo, e se pudéramos abranger num olhar de conjunto os movimentos que animam todas as esferas, haveríamos de ficar surpreendidos com a imponência desses movimen­tos. Aos nossos olhos maravilhados, enormíssimos globos turbilhonariam rápidos sobre si mesmos, pro­jetados no vácuo a toda a velocidade, quais gigan­tescas balas que uma força de projeção inimagi­nável houvesse enviado ao Infinito. Admiramo-nos desses comboios ferroviários que devoram distân­cias como dragões flamantes e, no entanto, os glo­bos celestes, mais volumosos que a nossa Terra, deslocam-se com uma rapidez que ultrapassa a das locomotivas, quanto a destas ultrapassa a das tar­tarugas. A terra que habitamos, por exemplo, per­corre o espaço com a velocidade de seiscentos e cinquenta mil léguas por dia. Rodeando esseS mun­dos, veríamos satélites em circulação e a distâncias diferentes, mas adstritos e submissos às mesmas leis. E todas essas repúblicas flutuantes inclinam os pólos alternativamente para o calor e para a luz, a gravitarem sobre o próprio eixo, apresentan­do, cada manhã, os diferentes pontos de sua super­fície ao beijo do astro-rei. Tiram, assim, da com­binação mesma dos seus movimentos, a renovação da beleza e da juventude; renovam a fecundidade no ciclo das primaveras, dos estios, dos outonos e dos invernos; coroam de frondes as montanhas onde o vento suspira; refletem no espelho dos lagos a magia de suas paisagens; envolvem-se, às vezes, na lanugem atmosférica, fazendo dela um manto protetor, ou transformando-a em cadinho retumbante de raios e granizos; desdobram por superfícies imensas a força das ondas oceânicas, que, também por si, se alteiam sob a atração dos astros, qual seio ofegante; iluminam crepúsculos com os matizes policrômicos dos ocasos comburentes, e fre­mem nos seus pólos às palpitações elétricas despe­didas dos leques de boreais auroras; geram, emba­lam e nutrem a multidão de seres que as povoam; e renovam o filão da vida desde as plantas fósseis, do passado, até o homem que pensa e sonda o fu­turo. Todos estes mundos, todas estas moradas do espaço, departamentos da vida, nos apareceriam quais naves bussoladas, conduzindo através do ocea­no, celeste tripulantes que não têm a temer escolhos nem imperícias de comando, nem falta de combustível, nem fome, nem tempestades.

Estrelas, sóis, mundos errantes, cometas fúl­gidos, sistemas estranhos, astros misteriosos, todos proclamariam harmonia, seriam todos os acusado­res de quantos decretam não passar a força de cego atributo da matéria. E quando, acompanhando as relações numéricas que ligam todos esses mundos ao Sol — qual coração palpitante de um mesmo ser — houvermos personificado o sistema planetá­rio do próprio Sol — foco colossal que a todos absorve na sua esplendente e poderosa personali­dade — então, não tardaremos a ver nesse Sol, com o seu sistema, em trânsito pelos espaços infi­nitos, o atestado de que todas as estrelas são outros tantos sóis, cercados, como o nosso, de uma família que deles recebe luz e vida, e veremos que todas as estrelas são guiadas por movimentos di­versos e que, muito longe de ficarem fixas na imensidade, caminham com velocidades terrifican­tes, ainda mais céleres que as retro mencionadas.

Só então, o Universo inteiro brilhará aos nos­sos olhos sob o verdadeiro prisma, e as forças que o regem proclamarão, com a eloquência maravi­lhosamente brutal de fato concreto, o seu valor, a sua missão, autoridade e poder. Diante desses movimentos indescritíveis — inconcebíveis mesmo, poderíamos dizer — que transportam pelos deser­tos do Infinito essa infinidade de sóis; diante dessa catadupa de estrelas do Infinito; diante dessas ro­tas, dessas órbitas imensuráveis, seguidas com a passividade dos ponteiros de um relógio, da maçã que cai, ou da roda do moinho obedientes à lei da gravidade; diante da submissão dos corpos celestes a regras que a mecânica e as fórmulas ana­líticas podem traçar de antemão, bem como da con­dição suprema de estabilidade e duração do mundo, quem ousará negar que a Força não governe, não dirija soberanamente a Matéria, em virtude de uma lei inerente ou afeta à própria Força? Quem pre­tenderá subordinar a Força à cegueira constitu­cional da Matéria e afirmar, à maneira retrógrada dos peripatéticos, que ela não passa de atributo oculto, reduzindo-a ao papel de escrava, quando ela se impõe de tal arte e reivindica credenciais de absoluta suserania? Que Deus tal nunca per­mita. Que sucederia se ela, a Força, deixasse de agir e abdicasse o seu cetro? A só imaginação des­ta hipótese dissolve a harmonia do mundo, e o faz esboroar-se num caos informe, digno resultado, aliás, de tão insensata tentativa.

Leis universalmente demonstradas proclamam a unidade do Cosmos e evidenciam que o mesmo pensamento que regula as nossas marés oceânicas preside às revoluções siderais das estrelas duplas, nos latifúndios do céu. Tais duplos, triplos, quá­druplos sóis giram em conjunto, ao redor do cen­tro comum de gravidade, obedecendo às mesmas leis que regem o nosso sistema planetário. Nada mais próprio do que esses sistemas para nos dar uma idéia da escala da construção dos mundos — diz John Herschel.

Quando vemos esses corpos imensos, encasala­dos, descreverem órbitas enormes, cujo percurso lhes demanda séculos, somos levados a admitir si­multâneamente que eles preenchem, na Criação, uma finalidade que nos escapa e que atingimos os limites da humana inteligência para confessar a nossa inópia e reconhecer que a mais fecunda imaginação não pode ter do mundo uma concepção aproximativa sequer, da grandeza do assunto.

Os astrônomos que humildemente remontam ao princípio ignoto das causas não podem eximir-se de considerar nas mãos de um ser inteligente essa atração universal, que rege inteligentemente o Cos­mos. “A lei de gravitação — dizia o saudoso di­retor do Observatório de Toulouse (5) — enfeixa implicitamente as grandes leis que regem os mo­vimentos

(5) F. Petit — Traité d’Astronomie, 24º et dernlère leçon.

celestes, e, por uma dessas coincidências notáveis que são o mais seguro índice da verdade — longe de temer as exceções aparentes, as perturbações dos movimentos normais, antes delas ex­trai as mais brilhantes confirmações. Assim é que vemos os geômetras modernos explicarem a pre­cessão dos equinócios pela combinação da força centrífuga, oriunda da rotação da Terra, com a ação do Sol sobre o nosso menisco equatorial. As­sim é que vemos, ainda, explicar-se a nutação por uma influência análoga, da Lua, sobre a luminescência mesma da Terra e, mais: — as atrações planetárias, a oscilação da eclíptica e do movimento do apogeu solar; do retardamento de Júpiter quan­do Saturno se acelera, e vice-versa, quando a ace­leração se dá em Júpiter, etc. Finalmente, é assim que sabemos porque, sob a influência solar, a mé­dia do nosso movimento terráqueo se vai acele­rando de século em século e deverá diminuir mais tarde, porque a linha dos nós da Lua perfaz a sua revolução em movimento retrógrado dentro de de­zoito anos, e porque o perigeu lunar se completa em pouco menos de nove anos, etc. (6)

Não somente, em resumo, este princípio notá­vel explica todos os fenômenos conhecidos, como permite, muitas vezes, descobrir efeitos que a ob­servação não indica, de modo que se poderia es­tabelecer a priori, pela análise, a constituição do mundo e não nos socorrermos da observação senão em alguns pontos de referência, de que se utilizam os geômetras sob a denominação de constantes,

(6) Curioso é que Clairaut, tendo encontrado em seus cálculos um período de dezoito em vez de nove anos, de­clarasse insuficiente, para este caso, a gravitação inversa de quadrado da distância, e que fôsse precisamente um naturalista, Buffon, que, persuadido de que a Natureza não podia ter duas leis diferentes, insistisse com o geômetra para que revisse os seus cálculos. Clairaut, após um novo exame, reconheceu que a primeira assertiva estava errada, pois que havia negligenciado, nas séries, termos indispensáveis.

nos seus cálculos. — Tudo pois, no Universo, mar­cha por efeito de uma organização admirável de simplicidade, visto que os movimentos, aparente­mente mais complicados, resultam da combinação de impulsos primitivos com uma força única agindo sobre cada molécula material; força única, com a qual, e consequentemente, haja de ocupar-se, por assim dizer, o Criador. Mas, também, que desen­volvimento de poder não requer a produção incessante dessas forças, cuja existência não é essen­cialmente inerente à matéria! Oh! como deve ser vigilante a mão eterna que sabe, a cada momento, renovar tais forças, até nos mais impalpáveis áto­mos dos inumeráveis astros destinados a povoar as regiões de infinita imensidade. Não será o caso de dizer com o rei-profeta, inclinando-Se perante tanta grandeza: Coeli enarrant gloriam Dei?

A partir de Newton e Képler, sabemos que o Universo é um dinamismo imenso, cujos elemen­tos em sua totalidade não cessam de agir e reagir na infinidade do tempo e do espaço, com atividade indefectível. Esta a grande verdade que a Astro­nomia, a Física e a Química nos revelam nas impo­nentes maravilhas da Criação.

Tal o sublime espetáculo do mundo, tais as leis constitutivas da sua harmonia. Ora, qual a perfí­dia de linguagem, ou de raciocínio, que os materia­listas utilizam para traduzir pró domo sua esses fatos e concluírem pela ausência de todo e qualquer pensamento divino?

Eis aqui os argumentos inscritos em letras ber­rantes num catecismo materialista que, por seu co­lorido de Ciência, se tem imposto a muita gente: (7)

“Todos os corpos celestes, pequenos ou gran­des, se conformam, sem relutância, sem exceções. nem desvios, com esta lei inerente a toda a maté­ria e a toda partícula de matéria, como podemos

(7) Büchner — Força e matéria.

experimentar a cada momento. É com uma pre­cisão e certeza matemáticas que todos esses movi­mentos se fazem reconhecer, determinar e predizer. Os espiritualistas vêem nestes fatos o pensamento de um Deus eterno, que impôs à Criação as leis imutáveis de sua perpetuidade. Os materialistas, porém, ao contrário, não vêem nisso senão a prova de que a idéia de Deus não passa de uma pilhéria. Outro fôra o caso, se existissem corpos celestes caprichosos ou rebeldes, se a grande lei que os rege não fôsse soberana. É fácil (diz Büchner) con­ciliar o nascimento, a constelação (?) e o movi­mento dos orbes com os processos mais simples que a matéria de si mesma nos possibilita. A hipó­tese de uma força pessoal criadora é inadmissível. Porquê? Ninguém, jamais, pôde sabê-lo. Os espi­ritualistas admiram o movimento dos astros, a or­dem e harmonia que a eles preside. Ingênuos! No Universo não há ordem nem harmonia e sim, pelo contrário, a irregularidade, os acidentes, a desor­dem, que excluem a hipótese de uma ação pessoal regida pelas leis da inteligência, mesmo humana.”

Ponderemos: Copérnico publicou Revoluções Celestes, após trinta anos de árduos labores; Galileu só depois de vinte anos fecundou a lei do pêndulo; Képler não levou menos de dezessete para formu­lar suas leis e Newton, já octogenário, dizia não ter ainda chegado a compreender o mecanismo dos céus; e, depois disso, vêm propor-nos acreditar que essas leis sublimes e que tudo quanto esses gênios possanteS mal puderam encontrar e formular não revelam no ascendente que as impôs à matéria, uma inteligência sequer igual à do homem!

E o Sr. Renan escreve então esta frase: Por mim, penso não haver no Universo inteligência su­perior à humana. E ousam compadrinhar-se com acidentes que propriamente o não são, para afir­marem que não existe harmonia na construção do mundo.

Que seria, então, preciso para vos satisfazer, senhores criticistas de Deus?

Vamos dizê-lo: primeiro, que não houvesse es­paço (!) ou que esse espaço fôsse menos vasto, visto haver, decididamente, muito espaço no infi­nito: “se houvéramos de atribuir a uma força cria­dora individual (diz Büchner) a origem dos mun­dos para habitação de homens e animais, importaria saber para que serve esse espaço imenso, deserto, vazio, inútil, no qual flutuam planetas e sóis? Por­que os Outros planetas do sistema não se tornaram habitáveis para o homem?” Na verdade, formulais uma pergunta bem simples. E aí temos como esses senhores se dão à fantasia de declarar inútil o es­paço, a querer que todos os globos se comuniquem entre si. O caricaturista Granville já tivera a mes­ma idéia, quando representou num dos seus en­cantadores desenhos os jupiterianos em excursão a Saturno, atravessando uma ponte, de charuto àboca. E o anel de Saturno lá está como um grande alpendre, onde os saturninos vão à noite refres­car-se. Se esse é o desejado universo, cujo primeiro resultado seria imobilizar o sistema planetário; mais avisados andariam os inventores dirigindo-se seria­mente à Escola de Pontes e Calçadas, antes que à Filosofia.

Que esta, na verdade, nada tem com isso.

Se houvesse um Deus — ajuntam —, para que serviriam as irregularidades e desproporções enor­mes de volume e distância entre os planetas e o nosso sistema solar? Porque essa completa ausência de ordem, de simetria, de beleza? Havemos de convir que é preciso ser um tanto pretensioso para admirar cenografias de bastidores teatrais e recusar ao mesmo tempo a beleza e a simetria às obras da Natureza. Parece-nos mesmo que é a primeira increpação que se faz neste sen­tido. De resto, esses senhores não nos oferecem senão negações. Negação de Deus, da alma, do raciocínio e seus poderes, sempre, e em tudo, negação. Isso é o que propriamente lhes concerne, e nada mais. Sua pretensa consciência científica é simples burla. Nossos espirituosos adversários não raro resvalam no plano raso das puerilidades. Um dentre eles adverte que a luz caminha com a velo­cidade de 75.000 léguas por segundo, achando que é pouco e que é ridículo para um Criador o não poder acelerá-la. Outro, acha que a Lua também não gira bastantemente célere. “A Lua — diz o americano Hudson Tuttle — não gira senão uma vez sobre si mesma, enquanto completa a sua re­volução em torno da Terra, de sorte que lhe apre­senta sempre a mesma face. Assiste-nos legítimo direito de perguntar porque, pois se houvesse nisso um Intuito qualquer, a sua execução deveria ser assinalada.” Na verdade, o Criador foi assaz ne­gligente deixando de admitir esses senhores na inti­midade da sua técnica. Já se viu uma coisa assim?

Deixá-los em completa ignorância dos fins que se propôs ao fazer rodar tão lerdamente a nossa amável Luazinha!

Mas, de fato: será que Deus não poderia ter tido melhor conduta a benefício de nossa instrução pessoal? Nós! “Porque, perguntamo-nos ainda (8), a força criadora não gravou em linhas de fogo (certo em alemão) o seu nome no céu? Porque não deu aos sistemas siderais uma ordem que nos desse a conhecer, de maneira evidente, sua Intenção e desígnios?” Que estúpida divindade!

Com efeito, senhores, sois admiráveis e a vossa maneira de raciocinar iguala à vossa ciência, o que aliás não é pouco.

Que pena não terdes vós mesmos construído o Universo! Sim, porque então teríeis prevenido todos estes Inconvementes...

Mas, dizei-me: estais bem certos de conhecer integralmente a matéria para afirmar que ela subs­titui Deus, com vantagem?

(8) Kraft und Steft; 8º.

Será que ela vos explica completamente o es­tado do Universo?

Que respondeis? — Bem duvida, atada não nos é dado saber ao certo porque a matéria tomou tal movimento em tal momento, mas, a Ciência ata­da não dispõe a última palavra e não é impossível que ela nos revele um dia a época em que nasceram os mundos.” Tal a definitiva resposta desses se­nhores. Por ela, ainda se confessam um tanto igno­rantes.

Que sucederá, então, quando se compenetra­rem de que conhecem tudo, em absoluto? Ó Ciên­cia! senão estes os frutos da tua árvore?

Aqui, é bem o caso de confessar, com o próprio Büchner, que a comumente invocada profundeza do espírito alemão, é antes perturbaçãO, que pro­fundeza de espírito. “O que os alemães chamam filosofia — acrescenta o mesmo escritor — não émais que mania de jogar com idéias e palavras, e com o que se atribuem o direito de olhar outroS povos por cima dos ombros.”

Não há sabedoria, inteligência, ordem, harmo­nia no Universo.

Semelhante acusação será mesmo feita a sério?

Por nós, temos que é lícito duvidar.

Em Outubro de 1604, magnífica estrela surgiu de improviso na constelação da Serpente.

Os astrô­nomos ficaram assaz surpresos, por isso que uma tal aparição parecia contrária à harmonia dos céus. As estrelas variáveis ainda não eram conhecidas. Como, pois, nascera aquela? Fortuitamente? En­gendrada ao acaso? Estas as interrogações de Képler, quando sobreveio um pequeno acidente...

“Ontem — disse-o ele —, no curso das minhas elucubrações, fui chamado para o jantar. Minha mulher trousse à mesa uma salada. — Pensas, dis­se-lhe eu, que, se desde os primórdios da Criação flutuassem no ar, sem ordem nem direção, pratos de estanho, folhas de alface, grãos de sal, azeite e vinagre e pedaços de ovo cozido o acaso os juntaria hoje para fazer uma salada? - Não tão boa como esta, seguramente — respondeu-me a bela esposa.

Ninguém ousou considerar a nova estrela como produto do acaso, e hoje sabemos que o acaso não tem guarida no mecanismo dos astros. Képler vi­veu adorando a harmonia do mundo, e só como extravagância admitia dúvidas a respeito. Os fun­dadores da Astronomia — Copérnico, Galileu, Ti­eha-Brahé, Newton, todos se acordam no mesmo culto de Képler (9)

Não são, portanto, os astrônomos que increpam o céu de falta de harmonia.

Ó mundos esplendorosos! sóis do Infinito, e vós, terras habitadas que gravitais em torno des­ses focos brilhantes, cessai o vosso movimento harmonioso, sustai vosso curso. A vida vos irradia da fronte, a inteligência mora em vossas tendas, e os vossos campos, recebem, dos multifários sóis que os iluminam, a seiva fecunda das existências. Sois levados, no infinito, pela mesma soberana mão que sustenta o nosso globo, mercê da suprema lei que inclina o gênio à adoração da grande causa. Daqui, seguimos os vossos movimentos, mau grado às inomináveis distâncias que nos separam e observamos que esses movimentos são regulados, qual os nos­sos, pelas três regras que a genialidade de Képler viugou formular. Do fundo abismal dos céus, vós nos ensinais que uma ordem soberana e universal rege os mundos. Vós nos contais a glória de Deus em termos que deixam a perder de vista os com que a proclamava o rei-profeta, escreveis no céu o nome desse ente desconhecido, que nenhuma cria­tura pode sequer pressentir. Astros de movimentação

(9) Quanto mais profunda o homem os segredos da Natureza, mais se lhe desvenda a universalidade do plano eternal. “Si stelles, fixae, diz Newton, (Phil. nat Principia math, Scholgen) sint centra similium systematum, hoec omnia simili consilio constructa suberunt uniuns dominio”. — Cf. também Képler, Harmonices Mundi.

maravilhosa, gigantescos focos da vida univer­sal, esplendores do céu! — vós nos fazeis genufletir, como crianças, à vontade divina, e os vossos ber­ços balançam confiantes na imensidade, sob o olhar do Onipotente. Percorreis humildemente a rota a cada qual traçada, ó viajores celestes! e desde os mais remotos séculos, desde as idades inacessíveis em que saístes do primitivo caos, eis-vos manifes­tando a previdente sabedoria da lei que vos conduz... Insensatos! massas inertes, globos cegos, brutos notívagos, que fazeis? Parai, cessai com esse eterno testemunho...

Detende o turbilhão colossal dos vossos cur­sos múltiplos. Protestai contra a força que vos avassala. Que significa essa obediência servil? En­tão, filhos da matéria, não será ela a soberana do espaço? Dar-se-á que haja leis inteligentes? Forças diretoras? Nunca, jamais. Laborais num erro in­signe, ó estrelas do Infinito! sois vítimas do mais ridículo ilusionismo...

Escutai, pois: no fundo dos vastos desertos siderais, dormita obscuro um pequenino globo des­conhecido. Não tendes acaso percebido, uma que outra vez, entre as miríades de estrelas que bran­queiam a Via-Láctea, uma estrelinha de ínfima grandeza?

Pois bem, essa estrelinha, como vós, é também um sol e em torno dele rolam algumas miniaturas de mundos tão pequeninos que rolariam quais grãos de areia, na superfície de um de vós. Ora, sobre um dos mais microscópicos planos desses micros­cópicos mundículos, há uma raça de racionalistas e, no seio da raça, um núcleo de filósofos que aca­bam de declarar positivamente, é magnificências! — que o vosso Deus não existe.

Soberbos pigmeus, levantaram-se na ponta dos pés, pensando ver-vos assim de mais perto. Eles vos acenaram para que vos detívésseis e proclama­ram, em seguida, que os ouvísseis e que toda a Natureza estava com eles. Alto e bom som, proclamam-se os intérpretes únicos dessa Natureza imensa. A lhes darmos crédito, pertence-lhes, doravan­te, o cetro da razão e o futuro do pensamento humano está em suas mãos. Firmemente convencidos estão eles, não só da verdade, mas, sobretudo, da utilidade de sua descoberta e da benéfica influência resultante para o progresso desta pequena humanidade. Ao demais, fizeram constar que todos quantos lhes não compartilhassem a opinião, esta­vam em contradita com a ciência natural, e que a melhor qualificação cabível a esses dissidentes retardatários é de ignorantes obcecados. Não vos exponhais, portanto, a serdes tão desfavoravelmente julgadas por esses senhores, é portentosas es­trelas!

Procedei de maneira a distinguir o nosso im­perceptível sol, o nosso átomo terrestre, a nossa vermínea racionalidade e, aderindo a esta declara­ção capital, paralisai o mecanismo do Universo e com ele a dimensão e harmonia; substitui o movi­mento pelo repouso, a luz pela treva, a vida pela morte e, depois, quando toda a capacidade intelec­tual for aniquilada, todo o idealismo banido da Natureza, suprimida toda a lei, atrofiada toda a força, o Universo se pulverizará, vós vos disper­sereis em pó no bojo da noite Infinita, e se o áto­mo terrestre ainda subsistir, os senhores filósofos, últimos viventes, estarão satisfeitos. Não mais se poderá dizer que haja inteligência na Natureza.

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A TERRA

SUMÁRIO — Lei das combinações químicas. — Proporções definidas. — Do infinitamente pequeno e dos átomos. — Circulação molecular sob a ação das forças físico-quimicas. — A Geometria e a Álgebra no reino Inor­gânico. — A estética das ciências. — O número tudo rege. — Harmonia dos sons. — Harmonia das cores. —Importância da lei; menor importância da Matéria, sua inércia. — O primeiro surto da força orgânica no reino vegetal.

Os mesmos argumentos que tiramos do pano­rama do universo sideral e da inteligência da me­cânica celeste, por demonstrar o ascendente da for­ça sobre a matéria, podem colher ao exame dos corpos terrestres. Lá, era o hino do infinitamente grande; aqui, a minudência do infinitamente pe­queno. A força rege idênticamente os movimentos atômicos e as órbitas imensas das esferas siderais. Muda de objeto, muda de nome na classificação dos homens, mas não deixa de ser sempre a mes­ma força, isto é: — a atração universal. Chamam-lhe coesão, quando grupa os átomos que consti­tuem as moléculas, e gravitação, quando Impulsa os astros em torno do centro comum de sua gra­vidade. O nome humano não altera, porém, o fato físico.

As moléculas, de constituição substancial, são formadas por uma reunião geométrica de átomos tomados entre os corpos em Química chamados simples. Cada molécula é um modelo de simetria e representa um tipo geométrico. Assim, por exem­plo, a molécula de ácido sulfúrico mono-hidratado é um sólido geométrico, regular, um heptaedro de base quadrada, composto de 7 átomos SH2O4. Os corpos simples, para formar os compostos, não se podem combinar senão em números proporcionais, determinados e invariáveis. Sabemos que se designam sob o nome de equivalentes os números que exprimem quantidades ponderáveis dos diver­sos corpos suscetíveis de entrarem, elas ou seus. múltiplos, nas combinações químicas e aí se substi­tuirem mütuamente, para formar compostos quimi­camente análogos.

Cem partes de oxigênio, em peso, combinam-se, por exemplo, com 12,50 de hidrogênio, para formar a água. Esta será sempre, sempre composta nessa proporção e ninguém poderá, absolutamente, jun­tar à combinação da molécula dágua uma partícula a mais de qualquer dos componentes. A água for­mada pela combustão de uma chama é, idêntica-mente, a mesma das fontes e dos rios. Do mesmo modo, 100 partes de oxigênio se combinarão com 350 de ferro para formar o protóxido de ferro. Regras são essas, absolutas, às quais a matéria é forçada a obedecer. A Natureza tem horror ao acaso, tanto quanto ao vácuo, como se dizia ou­trora. E não só esses equivalentes representam numericamente todas as combinações de corpos com o oxigênio, como todas as desses corpos entre si; de modo que, em nosso exemplo, se o ferro se combinar com o hidrogênio, será sempre na pro­porção de 350 (equivalente do ferro) para 12,50 (equivalente do hidrogênio). De resto, todas essas combinações obedecem a. regras geométricas e a cristalização dos corpos pode sempre ser levada a um dos seis tipos fundamentais: — o cubo, os dois prismas retos, o ronbóide e os dois prismas oblí­quos.

Para explicar não apenas as combinações, mas também todos os movimentos múltiplos que se ope­ram nas transformações incessantes da matéria, nos fenômenos de contração e dilatação, na mani­festação das diversas propriedades dos corpos, admite-se que os átomos não se tocam, ainda nos corpos mais densos e mais sólidos, que estão iso­lados entre si e que, em razão de sua pequenez, os intervalos que os perméiam guardam a relati­vidade, proporcionalmente exata, com os dos cor­pos celestes. Finalmente, assim como os corpos celestes se movem em torno uns dos outros, sem por isso deixarem de estar unidos num elo solidá­rio, assim também, os átomos oscilam em torno de sua respectiva posição, sem se afastarem dos limi­tes regulados pela coesão ou pela afinidade mo­lecular. Entre o mundo das estrelas e dos áto­mos não há diferença essencial. Engrossai esse cristal, essa simples molécula, suponde-a desenvol­vendo-se a ponto de atingir o volume do sistema planetário e mais — de uma nebulosa, e tereis um verdadeiro sistema, com suas forças e movimentos. Se, ao contrário, supuserdes que o sistema plane­tário se contrai, que todas as distâncias se encurtam, que todos os corpos que o integram diminuem e chegam, finalmente, às proporções de um agre­gado químico, tereis regressado ao microcosmo. Além disso, as medidas expressivas do infinitamen­te grande, ou pequeno, estão em nós e não na Na­tureza, de vez que tudo referimos a nós, como a um ponto de comparação. As noções de grandeza são puramente relativas.

A Natureza não tem essas maneiras de ver.

Os fenômenos do calor, da luz, do som, do magnetismo, explicam-se por esta concepção dos movimentos atômicos. Sob a influência dessas for­ças exteriores, as moléculas se retraem ou se dila­tam, e modificam seus movimentos, tal com fazem os mundos precipitando o curso no perifélio, e re­tardando-o nas longínquas regiões do afélio. Quan­do, por um choque, produzimos vibrações num cor­po sonoro, suas moléculas agitam-se em cadência, seguindo o ritmo de sua harmonia. Ora, esses áto­mos são de uma pequenez inexprimível. Calculou-se que o número de átomos encerrados num minúsculo cubo de matéria orgânica do tamanho de uma cabeça de alfinete, deveria atingir a cifra inconce­bível de oito sextilhões, isto é, 8 seguido de 21 zeros. Suposto quiséssemoS proceder à contagem, na proporção de 1.000 por segundo, haveríamos de viver duzentos e cinquenta mil anos para com­pletá-la!

Não o vingaríamos, portanto. Mas, seja como for, a substância dos corpos é um pequeno mundo, um mundo analítico, no seio do qual o infinita­mente pequeno é regulado por leis tão rigorosas quanto as do infinitamente grande, o sideral. Quan­do sabemos que uma polegada cúbica de trípole contém quarenta mil milhões de gálios fósseis; quando imaginamos que na classe dos infusórios o microscópio nos faculta distinguir vibriões cujo diâmetro não excede um milésimo de milímetro, e que esses minúsculos seres se movem nágua, ágeis, providos de aparelhos de locomoção, de músculos e de nervos; que se alimentam e possuem vasos de nutrição; que procuram, perseguem, combatem a presa nos abismos da gota dágua, com veloci­dade e força comparáveis a de um cavalo a galope; quando consideramOS, enfim, que esses pequeninos seres são providos de órgãos sensitivos, já nos não custa crer que as moléculas de gelatina e albu­mina, que os constituem, são de uma tenuidade inimaginável, e que os átomos componentes se integram sem metáfora, em nossa idéia do infinita­mente pequeno. Ora, esses átomos não se alteram, são invariáveis e imutáveis; as moléculas dos corpos compostos em formação, das quais se encon­tram eles geometricamente associados, não mudam mais, ainda que passando de um ser para outro. Pela troca perpétua, operante em todos os seres da Natureza e que a todos os encadeia sob o im­pério de uma comunhão substancial, pela comuni­cação permanente das coisas entre si, da atmos­fera com as plantas e todos os seres que respiram, das plantas com os animais, da água com todas as substâncias organizadas, pela nutrição e assi­milação que perpetuam a cadeia das existências, as moléculas entram nos corpos e deles saem, mudam de proprietário a cada instante, mas conservam essencialmente a sua natureza intrínseca. Reconhe­cemos, com os nossos adversários, que a molécula de ferro não varia, quer quando incorporada ao meteorito percorre o Universo, quer quando retine no trilho ou na roda do vagão, ou ainda quando, em glóbulo sanguíneo, reponta à fronte do poeta. Qualquer que seja, pois, o habitáculo transitório das moléculas, elas conservam a sua natureza e propriedades essenciais. Os átomos são os infini­tamente pequenos, sempre separados entre si e, to­davia, encadeados por essa mesma força invisível, que retém as esferas nas suas órbitas. Toda ma­téria, orgânica ou inorgânica (visto ser idêntica) obedece primacialmente a essa força. Suas míni­mas partículas são com astros no espaço, atraem-se e repelem-se por seus respectivos movimentos. Sob o véu dessa matéria, que se nos figura pesada e densa, devemos, portanto, lobrigar a “força”, que a avassala e rege o mineral, pesa os elementos, ordena as combinações, traça regras absolutas e, governando discricionàriamente, faz dela uma es­crava imbele, maleável e submissa às leis prinhí­genas que consagram a estabilidade do mundo. É indubitável que os estados da matéria são regulados por leis. Já admirastes, alguma vez, os processos característicos da cristalização? Nunca examinastes ao microscópio a formação das estre­las de neve e das moléculas cristalinas de gelo? Nesse mundo invisível, como no universo visível, cada movimento, cada associação se efetua sob a direção de uma lei. É sempre o mesmo ângulo, as mesmas linhas e sucessões. Jamais as leis huma­nas lograram obediência tão absolutamente passiva.

Nunca geômetra algum construiu figura tão perfeita qual a que naturalmente reveste a mais insignificante molécula.

As leis da Natureza regem o movimento dos átomos nos seres vivos, como nos inorgânicos: a mesma molécula passa sucessivamente do mineral ao vegetal e ao animal, neles incorporando-se se­gundo as leis que organizam todas as coisas.

A molécula de ácido carbônico, a exalar-se do peito opresso do moribundo em seu leito de dor, vai incorporar-se à flor do jardim, à relva do pra­do ao tronco da floresta. A molécula de oxigênio que se desprende dos últimos ramos do anoso car­valho, vai incorporar-se ao cabelinho louro do re­cém-nascido, no seu berço de sonhos. Nada pode­mos mudar na composição dos corpos. Nada nasce, nada morre. Só a forma é perecível. Só a substância é imortal. Constituímo-nos da poeira dos antepassados, os mesmíssimos átomos e moléculas.

Nada se cria, nada se perde.

Uma vela que ardeu completamente, deixa de existir para os olhos vul­gares e nem por isso deixará de existir integral­mente. Se lhe recolhêssemoS as substâncias con­sumidas, reconstitui-la-íamos com o seu peso ante­rior. Os átomos viajam de um a outro ser, guiados pelas forças naturais. O acaso não colhe nessas combinações e casamentos. E se nesta permuta perpétua dos elementos constitutivos de todos os corpos a Natura, bela e radiante, subsiste em sua grandeza, esta potência peculiar à Terra é unicamente devida à previdência e rigor das leis que organizam essas transmigrações e etapas atômicas, de guarnição em guarnição. Se a organização mi­litar da França se atribui a um concelho inteligente, parece-nos que a organização química dos seres, aliás muito superior àquela, atesta um plano inteligente e um pensamento diretor.

E contudo, o papel que a lei desempenha no Universo anda por aí relegado à categoria de fá­bula pelo autor da Resposta às Cartas de Liebig. Em sua opinião, o grande químico não tem motivos para dizer que foi a lei que tudo construiu (10).

(10) Chemische Brief, página 32.

A lei não passaria de uma idéia geral, induzida de caracteres sensíveis; e como se não encontra a lei senão depois das experiências, seguir-se-ia que ela na realidade não existe!

“Enquanto acreditarem que a lei fêz o mundo, em vez de a considerarem como resultante dele e por ele iluminando-se, a inteligência humana dor­mirá nas trevas e a idéia há-de antepor-se à ex­periência.

Para exilar da Natureza o espírito, particularmente o espírito geométrico, é preciso recusar à evidência o papel representado pelo Número, e obs­tinar-se a não ouvir a universal harmonia profu­samente espalhada nas obras criadas. A harmonia não é tão só a fraseologia musical escrita em par­tituras e executada por instrumentos humanos; não consiste apenas nessas obras-primas a justo título admiradas e afloradas nos belos dias de inspira­ção, dos cérebros dos Mozart e dos Beethoven. A harmonia enche o Universo com os seus acordes. Antes de tudo, diga-se, a música propriamente dita é, de si mesma e por inteiro, formada pelo número, cada som é uma série de vibrações em quantidade definida, e as relações harmônicas dos sons não são mais do que relações numéricas. A gama éuma escala de cifras; e os tons, maior e menor, são criados pelos números, assim como os acordes não passam, também eles, de uma combinação al­gébrica. Depois, como a provar a exclusiva sobe­rania do número, vemos que todo compositor há-de obedecer ao compasso. Estas observações fun­damentais, sugeridas pelo estudo do som, têm apli­cação não menos valiosa no concernente à luz.

Assim como os sons derivam do número de vibrações sonoras, assim as cores derivam das vibrações luminosas. O colorido de uma paisagem vale por uma espécie de música. A verdura dos prados é formada pelo número, qual o tema de uma melodia; a rosa que se desbotou é o centro de uma esfera de vibrações luminosas, constituindo o matiz aparente, e o rouxinol que trina em carí­cias, projeta no ar as vibrações sonoras caracte­rísticas do seu tônus. Todo movimento é número, e todo o número é harmonia.

Não há dúvida de que existe, neste estado de coisas, uma parte reservada às leis fisiológicas da nossa organização. Os sons audíveis começam nas vibrações lentas e acabam nas agudas, que o ouvido pode captar, sejam de 16 a 36.850 por segundo (11).

As cores visíveis começam nas vibrações lentas e extinguem-se com as mais rápidas que a nossa retina possa apreender, ou sejam, de 458 trilhões por segundo, a 727 trilhões por segundo (12).

Mas, não haveria como daí concluir que haja nisso apenas uma relação fortuita entre a nossa organização e os movimentos exteriores.

Sons e cores estendem-se abaixo e acima dos limites de nossa organização, igualmente subordi­nados a regras numéricas. Há sons que o ouvido humano não pode captar, assim com há cores que nos escapam à retina. E no próprio limite de nos­sas percepções. a relação entre estas e os nossos sentidos procede, ao menos em nossa opinião, do fato de não ter sido a construção do nosso orga­nismo alheio ao número — o elo universal.

Também a forma, em suas dissimulações mais ondeantes, pertence ao número, pois toda figura é determinada pelo algarismo.

O sentido inato da estética que nos inspira, busca as formas mais puras. O círculo nos encanta com a sua curva graciosa.

(11) Segundo Deprez. As experiências de Savart limitam os sons graves a 8 vibrações duplas por segundo, e a 24000 os agudos.

(12) Tomamos aqui por limites o número de ondulações do infra-vermelho ao ultra-violeta. Além deste, nosso globo visual não pode perceber a luz, que sem embargo, ainda existe.

A Geometria, em nossas construções, não desgarra por veredas arbitrárias. A Arquitetura apóia-se, conforme as suas aplicações, sobre a forma estética do nosso pensamento, ainda que por vezes suceda (como em nossa época por exemplo) não ter estilo algum.

Até nas figuras simbólicas das tradições religiosas, desejamos simetria, simulando-a às vezes em aparente desordem. Em contemplar um emaranhado de coisas, a vista logo se nos fatiga, ao passo que se embevece e repousa, fixando as danças de movimentos melodiosos. Característica peculiar do reino mineral, a simetria torna-se menos severa ao graduar-se nos reinos orgânicos.

Os vegetais modelam-se pelo seu tipo ideal, mas deixam uma certa latitude às forças que os modificam, e assim é que crescem em duas direções opostas; as folhas sucedem-se no seu ciclo, em torno da haste, em número característico; suas flores não escapam à ordem numérica. Número e forma são as bases da classificação vegetal. Os animais, com o manifestarem o tipo de cada espécie, dão à simetria o seu papel e o próprio homem éuma unidade composta por duas metades simetricamente soldadas.

Acima de todas essas formas particulares, so­berana se nos manifesta a unidade de plano.

Nas espécies mais diferentes encontram-se analogias sig­nificativas. Nada menos parecido com a mão hu­mana do que a pata do cavalo e, no entanto, se dissecardes a pata, lá encontrareis um rudimento de mão com os dedos soldados.

Assim a ordem, a mesma ordem numérica, im­pera na Terra como nos céus. Não vamos pensar que as harmonias naturais, despercebidas ao ho­mem, hajam de ser ruídos informes e constituam exceção. O vento que suspira entre os cedros e pinheiros; o lamento das vagas na praia arenosa; o zumbido do inseto no âmbito dos bosques; todos os indefiníveis sons que animam a Natureza, são vibrações sonoras, pertinentes ao reinado do nú­mero.

O fato na aparência mais insignificante, tanto quanto o de maior vulto, resulta de leis determi­nadas. Com que direito, pois, ousam declarar os negadores do espírito a materialidade absoluta do Universo? Que pode a matéria só por si? Que será um átomo de oxigênio ou de carbono considerado à revelia de toda e qualquer lei? Em que caos mer­gulhará a Natureza se aniquilardes a força que a mantém? Imaginemos por um momento que o número deixa de existir, e esta só conjectura ani­quila, de pronto, todas as harmonias que acabámos de explanar. Ora, perguntamos: pode a faculdade matemátca pertencer à matéria? Se assim o jul­gala, resta dizer-nos que matéria será essa: oxigê­nio, azoto, carbono, ferro, alumínio. Evidentemente não, pois a lei supera todos esses corpos e é pre­cisamente ela — a lei — que os combina, casa, dissocia, separa, visto que os governa. Que vos resta, então? Pertencerão à matéria o som, a luz, o magnetismo? Mas a experiência vos demonstra o contrário. Nisso, tendes outras tantas modalidades de movimento. Quem determina um dado movi­mento ao som e outro à luz? Quem regula essas forças? Aparentemente, serão elas mesmas, ou uma força superior que as abranja a todas. A matéria não é, em todos seus movimentos, senão o objeto passivo.

Inegável, portanto, que, na Natureza inorgâni­ca, a matéria é escrava e a força é soberana.

Contudo, é precisamente o que põem em dú­vida os nossos campeões do materialismo. Já tive­mos o ensejo de apreciar o valor de seus argu­mentos no que diz com a Natureza inorgânica. Edifiquemo-nos agora, sem tardança, com a manei­ra por que explicam a Natureza orgânica.

Quando queimamos cautelosamente uma planta, não é raro obtermos o resíduo de um esqueleto silicoso correspondente à forma primitiva da haste. É a substância que a constituía, provemente da substância do solo. A planta integral encerra a mais certos corpos determinados por sua natureza: assim, por exemplo, o trigo contém o glúten azo­tado; a videira, cal; a batata, potassa; o chá, mag­nésia; o tabaco, salitre, etc. A cada planta convém uns tantos elementos minerais e a própria planta é que os sabe escolher. O agricultor inteligente adapta a sua lavoura à natureza do terreno e es­colhe os adubos de acordo com as safras que colima. No conhecimento das necessidades de cada espécie está o segredo das searas e dos alqueives. Diante disto, os teóricos de que nos ocupamos só se explicam pela metade. A raiz absorve — dizem — de acordo com as leis fixas de afinidade, os elementoS que lhe jazem em torno. E, como se temessem não ser bem compreendido o papel tão judiciosamente atribuído à tal afinidade eletiva, acres­centam (ver Moleschott) que a planta fabrica por si mesma a massa principal do seu volume. Have­rá, quem, depois de uma tal declaração, ainda se negue a outorgar à força o ascendente diretivo que lhe cabe? Pois há, visto que tudo isso é dito atribuitivamente à matéria. A evaporação que fa­culta às raízes a absorção dos elementos da terra vegetal, dizem, e a afinidade dos líquidos através das paredes celulares que os separam, tais as fa­culdades mestras da matéria, que engendram o crescimento. Eis uma pobre raiz que vegeta no cimo do rochedo: necessita de sombra, de silêncio, de uma certa alimentação de que a separam seixos e calhaus... Examinem-se-lhe OS vagos, mas, enér­gicos desejos: ela procura, coleia, recua, contorna pedras, desce, sobe, lança-se ávida a qualquer pon­to que um quê de instintivo a faz adivinhar, recai por vezes desfalecida, mas logo se reanima de no­vos ímpetos, derruba todos os obstáculos e chega, enfim, à canaã prometida. Desde então aí se fixa, implanta-se e afirma seus direitos de conquista. A árvore mofina que delirava outrora em calafrios de consunção, retoma prestes o vigor natural, bracejando pelo solo os seus ramos luxuriantes. Ou­sar-se-á admitir aqui, mais formalmente ainda do que na cristalização mineral, a inexistência de um princípio inteligente, de uma força orgânica pe­culiar?

Por nós, confessamo-lo sem reservas: na ma­nifestação dessas tendências instintivas saudamos o ser virtual, a força intrínseca do vegetal, que constrange a matéria a obedecer-lhe.

Parece-nos que sois consequentes atribuindo à matéria essa afinidade eletiva (como se a matéria discernisse!), quando nós a inferimos no ser vegetal, que, aflo­rado nas condições mais díspares, sabe adivinhar por toda a parte os elementos necessários à existên­cia da sua espécie.

Ó pretensos sábios! que acreditais fabricar ciência arrastando a inteligência em campo raso de dispautérios, deixai que vos acuse e lastime não terdes sabido ver, nem sentir, os cenários da Na­tureza. O aspecto admirável de uns tantos sítios, nos quais a graça e a beleza se conjugam sob to­dos os prismas; a movimentação da vida, na viridência constante de prados e florestas; a irisação da luz-clara, marchetada de flocos de ouro; o per­fil silencioso das árvores; o espelho translúcido dos lagos que refletem o Sol; o calor primaveril que aquece a atmosfera; o sendal das selvas e o perfume das flores: todas as maravilhas, ternuras, carícias da Natureza ficaram estranhas à vossa inércia. As contemplações desta natureza terres­tre oferecem, contudo, grandes encantos e acarre­tam, por vezes, revelações inesperadas.

Lembro-me e confesso, ainda que possais rir da minha sensibi­lidade — lembro-me, repito, de haver passado ho­ras deliciosas, admirando solitariamente umas quan­tas paisagens. Não há categorizar aqui as impressões de que falo, pois quem tenha olhos de ver, as encontrará por toda parte. O Sol, não posto ainda, mas nublado, iluminava as alturas, colorindo de matizes delicadíssimos e esquisitos as nuvens mais altas, cúmulus louros a vogarem lentos, aci­ma dos círrus argenteados. Um vento suave e in­sensível à superfície do solo balouçava aqueles gru­pos polícromos, nos quais os tons de feérica paleta, do áureo ao róseo, harmonizavam-se no contraste, quais acordes de um coro celestial. A meus pés fremia a onda translúcida do lago imenso, a sumir-se no horizonte longínquo. Profundo silêncio amor­talhava a cena. À beira dágua, não longe, alguns capões de árvores e de arbustos refletiam-se no espelho móbil, com proporções gigantescas. A mas­sa eqüórea refletia simultâneamente a terra e o céu, opondo às luzes de cima as sombras de baixo. Quadro digno dos grandes paisagistas, que costu­mamos admirar nas telas de um Claudio Lorrain e de um Poussin, mas cuja simplicidade inimitável transcende a todo poder imaginativo! Às vezes, o silêncio ambiente era quebrado pelo cincerro dos rebanhos distantes, tangidos ao pastoreio, quando não pelas copias de alados cantores. Diante desse conjunto de tanta beleza, velada embora; de tan­ta vivacidade, apesar de aparentemente morto; de tal eloquência em meio do silêncio, havia um es­plendor tamanho e tão imperioso, que eu me senti penetrado da vida universal, difusa no mesmo ar que respirava por todos os poros. Ela dizia-me que as árvores vivem, que as plantas respiram e So­nham! Dizia-me que no ar e na luz, em que a su­pomos inanimada, ela se eleva e se engrandece para a fase indecisa das primeiras manifestações do ser. Eu bem via, com os olhos do químico, a sucessividade rápida e incessante dos átomos cons­tituintes do corpo, desde a erva tenra até a nuvem. Sabia que um dinamismo grandioso e incoercível lhe põe em circulação turbilhonar as moléculas sim­ples, alternativamente combinadas na sucessão dos corpos.

Contudo, no âmago desse movimento, pressen­tia a força que o acarreta, no fundo dessas aparências admirava a lei diretriz das coisas criadas. Dominado pelo poder mesmo dessas leis, que irra­diam a beleza no espaço com a mesma facilidade com que o lavrador semeia em campo fértil; pro­fundamente emocionado nessa comunhão passagei­ra do meu eu com a vida inconsciente da Natureza, senti-me como que transportado a uma espécie de êxtase, enquanto as imagens aéreas daquele céu magnífico se me refletiam nalma, qual se o fizes­sem na face espelhante de um lago tranqüilo.

É nesses instantes de contemplação, fugazes e indescritíveis, que a idéia estética de Deus me surge mais luminosa e maiormente me avassala. São revelações estas, que não posso exprimir e nem a mim próprio definir, quando me ocorrem. Sinto-me subjugado pela necessidade de reconhecer uma causa para essa beleza, uma causa que não posso nomear, e que, nada obstante, me surge com as características da própria beleza, da bondade, da ternura, do amor e assim também com as do po­der, da magnitude e da dominação. Não é mais, então, pela inteligência, mas pelo coração que me compenetro da existência de Deus. Deverei confessar que me sinto às vezes surpreso e acabru­nhado por uma emoção profunda? Não, por isso que, na opinião dos contraditores, todo sinal de emoção só tem origem na centralidade variável do coração anatômico, ou na secreção da glândula lacrimal, mais ou menos sensível por temperamento e que, portanto, todas as maravilhas aqui expen­didas não passam de cego resultado, baldo de senso, das combinações materiais engendradas pela quí­mica e pela física orgânicas!

“O Deus eterno, onisciente, onipotente, infini­tamente sábio, passou-me ante os olhos — excla­mava Linneu, após seus admiráveis trabalhos de Botânica. — Não o vi face a face, mas o seu re­flexo me saturou o espírito de pasmo e admiração. AcomPanhei-lhe o traço em todas as coisas criadas, e, em todas as suas obras, das menores às maiores, e mesmo nas mais imperceptíveis, quanta for­ça, quanta sabedoria, quanta perfeição indefinível! Observei como os seres animados se superpõem e se encadeiam no reino vegetal, os vegetais por sua vez, nos minerais que jazem nas entranhas do glo­bo, ao mesmo tempo que este globo gravita, num plano invariável, ao redor do sol que lhe deu a vida. Enfim, vi o Sol e todos os astros, todo o sis­tema sideral imenso, incalculável na sua infinitude, moverem-Se no espaço, suspensos no vácuo por um motor primário, incompreensível, o Ser dos seres, o Guia, o Conservador do Universo, Mestre e Ope­rário de toda a obra universal...

“Todas as coisas criadas dão testemunho do poder e sabedoria divinos, ao mesmo tempo que se fazem tesouro e pábulo de nossa felicidade. A uti­lidade que elas têm, testificam a bondade de quem as fêz; a sua beleza demonstra sabedoria, enquanto que por sua harmonia, conservação, proporcionali­dade e inesgotável fecundidade, proclamam a gran­deza do poder divino!

É a isso que quereis chamar — Providência? É efetivamente o seu nome, e não há outro que o seu conselho, para explicar o mundo. Ë, pois, justo acreditar que há um Deus imenso, eterno, incriado, sem o qual nada existe e que tenha. feito e coordenado esta obra universal.

Esse Deus es­capa-se-nos à vista e, não obstante, no-la repleta da sua luz. Só em pensamento podemos aprendê-lo e é neste profundo santuário que se oculta a sua majestade.”

Nossos adversários não compreendem estes ar­roubos dalma. Ao demais, para sentir a poesia das coisas, é preciso, antes de tudo, possuir a poesia dentro de si mesmo, é preciso que a alma entre em vibração. O espírito que se degrada à função de produto químico não é suscetível de emoções que tais.

Por consequência, e já que aqui falamos da estética da Natureza inanimada, notemos de pas­sagem um exemplo da tendência dos nossos quími­cos para estender a todas as coisas o rigorismo de suas concepções. Deixemo-los resvalar do verdadei­ro ideal para um realismo irreal.

O Sr. Moleschott é, sem favor, o apóstolo da realidade físico-química. Diga-se mesmo, de um rea­lismo assaz exagerado. Julgai-o, pois, pela sua ma­neira de poetizar a Natureza.

Gostais, sem dúvida, do brilho das flores, dos seus matizes delicados, dos seus aromas tão sutis? Pois bem: mal podeis imaginar o que sucede quando vos debruçais so­bre uma rosa para, narinas dilatadas, aspirar-lhe a fragrância. Ouçamos o químico:

“Quando respiramos o balsâmico perfume dos prados, não absorvemos mais que verdadeiras subs­tâncias excrementais dos vegetais.

“Seguramente, não temos o direito de nos sur­preender ao vermos coleópteros fimícolas e animais outros, de uma ordem superior, comerem carniça (sic) e excrementos, bem como que todo o reino vegetal viva de excretos dos animais, uma vez que nós também nos deliciamos com substâncias decom­postas por efeito da vida vegetal e cuja origem éanáloga à da urina e das matérias fecais.”

Nunca o suspeitastes? Pois aí tendes uma coi­sa bem séria para as flores e para quantos as estimam e admiram, porque, enfim... (13)

Para retornar ao assunto e terminar pela con­sideração geral da ação da lei no ambiente da Ter­ra, lembremo-nos de que essa ação permanente écondicional à existência do mundo, tanto quanto

(13) Será que esta físico-química não vai muito longe assimilando tão radicalmente funções vegetais e funções animais? Os lírios cândidos e as mimosas violetas em nada se parecem, traço por traço, com os animais peludos dos nossos estábulos; nem o perfume dos goivos se exala, pre­cisamente, do mesmo objeto, que o odor nada equívoco, das pesadas pipas que rolam à meia-noite pelas ruas de Paris. A Química, decerto, não tem falsos decoros e nós queremos admitir que, num capítulo sobre a digestão, o Sr. Moleschott discuta a idéia do Sr. Liebig, de identificar o valor digestivo do alimento pela grossura toda particular dos resíduos da refeição, deixados pelos transeuntes ao longo dos muros. Mas, num capítulo tratando de flores, pensamos não ser necessário exagerar similitudes do reino vegetal e animal para o conseguir. De resto, não passa isto de mera digressão extratextual, para mostrar os adversários sob um aspecto particular. Encerremo-la.

de sua beleza. Quando os corpos vibram, quando a corda ressona ao atritar o arco; quando o sino geme ao toque do badalo, as moléculas se agitam cadenciadas, tal como as esferas no espaço. A harmonia das esferas não é uma frase vã. Ela é efeito de uma força e essa força é a mesma para os dois casos, quer se chame coesão, quando gru­pa moléculas, quer se chame gravitação, quando junge os corpos celestes. Força primordial, ele­mentar, que anima toda substância, ora determi­nando uma simples aproximação molecular, ora su­jeitando-a a diretivas determinadas, segundo as condições em que estejam colocadas. Essa força, podemos denominá-la físico-química. Presto have­mos de verificar a existência de uma força distin­ta, a reger o turbilhão da matéria nos seres vivos. É pelo sistema nervoso que o animal se distingue do mineral e do vegetal. A partir do estado rudi­mentar, onde se apresenta com os zoófitos, até o seu mais completo desenvolvimento na espécie hu­mana, o sistema nervoso é o índice da animalidade e preside aos fenômenos imateriais. Por ele é que percebemos toda e qualquer sensação; é ele que possibilita nossos movimentos voluntários, é por ele, ainda, que manifestamos o pensamento. Elimi­nai os nervos e tereis de fato destruído a sensação. Cortai o fio telegráfico e já não transmitireis o despacho.

Se o nervo ótico paralisar, ainda que intacto o globo ocular, o animal fica cego; as imagens prosseguirão, formando-se na câmara visual, mas insensíveis. O ouvido pode estar perfeitamente são, físicamente constituído para recolher as vibrações sonoras e, no entanto, não haverá sons perceptí­veis, desde que lá não exista o nervo acústico para os captar e transmitir ao cérebro e também que haja um cérebro vivo para os receber.

É, pois, de cérebro e nervos que se utiliza a força que percebe e julga.

No reino vegetal, particularmente em certas espécies como sejam a sensitiva, a dioneia, o des­módio, nós reconhecemos uma energia latente, cor­respondente ao nosso sistema nervoso.

Indiscutível é, todavia, que a força físico-quí­mica, a força vegetal, a força animal, a inteligência, não são uma só força-matéria. Expliquem-nos, en­tão, como uma molécula é sucessivamente animada por forças tão distintas.

Como admitir que o átomo de ferro, que ago­ra se integra num homem, num animal ou numa planta, constituísse momentos antes a ferrugem de uma velha estátua, por exemplo? Se ele é ao mes­mo tempo matéria e força, e se a força é única, como explicar produza fenômenos tão distintos?

Acima da matéria existe um princípio imate­rial, absolutamente distinto. Um espírito anima a matéria, qual o disse Vergílio.

Diante da organização regular dos seres ter­restres, não nos cabe mais que repetir a resposta, já de um século, dada ao Sistema da Natureza. A matéria é passiva e incapaz de coordenar-se por si mesma num todo regular. Contudo, ela é do­tada de umas tantas propriedades que a fazem suscetível de obediência às leis. Ora, como pode a matéria cega ter desígnios e tender para uma finalidade? Como, ininteligente, teria engendrado seres inteligentes? Como se governaria por leis sá­bias, se não conhece o que seja sabedoria? Como reinar uma ordem majestosa entre as suas partes, se ela não conhece a ordem?

Como, enfim, essa utilidade sensível e perceptível em todas as suas operações, se ela, de fato, não tem alvo?

Aí estão uns tantos problemas a que os ma­terialistas hodiernos vão tentar responder em de­talhe nas suas discussões (14).

(14) Proclamando alto e bom som que a força governa a substância, não o fazemos a ponto de pretender. com certos metafísicos, que não existe substância e sim, única-mente, a força. É um exagero para nós tão falso como o dos materialistas. Ouçamos por momentos uma demons­tração metafísica da incoexistência dos corpos e da exten­são. (É de Magy, em Science et Nature.) “Se supusermos que a extensão, assim como a força, convém aos objetos da experiência e torna-se dela um elemento inseparável, então, como as propriedades da primeira são precisamente inversas das da segunda, chega-se a admitir implicita­mente que as contraditórias possam coexistir num mesmo objeto — erro típico que caracteriza de si mesmo o absurdo.

Mas, se, ao contrário, reconhecermos que só a força é real, de uma realidade absoluta e substancial, enquanto que a extensão não passa de ato psicológico, que só pelo fato de aparecer sob o olhar da consciência requer umas tantas condições físico-fisiológicas, logo se desvanece a contradição. De modo que nossa resposta à questão de saber qual a realidade, objetiva da noção de extensão, tão estranha à primeira vista, é, no fundo, a única verdadei­ramente racional, visto não admitir recusa sem colidir, por assim dizer, com a razão em si mesma.

Mas, objetar-se-á, esta resposta está em contradição expressa com a experiência, pois ela reduz a extensão a uma simples aparência psicológica, ao passo que a vista e o fato, relativamente a todos os corpos que podem atin­gir, nos atestam uma extensão peculiar a cada qual e, manifestamente, exterior a alma. Não são extensos esses objetos com os quais estou em relação, ou sejam: este mesmo corpo a que me ligo pela alma, esta mesa na qual me debruço, esta casa, esta terra, este sol que me aclara, todo o Universo, enfim? Será possível e mesmo concebível uma ilusão tão geral e tão constante?

Esta objeção pressupõe justamente o que está em jogo, responde o filósofo. De fato, que nos ensinam a vista e o tato, sobre o grau de realidade da extensão corporal? Nada, absolutamente, pois uma vez percebido um corpo, é sempre lícito indagar se a Imagem dimensória que acompanha a percepção não seria uma simples aparência.

Trata-se dessa aparência, aqui, no sentido da exis­tente em alguns fenômenos astronômicos, tal como o movi­mento solar, de que nos podemos certificar tão facilmente pela rotação da Terra como do Sol. Quanto à própria experiência, literalmente neutra no caso, o seu pretenso desacordo com a nossa tese procede, não dos fatos invo­cados, mas do sentido arbitrário que Implicitamente lhes atribuem.

Os elementos constitutivos da matéria são, necessAria­mente, inextensivos e puramente dinâmicos.

Os mesmos princípios que nos conduziram & verdadeira teoria da extensão corporal, nos sugerem, igualmente, a explicação da extensão incorpórea, ou seja, do espaço.

A extensão corporal é simples fenômeno que acompa­nha a reação natural dessa força hiperorgãnica chamada alma, contra a ação das forças que constituem os corpos brutos, e das quais é advertida pelas forças orgânicas do nosso corpo. Mas, se as forças orgânicas, de que o corpo humano é o sistema, suscitam em nós a aparência de ex­tensão, quando operam como intermediárias entre a alma e o mundo exterior, também poderiam, por sua atuação In­cessante sobre a alma, a que estão tão Intimamente ligadas, poderiam, dizemos, não provocar um fenômeno análogo, cujos caracteres específicos seria difícil assinar “a priori”, mas que devem, Infalívelmente, encontrar-se entre os fenômenos psicológicos? Ora, isto é o que precisamente acontece e a consciência nos Informa incessantemente. A reação permanente da alma, contra as forças orgânicas, engendra a todo instante um fenômeno homogêneo ao da extensão corporal. É o fenômeno da extensão corporal ou do espaço puro, no qual localizamos naturalmente todos os corpos. O movimento no espaço, como qualquer outro fenômeno sen­sível, não é mais que o sinal visível de ações invisíveis e de permutas não menos inacessíveis aos nossos órgãos, no modo de coexistência das forças.

Mas, de todas as soluções armadas ao problema, a mais notável, sem contestação, é a de Kant. Este grande pen­sador, que tanto meditara as condições primordiais do pensamento entre as quais a noção de espaço lhe pareceu, com razão, uma das principais, foi o primeiro a suspeitar que ele — o espaço — não poderia ser um objeto extrínseco ao ser, qual o presumem os físicos, nem a ordem de coexis­tência das coisas, como pretendia Leibnitz, mas, verdadei­ramente, um simples modo do ser pensante. “A Geome­tria — diz — é uma ciência que determina as propriedades do espaço sinteticamente e, todavia, “a priori”. Ora, qual deverá ser a representação de espaço para que tenhamos a respeito um conhecimento possível? Uma intuição pri­mitiva. -

O espaço para Kant, como para nós, conclui o escritor, é, pois, essencialmente, uma afecção psicológica.

Por um lado, segundo a lei objetiva do conhecimento, todas as idéias científicas se ligam às noções de força e extensão, Únicas verdadeiramente primordiais e Irredutíveis; e por outro lado, segundo o aprofundado exame a que acabãmos de submeter essas duas noções, a de força repre­senta o elemento substancial dos seres, e a de extensão um modo puramente subjetivo de nossa natureza,

Assim se expressam, ainda, os partidários da interpre­tação puramente subjetiva.

Pode-se fazer, a respeito, um reparo assaz curioso e suficiente para responder a essa teoria algo exagerada e vem a ser que, se a extensão não existisse, os corpos não tinham como ocupar um lugar, tal como o ensina a Física. Dai se conclui que nós não ocupamos lugar e que não estamos em parte alguma!

Quanto ao primeiro ponto, que se precatem os teatrólogos; e, quanto ao segundo, que dele se valham os malfei­tores, se bem lhes prouver, para justificarem a sua metafísica.

Estes argumentos muito se assemelham ao dos fraseó­logos modernos, que levantam contendas de palavras acre­ditando discutir fatos.

Neste caso, por exemplo, os que repetem com Broussais que Deus e alma não existem, porque a linguagem humana os designa, algumas vezes, em termos negativos! O mesmo valeria dizer da Matéria, qualificada impenetrável nos seus atributos, por ser uma expressão negativa.

Efetivamente, pura logomaquia.

Assim, para resumir o estado da questão e os princípios de nossa refutação do ponto de vista do mundo inorgânico, temos estabelecido que, no céu como na Terra, a força rege a matéria, que a harmonia é constituída pelo Número, e que este leva consigo, por toda a parte, o cunho intelectual. Em parte alguma, porém, a inteligência criadora aparece tão evidente como na organização da vida e na existência do homem.

É o que vamos verificar nos capítulos seguintes.

SEGUNDA PARTE

A Vida

1

CIRCULAÇÃO DA MATÉRIA

SUMÁRIO — Viagens Incessantes dos átomos através dos organismos; fraternidade universal dos seres vivos; so­lidariedade Indissolúvel entre as plantas, os animais e o homem. — Vida aparente e vida Invisível. O ar, a respiração, a alimentação, a desassimilação. — O corpo, transformação perpétua. — O equilíbrio das fun­ções vitais prova uma força diretora. — A decomposi­ção cadavérica prova que a vida é uma força e que essa torça não é uma quimera. — Homúnculos. — Fa­tos e atitudes da Química orgânica. — Essa química não cria seres nem órgãos. — A Matéria circula, a Força governa.

O poder que rege os astros e desata os esplen­dores de sua riqueza na imensidão dos céus; a força que regula a construção de minerais e plantas, na Terra; a ordem que espalha a harmonia no mun­do, vão apresentar-se-nos agora sob um outro as­pecto, dando-nos testemunho não menos irresistível do princípio inteligente que preside os nossos des­tinos.

Enquanto o olhar penetrante do telescópio vara os espaços infinitos, a visão analítica do micros­cópio visita os habitáculos minudentes da vida na superfície da Terra.

Aqui, já não é apenas a grandeza e o caráter formidando da energia que nos vão falar, mas, an­tes, o engenho, a beleza do plano, a delicadeza de sua execução e, sobretudo, a sabedoria sobre-humana ­ que domina a matéria e a molda às leis de uma vontade onipotente.

Quando penetramos com os olhos da Ciência o espetáculo do mundo, toda a Natureza nos apa­rece à feição de imenso dinamismo, em cujo seio se associam ou se transformam as forças extra­ordinárias da Física e da Química.

Fenômenos efêmeros, que ao vulgo parecem isolados, apresentam-se-nos entramados numa rede única, cujos fios são mantidos por uma força mis­teriosa.

O mundo envolve-se em grande unidade, ne­nhum elemento está isolado, nem na extensão pre­sente, nem na História.

São irmãos a luz e o calor, quer se nos mostrem juntos, numa união indefectível, quer mutuamente se façam o sacrifício de sua própria existência. A afinidade e o magnetismo casam-se nos mistérios do mundo mineral. A ponta inquieta do imã pro­cura incessantemente o pólo. A planta eleva-se apaixonada para a luz. A Terra volta para o Sol o seu rosto matinal. Estende o crepúsculo o seu manto sobre a noite e os tépidos perfumes dos vales aquecem os pés gelados da noite. Em apro­ximando-se a aurora, o beijo do orvalho deixa o seu traço na corola entreaberta das flores. Áto­mos e mundos são levados por um só impulso uni­versal. Na atmosfera mil ondulações se entrecru­zam, mil variedades de força se combinam. Noite e dia, tarde e manhã, em todas as estações, o mes­mo movimento simultaneamente insensível e gran­dioso, que a nossa vista não apreende e que, aberrante de qualquer avaliação numérica (15), se

(15) Pudesse o homem apreciar as forças diariamente acionadas na Natureza e ficaria confundido, em sua admiração. Por não citar mais que um exemplo fácil de enten­der, digamos que o valor dágua a elevar-se do solo para formar nuvens, assás nuvens que se resolvem em chuva, parece não acusar, à primeira vista, um deslocamento de energias colossais. No entanto, admitido que caia anualmente, em toda a superfície terráquea, uma camada dágua da espessura de um metro, e que a altura média das nuvens seja de 3000 metros, seria preciso para esse traba­lho uma força de 1500 bilhões de cavalos, a trabalharem 7 horas diárias. E a Terra não teria como alimentá-los!

vai exercendo no laboratório do cosmos. Pois o resultado desse movimento é A Vida.

Fora deste resultado, o mundo só oferece uma atração medíocre aos espíritos curiosos. É pelos aspectos ou pelas sensações da vida que o ser pen­sante se liga à Natureza. Se a contemplação dos céus, por noites silenciosas, nos causa uma tris­teza indefinível; se o aspecto de vastos desertos calcinados por um sol ardente nos deixa impassí­vel; se o estudo das mais extraordinárias combi­nações químicas, operadas numa retorta, nos im­pressiona menos intimamente do que a visão de um pássaro em seu ninho, ou ainda a de uma vio­leta vicejando humildemente ao pé de um tronco, é porque essas manifestações não revelam uma vida imediata. Nossa alma é sobretudo acessível às im­pressões provindas de seres viventes como nós, e, de entre estes, os que mais se aproximam da nossa natureza, O timbre de uma voz amada tem maior ressonância em nosso coração do que o ribombo de um trovão. Um raio do olhar eleito nos pene­tra mais fundo do que um raio de Sol. Um sorriso adorado tem sempre maior encanto que a mais encantadora das paisagens. No colo, nos braços, nos cabelos da mulher idolatrada, não há diaman­tes nem safiras, esmeraldas e pérolas, cujo brilho se não degrade ao de simples pedrarias decorati­vas. É que neste caso, sobretudo, a vida nos apa­rece sob a sua mais bela e mais esquisita mani­festação terrestre, pois que ela — a vida, é bem verdadeiramente a grande atração da Natureza.

Mas, a característica que mais vivamente im­pressiona o observador, no conjunto da vida ter­restre, é a lei geral que preside à vida do Universo. Á primeira vista, afigura-se-nos que todos os seres estão isolados. O abeto que colma os cimos alpes­tres parece nada ter de comum com a lebre que corre nas planuras. Certo que a rosa dos nossos jardins não conhece o leão dos desertos. Águia e condor dos altiplanos asiáticos jamais provaram o fruto dos nossos pomares. Trigo e vinha, em nada parece ligarem-se à vida dos peixes. E se nos cingirmos a divisões menos marcantes, ninguém sus­peitará qualquer relação imediata entre a vida do homem e a do vegetal que matiza os campos e as florestas.

E contudo, a verdadeira realidade é que a vida de todos os seres terrícolas — homens, animais, plantas - é uma e única, sujeita a um mesmo sistema, tendo por ambiente o ar e por base o solo. E essa vida universal outra coisa não é, senão uma permuta constante de matéria. Todos os se­res se formam das mesmas moléculas, a passarem sucessiva e indiferentemente de uns a outros, de sorte que nenhum ser dispõe de um corpo propriamente seu. Pela respiração e pela alimentação, nós absorvemos, cada dia, uma certa porção de alimentos. Pela digestão, pelas secreções e excreções, perdemos outra determinada porção de alimentos. Assim, renova-se o corpo e, depois de algum tem­po, já não possuímos um só grama do corpo ma­terial de antes. Sua renovação foi total, completa. Mediante essa permuta é que se entretém a vida. Enquanto o movimento renovador se opera em nós, a mesma coisa se dá com animais e plantas. Os milhões e bilhões de seres viventes na superfície do globo mantêm-se, portanto, em permuta cons­tante de seus organismos. O átomo de oxigênio, que ora estais respirando, foi ontem, possívelmente, expirado por alguma das árvores que orlam o bos­que, além. O átomo de hidrogênio que, neste mo­mento, humedece a pupila vigilante do leão do de­serto, será o mesmo que, não há muito, molhava os lábios da mais pudica donzela da austera Aibion. O átomo de carbono que neste instante arde em meu pulmão, ardeu talvez na candeia que ser­viu a Newton para as suas experiências de ótica; e as fibras mais preciosas do cérebro de Newton talvez se encontrem, agora, na concha de uma os­tra ou numa dessas miríades de animálculos mi­croscópicos, que povoam os mares fosforescentes. O átomo de carbono que se escapa, no momento, da combustão do vosso charuto, terá talvez saido, há alguns anos, do túmulo de Cristóvão Colombo, que demora, como sabeis, na catedral de Havana. Toda a vida não passa de uma constante permuta de elementos materiais. Físicamente falando, nós nada possuímos de nós mesmos. Só o ser pensante é o nosso eu. Só ele é que nos constitui verdadeira, imutavelmente. Quanto à substância que nos forma o cérebro, os nervos, os músculos, ossos, membros, carne, essa não a retemos; vai, vem, passa de um ser a outro. Sem metáfora, podemos dizer que as plantas são nossas raízes, que por elas extraímos dos campos a albumina do sangue, o cal dos ossos. O oxigênio de sua respiração nos dá vigor e beleza, assim como, reciprocamente, o ácido carbônico que restituimos à atmosfera vai cobrir de verdura os vales e as colinas.

Quando se tem a convicção profunda dessa permuta universal da matéria, que irmana, do pon­to de vista da composição orgânica, a fronde e o pássaro, o peixe e a plaga, o homem e a fera, con­sidera-se a Natureza sob a impressão da grande unidade que preside à marcha das coisas. Ela, a Natureza, se nos apresenta, então, completamente transfigurada, e não deixa de ser com um inte­resse mais íntimo que encaramos o sistema geral da vida planetária. A. de Humboldt traçou a sua fisionomia num esboço amplo, que tem o mérito de reivindicar considerações especiais a respeito. “Quando o homem interroga com argúcia penetran­te a Natureza — diz ele (16) — ou quando mede,

(16) Tableaux de la Natura, parte 4º.

na sua imaginação, os vastos espaços da criação orgânica, de todas as emoções experimentadas a mais poderosa e profunda é a da plenitude da vida, universalmente difundida. Por toda a parte, até nos pólos congelados, o ar repercute o canto das aves e o zumbido dos insetos.

“A vida transpira, não somente nas camadas inferiores da atmosfera, onde flutuam pesados va­pores, mas, também, nas regiões serenas, eteriza­das. Todos quantos remontaram, quer as cumeadas da cordilheira Andina, quer os píncaros do Monte Branco debruçados sobre o lago de Genebra, ja­mais deixaram de aí encontrar seres animados. No Chimborazo, e numa altitude excedente de 2600 metros ao pináculo do Etna, vimos borboletas e outros insetos alados. Mesmo supondo que houves­sem sido levados por correntes aéreas, e que lá errassem como estrangeiros, naquelas paragens a que só o ardente desejo de conhecer conduz os homens, a sua presença atesta, todavia, que, mais flexível, a organização animal resiste além dos li­mites traçados à vida vegetal. Muitas vezes, vi­mos o rei dos abutres — o condor — planar acima de vossa cabeça, em altitudes excedentes aos picos nevados dos Pireneus, e mesmo dos indianos. O possante carnívoro alado era, naturalmente, atraído pelos sedosos vigonhos, que às manadas procuram aquelas pastagens coalhadas de neve.”

Esta vida que vemos difundida, em todas as camadas atmosféricas, não é mais que pálida ima­gem da vida mais compacta, que o microscópio nos revela, Os ventos arrebatam, à superfície das águas em evaporação, turbilhões de animálculos invisíveis, imóveis e com todas as aparências de morte; seres que flutuam no ar, até que as orvalhadas os de­volvam ao solo nutriz, que lhes dissolve o invó­lucro e, graças provàvelmente ao oxigênio sempre contido na água, comunica-lhes aos órgãos uma nova irritabilidade. Nuvens de microrganismos cruzam as regiões aéreas do Atlântico e carreiam a vida de um a outro continente.

Com o autor de Cosmos, podemos acrescentar que, independentemente dessas existências, a atmos­fera também contém inumeráveis germes de vida futura, óvulos de insetos e de plantas, que, sus­tentados por coroas de pêlos ou de plumas, gar­ram para as longas peregrinações do Outono. O pólen fecundante que as flores masculinas semeiam nas espécies de sexo extremado, é também, ele próprio, levado pelos ventos e por insetos alados~ através de continentes e mares, às plantas femi­ninas que vivem em solidão. Onde quer que o ob­servador da Natureza mergulhe os olhos, aí encon­trará vidas, ou um germe pronto a recebê-la.

As formas orgânicas penetram no seio da Ter­ra a grandes profundidades, por toda a parte as águas se espalham e infiltram, seja em interstícios formados pela Natureza, ou feitos pela mão do homem.

Ninguém poderia dizer com segurança qual o ambiente em que a vida se difundiu com maior profusão. De fato, ela repleta os oceanos, das zo­nas tropicais aos gelos polares; o ar povoa-se de germes invisíveis e o solo é sulcado por miríades de espécies, quer animais, quer vegetais.

Estes incessantemente procuram dispor, me­diante combinações harmoniosas, da matéria bruta do solo, como que tendo a função de preparar e misturar, por virtude de sua energia vital, as subs­tâncias que, após inumeráveis modificações, hão-de ser elevadas ao estado de fibras nervosas.

Abrangendo no mesmo olhar a camada vegetal que reveste o solo, depara-se-nos em plenitude a vida animal, nutrida e conservada pelas plantas.

Por intermédio do ar é que se operam essas transformações incessantes, universais, e não por outro meio que não esse, os elementos podem tran­sitar de um corpo a outro. Proposição é esta, tão exata, que os fisiologistas há muito repetem que todo ser vivo é produto do ar organizado. Como se opera essa organização? A partir de Lavoisier, sabemos que a respiração do homem e dos animais é ato análogo às combustões mediante as quais nos aquecemos e aclaramos. Insistamos um tanto neste ponto. A respiração estabelece uma solida­riedade universal entre os homens, animais e plan­tas. Ela é resultante da união do oxigênio com o carbono e o hidrogênio dos alimentos, tanto quanto a combustão resulta da união desse mesmo oxi­gênio com o hidrogênio e o carbono da vela, da madeira, ou combustível qualquer. A respiração ve­rifica-se sob a influência da vida, enquanto a combustão, propriamente dita, se opera sob a influência de um calor intenso. Um e outro ato têm por fim produzir calor. É o calor desprendido da nossa respiração que entretém no corpo a temperatura de 37 graus, necessária à mantença da vida.

Lavoisier e Lieb demonstraram, há muito tem­po, que todo animal é um foco e todo alimento um combustível. Se a respiração não se acompa­nha, como a combustão, de claridades incandescen­tes, é por ser uma combustão lenta, menos ativa. Mas, por muito lenta que seja equivale, contudo, a de uma dose assaz forte de carbono. Um ho­mem queima 10 a 12 gramas de carbono por hora, ou 250 por dia, mais ou menos, além de uma certa quantidade de hidrogênio.

Combustão e respiração viciam o ar destruin­do-lhe o elemento salutífero — o oxigênio, subs­tituindo-o por um gás mefítico — o ácido carbô­nico. Esta e outras causas espalham na atmosfera, de maneira constante, esse elemento insalubre. Ex­periências feitas com o vapor dágua condensada em janelas dos teatros de Paris, patentearam uma combinação particularmente letífera.

A raça humana retira do ar, anualmente, 160 bilhões de metros cúbicos de oxigênio e os per­muta por igual volume de ácido carbônico. A res­piração dos animais quadruplica o resultado. Só a hulha que se extrai do solo fornece mais ou menos 100 bilhões de metros cúbicos de ácido carbônico, ao mesmo passo que outros combustíveis aumen­tam consideravelmente essa cifra. Junte-se-lhe ain­da o produto das decomposições e considere-se que, a despeito, esse gás não se encontra no ar atmos­férico senão na proporção diminuta de 4 a 5 litros por 100 hectolitros. O ácido carbônico é solúvel nágua, a chuva o dissolve e carreia em suas bá­tegas, o transporta aos rios, leva-o enfim aos ocea­nos. Aí, ele une-se à cal e temos o carbonato de cal, as pedras calcáreas, mármore, alabastro, ônix, polipeiros, etc.

Os vegetais, a seu turno, preenchem, em escala imensa, função inversa à respiração dos animais, essencialíssima à harmonia da Natureza, pois não somente fixa o hidrogênio da água e subtrai da atmosfera o ácido carbônico, como lhe restitui o oxigênio. (Uma folha de nenúfar dá, em 10 ho­ras, 15 unidades de oxigênio, proporcionais ao seu volume.)

A que transformações submetem os vegetais o carbono, o hidrogênio, o azoto, que eles absorvem do ar? É toda uma produção multifária. A Na­tureza conjugando cinco moléculas de carbono e quatro de hidrogênio forma, no citrão e no sal­gueiro, duas essências que, diversas radicalmente em odorância, provêm da mesma composição. Fre­quentemente, a Natureza junta a estes dois elemen­tos o oxigênio. Assim é que, solda doze moléculas de carbono e dez de hidrogênio e oxigênio, formando, a seu talante, seja a madeira, seja a batata. Outras vezes, seu trabalho é mais complexo e reúne os quatro elementos: carbono, hidrogênio, oxigênio, azoto, originando os mais diferentes produtos, tais como o trigo — precioso alimento — e a estricni­na — ativíssimo tóxico.

Como explicar, por exemplo, juntando um equi­valente de água à substância característica da ma­deira, a celulose (C12H10O10), a Natureza nos dê o açúcar? Sínteses maravilhosas, a Natureza as pro­duz silenciosamente, ao influxo da vida!

O reino vegetal é uma usina imensa. Sob a ação do calor solar, todas as roldanas entram a movimentar-se. A exemplo do mecânico que nutre a sua máquina, a Natureza renova o combustível e os princípios do ar, e estes se transformam em madeira ou amido, em açúcar ou veneno, que cons­tituem a polpa saborosa do fruto, o perfume sutil das flores, o rendilhado das folhas, a coriácea te­ssitura dos troncos.

Os animais nutrem-se dos vegetais, gaseificam, por assim dizer, o ar solidificado e o devolvem à atmosfera, onde ele recomeça o ciclo das transfor­mações que, graças a ele — o ar — agente primaz da vida, elo universal, jamais se interrompem.

A comparação que Liebig (17) foi o primeiro a fazer, da combustão respiratória do animal com a dos combustíveis de uma fornalha, só é exata se fizermos uma idéia material do fogo nesse apare­lho. No animal, todo o corpo arde lentamente, o que não se dá com a fornalha, que não arde. Na retorta humana, continente e conteúdo quei­mam juntos, e assim, é mais justo tomarmos a vela como elemento comparativo.

O calor é o regulador da vida. Descartes an­tecipara-se aos progressos da experimentação es­crevendo este significativo conceito: “Importa não conceber nas máquinas humanas outra alma vege­tativa nem sensitiva, nem princípio algum de movi­mento e vida, além do sangue e seus espíritos, agi­tados pelo calor do fogo que arde continuamente no seu coração, e cuja natureza é idêntica à que inflama os corpos inanimados.” (Sabemos que Des­cartes, como Platão, considerava a alma humana como retirada num santuário, no âmago de nós mesmos, numa espécie de oposição à matéria. A vida e as funções orgânicas dependiam inteiramente

(17) Liebig — Chemische Brief, 400.

do corpo, e só o pensamento era atributo do es­pírito.)

Tal, sumariamente, o papel do ar na Natureza. Assim são os vegetais, habilíssimos físico-químicos, a nos prepararem ao mesmo tempo a alimentação, a respiração, a indumentária, o combustível e os elementos materiais da nossa existência terrestre. Importa, de conseguinte, deixarmos de considerar a Natureza sob um prisma vulgar, para fazê-lo, doravante, com olhos atentos e apercebidos. Quan­do fixarmos a ervilha tenra que reponta nos jar­dins, não admiraremos apenas o risonho tapete de verdura e a gracilidade das flores que o esmal­tam. Elevaremos mais alto o pensamento, imagi­naremos que cada um desses rebentos, que vamos pisando, é um benfeitor silencioso, pois, se de um lado contribuímos para embelezá-lo fornecendo-lhe ácido carbônico, sem o qual se estiolaria, por outro lado ele nos dá benevolamente todo o necessário à nossa vida material: imaginaremos que essa har­monia é de uma perfeição sublime, visto que, se umas regiões mergulham, longos meses, nos rigo­res do Inverno, os ventos não deixam de estabe­lecer entre esses países deserdados e o nosso uma permuta constante, que reconduz aos nossos bos­ques e prados o ácido carbônico expirado pelo La­pônio e o Esquimó, levando-lhes o oxigênio exalado dos milhões de bocas dos nossos vegetais.

Se acompanharmos a elevação gradativa da matéria, haveremos de reconhecer com os fisiolo­gistas em geral, e com Moleschott em particular, o seguinte processo das permutas materiais: o amo­níaco, o ácido carbônico, a água e alguns sais, eis toda a série das matérias com as quais a planta constrói o próprio corpo. Albumina e dextrina for­mam-se à custa destas combinações simples, por efeito de constante dispêndio de oxigênio. Essas duas substâncias dissolvem-se nos sucos da planta, que se tornam por isso mesmo capazes de trans­portar-se às mais diversas regiões, através das hastes, das folhas, ou dos frutos. Mercê da albumina, engendram-se corpos outros albuminosos, quais a legumina, o glúten e a albumina vegetal coagulada. Estas duas últimas substâncias se depositam, in­dissolúveis, na semente. Albumina, açúcar e gor­dura são os materiais construtivos do animal, cujo sangue é um soluto de albumina, gordura, açúcar e sais. Uma absorção mais forte, de oxigênio, trans­forma a albumina em fibrina muscular, em ele­mentos redutíveis, cola de cartilagens e ossos, substância dérinica ou pilosa. Estas substâncias aliadas à gordura, aos sais e à água, constituem a totali­dade do organismo animal. Tanto quanto a recomposição progressiva, a desassimilação é fenômeno de evolução gradativa.

Na planta, a albumina, o açúcar e a gordura se decompõem em alcalóides, ácidos, matérias co­rantes, óleos voláteis, resina, azoto, ácido carbônico e água. No animal as mesmas substâncias se re­solvem em leucina, sirosina, criatina, hipoxantina, ácido úrico, fôrmico, oxálico, uréia, amoníaco, ácido carbônico e água. Fora do corpo, a uréia decompõe-se em ácido carbônico e amoníaco.

Assim, graças à vida em si, plantas e animais revertem às suas fontes. Após a morte, a desassi­milação é ainda uma evolução, não menos regular que durante a vida. O que se dá, apenas, é que percorre outros graus, até que chegue ao termo da decomposição.

A putrefação não é mais que uma combustão lenta das matérias orgânicas, a operar-se fora do corpo vivo. Ela representa uma como respiração depois da morte, e cada átomo vai conformar ou entreter outros corpos.

Tal o esboço químico da permuta vital nos dois reinos orgânicos. Agora, abordemos o assunto par­ticular da vida no reino animal. Nestes novos fa­tos observados, tanto como nos precedentes, esta­mos de acordo com os adversários. Entretanto, vamos ver as consequências.

Aqui temos, segundo o próprio autor de A Circulação da Vida, baseado em recentes trabalhos de fisiologistas alemães, o processo geral de desassi­milação no animal, ou, para falar mais claramente, os principais fenômenos de permuta das matérias que constituem a vida. Tratemos aqui, particularmente, do corpo humano, por ser o que mais nos interessa (18).

Sabemos hoje que a história da evolução dos alimentos e das matérias rejeitadas depois de ser­virem à assimilação, é a essência mesma da fisio­logia da permuta material.

A digestão e formação dos tecidos estão com­preendidas entre dois limites: as substâncias ali­mentícias e as partes constitutivas das secreções.

Assim é que todos os elementos anatômicos do corpo se decompõem para se rejuvenescerem sem cessar. O oxigênio aspirado, passa da boca pela traqueia arterial, esta se ramifica e seus últimos ramúnculos desligados são providos de vesículas la­terais e terminais, que só se intercomunicam pelo ramúnculo do tubo aéreo que as contém.

Deste tubo, o oxigênio passa às vesículas pul­monares e destas ao sangue, através da parede dupla de vesículas e vasos capilares, até que entra, com o sangue, no coração.

Em seguida, o coração impele o sangue oxigenado a todos os territórios orgânicos, através das artérias da grande circulação, que mantém todo o corpo sob sua dependência.

Finalmente, o oxigênio penetra os tecidos atra­vés das paredes de vasos capilares, que rematam as artérias.

Enquanto isso, um fenômeno inverso se veri­fica, O ácido carbônico provemente do sangue e o ar atmosférico aspirado se transformam, segundo a lei das permutas de gases, ao penetrarem as ca­vernas pulmonares, os brônquios e a própria traquéia.­

(18) Brief — Kreislauf des Lebens, 12º.

Depois, o ritmo respiratório, produzindo a retração do peito, expele uma coluna de ar carregado de ácido carbônico. Uma curta pausa, e a essa expiração sucede a aspiração, dilata-se o peito, um ar rico de oxigênio substitui o ar expirado, que perdera uma parte desse oxigênio, e o fenômeno prossegue.

Podemos comparar os puhnões a um banco:

o ácido carbônico é entregue à circulação externa,

para alimento das plantas, em troca do oxigênio recebido. O sangue provido de oxigênio escoa-se dos pulmões para o ventrículo esquerdo do coração, daí derivando-se para todos os setores do organis­mo. Começa, então, aí, a combustão geral que, sob a forma de nutrição aqui, de eliminação acolá, vai acionando as primeiras funções.

É possível medir a intensidade de permuta das matérias de um organismo humano, pela quanti­dade de ácido carbônico, água e uréia eliminados em dado tempo. A rapidez das permutas dá a me­dida da vida. Sua maior atividade verifica-se dos 30 aos 40 anos.

Termo médio, é nessa fase que as energias criadoras do homem atingem o apogeu.

Pulmões e rins não são os únicos órgãos eli­minadores; a eles devemos juntar a pele e o reto. Os cabelos que caem, a epiderme que se escama no interior como no exterior, as unhas que apara­mos, multiplicam os pontos de eliminação dos prin­cípios azotados.

A atividade eliminatória dos pulmões e dos rins atinge a um quinze avos do peso total das excreções, e ultrapassa de muito a dos intestinos. Quanto maior atividade, mais rápida a eliminação.

Os homens entregues a trabalhos de movimen­to ativo, eliminam pela epiderme, em 9 horas, tanto ácido carbônico quanto o correspondente a 24 ho­ras de repouso. Num cavalo a trote, a eliminação é 117 vezes mais copiosa do que em repouso. Um parelheiro inglês, que percorrera em 100 horas uma extensão correspondente a 500 horas de marcha ordinária, não perdeu menos de 14 quilos depois do feito.

O trabalho mental fatiga tanto ou mais que o corporal. A expressão que utilizamos, referindo-nos a criaturas de pensamento ardente, é justa. Qualquer acréscimo de trabalho espiritual produz aumento de apetite, qual se dá com o intenso tra­balho muscular. O apetite não é mais que o sinal de empobrecimento do sangue e dos tecidos, ma­nifestando-se por meio de uma sensação. A ati­vidade cerebral, assim como a dos membros do corpo, aumenta a eliminação da pele, dos pulmões, dos rins.

O sangue, por sua vez, abandona constante­mente aos órgãos do corpo os seus componentes, que a atividade dos tecidos vai decompondo em áci­do carbônico, uréia, água.

Por fim, as matérias excrementícias atravessam continuamente a corren­te circulatória para atingir os pulmões, os rins, a pele e o reto, de onde se eliminam.

Preciso se faz, pois, que os tecidos e o sangue experimentem, no curso regular da vida, uma per­da de substância só compensada pelo processo ali­mentar.

Notável, a rapidez com que se opera esse in­tercâmbio de matéria.

A duração média da vida dos que sucumbem de inanição atinge a duas semanas. Mas, desde que um vertebrado, seja qual for, morra de inani­ção, o seu corpo terá perdido quatro dez avos do peso normal.

Nos indivíduos alimentados convenientemente, a permuta se opera mais rápida que nos esgotados pela abstinência. Moleschott e fisiologistas outros acreditaram poder concluir de certos fatos que o corpo renova a maior parte de sua substância num período de 20 a 30 dias.

Impondo-se um regime regular, diversos obser­vadores verificaram uma perda, em média, de um vinte avos do seu peso, em 24 horas.

O alimento ingerido e o oxigênio aspirado con­trabalançam essa perda. O sangue, com efeito, não provém apenas das substâncias alimentares, mas, simultâneamente, da alimentação e da respiração. É uma verdade que mais avulta no concernente aos tecidos orgânicos.

Perdendo o corpo diariamente um doze avos e no Estio um quatorze avos do seu peso, todo o corpo estaria renovado dentro de 12 ou 14 dias. Pelos resultados obtidos com o último observador, seriam precisos vinte e dois dias.

Liebig deduziu dessa rapidez de permutas uma outra consideração. Pode-se, sem maior dúvida, atribuir a um homem idoso 24 libras de sangue. O oxigênio por nós absorvido em 4 ou 5 dias basta para transformar pela combustão todo o carbono e hidrogênio dessas 24 libras de sangue em ácido carbônico e água. Mas, o sangue corresponde mais ou menos a um quinze avos do peso do corpo: se, pois, 5 dias bastam para substituir o sangue, com a troca dos elementos, pode inferir-se que o corpo inteiro se renova em 25 dias.

Moleschott e Malerf verificaram que corpúscu­los de carneiro, profusamente injetados na circu­lação de rãs, desapareciam completamente ao fim de 17 dias. Ora, como a permuta nas rãs se opera mais lenta que nos animais de sangue quente, somos levados a crer que os glóbulos vermelhos do san­gue humano se renovam totalmente em menos de 17 dias.

O autor de Á Circulação da Vida declara, por­tanto, que a concordância dos resultados obtidos, partindo de três pontos de vista diferentes, é uma garantia positiva de veridicidade da hipótese dos 30 dias necessários à renovação completa do orga­nismo. Os sete anos que a crença popular fixava a essa operação, seriam um exagero colossal. “Por surpreendente que possa parecer, à primeira vista, essa rapidez — diz — concorda com a experiência em todos os pontos. Para Stahl, as andorinhas per­dem num dia a gordura aprovisionada durante a noite. O desenvolvimento das células opera-se, no sangue, em 7 ou 8 horas, a expensas das matérias fornecidas pelo quilo. De resto, quem ignora bas­tarem poucos dias para que um homem emagreça ao ponto de tornar-se irreconhecível?

“A rapidez da permuta das matérias, demons­trada em todas as experiências, é o que há de mais próprio para diminuir nossa admiração.

“Essas experiências nos ensinam que um adul­to, pesando 128 libras, elimina em 24 horas cerca de 3 libras de saliva, duas e meia de bílis, no míni­mo, e mais de 28 de suco gástrico; de sorte que um fumante, com o mau veso de escarrar seguidamen­te, pode, durante o dia, expelir 85 partes do seu peso. No período de 24 horas, corre em nosso cor­po perto de um quarto do seu peso, de suco gás­trico a circular do sangue para o estômago, e vice-versa.

“A celeridade das permutas difere de indivíduo para indivíduo.

“O homem, a mulher, a criança, o velho, mani­festam apitdões diferentes: assim, o homem tem a propriedade de permutar maior quantidade que a mulher, e o adulto mais que os velhos e as crian­ças. O operário e o pensador recompõem o corpo em tempo mais curto que o necessário aos ociosos e inativos.

“Há criaturas de vida acelerada: nelas a es­perança, a paixão e o temor, que se transformam rapidamente em confiança e alegria, precipitam a circulação do sangue. Vivem apressadas, porque depressa se executa o seu metabolismo. Enquan­to se mantém equilibrado o regime de permutas, o corpo não padece alteração no seu aprovisiona­mento. Ë, ordinariamente, esse, o ritmo do adul­to, que se altera com os anos, para romper-se na velhice.

Também a digestão vigorosa é privilégio da criança. A absorção de sólidos e líquidos igual­mente se regula, mui rapidamente, no trabalho di­gestivo. A ação do oxigênio e a desassimilação dos tecidos, a ela consequente, nunca se interrompem. Daí resulta, imediata, uma diminuição do suco nu­tritivo, que se pode verificar não só pelo peso, como por inspecção direta. Na idade avançada, sofrem tal ou qual depressão, retraem-se. A córnea acha­ta-se, a miopia atenua-se e pode mesmo chegar ao efeito contrário — à presbiopia. Os ossos, com a velhice, perdem a elasticidade, de vez que menos ricos dágua, como na mocidade.

“Uma vez rompido o equilíbrio, o desgaste dos tecidos se processa inevitàvelmente. O maxilar in­ferior diminui de volume, o mento se torna consi­derável, a pele das mãos e do rosto torna-se mais flácida, enruga-se, e aos músculos adelgaçados mín­gua contratilidade. Não podem os velhos fletir a medula espinal e a fronte lhes pende para adiante.

“Também as cordas vocais, como que se tornam mais secas, perdem em flexibilidade e elasté­rio; a voz é rouca, surda, ou metálica e áspera. Depois dos 50 anos o peso do cérebro também co­meça a diminuir.

“Tudo deve contribuir, na velhice, para avo­lumar a desproporção entre a sanguificação e a desassimilação. Com a matéria, a força decres­ce. Suavemente, aproxima-se o fim; a morte é um esgotamento resultante do empobrecimento mate­rial.” (19)

(19) Eis como se exprime Moleschott, sem uma pala­vra que venha coroar a aridez dessa descrição. Pedimos licença para compará-la ao fecho de capítulo análogo, de outro fisiologista alemão — Schleiden — e perguntar para que lado pendem as aspirações da alma. “Nossa percepção da vida e da morte, diz este, torna-se, na velhice, outra. que não a da mocidade. Os elementos acumulam-se no corpo, progressivamente; os Órgãos flácidos, flexíveis, enr­ijam-se, ossificam-se, recusam-se a trabalhar; a Terra atrai o corpo sempre maiormente, até que a alma fatigada desse constrangimento lhe abandona o invólucro já insustentável. Abandona o corpo de barro, nascido do pó, à combustão lenta, a que chamamos putrefação. Só a alma, imortal e in­corruptível, deixa a servitude das leis materiais e volve-se ao Regulador da liberdade espiritual.

Estas alegações são contestáveis. Ainda não está provado que o corpo humano se renova com­pletamente no período de um mês. Tecidas há que só se renovam assaz lentamente, dado que todos eles se renovem.

Em todas as idades se têm encontrado células embrionárias que, no entanto, se destinam a desa­parecer no próprio feto. Os humores da pálpebra, sequentes a pequenas inflamações (terçóis), em re­gra não são reabsorvidos antes de um ano. As unhas não se renovam em menos de seis meses. No estado de saúde, seu crescimento é de 2 milí­metros por mês, de sorte que, se guardássemos a unha do indicador num estojo cilíndrico, durante sessenta anos — tal como fazemos para conservar plantas raras — não teríamos afinal uma garra excedente de um metro e meio. Assim, poderíamos con­traditar os 25 dias e solicitar lapso um pouco mais longo para a renovação do organismo. Não é, po­rém, de mês ou de ano que se trata. O tempo não vem ao caso, como diz a sátira francesa, e, muito pelo contrário, quanto mais rápida e vultosa se faça a renovação da matéria corporal, mais apro­veita à nossa teoria.

Os materiólatras deduzem dos fatos aqui exa­rados a sua famosa assertiva, declarando provada a inexistência da alma, mediante essas transforma­ções químicas. Para nós, ao invés (note-se o con­traste), essas mesmas transformações induzem a declarar demonstrada, doravante, a existência da alma. Antes, porém, de argumentar, apraz-nos con­trapor um simples reparo a tão categórica afirma­tiva adversa, que proclama com tamanha seguran­ça e com verdade inconteste a só existência das moléculas materiais, e que só elas constituem o ser vivente, do berço ao túmulo.

Por um lado, afirmais que o corpo vivo não passa de um conjunto de moléculas, e, por outro, dizeis que todo esse corpo se rejuvenesce mensal­mente... Ao nosso ver, são duas proposições difíceis de conciliar. Como explicar o envelhecimento, se esse corpo material, na sua qualidade de mo­léculas químicas, nunca teve mais que um mês de idade? O turbilhão vital, na frase de Cuvier, o qual se sucede constante sob e sobre a nossa pele, nossa própria carne, sangue, ossos, cabelos, todo o corpo, é qual vestimenta que se renova de si mesma. O corpo do sexagenário, ou do octogenário, não tem mais que um mês, talqüalmente o da criança que apenas começa a andar. São, assim, sempre novos, os corpos e, certo, não podemos deixar de admirar essa engenhosa lei da Natureza. Entretanto, é tam­bém indubitável haver no mundo pessoas de todas as idades, na escala dos anos. O Sr. Moleschott conta, ao que presumo, 45 e o Sr. A. Comte de­veria orçar pelos seus 79. Vós, Sr. Vogt, nascestes no ano da graça de 1817. Temos assim, cada qual, a nossa idade. Cá por mim, sei que carrego menos de 20 lustros, que o Sr. Schopenhauer registaria muito breve. Ora, se é verdade que nosso corpo se renova mensalmente, ou anualmente — se assim o preferirem — que é que envelhece em nós?

Digamo-los ainda uma vez: não serão essas moléculas constitutivas do corpo, que ainda há pou­co não nos pertenciam e integravam-se num fran­go ou numa perdiz, num grão de trigo ou de sal, numa gota de vinho ou de café, por nós absorvidos, e que, ao demais, são imutáveis e, como coisa mor­ta, não podem envelhecer. Logo, existe em nós alguma coisa além dessas moléculas. Nosso orga­nismo tem envelhecido.

Prossigamos e entremos agora no âmago da questão. Permiti, antes de mais, assinalar que a todo instante a fraqueza do vosso sistema se tra­duz pela inconsequência forçada das expressões.

Sois os primeiros a conceituar a velhice como uma falta de equilíbrio entre a recomposição e a eliminação. À vida, plena, normal, chamais equilíbrio funcional. Ensinais que, havendo equilíbrio de sanguificação e eliminação, o corpo não se altera em sua provisão geral de matéria. Esse equi­líbrio mantém-se na idade adulta. É possível pe­sar um homem de 30 a 40 anos, a longos intervalos, sem constatar qualquer alteração de peso que se não explique por ganho ou perda imediatamente precedente.

Pois, muito bem: mas, pergunto eu, quem or­ganiza esse equilíbrio?

Pretendeis, bem sei, que não há força alguma interior a presidir a essa renovação molecular, mas tenho essa vossa pretensão como vanidade insus­tentável. A hipótese puramente materialista, da vida, a assimilação circulatória das moléculas ao movimento do vapor no alambique ou da eletrici­dade nos tubos de Geissier, não explica o cresci­mento nem a vida, nem a decadência, a senectude, a morte.

Para que haja equilíbrio, para que haja orga­nização no agenciamento das moléculas, é preciso que haja direção. De resto, tanto como Cuvier e Geoffroy Saint-Hilaire, não ilegais essa direção. Mas, como conceber direção sem força motriz? Ou­sareis negá-lo? Essa força diretriz não é um amál­gama de propriedades confusas, antes é soberana, necessária, pois é quem rege o turbilhão vital, assim como a atração rege o turbilhão de esferas planetárias.

Se não houvesse em nós uma força diretora, como explicar a formação e o desenvolvimento do corpo, nos moldes do tipo orgânico, do berço ao túmulo? Porque, depois dos 20 anos, esse corpo que absorve tanto ar e tanto alimento, como dan­tes, pára de crescer?

Quem distribui harmônica-mente todas as substâncias assimiladas? Após o crescimento em altura, quem limita a espessura? Quem dá força ao homem maduro, quem repara de contínuo as peças da máquina animada?

Sem admitir uma força orgânica, típica, vital (não nos atenhamos à palavra), como explicar a construção do corpo? O Sr. Scheffer diz que são as forças química e física. “Cada qual — di-lo .ele — exerce sobre as outras uma influência que dá ao organismo, em todas as suas peças, uma certa uniformidade de ordem mais elevada. As ações especiais das forças individuais se conjugam, a se­guir, num efeito total e formam uma resistência coordenadora da multiplicidade das partes num todo unitário, em que se desenha o tipo fundamental de toda a propriedade individual.” Eis o que se pode chamar uma luminosa explicação. Somente resta explicar como se produziriam todas essas ma­ravilhosas combinações, à revelia de uma unidade virtual, organizadora. Quem constrói esse organis­mo? Como podem as propriedades da matéria ope­rar sobre um plano, em conformidade com uma idéia que, por si, não podem ter? Como sabe o organis­mo, tão seguramente, escolher os alimentos que lhe convêm? Quem determina a reprodução fiel da espécie? É portanto mais fácil admitir todos os acasos, como diz Tissot, do que supor um princípio essencialmente ativo, dotado de potência organiza­dora e com faculdades de exercê-la no sentido de tal ou tal tipo específico? “No homem, respondem, no seu conteúdo material e nas substituições de subs­tância que nele se operam, a função química tem o seu papel, produz as partículas corporais capacitadas a servirem de suporte, ou substrato, de todo o edi­fício. Organiza-o a força vital, resultante de todas as combinações e desta organização é que resulta a força espiritual.” Aí temos, patente, mero pala­vreado que nada explica.

Vários materialistas, e com eles Mulder, riem-se da doutrina da força vital e comparam essa força a “uma batalha travada por milhares de comba­tentes, como se não estivesse em jogo apenas uma força que dispara os canhões, maneja os sabres, etc. O conjunto dos resultados, acrescenta Mulder, não é mais o resultado de uma única força, de uma força de batalha, mas a soma das forças e com­binações inúmeras, em atividade num tal acontecimento.” Concluem, assim, que a força vital não écausa, mas efeito.

À comparação não falta justeza e tem, ao de­mais, a inapreciável virtude de aproveitar mais a nós do que aos seus próprios imaginadores. De fato, é evidente, o que constitui a força de um exército e ganha a peleja não é tão só o esforço particular de cada combatente, mas, sobretudo, a direção global, a inteligência do generalíssimo, o plano da batalha, a ordem soberana que, do cére­bro do organizador, se irradia aos subchefes e vai, através dos batalhões, até aos soldados, molas arre­gimentadas.

Convencer-se-á alguém que não foi Napoleão quem venceu em Austerlitz? Perguntem a Thiers (que sabe mais do que o próprio Napoleão) se essas batalhas inolvidáveis, tanto quanto as ga­nhas e empenhadas de surpresa não revelam, aci­ma do valor pessoal de cada combatente, o gênio lúgubremente célebre que vingava atirar ao túmulo, num relance de olhos, milhares de criaturas em apogeu de força e atividade.

Se a um exército se impõe, imprescindível, o governo de um chefe e que uma severa disciplina o abranja na unidade de milhares de soldados, com maior soma de razão importa que uma força go­verne a matéria, reduzindo à unidade harmônica os milhões de moléculas que sucessivamente a con­formam.

Só mediante essa força é que existe o corpo, tal como se dá com o regimento, que, não sendo mais que uma entidade abstrata, existe por virtude de lei, antes que pelo valor de cada soldado. Che­gam os conscritos novos, dá-se baixa aos velhos, e de sete em sete anos está o regimento renovado. Nesse periodo, há licenças temporárias, engaja­mentos particulares e uma que outra modificação nas moléculas componentes do exército. Descul­pem: cada oficial ou soldado não é mais que um número, sua personalidade não entra em linha de conta. Podem os oficiais ser comparados aos zeros da ordem decimal, ou, por falar com mais ele­gância — chefes de dezenas ou centenas; mas, singularmente considerada, sua personalidade pou­co mais vale que um caçador. Os próprios coro­néis mudam, sem que o regimento deixe de existir na sua forma idêntica. Sofrem os generais, igual­mente, essas transições, que em nada prejudicam a existência das respectivas brigadas e divisões. A hierarquia militar é uma unidade e é nisso que reside a sua eficiência. Quanto às partes compo­nentes da unidade, não são conhecidas. Indubitá­vel, que um coronel à testa do seu regimento, ou um general na ativa, têm mais importância, do ponto de vista do serviço, do que um simples gra­nadeiro; da mesma forma que um átomo de gor­dura cerebral tem maior importância do que um folículo de unha.

Mas, o que constitui o tronco. ou o nó de uma fonte de galhos extensos, não épor si mesmo a fonte integral. Logo, a compara­ção dos adversos aproveita mais à nossa do que àsua tese.

Qual o homem culto, o observador de boa fé, que ousará negar seja o nosso organismo engen­drado por uma força especial? Qual a diferença de um cadáver para um corpo vivo? Há duas ho­ras que o coração de tal homem deixou de bater; ei-lo estendido no leito funerário, a vida escapou-se-lhe independente de qualquer lesão, sem que houvesse distúrbio orgânico. Seu estado desafia autópsia minuciosa. Quimicamente falando, não há diferença alguma entre este e o corpo que vivia esta manhã. Em que diferem, repito, o corpo vivo e o cadavérico? Pela vossa teoria, eles não dife­rem, têm o mesmo peso, tamanho, forma. São os mesmos átomos, as mesmas moléculas, as mesmas propriedades físico-químicas. Chegais mesmo a en­sinar que essas propriedades estão inviolàvelmente ligadas aos átomos. Aí temos, portanto, o mes­mo ser!

Mas, não vêdes que uma tal consequência vale por condenação formal do vosso sistema?

Porque a verdade é que um ser vivo difere, evidentemente, de um morto. Isso é coisa tão vulgarmente sabida, que não podeis contestar. Confessai, pois, que uma hipótese que ensina não ser a vida senão um con­junto de propriedades químico-atômicas, cai pela base e pela cúpola, de vez que, nascimento e mor­te, alfa e ômega de toda a existência, protestam vitoriosamente contra as conclusões dessa hipótese.

Chega a ser quase ultrajante para a inteligên­cia humana a obrigação de sustentar que um corpo vivo difere de um morto, e que neste já não existe força anímica. Afirmar que a vida é algo, é assim como afirmar que há luz em pleno dia. Devemos, porém, ensejar a que os antagonistas de além-Reno venham pôr os pontos nos is.

Preciso se faz que seja a força constitutiva da vida uma força muito especial, visto que, frente a ela, as moléculas corporais se distribuem harmô­nicas, numa unidade fecunda; ao passo que em sua ausência, essas mesmas moléculas se separam, se desconhecem, se combatem e deixam logo cair em total dissolução esse organismo que se faz pó.

Preciso, também, se faz que essa mesma força exista de uma forma particularíssima, pois que, de um lado, não sendo vivos todos os corpos da Natureza, e, do outro lado, sendo os corpos vivos compostos com o mesmo material dos inorgânicos, diferem, contudo, dos primeiros, pelas especiais e admiráveis propriedades da vida.

Preciso, ainda, seja a vida uma força sobe­rana, visto não passar o corpo de um turbilhão de elementos transitórios, em mutação constante de todas as suas partes, persistindo ela, enquanto que a matéria passa.

Concluir-se-á, daí, com Buffon, que haja no mundo duas espécies de moléculas, isto é: orgâni­cas e inorgânicas?

Que as primeiras sejam células vivas, dotadas de sensibilidade e irritabilidade, a passarem-se de um a outro ser vivo sem se imiscuírem nos corpos inorgânicos, enquanto que as segundas não entram na constituição geral da vida?

Mas a Química orgânica demonstrou, à sacie­dade, que os elementos da matéria vivificada são os mesmos que os do mundo mineral, ou aéreo, o que vale por dizer elementarmente oxigênio, hidro­gênio, azoto, carbono, ferro, cal, etc.

Dir-se-á, então, com o botânico Dutrochet e com o anatomista Bichat que a vida seja uma ex­ceção temporária às leis gerais da matéria, uma suspensão acidental das leis físico-químicas, que acabam sempre imolando o ser ao governo da ma­téria? Mas é uma idéia que não vacilamos em pro­clamar errônea, de vez que a vida é o alvo mais elevado e mais fulgurante da Criação, a perpe­tuar-se através das espécies, desde os primórdios do mundo.

De resto, digam e pensem como entenderem, a vida não deixará de ser uma força, superior às afinidades elementares da matéria.

O que caracteriza os seres vivos é a força or­gânica que aglutina essas moléculas, segundo a conformação específica dos indivíduos e conforme o seu tipo específico. “As verdadeiras molas de nosso organismo — dizia Buffon — não são estes músculos, artérias e veias, mas forças interiores, que não obedecem de modo algum às leis da gros­seira mecânica por nós imaginada, e às quais tudo desejaríamos subordinar (20). Em vez de procura­rem conhecer as forças por seus efeitos, trataram de as afastar e até banir da Filosofia. Elas reapareceram, contudo, e mais imponentes que nunca.

(20) Buffon, que nunca foi mecânico, enganou-se nes­te ponto, pois hoje sabemos que a Mecânica, tanto como a Química, representa um grande papel na construção do corpo. esse erro, porém, não impede que as palavras do grande naturalista exprimam a verdade no condizente à preponderância da Força.

Cuvier, mais explícito o declara, de vez que observara diretamente não passar a matéria de sim­ples “depositária da força, por esta constrangida, de antemão, a marchar no mesmo sentido que ela, bem como que a forma dos corpos lhe é mais essencial que a matéria, visto que esta transmuda, enquanto que aquela se conserva”.

As experiências de Flourens, sobretudo, evi­denciaram a mutabilidade da matéria, a contrastar com a permanência da força, que, a bem dizer, é o que tem de essencial o ser. Uma dessas expe­riências consiste em submeter um animal, durante trinta dias, ao regime da granza, que, sabemo-lo, é uma substância que tinge de vermelho os obje­tos dela impregnados. No fim de um mês o animal apresenta um esqueleto de cor vermelha. Em se lhe dando, a seguir, o alimento usual, os ossos entram a branquear, começando pelo centro, de vez que a renovação incessante, dos ossos como da carne, opera-se do interior para o exterior. Ou­tra experiência consiste em descarnar um osso e rodeá-lo de um fio de platina. Pouco a pouco, o anel de platina se recobre de camadas sucessiva-mente formadas e acaba ficando no interior do osso. Eis que assim se renovam os ossos. A carne e os tecidos moles sofrem uma ação mais rápida.

Com Quatrefages verificamos “duas correntes contrárias a circularem nas profundezas do ser: uma extraindo incessante, molécula por molécula, alguma coisa do organismo, e outra reparando, re­lativamente, todas as brechas que, por mais ex­tensas, acarretariam a môrte”. A força orgânica, que constitui o nosso ser, oculta-se sob a vesti­menta variável da carne, mas nós sentimo-la pal­pitante em seu ardente vigor. Ela nos conforma, dirige, governa. Atentai nesses representantes pri­mitivos da escala zoológica, nesses crustáceos pro­tegidos de uma couraça contra as subversões da crosta terrena; detende-vos nesses anelídeos, nes­ses vermes que, seccionados, continuam a viver. Arrancai à lagosta uma pata e esta lhe renascerá com todos os seus caracteres. Cortai-a de uma salamandra e vê-la-eis integralmente reconstituida. Esmagai a cauda de um lagarto, ela lhe renascerá. Seccionai a minhoca em muitos pedaços e cada qual recuperará o que lhe falte. A flor de coral, destacada de sua matriz, vai, através das ondas, constituir nova árvore. Será a matéria, só por si, que opera tais coisas? Será que coisas tais não revelam a ação constante da força típica que mo­dela os seres segundo a espécie, e que, sem dúvida, lhe é mais essencial do que as moléculas orgânicas com as suas propriedades químicas?

E, que haveremos de concluir da metamorfose dos insetos, essas formas transitórias, nas quais só a força persiste, através das fases de letargia e ressurreição? A falena que adeja, no ar luminoso, não será o mesmo ser há pouco existente na larva ou na lagarta?

Diante de fatos que tais é claro, incontrover­so, que uma força, seja qual for (o nome pouco importa), organiza a matéria, segundo a forma típica das espécies, animais vegetais.

Ora, nossos contraditores não vacilam em afir­mar que nada existe, absolutamente, e que tudo se pode explicar com as propriedades químicas das moléculas. Pretende, Moleschott, que “o conjunto das circunstâncias, esse estado mediante o qual a afinidade material engendra as mesmas formas per­sistentes, recebeu de Henle, a exemplo de Scheiling, o nome de força típica. Esta força típica é um pequeno passo precedente à força vital, visto com­portar tantos estados de matéria, quantos sejam os órgãos e as espécies. Mas, a força padronal de plantas e animais é uma idéia tão oca, tão pue­ril quanto à da força vital a que se radica.”

O Sr. Wirchow chama-lhe pura superstição, in­capaz de negar parentesco com a crença demoníaca e com a pesquisa da pedra filosofal.

Quanto ao autor do Estudo de Filosofia Positiva, esse fecha os olhos e clama: — “de real só há corpos”.

Bois-Reymond, a seu turno, declara, em uma obra sobre a eletricidade animal, que a pretensa força vital não passa de quimera.

Se os nossos antagonistas se obstinam em sus­tentar que os organismos estão submetidos a for­ças intrínsecas, não têm mais do que afirmar o seguinte: — “a molécula material, entrando no turbilhão da vida, recebe por algum tempo o dom de novas forças e torna a perdê-las quando o tur­bilhão da vida, agastado, a rejeite definitivamente nas plagas da Natureza inanimada”.

É um raciocínio falso, o desses senhores, de vez que basta à molécula a só entrada no turbilhão da vida para que se comporte de conformidade com o tipo individual que momentaneamente a re­tém. Para conservar o cepticismo, são obrigados, qual já o vimos, a fazer vista grossa à diferença que distingue o corpo vivo do cadavérico. Não se pode haver mais por duvidosa, na opinião de Du Bois-Reymond, a questão de saber “se a diferença

— única cuja possibilidade admitimos — entre os fenômenos da Natureza viva e morta, existe realmente. Uma diferença dessa espécie não existe. Nos organismos, forças novas não se agregam às moléculas materiais, nem força alguma que não esteja em atividade fora dos organismos. Portan­to, não há forças que se possam chamar vitais. A separação entre supositícias naturezas, orgânica e inorgânica, é absolutamente arbitrária. Os que teimam em mantê-la, os que pregam a heresia da força vital, seja com que rótulo for, fiquem cer­tos de haver jamais atingido as lindes do próprio raciocínio”.

Note-se, de passagem, esta firmeza e mais este leve tom de arrogância com que se referem aos que divergem das suas teorias. Veja-se como emi­tem as mais contestáveis proposições.

“As propriedades do azoto, do carbono, do hidrogênio, do oxigênio, do enxofre, do fósforo — afirmam — existem de toda a eternidade. Provem-nos o contrário... Calam-se? É que não têm razão?. E com isso, está ganha a partida. As pro­priedades da matéria não podem mudar, quando entra na composição de vegetais e animais. Logo, é evidente que a hipótese de uma força peculiar à vida é absolutamente quimérica!

Objetam, enfim, que essa força não existe, por­que «força sem substrato material é idéia abstrada, desprovida de senso”.

Por nós, não vemos a necessidade de admitir que não exista uma força típica, ou que essa força seja extrínseca à matéria. Os nossos negativistas incidem, aqui, no mesmo erro de quando se trata da existência de Deus, que declaram só possível de conceber fora do mundo. É sempre o mesmo prin­cípio que está em jogo. Ao demais, nos seria fácil demonstrar que todos os conhecimentos humanos se reduzem, última ratio, à noção da força e da extensão; poderíamos invocar o testemunho da Ma­temática, da Física, da Química, da História Na­tural em seus três reinos: Mineralogia, Botânica, Zoologia; a ciência do homem: Psicologia, Estética, Moral, Teologia natural, Filosofia; ciências que, todas, iriam esbarrar no mesmo nó substancial, isto é, ou seja a força e a extensão. Não cabe, entre­tanto, fazer aqui um dicionário. Baste-nos consi­derar do ponto de vista da vida esta dupla questão e notar, igualmente, o predomínio da força sobre a extensão.

Bichat definia a vida como conjunto de funções que resistem à morte. Sem tomarmos puerilmente, ao pé da letra, essa definição, perguntamos: qual a primeira imagem que nos oferece o exame da estrutura de um vegetal ou de um animal? Certo, é a coordenação das funções orgânicas que cons­tituem o ser vivente. E que será essa coordenação, senão um sistema de forças destinadas a movimen­tar a máquina animada?

Deste ponto de vista, o que a tudo sobreleva é a idéia dinâmica. Banida ela, o que nos fica é nada mais que um cadáver.

Se, da descrição do órgão apropriado ao seu funcionamento e desse conceito de forças parti­culares remontarmos ao conjunto do seu e à sua conservação, desde o começo ao fim da vida, con­cluiremos com Cuvier que “a vida é um turbilhão contínuo, cuja diretiva, por mais complexa que seja, permanece constante, tal como a espécie de mo­léculas que consigo arrasta, mas, não as moléculas individuais em si mesmas”. Aqui, ainda há reco­nhecer a presença da força, que, através da inces­sante mutação dos corpos, lhes assegura e conserva a identidade da forma. Ela — essa força, é pois a característica principal de todo organismo. E frisamos estas palavras de Cuvier: “as moléculas individuais circulam perpêtuamente, mas a espécie permanece sempre idêntica”. Essa permanência de­vemo-la à força.

Que sucederia, por exemplo, se apenas a forma se salvaguardasse e nenhuma direção virtual pre­sidisse à eleição das moléculas químicas? Teríamos, a breve trecho, o mais heterogêneo dos corpos ima­gináveis, ainda que guardando a perfeição da sua formação.

Imaginai, por exemplo, que o elemento essen­cial de uma face clara de neve; que o coralino de uns lábios, a gracilidade de uma boca, o matiz ex­pressivo de uns olhos puleros, fôssem, ocasional­mente, refeitos por moléculas de outra espécie, como, por exemplo — do iodo, que se torna negro ao contacto da luz; do ácido butírico, fundente ao Sol; ou de um sal qualquer, solúvel pela humidade, etc... Que belos espécimes daria assim a Humani­dade! E contudo, eis aí ao que se chega, em ne­gando a existência de uma força vital.

Passando do indivíduo à espécie, ainda aí no­tamos o predomínio necessário da força. Se cada indivíduo se mantém vivo, é graças à sua dinâmica íntima. Se as espécies vegetais ou animais perma­necem, é graças à força inicial que, só ela, pode caracterizar a identidade da espécie, transmissível à descendência e existente em estado latente, ou sensível, no óvulo vegetal como no óvulo animal.

Como pôde este carvalho enorme sair da ínfima bolota caída ao solo? Como se fêz carvalho, ao lado da fava que expeliu a faia; da batata, que engendrou o pinheiro; da amêndoa, que se fêz tum­ba do pilriteiro desdobrando-se em bagas escarla­tes; ou ainda, ao lado do grão de trigo e de aveia, na mesma terra, com o mesmo sol e a mesma chuva; em suma: nas mesmíssimas condições?

Porque será que os elefantes de hoje são exa­tamente idênticos aos de que Pyrrhus se utilizava, há 20 séculos, e o corvo de Noé (se é que Noé existiu) se vestia do mesmo luto destes que aí sul­cam os nossos céus de Setembro? Certo, porque o germe orgânico não reside somente na estrutura anatômica, mas, também e sobretudo, em uma for­ça especial que se encarrega, sem enganos possí­veis, da organização do ser, de modo a não dar a um cavalo uma cabeça de carneiro, nem a um coelho uns pés de pato!

Afirmando tão apaixonadamente a inexistência de uma força especial nos seres vivos, e que a vida mais não é que o resultado da presença simultâ­nea das moléculas constitutivas do animal ou ve­getal, justo seria procurassem, os arautos de tão audaciosas afirmativas, comprová-las experimental e ainda que modestamente. Improvisai um único, e o mais ínfimo ser vivo, e... nós nos renderemos. Vejamos: aqui está uma garrafa com carbonato de amoníaco, cloreto de potassa, fosfato de soda, cal, magnésia, ferro, ácido sulfúrico e sílica.

Sois vós mesmos a confessá-lo (21) que nesse fras­co está contido o princípio vital, compléto, de plan­tas e animais. Fazei, portanto, uma plantinha, um

(21) Circulation de la Vie, T. 2º, carta 15º.

só bichinho... Como assim? Calai-vos? Nada obs­tante, sois patrícios de Goethe! Não vos lembrais do lúgubre laboratório de Wagner, atochado de aparelhos esquisitos, disformes; de fornos e cubos destinados a fantásticas experiências? Ele, Wagner, já tem nas mãos a garrafa.

Apelai para a vossa memória e ouvi a cena maravilhosa do eterno Me­fistófeles a dialogar com o alquimista.

Wagner, atento ao forno: “O sino tangeu, percussão formidável! Abalou as paredes negras, fer­rugentas. Oh! a incerteza desta expectativa tão solene não pode prolongar-se muito. As trevas como que se desfazem, estou a ver no fundo da lente algo que reduz (22) como carbono vivo, ou, melhor, como esplêndido diamante, a clarear de mil facetas a escuridão ambiente. Agora, uma luz pura, bran­quíssima. Bem, desta vez espero que não escapa­ra... ah! maldição, quem bate assim à porta, jus­tamente...

Mefistófeles: (entrando) — Que há?

Wagner: (baixinho) — Está-se fabricando um ho­mem...

Mefistófeles: — Um homem? Mas, que amoroso casal meteste aí nessa chaminé?

Wagner: — Ora, valha-me Deus! Essa velha fór­mula de procriar já foi, há muito, reconhecida um simples gracejo. O foco sutil de onde bro­tava a vida, a força suave que de si exalava, e tomava e dava, destinada a formar-se por si mesma, alimentando-se a princípio das subs­tâncias circunvizinhas, e, a seguir, de substân­cias estranhas, tudo isso caducou e perdeu o seu prestígio. Se o animal ainda lhe encontra prazer, ao homem convém, por dotado de mais nobres qualidades, uma origem mais pura e

(22) A idéia de enclausurar Espíritos em frascos é muito comum na feitiçaria medieval, O Papa Benedito 9º expeliu sete Espíritos, de um açucareiro.

mais alta. (Voltando-Se para a fornalha) Quan­to brilho! veja... Dora em diante, é lícito esperar que, se de cem matérias, e por mistura — pois tudo depende da mistura — consegui­mos com facilidade compor a massa humana, aprisioná-la num alambique, coobá-la a preceito, a obra se completará em silêncio. (Vol­tando-se de novo para a fornalha) É o que está sucedendo: a mesma clareia-se e mais convicto me deixa, a cada instante. Tentamos, judiciosamente, experimentar o que se cha­mava — mistérios da Natureza — e o que ela produzia outrora, organizando, fazemo-lo hoje cristalizando.

Mefistófeles: — A experiência vem com a idade e a quem quer que tenha vivido bastante, nada ocorre de novo, na Terra. Por mim, confesso que nas minhas viagens encontrei, bastas ve­zes, muita gente cristalizada...

Wagner: (que não tirara o olho da sua lente) —A coisa está crescendo, brilhando, fervendo... Um instante mais, e a obra estará consumada. Não há ideal grandioso que à primeira vista não pareça insensato; contudo, doravante, que­remos sobrancear o acaso e dessarte, futura­mente, um pensador não deixará de fabricar um cérebro pensante...

(Contemplando a re­doma embevecido) O cristal retine, vibra; co­move-o uma força encantadora, ele como que se perturba e se aclara, O sucesso não tarda. Já estou a ver a forma elegante de um ho­memzinho gesticulando... Que mais desejar? Que pode o mundo querer de melhor? Eis o mistério a desnudar-se! Atenção! Esse timbre se articula, vozeia, fala!

Homúnculo: (de dentro da redoma, para Wagner)

— Bom dia, papai! então sempre era verdade, hein? Toma-me, aconchega-me ao teu seio com ternura, mas, olha, não me apertes muito, se­não... quebras o vidro. Isso é a propriedade das coisas: ao que é natural, só o Universo pode bastar; mas o artificial, ao contrário, re­clama o limitado. (Voltando-se para Mefistófeles) Tu aqui? Velhaco... Mas, ainda bem que o momento é azado e graças dou porque boa estrela te trouxe a nós. Já que estou no mundo, quero agir e meter desde logo mãos à obra. Hábil és tu para me desbravar o ca­minho.

Wagner: — Uma palavra ainda... Até aqui, mui­tas vezes me vi indeciso, quando moços e ve­lhos me vêm cumular de problemas. Ninguém, por exemplo, ainda compreendeu como a alma. e o corpo, tão intimamente conjugados e ajus­tados entre si, a ponto de os julgarmos para sempre inseparáveis, vivem em luta sem tré­guas e chegam a envenenar a própria existência... e depois...

Mefistófeles: — Alto lá! Eu antes quisera saber a razão por que o homem e a mulher não se entendem. Esta é uma questão que te há-de custar a resolver. Isso é o que vale tentar e opetiz deseja fazê-lo...“

Voltai, porém, a página do libreto. Vamos ao 1º ato, é Fausto, é a velha e nova Ciência quem fala:

Como tudo se movimenta para o trabalho universal! Como operam e cooperam as atividades todas, umas pelas outras! Como sobem e descem as forças, a permutar de mão em mão seus vasos de ouro, a tocá-los com as suas asas que exalam, nesse vaivém, do céu à Terra, uma com bênção de universal harmonia!

“Estupendo espetáculo! Mas... ó tortura! nada mais que espetáculo! Onde apreender-te, ó Natu­reza! Ó fontes de toda a vida! que abranjeis e nutris céus e terras, onde estais? Para vós se vol­tam os seios desnutridos, correis aos borbotões, inundais o mundo, enquanto em vão me consumo.”

Sim. Em vão vos consumis, tentando reivin­dicar para o homem a obra do Criador. É em vão que escreveis: Á onipotência criadora é a afinidade da vida... Com todo o vasto conhecimento da ma­téria e das suas propriedades, não conseguistes en­gendrar sequer um cogumelo.

Creio, porém, que de o fazer decimais e vos desculpais. O que não podemos, pode a Natureza, visto que ela ainda é mais hábil que nós. (Bela modéstia, na verdade.) Mas, então, que fazeis da inteligência, uma vez que, por outro lado, presumis não haver Espírito na Natureza? Mas vamos adian­te. Demais — acrescentais argutamente —, se ainda não produzimos seres vivos por processos químicos, temos, todavia, produzido matérias como, por exem­plo, o ácido característico da urina, e o óleo essen­cial da mostarda (éter alilsulfociânico), o que mui­to nos lisonjeia. Detenhamo-nos, pois, um instante, nas decisivas manipulações destes ilustres químicos.

A partir dos fins do último século, como ad­verte Alfredo Maury (23), tem-se reconhecido que as matérias que se desenvolvem nos vegetais e nos animais, recolhidas dos seus restos, encerram quase exclusivamente carbono, oxigênio, hidrogênio e azo­to. Daí se concluiu serem estes quatro corpos os princípios básicos elementares de todas as subs­tâncias orgânicas, e que se encontram muitas ve­zes combinados com alguns outros corpos simples e diversos sais minerais.

Este primeiro resultado nos ensinou que, se vegetação e vida são forças à parte, insusceptíveis de se confundirem com o simples movimento, com a afinidade e a coesão, elas de si nada criam e apenas apropriam o material do reino mineral que as rodeia. De fato, os quatro elementos orgânicos existem inteiramente formados na atmosfera. O ar é um composto de oxigênio e azoto, associados

(23) Revue des Deux Mondes — 1º de Setembro de 1865.

à pequena porção de ácido carbônico, ou seja de carbono combinado com o oxigênio. A atmosfera tem, ao demais, em suspensão, o vapor dágua e ninguém ignora que a água é um composto de oxi­gênio e hidrogênio. Portanto, as matérias orgâ­nicas tiram, dessa massa fluídica e inorgânica que as envolve e compenetra o nosso globo, os elemen­tos de sua composição. Quanto às outras substân­cias encontradas, por assim dizer, acidentalmente, em sua trama, são apropriadas do solo. As plan­tas os sugam e os animais, nutrindo-se das plantas. os assimilam.

A Química pode criar imediatamente esses ele­mentos orgânicos e foi o Sr. Büchner o primeiro a proclamá-lo, com entusiasmo. Os químicos fize­ram o açúcar de uva bem como vários ácidos or­gânicos. Criaram, dizem, diferentes bases orgânicas e entre elas a uréia, substância orgânica por exce­lência, em desmentido aos médicos que os argüiam de incapazes de obter produtos do organismo. Dia a dia vemos aumentarem as experiências químicas no sentido de criar combinações. O Sr. Berthelot conseguiu engendrar, de corpos inorgânicos, os derivados das combinações de carbono e hidrogênio, e esta descoberta, mau grado ao seu desacordo com a natureza orgânica, forneceu um ponto de partida para a composição artificial dos corpos orgânicos.

Hoje se fabrica o álcool e perfumes preciosos do carvão vegetal; da ardósia extraem-se velas; o ácido prússico, a uréia, a taurina e quantidade de corpos outros, havidos outrora por só criados de substâncias vegetais ou animais, tornam-se obte­níveis de simples elementos da Natureza inorgâ­nica. Assim, apagou-se, graças a essas manipula­ções, a clássica distinção entre a Natureza orgânica e inorgânica.

Em 1828, produzindo uréia artificial, Woehler derrubou a velha teoria que sustentava só possí­veis as combinações orgânicas engendradas por cor­pos orgânicos. Em 1856, Berthelot criou o ácido fórmico com substâncias inorgânicas, isto é, óxido carbônico e água, aquecendo estas matérias com a potassa cáustica e sem cooperação de planta ou animal qualquer. Logo após, conseguiram direta­mente destes elementos a síntese do álcool. Che­garam mesmo a produzir a gordura artificial do ácido oléico e da glicerina, duas substâncias que se podem obter por processos exclusivamente quí­micos, e aí temos um dos resultados mais extra­ordinários até hoje conseguidos na Química sin­tética.

Destes dados, o autor de Força e Matéria con­cluiu que importa banir da vida e da Ciência a idéia de uma força orgânica, produtora dos fenô­menos da vida, por maneira arbitrária e indepen­dente das leis da Natureza. Tal como ele, também repelimos o arbitrário, mas guardamos a força. Ele nos garante que a pretendida distinção rigo­rosa, entre o orgânico e o inorgânico, é meramente arbitrária. Mas, nisto, tem contra si os represen­tantes da vida terrena, em sua totalidade.

Sem embargo, Carl Vogt acrescenta que, “ale­gar a força vital, não passa de circunlóquio para mascarar ignorância, espécie de alçapões de que a Ciência está cheia e pelos quais se salvam sem­pre os espíritos superficiais, que recuam ante o exame de uma dificuldade, para somente se con­tentarem com milagres imaginários”.

Neste caso, a doutrina da força vital repre­sentaria hoje uma causa perdida. “Nem os esfor­ços dos naturalistas místicos, no intuito de reanimar essa sombra; nem os lamentos dos metafísicos esconjurando as pretensões e a irrupção iminente do materialismo fisiológico e contestando-lhe o contin­gente filosó fico; nem as vozes isoladas que assina­lam fatos da Fisiologia ainda obscuros; nada disso pode salvar a força vital de próxima e completa ruína.

Há alguns anos, Bunsen e Playfer mostraram — diz o autor de A Circulação da Vida, e Rieken confirmou logo após — que é possível obter ciano­gênio (combinação de azoto e hidrogênio) à custa de substância inorgânica. Por outro lado, sabemos que o hidrogênio, no momento em que se separa das suas combinações, pode unir-se ao azoto para formar o amoníaco. De resto, pode-se ir do ciano­gênio ao amoníaco. Basta expor ao ar o cianogê­nio dissolvido em água, para que se vejam flocos pardacentos desagregando-se do líquido, sinais de decomposição, em seguida à qual encontramos o ácido carbônico, o prússico, amoníaco, oxalato de amoníaco e uréia, dissolvidos no líquido. O ácido oxálico é uma combinação de carbono e oxigênio que, pela mesma quantidade de carbono, não con­tém senão três quartos do peso de oxigênio e ácido carbônico, O ácido oxálico é o causador do paladar acidulado de azeda, da oxálida e de muitas plan­tas outras. É um ácido orgânico que, conforme acabámos de dizer, podemos preparar mediante cor­pos simples, sem o concurso de qualquer organis­mo.

“Assim, ficamos agora conhecendo três subs­tâncias, exclama Moleschott: uma base orgânica — o amoníaco; um principio acidulante orgânico — o cianogênio, e um ácido orgânico — o oxálico, que podemos fabricar com corpos simples.

Não há muitos anos, acreditava-se• possível pre­parar um e outro mediante decomposição de com­binações orgânicas as mais complexas, mas nin­guém imaginaria obtê-las de elementos simples. No amoníaco temos uma combinação de azoto e hi­drogênio, sem partilha de corpos orgânicos. Este enigma, que a esfinge da força vital nos antepunha como espantalho, para impedir o nosso avanço na preparação artificial das combinações orgânicas, foi resolvido por Berthelot. Ele derrubou a esfinge e seus adoradores, substituindo-os por uma plêiade de investigadores, a cujas mãos passou os fios que lhes deverão servir para levar avante a trama das descobertas, a fim de reproduzirem todas as peças do mundo orgânico.”

Acrescentamos que se obtém hoje o ácido acé­tico, fazendo passar por três estados um combinado de cloro e carbono, e que são: percloreto de car­bono, ácido cloracético e cloreto de carbono, bem como que a combinação direta de carbono e hidro­gênio dá. a síntese do acetileno (24)

Mais fácil ainda é preparar o ácido fórmico com o só auxílio de corpos simples, qual o conse­guiu o professor do Colégio de França, operando com a potassa húmida sobre o gás óxido-carbônico, num globo de vidro à prova de fogo e por espaço de setenta e duas horas, à temperatura de 100 graus (25).

De resto, a Natureza extrai as substâncias or­gânicas da mesma fonte a que recorrem os químicos em seus experimentos de laboratórios.

Certamente, palmeamos a duas mãos (mesmo porque com uma só fora impossível) essas admi­ráveis tentativas da Ciência, e não é a nós que poderiam reprochar embargos ao gênio criador do homem. Ele, o homem, está na Terra para conhe­cer a Natureza e senhorear a matéria. O conhe­ce-te a ti mesmo dos antigos se traduz em nossos dias pelo estudo do mundo exterior, e é por esse estudo fecundo que verdadeiramente aprenderemos a conhecer-nos a nós mesmos.

Acreditamos com o Sr. Maury que o alcance de tantas descobertas compensa de sobejo o esfor­ço para as compreender. Que ciência nos poderá mais cativar do que a que nos revela a matéria de que nos constituímos e nos alimentamos; as substâncias com as quais estamos em contacto, os efeitos físicos que se operam dentro e fora de nós, onde transitam e como rejeitamos as partículas incessantemente assimiladas?

(24) Berthelot — Chimie Organique Fondée sur la Synthèse.

(25) Sobre os recentes progressos da Química orgâni­ca, convém consultar os interessantes relatos das sessões da Academia, principalmente nestes últimos tempos.

Não são assuntos de somenos, estes, particula­ristas e momentâneos: antes são problemas que abrangem a humanidade física em sua totalldade, é o mundo dos seres a que pertencemos, que está em jogo.

Despendendo amiúde muito trabalho e inteli­gência para penetrar no dédalo de mesquinhas con­trovérsias e fatos insignificantes, como descurarmos o que mais interessa, ou seja, esta maravilhoSa Natureza no seio da qual nascemos, vivemos, morremos; que nos precede e nos sobrevive, fornecendo a todas as gerações os princípios essenciais de sua própria existência?

Mas, nem por isso, nos associamos às preten­sas consequências que os senhores materialistas deduzem, conseqüências que os senhores Berthelot e Pasteur, e os químicos práticos, são os primeiros a repudiar. Os materialistas presumem ter a chave mais difícil do enigma, uma vez que podem pro­duzir gás artificial com os corpos simples. Mistu­rando-se cianato de potassa e sulfato de amoníaco, a potassa combina-se com o ácido sulfúrico e o ácido ciânico com o amoníaco. Esta última combina­ção não é cianeto de amoníaco e sim uréia. Admi­rai agora a ilação: “É graças a esta brilhante descoberta que Liebig e Woehler abriram dilatadas perspectivas nessa via e conquistaram um eterno galardão, dando, um tanto involuntária e despre­concebidamente, a prova de que, doravante, a fla­ma da vida se resolve em forças físicas e quími­cas.” Que honra para Liebig e Woehler o serem assim arrastados para as nascentes do Aqueronte. Nossos inimigos gostam desse rio e das suas mar­gens sombrias. “Certo — acrescentam — o químico Isento de preconceitos, que não fala a serviço do trono e do altar, contando tranqüilamente com a vitória certa, pode sorrir do pobre filósofo, cujo saber não ultrapassa o conhecimento da uréia e que acredita impor limites ao poder do fisiologista. Que altar e que trono nomeariam ministros uns tais lógicos? A própria Ciência vive retraida em seu santuário e os deixa rondar o tempo, a repicar o sino e fazer evoluções.

Que conclusão definitiva tira a escola mate­rialista dessas manipulações? A de que a Química e a Física nos oferecem provas evidentes de que as forças conhecidas, das substâncias inorgânicas, exercem a sua ação, tanto em a Natureza viva como na morta.

Pela mesma razão que os obrigou a divinizar a matéria, em substituição a Deus, vemo-los animar, sem cerimônias, a matéria para destronar a vida.

“As ciências — diz o autor de Força e Matéria

— perseguiram e demonstraram a ação dessas for­ças no organismo de plantas e animais e, às vezes, até nas combinações mais sutis. No presente, está geralmente constatado que a Fisiologia, ou seja a ciência da vida, já não pode prescindir da Química e da Física, e que nenhum processo fisiológico se opera à revelia das forças químicas e físicas.”

“A Química — diz a seu turno Miahle — tem, incontestavelmente, parte na criação, no crescimen­to, na existência de todos os seres vivos, seja como causa ou como efeito. As funções da respiração, da digestão, da assimilação e da secreção, não se realizam senão por meio da Química. Só ela nos pode desvendar os segredos das importantíssimas funções orgânicas.”

O hidrogênio, o oxigênio, o carbono, o azoto, declaram-no enfaticamente os materialistas, entram nas mais diversas condições de combinações nos corpos e agregam-se, separam-se, atuam obedientes às mesmas leis que os regem fora desses corpos. Os próprios corpos compostos podem apresentar os mesmos caracteres. A água, a mais volumosa subs­tância de todos os seres orgânicos, sem a qual não há vida animal nem vegetal, penetra, amolece, dissolve, adere, cai, segundo as leis do peso e evapo­ra-se, precipita-se, forma-se dentro como fora dos organismos. As substâncias inorgânicas, os sais calcáreos que a água contém em estado de compo­sição, ela os deposita nos ossos dos animais ou no vaso das plantas, onde essas substâncias afetam a mesma solidez que no domínio inorgânico. O oxigênio da atmosfera, que, nos pulmões, entra em contacto com o sangue venoso, de cor negra, co­munica-lhe a cor vermelha, que o sangue adquire quando agitado num vaso em contacto com o ar. O carbono existente no sangue sofre, com esse con­tacto, os mesmos efeitos da combustão operada em toda parte, transformando-se em ácido carbônico. Pode-se razoavelmente comparar o estômago a uma retorta na qual as substâncias, postas em contacto, se decompõem, se combinam, etc., segundo as leis gerais de afinidade química. Um tóxico, entrado no estômago, pode ser neutralizado pelos mesmos processos exteriormente utilizados. A substância morbifica porventura lá fixada, neutraliza-se, des­trói-se, mediante remédios químicos, como se este processo se operasse num frasco qualquer, que não no interior de um organismo. A digestão é ato de pura química. Longe poderíamos prosseguir no as­sunto. A observação — diz Miahle — nos ensina que todas as funções orgânicas se operam mediante processos químicos, e que um ser vivo pode com­parar-se a um laboratório de química, em que se processam os atos da vida em seu conjunto. Me­nos evidentes não são os processos mecânicos de­terminados pelos organismos vivos. A circulação do sangue se realiza pelo mais perfeito mecanismo imaginável. O aparelho produtor assemelha-se, per­feitamente, aos aparelhados por mãos humanas. O coração tem válvulas e êmbolos, tal como as máquinas a vapor, e cujo funcionamento produz ruídos distintos. Entrando nos pulmões, o ar fric­ciona as paredes dos brônquios e engendra o sopro respiratório. Inspiração e expiração são resultantes de forças puramente físicas. O fluxo ascensio­nal do sangue, das extremidades inferiores do corpo para o coração, contrário às leis de gravidade, não pode verificar-se senão por um aparelho puramen­te mecânico. É também por um processo mecânico que o tubo intestinal, graças a um movimento peristáltico, expele os excrementos de alto a bai­xo, e ainda por processo mecânico se verificam os movimentos musculares de homens e animais.

A estrutura do olho radica nas mesmas leis da câmara-escura, e as ondulações do som trans­mitem-se aos ouvidos como a qualquer outra cavidade. “A Fisiologia tem, pois, absoluta razão — concluem Büchner e Schaller — propondo-se provar, hoje, que não mais existe essencial diferença entre o mundo orgânico e o inorgânico.”

Não há diferença entre o orgânico e o inor­gânico! Mas, convenhamos em que não pode haver no mundo uma proposição mais falsa.

As reações operadas nos corpos vivos longe estão de se identificar às que se operam com os mesmos líquidos numa retorta.

As forças organizadoras, como as denomina. Bichat, esquivam-se ao cálculo, atuam de feição irregular e variável. Ao invés, as forças físico-quí­micas obedecem a leis regulares e constantes.

O autor de um parte recente, intitulado — A Ciência dos Ateus, evidencia muito bem esta ver­dade com os seguintes exemplos: “Injetai nas veias do animal os elementos constitutivos do sangue, exceto o que lhe produz a síntese, que não se en­contra à vossa disposição, e em vez de prolongar a vida do animal tê-lo-eis simplesmente matado. Também o sangue que fique algum tempo fora da veia, se for novamente injetado pelo orifício que o extravasou, pode ocasionar os mais sérios dis­túrbios. Introduzi no estômago do cadáver subs­tâncias alimentares e vereis que ao contacto dos tecidos elas se putrefarão, elas que, no animal vivo, se transformariam em sangue para lhe manter a vida. Pergunta-se, então, aos químicos, como atuam no organismo o ópio, a quinina, a noz-vômica, o enxofre, o iodeto de potássio, etc. Qual a ação química da nicotina, do ácido prússico, de todos os venenos vegetais que não deixam vestígios? Como age o curare no tétano?

Porque a ipeca no estômago faz se contraiam desde logo os músculos inspiradores, etc.? “Ação de presença, dizem os físicos e repetem os quími­cos, acreditando, os sisudos doutores, ter cabalmente respondido!”

Atentatória da verdade é a pretensão de ex­plicar pela Química e pela Física os fenômenos fisiológicos, afirmando a identidade das reações in­tra e extra-orgânicas. A Química e a Física se conjugam, porque as mesmas leis presidem à sua fenomenologia; mas um imenso intervalo as sepa­ra da ciência biológica, porque existe enorme dife­rença entre as suas leis e as leis da vida.

Dizer que a Fisiologia é a física animal, é dar uma definição tão inexata como se disséssemos que a Astronomia é a física dos astros. A esse conceito de Bichat o Dr. Cerise adita: “os fenômenos vitais são complexos e as forças físicas neles cooperan­do, incontestavelmente, mas em proporções difíceis de medir, os submetem ao império de uma força superior, que os rege em função de suas finali­dades”.

Da mesma opinião os anatomistas Piorry, Malgalgue, Poggiale, Boullaud: “Acima de todas as ciências — diz este — como acima de todas as leis, a vida domina, modifica, neutraliza, diminui ou au­menta a intensidade das forças físico-químicas”.

Nosso Dumas, químico eminente, diz algures: “Longe de amesquinhar a importância dos fatos, aos quais obedece a matéria morta, a noção da vida se altana e ressalta do conhecimento íntimo dessas leis; e a convicção da sua essência miste­riosa e divina se engrandece mercê de sérios estu­dos da Química orgânica.”

As operações químicas, suscetíveis de realizar em nosso organismo, não se devem confundir com ás inerentes à fisiologia do nosso ser, eis o que é preciso assentar desde logo. Sob o primeiro ponto de vista, a identidade das forças que concorrem para formar substâncias orgânicas e inorgânicas é um fato inconcusso, averiguado. Conformando-se às leis naturais, o químico compõe uma série de combinações também encontradas em corpos orgâ­nicos, e, mais fecundo que a própria Natureza, pode, a seu alvedrio, operar outras combinações inexistentes nos organismos terrestres, assim transpor­tando, talvez, a sua ciência ao domínio de outros mundos.

Sabe ele que a fermentação é um processo ge­ral de intervenção que determina, não apenas os fenômenos da morte e da decomposição, mas tam­bém os do nascimento e de todas as funções vitais, a partir do grão de trigo que germina e do vinho que ferve, até à levedura do pão, da cerveja, e aos fenômenos de nutrição e digestão. A Química orgânica tem as mesmas bases da Química mineral. Ninguém melhor que o Sr. Berthelot expõe essas conquistas da ciência dos corpos, assim como nin­guém lhes traça os limites ante o problema do nosso ser. Ouçamo-lo portanto:

“Tudo havia concorrido (26) para que a maio­ria dos espíritos éncarasse como intransponível a barreira entre as duas químicas. Para explicar a nossa impotência, inferiam uma rasão especiosa da intervenção da força vital, apta, até então, a só compor substâncias orgânicas. Era, diziam, uma força misteriosa, a determinar exclusivamente os fenômenos químicos observados nos seres, agindo em virtude de leis essencialmente distintas das que regulam os movimentos da matéria puramente mó­bil e quiescente. Tal a explicação com que se pre­tendia justificar a imperfeição da Química orgâ­nica, declarando-a, por assim dizer, irremediável. Assim proclamando nõssa absoluta impotência para produzir matérias orgânicas, duas coisas se confundiam: ­

(26) Chimie Organique Fondée sur la Synthèse.

a formação de substâncias químicas, cujo agregado constitui os seres organizados, e a formação dos próprios órgãos. Este último problema não pertence aos domínios da Química. Jamais o químico pretenderá fabricar no seu laboratório uma folha, um fruto, um músculo, um órgão. Questões são estas que afetam a Fisiologia, e a esta é que compete discutir-lhes as premissas, desvendar as leis que regem os seres vivos na íntegra, pois que à revelia dessa integridade nenhum Órgão teria ra­zão de existir e nem o meio necessário à sua for­mação.

“Entretanto, o que à Química não é dado fa­zer no plano orgânico, pode empreender no fabrico de substâncias contidas nos seres vivos.

“Se a própria estrutura de vegetais e animais lhe escapa às aplicações, não lhe anula a pretensão de conseguir os princípios imediatos, isto é, os ma­teriais químicos que constituem os órgãos, indepen­dentemente da estrutura especial das fibras e cé­lulas que esses materiais afetam, nos animais e nos vegetais. Esta mesma formação e a explicação das metamorfoses ponderáveis, que a matéria ex­perimenta nos seres vivos, constituem campo assaz vasto e belo para que a síntese química o reivin­dique inteiramente.”

Esta declaração, na qual os adversários pre­tendem ver a vitória definitiva do materialismo, sugere-nos acreditar em dois pontos fundamentais:

1º — que a formação das substâncias orgânicas pode ser devida às mesmas leis que regulam o mun­do inorgânico e 2º — que a própria formação dos órgãos deriva de uma força estranha aos domínios da Química. Quanto ao primeiro ponto, triunfa o espiritualismo, qual o vimos, de vez que as forças que regem o mundo inanimado revelam a existên­cia de um arquiteto inteligente. E quanto ao se­gundo, o triunfo é ainda mais brilhante, de vez que a Química orgânica capitula diante do ser vital. Tal como judiciosamente adverte o Sr. Langel, essa química estuda e compõe, somente, os materiais da vida, sem se preocupar com o ser vivo em si mesmo. Esboça, por assim dizer, as tintas do qua­dro, tornando-se preciso outra mão que aplique essas tintas, e criem a obra em que elas se fundem em perfeita unidade.

Quando a Química deixou adivinhar no ser hu­mano um alambique no qual o ácido procura a base, as moléculas se agrupam de acordo com as leis de que falamos na primeira parte; quando fi­zeram ver que o animal vivo não passa de um vaso de reações, e que as forças químicas e físicas nele se entregam a perpétuo combate em campo fecha­do; quando mostraram que os fenômenos da fecundação, da nutrição e da própria morte, mais não são que fermentações ordinárias, já se não sabe mais onde residem essas forças misteriosas que de­nominamos vida, instinto e consciência, quando se trata de criaturas humanas. Não tardaremos a en­trar no âmago desta grave questão. Por enquanto, confessamos com o Sr. Langel (27) que “a Ciência pode arrastar-nos a dúvida, a negações espanto­sas, tendo ela mesma os seus mistérios insondáveis às vistas humanas. Também ela se contenta com palavras, sempre que não pode penetrar a essência mesma dos fenômenos. Não nos fala a Química, constantemente, de afinidade? E não temos aí uma força hipotética, uma entidade tão pouco tangível quanto a vida, ou quanto a alma? A Química re­cambia à Fisiologia a idéia da alma e recusa-se a tratar do assunto, mas, perguntamos, a idéia em torno da qual se desdobra a Química tem algo de mais real? Essa idéia é, muitas vezes, inapreen­sível, não só na essência como nos efeitos. Pode-se, por exemplo, meditar um instante nas leis conhe­cidas como leis de Berthelot, sem compreender que se está em face de um mistério impenetrável? No

(27) Science et Philosophie.

simples fenômeno de uma combinação, no arras­tamento que precipita dois átomos que se procuram e se reúnem, escapando aos compostos que os apri­sionavam, não há o suficiente para nos confundir a inteligência? Quanto mais estudamos as ciências na sua metafísica, mais nos podemos convencer que esta nada tem de inconciliável com a mais idealis­ta filosofia: as ciências analisam as relações, afe­rem medidas, descobrem as leis que regulam o mundo fenomenal; mas não há fenômeno algum, por insignificante que seja, que não as coloque em face de duas idéias, sobre as quais o método expe­rimental carece de eficiência, a saber: 1º — a essência da substância modificada pelos fenômenos, e, 2º — a força que provoca essas modificações. Só conhecemos e vemos, por fora, as aparências; a verdadeira realidade, a realidade substancial, a causa, nos escapa. Digno é de uma alta filosofia considerar todas as forças particulares, cujas ma­nifestações são analisadas pelas diversas ciências, como oriundas de uma força primária, eterna, ne­cessária, fonte de todo o movimento e centro de toda a ação. Em nos colocando neste ponto de vista, os fenômenos e os próprios seres não são mais que formas mutáveis de uma idéia divina”.

Pode a unidade a que tende a Química fazer-nos pressupor que o mundo animado e o inani­mado sejam regidos por leis idênticas? Deveremos lisonjear-nos com idéia de poder um dia, não ape­nas refazer artificialmente todas as matérias or­gânicas, mas reproduzir “ad libitum” as condições em que hajam de aflorar a vida vegetal ou animal? Não, certamente. Tais pretensões seriam ilusórias. Não dispomos da vida. Fisiologia e Química são domínios que se extremam e se. distinguem, como se não distinguiam há um século a Química orgâ­nica e a mineral.

Em parte alguma, a planta mais rudimentar, o animal mais ínfimo da escala zoolõgica, nasceram do concurso das afinidades químicas. Por maiores progressos que faça a Química orgânica, ela será sempre detida pela impossibilidade de originar a força vital, de que não dispõe.

Não, senhores, em que pese à vossa atitude afirmativa e audaciosa, vós não podeis criar a vida, nem sabem, sequer, o que seja a vida, e sois cons­trangidos a confessar a vossa ignorância, ao mes­mo tempo que ofereceis as provas da vossa impo­tência.

É em vão que revidais com fogos fátuos e gratuitas Suposições:

“Para sustentar uma força vital original —dizeis — invoca-se amiúde a nossa impossibilidade de criar plantas e animais; e nada obstante, se pudéssemos senhorear a luz, o calor, a pressão atmosférica, tanto quanto as relações de peso da matéria, não somente ficaríamos aptos a recom­por corpos orgânicos, como capacitados a preencher as condições que engendram o nascimento desses corpos.”

A seguir, acrescentais, sem perceber que as vossas próprias palavras reforçam a nossa causa:

«Desde que os elementos ditos carbono, hidrogênio, oxigênio, azoto, se encontram organizados, as for­mas fixas daí resultantes têm o poder de conser­var-se no seu estado, e, tal como no-lo ensina a experiência até hoje adquirida, elas persistem atra­vés de centenas e milhares de anos. Por meio de sementes, de brotos e de ovos, essas formas reapa­recem numa sucessão determinada.”

Por outros termos, duas proposições se eviden­ciam: a primeira é que não poderíamos engendrar a vida senão como legado potencial da Natureza e a segunda é que a vida se mantém, persistente e transmissível, graças a uma virtude que lhe é própria.

Tal é, verdadeiramente, a questão, e de duas uma: ou o homem é, ou não é (nem será) capaz de originar a vida.

Neste último caso, as pretensões materialistas estão irremissivelmente condenadas e, no primeiro, por si mesmas se condenam, da seguinte forma:

Laborando na organização da vida, sois forçados a vos submeter às leis ordenadas e as aplicar passi­vamente, sem as contrariar de qualquer forma. Então, já não seríamos nós a originar a vida e sim as leis eternas, das quais nos arvoraríamos, por um instante, em simples mandatários.

Já vos ouço bradar — sofisma! — e declarar que procuramos escapar pela tangente. Mas... per­dão, senhores, notam em primeiro lugar que se al­guém se esquiva num procésso, esse alguém só pode ser o acusado e considerai, depois, que, assim ra­zoando, não ficamos à superfície e penetramos o âmago da questão. Refleti um momento: bem sa­beis que neste mundo nada criamos e apenas apli­camos leis predominantes.

Criais, porventura, o oxigênio quando, pelo ca­lor, decompondes o bióxido de manganês e as bolhas afloram no tubo de escapamento? Não; apenas rou­bais ou — se preferis — pedis ao bióxido de man­ganês o terço de oxigênio nele contido. Criareis o azoto retirando oxigênio do ar atmosférico? O próprio nome do processo está a indicar que ele consiste numa subtração. Criais a água quando, reunindo no eudiômetro o hidrogênio ao oxigênio, lhe fazeis a síntese? Ou isso não passa de mera combinação? Com a decomposição do carbonato de cal, pelo ácido clorídrico, criareis o carbono? E os ácidos oxálico, acético, lático, tartárico, tânico, quando os extraís dos materiais vegetais ou ani­mais, mediante agentes oxidantes, acaso os tendes criado? Não, mil vezes não. Se nos servimos, por vezes, do vocábulo — criar, é por abuso de lingua­gem. Ora, ainda mesmo que conseguísseis fazer um pedaço de carne, nem por isso o teríeis criado e sim, apenas, reunido os elementos que constituem a carne, segundo as leis inexoráveis, assinadas àorganização da Natureza. E dado que os pósteros possam ver um dia surgir do fundo de suas retortas um ser vivo, ainda assim, de antemão lhes dizemos que muito se iludiriam se concluíssem pela inexis­tência das leis divinas, pois não haveria de ser à revelia delas que houvessem de consumar essa obra-prima da indústria humana.

Enfim, dado que os precedentes raciocínios não sejam suficientes para caracterizar vossa erronia, consentimos, ao termo desta exposição sobre a cir­culação da matéria, em admitir que a Natureza emprega, para construir seres vivos, os mesmos processos do homem, isto é: — trata simplesmente pela química as matérias inorgânicas. Ora, ainda nesta hipótese, não haveria como negardes a ne­cessidade, para o construtor, de saber o que pre­tende fazer, ou de operar com um plano determi­nado. Pois uma natureza inteligente, ou o ministro de uma inteligência, substitui o químico. A obra do gênio consiste, precisamente, em fazer derivar de um pequeno número de princípios, facilmente formuláveis, as mais engenhosas aplicações, os in­ventos mais extraordinários.

Esse gênio, do qual as mais portentosas inte­ligências humanas não representam senão partícu­las infinitesimais, reduziu à extrema simplicidade, à maior simplicidade possível, todas as operações da Natureza. A divina inteligência apresenta-se-nos como a consciência de uma lei única, abrangendo o todo universal, e cujas aplicações indefinidas en­gendram uma multidão de fenômenos que se aglu­tinam por analogia, regidos pelas mesmas leis secundárias, decorrentes da lei primordial. Certo, o químico ainda não substitui a vida, nem sabe formar o embreão em que o germe representa um pa­pel tão maravilhoso. Em seus atos, contudo, ele se esforça por substituir a Natureza. E como? — pela inteligência. Um elemento existe, absolutamente indispensável: a inteligência.

Soberana, ela se impõe ao raciocínio de quantos estudam a Natureza. E torna-se visível nessas regras que podem ser prêviamente determinadas, calculadas, combinadas, de vez que guardam entre si um encadeamentO admirável e são imutáveis em condições idênticas, porque receberam a inflexibi­lidade da infinita sabedoria.

Está, portanto, demonstrado, à saciedade, que a circulação da matéria não se efetua senão sob a direção de uma força inteligente.

Mas, seja qual for o rumo que trilhemos, o desvio em que nos propusermos acompanhar-vos, voltamos sempre, a despeito de tudo, à formação da Natureza, à causa causal de quanto existe, e aqui o campo se torna mais vasto ainda. Os pro­cessoS humanos já não embaraçam a vista. No extremo de todas as avenidas, chegamos ao ponto capital e trata-Se, agora, de examinar a origem mesma da vida na Terra. Estarão os seres vivos encerrados na superfície do globo? Teriam aí sur­gido em seis dias, ao toque da vara de um mágico? Despertaram a súbitas do seio das florestas, da margem dos rios, nos vales adormecidos?

Que mão teria conduzido o primeiro homem do céu aos bosques do Éden? Que mão pudera abrir-Se no ar e soltar a chusma canora de lindas pluma­gens? Seriam as forças físico-químicas, que, num espasmo fecundo, teriam dado nascimento aos ha­bitantes de mares e continentes? Nós não encon­tramos seres que não tenham nascido de um casal, ou cujo nascimento não se ligue às leis estabele­cidas para a reprodução. Como teriam surgido na Terra as espécies vegetais e animais? Eis a questão que atualmente nos interessa. Depois de observar a platéia e o comentário dos espectadores, levan­temos o pano que oculta o verdadeiro cenário e apreciemos a peça. A Natureza é sempre o maqui­nista invisível. Tentemos surpreendê-la, na espe­rança de que ela não seja bastante atilada para subtrair-se à nossa perquisição.

2

A ORIGEM DOS SERES

SUMÁRIO — A criação segundo -o Materialismo antigo e o contemporâneo. — História científica das gerações espontâneas. — De como a hipótese da geração espontânea não afeta a personalidade de Deus. — Erro e perigo dos que se permitem intermitir Deus em suas controvérsias. — De como a aparição sucessiva das espécies pode resultar de forças naturais, sem que o ateísmo algo possa ganhar com esta hipótese. — A Bíblia é atéia? — Origem e transformação dos seres. — Reinos vegetal, animal, humano. — Ancianidade do homem. — Que todos os fatos da Geologia, da Zoologia ou da Arqueologia não inquietam a Teologia natural.

“Aos primeiros calores da Primavera os vo­láteis de qualquer espécie alaram-se no espaço, li­bertos do ovo natal. Nos dias estivais, podemos surpreender a cigarra, rompendo o frágil casulo, partir, cindir os ares ávida de luz e de alimento. Não de outro modo a Terra produziu a raça hu­mana; a onda e o fogo, encerrados no solo, fer­mentaram e fizeram crescer, nos lugares propícios, germens fecundados, cujas raízes vivas mergulha­vam na terra.

Chegado o tempo da maturidade e rompido o invólucro que os enclausurava, cada em­brião deixou o âmago húmido da terra e apoderou-se do ar e da luz. Para eles se dirigem os poros sinuosos da terra, e, reunidos em suas veias entre­abertas, escorrem ondas de leite. Assim, vemos ainda, depois da gestação, as mães se repletarem de um leite saboroso, porque os alimentos, conver­tidos em suco nutritivo, lhes intumesce o seio. A terra, portanto, alimentou os seus primeiros filhos, que tiveram no calor as primeiras vestes, e, por berço, a relva abundante e macia.

“Assim como a tenra avezinha, ao nascer, se reveste de plumas ou de sedosa lanugem, assim a terra jovem se recobre de macia ervagem e flébeis arbustos. E não tarda, também, a conceber as es­pécies animadas, mediante combinações inúmeras e variadas: a terra incuba os seus habitantes, que não desceram dos céus nem emergiram dos abis­mos tenebrosos. É pois, a justo título de reco­nhecimento, que se lhe dá o nome de mãe. Tudo o que respira, foi concebido em seu ventre; e se ainda hoje vemos seres vivos lhe brotarem do limo, quando, molhado da chuva, ele fermenta à luz so­lar, porque nos admirarmos maiormente que seres mais numerosos e mais robustos lhe saissem dos flancos, quando ela, a terra e a essência etérica, ain­da se incendeiam dos ardores da juventude ?“ (28)

Assim se exprime o corifeu do velho materia­lismo. Nisso, ele é bem o intérprete fiel do seu mestre, Epícuro, cujo sistema físico aqui resumimos em poucas palavras (29):

À força de percorrerem céleres e ao acaso a imensidade, os átomos se reuniram e se combina­ram. Daí, massas ainda informes e inorgânicaS, mas já apreciáveis por sua composição. Com o cor­rer dos tempos, essas massas, diferentes em peso, foram arrastadas a direções diferentes, ou com velo­cidades diferentes, umas caindo e subindo outras.

Uma vez existente a água, em virtude da sua fluidez, encaminhou-se para os lugares mais bai­xos, para as cavidades mais próprias a contê-la. Outras vezes, houve ela mesma de preparar o seu leito. As pedras, os metais, os minerais em geral, nasceram no âmago do globo, segundo a espécie de átomos ou de germes nele encerrados, quando a atmosfera se destacou do céu. Daí, essas colinas, montanhas, acidentes numerosos, que diversificam a superfície do solo: montes a prumo, ao lado de

(28) Lucrèce — De Natura Rerum, parte 5ª, Edição Pon­gerville.

(29) Resumo de A. Grandsagne, segundo os trabalhos de Gassend acerca das descobertas de Herculanum.

vales profundos, de extensos altiplanos cobertos de vegetação multifária, que lhe são indumenta gar­rida, quanto para nós a seda, as penas, a lã, etc. Resta explicar o nascimento dos animais. É ve­rossímil que, contendo a Terra germes fresquís­simos e adequados à geração, produzisse em sua crosta uma espécie de bolhas cavas, à maneira de úteros, e que essas bolhas, em atingindo a matu­ridade, rebentassem e dessem à luz os incipientes animalzinhos.

Intumesceu-se, então, a Terra de hu­mores semelhantes e os recém-nascidos viveram a expensas deste alimento.

Os homens, diz Epicuro, não nasceram de ou­tro modo. Pequenas vesículas à maneira de úteros, ligados à terra pelas raízes, avolumaram-se batidos pelos raios ardentes do Sol, produziram tenros re­bentos e mantiveram sua vida a expensas do líquido lácteo que a Natureza lhes preparara. Os homens primários são o talo da espécie humana, que, depois, se propagou por vias usuais, até hoje.

Eis, creio, uma hipótese bem simplista. Ela ex­plica, simultâneamente, como o homem contempo­râneo é menor e menos robusto que o primitivo. A espécie humana nascia, então, espontaneamente, do solo mesmo da terra e hoje os homens proce­dem uns dos outros (30).

O pensamento manifesta-se por entrosagem dos movimentos, que, desenvolvidos primariamente

(30) A origem do homem e dos animais muito preo­cupou os antepassados. Plutarco conta que alguns filósofos ensinavam que tudo nascia do seio da terra humedecida, cuja superfície enxutada pelo calor atmosférico formara uma crosta, que, rachando-se afinal, franqueava passagem aos germes. Segundo Diodoro da Sicília e Cêlius Rhodigi­nus, assim pensavam os egípcios. Esta velha nação pre­tendia ser a mais antiga do mundo e presumia provar com os ratos e rãs, que diziam ver sair do solo da Tebaída quando o Nilo baixava, e que à primeira vista se lhes afiguravam seres semi-organizados. Ovídio assim descreve o fenômeno: — Logo que o Nilo de sete bocas abandona os campos fertilizados com a inundação e volta a encer­rar-se no seu leito normal, o lodo depositado e dissecado pelo astro do dia produz numerosos animais, que o lavrador vai encontrando em cada sulco. São seres incompletos, que começam o desabrochar, privados, em sua maioria, de vá­rios órgãos vitais e tendo uma parte do corpo animada e outra formada de grosseira argila. Assim, dizia ele, saíram os homens da própria terra. A opinião mais abaixo exposta, (Parte 4ª) de provir dos peixes o gênero humano, é hipótese das mais antigas. Plutarco e Eusébio nos transmitiram, a respeito, o pensamento de Anaximandro.

(31) Ver particularmente la Libre Pensée e o seu poe­ma De Nature Rerum.

numa substância desprovida de racionalidade, aca­bam reproduzindo-se artificial e não espontânea e cegamente.

Os movimentos atômicos foram, indubitàvel­mente, obra do acaso, sem contingência de racio­nalldade e, nada obstante, desde os primórdios do mundo, existiam animais que se diriam protótipos raciais.

Uma vez formados esses animais pelos átomos errantes em todas as direções, a engendrarem mo­vimentos de aproximação, de repulsão, de exclusão ou de junção, alguns, apenas, vinham adaptar-se e conjugar-se aos átomos do animal protótipo, isto é, os que com estes se identificavam em natureza. Os outros, ao contrário, eram repelidos, por dissí­meis dos constitutivos do animal -

Tudo se explica, portanto, exceto a maneira como, nos primórdios do mundo, se formaram os protótipos. Isto é o que Epicuro não explica, ao menos com raciocínios claros -

Pois é sob os auspícios desta filosofia, que ou­sam colocar-se os senhores materialistas do sécu­lo 19 (31).

Graças à capciosa linguagem de Lucrécio e àdoutrina simultâneamente estóica e displicente de Epícuro, essa gênese simplista conta sempre mui­tos partidários. E no entanto, apesar de tudo, nada existe de menos científico. Reparai, pela manhã, num bando de insetos que voam de um torrão de argila esfarelado! o barão de Munchausen põe a mão num montículo de terra, bem no centro do campo arroteado, e logo uma ninhada de melros brancos, seguida de aves outras, põe-se a correr pela jeira em fora. Até hoje só sabemos de alguém que haja testemunhado um tal nascimento, de um ser nosso irmão: é Cyrano de Bergerac, quando, de sua viagem ao Sol, realizada aos 30 de Fevereiro de 1649, no momento de lá aportar, houve de parar para tomar fôlego em um dos planetóides que gravitam em torno do astro-rei (32).

Notemos, todavia, que o materialismo de Lu­crécio não é tão grosseiro qual o interpretam.

A alma do poeta diviniza as forças da Natureza. D’Holbach, ao contrário, não tem alma; desdenha a força, não vê senão a matéria.

Podem seres vivos nascer espontâneamente de elementos químicos como o hidrogênio, o carbono, o amoníaco, a lama, a podridão? Houve quem o acreditasse por muito tempo, e ainda hoje existe uma escola positiva, empenhada em demonstrar ex­perimentalmente a veracidade da hipótese. Ouça­mos alguns corifeus, antigos e modernos.

Colhamo-los ao acaso. Van Helmont diz: se

(32) Esta aventura merece oferecida aos nossos adver­sários, Cyrano encontra um homenzinho que lhe fala mais ou menos nestes termos: Reparai, atento, neste solo que pisamos! Não há muito, era ele uma informe e confusa massa, um caos de matéria indefinível, uma pasta negra e viscosa, da qual o Sol se expulgara. Ora, depois que, pelo vigor dos seus raios, ele misturou e condensou essas nume­rosas nuvens de átomos; depois, digo, que mediante uma longa e poderosa cocção separou, nesta bola, os corpos mais díspares e reuniu os mais símeis, a massa superaquecida transpirou de tal modo que desencadeou um dilúvio de mais de quarenta dias.

“Da mistura dessas torrentes humorais formou-se o mar, como o atesta o sal nele contido, que deve ser um amálgama de suor, de vez que todo o suor é salgado. Re­tiradas as águas, ficou ao solo uma borra graxenta e fecunda, na qual, incidindo os raios solares, formou-se uma como ampola que, devido ao frio, deixou de produzir os germes latentes. Ela houve de receber, contudo, uma nova coação, que, retificando-a mediante uma mistura mais perfeita, engendrou a germinação. Mas, o Sol, ainda dessa vez, lhe recusou o crescimento e foi-lhe preciso uma ter­ceira digestão.

Uma vez aquecida forte e bastantemente, de feição a vencer o frio ambiente, a ampola rebentou e pariu um homem que retém no fígado — sede da alma vegetativa e região de incidência da primeira cocção — a faculdade do crescimento. No coração, sede da atividade e local da se­gunda cocção, a inteligência e o raciocínio.”

Assim terminou — prossegue Cyrano — o seu discurso, mas, depois de uma confidência sobre segredos mais Íntimos, dos quais retenho uma parte e de outra não me lem­bro, disse-me ele que ainda três semanas antes, num monte de terra emprenhado pelo Sol, tinha ele mesmo nascido. “Veja este tumor’ E mostrou-me sobre um montículo algo de intumescido e semelhante a uma pupila. É um nascituro, ou, por melhor dizer, uma matriz que engendra, há nove meses, um conterrãneo, e eu aqui estou para lhe servir de parteira.”

Nisso, calou-se, ao notar que o terreno em torno es­tremecia, o que o fêz julgar que era chegada a hora do parto.

expremermos uma camisa suja (sic) no orifício de um vaso que contenha grãos de trigo, este se trans­formará em ratos adultos ao fim de 21 dias, mais ou menos. Perfurai um buraco num tijolo, metei nele mangericão pilado e justaponde ao tijolo ou­tro tijolo, de maneira a vedar completamente o buraco, exponde ao Sol os dois tijolos, e, no fim de alguns dias, o cheiro do mangericão, operando como fermento, transformará a erva em legítimos escorpiões. O mesmo alquimista pretendia que a água da fonte mais pura, lançada em vaso impreg­nado do odor de um fermento, corrompe-se e en­gendra vermes.

Dêem-me farinha e tutano de carneiro — dizia Needham em o seu Novas Descobertas Microscópi­cas — e eu vos pagarei com enguias.

Voltaire, a sorrir, respondia-lhe que também esperava ver um dia a fabricação, de homens por esse mesmo processo. Sachs ensina que os escor­piões são produto da decomposição da lagosta.

Na matéria dos corpos mortos e decompostos, dizia o próprio Buffon, as moléculas orgânicas, sem­pre ativas, trabalham para revolver a matéria pu­trecida e formam uma chusma de corpúsculos or­ganizados, dos quais alguns, como as minhocas, os cogumelos, etc., são assaz volumosos. Todos estes corpos só vivem por geração espontânea. Pre­sentemente, o Dr. Cohn, de Breslau, pretende que a morte da mosca comum, no Outono, é ocasionada pela formação de cogumelos no corpo do inseto. Há em tudo isso, sem dúvida, como em tantas outras coisas, que traçar um limite a essas faculdades dos elementos organizados; e nós nos disporíamos melhormente a crer na formação dos cogumelos microscópicos sobre o órgão atrofiado da mosca, tanto quanto do fúcus num pulmão enfermo, ou de mofo num tronco de madeira, do que acreditar com as boas velhas fiandeiras do cânhamo em nos­sa infância, quando nos diziam que a crina arran­cada à cauda de cavalo branco e atirada a um regato se transformava, dentro de três dias, numa enguia branca. Este é também um absurdo bem cotado em algumas regiões do Este da França. Lembra-nos de o haver tentado, ao tempo de Luís Filipe, mas, como só contávamos seis anos de idade, também é admissível que a nossa cândida ignorân­cia não nos permitisse um legítimo triunfo.

Por não ter levado a termo final as suas obser­vações, Arístoto manteve-se na erronia de que os insetos nascem das folhas verdes, assim como os piolhos da carne e os peixes do lodo. Muito curioso ver até que ponto Plínio, traduzindo Arístoto, che­ga à descrição desse nascimento imaginário. “A lagarta, diz, sai de uma gota de orvalho, caída nos primeiros dias da Primavera e que, condensada pelo Sol, se reduz ao tamanho de um grão de milho. Assim elaborada, essa gota, estendendo-se, faz-se pequeno verme (ros porrigitur vermiculus parvua) que, dentro de três dias, transforma-se em lagar­ta”. Nada, porém, ultrapassa a argumentação de Plutarco nas Symposiacas, ou Colóquios à Mesa, no intuito de resolver a velha questão aventada por Pitágoras, ou seja: a prioridade do ovo ou da galinha. Esse discrime dá uma idéia das opiniões suscitadas na antigüidade e agora revividas, sem contudo levar em conta o ultraje irreparável dos anos.

Plutarco conta-nos, pois, que tão logo propôs a questão, seu amigo Sila o advertiu de que, por uma causa tão simples, qual uma alavanca, have­riam de acionar a pesada máquina da conformação do mundo, e, por isso, desistia de o acompanhar.

Aelevandre, irônico, declara que a questão é meramente ociosa e Fírmus, seu parente, tomando a palavra, exclama: dai-me, pois, os átomos de Epícuro, visto que, se importa presumir que mi­núsculos elementos são os geradores de grandes corpos, é bem provável que o ovo tenha precedido a galinha, e ainda porque, tanto quando podemos julgar pelos sentidos, ele é o mais simples e ela o mais complexo.

Em regra, o princípio é anterior ao que dele procede. Dizem que as veias e as artérias são as primeiras partes que se formam no animal. É possível, também, que o ovo tenha existido antes do animal, pela razão de que o continente precede o conteúdo. As artes começam por esboços gros­seiros e informes, que se aperfeiçoam parcialmen­te, na forma que mais lhes convêm. Dizia o escultor Policleto nada haver mais difícil na sua arte do que dar à sua obra o último toque de perfeição. É de crer, assim, que a Natureza, ao imprimir àmatéria o movimento inicial, tendo-a encontrado menos dócil, só haja produzido massas informes, sem linhas definidas, quais são os ovos, e que o animal não viesse a existir senão depois do aperfeiçoamento dos primeiros esboços. A lagarta foi a primeira formação: quando, mais tarde, endure­cida e ressequida, parte-se-lhe o casulo, dele se libra o volátil a que chamamos ninfa. No caso ver­tente, do mesmo modo, o ovo preexistiu como matéria prima de toda a produção, pois em toda a metamorfose o ser que muda de estado é, necessà­riamente, anterior ao de que toma a forma. Vêde como o líquen e o caruncho se engendram nas fo­lhas e nas madeiras, como produtos da putrefação, ou da cocção das partes húmidas, e ninguém ne­gará que esta humidade não seja anterior aos ani­mais que ela origina e que, naturalmente, o que origina não seja anterior ao originado”.

A prioridade do ovo parecia bem estabelecida com este excelente palanfrório, quando um tal Se­nésio se intrometeu a contraditar. “É natural — diz ele — que o perfeito anteceda ao imperfeito, o completo ao incompleto e o todo à parte. Insen­sato é supor que a existência de uma parte prece­da à do seu todo. Assim é que, ninguém diz: — o homem do germe, a galinha do ovo, mas, o OVO da galinha, o germe do homem, por isso que aque­les são posteriores a estes; devem-lhes o nasci­mento e pagam, posteriormente, sua dívida à Na­tureza, pela geração. Até então, não têm o que convém à sua natureza e que lhes dá um desejo e um pendor de produzir um ser semelhante ao que os originou. Eis, porque, também se define o ger­me uma produção tendente a reproduzir-se. Ora, ninguém deseja o que não existe, ou jamais tenha existido. Ao demais, vemos que os ovos têm uma substância cuja natureza e composição são quase as mesmas do animal, e que só lhes falta os mes­mos vasos e órgãos. Daí, jamais se haver dito, a qualquer tempo e em parte alguma, que um ovo, seja qual for, tenha saído da terra. Os próprios poetas inculcam o que originou os Tindaridas como havendo caídos do céu. Hoje, a terra melhor pro­duz animais perfeitos, com sejam os ratos, no Egi­to, e as serpentes, rãs, cigarras, noutras regiões. Um princípio exterior fá-la mais apta para essa produção. Na Sicília, durante a guerra dos escra­vos, que derramou tanto sangue, a grande quanti­dade de corpos insepultos, putrefazendo-se à flor do solo, produziu um número prodigioso de gafa­nhotos, que, espalhando-se por toda a ilha, devo­raram os trigais. Esses insetos nascem da terra e de terra se nutrem. A fartura do alimento lhes dá a faculdade de produzir, e, uma vez atraidos pelo gozo de se acasalarem, eles produzem, conforme a sua natureza, ovos ou animais vivos. Isso pro­va, claramente, que os animais, a princípio nasci­dos da terra, tiveram depois, no seu coito, uma outra via de geração.

“Eis porque, perguntar como poderia haver ga­linhas antes que houvesse ovos formados, equivale a perguntar como existiram homens e mulheres, an­tes dos órgãos destinados à sua reprodução. Eles são o resultado de certas cocções que alteram a natureza dos alimentos, não sendo possível que, antes de nascido o animal, algo nele exista, ca­paz de justificar uma superabundância de nutrição. Acrescento eu que o germe, a certos respeitos, éum princípio; ao passo que o ovo não tem essa propriedade, visto não ser o primeiro a existir. E, tão pouco é um todo, pois não possui toda a per­feição. Eis porque, não dizemos que o animal não tivesse princípio, mas que tem um princípio de sua produção, que imprime à matéria a sua primeira transformação e lhe comunica uma faculdade ge­nerativa.

“O ovo, ao invés, é uma superfectação, que, qual o leite e o sangue, sobrevém ao animal depois que ele faz a cocção dos alimentos. Nunca se viu ovo saído do lodo, pois só se forma no animal. Entretanto, no lodo nasce uma infinidade de ani­mais. De parte outros exemplos, considere-se essa quantidade de enguias apanhadas todos os dias, e entre as quais nenhuma apresentará um germe ou um ovo. Esgote-se um poço, retire-se-lhe o lodo, e tanto que o encham novamente dágua, lá se en­gendrarão de novo enguias. Portanto, tudo o que depende de outro elemento para que possa existir, deve ser posterior a esse elemento e, ao contrário, tudo o que existe sem dependência de outrem, tem prioridade de geração, pois é disto que se trata. Dessarte, podemos crer que a primeira produção vem da terra, consequente à propriedade que tem ela, a terra, de gerar por si mesma, sem necessi­dade de órgãos e vasos que a Natureza imaginou mais tarde, a fim de prover a fraqueza dos seres geradores.”

Estes raciocínios, que hoje nos causam pasmo, não são exclusivos de Plutarco. Todos os autores antigos são concordes neste ponto, e não raro en­contramos os que levam a sua ousadia a represen­tar Minerva batendo o pé para extrair do solo parelhas de cavalos e rebanhos. O relato de Ver­guio nas Geórgicaa, a respeito de Aristeu, não éfantasia poética, é expressão geral da crença de que as abelhas nasciam da carne putrefata. O pas­tor Aristeu perdera as suas queridas abelhas, in­voca sua divina mãe, e consegue criar novas col­meias, imolando novilhos:

Hic verum (subitum ac dictum mirabile monstrum)

Auspícunt liquefacta boum per viscera toto

Stridere apes utero, etc. (33)

Esta velha pendência das gerações equívocas foi há pouco resumida por Milne-Edwards sob as­pecto assaz interessante. Depois de mostrar que

(33) Ela diz: O pastor vai então em seus grandes rebanhos. quatro touros viris imolar prestamente; e outras tantas vitelas, soberbas, que a relva, mansamente, no campo esmaltado, pastavam. E tão logo no céu reponta a luz da aurora, ao inditoso Orfeu oferta o seu tributo e volta, esperançoso, à floresta profunda. Prodígio! o sangue, então, com o seu calor, fecunda Nos flancos animais, um numeroso enxame! Alados turbilhões a jorrar das entranhas, Como nuvens se espalham a zumbir pelos ares, E no tronco vizinho em cachos se penduram.

no reino mineral os corpos se formam por simples aderência molecular:

“Todos sabem, diz ele (34) — que, quando se trata da formação de uma árvore, de um cavalo, a matéria que constitui essa árvore, esse cavalo, seria impotente para integrar esse vegetal, esse animal, desde que não fôsse atuada por um corpo já vivente — um animal da espécie do que vai nas­cer, ou um vegetal da mesma natureza. Assim, na árvore como no cavalo, esta propriedade particular, a que chamamos vida, transmite-se, evidentemente. O novo ser é engendrado por um parente, que pro­duz um ser semelhante.

“Há, portanto, uma espécie de sucessão, de transmissão de força vital, ininterrupta, entre os indivíduos, que formam, no espaço e no tempo, uma cadeia de que se compõe cada espécie.

“Eis, por conseguinte, uma diferença funda­mental, essencial, entre os corpos brutos e os cor­pos vivos, O que dizemos da árvore e do cavalo é aplicável a todos os vegetais e animais conhe­cidos. Todavia, em dadas circunstâncias, essa es­pécie de filiação não é fácil de verificar e tem esca­pado a observadores menos atentos e até, por vezes, aos mais hábeis. Assim, quando o cadáver de qual­quer animal é entregue à influência atmosférica do ar, da humidade, numa temperatura conveniente,

— no Estio por exemplo — esse cadáver sofre uma alteração particular, a que chamamos putrefação. Em tal caso, vemos manifestarem-se no âmago dessa substância corpos vermiformes, gozando de todas as propriedades peculiares aos seres animados e, portanto, animais. Milhões de seres vivos nascem desse cadáver, ao passo que, enquanto vivo o ani­mal, seu corpo nunca apresentou algo de análogo.

“À primeira vista pelo menos, o que parece interromper-se é a filiação geradora. É comum

(34) Curso da Faculdade de Ciências, V. A. Revista dos Cursos Científicos, 5 de Dezembro de 1863.

ver-se nos campos poças dágua, formadas pela chú­va, logo se coalharem de insetos, de alguns crustáceos.

“Outras vezes vemos, também, na vizinhança de sítios pantanosos, povoar-se o solo de pequenos répteis. Na maioria destes casos é difícil, à pri­meira vista, explicar por via de geração normal o surgimento desses novos seres. Tão grandes se afi­guraram essas dificuldades aos naturalistas de antanho, que houveram de recorrer a uma hipótese particular para explicar a origem desses animais. Assim, julgaram indispensável admitir que a Natu­reza não segue o mesmo processo, quando se trata de animais superiores, quais os que emprega na constituição de espécies inferiores, como os insetos, morcegos, ratos e mesmo alguns peixes. Entre os filósofos antigos o papel da geração espontânea era considerado importantíssimo. Os naturalistas e fi­lósofos da Idade Média seguiram de olhos fechados os seus predecessores, e daí resultou que, durante catorze séculos, uma tal opinião imperou inconteste nas escolas. Admitia-se, como coisa bem compro­vada, que os animais nasciam de duas formas: ora, à maneira dos corpos brutos, ora por transmissão da força vital, que sabemos existente nos animais que se engendram sucessivamente, devendo aos pro­genitores a existência, a forma, o tipo. Mas, na época da Renascença, houve uma grande reviravol­ta nos espíritos. No século 17 constituiu-se em Florença uma sociedade de físicos, de naturalistas e médicos, com o fim de solucionar algumas ques­tões por meios experimentais. Essa agremiação de­nominou-se del cimente, isto é — da experiência. Um de seus membros, Redi, quis submeter a inves­tigações positivas a teoria assaz generalizada da geração espontânea. Quis saber se os seres novos eram engendrados sem progenitura de corpos vivos, ou se eram produto de organização espontânea da matéria morta; verificar, em suma, se a hipótese dos antigos tinha visos de verdade. Tentou, então, a produção desses corpos vermiformes vulgarmente chamados minhoca, que, de modo algum, perten­cem à classe dos vermes e são larvas de insetos. Sabe-se que, nas matérias animais em putrefação, essas larvas logo se revelam à temperatura mais elevada, e isso foi o que observou o naturalista florentino. Notou que algumas moscas eram atraídas de longe pelo cheiro da carne corrompida, ade­javam-lhe em torno, nela pousavam amiúde e, con­tudo, não pareciam alimentar-se com essa matéria. Conjeturou, então, que os vermes havidos como es­pontânea e exclusivamente formados pela matéria.. poderiam ser a prole das ditas moscas. E notou, ainda mais, que esses presumidos vermes, desenvol­vendo, transformavam-se em moscas. São pois, na verdade, filhotes de mosca. Essa verdade não podia satisfazer ao espírito do naturalista. Colocou, então, a carniça em vasos diferentes, uns abertos e outros cobertos de papel crivado de orifícios im­penetráveis às moscas, mas arejáveis. Assim viu que as moscas acorriam procurando insinuar o ven­tre nos orifícios do papel e que, neste caso, não se produziu um só corpo vermiforme. Noutra ex­periência, utilizou um pano com alguns buraquinhos acessíveis à operação das moscas e viu desenvolver-se uma certa quantidade de óvulos na carne apodrecida.”

A presença de seres vivos no interior de um corpo ou de uma fruta, tanto quanto nas regiões profundas do cadáver animal, era igualmente atri­buida à geração espontânea. Supunha-se que ma­térias orgânicas em putrefação nos intestinos eram a origem dos vermes.

As observações de Vallisniéri e outros fisiolo­gistas da época, com frutos e galhos, desmascara­ram essa crença. Reconheceu-se que todos esses parasitas não passavam de óvulos depositados por insetos.

O mesmo se verificou com os infusórios, animálculos que parece formarem-se de elementos em dissolução nágua. Certa feita, Leuwenhoeck exa­minou ao microscópio a água da chuva caída na sua janela e exposta ao ar por algum tempo: a princípio, a água lhe pareceu pura, mas examinan­do-a ao fim de alguns dias, notou incalculável quan­tidade de pequeninos seres, de uma tenuidade ex­trema, a moverem-se vivaces e com as caracterís­ticas de verdadeiros animais. Tal descoberta teve grande repercussão e foi confirmada por outros observadores. Leuwenhoeck constatou que, todas as vezes que expunha ao ar um pouco dágua con­tendo feno, papel e matérias orgânicas quaisquer, surgia um turbilhão de pequeníssimos seres de ani­malidade bem caracterizada. Para explicar essa nova população, importava coligir que esses animálculos, provindos de seres preexistentes, eram carreados pelo ar atmosférico e depositados em ger­me, a menos que admitissem a hipótese dos anti­gos, da geração espontânea. A primeira teoria res­saltou, em geral, das observações mais completas e rigorosas.

Daí, para cá, durante o último século e no transcurso do atual, a tese da geração espontânea foi intercorrentemente retomada e interrompi­da: retomada a propósito de novas descobertas mi­croscópicas, e interrompida quando as experiências atestavam a origem animal ou vegetal dos germes desabrochados. Na hora atual a controvérsia ressurge apaixonadamente, tratada por diversos ex­perimentalistas, à frente dos quais citaremos Pouchet e Pasteur, o primeiro pró, e o segundo contra. Mas, ei-la já de novo suspensa e por um motivo que, diga-se, não deixará de parecer pueril para os nossos descendentes. É o caso que os conten­dores de ambos os campos não conseguem fazer-se entendidos, com o se reprocharem reciprocamente, e ao mesmo título de legitimidade, de estar com­batendo no vácuo.

As experiências realizadas nestes últimos anos e que recuaram a questão, sem resolvê-la, podem comparar-se às precedentes, já pela forma, já pelos resultados colhidos. Sucintamente, eis aqui uma dessas experiências:

“Introduzamos num tubo de vidro de paredes muito delgadas e achatadas — diz o heterogenista Joly — um pouco dágua, um pouco de ar e alguns fragmentos de tecido vegeto-celular.

“Fechemos a fogo a extremidade do tubo e observemos o que se vai passar. Em primeiro lu­gar, veremos formar-se um amálgama de finas granulações, provemente, sem dúvida, do tecido vegetal já em desorganização. Pouco a pouco, nas bordas do amálgama granuloso, destacar-se-ão pequenas excrescências de transparência perfeita, mas, ainda inertes. É o bacteríum terma em vias de forma­ção. Esperemos ainda três ou quatro horas e já os animálculos livres se agitarão visíveis, como se ensaiassem uma existência; outros virão juntar-se-lhes e bem depressa o número será tal que não podereis contá-los. Após 6 horas de observação contínua, vossos olhos recusarão obedecer-vos, es­tareis fatigado como aconteceu a Mantegazza, mas, tanto quanto ele, maravilhado de haver surpreen­dido a vida no seu berço.”

Qual a origem desses seres vivos, articulados peça a peça sobre essa matéria orgânica, sem fi­liação de progenitura? Os adversários respondem que o ar está povoado por miríades de germes em suspensão e que destes germes provêm aqueles se­res. Antes que o demonstrem, vão eles ao cume do “Montanvert”, fervem as substâncias orgânicas e parece que a dita geração espontânea não mais se produz.

Eis o em que se resume o debate. Para nós, sem prevenções contra ou a favor, pensamos haver um fato no qual não se há pensado bastante, nem talvez de modo algum, e que nos parece digno de representar um papel nesse drama de microscopia.

A vida está universalmente difundida por toda a Natureza, a Terra é ânfora assaz exígua para conter a vida, que desborda em qualquer parte e, não contente de repletar águas e terras, inorgâ­nica, ela se acumula em si mesma, vive à sua pró­pria custa, cobre de parasitas animais e plantas, desdobra florestas no dorso de um elefante e faz, de uma simples folha verde, o pascigo de rebanhos inumeráveis. Ora, essa vida múltipla, insaciável, inumerável, povoa de animálculos cada espécie de seres e de substâncias. Quando, pois, vemos os sal­tões crescerem no interior do queijo; vermes aflo­rarem do cadáver; infusórios flutuarem num líqui­do, não se trataria de animálculos já existentes em germe num estado inferior, no leite, no animal vivo, no líquido, e que se metamorfoseiam por influên­cia das condições novas em que se encontram co­locados? Sabemos, porventura, quantas espécies de vegetais e animais vivem em nosso corpo?

O ovo da tênia semeia-se em profusão; nos tecidos do porco e do carneiro ele é o humílimo cisticerco, e só no intestino começa a desenvolver seus inumeráveis anéis, vivendo nas duas hospeda­rias, isto é, no animal e no homem. Nós o absor­vemos na costeleta de porco ou na fatia de car­neiro, e dai por diante ela — a tênis — se instalará em nossa casa, sem outros cuidados que os de pri­meiro inquilino.

As moscas da semente de couve e da farinha fazem morada em nosso estômago. Em sua maio­ria, estes familiares da nossa intimidade são ino­fensivos, mas alguns há, pérfidos, que acabam ma­tando o seu benfeitor. Quem não acompanhou a discussão concernente à triquinose? Desde a descoberta do microscópio, quantos parasitas não se hão encontrado em nosso sangue, em nossa carne, em nosso pulmão; nos dentes, nos olhos, nas pa­puas nasais? Nutrimos carnívoros e herbívoros; te­mos peixes dágua doce a circular em nossas veias, e peixes dágua salgada a nadarem no oceano de nossas artérias. Há uma espécie de fúcus que ve­geta nos pulmões tuberculosos. As excreções da língua de um febrento compõe-se de multidão de infusórios. Um médico célebre, nosso amigo, tem observado muitas vezes erupções bruscas de mi­lhares de piolhos em doentes atacados de tifo. (A extraordinária prolificidade destes ápteros bastaria para explicar essa multiplicação.) Os coleópteros não esperam nossa morte para abandonar o seu domicílio habitual. Imperceptíveis insetos penetram-nos os pulmões e aí proliferam, de geração em geração. Já se encontrou no esôfago dos bois famílias inteiras de sanguessugas, indubitavelmente engolidas em estado microscópico e lá criando o seu “habitat”. O estômago do cavalo constitui am­biente atmosférico insalubre, adequado à vida das ostras. Quantas espécies não vivem nos seres animados, sem que estes os percebam, isto sem falar­mos dos parasitas externos, quais a pulga, o piolho. o percevejo, o sarcopto, etc.? Disse um filósofo que todas as partes de um ser vivo são individual­mente viventes, e que já é ousada temeridade en­xergar nos animais superiores um edifício celular habitado por multidão inconcebível de animais ele­mentares. Ora, assim sendo, tudo é vida na Natu­reza. Não somente no ar como nas águas, cor­púsculos flutuantes, elementos orgânicos e inorgâ­nicos são portadores de uma vida invisível, espécies que experimentam três fases comuns ao mundo dos insetos, a revelarem-se sob uma ou outra dessas metamorfoses, conforme as condições térmicas de calor e humidade que as envolvam.

Encaradas sob este aspecto, as gerações espontâneas deixariam de ter seu verdadeiro nome, deveriam somente nos re­presentar uma modalidade da vida universal, que palpita em cada átomo de matéria. — E esta ma­neira de prismar a questão é tanto mais fundada quanto cada espécie surge e se mantém constante, em relação à substância particular que parece per­tencer-lhe. O infusório do feno não se encontra na sua fervura e o fermento do vinho não é o mesmo que o do queijo.

Mas, seja como for, o mistério desvendado sob a aparência da geração espontânea está longe de aclarar-se. Qualquer dia e certo sem muita delon­ga, hão-de retomar o debate no ponto em que Láquesis acaba de o encerrar. Quanto ao mais, no pé em que está a questão, o que diz com a cria­ção da vida conserva a sua velha independência, indene das armas da Heterogenia, quanto da Pans­permia. A luta cessou à míngua de recursos. Atual­mente é impossível saber se o ar mais puro, co­lhido no cume das montanhas nevadas, não contém germes. Impossível, igualmente, saber se esses ger­mes não resistem a temperaturas de mais de cem graus. A nós nos pareceu que os experimentadores teriam o insucesso (o que de resto é natural), e não operavam com o rigor que teriam se fôssem estrangeiros ou adversários. De qualquer forma, porém, o problema continuou insolúvel. O que mais vivamente nos impressionou na justa foi a idéia preconcebida de ambos os lados, aliás, mais de um que do outro. Pretendia-se encarar de um modo absoluto a questão, como de natureza teológica, quando a verdade é que o resultado das experiên­cias em nada afeta a Teologia. É uma declaração que vai talvez surpreender alguns leitores. Entre­tanto, se profundarmos o assunto, haveremos de convir que a pecha de ateísmo lançada em rosto aos partidários da geração espontânea não cabe aos que, a exemplo ao Sr. Pouchet, não interpretam teolôgicamente tais experiências; e os que assim não procédem, incidem na maior das vanidades, quando concluem pela inexistência de Deus (35).

(35) Andaram mal em deslocar, assim, a questão: O Sr. Pasteur foi ao ponto de, em plena Sorbonne, trovejar as seguintes acusações: Que triunfo para o Materialismo se ele pudesse protestar que se apóia sobre o fato da Matéria, organizando-se por si mesma! A Matéria, que já em si e de si contém todas as forças conhecidas! Ah! se pudéssemos juntar-lhe ainda essa outra força chamada vida e a vida variável em suas manifestações, de conformidade com as nossas experiências! Que pode haver de mais na­tural que a deificação dessa matéria? Para que recorrer à idéia de uma criação primordial, diante de cujo mistério é força inclinar-nos?”

O Sr. Pouchet, alarmado com o libelo, replicou judi­cioso:

“Afivelar a máscara da Religião, para vencer adversá­rios, é fato insólito e inaudito, quanto impróprio de cátedras científicas. Atribuir aos adversários opiniões que eles sabidamente não possuem é Indignidade.” Houve quem dissesse que era em conseqüência de uma ilusão teológica desta espécie que a Academia recusava a geração espontânea. Corre que há uns 60 anos Cuvier, secretário da Universidade, interpelado por um tal se acreditava na geração espontânea, respondeu: — “O imperador não quer”. Oh! libertas libertatum!

Acreditar que seres vivos, vegetais ou animais, possam nascer espontâneamente da combinação de certos elementos, não é maior sacrilégio que acre­ditar os planetas destacados do Sol, ou que a gal­ga seja prima do cão dos Pireneus, O Ser Supremo nada tem a ver com essas interpretações superfi­ciais, que constituem, por assim dizer, o campo de carnagem dos míticos pensadores.

Os micrógrafos mútuamente desacreditaram a sua causa, fazendo baixar às suas retortas as po­tências criadoras. Acreditarão eles que, dado pu­desse a matéria inerte tornar-se semi-organizada, e depois organizada, sob a influência de tais e quais forças, teriam suprimido a causa soberana dos do­mínios da Natureza? Absolutamente. O que tais experiências inculcam, e eles em sua maioria igno­ram, é o protesto contra o Deus humano e a ele­vação do espírito a concepções mais puras e mais grandiosas, do misterioso Criador.

Será rebaixar a idéia de Deus o considerar o Universo um como gigantesco desdobramento de uma obra única, cujas modalidades se manifestam multifárias, e cujos poderes se traduzem em for­ças particulares, distintas? A substância primitiva ocupa o espaço ilimitado. O plano divino está em que esta substância seja um dia condensada em mundos, nos quais a vida e a inteligência hajam de irradiar esplendores. A luz, o calor, a eletrici­dade, o magnetismo, a atração, o movimento sob modalidades desconhecidas percorrem, atravessam essa substância primordial, como o vento da Gré­cia, que, ao tempo de Pan, timbrava as harpas eólias no âmbito da noite. Que mão empunha o arco e preludia o mais magnificente dos coros? Não pode a inteligência humana defini-lo. Escutemos, atentos, o longínquo concerto da Criação.

No amanhecer da Natureza terrestre, já os sóis esplendiam, de há muito, na amplidão dos céus, a gravitarem harmônicos em suas órbitas, sob a re­gência da mesma lei universal que ainda hoje os rege. Era o primeiro dia da Terra. Solidões oceâ­nicas, tempestades ígneas, rupturas formidáveis de águas e nuvens viram chegar-lhes, alfim, uma paz desconhecida. Raios de ouro atravessaram as nu­vens; um céu azul tonalizou a atmosfera; um belo leito de púrpura se ofereceu ao Sol nesse dia. En­tão, já não eram dias e anos a contar, pois períodos imensos, incalculáveis, já lhe haviam coberto o berço. Os astros são jovens, ainda quando miríades de gestações tenham sucumbido. As ilhas surgiram, então, do seio das ondas e a primeira verdura estendeu pelas praias o seu manto virgi­nal. Muito tempo depois, das galhadas vindes re­bentaram flores, de cujos lábios entreabertos se exalavam perfumes. Mais tarde, no bojo profundo das florestas repercutiu o canto das aves e os hóspedes fabulosos dos mares primitivos cruzaram-se no reino ondulante. Sucessivamente, a Terra se dava aos espasmos da vida, animada pelo sopro imortal, vendo luzes e sombras perpassarem-lhe a face. Su­ponhamos, um momento, que a força orgânica, que hoje se transmite de geração a geração, tenha apa­recido como uma resultante natural e inevitável das condições fecundas em que se achava a Terra quando soou a era da vida; suponhamos as pri­meiras células orgânicas diversamente constituídas, formando tipos primordiais distintos, ainda que sim­ples, pobres, grosseiros, sejam as cepas de suces­sivas variedades; suponhamos, enfim, que todas as espécies vegetais e animais, inclusive a humana, sejam o resultado de transformações lentas, opera­das sob condições progressivas do planeta, e per­guntemos em que, e como, pode essa teoria nu­lificar a necessidade dum criador e organizador imanente? Quem deu essas leis ao Universo? Quem organizou essa fecundidade? Quem imprimiu à Na­tureza essa tendência perpetuamente progressiva? Quem deu aos elementos materiais a faculdade de produzir ou de receber a vida? Quem concebeu a arquitetura desses corpos animados, desses edifícios maravilhosos, nos quais todos os órgãos tendem a um mesmo fim? Quem presidiu à conservação dos indivíduos e das espécies na trama inimitável dos te­cidos, dos arcabouços, dos mecanismos — pelo dom previdente do instinto, por todas as faculdades, en­fim, que possuem respectivamente todos os seres vivos e cada qual de acordo com o seu papel no cenáculo do mundo? Numa palavra: — se a força vital é uma força da mesma natureza das forças moleculares, insistamos no perguntar: — quem éo seu autor? Seria por não haver esse autor fabri­cado tudo com as próprias mãos, que haveríeis de o negar?

De boa fé, supondes que, se em lugar de es­crever letra a letra, palavra a palavra, esta obra e enviá-la à Livraria Acadêmica, que a confiou a um tipógrafo; o qual, por sua vez, entregou-a ao paginador, que, por sua vez, a confiou aos contra-mestres e aprendizes, etc.; e depois, ainda me obrigou a corrigir provas — sem falarmos na es­colha do papel, do formato, número de páginas, encadernação, tudo enfim que representa a fatura de um livro; — supondes, repito, que, depois de haver o livro passado por tantos trâmites, deixasse eu de ser o seu legítimo autor, bastando apenas querê-lo para que o plano instantâneamente se completasse? Acreditais que, por haver simplesmente coordenado certas regras, em virtude das quais a idéia expressa em tinta, papel, chumbo; — agen­tes inertes e cegos, atuados sob a minha vigilância constante — se materializou em parte, tão invisívelmente quanto me eclodiu do cérebro, me tenha destituído de legítima autoria desta obra? Por mim, senhores materialistas, ficaria muito satisfeito só com o poder evitar a revisão das provas, que, já o dizia Balzac, é o suplício infernal dos escritores. E se algum pândego de mau gosto apregoasse pelas ruas de Paris que meu livro se fizera por si mes­mo, eu haveria de rir à vontade, e não deixaria de interessar-me por um tão precioso privilégio.

Fôsse-me permitido o paralelo entre o livro da Natureza e o meu, e creio que faria coisa assim como comparar uma boneca mecânica à Venus de Milus, viva, ou, então, as rodas do relógio apre­sentado a Carlos Magno pelo califa Haron-al-Ras­chid, ao mecanismo do sistema universal.

Todavia, não sereis vós quem há-de elevar meu trabalho às alturas da Criação natural. Se a bonequinha mais insignificante e o mecanismo mais tosco revelam a Voltaire a existência de um ou de vários fabricantes, a que se reduz a negação dos que recusam identificar um arquiteto na su­blimada harmonia do edifício cósmico?

Assim é que, seja qual for o círculo arbitrá­rio, imaginado em torno da ação sensível do Cria­dor e mediante o qual pretendamos limitar a sua presença, a idéia de Deus nos escapa, sempre, pela tangente, com singular sutileza. Essa propriedade particular da idéia do ser incriado manifesta-se em cada conclusão do nosso arrazoado!

Disseram-nos que Darwin tinha sempre a seu lado um teólogo anglicano incumbido de ajeitar as coisas e manter em perpétuo acordo a consciência do naturalista eminente com as pretendidas conseqüências da sua teoria da seleção natural. De res­to, o tradutor feminino da obra, teve o cuidado de nos advertir que, “em vão, protesta o autor não ser o seu sistema em nada contrário à idéia de divindade”. Pelo que nos toca, é com íntima sa­tisfação que aqui juntamos às nossas convicções pessoais as do autor da Origem das Espécies: “Não vejo em que possam as teorias expostas nesta obra melindrar os sentimentos religiosos de quem quer que seja. Por demonstrar quanto são inconscientes essas impressões, basta lembrar que a maior das descobertas humanas — a da lei de gravitação — foi hostilizada pelo próprio Leibnitz como subversiva da religião natural. Notável autor sacro escreveu-me, em tempo, ter chegado gradativamente a con­vencer-se de que a criação divina das formas sim­ples, originais, capazes de por si evoluirem e trans­formarem-se em formas úteis, era concepção mais justa e compatível com a majestade do Supremo Ser, do que presumir a necessidade de um novo ato criador, a fim de encher os vácuos causados pelo funcionamento das suas próprias leis. Autores eminentes mostram-se inteiramente satisfeitos com a hipótese da criação independente, de cada espécie. A meu ver, o que conhecemos das leis im­postas à matéria, pelo Criador, está mais de acor­do com a formação e extinção dos seres presentes e passados por causas secundárias, semelhantes às que determinam o nascimento e a morte dos indivíduos. Quando encaro todos os seres não como criações especiais, mas como descendentes em li­nha direta de seres que viveram anteriormente aos depósitos do sistema siluriano, eles me parecem enobrecidos.”

Mais adiante, acrescenta o mesmo naturalista:

“Que interesse nos desperta o espetáculo de uma praia coberta de vegetação, pássaros cantando, in­setos voejando, anelídeos ou larvas rastejando no solo húmido, ao pensarmos que todas essas formas elaboradas com tanto cuidado, paciência, habilidade e dependentes umas de outras por uma série de relações complicadas, foram todas produzidas por leis de uma contínua atividade em torno de nós! Essas leis, tomadas em seu mais lato sentido, enumeramo-las aqui: — de crescimento e reprodução; de hereditariedade, quase implícita nas preceden­tes; de variabilidade sob a ação direta ou indireta das condições exteriores da vida, e do uso ou da falta de exercício dos órgãos; da multiplicação das espécies em sentido geométrico, a produzir a con­corrência vital e a eleição natural e, daí, a diver­gência de caracteres e extinção das formas espe­cíficas.

“É assim que, da guerra natural, da fome e da morte, resulta o mais admirável dos efeitos que possamos conceber: — a formação lenta dos seres superiores. No encarar a vida e suas potências animando originàriamente algumas ou uma única forma simples, ao influxo do Criador, também há grandeza. E enquanto o planeta seguiu descrevendo os seus círculos perpétuos, de acordo com as leis fixas da gravitação, formas inumeráveis, cada vez mais belas e maravilhosas, se desenvolveram e se de­senvolverão, mediante uma evolução sem fim” (36).

Declarações interessantes, que importa regis­tar, para opô-las aos nossos materialistas.

Pretendem estes que a doutrina da geração espontânea, sustentada pelo Sr. Pouchet e a da origem das espécies, amparada pelo Sr. Darwin, destróem, ambas, a idéia de Deus, e eis que, nem um nem outro admite essa acusação e protestam contra a ilusão dos nossos adversários. Nisto, pois, como em tudo o mais, são eles logrados por uma falsa miragem. Consignemos, assim, como novos dados, este duplo e valioso fato. Em primeiro lugar, os materialistas não têm o direito de se apoiarem na geração espontânea para concluir pela não exis­tência de Deus: 1º — porque essa geração não está provada, e 2º — porque, se o estivera, não acarretaria uma tal consequência. Em segundo lugar,

(36) Da Origem das Espécies. Últimas notas.

não têm o direito de afeiçoar ao seu ponto de vista o sistema do transformismo das espécies, já porque tal sistema não está provado, e já porque ele não afeta a questão dominante das origens da vida.

Se estivesse provado que os vegetais e animais inferiores são formados por geração espontânea, no âmago da matéria inorgânica, haveria grandes pro­babilidades para crer que assim sucedesse, e com mais forte razão, com a origem das espécies. Os partidários das transformações específicas chega­ram mesmo a apoiar-se na doutrina das gerações espontâneas para explicar a existência, ainda hoje, de inúmeras formas inferiores, apesar da tendên­cia das espécies primitivas para se aperfeiçoarem. Por isso, admitem que a Criação não completou a sua tarefa e ainda hoje se verifica nesses ex­tremos. Era a opinião de Lamarck. Cumpre obser­var que o chefe do movimento atual não compar­tilha tais idéias, e nem mesmo acredita na geração espontânea. “A seleção natural — diz Darwin —não afeta nenhuma lei necessária e universal de desenvolvimento e de progresso. Ela cogita, ape­nas, de toda e qualquer variação que se apresenta, quando vantajosa à espécie ou aos seus represen­tantes. Tenho apenas necessidade de aqui dizer —. declara ele mais além — que a Ciência em seu estado atual não admite, em geral, que seres vivos, ainda hoje, se elaborem no seio da matéria inor­gânica.

Vale notar que não são os sábios, nem mesmo os experimentadores, que proclamam as doutrinas por nós combatidas e sim pretensos filósofos, que, apoderando-se dos estudos científicos daqueles, que­rem, a toda força, tirar conclusões repudiadas pelos próprios cientistas. Temos o dever de desmasca­rar-lhes o jogo e demonstrar com a confissão dos próprios experimentadores ilustres, que, se o sis­tema materialista se obstina ingênuamente a exi­bi-los de público, assentados no seu palco teatral, não passa isso de mero efeito fantasmagórico, pura ilusão ótica.

Está neste caso um químico ilustre, o Sr. Fre­my, que pensou ter notado corpos indecisos na fronteira dos dois reinos (corpos a que chamou semi-organizados) e foi por isso logo inculcado pelos doutrinaristas como porta-bandeira do materialis­mo para a hipótese da geração espontânea. Pois vejamos o que disse este químico no Instituto:

“Precisarei dizer que recuso, sem hesitação, a idéia de geração espontânea, tomada no sentido de produção de um ser organizado, por mais simples que seja, com elementos que não possuem a força vital. A síntese química permite, sem dúvida, re­produzir grande número de princípios imediatos de origem vegetal ou animal, mas a organização opõe, a meu ver, uma barreira intransponível às repro­duções sintéticas. Ao lado dos princípios imedia­tos, definidos, que a síntese pode formar, há subs­tâncias outras menos estáveis que as precedentes, mas também muito mais complexas quanto à sua constituição e que podem ser designadas sob o título genérico de corpos semi-organizados.

“Esses corpos apresentam-se em conexão com a organização, com a formação dos tecidos, com a produção dos fermentos e a putrefação, quase no mesmo estado da semente ressequida, que leva anos e anos sem apresentar sinais de vegetação, para germinar logo que submetida às influências do ar, do calor e da humidade.

“Eles podem, tal como a semente seca, man­ter-se em estado de imobilidade orgânica durante muito tempo, mas também podem sair desse estado à custa da própria substância, sob os elementos de organização, desde que as circunstâncias favoreçam o desenvolvimento orgânico.”

Na atualidade não se pode, portanto, cientificamente, depor a pró nem contra a geração espon­tânea. Esta indecisão forçada longe está de escla­recer a questão da geração primitiva. O mistério permanece tão profundo como ao tempo de Pitá­goras. Existem seres vivos na Terra, eis o fato. De onde vêm eles? Conhecemos astrólogos (ainda os há) que escreveram grandes calhamaços para demonstrar que esses seres nos chegaram de ou­tros planetas, na asa de qualquer cometa aventu­roso, ou grudados nalgum bojudo aerólito. Conhe­cemos sonhadores que pretendem hajam os seres aflorado à superfície do orbe terrestre pela fecun­dação de eflúvios planetários e estelares. Isso, po­rém, é romantismo. De onde, pois, vêm os seres? Responder-nos-ão que sempre existiram? Essa ma­neira de esquivar-se à dificuldade teria contra si a agravante da falsidade, de vez que as camadas geológicas nos apresentam, em fases regressivas, as épocas em que surgiram diferentes espécies. Se não existe ser orgânico algum sem filiação, quem formou o primeiro casal de cada espécie? A Bí­blia responde que foi Deus. Perfeitamente, mas.

como? Por uma simples maravilha verbal? Mas, antes de tudo: — Deus fala? — objetam os gra­cejadores, lembrando-se de que o som não se pro­paga no vácuo... Súbito efeito da vontade divina? Neste caso, de que forma? Os livros revelados nada têm de explícitos e podemos interpretá-los a favor da geração espontânea (em que pese aos senhores teólogos), tanto como em sentido contrário: “Deus diz: — Que a terra produza a erva tenra, contendo a semente e árvores que dêem fruto, cada qual da sua espécie, e que encerrem consigo a sua se­mente, a fim de proliferar sobre a terra. E assim se faz. A terra, portanto, produziu a erva contendo a semente de sua espécie, bem assim as árvores, com as suas sementes peculiares à espécie. E Deus viu que isso era bom.

“E da noite da manhã surgiu o terceiro dia. Disse Deus, então: Que as águas produzam ani­mais vivos que flutuem nelas, e aves que voem acima da terra e sob o firmamento do céu. E os abençoou, dizendo: Crescei e multiplicai, povoai as águas do mar e que as aves se multipliquem sobre a terra.

“E da noite e da manhã surgiu o quinto dia. Deus disse, então: Que a terra produza animais vivos, cada qual na sua espécie, os domésticos, os répteis e as feras bravias. E assim foi feito” (37).

Aí temos o que muito se assemelha à geração espontânea. De resto, os Santos Padres professa­ram essa doutrina. A de Humboldt achou muito curioso que Santo Agostinho, encarando o povoa­mento das ilhas, após o dilúvio, não se mostrasse muito longe de recorrer à hipótese de uma geração espontânea. (Generatio aequivoca apontanea atst primaria.) “Se os anjos ou os caçadores do con­tinente — diz esse Pai da Igreja — não transpor­taram animais a essas ilhas afastadas, é força admitir que o solo os tenha engendrado; mas, neste caso, pergunta-se: — porque encerrar na Arca ani­mais de toda espécie?” Dois séculos antes do bispo de Hipona, vamos encontrar no compêndio de Tro­gue-Pompéia, já estabelecida a propósito da dissecação primitiva do mundo antigo, do planalto asiá­tico, analogia com a geração espontânea ou, seja, uma conexidade semelhante à que se depara na teoria de Linneu, acerca do Paraíso terreal, com as investigações do século 18 sobre a Atlântida fabulosa.

Quanto ao mais, em que pese à ignidade dos seus discursos, estes Mirabeaus da tribuna positi­vista encontram-se, fundamentalmente, em ignorân­cia e indecisão absolutas, no que concerne à origem da vida. Em vão lançam sobre o mistério o véu dos talvez; em vão se entretêm a imaginar mil metamorfoses.

Quando olhamos para o fundo do vaso, perce­bemos que o caldo não é tão claro quanto o supõem. De tempos a tempos, sem maior alarde, eles deixam perceber confissões que nos permitimos aqui

(37) Gênese.

glosar para edificação do auditório. “Enigma inso­lúvel — diz B. Cotta — que não podemos deixar de atribuir à potência imperscrutável de um Cria­dor, eis o que se nos afigura sempre a origem da matéria, bem como o nascimento dos seres orgâ­nicos.” Eis uma confissão digna de um espiritua­lista. Büchner, por outro lado, diz: — “É preciso atribuir à geração espontânea um papel mais im­portante nos tempos primitivos em relação aos atuais, visto não se poder negar que ela tenha en­gendrado, então, organismos mais perfeitos do que hoje.” E acrescenta logo: “Verdade é que nos fal­tam provas e mesmo conjeturas plausíveis dos por­menores desses espécimes, o que estamos longe de negar.” E, voltando à idéia dominante, declara imediatamente que — “seja qual for a nossa igno­rância, devemos dizer convictamente que a criação orgânica pode e deve ter ocorrido sem intervenção de qualquer força exterior”.

Carl Vogt, a exemplo dos pré-citados, reco­nhece que as forças físico-químicas conhecidas não bastam, só por si, para explicar a origem dos or­ganismos. Todo ser vivo, vegetal ou animal, tem sua origem essencial na célula orgânica, ou ovo. Antes de tudo, havemos de admitir que essa ori­gem essencial foi criada, sem sabermos como. Só depois dessa premissa admitida é que começam as demonstrações físico-químicas. “Se admitirmos que isso tivesse sucedido uma única vez — diz o autor das Lições sobre o Homem — mediante ação simultânea de fatores diversos, que não conhecemos, élícito concluir que houvesse podido formar-se uma célula orgânica a expensas dos elementos quími­cos, e torna-se evidente que a mais ligeira modi­ficação devesse determinar imediata modificação no objeto produzido, isto é, na célula. Mas, como não podemos admitir que, sobre toda a superfície ter­restre, as mesmas causas tenham atuado e ainda atuem nas mesmas condições e com a mesma ener­gia, na criação da célula primitiva; e que, por outro lado, a criação orgânica haveria de estender-se por toda a Terra, conclui-se, necessAriamente, que as primitivas células geradoras de organismos deviam ter aptidões de desenvolvimento diferentes.”

Wirchow não explica melhor a questão de ori­gem. “Em certa fase de desenvolvimento da Terra — diz — sobrevieram condições anormais, sob as quais, entrando em novas combinações, os elemen­tos recebiam o movimento vital, donde as condi­ções ordinárias se tornaram vtais.”

Quanto a Carlos Darwin, em vão temos rebus­cado a sua opinião, mesmo quanto à origem das espécies. Contenta-se ele com o explicar a varia­bilidade possível dum certo número de tipos primi­tivos, e é uma nota no mínimo singular, que, em obra tão volumosa e opulenta sobre a origem dos seres, não se trate absolutamente dessa origem!

O problema é obscuro: a distância do nada a alguma coisa é maior que de alguma coisa a tudo. Seja qual for o sistema a que se filiem nossas crenças íntimas, espiritualistas ou materialistas, todos estamos assomados pelo inexplicável mistério da vida. Porque não reconhecer com franqueza a nossa absoluta ignorância neste particular? E con­tudo, essa ignorância deveria moderar um pouco o ardor negativista dos ateus, levando-os a tratar o enigma com menos arrogância. É de convir que, quando nos assoberba uma tal incerteza, ninguém pode cantar vitória. Quiséssemos voltar à questão e fácil nos seria pôr todas as vantagens do nosso lado; poderíamos impor Deus aos adversários, sem que eles pudessem subtrair-se ao seu domínio. Não demonstrando a Ciência que as afinidades da ma­téria possam criar a vida, o papel do Criador, aqui, fica íntegro como nos tempos de Adão e até dos pré-adamitas. E ainda que o demonstrasse, a ori­gem e o entretenimento da vida deixam ver claramente a existência de uma força criadora, ou seja, por outras palavras, um Deus oculto.

Tal, porém, a força da nossa tática, que jamais queremos abusar de uma posição privilegia­da e preferimos combater sempre em paridade de terreno e de armas. Contentamo-nos, assim, em insinuar apenas essa superioridade aos adversários, para sua edificação. momentânea e baixando, logo a seguir, das alturas favoráveis ao triunfo, para voltar ao plano da organização da vida, sem nos prevalecermos dos argumentos oferecidos pelo pro­blema dessa mesma vida. Ninguém dirá que, do ponto de vista singular da organização, a existên­cia do ser inteligente não esteja soberanamente de­monstrada. Ainda mesmo que, em virtude de forças desconhecidas, pudesse a vida aflorar espontânea-mente em dadas circunstâncias materiais, e ainda que os seres primários se tivessem formado de uma única célula primordial, gerada ao influxo de um conjunto de circunstâncias fortuitas; ainda assim, repetimos, a organização dos seres vivos seria uma prova irrefragável da soberania da força coorde­nada. Seria, sempre, em virtude de uma que tais leis superiores que a vida haveria de repontar e organizar-se, leis que não traduzem uma causa cega ou louca, mas causa que deve, no mínimo, ‘saber o que faz. Assim, também, chegasse o homem a des­cobrir o nascimento espontâneo dos infusórios ou dos vermes intestinais, nem por isso teria criado esses ínfimos seres e sim, apenas, constatado que a Natureza opera à sua revelia, com poderes supe­riores aos seus, e mediante processos que, a des­peito de sua inteligência, lhe teriam custado séculos a descobrir (dado que lá chegasse).

Mas, finalmente, nem por isso a causa da ra­zão divina restaria mais esclarecida.

Dado o mistério que envolve ainda a origem da vida na Terra, ninguém há com autoridade para declarar proscrita a ação do Criador. Suponha-se que os primeiros seres nascessem no estado de ani­malidade rudimentar e que as variedades sucessi­vas fôssem a cepa das espécies hoje tão distintas; ou que os primeiros pais de cada família houvessem despertado à voz de comando de um grande má­gico, e teremos que estas conjeturas não afetam mais a base da Teologia natural, do que se admitíssemos que essas espécies aqui aportassem trazi­das de outros mundos nas asas de quaquer celeste mensageiro. Quanto à formação ou transformação das espécies, não está por sua vez melhor conheci­da que a origem da vida, qual o confessa Ch. Lyell: “O que sabemos da Paleontologia é nada em comparação com o que resta a aprender.”

Examinemos, agora, com este geólogo eminen­te (38), quais os principais caracteres da teoria de Lanck e de Geoffroy Saint Hilaire acerca da progressão e transformação das espécies. Os homens superficiais facilmente imaginam que a Ciência está organizada com regras absolutas e nenhuma difi­culdade encontra em sua marcha ascendente. Nada menos exato. Nem mesmo as grandes definições têm caráter absoluto, Os zoólogos, por exemplo, não se entendem sobre os vocábulos espécie e raça. Su­cedeu o que Lamarck predissera — declara Lyell quanto mais se multiplicam as novas formas, me­nos nos capacitamos de precisar o que seja uma variedade, ou uma espécie. De fato, zoologistas e botânicos se vêem, não só mais embaraçados que nunca por definir a espécie, como também para cer­tificar se ela realmente existe na Natureza, ou se não passa de simples abstração da inteligência hu­mana. Pretendem uns que ela seja constante den­tro de certos limites de variabilidade, restritos e intransponíveis; querem-na outros suscetível de mo­dificações indefinidas e ilimitadas. Desde os tem­pos de Linneu até o começo deste século, acredi­tava-se definir suficientemente a espécie, dizendo:

“A espécie compõe-se de indivíduos semelhantes e reproduzindo-se de seres a eles semelhantes”.

(38) Charles Lyell — The Antiquity of man... A an­cianidade do homem provada pela Geologia e anotações sobre a origem das espécies, por variação.

Lamarck, tendo reconhecido uma grande quantidade de espécies fósseis, das quais umas eram idênticas a espécies vivas, enquanto que outras não passa­vam de variedades, aditou o fator tempo à definição de espécie, assim formulando: “Compõe-se a espécie de indivíduos inteiramente semelhantes entre si, e reproduzindo-se por seres semelhantes, desde que as condições de vida não experimentem alterações capazes de lhes variar os hábitos, carac­teres e formas.” Finalmente, chega ele a concluir: que, dos animais e plantas contemporâneas, nem um exemplar existe da criação primordial, sendo todos derivados de formas preexistentes, as quais, depois de haverem reproduzido, por séculos sem conta, seres semelhantes, teriam, finalmente, expe­rimentado variações graduais e consequentes a mu­danças de clima e do reino animal, adaptando-se às novas circunstâncias. Alguns, entretanto, com o correr dos tempos se afastaram tanto do tipo original, que mereciam ser agora considerados es­pécie nova.

Em apoio dessa opinião, apresenta o contraste das plantas agrestes com as cultivadas, dos ani­mais selvagens com os domésticos, a lembrar como e quanto se lhes modificam gradualmente a cor, a forma, a’ estrutura, os caracteres fisiológicos e até os instintos, em presença de novos inimigos e sob a influência de alimentação e regime de vida dife­rentes.

Lamarck sustenta, não somente que as espécies foram constantemente submetidas a alterações, pas­sando de um a outro período, mas, também, que houvesse um progresso constante do mundo orgâ­nico, desde os primeiros aos hodiernos tempos, dos seres mais simples aos mais complexos, dos mais baixos aos mais altos instintos, e, finalmente, da mais rudimentar inteligência às maiores expressões do racionalismo humano. Para ele, o aperfeiçoa­mento teria sido moroso e constante, a própria raça humana ter-se-ia, enfim, desgalhado do grupo de mamíferos organicamente mais evoluídos. Um pro­fessor da Universidade de Cambridge nos deu um resumo consiso e racional desta teoria (39).

Encontramos nos antigos depósitos da crosta terrestre— diz ele — o traço de uma progressão na organização das formas viventes, sucessivas. Podemos notar, por exemplo, a ausência de ma­míferos nos grupos mais antigos e as suas raras aparições nos grupos secundários mais recentes. Animais de sangue quente (em grande parte de gê­neros desconhecidos) encontram-se bastante espa­lhados em todas as velhas camadas terciárias e abundam (frequentemente com formas genéricas conhecidas) nas partes superiores da mesma série; e, por fim, temos que a aparição do homem na su­perfície do solo é um fato recente.

Este desenvol­vimento histórico, das formas e funções da vida orgânica em períodos sucessivos, parece-nos indi­cíal de uma evolução gradativa da energia criado­ra, a manifestar-se por uma tendência progressiva para o tipo mais elevado da organização animal.

Hugh Miller (40) também nota o fato extra­ordinário de ser a ordem adotada por Cuvier, no seu Reino Animal — a que coloca as quatro clas­ses de vertebrados segundo as suas relações mú­tuas e categóricas — a mesma ordem cronológica que apresentavam. O cérebro, cujo volume em re­lação ao da medula está na razão de dois para um, é o do peixe, que foi o primeiro a aparecer. Sucedeu-lhe o que apresenta a relação média de dois e meio por um, ou seja, o réptil. Em seguida, vem a relação de três por um, que é a das aves; a média de quatro por um, peculiar aos mamíferos. Por fim, o último, um cérebro cuja relação média é de vinte três por um, o cérebro do homem, que raciocina e calcula.

(39) Professor Sedgwick’s — Discurse on the Studies of the University of Cambridge, 1850.

(40) Edinburgh — Footprints of the Creator, 1849.

O cérebro poderia não ser mais que uma flo­rescência da medula espinal. — Nas espécies in­feriores (rãs por exemplo) a faculdade de sentir pertence à medula, quanto ao cérebro. Sem dúvida, pode-se fazer sérias objeções à doutrina da progres­sividade, mostrando algumas plantas e animais me­nos perfeitos e surgidos posteriormente a espécies mais perfeitas, tais como o embrião monocotíledô­neo e os vegetais endógenos, depois do embrião monocotiledôneo e dos vegetais exógenos (o das coníferas de caule glanduloso), bem como a perfeição das mais antigas criptogâmicas, o movimento re­trogressivo dos répteis, o aparecimento da boa (ji­bóia) depois do iguanodonte, etc. Exemplos não faltam, mas, persuadidos de que essa teoria não al­cança a nossa tese da presença de “Deus na Natu­reza”, e simpatizando com ela, em si mesma, nós a sustentaremos. Consideramo-la com Lyell, não apenas útil mas, no estado atual da Ciência, como hipótese indispensável, que, destinada embora a so­frer de futuro muitas e grandes modificações, ja­mais poderá ser absolutamente aniquilada.

Sem dúvida, poderão julgar paradoxal que os mais firmes sustentáculos da transmutação (Dar­win e Hooker, por exemplo) guardem singular re­serva quanto à progressão, e que os maiores apolo­gistas desta combatam, não raro com veemência, a transmutação. Não poderão ser verdadeiras e con­ciliarem-se essas duas teorias? Uma e outra nos representam em definitivo os tipos de vertebrados a elevarem-se gradualmente no curso das idades, a partir do peixe, a mais simples forma, para os ma­míferos placentários, até chegar ao último elo da série, aos mamíferos antropóides, e, enfim, ao ho­mem. Este último grau afigura-se, portanto, nesta hipótese, uma parte integrante da mesma série contínua de atos desenvolvidos, anel da mesma cadeia, coroamento da obra, por isso que entra na mesma e única série das manifestações da potência cria­dora.

Passemos agora à teoria da origem das espé­cies por meio da seleção natural.

Esta teoria nos apresenta grosso modo a ação da Natureza, observada na criação e educação dos animais domésticos. Sabem os criadores que é pos­sível, ao fim de algumas gerações, obter uma nova classe de rebanhos, de chifre curto ou sem chifre, desde que tenham escolhido reprodutores de cornos menos desenvolvidos. Dizem, então, que é assim que opera a Natureza, alterando no curso das eras as condições da vida, os traços geográficos de um país, seu clima, a associação de animais e plantas e, por consequência, a alimentação e os inimigos de uma espécie e o seu “modus vivendi”. E assim se vão elegendo certas variedades mais bem adaptá­veis à nova ordem de coisas. Dessarte, podem as novas raças suplantar, muitas vezes, o tipo original de sua ascendência.

Lamarck opinou que o pescoço longo da girafa procede de uma longa série de esforços para co­lher o alimento de árvores cada vez mais altas. Darwin e Wailace limitam-se a conjeturar que, na intercorrência de alguma calamidade sobreviveram os especímenes de pescoço comprido, por lhes ser possível pastarem em sítios inacessíveis aos outros.

Graças a ligeiras modificações, multiplicadas em curso de milhares de gerações e à transmissão, por hereditariedade, das aquisições novas, supõe-se uma divergência cada vez maior do tipo primitivo, até resultar em uma nova espécie, ou em um novo gênero, se mais longo o tempo decorrido, O mo­derno autor desta explicação fisiológica da origem das espécies, Sr. Carlos Darwin, expõe ele pró­prio (41), como se segue, os fatos gerais em que se baseia.

Na domesticidade, constata-se uma grande va­riabilidade, que parece devida ao fato de ser o sis­tema

(41) On the Origine of species by the mean of natural selection.

reprodutor muitíssimo sensível às mudanças de condições de vida, deixando de reproduzir exa­tamente a forma matriz. A variabilidade das for­mas específicas é governada por um certo número de leis muito complexas, tais como o uso ou a falta de exercício dos órgãos e a ação direta das condições físicas da vida. Nossas espécies domésti­cas sofreram modificações profundas, que se transmitiram por hereditariedade, durante período assaz longos. Assim, também, enquanto se mantiverem as mesmas condições de vida por períodos longos, poderemos admitir possa manter-se e transmitir-se uma modificação já adquirida durante uma série quase infinita de graus genealógicos. Por outro lado, está provado que a variabilidade, uma vez começando a manifestar-se, não cessa totalmente de operar, visto como novas variedades ainda se verificam, de tempos a tempos, entre as nossas espécies domésticas mais antigas.

Não é, porém, o homem que produz a varia­bilidade. Ele apenas expõe, e muitas vezes sem desígnios, os seres orgânicos a novas condições de vida. Então, a Natureza, agindo sobre o organismo, produz variações. Podemos escolher, então, essas variedades e as acumular na direção que nos prou­ver. Assim, adaptamos animais ou plantas, às nos­sas conveniências, e até aos nossos caprichos. Tal resultado pode ser obtido sistemàticamente, e mes­mo sem objetivo preconcebido, qualquer, bastando que, sem propósito de alterar a raça, se conservem de preferência os indivíduos que, num dado tempo, lhe são os mais úteis. Certo é que se podem trans­formar os caracteres de uma espécie escolhendo-se de cada geração sucessiva as diferenças individuais; e este processo seletivo foi o agente principal de produção das raças domésticas, mais distintas e mais úteis, Os princípios que atuaram com tanta eficácia, no estado de domesticidade, podem, igual­mente, operar no estado de natureza. A conser­vação das raças e dos indivíduos favorecidos na luta perpêtuamente renovada com o meio ambiente, é fator poderosíssimo, e sempre ativo, de seleção natural.

A concorrência vital é uma consequência neces­sária da multiplicação, em razão geométrica mais ou menos elevada, de todos os seres organizados. A rapidez dessa progressão está provada não só pelo cálculo, como pela pronta multiplicação de mui­tos animais e plantas durante uma série de esta­ções particulares, ou quando se aclimatavam em no­vas regiões. O número dos indivíduos que nascem excede sempre o dos que podem viver.

Um grão na balança pode determinar a variedade que deve crescer e a que haja de diminuir. Como os indi­viduos da mesma espécie são os que mais concor­rem entre si, em todos os sentidos, a luta torna-se para eles, em regra, mais severa. Ela o é quase tanto entre as variedades da mesma espécie, e gra­ve, ainda, entre as espécies do mesmo gênero. Mas a luta também pode existir, muitas vezes, entre seres muito afastados na escala da Natureza. A mais leve vantagem adquirida por um indivíduo, em qualquer idade ou estação, sobre o seu concorren­te; ou uma melhor adaptação ao meio físico am­biente; o mais insignificante aperfeiçoamento, en­fim, fará pender a concha da balança.

Vantagens aparentemente medíocres podem acarretar essa variação crescente. Entre animais de sexos distintos, diz o naturalista, haverá guer­ra, as mais das vezes entre machos, para posse da fêmea. Os indivíduos mais vigorosos e os que lu­taram com melhor êxito contra as condições físi­cas ambientes, hão-de deixar uma progenitura mais numerosa. Mas, o seu êxito também dependerá, muitas vezes, dos meios de defesa de que dispo­nham, ou de sua mesma beleza e, ainda neste caso, a mínima vantagem lhes granjeará a vitória.

Uma vez admitida a variabilidade, bem como a existência de um poderoso agente sempre pronto a funcionar, chegaremos a concluir facilmente que, variações algo úteis ao indivíduo em suas rela­ções vitais, possam ser conservadas, transmitidas e acumuladas? Se o homem pode, com paciência, escolher as variações que lhe sejam mais úteis, por­que deixaria a Natureza de escolher as variações proveitosas aos seus produtos sujeitos a condições mutáveis de existência? Que limites poderíamos atribuir a esse poder, quando ele opera mediante períodos longos e escruta, rigorosamente, a estru­tura, toda a organização e os hábitos de cada cria­tura, por favorecer o prestável e rejeitar o inútil? Parece não haver limite algum a esse poder, cujo efeito é a adaptação lenta e admirável de toda a forma às mais complexas relações da vida.

Cada espécie, dada a progressão geométrica de reprodução que lhe é peculiar, tende a aumentar desordenadamente, e os descendentes modificados de cada espécie multiplicando-se, tanto mais quan­to se diversificam, nos hábitos e na estrutura, a lei de seleção natural apresenta, por sua vez, uma tendência constante para conservar os descendentes mais divergentes, de qualquer espécie.

Daí se segue que, durante o— curso perseverante de sucessivas modificações, as mais leves diferen­ças características das variedades de uma espécie tendem a aumentar e atingir as grandes diferenças, que caracterizam espécies do mesmo gênero. Va­riedades novas e mais perfeitas suplantarão e ex­terminarão inevitavelmente as mais antigas, as me­nos perfeitas e intermediárias, e, daí, tornarem-se as espécies mais bem determinadas e mais distintas.

Pode objetar-se que ao presente ninguém per­cebe tais mudanças.

O teórico responde, porém, que, operando a se­leção natural somente por acúmulo de variações favoráveis, leves e sucessivas, não pode produzir grandes alterações instantâneas. Ela opera a passos lentos e curtos. Essa lei natural não existiria, sem dúvida, se cada espécie houvera sido indepen­dentemente criada.

O testemunho geológico apóia a teoria da des­cendência modificada. As espécies novas aparece­ram lentamente e por intervalos sucessivos no ce­nário do mundo, e a soma das mudanças efetuadas em tempos iguais é muito diferente nos diversos grupos. A extinção de espécies e de grupos intei­ros de espécies, que representou papel tão impor­tante na história do, mundo orgânico, é uma série quase inevitável do princípio de seleção natural, pois as formas antigas devem ser suplantadas por novas formas mais perfeitas. Nem as espécies iso­ladas, nem os grupos de espécies podem reaparecer, uma vez interrompida a cadeia das gerações regu­lares. A extensão gradual das formas dominantes e a lenta modificação dos seus descendentes con­correm, depois de tantos intervalos de tempo trans­corrido, para fazer supor que as formas da vida houvessem mudado simultaneamente no mundo inteiro. O caráter intermediário dos fósseis de cada formação, comparados aos de formação inferiores e superiores, explica-se muito simplesmente pela po­sição média que eles ocupam na cadeia geológica. O grande fato constatado, de pertencerem todos os seres extintos ao mesmo sistema dos atuais, inte­grando-se nos mesmos grupos, ou nos grupos in­termediários, atesta o parentesco e a descendência original.

O autor invoca também em seu apoio a impor­tância única dos caracteres embriológicos, obser­vando que as afinidades reais dos seres organizados são devidas à hereditariedade e comunidade de ori­gem, O sistema natural é uma árvore genealógica cujos lineamentos precisamos descobrir com o au­xílio dos caracteres mais permanentes, por leve que seja a sua importância vital.

Não despreza ele, tão-pouco, a analogia. A dis­posição dos ossos é análoga na mão do homem, na asa do morcego, na membrana natatória da tar­taruga e na perna do cavalo; o mesmo número de vértebras forma o pescoço da girafa e do elefante. Estes e outros fatos semelhantes explicam-se por si mesmos na teoria da descendência lenta e su­cessivamente modificada. A identidade de plano da asa e da perna do morcego, que, no entanto, ser­vem a fins tão diferentes; mandíbulas e patas de carangueijo, pétalas, estame e pistilo de uma flor, explicam-se do mesmo modo pela modificação gra­dual de órgãos outrora semelhantes nos primitivos antepassados de cada classe.

A falta de exercício, às vezes auxiliada pela seleção natural, tende, amiúde, a reduzir as pro­porções de um órgão, que a mudança de hábitos ou as condições de vida pouco a pouco tornaram inútil.

Dessarte, é fácil conceber a existência de ór­gãos rudimentares.

Pode-se, enfim, perguntar até onde se esten­de a doutrina da modificação das espécies.

Todos os membros de uma classe podem ser religados em conjunto, pelos laços de afinidades e igualmente classificados, em virtude dos mesmos princípios, por grupos subordinados a outros grupos. Darwin não pode duvidar que a teoria da descendência não abranja todos os membros de uma classe. Ele pen­sa, até, que todo o reino animal descende de quatro ou cinco tipos primitivos, pelo menos, e o reino vegetal de um número igual ou mesmo inferior.

A analogia — acrescenta, levá-lo-ia um pouco mais longe, isto é, à crença de que todas as plan­tas e animais descendem de um protótipo único; mas, que a analogia pode ser um guia enganador. No mínimo, a verdade é que todos os seres vivos têm muitos atributos comuns: composição química, estrutura celular, leis de crescimento e faculdade de serem afetados por influências nocivas.

Em todos os seres organizados, tanto quanto podemos julgar pelos conhecimentos atuais, a ve­sícula germinativa é uma só. De sorte que, cada indivíduo organizado parte de uma mesma origem.

Mesmo que consideremos as duas principais divisões do mundo orgânico, ou sejam os reinos vegetal e animal, vemos que certas formas inferio­res apresentam caracteres intermédios assaz pro­nunciados, a ponto de divergirem os naturalistas na sua respectiva classificação. O professor Cl. Gray notou que “os esporos de muitas algas inferiores poderiam vangloriar-se de ter possuído, de início, os caracteres da animalidade, passando depois a uma vida vegetal equívoca”. Assim, partindo do princípio da seleção natural com divergência de ca­racteres, torna-se crivel que animais e plantas te­nham de algum modo derivado de uma forma inter­mediária, importa admitir também que, quantos se­res lograram viver até hoje, podem descender de uma forma primordial e única. Tal conseqüência porém, funda-se principalmente na analogia e pou­co importa seja ou não aceita. Outro tanto não se dá com as grandes classes, tais como articula­dos, vertebrados, etc., pois aí é nas leis da Homologia e da Embriologia que o autor vai encon­trar provas muito especiais de uma descendência única (42).

Tal a teoria de Darwin, exposta por ele mesmo.

(42) O tradutor francês de Darwin adverte, a propó­sito da unidade dos centros de criação específica, que seria extremamente rigorista a acepção do termo — “paternidade” única, por um só Individuo, ou casal único.

“Mais incrível, ainda, supor que toda a forma primor­dial, o antepassado comum e arquétipo absoluto da criação viva não tivesse sido representado senão por um único Individuo. De Onde teria provindo esse individuo único? Seria preciso, depois de eliminar tantos milagres, deixar subsistisse um? Se um tal Indivíduo existiu, ele só podia ser o planeta. Nada Impede admitir tenha tido esta matriz universal, em uma de suas fases existenciais, o poder de elaborar a vida. Mas, um só ponto da sua superfície teria auferido o privilégio de produzir germes? Ou deveremos crer lhe houvessem estes desabrochado do seio? Todas as analogias levam antes a supor a terra fecunda em toda a sua superfície; que o seu invólucro aquoso fosse o primeiro laboratório, e que inumerável fosse a produção dos germes, sem dúvida semelhantes. Células verminativas, nadando esparsas, em cachos ou em filamentos, nas águas, uma cristalização orgânica e nada mais. Evidentemente, Um tipo, uma forma, uma espécie única, mas não um só In­dividuo, do qual se formassem sucessivamente todos, os organismos.

Se se admitir a simplicidade destes germes primitivos, reconhece-se que as possibilidades de desenvolvimento de­veriam apresentar-se entre um número considerável de seres. Em virtude do grande número de esboços orgânicos, o aperfeiçoamento sucessivo da organização seguindo um certo número de séries típicas, paralelas ou mais ou menos divergentes, nada há de surpreendente no princípio vital repousando em estado latente em cada germe.

As leis gerais da vida seriam em primeiro lugar fixa­das, nesta hipótese discutível, segundo as condições físicas peculiares ao nosso planeta, ao mesmo passo que come­çasse a divergência dos tipos necessAriamente adaptados à diversidade pouco profunda dessas condições. A medida que as raças se houvessem fixado e aperfeiçoado, teriam diminuído de número, e ao mesmo tempo que cada qual’ visse diminuir seus representantes. A posteridade cres­cente de um certo número de cepas primitivas deveria, sucessivamente, tomar o lugar das raças que sucumbiam na luta universal, por efeito de inferioridade orgânica relativa.

Se, enfim, a nossa legítima curiosidade se atreve a aplicar essa teoria à nossa própria espécie, logo percebemos, num misto de admiração e tris­teza, que talvez descendamos dum exemplar de símio desaparecido. Indubitàvelmente, nossa digni­dade sente-se ofendida diante da Só possibilidade de uma tal jerarquia; mas, se observarmos a Na­tureza, sem idéias preconcebidas, não parece que façamos exceção à lei geral? Muitos de nós pre­ferem descender de um Adão degenerado, antes que de um macaco aperfeiçoado. E contudo, a Natureza não nos consultou a respeito.

Pelo que nos toca, jamais dedicámos algumas horas ao estudo da Embriologia, que não ficásse­mos assaz impressionado com as suas abscônditas revelações. Jamais pudemos comparar embriões, em fases diferentes, que não víssemos neles um ves­tígio rudimentar das fases correspondentes, pelas quais a nossa humanidade haveria de ter passado em tempos anteriores.

Os vertebrados superiores revestem, sucessivamente, como no estado de esboço, os principais caracteres das quatro grandes classes do entron­camento, sem contudo passarem pelas formas dos outros troncos zoológicos. Desde o começo de sua existência secreta, a célula germinativa manifesta um sistema de desenvolvimento característico, sem tomar a forma do verme articulado, do molusco, ou do radiário. Sem dúvida, esta sucessão repre­senta uma imagem das fases que, no curso das idades, a mesma classe de animais atravessou sucessivamente, avançando na escala dos seres. Quem já deixou de surpreender-se com a semelhança que o embrião humano oferece, sucessivamente, com o do peixe, do réptil e da ave? A hora presente não seria, pois, o espelho de um passado longínquo?

Não se ousa encarar de frente essa origem e, sem embargo, a questão é assaz importante para merecer um esto de coragem. Examinemos, pois, sob o seu aspecto geral, a posição do homem na sua natureza terrena. Ao terminar este capítulo sobre a origem dos seres, esta perspectiva continua­rá mostrando-nos um governo intelectual na mar­cha ascendente da Criação.

A hipótese zoológica que encara o homem como descendente de uma raça símia, antropóide, não é imoral nem antiespiritualística. Os que a abraça­ram nestes últimos tempos não o fizeram com o propósito de hostilldade ao Cristianismo e por pro­fessarem doutrinas pagãs. Muito ao contrário, fi­zeram-no a despeito de grandes prevenções, favo­ráveis à superioridade dos nossos primitivos ances­trais, de quem deveriam considerar-se descendentes abastardados. De resto, não compreendemos como sábios dignos desse nome possam afagar o prazer pueril de fazer fosquinhas ao Cristianismo. Pensa­mos que a Ciência deve ventilar os seus problemas sem se ocupar, de modo algum, com artigos de fé.

Declaremos, antes de tudo, que a primeira característica do homem é a sua inteligência. Portanto, o seu lugar filosófico não se enquadra nas classificações da História Natural. Por sua perfec­tibilidade, que se poderá atribuir à linguagem, pela inteligência racional, por suas faculdades espiri­tuais, em suma, o homem domina toda a Natureza terrestre. Seu espírito não incide nos domínios do escalpelo. Seu valor não se afere pelo corpo, pelo esqueleto, pelo fígado ou pelos rins, mas, pelo seu caráter intelectual. Descenda, pois, de uma ou de outra fonte o nosso corpo, isso em nada nos afeta a alma, O mundo da inteligência não é o mundo da matéria. Não somos menores por isso, nem me­nos puros. Somente por estreiteza de espírito é que intermitimos na filosofia psicológica imaginá­rios temores, suscitados pela ciência zoológica. Se nosso berço terrestre fôsse a manjedoura de rústico estábulo, qual o de Jesus, nem por isso nossa vida e nossa missão seriam menos santas e altanadas. A superioridade está em nossas faculdades inte­lectuais.

“O corpo humano, diz o naturalista inglês Wal­lace, estava nu e desprotegido e foi o espírito que o provisionou de vestes, para preservá-lo das intem­péries. O homem não teria podido competir em agilidade com o gamo, em força com o touro sel­vagem, e foi o espírito que lhe deu armas para domar e utilizar estes animais. Ele era menos apto que outros animais para alimentar-se de ervas e frutos, que a Natureza espontâneamente oferecia, e foi essa faculdade admirável que lhe ensinou a governar e adequar a Natureza aos seus fins, dela extraindo o alimento, quando e onde quer.

“Desde o instante em que utilizou a primeira pele na indumentária, a primeira lança na caçada, a primeira semente no plantio, o primeiro tronco na enxertia, uma grande revolução se operou na Natureza, revolução que não tivera símile em qual­quer fase da história do mundo, de vez que um ser existia forrado às mutações do Universo; um ser, até certo ponto superior à Natureza, pois possuía os meios de a controlar, de lhe regular as ativida­des, e podendo manter-se em harmonia com ela, não modificando a sua forma corporal, mas aperfeiçoando o seu espírito.”

Nisso é que vemos, únicamente, a verdadeira grandeza e dignidade do homem (43)

O lugar anatômico do homem ocupa graus su­periores ao em que se assenta o chimpanzé; a di­ferença entre os cérebros do negro e do primata não é maior que a que separa o chimpanzé do saju, e, sobretudo, dos lemurianos. Depois do chimpanzé (trogoditas) vêm, na ordem decrescente, o orango (pitécus), o gibon (hilobatos), o seninopíteco, o bugio, etc. Tal como escreveu Geoffroy Saint-Hi­laire em polêmica célebre com Cuvier, o homem é a primeira família da ordem dos primatas, esta­belecida por Linneu no século passado. Aqui, cabe dizer que falamos do ponto de vista anatômico, ünicamente. Qualquer outro raciocínio invalida as classificações precedentes. Somos, porém, de opi­nião que, quando se faz anatomia, é preciso fazer a anatomia.

No seguinte capítulo, teremos ensejo de pros­seguir na comparação do homem com o macaco, pelo estudo do cérebro.

O lugar geológico do homem recua a origem de nossa espécie à época longínqua em que viviam as raças antediluvianas, hoje desaparecidas: o vea­do de grandes chifres, o urso das cavernas, o rino­ceronte ticórnis, o elefante primígeneo, o mamute,

(43) Grandes homens contemporâneos não comparti­lham destas Idéias e consideram a Humanidade como uma raça degenerada. Permitimo-nos citar aqui como exemplos, que o Sr. Cousin, com quem conversamos ao iniciar esta obra (1865), sustentava essa opinião e o Sr. de Lamartine, a quem propuséramos a mesma questão quando corrigíamos estas provas (1867), encara as raças arianas como tendo sido superiores à sociedade atual. O problema ainda está longe de solução, mas a verdade é que, nem por isso, a característica do homem deixa de consistir na sua Inteligência progressiva.

a rena fóssil, etc. A mais antiga data conhecida e atestante da presença do homem, é muito pos­terior à fauna e flora atuais. Entretanto, verifi­ca-se não existirem já, em nossos dias, umas tan­tas espécies contemporâneas do homem. Os fósseis humanos encontrados nos arrecifes coralíneos da Flórida, nas cavernas do Languedoc e da Bélgica, o esqueleto exumado nos arredores de Dusseldorf, o crânio da caverna de Êngis, o de Barreby, na Dinamarca, o homem fóssil de Puy e de Natchez, no Mississipe, os restos humanos em Loes, indiciam nas variedades humanas primitivas um estado de manifesta inferioridade, aproximando-as singularmente dos selvagens contemporâneos e mesmo dos símios antropóides.. Hoje ninguém contesta a exis­tência do homem anterior ao período glaciário e desde o começo da época quaternária.

O lugar arqueológico do homem concorda com os precedentes, a favor da teoria progressiva. Quem duvidaria, hoje, da idade da pedra e do bronze, pelas quais transitou a Humanidade antes que in­ventasse qualquer arte ou indústria, cujos vestígios se encontram por toda a parte? Que ancianidade poderíamos atribuir a esses períodos? A idade da pedra, na Dinamarca, coincidia com o período da primeira vegetação, seja a dos pinheiros da Escó­cia, e, em parte, com a segunda vegetação — a do carvalho. A idade do bronze desenrolou-se durante a época do carvalho, pois foi nas camadas da turfa, onde abunda o carvalho, que se encon­traram espadas e escudos desse metal. Antes dele não havia faias. A idade do ferro, menos pristina, corresponde à bétula. Quanto tempo duraria a pri­meira idade? Sendo o bronze um composto de mais ou menos nove partes de cobre e uma de estanho, o aparecimento dos primeiros utensílios denota uma indústria não já elementar. A fusão dos minerais, a decoração lenta dos objetos moldados, só pode­riam ser conseguidas depois de longos tateamentos.

A que época devemos atribuir as cidades lacustres da Suiça e as quarenta mil estacas de Wan­gen? As escavações nos têm revelado vinte povoa­ções no lago de Genebra, doze no de Neufchâtel, dez no de Bienne, contemporâneas das idades da pedra e do bronze.

As da Irlanda (Crammoges) parecem provir da mesma época. Essas povoações castoreanas de­viam oferecer alguma semelhança com as da Nova-Guiné, descritas por Dumont d’Urville. Os ossos encontrados por Lartet na caverna de Aurignac são contemporâneos das hienas das cavernas e do rinoceronte de narinas separadas.

Foi muito tempo depois que Tebas e Mênfis, capitais do alto e baixo Egito, atingiram o seu gran­de esplendor, e que as quarenta pirâmides foram erigidas tipificando uma civilização lentamente de­senvolvida, com uma forma especial de culto, de cerimônias esplêndidas, um singular estilo de arqui­tetura e inscrições, barragem de rios, etc. Essas gló­rias, entretanto, estavam desvanecidas muito tempo antes de Homero. “Foi preciso — diz Lyell — para formação lenta e gradual de raças como a cau­cásica, a mongol ou a negra, um lapso de tempo bem mais longo que o possível de ser abrangido por qualquer sistema de cronologia popular.”

Ao problema cronológico do aparecimento do homem na Terra, a Ciência nada responde por en­quanto. Demais, se o homem não apareceu espontaneamente, tal data não existe. Quanto aos ves­tígios de humanidade, ou do homem em si mesmo, as opiniões (pois que se não trata, no caso, senão de opiniões) são vagas quão variáveis. Um tijolo de carvão encontrado entre Assouan e Cairo, a uma profundidade de 18 metros, contaria treze mil anos de existência, admitindo-se um aumento de 15 centímetros por século, no depósito de vasa, no delta do Nilo. A estimativa mais baixa do prazo necessário a formar o delta do Mississipe é de cem mil anos.

O esqueleto humano encontrado perto de Nova-Orleans, a 5 metros de profundidade e sob uma camada de quatro florestas extintas, não contaria menos de cinquenta mil anos, na opinião do Dr. Dower. (É uma cifra exagerada, ao nosso ver.) Agassiz calculou que a formação dos recifes de coral da Flórida representa cento e trinta e cinco mil anos, Os silex talhados e recolhidos em diver­sas regiões do globo, particularmente no vale do Somme, parece terem servido de armas a uma raça distanciada de cem séculos.

A Arqueologia concorda com os historiadores e poetas da antigüidade, quais Heródoto, Diodoro, Éschylo Vitrúvio, Xenóphontes, Plinio, no concer­nente ao primitivismo bárbaro da raça humana e à sua predileção pelas cavernas. Mas, esse estado nós o podemos considerar fora dos domínios his­tóricos e a cronologia, que remonta à época já misteriosa das grandes migrações arianas, a mais de cem séculos pretéritos, mergulha em noite pro­funda, quando tenta sondar a nossa verdadeira origem.

Tudo quanto podemos afirmar, é que a Hu­manidade é muito mais antiga do que se supôs até agora, tendo começado por graus inferiores, antes que se elevasse à noção de justiça e de moral. Se nos fora permitido remontar a essas épocas, não poderíamos reconhecer a civilização da nossa era na caligem das idades bárbaras, quando a inteli­gência em seus primórdios esforçava por despren­der-se das possantes constriçôes da matéria.

Preferimos confessar essa ancianidade e essa possível origem da nossa espécie, sem escrúpulos para com o Espiritualismo e sem acompanhar o mau exemplo dos que intrometem as crenças reli­giosas a propósito de tudo, e mesmo sem propósito. Constatamos os fatos e a nossa ignorância, -com sincera franqueza, persuadidos de que não se po­dendo antepor duas verdades entre si, a Ciência da Natureza não pode afetar a causa do Ser su­premo. Como diz Helmholtz, os homens costumam medir a grandeza e a sabedoria do Universo pela duração e vantagem que daí lhes advêm; mas a história dos séculos transcorridos nos mostra quão insignificante é o período do advento da existência humana, em relação com a idade do planeta.

A Ciência não admite de bom grado a apari­ção miraculosa do primeiro casal humano. “Diz Carlos Lyell que, se a fonte original da espécie humana tivesse sido realmente dotada de faculda­des intelectuais superiores de natureza perfectível, como a de sua posteridade; se a Ciência lhe tivesse sido inspirada, o progresso atingido seria simples­mente muito mais expressivo. No curso dos evos teria havido tempo de realizar conquistas inimagi­náveis e os mais diferentes caracteres teriam sido impressos nos utensílios que ora procuramos interpretar. Nos areais de Saint-Acheul, como na por­ção de leito do Mediterrâneo aflorada nas costas da Sardenha, ao invés da mais grosseira cerâmica e dos sílex de feitura tão defeituosa e incompleta, que mal indiciam ao observador bisonho um esforço manual voluntário, encontraríamos esculturas su­periores às obras-primas de Fídias e Praxiteles, e caminhos de ferro e telégrafos nos quais os nossos engenheiros colheriam inestimáveis apontamentos; microscópios e telescópios aperfeiçoados como os não conhecemos na Europa e inúmeras provas, ou­tras, de perfeição artística e científica, que o nosso século 19 ainda não logrou testemunhar. Em vão esgotaríamos a imaginação para adivinhar a utili­dade de relíquias que tais. Talvez maquinaria de locomoção aérea ou destinada a cálculos aritméti­cos, aparelhos desproporcionados às necessidades, e quiçá à concepção dos matemáticos vivos.”

Esta explicação física da origem das espécies não arrebata o cetro das mãos do Governador do mundo. Já assinalámos acima a declaração de Dar­win a favor do sentimento religioso e parece-nos que, sobre as consequências imediatas de qualquer doutrina, devemos reportar-nos antes à opinião do mestre que à dos discípulos. Carlos Lyell emite os mesmos conceitos, citando a seguinte declaração do geólogo Asa Grei, em que este evidencia claramente que a doutrina da variação e da seleção natural não tende a destruir os alicerces da Teo­logia natural, e que a hipótese da derivação das espécies em nada contraria qualquer dos sãos prin­cípios da História Natural. “Podemos imaginar que os acontecimentos e em geral as operações da Na­tureza ocorrem simplesmente, em virtude de forças comunicadas desde o início e sem qualquer ulterior intervenção, ou podemos admitir tenha havido, de tempos em tempos, e somente de tempos em tem­pos, uma intervenção da Divindade. E podemos, enfim, supor ainda que todas as mudanças pro­duzidas resultem da ação metódica e constante, mas, infinitamente variada, da causa inteligente e criadora.

Os que pretendem, de um modo absoluto, que a origem de um indivíduo, tanto quanto a de uma espécie ou de um gênero, não se possa explicar senão por ato direto de uma causa criadora, podem, sem renunciar à teoria favorita, admitir a teoria da transmutação, que lhe não é incompatível. O conjunto e sucessão dos fenômenos naturais po­dem não ser mais do que a aplicação material de um plano preconcebido; e se essa sucessão de fa­tos pode explicar-se pela transmutação, a perpétua adaptação do mundo orgânico a condições novas deixa, mais valioso que nunca, o argumento de um plano e, conseguintemente, de um arquiteto.” Pa­rece-nos, com efeito, que o teísmo nada de maior tem a ganhar com esta hipótese, do que com qual­quer outra teoria natural.

Quanto à pecha de materialismo imputada a todas as modalidades da teoria transformista, já vimos mais acima que a teoria da gravitação e grande número de outras descobertas foram aver­badas de subversivas da Religião. Mas, onde iríamos parar se houvéssemos de ouvir os lamentos de todos os teologistas sobressaltados?

Longe de possuir tendência materialista, esta hipótese da intermissão na Terra, em épocas geo­lógicas sucessivas, primeiramente da vida, depois da sensação, do instinto e da inteligência dos ma­míferos superiores convizinhos da racionalidade e, finalmente, da razão perfectível do próprio Homem — parece-nos, ao invés, o desdobramento de um plano grandioso, apresentando-nos o quadro da pre­dominância crescente do espírito sobre a matéria.

Temos sido assaz prolixo no encarar as rela­ções do homem com os animais que o precederam, sem embargo da névoa de mistério que ainda as envolve. É que, acreditamos com Pascal, essas comparações sempre têm algum valor.

“É perigoso — dizia o autor de Pensamento — demonstrar ao homem o quanto ele se iguala aos animais, sem lhe mostrar ao mesmo tempo a sua grandeza. Perigoso, também, mostrar-lhe a sua grandeza, sem lhe fazer sentir sua baixeza. Mais perigoso, ainda, é deixá-lo na ignorância de ambas.”

Ainda que o problema da antigüidade e origem da espécie humana varie para o geólogo, para o arqueólogo e para o etnólogo, nem por isso dei­xa de averiguar-se que a Humanidade procede de época muito mais remota do que se pudera crer. Ainda que esse mesmo problema se definisse di­vergente para a Zoologia ou para a Teologia, não é menos provável, tão-pouco, que os nossos ante­passados foram inferiores a nós, e que o progresso se manifestou na Humanidade, tal como na escala de toda a Criação. Perguntamos, então, aos espí­ritos de boa fé: — em que, a crença na anciani­dade do homem, e mesmo na sua origem simiesca, colide com a crença num absoluto? Que a vida tenha surgido na Terra, que se tenha desenvolvido mediante leis orgânicas e que, do vegetal ao homem, a criação antidiluviana não tenha formado senão uma unidade, em que pode esta hipótese des­truir a ação divina? Aqui, como no que precede, a matéria não obedeceu às suas forças? E a vida dos seres não é uma força especial, regente de átomos, diretora de todos os movimentos? Parti­cularmente, na teoria da seleção natural, não é a força vital que dirige a marcha do mundo? Aqui, como por toda a parte, a matéria não é a escrava e a força a soberana?

Mesmo admitindo-se a mais alta influência dos meios na transformação dos órgãos, essa transfor­mação não será, sempre, o efeito da vida e vida regida pela inteligência e dotada de uma espécie de obediência ativa à lei intelectual do progresso?

Abordando a tese da apropriação dos órgãos às funções que lhes incumbe executar, bem como da construção homogênea de cada espécie, dos den­tes aos pés, segundo o seu papel no cenário do mundo, entramos nos domínios da destinação dos seres e das coisas. Nosso 4º livro objetivará este vasto problema.

Assim, em resumo, vimos de demonstrar que, seja do ponto de vista da circulação na matéria dos seres vivos, seja no da origem e da perpetuidade da vida, esta se constitui de uma Força única e central para cada ser, que dispõe a matéria orga­nizável segundo um plano, do qual o indivíduo deve ser a expressão física. Nesta segunda, como na primeira parte, temos refutado todos os pontos dos nossos adversários. Eles não mais sustentam a sua hipótese materialista e, com os seus exageros mais temerários, antes auxiliam a nossa tese, pois conceituando a matéria capaz de tudo fazer, mal se precatam que apenas substituem a idéia da força. Esperamos que esses inconseqüentes negadores fi­quem agora mais satisfeitos com este capítulo. E antes de passar ao seguinte, pedimos-lhes notar, para edificação de sua vaidadezinha, que os Gregos e o próprio Arístoto lhes marchara à frente. visto que para eles as radicais força e vida eram sinônimos. O filósofo de Stagira já houvera sus-tentado que — «a alma é a causa eficiente e o princípio organizador do corpo vivo”.

Não vale a pena fazer tão grande alarde de ciência, para ficar abaixo dos Gregos.

TERCEIRA PARTE

A Alma

1

O CÉREBRO

SUMÁRIO — Erro dos psicólogos e metafísicos que des­denham os trabalhos da Fisiologia. — Fisiologia anátomo-cerebral. — Relações do cérebro com o pensa­mento. — Tais relações não provam seja o pensamento um atributo da substância cerebral. — Discussão e provas contrárias. — O Espírito governa o corpo. — Errônea a comparação do pensamento a uma secreção ou combinação química. — Algumas definições ingênuas dos materialistas. — Absurdidade de sua hipótese e respectivas conseqüências.

Há muito tempo que o geólogo Agassiz emitiu este conceito, freqüentemente justificado: Todas as vezes que um fato novo se revela no campo da Ciência, logo o averbam de apócrifo; depois, que é contrário à Religião; e, por fim, que há muito era sabido.

Efetivamente, a verdade tem duas espécies de adversários: os cépticos do materialismo, e os cép­ticos do dogma.

Se, com razão, nos admiramos de ver os fisio­logistas, adoradores da matéria, ousadamente pro­clamarem com entonos de autoridade e certeza que o homem, bem como o parque integral da vida pla­netária, não passam de produtos da matéria cega, com mais razão devemos estranhar ainda exista, em nossos tempos, espíritos cultos, e mesmo céle­bres, que se deixem ficar completamente fora do movimento das ciências físico-químicas, a ponto de fazerem as objeções mais banais ao que essas ciências. apresentam ao idealismo, sem se precatarem das modificações necessárias e derivadas desse mo­vimento em todas as concepções do humano pen­samento.

Assim, temos ainda hoje sábios, filósofos, teó­logos, metafísicos e pensadores, cujos nomes pode­ríamos aqui alinhar se houvesse oportunidade, que nos falam de Deus, da Providência, da prece, da alma, da vida futura e presente, das relações da Divindade com o mundo, das causas finais, da mar­cha dos acontecimentos, da independência do espíri­to, das fórmulas de culto, das entidades espirituais, etc., no mesmo sentido e nos mesmos termos da escolástica do século 16. Os palradores anquilo­sados desta espécie, são ainda mais curiosos e inex­plicáveis do que os precedentes. Em os ouvindo afirmar, em tom magistral, as proposições mais contestáveis; em lhes observando a ignorância das rudes dificuldades que espíritos mais clarividentes tão penosamente venceram; em defrontá-los na sua verve inesgotável e na calma ingênua com que asseguram a inexpugnabilidade das suas pretensas verdades; — dir-se-ia estarem eles verdadeiramente adormecidos nesse ano memorável em que Copér­nico, já moribundo, recebia o primeiro exemplar do seu De Revolutionibus — para só acordarem hoje, na inconsciência das revoluções operadas. Sendo numerosos, ai de nós! esses espíritos, e porque ain­da lhes gravite em torno um número considerável de partidários, é bom dar a todos uma idéia dos fatos que lhes deveriam interessar, mostrando-lhes não ser a eles que incumbe guardar o depósito crescente do tesouro humano, uma vez que persis­tem adormecidos no seu triste letargo.

Todos os que descrevem, minudentes, a natureza e as funções da alma; que explicam perfei­tamente em que momento e por qual meio ela se incorpora no ventre materno e a porta por onde se escapa com o derradeiro suspiro; que contam como comparece ela perante Deus e recebe, no ou­tro mundo, o prêmio ou castigo temporário ou eter­no de seus atos neste mundo; que evidenciam o processo de comunicação com o Criador; que a estimam completamente independente do organismo e regendo a matéria mediante idéias inatas, que traz consigo ao encarnar, e que pode dominar essa matéria como coisa estranha, perseguindo o corpo com o recusar-lhe em jejuns, macerações e absti­nências, a satisfação das próprias necessidades; que expõem minuciosamente a história da alma, puro espírito baixado à Terra como a um vale de provações; — numa palavra, enfim, todos quan­tos, em qualquer religião, em qualquer escola, em qualquer país gastam a sua eloquência e o seu tempo a propor soluções que nada resolvem e símbolos que nada significam (44); — esses, repito, devem ser convidados a meditar as observações de ano em ano carreadas pelo progresso das ciências positivas. E, como essas observações constituem precisamente a base das conclusões materialistas, temos o duplo dever de as expor preliminarmente, a fim de julgar depois se as conclusões foram legitimamente concluídas.

Em regra, os homens que encaram com des­dém e displicência quaisquer questões, são os que pretendem opinar com maior segurança, e isto sim­plesmente porque, não as tendo profundado, são

(44) Preciso confessar, dizia Voltaire com muita franqueza (Dic. Philosophique art. Am), que, quando examinei o InfalÍvel Arístoto, o doutor evangélico, o divino Platão, conclui não passarem tais epítetos de meros apelidos. Não vi em todos esses filósofos que trataram da alma, mais que cegos cheios de temeridade, e hábeis no esforço de persuadir que tinham vistas aquilinas. E outros curiosos e loucos, que acreditam de oitiva, e também pensam que vêem alguma coisa.

incapazes de avaliar as dificuldades que elas apre­sentam aos pesquisadores. Ainda; hoje, temos me­tafísicos que cerram os olhos para melhor se verem a si mesmos, e sem noção alguma de método ex­perimental. Esses, pois, que vêm repetindo há 50 anos, sem se precatarem das dificuldades da proposição, que a alma é um ser encarnado no corpo e independente desse corpo, terão muito o que me­ditar na sequência dos fatos que vamos desen­volver.

Seja qual for a opinião a respeito da natureza do espírito, não há duvidar de que o cérebro não seja o órgão das faculdades intelectuais. Exami­nemos-lhe a estrutura. Esta, diz Carl Vogt (45), é extremamente complicada. Não há no corpo hu­mano nenhum órgão que, com um número propor­cionalmente tão diminuto de elementos anatômicos a lhe constituírem a substância, possua tamanha quantidade de partes diferentemente conformadas e provando, à evidência, por sua forma exterior e estrutura interna, sua posição e relações mútuas, que elas presidem a funções especiais, que ainda não foi possível fixar.

Quanto às partes elementares, componentes da substância cerebral do homem e dos animais, for­mam elas dois grupos principais: — uma substân­cia cinzenta, mais ou menos escura, ou amarelada, que oferece a olho nu uma aparência bastante ho­mogênea, e uma substância branca na qual pode­mos distinguir feixes mais ou menos aparentes, projetando-se em direções determinadas. A subs­tância parda forma, certamente, o núcleo principal da atividade nervosa, e a branca, ao contrário, pa­rece ser a parte condutora.

Se cogitarmos de conceber as relações da es­trutura cerebral com o desenvolvimento intelectual, é, sobretudo, na substância parda e nos pontos em

(45) Leçous sur I’Homme, 3º.

grande parte formados por ela, que importa aten­tar de preferência.

O cérebro divide-se em dois hemisférios late­rais por um sulco profundo, que segue sua linha mediana, e na qual se intermite uma dobra da dura-máter, chamado foice do cérebro. Uma segunda prega dessa membrana, tenda do cerebelo, esten­de-se horizontalmente na região posterior do crâ­nio e separa o cerebelo dos lobos posteriores do cérebro, servindo-lhe de suporte.

O cérebro propriamente dito forma, assim, um todo completo, que, conforme o comprovam o de­senvolvimento embriológico e a anatomia compa­rada, avoluma-se e acaba comprimindo e avassa­lando as demais partes. Esse aumento de volume, nos animais, corresponde à sua elevação na escala, com acentuada tendência para o tipo do cérebro humano.

Examinando por cima, cada hemisfério parece formar uma massa distinta, apresentando à super­fície uma porção de sulcos de contorno, permeando cordões intestiniformes, ou circunvoluções. Comu­mente, os dois hemisférios são semelhantes e se dividem em três segmentos sucessivos, de diante para trás: — os lobos frontal, parietal e occipital.

Visto de lado, haveria que juntar o lobo infe­rior temporal e, além deste, um pequeno lobo ocul­to, chamado — ilha, ou lobo central.

Os anatomistas antigos pouca atenção ligaram às cicunvoluções, ainda porque, tardaram em re­conhecer que os dois hemisférios não são inteira­mente simétricos. Assim, consideravam fortuita a distribuição das ditas circunvoluções, ou, conforme diz um observador, como um punhado de intestinos lançados ao acaso, de sorte que os desenhistas costumavam fantasiá-los assim nas suas estampas anatônicas.

As observações mais aprofundadas destes úl­timos tempos ensinaram-nos, entretanto, que essa bela desordem é um efeito artístico da Natureza, e que existe um plano definido, uma certa lei que então não fora notada, de vez que as investigações se haviam limitado quase exclusivamente ao homem.

Dá-se com os naturalistas o mesmo que com os homens pouco versados em Arquitetura, os quais, no meio da profusão de elementos que sobrecar­regam um estilo, não podem decifrar o plano fundamental.

Segundo as últimas investigações, estas cir­cunvoluções cerebrais teriam capital importância e delas trataremos antes de nos ocuparmos com as relações de peso e volume.

Na opinião de Gratiolet, esta conformação ce­rebral é peculiar ao macaco e ao homem, e existe ao mesmo tempo nas túnicas cerebrais, quando sur­gem, uma ordem geral, uma disposição típica e co­mum às duas espécies.

“Essa uniformidade na disposição das pregas cerebrais, no homem e nos símios, diz este fisio­logista, merece a mais acurada atenção dos filóso­fos. Há também um tipo particular de pregas nos makis, nos ursos, felinos, caninos, etc.; enfim, para todas as famílias animais. Cada qual tem suas ca­racterísticas, sua norma, e em cada grupo podemos facilmente reunir as espécies pela só confrontação das túnicas cerebrais” (46)

Parece que o pensamento é proporcional ao número e à irregularidade das circunvoluções. O homem, o orangotango e o chimpanzé, têm círcun­voluções no lobo médio, ao passo que nas outras espécies de macacos e nos outros animais esse lobo é absolutamente liso.

A figura desses sulcos e dos que descrevem meandros irregulares nos outros lobos, é tanto mais irregular, quanto mais caracterizado o pensamento. Os animais gregários como a foca, os elefantes,. cavalos, renas, carneiros, golfinhos, apresentam um

(46) Gratiolet — Anales des Sciences Natur, 3ª série, t. 14º página 186.

desenho menos regular que o dos outros animais. Deste ponto de vista, o que sobretudo distingue o cérebro humano do simiesco, é que, entre as circunvoluções que se dirigem do lobo occipital para o temporal, duas há, no homem, que não se en­contram no macaco, sendo este um dos maiores contrastes que separam os dois cérebros (47).

Nas espécies animais e na humana, a superio­ridade da inteligência parece tanto mais elevada, quanto mais sinuosas sejam as anfratuosidades do cérebro, mais profundos os sulcos e mais numero­sas as impressões e ramificações, a assimetria e irregularidade. As estrias, muito visíveis no cére­bro do adulto, não se evidenciam no da criança. O cérebro de Beethoven apresentava anfratuosida­des duplamente mais profundas que os cérebros comuns (48).

Poderão alguns anatomistas responder que grandes animais muito broncos, tais como o asno, o carneiro, o boi, apresentam maior número de circunvoluções que animais de maior inteligência quais o cão, o castor, o gato. Mas, é preciso não esquecer os matemáticos e considerar que os volu­mes são, entre eles, como os cubos dos diâmetros; ao passo que as superfícies são como os quadra­dos entre si. O volume do corpo que aumenta, cres­ce mais rapidamente que a sua superfície. Baseemo­-nos num exemplo: uma esfera, com 2 metros de diâmetro, mede 12m, 566 de superfície e 4m,188 de volume; uma esfera de 3 metros, de diâmetro mede 28m, 275 de superfície e 14m, 113 de volume (4 terços de NR3 sobe mais rapidamente que 4 NR2).

O volume do cérebro do tigre está para o seu corpo na mesma razão que o do gato; mas a superfície

(47) Tiedemann — Das Hirn des Negers mit dem des Europaers und Ouran-Outang verglichen.

(48) Wagner Procès-verbal de dissetion.

é proporcionalmente menor e, para atingir um Igual desenvolvimento, é preciso que ela se retraia e se enrole.

Estas circunvoluções têm, sem dúvida, a sua importância, mas era natural se imaginasse que o peso comparativo do cérebro das diferentes es­pécies deve ter não menor importância, e que as suas variantes na espécie humana devem ser toma­das em consideração.

De fato, parece que os seus efeitos estejam em proporção com a massa. Assim é que, na crian­ça e no velho, ele é menor que no homem maduro. A alma da criança como que se desenvolve, à me­dida que aumenta a substância cerebral.

O peso normal de um cérebro humano é de três a três meia libras (49)

O peso do cérebro dos cretinos desce, por ve­zes, a uma libra (453 gramas).

O de Cuvier pesava mais de 4 libras.

O tamanho, a forma, o arranjo da composição do cérebro, são também invocados pelos anatomis­tas como correlatos à inteligência (50). A Anatomia

(49) Veja-se Vogt, Hoffmann, Tiedemann e Lauret. Schneider avalia-o em 3 libras; Pozzi em 3 libras e 8 onças; Sennert atribui-lhe 4; Arlet 4 e 3 onças, Haller 4, Bartholin 4 a 5, Picolhuomini mais de 5. Lelut admite 1 k, 320 gramas para os cérebros comuns, de 20 a 25 anos, e Parchappe 1 quilo e 325 gramas.

(50) Preciso é, com efeito, reunir estes diferentes ca­racteres para poder estabelecer uma relação entre o cé­rebro e o Espírito. Não bastaria, para tanto, o peso real. “Afirmou-se outrora, diz Charles Vogt, que, de todos os animais, o homem era o que tinha o cérebro mais pesado. É uma verdade, mas não absoluta, porqüanto não tardou que os colossos inteligentes do reino animal, quais o elefante e os cetáceos, demonstrassem o exíguo valor dessa proposição. Disseram então que, não sendo o peso absoluto, seria, ao menos, o relativo. Em média, o peso do corpo humano está para o do cérebro na razão de 36:1, ao passo que nos mais inteligentes ele raramente passa de 100:1. Entretanto, se os gigantes contrariam a primeira proposição, temos que os anões afirmam a segunda. A chusma de pequenas aves canoras apresenta uma relação de peso muito mais favorável do que a cifra normal humana e os pequenos macacos americanos oferecem um peso muito su­perior ao do rei da criação.” Vogt pensa, com razão, que, se o peso do cérebro pudesse ser comparado com qualquer outro fator numérico tomado do corpo humano, esse fator só poderia ser uma extensão, que, inteiramente sujeita àflutuação, seria, por isso mesmo, muito limitado. Melhor conviria, talvez, tomar o comprimento da coluna vertebral para termo de relação com o peso do cérebro. Homens que nos parecem estar no mesmo nível intelectual, podem, certamente, ter cérebros de peso desigual; homens notáveis podem apresentar pesos inferiores aos de craveira mediocre; mas isso não impede que haja uma relação aproximativa do peso com o grau da inteligência, e que a determinação dessa relação seja um fator que se deva, de qualquer forma, desprezar.

comparada mostra-nos, em toda a escala ani­mal, inclusive o homem, que a energia da inteligên­cia está em relação constante e ascendente com a constituição material e o tamanho do cérebro. Os acéfalos são os que ocupam o primeiro grau da escala. O homem, supõe-se, tem o maior cérebro real, pois, ainda que o de alguns animais, no con­junto, sejam mais volumosos, o humano é o mais considerável nas partes que dizem com as funções do pensamento. O resultado geral das operações anatômicas demonstra que a diminuição do cérebro animal aumenta à proporção que baixa a escala zoológica, e que os animais dos primeiros degraus, como sejam os anfíbios e os peixes, são os de me­nor cérebro.

Estes fatos gerais não deixam de ter exceção, como veremos daqui a pouco, mas cumpre-nos ex­pô-los conscienciosamente, antes de os discutir ou explicar.

A convicção da grande importância que tem a conformação cerebral, nos mamíferos, chegou a ensejar a proposta de uma nova classificação ba­seada nessa conformação. A nós nos parece, con­tudo, que não é tanto no peso absoluto do cérebro, como na sua relatividade com o peso do corpo, que devemos atentar.

Seja o cérebro do elefante ou do hipopótamo mais pesado que o de qualquer rapariga, não há nisso nenhum caráter distintivo, favorável aos primeiros. É mais razoável considerar as relações, sem chegar a concluir daí que o cérebro de um magro pensaria melhor que o de um gordo. Sob este aspecto, os macacos e as aves ocupam a pri­meira linha, O cérebro do asno não pesa mais que 250 partes do corpo; ao passo que o do rato dos campos corresponde a trinta e uma partes, o que levava o espirituoso Andrieu a dizer que os ratos tinham um focinho muito espiritual.

Como circunvoluções, peso absoluto, peso rela­tivo, deixassem grandes incertezas sobre as relações do cérebro com o pensamento, supuseram que a superioridade do ser estaria em relação com a quan­tidade de gordura contida no cérebro, O homem tem no cérebro mais gordura que os mamíferos, e estes mais que as aves.

A massa cerebral do bovino não atinge a 1 sexto da do homem (51).

O que caracteriza o cérebro do feto, durante a gestação, é o fato de não conter quase gordura, sobretudo fosforada. Nos recém-nascidos a gordu­ra ja se encontra assaz aumentada, e, daí por dian­te, avulta rapidamente com a idade. A distinção racial não se nota no cérebro da criança, branca ou preta. São crânios que apresentam as maiores semelhanças.

Balzac (Investigação do Absoluto) já tivera a idéia de considerar o fósforo como o elemento mais importante do intelecto. Fuerbach, amplian­do a importância deste corpo e referindo-se a um trabalho de Couerbe, que lhe atribuía grande in­fluência no sistema nervoso, o deu como origem do espírito. Huart imagina que essa substância in­cendeja-se e alumia, com o fogo do cérebro, como

(51) Von Bibra Vergleichend Untersuchungen über das Gehirn des Menschen und der Werbetihiere, 129.

se dá com um lampião. Mais de espaço, veremos a que extremos de exagero chegou Moleschott. Quan­to à atualidade, terminemos a observação especial do cérebro com algumas comparações particulares, dignas de interesse para nossa raça.

Em muitas espécies, os crânios masculinos se diferençam tanto que poderiam induzir-nos a clas­sificá-los como de espécies diferentes. Na espécie humana, a diferença é igualmente notória. Assim é que o crânio feminino é menor, tanto na cir­cunferência horizontal como na capacidade interna. O cérebro de menor peso, da mulher, aproxima-se da criança. O outro fato notável é que a dispa­ridade reinante entre os dois sexos, relativamente à capacidade craniana, aumenta com o aperfeiçoa­mento da raça, de sorte que o europeu se distancia da européia, mais que o negro da sua companheira. Carl Vogt comenta essas experiências de Welcker e adverte que é mais fácil mudar uma forma de governo do que a panela tradicional.

O cérebro da mulher pesa, em média, duas on­ças menos que o do homem (52). Arístoto há muito o previra e a Ciência experimental verificou que o belo sexo tem um cérebro mais leve do que o nosso! Talvez convenha acrescentar que as medidas não foram tomadas pelas mulheres (53).

Acrescentaremos, também, que a estatúra e o peso médio da mulher, sendo inferiores aos do ho­mem, conviria levar em conta essa diferença, van­tajosa para ela, mulher. Mas, nada obstante, as senhoras se nos avantajam tanto, pelos dotes de coração, que lhes não custará ceder-nos a fria su­perioridade do entendimento.

Outra distinção se patenteia, igualmente, no ta­manho do lobo frontal: a circunferência do crânio

(52) Uma onça equivale a 28 gramas e 35 centigramas.
(53) O doutor Boyd depois de haver pesado 2086 cérebros de homens e 1061 de mulheres, dá
1285 a 1363 gramas para os primeiros e 1127 a 1238 para os segundos.

é, em média, de 546 milímetros para as inteligências vulgares, de 544 para os imbecis, em geral, e de 541 para os do primeiro grau. Estas medidas estão, porém, longe de significar alguma coisa. Uma ca­racterística anatômica mais geral consiste em que o cérebro recobre o cerebelo tanto mais completa­mente, quanto mais elevado seja o animal na es­cala zoológica. Já nos macacos se encontra um bordo estreito que ultrapassa, atrás e em baixo, os hemisférios cerebrais. Nos outros animais ele es­tende-se ainda, mais a mais. A mesma observação pode fazer-se do ponto de vista embriológico. No feto o cerebelo não é recoberto pelo cérebro, senão depois do sétimo mês (54).

Longe estamos de negar a existência de uma relação constante, que parece ligar a inteligência à estrutura do cérebro. As cabeças de Vesale, Sha­kespeare, Hegel, Gøthe, são exemplos de superio­ridade manifestada pelo desenvolvimento do lobo frontal. Queremos mesmo crer que algumas exceções sejam devidas ao fato de, nem sempre, o de­senvolvimento aparente do cérebro corresponder ao seu peso, e que, em dados casos de idiotia, a água substitui a substância cerebral. Em geral, não épor uma característica particular que se manifesta a superioridade intelectual, e sim pelo conjunto de todas as suas partes. Enfim, podemos admitir, com alguns anatomistas, que o peso do cérebro aumen­ta até os vinte e cinco anos e se mantém imutável até aos cinquenta, para de novo decrescer consideravelmente na senectude.

O cérebro é insensível, absolutamente, e só os pedúnculos cerebrais e as camadas óticas parece não o serem. Nos profundos ferimentos da cabeça, que apenas interessam este árgão, poderemos to­car-lhe

(54) Tiedemann — Anatomie und Bildungsgeschichte des Gehirns im Foetug des Menschen, etc., página 142. — Pour la mesure du crâne, V. Lelut — Physiologie de la pensée, t. 2º, página 315.

a superfície e mesmo extrair pedaços, sem que o paciente experimente qualquer dor. Em com­pensação, as experiências feitas neste sentido com as aves, demonstraram que o cérebro é, evidente­mente, a sede única da inteligência. Pássaros e pombos, alimentados artificialmente, puderam so­breviver um ano à respectiva ablação do cérebro. O resultado é que o animal, assim privado do cé­rebro, permanece mergulhado em sono profundo, nada vê, nada ouve, tendo embora olhos e ouvidos.

Os movimentos conservam-se e combinam-se, ainda, dentro de certos limites; o animal sente a dor e faz movimentos por evitá-la, mas torna-se estúpido e como num estado de sonho, que exclui a consciência; é um autômato que poderá viver desde que o alimentem por processos mecânicos quaisquer, mas que morrerá de fome com a boca no alimento, visto lhe ser interdito combinar a ima­gem do alimento e a necessidade de o tomar, com os movimentos necessários a esse fim. Em se ex­traindo, camada a camada, os dois hemisférios ce­rebrais, ver-se-á que a atividade intelectual diminui na razão do volume da massa retirada. Atingindo os ventrílocos, dá-se a perda do conhecimento. A significação e formação dos tecidos são ainda pos­síveis, mas o animal fica inteiramente inacessível às impressões do mundo exterior. A consciência desapareceu sem deixar traço. Vemos, assim, que, com a retirada sucessiva, e por camadas, das par­tes superiores do cérebro, as faculdades diminuí­ram pouco a pouco. Galinhas assim operadas con­tinuaram com vida vegetativa. A diminuição pro­gressiva da inteligência integral e proporcionada às ablações, antes que de uma que outra faculdade, faz prova negativa da teoria das localizações; mas, perguntamos: — poder-se-á aplicar ao homem o fato observado com o intelecto de uma galinha? Eis o que nos parece duvidoso. Diante destas ex­periências de Flourens, de Valentim e fisiologistas outros, Büchner exclama: “Poder-se-á exigir prova mais brilhante para demonstrar a conexidade abso­luta da alma e do cérebro, do que a fornecida pelo escalpelo demonstrando a alma peça por peça?”

Uma alteração no cérebro acarreta uma alteração correspondente no pensamento. As enfermidades mentais assinalam-se por umas tantas lesões. Em trezentos e dezoito dissecções de alienados, ape­nas trinta e duas deixaram de patentear alterações patológicas do cérebro e das membranas, e cinco somente não apresentavam anomalia qualquer. (Ro­main Fischer.)

Lesões cerebrais há que produzem, por vezes, efeitos espirituais surpreendentes. Assim, contam os anais da Fisiologia que no hospital de São Tomás, Londres, um homem gravemente ferido na cabeça entrou a falar, depois de curado, um idioma abso­lutamente esquecido durante a sua permanência de trinta anos naquela cidade. Uma degenerescência de ambos os hemisférios produz sonolência, debilidade mental e mesmo idiotia completa. A supe­rabundância de líquido raquidiano origina a debi­lidade mental e o estupor. A ruptura de um vaso sanguíneo do cérebro causa o estado patológico chamado apoplexia. Toda gente sabe que a perda da consciência é uma consequência dessa alteração mórbida. A inflamação do cérebro causada pela replecção dos vasos sanguíneos e uma excessiva exsudação plástica, desfecham a febre cerebral e o delírio. Quando os batimentos do coração fra­quejam, a ponto de ocasionar uma síncope, o san­gue aflui escassamente ao cérebro. Também a per­da dos sentidos acompanha uma síncope. O cérebro dos decapitados morre célere, em consequência da perda de sangue. Sendo o oxigênio condição indis­pensável ao renovamento do sangue, em lhe fal­tando este, o encéfalo é o primeiro a se ressentir e sobrevêm, então, as cefalalgias, as vertigens, as alucinações.

O chá influi no discernimento, o café estimula a potência artística do cérebro, e o álcool acarreta a embriaguez com as suas consequências (55).

Todas as impressões recebidas pelos ouvidos e pelos olhos são influências materiais, transmiti­das ao cérebro pelo sistema nervoso, provocando modificações materiais correspondentes.

Uma pessoa que nos infunde simpatia, muda-nos o curso das idéias. Quando um pobre habi­tante dos vales paludosos escala os Alpes, fica deslumbrado com as suas novas impressões. A música convida ao sonho; a baunilha, os ovos, o vinho quente, exaltam os desejos; um céu luminoso nos alegra, um céu sombrio nos entristece. Desde o momento em que somos engendrados, entramos num oceano de matéria em circulação. O que somos, devemo-lo em parte aos nossos avós, à nossa ali­mentação, ao nosso país, à nossa educação, ao ar, ao tempo, ao som, à luz, ao nosso regime, às nos­sas vestes (56).

Tais os fatos positivos, constatados pelas ciên­cias fisiológicas e invocados pela escola materia­lista, ao declarar que as faculdades intelectuais são produto da substância cerebral.

Fizemos este esboço não só no intuito de le­vantar o combatido adversário, como para fornecer cabedal de reflexão a muitos espiritualistas ingê­nuos, que acreditam resolvidos todos os problemas.

No capítulo seguinte, infligiremos os senhores materialistas, desafiando-os a responderem a três questões solidárias que arrasam de alto a baixo o seu palanque. Mas, enquanto o não fazemos, inte­ressa-nos inquietá-los a pretexto da solidez de suas pretensiosas explicações.

Notemos, antes do mais, que nenhuma lei ex­clusivh existe, acerca da correspondência do cére­bro com o pensamento. Não está rigorosamente demonstrado: 1º — que o peso do cérebro aumen­ta

(55) Moleschott, 2º, 151.

(56) Ob. cit. página 194.

até à madureza e decai depois (Sommering lhe fixa o desenvolvimento máximo aos 3 anos, Wen­zel aos 7, Tledemann aos 8, Gratiolet na velhice, etc.); 2º — que a Inteligência esteja em relativi­dade com o peso (os crânios de Napoleão, Voltaire, Rafael, não ultrapassaram a média); 3º — que uma fronte larga seja índice de genialidade (Lelut demonstrou que os idiotas apresentam ordinariamente uma fronte desenvolvida, e que é impossível determinar relações exatas entre a inteligência e as dimensões cranianas); 4º — que a loucura pro­venha sempre de uma lesão cerebral, antes pare­cendo uma afecção psíquica. (Esquirol, Lelut, Leuret, Georget, Ferrus, constataram que a loucura não é seguida de lesões senão quando coincide com enfermidades orgânicas.)

Nossos adversários têm consciência das difi­culdades que a questão apresenta e procuraram, alhures, a causa material da inteligência, como, por exemplo, no fósforo, a que já aludimos. Acredita­ram ter achado 4% de fósforo no cérebro dos alienados, 23% no cérebro normal e 1% no dos imbecis. Haverá, porém, necessidade de frisar que não há lei absoluta, que todas estas explica­ções não satisfazem e que, em suma, não existem essas diferenças?

Vejamos agora se os fatos acima expostos pro­vam, tão clara e peremptoriamente quanto o supõem, que o pensamento não passa de função fisio­lógica, e que a alma é atributo da matéria.

O nó do problema está em decidir se o cérebro é um órgão ao serviço da inteligência, ou se esta é uma criação do cérebro, filha e escrava da subs­tância cerebral.

É sempre, sob outro aspecto, a mesma questão de força e matéria. Domina a força? Obedece-lhe a matéria? Ou é o contrário que se dá?

Esses senhores declararam, sem forma outra de processo, que, evidentemente, a força é um atri­buto da deusa Matéria e a alma não passa de ilusão de si mesma, a crer na sua personalidade, quan­do mais não é que o resultado passageiro de um movimento do fósforo, ou da albumina, nos lobos cerebrais.

Se esta grosseira explicação está tão bem de­monstrada e é tão evidente que os nossos adver­sários, confessamos que, ao nosso ver, ela é obscura e nos parece incapaz de algo provar, na atualidade, a esse respeito. Não sõmente a fisiologia cerebral ainda está na sua infância, como, no parecer mes­mo dos fisiologistas mais eminentes, as relaçõeS do cérebro com o pensamento permanecem profun­damente desconhecidas.

Sem dúvida, o estado da alma prende-se ao es­tado do cérebro; certo, o enfraquecimento deste acarreta o desfalecimento daquela; as crianças e os velhos (posto que com exceções numerosas) ra­ciocinam com menos clareza e rigor que os homens maduros; e concebe-se que uma lesão cerebral pro­duza a perda de faculdades correspondentes; mas, que prova tudo isso, uma vez que o cérebro é, neste plano, o instrumento necessário, sine qua non, da manifestação da alma? — Se, em vez de ser a causa, ele é apenas a condição?

Se o melhor músico do mundo só dispusesse de um piano com falta de algumas teclas, ou de instrumento outro de construção defeituosa, seria lícito negar talento musical a esse músico só por lhe falhar o instrumento, sobretudo quando, ao seu lado, outros artistas, por disporem de instrumentos à altura de seus talentos, se fazem admirar por quem os ouve?

Por mais que Broussais moteja do pequenino músico, oculto no fundo do cérebro, não conseguirá desatar o nó da questão.

Abstenhamo-nos de círculos viciosos. Este, na verdade, o primeiro ponto a examinar:

É ou não a alma uma força pessoal animando o sistema nervoso?’

Uma primeira resposta é dada por este fato acima relatado, de oferecerem os hemisférios ce­rebrais tanto mais sinuosidades, meandros e circunvoluções irregulares, quanto mais pensante é o portador desse cérebro.

Não se dirá então, que, precisamente por ser independente e ativo, o pensamento trabalhou mais fortemente esse cérebro?

Que, por se haver ele retraído muitas vezes sobre si mesmo, por ter tremido de angustiosas ânsias, em constrições de medo e em êxtases de amor; por haver procurado, meditado, escavado os problemas; por se haver ora revoltado, ora submetido; por ter, numa palavra, desempenhado ru­des labores, é que a substância, veículo de comunicação com o exterior, guardou os traços desses movimentos e vigílias? Esta é a nossa opinião e pensamos que seria difícil demonstrar-nos o con­trário.

Alberto, um anatomista de Bonn, dissecou cé­rebros de pessoas que se haviam entregado a tra­balhos intelectuais durante alguns anos, e achou em todos uma substância muito consistente e a massa parda, bem como os sulcos, assaz desenvol­vidos. Se, por outro lado, observamos com Spur­zein, Gall e Laváter, que a cultura das faculdades superiores do espírito se nos imprime no crânio e no semblante; se visitarmos o Museu de Antro­pologia ‘de Paris e notarmos, através da coleção de crânios do abade Frêre, que os progressos da Civilização redundaram na elevação da parte ante­rior e na depressão da occipital, poderemos tirar destes fatos uma conclusão diametralmente oposta à dos adversários, para afirmar que o pensamento rege a substância cerebral.

Não temos aí, claro como o dia, o trabalho do espírito sobre a matéria? E as conclusões não derivam de si mesmas para abrir passagem triun­fal à nossa doutrina?

A propósito de conclusões, não podemos exi­mir-nos de admirar a facilidade com que se pode tirar dos mesmos fatos cónclusões inteiramente con­trárias: tudo depende da disposição de espírito e haveria que desesperar dos progressos da teoria, se a maioria dos homens tivesse o caráter mal formado. Verificariam, por exemplo, em experiên­cias com alienados, que alguns haviam recuperado a consciência e a razão pouco antes de morrer. Concluíram os espiritualistas que as almas desses infelizes voltavam, após longo isolamento, ao conhecimento de si mesmas e ao predomínio do cor­po, sendo-lhes permitido, nesse transe supremo, abrirem os olhos da consciência ao passarem desta para a outra vida. Os materialistas, ao invés, apro­veitaram o fato, alegando que a aproximação da morte liberta o cérebro das in­fluências tórpidas e mórbidas do corpo (57).

Mais do que se imagina, a própria Anatomia fisiológica se embaraça, no concernente à loucura em relação com o estado do cérebro. Enquanto num, como os citados, muito vêem; outros, não menos hábeis, nada encontram. Assim, o alienista Leuret declara que nenhuma alteração cerebral se encon­tra, senão nos casos em que a demência é precedida de qualquer outra enfermidade, e que essas alte­rações são tão variáveis e diferentes que não au­torizam apresentadas, afirmativamente, como ver­dadeiras causas. Assim também, a propósito das anfratuosidades há pouco referidas, poder-se-ia não ver mais que efeitos.

Quando nossos adversários acrescentam que os casos de demência protestam contra a existência da alma, não estão melhor aparelhados para defen­der o seu sistema. Duas hipóteses se apresentam para explicar a loucura. Ou há, ou não há uma lesão no cérebro. No primeiro caso, a falha do instrumento não demonstra a inexistência do artis­ta; e, no segundo, o problema fica pertencendo àordem mental.

(57) Büchner — Ob. cit., página 126.

Melhor ainda: o primeiro caso pode enquadrar-se no segundo, se admitirmos, qual sugere a expe­riência, que a loucura — seja a causada por uma dor súbita, por um grande susto ou por desespe­ração profunda — tem, em todos estes casos, sua fonte no ser mental, que reage contra o estado normal do cérebro e lhe acarreta qualquer altera­ção. Ainda aqui, é evidente, que quem sofre é o ser pensante, a determinar no organismo um dis­túrbio correspondente ao sofrimento.

E de fato, tem-se verificado que as alterações só se encontram nas loucuras antigas, com se o espírito aí fora o que é por toda a parte — o movi­mentador da substância.

Por outro lado, enquanto os adversários dedu­zem da descrição anatômica do cérebro que a fa­culdade de pensar não é mais que propriedade de movimentos do conjunto, nós vemos, na multipli­cidade mesma desses movimentos, uma submissão do cérebro à grande lei da divisão do trabalho, por dar a cada órgão a sua função, de acordo com a respectiva situação, estrutura, composição, forma, peso, tamanho. Vemos, nessa variedade de efeitos, um argumento a prol da independência da alma, de vez que a hipótese desses fisiologistas não pode, de maneira alguma, conciliar uma tal complexidade dinâmica do cérebro com a simplicidade necessária e reconhecida, do ser intelectual. Falaremos, daqui a pouco, especialmente da simplicidade do ser pen­sante, pois que nos resta algo dizer ainda, sobre as relações de cérebro e alma.

As comparações de crânios encontrados em an­tigos cemitérios de Paris, desde quando o prefeito de Napoleão 3º promoveu a remodelação da cida­de, e, em particular, a diferença entre crânios das valas comuns e dos túmulos particulares, estabe­leceram novamente que os. indivíduos votados às ciências e artes possuem uma capacidade cerebral maior que a dos simples operários. As mesmas escavações revelaram que a capacidade craniana dos parisienses aumentara, de Filipe-Augusto para cá. A capacidade craniana do negro livre é maior que a do escravo. Eis um fato significativo que poderia (em dada circunstância) ser invocado a favor da liberdade.

Tendo provas de que as impressões exteriores influem no pensamento, temo-las por igual de que o pensamento domina os próprios sentidos. Quan­tas criaturas não vemos por aí, cujo cérebro e cujo corpo padecem enfermidade lenta e rebelde, arros­tando uma existência de misérias e dores e conser­vando, sem embargo, fortaleza de ânimo, e guar­dando a flor da virtude, sobranceiras à torrente de lodo que as arrasta, e vencendo pela grandeza do caráter os elos da adversidade?

Negaríeis, também, que haja dores morais que residem, lacerantes, nas profundezas insondáveis da alma? — dores íntimas, não causadas por acidentes físicos, nem por enfermidade exterior, nem por al­teração do cérebro, mas, tão só, por uma causa incorpórea, qual a perda de um pai, a morte de um filho, a infidelidade de um ente amado, a in­gratidão de um protegido, a traição de um amigo; ou ainda pelo quadro de um infortúnio, pela der­rota de uma causa justa, pelo contágio de idéias malsãs; por multidão de causas, enfim, que nada têm de comum com o mundo da matéria e não se medem geométrica e quimicamente, mas constituem o domínio do mundo intelectual?

Não vemos assim, mesmo sob o seu aspecto físico, a influência do espírito sobre o corpo? As paixões refletem-se no semblante. Se empalidece­mos de medo, é que este sentimento, manifestan­do-se por um movimento do cérebro, retrai os va­sos capilares da face. Se a cólera ou a vergonha purpureiam-nos o rosto, é que os movimentos en­gendrados dilatam os ditos vasos, conforme o in­divíduo. Mas aqui, é ainda o espírito que desem­penha o principal papel.

Se alguma vez corastes à impressão subitânea de um olhar feminino (não há desdouro em confes­sá-lo), não sentistes que a indiscreta impressão se transmitia ao cérebro por intermédio dos olhos e daí descia ao coração para remontar ao rosto?

Procurai analisar essa sucessão, e mesmo que não coreis tomado de qualquer súbito temor, apli­cai a mesma análise e concluireis que, sem o que­rerdes, as impressões vos passam céleres pela men­te, antes que se traduzam exteriormente.

O mesmo se verifica com os sentimentos; éno peito e não na cabeça que uma inexprimível sensação de plenitude ou de vácuo se manifesta, quando, em certas horas de melancolia, o pensa­mento se nos desprende e voa para o ser amado.

Mas, como essa sensação não se produz senão depois de pensarmos, é evidente que, ainda aqui, o espírito representa o papel primacial. Sob outros aspectos, um súbito terror se comunica ao coração e acelera ou retarda o pulso, podendo mesmo pa­ralisá-lo numa síncope. A tristeza e a alegria pro­duzem lágrimas. O trabalho mental fatiga o cére­bro, o sangue se empobrece, a fome se faz sentir. Todas estas, e grande número de observações ou­tras, induzem-nos a crer que o pensamento, ser imaterial, tem sede no cérebro, o qual lhe serve tanto para receber os despachos do mundo exterior como para levar-lhe suas ordens.

E de resto, nós já sabemos que o cérebro e a medula mais não são que poderosos feixes de fibras nervosas, nervos que partem desse veio, irra­diando em todos os sentidos para a superfície do corpo, e nos quais existe uma corrente análoga à corrente elétrica. Os nervos são fios telegráficos que transmitem à consciência as impressões do in­terior, enquanto os músculos executam as ordens do cérebro. Ora, Dubois-Reymond mostrou que toda atividade nervosa manifestada nos músculos, a título de movimento, e no cérebro a titulo de sen­sação, é seguida de uma alteração da corrente neu­ro-elétrica. Mas dizer, com o mesmo Dubois, que a consciência não passa de produto da transmis­são desses movimentos, é cometer uma ingenuidade, como se pretendêssemos que a correspondência te­legráfica diàriamente trocada entre os gabinetes de Londres e Paris tivessem por causa a passagem de uma nuvem tempestuosa, ou de uma bobina de indução para o manipulador, e que o receptor de si mesmo recambiasse a resposta dos despachos in­teligentes (58).

Proclamar que não há no homem mais que um produto da matéria, assimilá-lo a um composto químico e deduzir que o pensamento é uma pro­dução química de certas combinações materiais, éum erro monstruoso.

Todos sabemos que o pensamento não é ingre­diente de oficina.

Espírito e matéria são entidades tão estranhas uma à outra, que, todas as línguas, de todos os tempos, sempre as conceituaram diametralmente opostas.

As leis e forças espirituais existem indepen­dentemente das corporais. A força de vontade é bem distinta da força muscular. A ambição difere da fome, o desejo distingue-se da sede. Onde en­contrareis as leis morais que regem a consciência? Que o crânio caucásico seja oval, o mongol redondo e o negro alongado, em que é que o sentir humano se associa às fibras granulares ou cilíndricas? Que têm de comum as noções de justo e injusto com o ácido carbônico? Em que um triângulo, um círcu­lo,

(58) Em que pesem algumas experiências interessan­tes, a eletricidade animal não é um fato averiguado. Nada prova que os efeitos observados não tenham por causa um outro agente. Os eletróforos ainda não puderam constatar na tremelga, na enguia, etc., nenhum vestígio de tensão. de polaridade de atração. Humphry-Davy não pôde reconhecer nenhum desvio da agulha imantada, nem a menor decomposição da água pelas tremelgas, ou peixes outros. Não há, portanto, que precipitar conclusões e apregoar com tanta ênfase a identidade da eletricidade com a vida e, sobretudo, com o pensamento.

um quadrado, podem afetar a bondade, a ge­nerosidade, a coragem? Seria justo dizer que Cron­well tinha 2,231, Byron 2,238 e Cuvier 1,829 gramas de inteligência, por serem tais os pesos de seu cé­rebro? Na verdade, quando se procura sondar o assunto a fundo, fica-se admirado de ver que ho­mens de pensamento tenham chegado a confundir num só objeto o mundo espiritual e o material.

Também perguntamos se esses experimenta­listas (59) aprofundaram bem o sentido de suas palavras ao anunciarem proposições tais como as basilares de suas doutrinas:

— Todas as faculdades que denominamos atri­butos da alma não passam de funções da substância cerebral. Os pensamentos estão para o cérebro, mais ou menos como a bílis para o fígado e a urina para os rins (60).

— A secreção do fígado, dos rins — diz outro escritor que não ousa atingir inteiramente a mes­ma comparação — verifica-se à nossa revelia e produz uma matéria palpável, ao passo que a ati­vidade cerebral não se pode verificar sem a cons­ciência integral e esta não segrega substância, mas forças (61).

Que vem a ser segregar forças? Ficaríamos gratos a quem nô-lo explicasse. Porque não segregar horas ou quilômetros? Mas, ouçamos ainda:

— O que denominamos quantidade consciencial, é determinado pelos elementos constitutivos do san­gue. Uma prova de que a produção de forças men­tais

(59) Lendo as Leçons sur i’Homme de Karl Vogt, não duvidamos, mercê dos eloqüentes exemplos evidenciados, que essas lições eram professadas contra o Espírito. Mas, apesar disso, em muitos pontos dignos de atendo, elas demonstraram que a ação espiritual por sua atividade, progresso, atuação permanente, influi de modo considerável no volume, forma e peso do cérebro.

(60) Karl Vogt — Physiolosgische Briefe für Gebiidete aller Ständ, 206.

(61) Büchner — Kraft un Stoff.

depende diretamente de permutas químicas, está em que os produtos usados pelo sangue, e filtrados nos rins, variam segundo a natureza do trabalho cerebral ((62).

— O pensamento é um dinamismo da matéria. Movimentos materiais, ligados nos nervos a cor­rentes elétricas, são percebidos no cérebro como sensação e esta sensação é o conhecimento de si mesmo, é a consciência. A vontade é a expressão necessária de um estado do cérebro, produzida por influências exteriores. Não há livre arbítrio. (Mo­Zeschott — “Kreislaf des Lebens”, 2º, 156, 181.)

— A mesma relação existe (segundo Huschke) entre o pensamento e as vibrações elétricas dos fila­mentos do cérebro, qual a da cor com az vibrações do éter.

— O pensamento é uma secreção do cérebro, já o dissera Cabanis há mais de meio século.

— Todos os atos humanos são frutos fatais da substância cerebral, afirmava Taine ainda há pouco; vício e virtude valem por vitríolo e açúcar.

A estas, juntaremos uma última proposição, que parece formulada para explicar todas as ou­tras: é a de Nicole, quando assevera justamente que as maiores tolices encontram sempre inteligências a elas proporcionadas.

Kant tivera a lembrança de substituir a rea­lidade do mundo exterior pelas idéias puramente subjetivas do espírito, e em compensação o autor de Koerper und Ceiat, Sr. H. Scheffler, ensaia ex­plicar a gênese do espírito pela matéria. Não ‘lhe citaremos o processo, um tanto trabalhado, mas o testemunho crítico que lhe concedeu o defensor atual do animismo, Sr. Tissot. “Nesta hipótese — di-lo este — é uma força da matéria, não uma simples força, mas uma resultante das forças sim­ples da matéria, reunidas para (quanto mistério nestas duas palavras!) formar o organismo huma­no.

(62) Spencer — First Principles, 282.

O espírito não atinge o estado fenomenal senão quando a matéria se tem organizado em corpo hu­mano (que abismo tão grande, que não se pode sequer entrever!), mas a tendência para esta organização ou para a produção espiritual, não existe na matéria.”

A necessidade de admitir a ação da força res­salta, em que lhes pese, de todas as suas definições. E que definições!

Julguem-nas pela precedente. Mais, eis um traço de luz que pode juntar-se ao fogo de artifício:

— “O pensamento, diz Büchner, espírito e alma, nada tem de material, não é matéria (bravo), mas (ouvide isto) é um complexo de forças heterogê­neas, formando uma unidade; é o efeito da ação concomitante de muitas substâncias materiais, do­tadas de forças ou propriedades.” Segundo a judiciosa conclusão do Dr. Hoefer, aí temos uma explicação digna de empa­relhar com a resposta de Sganarelle: Ossabundus, nequeis, nequer, potarium, quipsa milus, eis o que faz seja muda a vossa filha.”

Sábios! Já Epícuro tinha dito que a natureza de uma pedra é cair, porque ela cai... mas isto não é mais ciência, é comédia. As galimatias que nos impingem como definição dalma são uma pi­lhéria detestável. Adiante. Cada qual com o seu paladar.

Comparável a estas definições, só mesmo a pro­posição de Hégel sobre a identidade de corpo e espírito. Ei-la: “A matéria não é senão espírito; e o espírito não é senão matéria. Logo, são um e outra a mesma coisa!”

Este alto raciocínio, que o seu autor qualifica de irrefutável, lá está na sua Grande Lógica. Fa­mosa lógica, a demonstrar que o puro materialismo está real e efetivamente puro de todo o espírito!

Como vêdes, caro leitor, não faltam definições. Sõmente estamos ainda a perguntar que é o que elas definem.

Mas valem, ainda assim, para nos provar que toda essa gente sabe tanto quanto nós da natureza da alma.

Assim, neste capítulo, acabámos de ver que, se de um lado a constituição física do cérebro está de harmonia com a alma e maravilhosamente apro­priada para que essa alma receba, de modo inte­gral, as impressões do mundo exterior, julgue-as e. transmita as suas próprias determinações; por ou­tro lado, a anatomia do cérebro desautoriza a con­cluir não passe a alma de produto orgânico, ao passo que a Filosofia deslinda, na trama de incer­tezas e contradições do materialismo, a ação evi­dente do espírito sobre a matéria.

Vimos que a loucura não é afecção orgânica, porém psíquica, e que a alma tem o seu mundo. de dores e de alegrias: A determinação é patente. Será crível, entretanto, que, depois de considerar a loucura uma enfermidade fisiológica, ousassem equipará-la ao gênio, havendo, já agora, muitos mé­dicos que a consideram uma nevrose?

Só a nossa época era capaz destas ousadias. “A constituição de muitos homens de gênio — diz. Moreau (de Tours) é bem, e realmente a mesma dos idiotas” (63). Desenvolvendo desmesuradamente uma tese do Dr. Lelut, o autor sustenta que o gênio não pertence aos domínios do espírito, mas. do corpo! Mas, em que base se firma ele? no fato de (dizem) certos homens de gênio manifestarem esquisitices, excentricidades, distrações, ou serem enfermiços, raquíticos, adiposos, surdos, gagos, ou ainda passíveis de alucinações.

É realmente singular aferir o gênio pela sin­gularidade das opiniões, pela originalidade, pelo en­tusiasmo ou pelo delírio. A nós nos parece que

(63) La Psychologie Morbide.

ele consiste, antes, na sublimidade do pensamento, na elevação da alma aos cimos do estudo científico, na plena posse de si mesma, em face das contem­plações intelectuais.

Esta singular identificação do gênio com a lou­cura foi valorosamente refutada pelo Sr. Paulo Janet, no seu valioso trabalho sobre O Cérebro e o Pensamento. “Esta teoria — diz ele — tomou a aparência como realidade, o acidente pela subs­tância, os sintomas mais ou menos variáveis, pelo fundamental e essencial. O que constitui o gênio não é o entusiasmo (pois este pode existir nos es­píritos mais medíocres e vazios) e sim a superio­ridade do racionalismo, O homem de gênio é o que vê mais claro, o que percebe maior contingente de verdade, o que pode relacionar maior número de fatos a uma idéia geral, o que encadeia todas as partes de um todo a uma lei comum, e que, mesmo quando cria, qual se dá na poesia, não faz mais que realizar, pela imaginação, a idéia que a sua inteligência concebeu.

“A característica do gênio está no possuir-se a si mesmo e não em ser arrastado por uma força fatal e cega; está em governar suas idéias e não em ser subjugado por imagens; está em ter cons­ciência nítida do que quer e vê, e não em perder-se num êxtase vazio e absurdo, semelhante ao dos fa­quires indianos.

“Certo, o homem de gênio quando compõe não pensa mais em si mesmo, isto é, nos seus mesqui­nhos interesses e paixões, na sua pessoa trivial; pensa no que pensa, ou, por outra, não seria mais que um eco sonoro e ininteligente, o que São Paulo admiravelmente qualifica de cymbolum sonans. Numa palavra: o gênio é, para nós, o espírito humano no seu melhor estado de saúde e vigor.

Nada obstante, isolados no seu triste deserto, nossos apaixonados fisiologistas fazem a noite em torno de si, recusam confessar as faculdades mais nobres do espírito humano.

Pretendem ser os rigorosos intérpretes da Ciência, ter em suas mãos o futuro da inteligência, a olharem desdenhosos os pobres mortais, cujo peito serve de refúgio derra­deiro à fé no passado e à esperança exilada. Fora do seu círculo, não há mais que trevas, fantásticas ilusões. Eles têm na mão a lâmpada da salvação, sem perceberem (ai de nós!) que o fumo negro que dela se exala perturba a visão e falseia a rota. Tudo comprimem, à força, para lhe extrair a es­sência, e quando chegam a capacitar-se de que a essência não corresponde ao que esperavam, decla­ram que — “a essência das coisas não existe em si mesma e não passa de relações, que acreditamos apreender nas transformações da matéria”. Não há outra lei que a da nossa imaginação, nem mes­mo forças, mas simplesmente propriedades da ma­téria, qualidades ocultas que, em lugar de nos fa­zer evoluir, recuam-nos a vinte séculos atrás, ao tempo de Arístoto.

Suas conclusões são meramente arbitrárias, nem a Química nem a Física as demonstram, qual dão a entender. Não, são proposições geométricas a derivarem necessàriamente umas das outras, como outros tantos corolários sucessivos, mas enxertos estranhos, arbitràriamente soldados à árvore da Ciência. Felizmente para nós, eles também desco­nhecem as leis da enxertia.

Essas vergônteas natimortas, de uma espécie exótica, são incapazes de receber a seiva vivifican­te, e a árvore em crescimento as esquece no seu progresso. Dito seja que, também hoje, elas, essas vergônteas, não oferecem viabilidade maior que ao tempo de Epícuro e Lucrécio. A posteridade não terá, jamais, o trabalho de lhes recolher flores e frutos.

Entretanto, a dar-lhes ouvidos, dir-se-ia esta­rem elas tão naturalmente enxertadas na árvore da Ciência, que se nutrem da sua própria vida e se alimentam por seus próprios cuidados, como se uma mãe inteligente pudesse consentir em derramar a seiva do seu leite nos lábios de semelhantes parasitas! Do ponto de vista histórico, a atitude magistral que eles tomam, diante dos representan­tes da Ciência moderna, é curiosa e digna de aten­ção. E fazem sucesso, visto que, nem todos sendo sábios, há entre eles alguns que ocupam as pri­meiras linhas da Ciência e, tendo publicado sobre a Física obras de valor, as impõem e induzem a aceitar a falsa metafísica desses experimentadores.

Diante do resultado dessas tendências, diante da materialização absoluta de todas as coisas, desse pretenso termo último do progresso científico — o aniquilamento da lei criadora e da alma humana, a que se reduzem as mais nobres aspirações da Humanidade com as suas crenças mais instintivas e suas concepções mais antigas e mais grandiosas? Que resta das idéias de Deus, justiça, verdade, bem, moralidade, dever, inteligência, afeição? Nada, nada mais que poeira vil. Todos nós, pensadores animados do ardente desejo de saber, não passamos da evaporação de um pedaço de graxa fos­forada!

Admiremos os panoramas soberbos da Natu­reza, elevemos o pensamento a essas alturas lumi­nosas e douradas de sol, nas horas melancólicas da tarde, escutemos as harmonias da música hu­mana e deixemo-nos embalar pela melodia dos ven­tos e dos zéfiros, contemplemos a imensidade múr­mura dos mares, subamos ao cimo esplendente das montanhas, observemos a marcha tão bela e to­cante da vida planetária em todas as suas fases, respiremos o perfume das flores, elevemos o olhar às estrelas radiosas que se ostentam nos esplen­dores do azul, ponhamo-nos em comunicação com a Humanidade e sua história, respeitemos os gê­nios ilustres, os sábios que dominaram a matéria, veneremos os moralistas perseguidos, os legislado­res de povos e permitamos ainda à amizade reu­nir corações, ao amor que palpite em nosso peito, ao patriotismo e à honra que nos inflamem o verbo, e, nessas ilusões caducas, não haverá mais que o efeito químico de uma mistura, ou de uma com­binação de alguns gases. É uma questão de peso e de volume nos equivalentes do oxigênio, do hi­drogênio, do fósforo, do carbono, que se juntam no alambique do cérebro em maiores ou menores proporções!

Virtude, coragem, honra, afeto, sensibilidade, desejo, esperanças, discernimento, inteligência, ge­nialidade, tudo combinações químicas! Saibamo-lo de uma vez por todas, a vida é tão somente isso.

Que o coração nos paralise, que nossa alma não se preocupe mais com os bens intelectuais, que o nosso olhar não mais se eleve aos céus. Para quê? A vida do espírito nada mais é que um fantasma...

Demo-nos por felizes, com o saber que não passamos de secreção impalpável e inconsistente de três ou quatro libras de medula branca ou cin­zenta!...

2

A PERSONALIDADE HUMANA

SUMÁRIO — A hipótese da alma como propriedade do cérebro é insustentável diante dos fatos que atestam a personalidade humana. — Contradição da unidade da alma com a multiplicidade dos movimentos cere­brais. ContradIção da Identidade permanente da alma com a mutabilidade incessante das partes cons­titutivas do cérebro. — Silêncio dos materialistas sobre esse duplo fato. — Inanidade da sua teoria. — Audácia de suas explicações, ante a certeza moral de nossa identidade. — De como a unidade e a identidade da alma demonstram a inanidade da hipótese materialista.

Felizmente para as grandes e respeitáveis ver­dades de ordem moral, não estamos reduzidos a curvar a cabeça diante de tão grosseira conclusão.

Como nos dias decantados pelo cérebre autor latino das Metamorfoses, temos nascido para ficar de pé e contemplar o céu.

Certo, poderíamos invocar aqui o testemunho imponente dos sentimentos mais profundos da na­tureza humana; poderíamos evidenciar, à luz me­ridiana, que, nestas doutrinas perniciosas não há mais lugar para a esperança, moral para a cons­ciência, luz para os pendores do coração; bondade natural, justiça na ordem universal, consolação para o aflito e mais — que a população do globo não mais tem à sua frente nenhuma finalidade, nenhu­ma claridade, nenhuma lei intelectual.

Rolando, por aí além, turbilhonante, levada no espaço obscuro pela rotação e translação rápidas do globo e renovando-se a cada instante pelo nascimento e morte de seus membros, ela — a Huma­nidade — não passa, à superfície desse globo, de bolorento parasita cegamente desabrochado e per­petuado por forças químicas.

Sim. Poderíamos, invocando o testemunho dos corações que ainda pulsam, e das almas que ainda crêem, dispor em linha de batalha os argumentOS ainda vivazes da Filosofia, da Psicologia e derribar o adversário, constrangendo-O a confessar-Se ven­cido. Todavia, como preferimos combater no mes­mo terreno e com as mesmas armas, pretendendo refutá-loS só em nome da Ciência de que se dizem intérpretes, apraz-nOS permaneCer no campo exclusivamente científico e desdenhar, qual o fazem eles, os silogismOs da Psicologia.

Deixamos, assim, sem resposta as seguintes proposições adversas e os comentários com que as esticam: — “As leis da Natureza são forças bár­baras, inflexíveis; não conhecem a moral nem a benevolência.” (Vogt). “A Natureza não ouve as queixas nem as preces do homem, antes as repele inexoravelmente em si mesmo.” (Fuerbach). “Sabe­mos, por experiências próprias, que Deus absolu­tamente não se imiscui, de qualquer forma, nesta vida terrestre.” (Lutero).

Aí temos conceitos bem consoladores, não éassim? Mas, repetimos: o sentimento não é cabedal científico e por isso não entraremos nesse capítulo. Esta abstenção não nos impede, bem entendido, de convidar o leitor a meditar e decidir para que lado lhe pendem o coração e a razão.

Mas, apenas do ponto de vista da observação científica e deixando de lado os pendores do cora­ção e os imperativos da consciência — que não deixam de algo ser na história da alma — dizemos que fatos há, nos domínios da observação pura, completamente inexplicáveis na hipótese materia­lista.

No precedente capítulo, o leitor ainda pode fi­car suspenso entre as duas hipóteses, porqüanto apresentámos fatos mutuamente oscilantes, que dei­xam o espírito indeciso, quanto ao centro de gra­vidade. Agora, porém, o centro de gravidade vai passar ao corpo das doutrinas espiritualistas, e os que o não seguirem muito se arriscarão a desequi­librar-se e a cair, rápido, no mais vazio dos vácuos.

Exponhamos, em primeiro lugar, as afirmati­vas materialistas contra a existência da alma, e, para não falar só dos estranhos e fazer ao mesmo tempo o histórico do materialismo em nosso país, escutemos Broussais, cuja obra foi o primeiro to­que de reunir dos nossos modernos epicuristas e inaugurou, em nosso século, a primeira fase desse curso pouco luminoso.

Para Broussais, como para Cabanis, Locke e Condillàc, o homem é, simplesmente, o conjunto de órgãos em função. O eu, a personalidade humana não é um ser suis generis, é um fato (64), é um re­sultado, é um produto imputável a tal ou qual dis­posição da matéria (65). Inteligência e sensibilidade são funções do aparelho nervoso, mais ou menos como a transformação dos alimentos em quilo e sangue é função do aparelho digestivo, ou respiratório (66). A existência da alma não é mais que uma hipótese que se não funda em observação qual­quer, que nenhum raciocínio autoriza, por gratuita e até mesmo destituída de senso (67). Reconhecer no homem mais que um sistema orgânico, é cair nos absurdos da Ontologia (68).

Cabanis, no seu livro bem conhecido, e Destutt de Tracy, na sua análise racional das relações do físico com o moral, emitem as mesmas opiniões, mas, sob forma menos explícita.

Segundo os exagerados defensores da doutrina

(64) De I’Irritation et de la Folie, página 153.

(65) Idem, página 171.

(66) Idem, Prefácio, 19º.

(67) Reponse aux Critiques, página 30.

(68) De I’Irritation, etc., página 122.

da sensação, a pessoa humana confunde-se nas fun­ções orgânicas. Na realidade, não existe.

Todos os homens, em todos os tempos e por toda a parte, acreditaram na existência pessoal, sen­tiram-se viventes e pensantes; todas as línguas enun­ciaram, nas primeiras páginas dos anais humanos, a existência do pensamento individual, a alma, a inteligência, o espírito, não importa sob que nome (poderíamos encher uma página de nomes primiti­vos, arianos, sânscritos, gregos, latinos, celtas, etc., mas, uma tal nomenclatura não se faz necessária, e nossos leitores certo sabem da existência desses vocábulos), O bom senso popular, tanto quanto o gênio filosófico, espontaneamente acreditaram, des­de que o mundo é mundo e há seres racionais na Terra, que existe em nosso corpo algo mais que a matéria, uma consciência própria, sem a qual não existiríamos e que se comprova a si mesma, pelo só fato da certeza íntima. Enfim, todos sentiram que o corpo, nem tão-pouco o mundo exterior, cons­tituem a entidade pensante. Entretanto, a Huma­nidade do passado, como do presente, parece que não leva em conta a opinião dos materialistas.

Felizmente para nós, eles aí estão a esclare­cer-nos de ora em diante, convidando-nos a recon­siderar a ingenuidade das nossas crenças. Como bem o disse um fino espiritualista (o duque de Bro­glie, nos Ècrits et Discours, t. 1º). “Até aqui, caros amigos, dizem eles, acreditastes que ezistieis e tí­nheis um corpo; mas, desenganai-vos, porque não existis e é o corpo que vos possui. Só existis na aparência, o que chamais o eu, não passa de sim­ples vocábulo, um não sei quê, destituído de reali­dade e consistência; e o que realmente existe, no fundo de tudo isso, é alguma coisa de que não ten­des consciência, nem ela tão-pouco a tem de vós.”

No parecer de Broussais com os seus colegas e discípulos, o eu é o cérebro, O pensamento, todos os fenômenos inteligentes, são excitações da maté­ria cerebral ou, para usar a mesma linguagem do Autor — condensações da mesma matéria (69). E, seja de que natureza for, toda a percepção mental está neste caso. Dor, alegria, saudade, julgamento, comparação, determinação, entusiasmo, desejo, tudo é condensação. Se houver fenômenos complexos nesse laboratório do pensamento, quais uma série de raciocínios sucessivos partidos de uma impres­são inicial, mesmo do exterior e culminando em ato voluntário, serão ainda condensação de condensa­ções. Estas são o próprio pensamento, que não passa de consequência, de resultante, condensação mesma das fibras do encéfalo...” Meu Deus! Que bela coisa é a Ciência e como o Sr. Broussais pos­suía uma imaginação bem condensada!

Sentir-se Sentir, eis a fórmula e o único fato consciencial admitido por Broussais. Ora, qual o órgão que sente no organismo humano? Incontestavelmente, o cérebro. Logo, ele é o eu e todas as percepções do pensamento não passam de excita­ções da substância cerebral. Coisa que parece sim­ples, mas desafia um ligeiro reparo.

Temos visto que o cérebro é massa carnosa, pesando três libras mais ou menos e composta de medula, fibras brancas ou pardas, gordura fosfo­rada, água, albumina, etc. Ora, entre essas subs­tâncias, qual a pensante? A água? o fósforo? a albumina? o oxigênio? Se a faculdade de pensar está ligada a uma simples molécula, a um átomo real, não tendes o direito de negar a imortalidade da alma, pois, neste caso a faculdade de pensar participaria do destino do átomo indestrutível. Se­ria preciso, pois, admitir que esse átomo se liber­tou, desde logo, do movimento, para ficar imóvel, talvez no fundo da glândula pineal. Admitindo-se, agora, seja cada molécula capaz de sentir em con­formidade com a natureza das sensações, esse pre­tenso eu já não estará no singular, mas no plural,

(69) Broussais — De I’Irritation et de la Folie, página 214.

haverá tantos eus (!) quantas moléculas cerebrais. Os léxicos não conheciam esse vocábulo e, doravan­te, deverão perfilhá-lo.

O homem jamais suspeitara que continha em si diversas personalidades, pois os próprios gregos, com as suas múltiplas designações possíveis, não tinham visto nisso senão faculdades várias e diver­sas maneiras de ser de uma única e mesma alma. Mas, cada molécula é, por sua vez, um agregado de átomos, de corpos simples, diversos e diversamente combinados. Teremos, então, cada átomo a pensar agora? Eis-nos caídos na mais absurda e inimaginável das hipóteses. Essa contradição entre a uni­dade inconteste do ser pensante e a multiplicidade, não menos inconteste, dos elementos cerebrais, re­duz a zero a pretensão de fazer da consciência pessoal uma propriedade do encéfalo.

Nota curiosa: esses senhores não se precatam de que assim racionando regridem aos arqueus de Van Helmont, a pretexto de progresso. Não lhes falta mais que os espíritos animais, dos tem­pos de Descartes e Malebranche, para nos vermos recuados a mais de dois séculos, anteriores à ori­gem da própria Fisiologia.

Não temos no âmago da consciência a certeza da nossa unidade? Percebe-se ‘o pensamento qual mecanismo composto de várias peças, ou como um ser simples? Todos os fenômenos ativos de nossa alma depõem a favor dessa unidade pessoal, visto como, na sua variedade e multiplicidade, estão gru­pados em torno de uma percepção íntima, de um julgamento e de uma faculdade de generalizações únicas. Sentimos, em nós mesmos, essa unidade pessoal, sem a qual pensamentos e atos não mais se ligariam por qualquer laço e nenhum valor te­riam as nossas determinações. É esse um fato tão firmemente enraizado na consciência e tão inata­cável, que as contradições aparentes que se lhe podem opor redundam, em definitivo, a seu favor. Se, por exemplo, certa faculdade de nossa alma se engana em suas apreciações, parece poder con­cluir-se que há complexidade na maneira operatória do espírito. Mas, se descermos ao fundo do fenômeno do erro, tão frequente, reconheceremos que é sempre o mesmo ser, a mesma pessoa a enga­nar-se e a reconhecer a sua imprevidência, assim como, no homem que erra e se corrige, é manifesto que a mesma razão que erra é que corrige.

Assim, as mesmas contradições da natureza humana prestam-se, tanto quanto o foro íntimo, a afirmar a personalidade do nosso ser mental.

Se bem que a afirmação da personalidade do eu prova a existência da alma, não se infere daí que a constitua. Temos, para nós, que a alma éo ser pensante, ao passo que o eu é apenas uma concepção que dá para fenômenos internos o ca­ráter de fato consciencial.

A alma poderia existir inconsciente da sua per­sonalidade e, de fato, no mundo animado há um grande número de almas ainda nessa condição.

Dizem outros que é o conjunto do cérebro e não cada molécula de per si, que pensa. Mas, que vem a ser o conjunto do cérebro senão a reunião das moléculas que o compõem? Os que fazem dessa reunião um ser ideal, uma espécie de sociedade, de exército, não podem pretender que essa coleti­vidade pense, sem que o façam todos e cada qual dos seus membros. Porque, em si, uma sociedade, um povo, não são entidades reais, mas conglome­rado cuja natureza e cujo valor só se constituem dos membros, componentes. Suprimi o pensamento aos cérebros do povo francês e que ficará a esse povo? Imaginai que as moléculas cerebrais não pen­sam, e que restará ao cérebro? E, se elas pensam, então, voltaremos à imagem extravagante de uma quantidade indefinida de eus! (Fora o caso de dizer que este vocábulo, se os vocábulos pensassem, de­veria estranhar o ver-se aqui pluralizado.)

E, para que elas se acordem entre si, veremos instituir a hierarquia militar e nomear um general que cavalgue qualquer átomo bicudo da glândula pineal, ou, então, dir-se-â com Syndenham “que há no homem um outro homem interior, dotado das mesmas faculdades e afecções do homem interior”. A pretexto de ciência positiva, imaginar-se-ão mil hipóteses mais difíceis do que os tão critIcados mis­térios das velhas religiões.

Os materialistas contemporâneos são um pouco mais fortes. Declararam, como vimos, que a alma é uma força excretada pelo cérebro (?), sem se darem ao trabalho de elucidar qual a parte ou o elemento do encéfalo que possui essa maravilhosa faculdade. É uma resultante do conjunto de mo­vimentos operados sob diversas influências, no ór­gão cerebral. Tal, a opinião da escola materialista, e mesmo da panteísta. Esta nova hipótese é tão simplória quanto as precedentes, e só apresenta uma ligeira falha que é, nem mais nem menos, o ser incompreensível. Aliás, não se dão eles ao tra­balho de a explicar. Em 1827, quando se opunha a simplicidade da alma à multiplicidade dos ele­mentos cerebrais, nessa época em que a química do pensamento não gozava a prerrogativa de ser manipulada nas retortas de além-Reno, Broussais respondia lealmente: “o eu é um fato inexplicável, não pretendo explicá-lo” (70). Todavia, às defini­ções supra assinaladas, juntou ele mais esta: “O eu é um fenómeno de inervação”. Ainda hoje, nin­guém conseguiu provar, nem explicar, como pode a consciência resultar de certas combinações ope­radas num maquinismo automático. Assim, a uni­dade da nossa força pensante não só protesta energicamente, como destrói, de um golpe, a hipótese da secreção cerebral. Oporemos, agora, à mesma hipótese um segundo fato, paralelo a este e de tan­to valor que basta, por si só, para arrasar o colos­sal exército de argumentos já embotados na defesa da referida teoria.

(70) Reponme aux Critiques, página 17.

Ei-lo, esse fato, em termos bem claros.

A substância cerebral não se mantém duas semanas idêntica a si mesma. O cérebro se refunde completamente num prazo mais ou menos longo. Vimos na segunda parte que, não só o cérebro, mas todo o organismo, não passa de uma sucessão de mo­léculas em mutabilidade constante.

E, nada obstante, a nossa personalidade racio­nal subsiste. Todos temos a certeza de que, desde que nos entendemos por gente, não mudamos in­trinsecamente, qual mudaram nossos cabelos, nossa pele, nossa fisionomia, nossa estatura.

Nas páginas precedentes, demonstrámos a per­sonalidade humana, mau grado à complexidade dos elementos cerebrais e à multiplicidade das suas funções. E vimos que, longe de ser uma resul­tante, essa personalidade se afirma de si mesma como força individual. Vamos agora, de algum modo, transportar à noção do tempo o que dizía­mos a propósito do espaço, para estabelecer que a unidade da alma não existe somente a cada ins­tante, considerada em si mesma, mas persiste de um a outro instante, e fica idêntica em si mesma, apesar das mudanças que o tempo acarreta à com­posição da substância cerebral.

Trata-se, pois, de conciliar a identidade perma­nente de nossa personalidade com a mutabilidade incessante da matéria. Os senhores materialistas seriam de uma gentileza rara se consentissem em subir por um instante ao palco, a fim de resolverem este pequenino problema.

A nós, muito nos praz fornecer-lhes o enun­ciado: — demonstrar que o movimento é amigo do repouso e que o melhor processo de criar no mun­do uma instituição estável e sólida é lançar a idéia através de um turbilhão de cabeças frívolas.

As rigorosas observações feitas e comparadas, sob diversos pontos de vista, demonstrarám não apenas que o corpo se renova sucessiva e comple­tamente, molécula a molécula, mas, também, que essa renovação perpétua é rapidíssima, bastando trinta dias para que se tenha um corpo integral­mente renovado.

Tal, o princípio da desassimilação no animal. Falando a rigor, o homem corporal não fica dois instantes idêntico a si mesmo. Os glóbulos san­guíneos que circulam em meus dedos, enquanto es­crevo estas linhas, o fósforo mágico que me tra­balha no cérebro ao pensar esta frase, já me não pertencerão quando estas páginas forem impressas e, talvez, no momento de as lerdes, façam parte dos vossos olhos ou da vossa fronte... talvez, ógentil leitora! enquanto os vossos mimosos dedos dobrarem estas páginas, a dita molécula de fósforo que, na hipótese dos adversos, teve a fantasia de imaginar a dita frase, talvez, repito, essa ditosa molécula esteja sob a epiderme sensível do vosso indicador, ou, quem sabe, crepite ardentemente nas palpitações do vosso coração... (A respeito de mo­léculas itinerantes muito haveria a dizer, mas, não ousamos alongar o parêntese.) O que importa, a sério, é recordar esta verdade: — a matéria circula perpétuamente em todos os seres, e no ser huma­no, em particular, não permanece dois dias idêntica a si mesma.

Se não estamos enganados, este fato tem sua importância na questão que nos ocupa, e é com verdadeiro prazer que o alegamos aos adversários, convidando-os a que o expliquem.

Como estas interessantes observações se devem aos próprios campeões do materialismo, a eles, que não a outrem, compete interpretá-las em apoio de sua teoria, caso essa interpretação não lhes requei­ra um esforço muito exagerado.

Vejamos:

“O sangue rejeita constantemente suas partes constitutivas aos órgãos do corpo, na qualidade de elementos histogênicos. A atividade dos tecidos decompõe esses elementos em ácido carbônico, uréia e água. Tecidos e sangue sofrem, na marcha regular da vida, um desperdício de substância, só com­pensado na provisão dos alimentos. Essa permuta de matérias opera-se com uma rapidez notável. Os fatos gerais indicam que o corpo renova a maior parte de substância num período de vinte a trinta dias. O coronel Lann, por meio de várias pesagens, encontrou uma perda média de 22% de seu peso, em 24 horas. A renovação total exigiria, portanto, 22, dias. Liebig deduziu uma rapidez de 25 dias, considerando as permutas de outra maneira, pela combustão do sangue. Por surpreendente que possa parecer esta rapidez, as observações concordam em todos os pontos” (71).

Assim, sois vós mesmos a ensinar que dentro de alguns dias nosso corpo se renova inteiramente. Nosso ser material viu dissolver-se e reconstituir-se, sucessivamente, a sua assembléia constituinte, não lhe ficando uma só molécula de oxigênio, carbono, hidrogênio, ferro, carbono, albumina... Essas mo­léculas aliaram-se a outras substâncias, que andam agora embaladas pelas nuvens, levadas pelas ondas, envolvidas no solo, recolhidas pelas plantas, ou pelos animais, enquanto que a nossa substância também se encontra inteiramente mudada.

Em se aplicando essa engenhosa teoria a uns tantos fatos de ordem social, chega-se a provar que a união matrimonial deixa de ser um sacra­mento eficaz, visto que ao cabo de um mês as duas criaturas, que acreditaram formar liames eternos, estão corporal e espiritualmente transformadas e vivem como adúlteros. Como esta, conclusões ou­tras se podem tirar, edificantes. Ajuntais, de se­guida, que, sendo o fósforo a parte do cérebro mais caracterizada, é desta substância que provém o pensamento, assim como à potassa se devem os músculos e as faculdades de locomoção e os ossos ao fosfato de cal, etc., e vós comparais o ato de

(71) Jac Moleschott — La Cireulation de Ia Via, t. 1º, páginas 169, 170 e 172.

pensar (secreção do cérebro!) à secreção da bílis pelo fígado, da urina pelos rins.

Contrariando as vossas pretensões, noto que meu ser pensante, minha pessoa, meu ego, é o mes­mo de há cinco, dez, vinte, quarenta anos. E es­pero não negareis que vos lembrais de terdes sido criança, de haverdes brincado ao colo materno, fre­qüentado a escola e feito (lá isso não duvido) bri­lhantes estudos, para vos tomardes, com o tempo, furiosos paladinos do materialismo.

Sois bem vós que assim vivestes, não é ver­dade? Foi, certo, sobre o vosso espírito, e não sobre a vossa fronte, que esses anos passaram. Se mu­dastes de opiniões, de idéias, de diretriz, em vossos estudos; se trocastes de país, de hábitos, de ali­mentos, nem por isso deixou de ser a vossa pessoa mesma que cresceu, viveu, envelheceu; e, se algum audacioso e legítimo partidário das vossas doutri­nas, tendo-vos roubado, há dez anos, honra e for­tuna, reaparecesse e dissesse que já. não sois o mesmo homem, que tendes mudado muitas vezes, que não vos conhece e que também ele mudou e, por isso, nada vos deve nem lhe cumpre reparar, certo estou de que não demoraríeis a demonstrar-lhe que não é assim que entendeis, na prática, as vossas teorias.

Com efeito, senhores, essas teorias não nos pa­recem nem mais nem menos que absurdas, diante do fato eloquente da identidade do espírito. Podeis conciliar umas e outro? Podeis pretender que uma secreção de substâncias que apenas transitam pelo organismo possa gozar dessa faculdade? Ousaríeis avançar que, considerando o pensamento como atri­buto de uma associação de moléculas de gordura fos­forada, albumina, colesterina, potassa e água (72)

— moléculas trazidas a esse laboratório pela nu­trição e respiração, variáveis, em contínuo movi­mento, semelhantes a soldados de todas as náções,

(72) Moleschott, 2º, 149.

que chegam ao- mesmo campo, armam tendas e se­guem adiante para serem logo substituidos por ou­tros; — ousaríeis, repito, avançar que um tal sis­tema pode explicar a identidade, a permanência do pensamento?

Não, não o ousais: nem mesmo o ensaiam, pois muito tenho revolvido em vossos anais e vejo que prestes vos esquivais ao escolho, deixando quase de o nomear.

Um dos vossos (73) responde de passagem que a observação feita com os trepanados demonstrou que certos anos ou fases da existência se lhes apa­gava da memória devido à perda de quaisquer par­tes do cérebro. Acrescenta mais, que a velhice acar­reta a perda quase total da memória. Sem dúvida, diz, as substâncias cerebrais mudam, mas o modo de sua composição deve ser permanente e deter­minante do modo da consciência individual. Depois, confessa que “os processos interiores são inexplicá­veis”. Ora pois! eis aí uma confissão que compensa tudo. Essas pretensas explicações apoiadas em fa­tos anormais são as únicas que se permitem dar ao grande fato por nós assinalado.

Lacuna sensível, e visto que a vossa maior ambição é remover todos os tropeços e nada aba­far em silêncio — censura que irrogais aos vossos adversários — concito-vos, a bem mesmo do vosso renome, a não mais deixar de explicar física ou quimicamente como a renovação dos vossos átomos pode ter a propriedade de engendrar em ser pensante e consciente da permanência de sua iden­tidade.

Não vemos conciliação possível entre estes dois termos contrários, pelo que, poderíamos seguir avan­te sem nos preocuparmos com o adversário, para só considerá-lo fora de combate, qual gladiador an­tigo a esvair-se na arena, trespassado pelo mortal tridente.

(73) Büchner — Força e Matéria.

Todavia, ainda por princípio de caridade, vamos prosseguir na luta e, para defesa geral da causa, acreditamos útil examinar as diversas explicações emitidas a respeito, a fim de que saibam nenhuma haver satisfatória, ficando assim de todo insolúvel a hipótese materialista.

A primeira dessas explicações consiste em di­zer que, se as moléculas do corpo estão em perfeita circulação, o mesmo não se dá com a forma indi­vidual. Nossos traços ficam gravados no semblan­te, os olhos conservam a mesma cor, os cabelos a mesma natureza, a fisionomia o seu tipo funda­mental. Quantos tiveram ensejo de reivindicar àglória militar uma cicatriz qualquer, guardam-lhe a marca, não obstante a renovação dos tecidos. Tal o fato geral da permanência e caráter fisionô­mico individual.

Podem os adversários pretender que, assim sendo com o corpo, impossível não seja a identi­dade do espírito, como resultante de fenômenos ma­teriais.

Ora, aí justamente é que está o erro: 1º — Não se pode provar que a constância dos traços seja o resultado de simples fenômenos de assimi­lação e desassimilação, e da modificação incessante da substância; 2º — ainda mesmo que assim fôsse, não existiria nisso senão uma identidade de forma, aparente, conservada pelas moléculas sucessivas e não identidade fundamental, um ser substancial que fica; 3º — a alma não é uma sucessão de pensa­mentos, uma série de manifestações mentais e, sim, um ser pessoal com a consciência de sua permanência.

Por consequência, a diferença que separa da nossa a hipótese materialista, consiste simplesmente em observar que nada se explica pela primeira, ao passo que pela nossa tudo se explica. Como se vê, uma diferença insignificante.

Dir-se-á que os átomos materiais, em se subs­tituindo, seguem precisamente a mesma direção dos precedentes, entrosados no mesmo turbilhão, como sentinelas militares transmitindo-se a senha e que, se o pensamento é apenas uma série de vibrações, são estas mesmas vibrações a se perpetuarem, ainda que mude a substância dos círculos vibrantes. Mas, uma tal pretensão é duplamente insignificante, atento a que não explica melhor que as primeiras a identidade do eu, e tende a arrastar-nos ao ocul­tismo, arvorando o corpo em locutório de molecula­zinhas capazes de se entenderem e concordarem, mau grado à tagarelice e leviandade peculiares ao sexo.

Pode ainda dizer-se que, se o cérebro muda pouco a pouco, o mesmo sucede com o nosso ca­ráter, tendências, o próprio espírito. Mas, se de um lado considerarmos a substância constitutiva do cérebro num dado momento, teremos que, semanas ou meses depois (não importa o prazo), a metade dessa substância, por exemplo, estará mudada e não haverá, portanto, senão outra metade substan­cial da considerada num dado momento. Depois, um meio quarto, e assim por diante. De sorte que, nesta hipótese, estaríamos mudados em duas, três, quatro partes, até que nada restasse da persona­lidade primitiva. Ora, quem não vê, quem não sen­te, que se não guardam de tal arte fragmentos de alma, e que esta é una, simples, indivisível e idên­tica a si mesma em qualquer período de sua du­ração? A permanência do eu ressalta, ainda uma vez, vitoriosa dessa mixórdia.

Avançarão, enfim, que há no cérebro um lugar qualquer, um santuário em cujo ádito fique, isenta das leis gerais, uma molécula imutável, permanen­te, privilegiada entre as demais, dotada de inte­gridade inatacável, e que essa tal molécula é o cen­tro dos pensamentos e o que constitui a identidade pessoal?

Mas, tal suposição é, não apenas arbitrária e balda de sentido, mas também contrária à observa­ção científica e à índole do método positivo. De resto, nenhum dos adversários se decide a lhe assu­mir a responsabilidade.

Assim, queiram ou não, a identidade perma­nente do ser mental é fato inconciliável com a mu­tabilidade incessante do órgão cerebral, no caso em que se conceitue o nosso ser mental como atri­buto orgânico.

Singular audácia de sonhadores, o virem ne­gar, à face da consciência individual e universal, o grande fato da existência pessoal da alma! Não sabemos todos, à saciedade, que o nosso eu e os nossos órgãos são radicalmente distintos? que a nossa pessoa se reconhece e afirma independente em si e de si mesma? que nós não somos os nos­sos órgãos, mas que eles são nossos, o que é bem diferente? Negar tal coisa, vale por negar a luz meridiana. Pôr assim em dúvida a primeira afir­mação de consciência, pretender que estejamos ilu­didos e que, ao invés de uma existência pessoal, da posse dos nossos órgãos, são estes que nos pos­suem, é pôr em dúvida ao mesmo tempo o princí­pio de toda e qualquer certeza, é reduzir a fumo o secular edifício dos conhecimentos humanos.

Negado esse primeiro fato de consciência, nada mais resta à Humanidade.

Haverá quem desconheça a ousadia de seme­lhante pilhéria?

Se estamos iludidos acerca da própria persona­lidade, em que mais poderíamos crer e afirmar nesta vida? Admiramos esses senhores materialistas, que colocam uma tal dúvida em primeiro plano e ou­sam afirmá-la com pretensas observações de ciên­cia positiva. Não vos parece sejam eles, por sua vez, joguetes de mirífica ilusão quando assim tão ingênuamente sustentam não passar de miragem a identidade pessoal, para que sejamos tão só um adjetivo do elemento cerebral? Sim, porque, per­suadidos deveriam estar de que não lhes sendo as próprias idéias mais que produto do fósforo e da potassa, a natureza das mesmas idéias depende da natureza das combinações e, consequentemente, não lhes vai bem essa atitude de pregoeiros pes­soais. Essa prerrogativa lhes escapa, e se quisés­semos levar o seu mesmo sistema às suas burles­cas consequências, começaríamos por considerá-los pessoalmente inexistentes, e, em lugar de a eles nos dirigirmos como a criaturas pensantes, nos ateríamos à constituição do seu cérebro. Aqui, é opor­tuno lembrar, com Hersehel, não haver absurdo que um alemão não teorize.

Atingidos esses exageros, não há como deixar de olhar para trás e lembrar a Ontologia no trono que ela abdicou em benefício da república cientí­fica. Sem restabelecer o equilíbrio, somos tentado a perguntar, com de Broglie (74), se a Ontologia será bem uma asneira e se os ontologistas não se­rão uns loucos, idiotas, sonhadores. Nem tanto, responderemos com o acadêmico. A Ontologia não é coisa que se deva tomar em sentido pejorativo, pois é um dos ramos da Filosofia geral, ciência do ser, em oposição à do fenômeno, ou da aparência.

O homem, dizem os filósofos, aborda direta­mente os fenômenos e apreende-os, seja pelos sen­tidos, seja pela consciência; estuda-os, descreve-os, compara-os. Entretanto, sob o fenômeno há o ser que persiste enquanto ele — o fenômeno muda ou passa. Independentemente dos atributos, das modificações, há a substância que suporta os atri­butos e sofre as modificações. Às qualidades e aparências é necessário um objeto de inerência, um suporte, ou o que melhor nome tenha. Enquanto as ciências naturais descrevem os fenômenos sensí­veis e a Psicologia descreve os fenômenos conscien­ciais, a Ontologia sonda a legitimidade do processo pelo qual passamos do fenômeno ao ser.

Aqui não queremos, porém, entrar nem conduzir

(74) De I’Existence de I’Ame, página 112.

o leitor a essa cripta ainda assaz obscura, da ciência abstrata, pois tememos, como ninguém, as emanações soporíficas que a cripta exala.

Temos, por essencial, permanecer no plano ati­vo e luminoso da observação experimental. Nota­mos mesmo — tão certo estamos da vitória e de sobrancear com prazer todas as dificuldades — que a autoridade da consciência pode, sob um certo prisma, ser posta em dúvida e que importa não aceitar sem controle o testemunho puro e simples do senso íntimo. Como o princípio pensante sofre a cada instante uma chusma de influências deriva­das do mundo exterior e não lhe seja possível des­cobri-la e remontá-la, poder-se-ia, talvez, pretender que a convicção de sua identidade seja uma ilusão devida a uma ignorância invencível do respectivo jogo dos elementos componentes. A essa objeção, responderemos com Magy (75) no encadeamento das proposições seguintes:

Na alma humana, como em toda a Natureza, encontramos em coexistência a força e a extensão. Os fatos de molde a revelar uma atividade própria, no ser pensante, são visíveis a cada passo, na mar­cha de nossos estudos.

Com efeito, a primeira condição do aprendi­zado é, para o nosso espírito, um esforço espon­tâneo para neutralizar as causas tendentes a nos manter na inércia e na ignorância, tais como os imperativos da vida social, as necessidades do cor­po, as paixões, a falta de aptidões, as dificuldades próprias do estudo.

Esse esforço preliminar não cessa com o início do estudo, mas, ao contrário, mantém-se e avulta no período das aquisições.

Preciso se faz uma atenção firme e persisten­te, para nos penetrarmos dos conhecimentos a que aspiramos. Essa atenção é tão indispensável ao colegial como ao maior dos gênios. Newton não

(75) De la Sciencie et de la Nature, página 63.

teria encontrado a atração universal senão por sua constante tensão espiritual. Arquimedes, absorvido na investigação de um problema, não dá pela to­mada de Siracusa e sucumbe trespassado pelo glá­dio invasor, como vítima — diga-se — do dinamis­mo da sua alma. Descartes lobriga em todas as coisas um motivo de meditação. E não sabemos, todos nós, que a Ciência só se adquire a preço de esforços perseverantes e depois de maturada con­tensão espiritual sobre o objeto do estudo?

Mais ainda: essa mesma energia, indispensável ao espírito para adquirir o saber, torna-se-lhe ne­cessária para conservá-lo. O melhor meio de reter na memória a Ciência está no concentrar-se demo­radamente em cada idéia ou fato, em dar conta mi­nudente dos processos de pesquisa utilizados pelos inventores, em lhes apreender o método e fixar, de qualquer modo, o estudo no cérebro. Estes fa­tos atestam que o ser pensante, no adquirir conhe­cimentos, os assimila mediante um trabalho que lhe é próprio, comportando-se com força individual. Agora, o modo fundamental de ação da causa inte­ligente prova, peremptoriamente, que essa força éindividual e não um conjunto de forças distintas.

Todas as operações da inteligência humana são análises sintéticas, ou sínteses analíticas, isto é: consistem essencialmente na decomposição de um dado todo, ou na coordenação de elementos distin­tos, em que cada qual intervém com a sua cota e toma o seu lugar lógico. — Qualquer que seja a ciência focalizada, nela se afirma a lei do espírito humano, sem a qual não haveria qualquer relação entre os diversos objetos do nosso conhecimento, nem a própria Ciência existiria. Desnecessário exem­plificar, no pressuposto de estarem os leitores assaz habituados com os processos intelectuais íntimos, para que bem os compreendam simplesmente enun­ciados na sua profundeza e universalidade.

Pois bem: se julgarmos a alma pela sua ação intelectual, reconheceremos, sem hesitação, que a força pensante não pode ser um agregado de for­ças elementares. De fato, como poderia a alma cen­tralizar todas as observações que se lhe impõem, grupar silogismos secundários em torno do princi­pal, associar julgamentos segundo as regras da Lógica, perceber a relação dos termos convenientemente enunciados, coordenar numa mesma intuição os fenômenos estudados, formular hipóteses, com­parar resultados? Como poderia, em suma, abstrair e generalizar, senão como força absolutamente sim­ples, indivisível e dotada da faculdade de tudo avo­car a si, como juiz único, em consciência única?

Os partidários da secreção cerebral repetirão, ainda uma vez, que essa alma pessoal não passa de uma resultante de todas as forças elaboradas pelos órgãos do cérebro e Sintonizadas num dina­mismo bem regulado, assim estabelecendo a unidade e harmonia do trabalho intelectual.c

Mas, este singular acordo de todas essas pe­queninas almas, para formarem uma grande alma, é hipótese mais complicada, e, por consequência, mais afastada que a nossa, da verdade natural. Ao invés de estabelecer a unidade da alma, ela a destrói. Localizando as faculdades nos diversos ór­gãos do cérebro, Gall declarava que todas elas são dotadas da faculdade de percepção, de atenção, de memória, de recordação, de julgamento e de ima­ginação! Que bela república! Quando uma que tal faculdade sobrepujar as vizinhas (o que a obser­vação demonstra em cada indivíduo), estas supor­tarão submissas o seu despotismo? Quando duas faculdades se desentenderem, por exemplo a de n. 5 (pendor para a morte) e a de n. 24 (bene­volência), quem dominará o antagonismo? Há que imaginar logo um generalíssimo e, neste caso, ofi­ciais e soldados tornam-se inúteis e o nosso general ficará sendo, simplesmente ele, o próprio espírito, pois, como acabámos de ver, dado o modo de ação intelectual da alma, bem como o testemunho da consciência, essa alma é única, idêntica e indivisível.

É fácil reconhecer o caráter dinâmico da alma em todas as suas manifestações. Se observarmos um espírito culto, o que logo se revela nele é uma sede insaciável de conhecimentos, é a força virtual da alma a traduzir-se em obras eloquentes.

Se baixarmos às camadas inferiores da socie­dade, a essas zonas penumbrosas onde a flama da instrução ainda não radia, vemos, não mais uma atividade em função intelectual, mas passional, um modo de atividade psicológica universal.

À tendência passional do indivíduo junta-se, ainda, a energia de uma paixão dominante, e a esta vontade que a combate, ou que a dirige. A facul­dade de vencer ou de nortear as suas paixões é, pois, ainda uma forma dinâmica da essência da alma. Se, enfim, baixarmos das nossas vontades particu­lares aos hábitos que elas engendram e mantêm em nós, chegaremos a reconhecer que todos os atos, desde a obra criadora do pensamento até o movi­mento mais simples de um membro, denunciam a força íntima que nos governa e se traduz em ato material, por intermédio dos centros nervosos, dos nervos e dos músculos. Sabemos que a fonte de todo o movimento orgânico reside no espírito. Nin­guém ousará negar que meu braço ou minha perna se movem ao impulso de minha vontade, qual se dá com a locomotiva à pressão do vapor, dirigida pelo maquinista. Meu corpo em si e por si só, e inerte. Descartes e Locke, neste ponto, estão de acordo com Leibnitz. O pensamento é ação da alma: será preciso mais para sustentar que a alma é for­ça? O próprio Cabanis não anda longe de o con­fessar, quando diz que “para ter uma idéia justa das operações que originam o pensamento, importa se considere o cérebro como um órgão particular, especialmente destinado a produzi-lo, assim como o estômago e os intestinos se destinam a operar a digestão; o fígado a filtrar bílis, as parótidas e as glândulas maxilares ao preparo da saliva. As impressões, atingindo o cérebro, fazem-no entrar em atividade e sua função peculiar é perceber cada impressão particular, ligar os sinais, combinar as diferentes impressões, compará-las entre si e tirar ilações e determinações, tal como a função dos ou­tros órgãos é atuar sobre as substâncias nutritivas, cuja presença os estimula, dissolvendo-os e assimi­lando-lhes os sucos”. Cabanis acrescenta que essa maneira de ver levanta “a dificuldade suscitada por quantos, em considerarem a sensibilidade uma faculdade passiva, não compreendem como julgar, raciocinar, imaginar, não seja outra coisa que sen­tir. A dificuldade desaparece quando se reconhece nestas diversas operações a ação do cérebro sobre as impressões que lhe são transmitidas”. Conse­quentemente, notaremos nós com Magy, segundo os fisiologistas menos espiritualistas, o cérebro é um sistema cuja função é produzir e elaborar o pensa­mento, que assim se torna, literalmente, dele re­sultante. Aí, param eles, sem perceberem que, por tudo explicarem, só lhes resta uma palavra a acres­centar.

Todos quantos — em face da correlação no­tável que une a alma ao corpo em todas as ma­nifestações destes dois princípios — afirmam a identidade substancial da força pensante e da ener­gia cerebral, assemelham-se aos que dão à maté­ria atributos divinos. Eles transferem ao cérebro as faculdades inerentes ao Ser pensante, que a cons­ciência revela no fundo de nossa atividade íntima.

Todas as vossas pretensões se evaporam, o desprezadores da Inteligência! A Humanidade em peso vos impõe este vocábulo imperecível — Alma. E cada ser pensante afirma, em particular, o Eu que rege, que centraliza sua própria vida. Em vão procurais ligar essa personalidade a um movimento material da medula espinal! A isso oponho eu, vitoriosamente, a minha potência intelectual, que diz:

eu penso, eu julgo, eu quero; essa potência inata­cável, que considera o visível como o invisível, o material como o imaterial, o presente, o passado, o futuro; que não pode filiar-se à matéria, de vez que sua vida e atos se completam no mundo moral.

Oponho-vos, enfim, meu pensamento, que a vós se dirige fremente pelo vosso atentado, e que, por esta mesma palavra, através destas linhas, ates­ta-vos a minha existência individual, quanto afirma a minha personalidade. Pretendereis que este pro­testo possa provir de um lóbulo do meu cérebro?

Não, meus senhores, parai com o gracejo; eu sei (e vós também) que quem aqui vos fala é o meu es e não um nervo ou uma fibra...c

Por encerrar este capítulo concernente à perso­nalidade humana, poderíamos acrescentar algumas reflexões sobre uns tantos motivos de estudo, ainda misteriosos e nada insignificantes. O Sonambulis­mo natural, o Magnetismo e o Espiritismo oferecem ‘aos pesquisadores sérios, capazes de os entestar cientificamente, fatos característicos, que bastariam para mostrar a insuficiência das teorias ma­terialistas.

É triste, confessamo-lo, para o observador consciencioso, ver o charlatanismo descarado intro­meter-se, ávido e pérfido, em causas respeitáveis; triste, assinalar que noventa por cento dos fatos podem ser falsos, ou imitados. Mas, um só fato, bem averiguado, é suficiente para baldar todas as explicações. Ora, qual a atitude de uns tantos dou­tos diante desses fatos? Negá-los sumàriamente.

“Á Cíência está convicta, diz Büchner, em par­ticular, de que todos os presumidos casos de cla­rividência não passam de conluios e trapaças. A lucidez, por motivos de ordem natural, é impossí­vel. É imperativo das leis da Natureza que os efei­tos dos sentidos se adstrinjam a determinados e in­transponíveis limites no espaço. A ninguém é dado adivinhar pensamentos, nem ver de olhos fechados o que se passa em torno. Verdades são estas bus­cadas em leis naturais, imutáveis e sem exceções.”

Ó senhor juiz! conheceis vós todas as leis na­turais? Nada existirá oculto para vós na Criação? Feliz, vós, que ainda não sucumbistes à sobrecarga da vossa ciência! Mas, como? Eis que viro duas páginas e leio: — “O Sonambulismo é fenômeno do qual não temos, infelizmente senão observações muito inexatas, nada obstante carecermos de noções precisas, atendendo à Importância que ele tem para a Ciência.

“E todavia, sem dados certos (vêde bem), élícito relegar à conta de fábulas todos os fatos maravilhosos extraordinários, que se atribuem aos sonâmbulos. A um só, destes, não é permitido es­calar os muros, etc.”. Sensato que é o vosso ra­ciocínio!

E como teríeis bem procedido se, antes de es­crever, procurásseis conhecer um pouco os assuntos que abordais!

Os observadores filósofos que nos ouvem, sa­bem que certos fatos da vida psíquica são absolu­tamente inexplicáveis pela hipótese materialista, e que, uma vez rigorosamente comprovados podem, só por si, desmantelar o bailéu.

Sem que se torne preciso aqui insistir sobre este aspecto da questão, convém notar que é im­possível admitir a alma como produto químico, ou dinâmico, quando sabemos que ela manifesta, em dadas circunstâncias uma personalidade distinta, uma natureza incorpórea e faculdades indepen­dentes.

Portanto, voltando às conclusões precedentes temos: contradição da unidade psíquica com a mul­tiplicidade dos movimentos cerebrais, contradição entre a identidade constante da alma e a mutabi­lidade incessante dos elementos constitutivos do cé­rebro, contradição entre o caráter dinâmico da alma e as pretensas secreções orgânicas. Contradições contradições e sempre contradições!

Se os adversários acham que elas não bastam, o exame dos fatos de volição lhes vai facultar um novo discernimento.

3

A VONTADE DO HOMEM

SUMÁRIO — Exame e contestação desta assertiva: “a Matéria governa o homem”. — Se é verdade que a vontade e o individuo não passam de Ilusão. — Se consciência e julgamento dependem da alimentação. Exemplos históricos da força de vontade e caráter de grandes homens. — Coragem, perseverança e vir­tude. — As faculdades Intelectuais e morais nada têm com a Química. — Divagações curiosas, feitas à mar­gem do Reno. — Influência dos legumes no progresso espiritual da Humanidade. Liberdade moral. — As­pirações e afecções Independentes da Matéria. — Espí­rito e corpo.

“Dizia Zélter a Goethe que um dos maiores obstáculos que impediam os alemães de falar o seu idioma tão espontânea e correntemente como outros povos, provinha de certa pressão da língua, pelo fato de muito se alimentarem de vegetais e gordu­ras. É verdade que não temos outra coisa, mas a sobriedade e a prudência muito podem remediar e corrigir” (76).

É com esta advertência que Moleschott abre o grande capítulo epigrafado: a Matéria governa o Homem, sem perceber que a segunda frase do pa­rágrafo traz consigo a condenação que ele vai especar, das correlações alimentares com o estado físico e intelectual do homem. Quando o velho com­panheiro de Goethe lhe observa que a sobriedade e a prudência podem fazer e corrigir muitas coisas, prova, por isso mesmo, que ele não se julga tão

(76) Briefwchsel ziwischen Goethe und Zelter, 1º, 113.

somente uma composição material, mas, também, uma força mental, capaz de tirar de si mesmo resoluções contrárias às tendências da matéria. Vamos, com efeito, acompanhar a argumentação materialista que, aqui como alhures, peca sempre pela base e não se mantém senão por uma espécie de equilíbrio instável, que um piparote de criança pode desmantelar. O adversário de Liebig pretende demonstrar que a matéria governa o homem, esta­belecendo que a alimentação atua sobre o orga­nismo. Como tema de Fisiologia, estes fatos são interessantes e instrutivos, e a nós nos praz o en­sejo de os resumir aqui; mas, como tema de Filo­sofia, eles se nos afiguram o que possa haver de mais incompleto. Consideremo-lo prêviamente: O quadro deste capítulo vai oferecer-nos, por sua pró­pria natureza, um duplo aspecto. No verso, dese­nhado pela Fisiologia contemporânea, notaremos a ação física dos alimentos no organismo, e no re­verso veremos que a mesma está longe de constituir o homem integral, e que o ser humano reside numa potência superior às transformações da bílis e do quilo, potência que governa a matéria e longe está de se lhe escravizar.

Invoca-se, em primeiro lugar, a diferença do regime alimentar, vegetariano ou carnívoro. Legumes e hortaliças contêm pouca água, poucas gor­duras e quarenta vezes menos albumina que a car­ne. Analisando os sais contidos nestas substâncias opostas, concluíram que o regime carnívoro au­menta os fosfatos no sangue, e o vegetariano, pelo contrário, desenvolve os carbonatos. De resto, as substâncias albuminosas das partes verdes da plan­ta não são a albumina, nem a fibrina. Preciso é, pois, que elas sofram essa primeira transformação, antes de se incorporarem ao sangue. As gorduras vegetais, por sua vez, não são verdadeiras gorduras, mas tão só adipogenias, ou seja, elementos que originam gordura e, portanto, precisando sofrer uma primeira transformação. Há razão para dizer que a diferença de ação da carne começa a fazer-se sentir no sangue antes dele formado, isto é, na san­guificação, na digestão.

Esses alimentos serão tanto mais facilmente digeridos, quanto mais os seus elementos constitu­tivos se identificarem com os do sangue. Daí re­sulta que a carne, mais que o pão e os legumes, aproveita à sanguificação. O comprimento dos in­testinos relaciona-se com este processo de digestão, de acordo com as substâncias, permitindo-nos fazer dele uma idéia. Nos morcegos, que só se nutrem de sangue, o tubo intestinal não passa do triplo do comprimento do corpo. No homem, cujo regime é misto (o que igualmente se indicia pelo siztema dentário, composto de caninos e incisivos), o com­primento do intestino é o sêxtuplo da altura. No carneiro, herbívoro, o intestino é vinte e oito vezes mais longo que o corpo. Todos os animais carní­voros têm estômago pequeno. O estômago humano tem a forma de um reservatório, atravessando a cavidade abdominal, provido de um beco sem saída, maior que nos pré-citados animais. Os ruminantes, por guardarem a forragem, têm um estômago de quatro compartimentos.

O homem tem a construção do onívoro. De passagem, diga-se, as velhas prescrições pitagóri­cas, tanto quanto as modernas proposições de Rous­seau e de Helvétius a favor do regime animal, devem ser rejeitadas como antinaturais.

Sendo os vegetais menos nutrientes que os ani­mais, o pão ocupa um lugar intermediário. No glúten que o compõe, dois corpos albuminóides se distinguem: albumina vegetal, insolúvel, e cola ve­getal. Estas substâncias diferem da fibrina da car­ne e devem dissolver-se nos sucos, durante a di­gestão. No pão há menos gordura que na carne, mas há o amido e o açúcar, que devem transfor­mar-se em gordura ao perderem uma parte de oxi­gênio. Destas comparações decorre que o sangue, e com ele os músculos, os nervos, a carne e todos os tecidos, se renovam mais rapidamente no regime carnívoro.

Infere-se daí, que, sendo o sangue o fator dos tecidos, das secreções e excreções orgânicas, e ain­da porque se modela pela alimentação do homem, a diferença primordial, assinalada entre os regimes vegetal e cárneo, deve estender sua influência a todos os fenômenos da vida.

Detivessem-se eles nesta conclusão e nada tería­mos a objetar. Dizemos, com os antagonistas, que o apetite de um homem sadio se apazigua antes com um bife do que com uma salada. Consentimos em admitir que, se as raças de índios caçadores revelam força muscular notável, ao passo que os insulares do Pacífico se apresentam fracos (rela­tivamente), é porque estes se alimentam de ervas e frutos e aqueles de muita carne. Concedemos, igualmente, que a indolência e falta de caráter dos Hindus prenda-se um tanto ao seu regime herbí­boro; — que o filósofo Haller tivesse razão para acusar uma tal ou qual inércia com o vegetarismo de alguns dias; — que, por um efeito inverso, uma divisão do Exército a que pertencia Villermé, na guerra de Espanha, fôsse atingida de diarréia (re­levem a citação que é literal), de magreza e debi­lidade, por ter sido forçado a se alimentar só de carne durante oito dias. Concordamos, também, que os índios do Óregon só comem raízes, durante um longo período do ano, das quais vinte espécies são nativas — com o que muito nos prazemos — e que as tribos se movem de uns a outros lugares para captá-las, visto não maturarem senão sucessi­vamente. De boamente aceitamos que, vigente ain­da, no Malabar, a crença na metempsicose, por lá existam hospitais para animais e se alimentem, nos templos, ratos cuja vida é sagrada. Sabemos, mais, que os islandeses, Kanitschadales, Lapônios, Sa­moledos, só podem alimentar-se de peixe durante um certo período do ano, enquanto que os caçadores das planícies americanas só comem carne de bisão. Concordamos, enfim, sem relutância e sem provas, que “basta comer marmelada ou maçã para alca­linizar a urina” e que os franceses emitem menos uréia que os alemães, aliás muito distanciados dos ingleses — o que prova consumir-se em Londres 1,6% da carne consumida em Paris — e, por fim, não estranhamos que as graciosas passeantes, mais que o transeunte vulgar, encareçam a vantagem de aumentar os mictórios públicos de Paris ou dar-lhes, no mínimo, outros dispositivos. Efetivamen­te vos damos, ou melhor — consentimos tomeis, àvontade, tudo quanto pedirdes em Fisiologia... Mas, na verdade, que relação tem tudo isso com a prova da personalidade humana? Com franqueza:

que aclaramento essas experiências trazem ao as­sunto? Onde e como essa química demonstra a inexistência da alma? E que fazeis do método cien­tífico, que recomenda não proceder senão por indu­ções ou deduções? Que mancebia é essa com a esco­lástica dos nossos avós?

Certo, não sabemos o que mais admirar: se a audácia, se o erro destes fisiologistas, levando-nos à borda do abismo e dizendo-nos: saltai! Será que acreditem ter lançado uma ponte com algu­mas teias de aranha? Na verdade, é preciso encarar o espírito humano como um cego de nascença, para pretender adormentá-lo com semelhantes processos. De fato, quem se não admirará de saber que, como conclusão de fatos mais ou menos incompletos, quais os precedentes, apresentem-nos a seguinte e enfá­tica declaração:

— Observações numerosas e experiências feitas em grande escala, provam que o homem deve, em parte, a sua privilegiada situação, em relação aos animais, à faculdade de se ali­mentar ora de vegetais, ora de carne (77).

(77) Cireulation de la Vie, 2º, 69.

* A matéria é a base de toda a força espiritual, de toda a grandeza humana e terrestre (78).

* O vocábulo alma, considerado anatomicamente exprime o conjunto das funções cerebrais e da medula espinhal, e, fisiologicamente o conjunto das funções da sensibilidade en­cefálica (79).

* A análise não encontra na consciência, neste augusto instinto, nesta VOZ imortal, mais que um simples mecanismo, que se desmonta como qualquer aparelho (80).

A estas afirmações não falta Ousadia. Mas, depois das declarações negativas por nós registadas no capítulo anterior, de nada mais nos podemos admirar.

Se é verdade que os temperos auxiliam a di­gestão - diz Moleschott — e o pão de rala, as frutas (especialmente figos) ingeridos em jejum e regados com um copo dágua fria desenvolvem o ventre; se os rabanetes o alho, a baunilha, esti­mulam o sensualismo, e se o vinho o chá e o café atuam sobre o cérebro claro está que a matéria governa o homem...

Sobre isso, não tínhamos dúvidas. Sabeis o que é preciso para adquirir eloquência? É não comer nozes nem amêndoas E como a Voz e a palavra dependem, ao que parece, dos movimentos muscu­lares da laringe, é preferível o regime vegetal ao gorduroso

Quereis uma prova da correlatividade essencial de pensamento e matéria? Olhai o fundo da Vossa xícara de café. Este, tal como o barco a Vapor e o telégrafo põe em atividade uma série de pensamentos, origina uma corrente de idéias, de empreendimentos

(78) Force et Matière, capítulo 5º.

(79) Dictionnaire des Sciences Médicales.

(80) Taine — Philosophes Français.

com ele. É evidente que a necessidade oriunda de uma afinidade eletiva da Humanidade pelo café e pelo chá, tornou-se mais imperiosa e generalizada, à proporção que aumentaram as exigências intelectuais da Civilização.

Eis ainda um outro fato de importância capi­tal. Os Kamstchadales e os Tongouses embriagam­-se com o seu aguøric vermelho e parece que os servos, desejosos de conhecerem a sensação dessa bebida, não trepidam em beber a urina dos seus amos.

Logo, portanto, é a matéria que governa o homem — conclui espirituosamente o Sr. Moles­chott...

Num tal sistema, qual já o temos entrevisto, é claro que o livre arbítrio fica completamente aniquilado. O próprio Moleschott o declara. Não somente o ar que a cada momento respiramos transforma o sangue venoso em arterial; não só transmuda os músculos em creatina e creatinina; o músculo do coração em hipoxantina; o tecido do baço em hipoxantina e ácido úrico; o humor vítreo dos olhos em uréia, como refunde a todo instante a composição do cérebro e dos nervos, O mesmo ar que respiramos, muda diàriamente, não é nas matas o que é nas cidades, não é sobre os mares o que é no cimo das montanhas, nem ao nível das ruas o que é no alto de uma torre. Alimentação. nascimento, educação, convivência, tudo, em torno de nós, rola num movimento que se comunica cons­tantemente.

— Proposições verdadeiras, estas, provam que o homem está envolvido no âmago de um mundo a cujas influências não pode eximir-se, e provam também; quem sabe, que o livre arbítrio não é tão absoluto quanto afirmam alguns psicólogos entu­siastas. Mas, o que essas verdades não provam, éa inexistência da vontade humana.

Não são todos os materialistas que levam sua excentricidade ao ponto de afirmar que a criatura humana não tenha Consciência de que existe, para que deixe de ter a liberdade de seus próprios atos e resolução.

Büchner é menos exagerado. Dizemos com ele, que o homem é obra da Natureza que a sua pes­soa, ações, pensamento e mesmo vontade, estão submetidos as leis que regem o Universo. As ações e a conduta do indivíduo dependem, incontestávelmente, da sua educação do caráter, dos costumes, da Índole do povo e da nação a que pertence e esta nação e, por sua vez, e de certo modo, o pro­duto do ambiente em que vive e das relações exte­riores que lhe entretiveram o desenvolvimento.

Pode-se por exemplo notar com Deser que o tipo americano se desenvolveu com os primeiros colonos ingleses há dois e meio seculos.

É um resultado que se pode atribuir a influências climáticas

O tipo americano distingue-se pela sua com­pleição, pelo pescoço alto, pelo temperamento di­nâmico e ardoroso. O pouco desenvolvimento do sistema glandular, que dá às americanas essa ex­pressão terna e vaporosa; a espessura, o compri­mento e a secura do cabelo, podem provir da secura do ar. Há quem Suponha ter notado que a agita­ção dos americanos aumenta com os ventos do Nor­deste. Destes fatos se infere que o grandioso e rápido progresso dos Estados Unidos seria, em par­te, devido ao meio físico.

Tal como na América, os ingleses originaram um novo tipo na Austrália, notadamente em a Nova-Gales do Sul. Aí, os homens são altos, magros, musculosos, e as mulheres belíssimas, mas, de uma beleza efêmera Os “novos Colonos dão-lhes o ape­lido de Cornstalks (palha de trigo), O caráter in­glês ressentesse do firmantento nebuloso, do ar pesado, dos estreitos limites da terra natal. O ita­liano, pelo contrário, reflete em tudo o céu sempre belo e o Sol sempre ardente da sua pátria. (E Contudo, os romanos muito têm mudado de 2000 anos a esta parte.) As idéias e contos fantásticos do Oriente, estão intimamente ligados à luxuriante vegetação que lhes moldura o berço. A zona glacial não produz mais que raquíticos arbustos e as­sim, também, uma raça mofina, nada ou pouco acessível ao progresso. Os habitantes da zona tór­rida também pouco se adaptam a uma cultura su­perior. Só nos países onde o clima, o solo e as relações ambientes oferecem um certo meio-termo, pode o homem equilibrar-se e adquirir um grau de cultura preponderante sobre os seres e as coisas que a rodeiam.

Todas estas observações não provam, porém, que a matéria governe o homem e que a vontade e a individualidade sejam uma ilusão. Cumpre, mes­mo, advertir ao autor de Força e Matéria, que, an­tes são os indivíduos que fazem as nações e não estas os indivíduos. Qual o dizia Stuart Mili, o mérito de um Estado está, em tese, no dos indiví­duos que o compõem. Não são as instituições, nem as leis, nem os governos que fazem a grandeza das nações, mas o valor e a conduta dos cidadãos. É, pois, da individualidade dos homens que depende o progresso dos povos, e não de suas condições ge­rais. Em vão se dirá que esta individualidade mais não é que o resultado preciso das disposições do corpo: — educação, instrução, exemplo, fortuna, posição social, sexo, nacionalidade, clima, solo, épo­ca, etc. No ser humano existe uma força trans­cendente a tudo isso, uma força que os negativistas não querem ver e procuram ocultar no nevoeiro de sua paralogia. Assim como a planta — dizem eles — depende do terreno em que radica, não somente em relação à sua existência, mas ainda ao seu tamanho, forma e beleza; assim também o animal é grande ou pequeno, manso ou bravo, bonito ou feio, conforme as influências extrínsecas, assim também o homem físico e intelectual é o fru­to dos mesmos fatores, dos mesmos acidentes e dis­posições, e nunca o ser espiritual, independente e livre, que os moralistas nos pintam... Esses senho­res protestam quando lhes chamamos espirituaís, e nós persistimos na amabilidade Mas, sem cons­tituir uma exceção a seu favor, temos o direito de Sustentar a espiritualidade humana e apagar, com O exemplo de grandes Vontades, essa teoria cre­puscular, que conceitua as resoluções do homem uma função barométrica

É preciso fechar voluntàriamente os olhos aos eventos mais belos e respeitáveis da História, pre­ferir tristes abstrações a verdades gloriosas, sacri­ficar venerandos monumentos do pensamento à qui­mera de uma idéia fixa, para ousar assim negar o poder da vontade, o valor de sua energia, a in­dependência de sua resolução, os milagres mesmos de sua persistência e substituí-lo por uma sombra difusa e vaga, dependente dum sol teatral. Na ver­dade, não vemos a vantagem desta substituição. É desconhecer a grandeza do homem o afirmar que os seus atos não passam de resultado necessário e fatalístico dos seus pendores físicos, tendências orgânícas e propensões materiais. É degradar-lhe a dignidade abaixo do nível da mediania intelectual e é colocar-se em contradição com os exemplos mais brilhantes que constelam a fronte da Humanidade por coroá-la de glória imperecível Abordemos, em todas as suas fases, os anais da Humanidade; con­sultemos, sobretudo, as páginas do nosso século, já tão engrandecido de invenções fecundas e entre­vistas Possibilidades logo nos convenceremos de que o gênio não é simplesmente resultante de con­dições materiais e muito menos de uma enfermidade nervosa, senão que se afirma por uma força superior a todas as contingéncias e que muitas vezes o tem dominado guiado e vencido. Longe de encarar o homem como um ser inerte, cujas obras não passassem de efeitos instintivos, de há­bitos, necessidades apetites e predisposições orgâ­nicas, nós proclamamos, com a autoridade dos fatos, que a inteligência governa a matéria, e que o valor do homem consiste, precisamente, nessa ele­vação, nessa soberania da inteligência.

Para ilustrar o asserto e invalidar, exemplifi­cando, a audaciosa afirmativa destes campeões da matéria, lancemos um olhar ao panorama intelec­tual da Humanidade, e a todos quantos sentem pulsar-lhe no peito um coração patriótico, apresen­temos-lhes — bem como aos jovens indecisos, que, mal transpondo os pórticos da vida prática, pu­dessem deixar-se embair pela mentira materialista, acarretando para si a própria ruína — apresente­mos-lhes, sim, o quadro tão grato aos nossos sen­timentos, tão útil às nossas vistas e tão imponente às nossas aspirações, desses homens enérgicos saí­dos das mais ínfimas camadas sociais, para eleva­rem-se, pelo próprio esforço, à conquista do mundo e às culminâncias do pensamento soberano.

Num belo livro, cujo título exótico não é bas­tante claro nem cativante, mas, que deveria andar em mãos de toda a mocidade francesa (Self-Help, ou Caráter), um homem honrado, que é Samuel Smiles, reuniu exemplos desses vultos valorosos que venceram todos os percalços na vida e foram, por assim dizer, a refutação viva desta singular teoria, que tende a rebaixar o homem, em vez de o ele­var. É por exemplos tais, que a alma se eleva para a verdade do seu ideal. Julgamos de nosso dever homenagear aqui esse panteão de benemé­ritos exemplares, cujo panegírico deveria ser espa­lhado aos quatro ventos.

Os fatos a seguir, de ordem geral ou particu­lar, e as considerações que eles sugerem, oferece­mo-los aos que repetem com Moleschott, Büchner e seu rancho, que o homem segue os seus pendores e a reflexão nada vale à face das inclinações e tendências, sejam naturais ou adquiridas.

Sábios, literatos, artistas, todos quantos se votam ao apostolado das mais transcendentes ver­dades e todos quantos se enobreceram pelas vir­tudes do coração, jamais sairam privativamente de uma classe ou de uma carreira da hierarquia social. Ao contrário, saíram indiferentemente da oficina, como da lavoura, da cabana, como do palácio. E os mais• humildes atingiram, por vezes, os postos mais culminantes, vencendo dificuldades aparentemente insuperáveis, que lhes atravancavam o ca­minho. Em muitos casos, parece que essas dificul­dades foram seus melhores auxiliares, obrigando-os a empregar todo o esforço possível no trabalho perseverante, e assim vivificando faculdades que, de outra forma, poderiam permanecer adormecidas.

O exemplo de obstáculos assim transpostos, os triunfos assim alcançados são tão numerosos, que justificam, quase inteiramente, este provérbio: com boa vontade tudo se consegue.

Grande número dos que mais se distinguiram na Ciência, nasceram em condições sociais havidas como incapazes de proporcionar talentos, máxime científicos. Em lugar das combinações químicas do hidrogênio e fósforo, em vez dos efeitos da ele­tricidade dos nervos, apresentamos estes grandes caracteres, que, do fundo das camadas sociais mais obscuras, se elevaram aos pináculos da Ciência, a saber: Copérnico, filho de um padeiro polonês; Ga­lileu, perseguido por amor à verdade; Képler, filho de um taberneiro e caixeiro de taverna, por sua vez, atormentado sempre com a sua miséria pe­cuniária; d’Alembert, enjeitado e encontrado pela mulher de um vidraceiro, nas escadas de uma igre­ja, certa noite invernosa; Newton e Laplace, o pri­meiro, filho de um pequeno proprietário de Gran­than, e o segundo, de um pobre campônio de Beau­mont, perto de Honfleur; W. Herschell, organista de Halifax; Arago, devendo toda sua glória à per­severança no estudo desde jovem; Ampère, pes­quisador solitário; Humphry Davy, criado de um farmacêutico; Faraday, encadernador; Frânklin, aprendiz de tipógrafo; Diderot, filho de um cuti­leiro; Cuvier, Geoffroy Saint-Hilaire e cem outros; o físico Hautefeuille, filho de um padeiro de Orleâes; Gassendi, pobre camponês dos Baixos-Alpes; o mineralogista Hüy, filho de um tecelão; Buffon, que exigia, para levantar e combater a preguiça, que o acordassem a jatos de água fria (sua saúde, mau grado ao que dizem nossos adversários, para nada lhe serviu e seus maiores trabalhos foram realizados no curso de longa e cruel enfermidade); o químico Vauquelin, aldeão de Saint-André d’Hé­bertot (Calvados), que, depois de servente de far­mácia, chega a Paris de saco às costas, com um escudo na algibeira.

Em que o azoto e o fósforo entravam na se­creção da vontade destes sábios ilustres, e de que maneira o carbono se comportou para os levar ao fastígio da projeção intelectual? Mau grado às cir­cunstâncias desfavoráveis com que houveram de lutar no início da vida, estes homens eminentes alcançaram, pelo só exercício de suas faculdades, uma reputação sólida e duradoura, qual lhes não granjeariam todos os tesouros da Terra.

De nossa parte, citaremos agora os cirurgiões John Hunter, Ambrósio Paré e Dupuytren, nasci­dos de condições humildes.

Conta-se que Dupuytren, quando no colégio da Marcha, ocupava com outro colega um quarto que tinha por todo o mobiliário três cadeiras, mesa. e uma espécie de cama, na qual se alternavam para o repouso. Tão exíguos eram seus recursos, que, muitas vezes, passavam a pão e água. Dupuytren começava o trabalho às 4 horas da manhã e nós sabemos, hoje, que ele foi o maior cirurgião do seu tempo. Citaremos, ainda, José Fourrier, filho de um alfaiate de Auxerre, o naturalista Coara-do Gesner, cortidor de Zurich. Citaremos mais Pe­dro Ramas, Shakespeare, Voltaire, Rousseau, Moliê­re, Beaumarchais, grandes obreiros do pensamento, que derrubaram, exclusivamente com a sua força mental, as barreiras que as castas sociais opunham ao vulgo.

Fácil nos seria exarar infinitos exemplos deste quilate. Em todos os ramos da atividade humana: - Ciências, Belas-Artes Literatura, Comércio, In­dústria, eles são tão numerosos que chegam a difi­cultar a escolha entre tantos homens notáveis cujo êxito lhes adveio somente do trabalho e paciente esforço (81). Basta, por exemplo, lançar um olhar aos domínios da Geografia e assinalar entre os grandes descobridores Cristóvão Colombo, filho de um cardador de Gênova; Cock, caixeiro de uma loja no Yorkshire, e Livingstone operário de uma fia­ção de tecidos perto de Glaacow Entre os papas, Gregório 7º nasceu de um carpinteiro Sixto 5º de um pastor e Adriano 6º de um pobre canoeiro. Na sua juventude, pobríssímo Adriano impossibilitado de comprar uma vela, preparava as lições ao relento, aproveitando a iluminação pública. Nin­guem lobriga em tudo isto a influência do oxigênio.

Não é senão pelo exercício autônomo de suas faculdades que uma criatura pode adquirir o saber e a experiência que. reunidos, produzeM a sabedo­ria. E, qual dizia Franklin é tão pueril esperar a posse destes bens sem esforço e sem trabalho, quanto o seria contar com uma colheita em ter­reno sem lavra nem semeadura.

Dois irmãos, provindos do mesmo Casal, podem receber a mesma educação, ter a mesma liberdade de ação, viverem juntos, nutrirem-se do mesmo ar e dos mesmos alimentos e nada impedirá que um se torne ilustre e outro fique na mediocridade. A quanta gente se poderiam endereçar estas palavras do velho bispo de Lincoln ao irmão, homem indo­lente, que lhe pedia fizesse dele um grande ho­mem: — “certo, se a tua charrua se quebrar, posso mandar reconsertá-la, e se te morrer um boi posso

(81) V. Flammarion — Les Heros du Travail, discurso Inaugural da Associação Politécnica do Alto Marne, (1866) e conferência pronunciada no Asilo Imperial de Vincenes Compreende-se que não possamos aqui chamar a atenção para esses fatos Importantes e antepô-los simplesmente às fantasias materialistas.

comprar-te outro; mas não posso fazer de ti um grande homem, de vez que lavrador te encontrei e sou obrigado a deixar-te como tal”.

Riquezas e bem-estar não são indispensáveis ao desenvolvimento das altas faculdades humanas, pois, se assim fora, não haveria no mundo, e de todos os tempos, notabilidades desabrochadas das mais íntimas camadas sociais. A química alimen­tar nada tem que ver com a produção intelectual.

Longe de ser um mal a pobreza, quando pro­vida de energia e iniciativa pessoal, pode transfor­mar-se em benefício, de vez que faz sentir ao ho­mem a necessidade de lutar com o mundo, onde, a despeito dos que compram o bem-estar a preços degradantes, também há confiança, justiça e triun­fo para os valorosos e honestos. A fortuna há mes­mo, muitas vezes, prejudicado os seus privilegiados. Em compensação, encontramos exemplos favoráveis à nossa tese, entre aqueles que, inspirados pela fé ou ciosos da felicidade do seu próximo renun­ciaram, voluntàriamente, aos gozos mundanos, aos poderes e honras da Terra, descendo de sua posição culminante para dedicar-se à beneficência e instru­ção das massas.

“O mundo é escravo da energia, dizia Aleixo de Tocquevlle, nem houve fase de vida, na qual pu­déssemos conceber repouso; a luta interior, e mais ainda a exterior, é necessária e tanto maiormente necessária, quanto mais envelhecemos. Comparo o homem a um viajante que caminha, sem parar, para uma região cada vez mais fria e que, quanto mais avança, mais precisa agitar-se. A grande en­fermidade da alma é o frio e para combater esse mal temível é preciso, não só manter ativo o espí­rito pelo trabalho, mas também pelo contacto dos semelhantes e dos negócios temporais.”

Estas palavras, justificou-as o seu autor com o exemplo pessoal.

Em plena atividade, ei-lo que perde a vista e, depois, a saúde, mas não perde nunca o amor à verdade. Ainda quando combalído a ponto de ser carregado ao colo como qualquer criança, a sua indômita coragem não o abandona Completamente cego e Inválido, nem por isso encerra a sua car­reira literária, justificando-a com estas nobres pa­lavras bem dignas de serem contrapostas à hipótese materialista. «Se como me praz acredttar, o inte­resse da Ciência se inclui em o número dos grandes interesses nacionais, eu dei ao meu país o que lhe da o Soldado mutilado no campo de batalha.

“Seja qual for o destino dos meus trabalhos, também espero que este exemplo não ficará per­dido. Quereria eu que ele servisse para combater essa debilidade moral, que é a moléstia da nova ge­ração; que pudesse reconduzir ao caminho reto da vida alguma dessas almas enervadas que se lamen­tam de lhes faltar a fé, sem saberem onde buscá-la, e que, procurando por toda a parte, em parte algu­ma encontram objeto de Culto e devotamento.

“Porque dizer, com tanto amargor, que não há ar para todos os Pulmões, emprego para todas as inteligências? Não temos aí o estudo sério e cal­mo? Não haverá nele um refúgio uma esperança, uma carreira ao alcance de todos nós? Com ele, atravessemos os dias aziagos sem lhes sentir o peso. Com ele construímos o destino, usamos nobremente a vida. Eis o que faço e voltaria a fazer ainda, se houvesse de recomeçar a marcha, a fim de re­encontrar-me justo onde me encontro. Cego e pa­decente, Posso dar um testemunho que, penso, não será Suspeito: o de haver no mundo algo melhor e maís valioso que os gozos materiais que a for­tuna e até a saúde: — o devotamento à Ciência.”

Preferimos sentimentos que tais à química da inteligência. Estendemo-nos confiadamente nestes exemplos porque, acima de tudo, dão testemunho do verdadeiro caráter do homem Superior e da absurdidade dos materialistas que ousam reduzir esse caráter a simples função da matéria, a uma disposição natural do cérebro. Não queremos concluir o protesto sem falar em Bernardo Palissy, ho­mem cuja vida vale por um protesto formal à hi­pótese dos nossos adversários.

Lembremos, em primeiro lugar, que Palissy nasceu em 1510, sendo seu pai um pobre vidraceiro da Capela Biron. Não pôde, assim, receber a menor instrução, não teve, qual confessava ele próprio, “outro livro além do céu e da terra, que a toda gente é dado ler e entender”. Aos vinte e oito anos, paupérrimo, instalou-se numa choupana, em Saintes, como agrimensor e pintor de vidros. Casado e pai de filhos cuja subsistência se lhe tornava im­possível, concebeu a idéia fixa de fabricar louça vidrada e imitar Luca della Róbia. Na impossibili­dade de viajar pela Itália, para aprender a técnica, houve de resignar-se a investigar, tateante, no ambiente acanhado em que se encontrava.

Depois de muito conjeturar sobre as matérias que entravam na composição do esmalte, fêz de­moradas experiências e acabou reunindo as subs­tâncias que lhe pareceram adequadas. Comprou potes de barro comum, quebrou-os e recobriu os fragmentos com as massas que preparava, subme­tendo-as ao forno para tal fim construído. As ten­tativas falhavam e o que só conseguia era potes quebrados, com grande prejuízo de carvão, de subs­tâncias químicas, além de tempo e trabalho.

Afrontando as lamentações da esposa, o choro ­dos filhos e a ironia dos vizinhos, nem assim de­sanimava. Sua companheira não se conformava com o ver assim dissipar-se em fumo os já minguados recursos domésticos. Contudo, haveria de subme­ter-se, de vez que o marido estava empolgado por uma idéia que ninguém e nada no mundo lhe deu­vaneceria.

As experiências prosseguiam por meses e anos. Descontente com o primeiro forno, construiu outro fora de casa. Neste, queimou outra lenha, esper­diçou outras drogas e potes, perdeu tanto tempo­ e dinheiro que acabou caindo em extrema miséria. Sem embargo, persistiu. Obstinação cruel!

Não mais podendo acender o seu forno, levava o material a uma fábrica distante légua e meia e o fracasso continuava. Desapontado, mas não desen­ganado, resolve, então, construir um forno para vidro, perto de casa. E o fêz ele mesmo, com as próprias mãos. Conduzia da olaria, às costas, o tijolo; ajustava-o, emboçava-o; era pedreiro, carre­gador, oleiro, tudo! Ao fim de um ano, ei-lo com o seu novo forno e os vasos preparados para uma nova experiência. Apesar do esgotamento quase absoluto dos seus recursos, conseguira acumular grandes reservas de lenha. Acendeu o forno, reco­meçou o trabalho, não perdia de vista a tarefa, um minuto que fôsse. Dia e noite a postos, vígil, ei-lo a meter lenha, a graduar o fogo, e contudo o es­malte não derretia. Pela segunda vez vinha o Sol surpreendê-lo na faina e a esposa trazia lhe o par­co almoço. Nada no mundo o tiraria da boca do seu forno, no qual, desesperado, lançava a lenha acumulada. O Sol recolhia-se e o nosso homem, não. Pálido, desfigurado, barba crescida, sobreexci­tado sim, mas héróico, indefesso junto ao forno, para ver quando o esmalte se fundiria. Um, dois, seis dias enfim transcorreram sem alteração. O invicto Palissy continuava a trabalhar, a vigiar, mau grado ao desmoronamento de suas esperanças.

O esmalte não se fundiu... Pôs-se, então, a con­trair dívidas, a comprar novos vasos, mais lenha...

Os potes devidamente revestidos e cuidadosa­mente colocados no forno, ainda uma vez acendeu-se o fogo. Era a última tentativa do desespero. Ele fêz um braseiro enorme e, não obstante a alta temperatura, nada conseguiu. A lenha já escassea­va. Como alimentar, até o fim, aquele fogaréu in­fernal? Olhou em torno, seus olhos incidiram na cerca do jardim, madeira enxuta, facilmente com­bustível. Que poderia valer aquela cerca comparada com a experiência cujo êxito dependeria, talvez, de algumas toras mais? As cercas foram arrancadas, lançadas na fornalha. Sacrifício inútil!

Ainda não seria dessa vez... Mas dez minu­tos de calor — quem sabe — e tudo estaria con­seguido... Lenha, portanto, mais lenha e só lenha, a qualquer preço, eis o que precisava! Que ardes­sem os móveis, contanto que não perdesse aquela experiência. Estrondo horrível se ouviu em toda a casa, logo seguido dos gritos da mulher e filhos, já agora temerosos de que o homem houvesse en­louquecido. Ei-lo que chega, sobraçando destroços de mesas e cadeiras! A fornalha tudo recebe, tudo devora. Não se funde o esmalte, ainda assim? Che­ga a vez dos assoalhos... A família, diante disso, foge espavorida e vai pelas ruas a gritar que o seu chefe enlouquecera. A essa altura, o inventor encontrava-se absolutamente exausto, mercê de tan­tas lutas, jejuns, vigílias, sobressaltos.

Endividado e coberto de ridículo, dir-se-ia presa de um desastre irreparável. E contudo, acabara por descobrir o segredo, a última provisão de calor derretera o esmalte, Os vasos de barro escuro lá estavam transformados em louça branca, que ele deveria realmente achar belíssima. Doravante, po­dia afrontar com paciência todos os remoques, ul­trajes e recriminações. O homem de gênio, graças à tenacidade na sua inspiração, acabava colhendo a palma da vitória. Arrancara um segredo à Natu­reza e podia com mais calma aguardar os proven­tos da sua descoberta.

E não foi senão ao fim de dezesseis anos de labor assíduo e penosas experiências, que, isolado, aprendendo consigo, desajudado de todos, pôde co­lher o fruto do seu esforço. Não tardou, porém, dada a sua independência de idéias em matéria re­ligiosa, fôsse denunciado e visse invadida e depre­dada a sua oficina por uma turba ignara e fanáti­ca, de conivência com as autoridades. E enquanto assim lhe destroçavam toda uma cerâmica preciosa, era ele preso e conduzido a Bordéus, onde aguardaria o cadafalso ou a fogueira. Salvou-lhe a vida o Condestável de Montmorency, não — diga-se — em atenção às suas crenças religiosas, mas às suas falanças.

Dali, foi a Paris, onde o chamaram os trabalhos encomendados pelo Condestável e pela Rainha­-mãe, hospedando­-se nas Tulherias, enquanto dura­ram esses trabalhos. Mas, a guerra incessante que movia aos adeptos da Astrologia, da Alquimia e da bruxaria, acarretou-lhe uma nova denúncia como herético. Novamente preso, ficou cinco anos na Bastilha e ali morreu, em 1589, na idade de oitenta anos. Assim acabou e assim foi recompensado o inventor da louça esmaltada e das figulinas (82).

Diante deste magnífico exemplo de coragem e Perseverança — não da coragem proveniente de uma exaltação nervosa, qual a produzem a cólera, o medo, o cheiro da pólvora, a música marcial, vis­to que nestes casos espontâneos os adversários po­deriam alegar a sensação — mas, de uma energia que se desdobra por dezesseis anos afrontando to­dos os reveses; de uma vontade que sobrepuja todos os obstáculos como que avassalando o corpo e as afeições do sangue. Diante desses exemplos, dize­mos, diante de todas as glórias da nossa espécie pensante; diante de todas essas chamas que se consumiram para brilharem na posteridade das ge­rações; diante dos anseios cordiais da Humanidade e diante dos testemunhos da sua própria consciência, com que direito se vem averbar de ilusão a vontade e de subsequente a força moral?

Com que direito ousam negar a energia inde­pendente e o caráter predominante dessas almas de rija têmpera? A que pretexto reduzem a potên­cia

(82) Este relato é parcialmente extraído de Self-help, edição de A. Talandier. Outros muitos tipos poderíamos apre­sentar como expoentes da independência e poder da vontade. Alongamo-nos sobre a vida de Palissy, por ser um exemplo dos mais eloqüentes que contradizem a teoria adversa.

desses corações a estados fisiológicos, quando não a circunstâncias fortuitas? E como se leva a fantasia a estabelecer como princípio que “as nos­sas resoluções variam com o barômetro”?

Objetar-se-á que o benemérito oleiro, cujo per­fil acabámos de traçar, representa uma exceção no seio da Humanidade? Mas, uma tal evasiva só poderá provir da ignorância e carência de obser­vação. Nomes mais ilustres que o de Palissy, ful­guram por aí a títulos outros e nos quais admira-nos a mesma obstinação e firmeza.

Buffon escreveu que gênio é paciência. Lem­bramo-nos, então, de Képler procurando durante dezessete anos as três leis imortais que o reco­mendam à posteridade, leis que regem o sistema universal nos latifúndios celestes, onde se embalam as estrelas duplas, tanto quanto regulam o movi­mento da Lua em torno da Terra. Falaremos de Newton, modesto, respondendo a quem lhe pergun­tava como descobrira a gravitação: — foi pensan­do sempre nela. Citaremos todos esses ilustres sábios que em suas lutas só tiveram por arma a inteligência. Invocaremos os trabalhos solitários de Harvey, Carlos Bonnet, Jênner (83). Recontaremos as tremendas dificuldades que houveram de vencer, animados do fogo sagrado, esses inventores que se chamaram Watt, Jacquard, Girard, Fúlton, Stéplen­son? Diremos dos labores intelectuais que exigiram as nossas vias férreas, a navegação a vapor, a telegrafia, - magníficos

(83) A acolhida que teve a descoberta da vacina é um atestado típico dos obstáculos geralmente antepostos a qualquer Idéia nova, de feição a desanimar inventores e sábios. Não faltou, diz Smiles, quem lhe caricaturasse a descoberta apresentando-a como suscetível de bestializar o próximo, com o introduzir no organismo matéria putrecida, retirada das tetas de vacas doentes. Do alto das cátedras, foi a vacina denunciada como coisa “diabólica”. Chegaram a afirmar que as crianças vacinadas cresciam com “cara de boi”, e que na testa lhes sobrevinham tumo­res, que “indicavam o lugar dos chifres e que a voz se alterava com mugidos de touro”.

inventos nos quais celebra­mos o espírito que não a matéria? Invocaremos os arroubos artísticos de um Miguel Ângelo, de um Ticiano, de um Celini, de um Poussain? Recorde­mos esta frase de Bayle, escrita de Milão, em 1820, a propósito de um artista chamado Meyerbeer: — “é homem de algum talento mas não genial, vivendo solitàriamente e trabalhando quinze horas por dia”. Contudo, se quiséssemos historiar as provas rudes que flagelaram os gênios mais possantes, havería­mos de baixar aos nomes ignorados, de quantos mergulharam neste pego revolto, vítimas da sorte, não da descrença, como Chenier decapitado, ou como Gilbert lutando contra o egoísmo universal.

Haveríamos também, de convocar os que su­cumbiram gloriosamente. — Giordano Bruno pre­ferindo a morte a uma retratação fictícia, Campanela sete vezes torturado e sucumbindo sem deixar de satirizar seus algozes; Joana DArc que salvou a França, Sócrates que salvou a Filosofia e pre­feriu a cicuta à mentira, Cristóvão Colombo expirando no cárcere, o velho Pedro Ramus estrangu­lado na noite de São Bartolomeu, em que também teria perecido Ambrósio Paré se Carlos 9º não levasse em conta os seus préstimos pessoais e, en­fim, todos os mártires da Ciência, da Religião, do Progresso, Inclusive os que tombaram nos circos romanos, devorados pelas feras e exorando a Deus por seus irmãos. Fôssem quais fôssem as crenças, as idéias que essas criaturas defendiam até à mor­te, sem lhes apreciarmos o valor real das causas que abraçavam, sua memória imperecível só nos merece respeitosa veneração. São vultos que nos mostram que o homem não é somente um composto de matéria orgânica e que a energia, a perseverança, a coragem, a virtude, a fé, não são atributos da composição químico-cerebral. Do fundo de seus sepulcros, eles proclamam que os pretensos sábios, que ousam identificar o homem com a matéria iner­te, não se precatam do valor humano e jazem na mais trevosa ignorância das verdades que fazem a glória e a felicidade do ser.

E supondes seja necessário interrogar a tra­dição histórica para responder, também com argu­mentos e exemplos irresistíveis, a essa pretensão cega de negar os fatos de ordem puramente inte­lectual, conceituando tão superficialmente o Espi­ritualismo e a Moral?

Não; não é somente nas altas esferas que o observador admira esses edificantes exemplos. Em todas às camadas sociais, do prócer da Ciência ao rústico analfabeto, do trono ao grabato, a vida co­tidiana oferece, no santuário da família, esses mes­mos padrões de coragem e abnegação, de paciência e grandeza dalma, de energia e virtude, que, por desconhecidos, não são menos meritórios no seu valor intrínseco, do que os precedentes.

Quantas almas padecem em segredo sem reve­lar os seus martírios, curvadas à injustiça, vítimas do destino, dessa fatalidade impenetrável que per­segue tantas criaturas boas e justas?

Quantos corações magnânimos palpitam em si­lêncio e abafam chamas capazes de incendiar o verbo e levantar multidões, se, ao invés de definhar na sombra, se espanejassem ao sol da populari­dade? Quantos gênios ignorados por aí dormitam num isolamento Infecundo? Quantas almas santas e puras, a consagrarem-se a uma vida inteira de abnegação, de amor, de caridade? E quantos, em recompensa de tamanhas virtudes, de tanta paciên­cia è humildade, não recebem mais que ingratidão e desprezo daqueles mesmos a quem amam?

O último refúgio dos nossos adversários assen­ta no sistema dos pendores naturais, como a de­clararem que estes fatos de ordem mental não são mais que o resultado das inclinações dos espíritos credores da nossa admiração. Se Palissy se obs­tinou dezesseis anos à procura do esmalte, seria a isso arrastado por uma. inclinação especial. Se Colombo não esmoreceu diante do cepticismo dos coevos e das revoltas de sua equipagem, é que uma tendência do seu cérebro o encaminhava irrevo­gàvelmente para o Novo Mundo. Se Dante concluiu a Divina Comédia, ainda que posto a ferros e expatriado, é porque a lembrança de Beatriz e as guerras Civis italianas lhe espicaçavam a fibra poé­tica. Se Galileu, septuagenário se viu Constrangido a repudiar de joelhos as suas convicções mais ín­timas, assinando a sentença iníqua que proibia a Terra de girar, não pensem que houve em tudo isso humilhação, pois apenas teria experimentado uma ligeira contrariedade das suas inclinações. O fato de Carlota Corday partir da sua aldeia para apu­nhalar Marat em Paris, não significa que tivesse a Convicção íntima de salvar a pátria de um seu presumido salvador, mas, apenas, que tivesse uma exaltação cerebral. Se, durante as cenas monstruo­sas do Terror, viram-se mulheres que pediam ao carrasco a graça de morrer com os maridos, subin­do firmes o patíbulo; se, em todos os tempos históricos, temos visto vítimas voluntárias oferecendo-se para salvar entes amados, ou. com eles morrer, étudo fruto de inclinação natural, ou resultado de certos movimentos cerebrais!

Resumindo: os atos mais sublimados de vir­tude, de piedade filial, devotamento, amor, grande­za dalma, são oriundos de disposições orgânicas, ou de qualquer súbito desvio das funções normais do cérebro. Se o Cristo subiu ao Calvário, não se con­sidere isso o sacrifício extraordinário de um ser divino, mas simples movimento revolucionário de algumas moléculas imprudentes .. É a escórias míseras, assim, que reduzem as mais ricas gemas da coroaque cinge a fronte da Humanidade –

Esta, contudo, não se deixa assim degradar, não consentirá que mãos profanas lhe arrebatem a sua auréola. Para sustentar esses feitos de valor, algo mais se torna preciso do que uma agregação atômica de carbono ou de ferro. Algo mais que uma simples combinação molecular. Vade-retro, negadores insensatos, que pretendeis reduzir a fórmulas tão inanes a definição do valor e da forças intelectuais. Predisposições orgânicas, inclinações naturais, faculdades mentais, a própria educação, que representa tudo isso senão palavras, desde que nos limitemos a manifestações da matéria bruta e cega e neguemos a existência do espírito? Que re­presentam a Química, a Física, a Mecânica, diante da vontade que dobra o mundo à sua lei e dirige a seu nuto a matéria obediente? Ousam sustentar que o valor moral, a potência intelectual, o afeto profundo dos corações, o entusiasmo das almas fer­vorosas, a imensidade do olhar inteligente, as pes­quisas do pensamento que sonda o espaço e faz esplender as leis universais, as meditações, as des­cobertas, as obras-primas da Ciência e da Poesia se explicam por transformações químicas — e qui­méricas — da matéria em pensamento? Será que, para suportar essa energia anímica, não haja ne­cessidade de uma força soberana, superior às alte­rações da substância, capaz de vencer todos os obstáculos, cuja influência se estenda muito além da vista física e seja mesmo a base desta força pensante, seu substrato, seu sustentáculo e condição de sua potência? Será que a virtude resida noutro lugar que não na alma? — na alma independente, que as tergiversações do mundo material não atingem; na alma espiritual, que ouve a voz da verdade e caminha em reta para o seu ideal, sejam quais forem os óbices que se interponham no caminho, as dificuldades que pretendam interceptar-lhe a mar­cha triunfal?

Toda a Humanidade protesta contra estas fú­teis alegações e o faz não já com aquele critério baseado no testemunho dos sentidos, suscetível de enganar-se, como se dá, por exemplo, com o movi­mento dos astros, mas, com aquele senso íntimo que lhe vem da própria consciência.

A nacionalidade, o clima, a natureza dos ali­mentos, a educação, não bastam para constituir caracteres inteligentes e indômitos! No caráter huma­no a energia é, realmente, o poder central, o eixo da roda, o centro de gravidade. Só ela dá impulsão aos atos.

Essa força mental é a base mesma e a condi­ção de toda a esperança legítima, e se é verdade que a esperança é o perfume da vida, o poder men­tal há-de ser a raiz dessa planta preciosa.

Ainda mesmo que as esperanças se desvaneçam e a criatura sucumba nos seus esforços, resta-lhe a satisfação de haver trabalhado para vencer e, so­bretudo, que, longe de ser escrava da matéria, manteve-se fiel às regras por vezes árduas, que a honestidade impõe. Haverá espetáculo mais belo e digno de elogios que o de um homem a lutar ener­gicamente com a sorte, a demonstrar que lhe pal­pita no seio uma força imperecível, a triunfar pela grandeza de caráter e a prosseguir corajoso e re­soluto, ainda “quando lhe fraquejam as pernas e sangram os pés”?

Em sentido menos generalizado que o destes grandes fatos precedentes, temos visto exemplos particulares de vontades poderosas realizando mi­lagres. Nossos desejos são, muitas vezes, os pre­cursores da capacidade de realização, bastando in­tensificá-los para que a possibilidade se resolva em realidade.

Se de um lado as vontades de um Napoleão e de um Richelieu riscam dos dicionários a palavra impossível, por outro lado existem os vacilantes, a quem nada se afigura possível.

“Saiba querer enêrgicamente — dizia Lamenais a um espírito enfermo —, fixe a sua vida flutuante e não se deixe levar por todos os ventos, qual folha murcha desgarrada do tronco.”

Pessoalmente, temos conhecido criaturas exal­tadas, que, depois de terem estado com um pé na sepultura, recuaram de espanto ante o esplendor da vida que pretendiam abandonar e resolveram conservá-la. Estes exemplos são raros, por só possíveis quando o corpo não esteja tocado pela mão da morte. E no entanto, existem. Um escritor in­glês, Walker, autor de o Original (e que não deixa de revelar uma certa originalidade em sua deter­minação) resolveu um dia vencer a enfermidade que o acabrunhava, conseguindo pasmar bem dali por diante.

Os fastos militares oferecem-nos o exemplo de vários chefes que, velhos ou enfermos, em ouvindo no instante decisivo da batalha que seus coman­dados desertavam, atiravam-se para fora da barra­ca, os reuniam e conduziam à vitória, para logo após tombarem exaustos e exalarem o último sus­piro.

Não somente a vontade, mas também a ima­ginação domina a matéria, contradiz o testemunho dos sentidos e origina, às vezes, ilusões absoluta­mente alheias ao domínio físico.

Expliquem como pode morrer um homem quan­do, com uma simples picada, os médicos lhe suge­rem que o sangue escorre da veia rasgada. (Este e outros fatos estão judicialmente averiguados.) Que nos expliquem como a imaginação cria um mundo de quimeras, que atuam ativamente no or­ganismo e se refletem na saúde.

Ao demais, tão forte e autônoma é a vontade, as influências ambientes tão precárias se afirmam, para explicar a marcha da vida intelectual, que, as mais das vezes, não na embaraçam e, ao con­trário, nos induzem a proceder com energia tanto maior, quanto mais prementes são os obstáculos que se nos deparam. Todos quantos se votam a tarefas intelectuais, dirão conosco que a fase em que mais operaram em sua carreira foi precisamen­te a de maiores dificuldades na vida prática, e que a vontade é qual os rios que seguem destruindo e vencendo os acidentes do seu curso, não obede­cem a barragens e até se enerespam e se precipitam mais impetuosos, quanto mais sólida e alta a muralha que se lhes opõe. Quando sucesso e glória vêm coroar nossos trabalhos e após uma faina longa­mente sustentada a reação vem convidar-nos ao re­pouso, deixamo-nos efeminar pelas delícias de Ca­pua e já o fogo da inspiração não nos acende auro­ras na mente, O trabalho pessoal da vontade é a condição sine qua non do nosso progresso.

Em um discrime acerca da existência da von­tade, a questão assaz longa e baldamente contro­vertida, do livre arbítrio, não pode ficar sem o seu ponto de interrogação. Os adversários o negam absolutamente e proclamam, qual vimos e suficientemente comentámos, que todas as realizações humanas são O resultado necessário de causas ou ensejos emergentes à revelia de reflexão, e sem que esta lhes possa mudar o curso, O pensamento não é mais que movimento físico da substância cerebral. Esse movimento procede do sistema nervoso, afe­tado a seu turno por um movimento, exterior.

O movimentopensante por sua vez, reage so­bre os nervos e músculos e determina os atos. Em toda esta sucessão, não há movimentos materiais transmitidos. Eu imagino de bom grado o encon­tro de um cristão com um discípulo de Holbach no desvão de uma dessas oficinas, cuja portada se protege com a clássica estatueta de Hipócrates tra­vando o seguinte diálogo:

- É facílimo demonstrar que o pensamento é pro­duto da matéria - dirá o holbaquiano. — Eis, por exemplo, uma locomotiva que se precipita veloz ao vosso encontro. A visão da locomotiva ou, para falar fisicamente, o raio luminoso partido dessa máquina atinge o vosso globo ocular e provoca um dado movimento distensivo do nervo ótico... Por intermédio deste mesmo nervo, o movimento se transmite ao cérebro. Depois, o movimento cerebral, tornando-se causal, por sua vez aciona os nervos correspondentes às pernas, e estas entram a correr e a levar-vos fora da linha. Evidente, pois, que em tudo isso não utilizastes uma partícula de liber­dade qualquer. Vossa atitude derivou, ne cessàriamente, da impressão visual da loco­motiva.

- Mas, perdão — retrucará o outro —, e se eu, por um capricho de suicida, aliás comum, ti­vesse deliberado permanecer na linha até que a locomotiva me esmagasse? Não praticaria dessarte um ato voluntário e de livre ar­bítrio?

- Absolutamente. A não ser que houvesse enlou­quecido e tivésseis premeditado e maturado o plano do suicídio, nem por isso ele deixaria de ser o resultado de causas predisponentes, e, portanto, involuntário.

- Admitamos que assim seja, quanto ao instante decisivo, de vez que matar-se a gente sem motivo seria imbecil. Mas, pergunto ainda: quanto ao gênero de morte, não poderia es­colher o baraço, o veneno, a queda de uma torre, a bala, etc., em vez de me atravessar na linha férrea? Não terei, pelo menos, a liberdade de opção?

- Desenganai-vos. Se vos decidirdes pelo esmaga­mento, será porque existe próximo uma li­nha-férrea; ou por imaginardes ser esse um processo mais rápido, menos doloroso; ou por vos repugnarem outros gêneros de morte, etc.

- Mas, de qualquer forma, sempre se conclui que escolhe...

— Jamais! É que uns tantos movimentos se ope­raram no órgão da reflexão. Seria um, cau­sado pelo aspecto de uma força, outro, pelo necrotério; pela imagem de um crânio par­tido, pela hipótese de um tiro falhado, das angústias da asfixia, e assim por diante. O movimento correspondente ao esmagamento pelo comboio seria, então, o que se figurava menos desagradável e, dominando os demais, decidiria da vossa sorte.

- Mas, se eu tivesse, por exemplo, agravos de um irmão e, em lugar de postar-me na linha, fôsse, por determinação dos movimentos cor­respondentes a tais agravos, levado a atirar sob as rodas do comboio o corpo do meu ir­mão, tinha ou não a liberdade de o fazer? Seria responsável, ou não?

- Não entremos em tricas jurídicas...

- Pois muito bem: voltando ao nosso suicídio, dis­sestes que eu teria escolhido um gênero de morte determinado por uma causa qualquer. Ora, isso é claro, pois de outro modo, para falar com franqueza, escolher sem causa de­terminante, é estúpido. Mas, como podem tais causas atuar materialmente?

- Por um revés da sorte perdeis a tranqüilldade e o bem-estar. Habituado à fartura e a to­dos os regalos do corpo e do espírito, en­contrais-vos de chofre na maior miséria, O constrangimento, as restrições do vosso or­ganismo, a alteração de hábitos, atuam sobre o cérebro, que, ante a perspectiva de morte lenta e miserável, decide antecipá-la desde logo. São sempre, como vêdes, movimentos físicos.

- Mas... se forem desgostos de família, decep­ções amorosas, temor da desonra, causas de ordem moral, em suma?

- Não existe ordem moral.

- Já esperávamos por essa. E é assim que pre­tendeis nada afirmar sem provas? É assim que presumis interpretar fielmente o ensino da Ciência? Tomemos um último exemplo, Vêde bem! Eis aqui, em descanso, minha mão direita; nada me obriga a erguê-la... Ago­ra, contudo, quero fazê-lo e faço... Agi li­vremente, ou não?

— Não. Houve uma razão determinante, qual a de provar o vosso alvedrio e suscitada pela vossa conversa anterior. Esta, por sua vez, originando-se de fatos precedentes, desde que nascestes. A vida mental, como a mate­rial, ou por melhor dizer — única, não passa de uma sucessão necessária de causas e efei­tos a entrosarem-se naturalmente.

- Vêde ainda: tenho a mão suspensa. Agora, ima­ginai que a movimento num círculo e a es­palmo, chapada, na vossa face. Tendes uma sensação de ardor, exaltamento imediato e já rüborizado, gritareis: que é isso? Mas, antes que possais reagir de fato, digo-vos:

— de que vos admirais? Então, este sopapo não é consequência inevitável do movimento da mão, da fantasia desse lobo que opera acima do ouvido, junto das zonas protetoras da apófise mastoidéia e da sutura occipto-parietal, etc.? E tal não se dá, de sucessão em sucessão, desde os primórdios do mundo?

- Caro senhor, tendes na verdade exemplos edifi­cantes, que assaz me impressionam. Tenho, para mim, que tudo isto não passa de mo­vimento serial da dipotasshydorylhydroxamina em vosso Lobo frontal e dado que, em consequência desses movimentos, tomásseis de uma faca para esfolar-me vivo, seria cô­mico que me formalizasse. Mas, para encer­rar a questão, uma vez que preciso retirar-me, dizei-me: — não pensais com Spinosa que a nossa pretensa liberdade não passa de aparência e que, “tendo consciência de nos­sos atos, nem por isso lhes conhecemos a causa?”.

Não admitis, com Hurne, que o “homem tem consciência, não do princípio de seus atos, mas tão somente dos atos em si, apenas como fenômenos”? Todo o movimento cerebral nos vem do exterior, pelos sentidos e a excitação do cérebro; o pensamento é um fenômeno material, como o próprio pensamento. A vontade é expressão necessária de um estado cerebral produzido por influências exte­riores. Não há vontade livre; não há concretização de vontade independente da soma de influências que a todo o instante inspiram o homem e impõem, ain­da aos mais poderosos, limites infranqueáveis”.

Assim falaria, porque assim falam os discípu­lo de Holbach. No parecer deste (84), “a liberdade não é mais que a necessidade encerrada dentro de nós. Não há diferença entre o homem que se atira voluntariamente e o que é atirado de uma sacada abaixo, senão que ao primeiro a impulsão lhe vem de dentro, e ao segundo chega de fora do seu ma­quinismo”.

Entretanto, há casos peremptórios, nos quais pensamos poder constatar o livre arbítrio, como, por exemplo, na atitude de um homem que, possuí­do de grande sede, repele dos lábios o copo dágua, logo que se lhe diga que esta contém veneno. Mas, temos o direito de supor que esse homem assim proceda livremente? A vontade, ou, melhor, o cé­rebro se encontra em estado comparável à bola que, recebendo um impulso em certa direção, desta se desvia logo que intervenha uma força maior que a primeira.

Holbach nos dá uma fórmula aritmética da li­berdade: As ações do homem são sempre um misto de energia própria e dos seres que sobre ele atuam e o modificam (85).

(84) Systéme de la Nature, parte 1ª, capítulo 1º, página 223.

(85) É claro que sem liberdade não há moral nem virtude. Depois de falar em “forças soberanas”, “leis indes­trutíveis que constrangem”, o Sr. Taine acrescenta: Quem se revoltará contra a geometria, máxime, contra uma geo­metria viva?

Noutro lanço, pergunta, a propósito de um trecho de Byron sobre os amores de Haydéa, como se pode deixar de reconhecer a divindade, não apenas na consciência e no ato, mas no próprio gozo? Quem há que tenha lido os amores de Haydéa — exclama ele — e experimentasse ou­tro pensamento, que não o de invejá-la e deplorá-la? Quem pode, à face das magnificências da Natureza que os acolhe e lhes sorri, imaginar por eles outra coisa além da sensação que os une!”

Bayle admite, por outro lado, que vícios e virtudes têm em nós a mesma origem — a força das paixões. A esse conceito, adita o casta est quam nemo rogavit, etc. A mu­lher mais virtuosa é detida, antes pela má reputação, do que pelo fruto proibido. — Nós nos ufanamos de pensar que a vIrtude é mais sólida do que estas teorias.

(86) Essai Phylosophique sur la Nature Morale et Intellectuelle de l’Homme.

Respondemos a essa negação integral da liber­dade com uma doutrina que, sem nos investir de um arbítrio absoluto, de vez que as influências ex­teriores atuam constantemente para atenuar esse absoluto, nem por isso deixa de nos dar uma liber­dade real, uma responsabilidade íntima, um livre arbítrio incontestável. O assunto é mais complexo do que parece aos profanos e temds uma perma­nente manifestação de sua dificuldade na sucessão secular das crenças religiosas, que oscilam entre o fatalismo e a graça divina. Maomet arvorou o es­tandarte do fatalismo; Calvino só vê a predesti­nação, enquanto Lutero consagra o livre arbítrio absoluto. A verdade, pensamos, está entre os ex­tremos. O número de partes teológicos concernentes à graça divina é incontável, e compreende-se que, nesta época, é tempo perdido o que se emprega nestas elucubrações. Contudo, é sempre útil saber o que devemos pensar da liberdade. Nós, pelo me­nos, assim o consideramos com Spurzheim, quando a respeito escreveu aquelas páginas judiciosas, quan­do assim pondera o contravertido assunto (86).

A palavra liberdade é empregada num sentido mais ou menos lato. Há filósofos que atribuem ao homem uma liberdade ilimitada. Ao seu ver, o homem cria, por assim dizer, a sua própria natu­reza, adquire as faculdades que deseja e age inde­pendente de qualquer lei. Uma tal liberdade está em contradição com um ser criado. Tudo quanto possam dizer a seu favor não passará de declama­ções enfáticas, desprovidas de senso e de vendicidade.

Outros há que admitem uma liberdade abso­luta, em virtude da qual o homem age sem motivo. Isso, porém, é presumir efeito sem causa, é isentar o homem da lei de causalidade. Seria uma liber­dade contraditória de si mesma, podendo-se proce­der num mesmo caso bem ou mal, mas sempre sem motivo. Inúteis seriam, então, todos os institutos de finalidade beneficente, individual ou coletiva. De que serviriam as leis, a Religião, as penalidades e recompensas, se nada determinasse o homem? Por­que esperar de outrem amizade e fidelidade, antes que ódio e perfídia? Promessas, juramentos, votos, tudo ilusão! Uma tal liberdade nada tem de real, não passa de especulativa e absurda.

Precisamos, ao contrário, reconhecer uma liber­dade acorde com a natureza humana, liberdade que a legislação pressupõe, liberdade raciocinada.

Três são as condições fundamentais da legíti­ma liberdade: em primeiro lugar, é preciso que a criatura possa escolher entre vários motivos. Se­guindo o motivo mais forte, ou agindo só por pra­zer, já se não opera com liberdade. O prazer não é mais que uma falsa aparência de liberdade. A ovelha que mastiga a erva com prazer, não está exercendo um ato livre.

Obedecendo a um desejo mais forte, também o animal, quanto o homem, não pratica livremente, tão-pouco. A condição precípua da liberdade é a inteligência, ou a faculdade de co­nhecer e escolher os motivos. Quanto mais ativa a inteligência, mais ampla a liberdade. Os idiotas natos, as crianças até uma certa idade, têm, às ve­zes, desejos muito enérgicos, mas ninguém os con­sidera livres, visto não possuírem inteligência bas­tante para destingüir o falso do verdadeiro. Os homens mais bem educados e os mais inteligentes são os de quem, mais que dos ignorantes, deploramos as faltas. A medida que se elevam na série das faculdades intelectivas, os animais vão-se tor­nando mais livres e modificam mais individualmente os seus atos, de acordo com as circunstâncias ex­teriores e com as lições de sua prévia experiência. Se empregamos a violência para impedir o cão de perseguir a lebre, ele se lembrará das pancadas que o aguardam, e árdego e trémulo ao império dos próprios desejos, não deixará de ceder. O homem, superior a todos os seus irmãos da escala zoolôgica, é, por sua mesma natureza, o ser que goza de li­berdade no grau mais eminente. Só ele procura encadear efeitos e causas, comparar melhor o pre­sente e o passado, e daí tirar conclusões para o futuro. Pesa as razões, detém-se nas que lhe pa­recem preferíveis, conhece a tradição. Seu raciocínio decide e perfaz a vontade esclarecida, muitas vezes contràriamente aos seus desejos.

Uma última condição da liberdade é a influência da volição sobre os instrumentos que devam operar suas ordens pessoais. O homem não é res­ponsável por desejo ou por faculdades afetivas dele independentes. A responsabilidade individual come­ça com a reflexão e com a possibilidade de proceder voluntAriamente. No estado de saúde os instrumen­tos operatórios subordinam-se à influência da von­tade. A fome é involuntária, mas, se em senti-la, eu me abstiver de comer, exerço a influência da minha vontade sobre os instrumentos do movimento voluntário. A cólera é involuntária, mas eu não sou forçado a maltratar quem me provoque, só porque a minha vontade influi em meus músculos. Perdido o domínio dessa influência, então, sim, o homem já não é livre. É o que amiúde sucede com os aliena­dos, que experimentam desejos, reconhecem a sua inconveniência, chegam a maldizê-los, mas não têm a força de restringir os movimentos involuntários, chegando mesmo, algumas vezes, a pedir que lhos embarguem.

A liberdade moral é a base mesma da sociedade e se ela não passa de Ilusão, todo o gênero humano tanto as nações incipientes como as mais civilizadas, que cultivam a Ciência e governam a Matéria, bem como os povos remotos, toda a Humanidade, — repetimo-lo — ter-se-ia deixado iludir pelo mais colossal dos erros que ainda existiu, depois de en­veredar pela senda mais falsa e injusta que pos­samos imaginar Mas... que dizemos: — injusta? Neste sistema, essa palavra nada significa e visto que o bom e o mau não existem; visto não haver ordem moral, claro é que todas as palavras concernentes à descrição dessa ordem, todos os pensa­mentos e julgamentos carecem de Sentido. E con­tudo, a menos que abstraiamos a própria consciência, não podemos anuir a semelhantes conclusões.

Quaisquer que sejam as conclusões teóricas a que cheguem os lógicos na questão do livre arbí­trio — dizia Samuel Smiles —, todos sentimos que Somos Praticamente livres de escolher entre o bem e o mal. Não somos o seixo que, lançado na tor­rente, apenas pode indicar seguindo-o o curso das águas. Ao contrário, sentimos em nós a força do nadador, que pode escolher a direção convinhável, lutar contra a corrente, ir mais ou menos aonde lhe praza. Nenhum constrangimento absoluto nos empece a vontade. Sentimos e sabemos, no con­cernente aos nossos atos, que não Somos encandeados por qualquer espécie de magia. Todas as nos­sas aspirações para o bem e para o belo ficariam Paralisadas, se pensássemos de modo diverso. To­dos os negócios nossa Conduta na vida, regime doméstico, contratos sociais, instituições públicas, tudo, enfim se baseia na noção prática do livre-arbítrio. E sem ele, onde estaria a responsabilidade? De que serviria ensinar aconselhar Predicar, reprimir, punir? Para que leis, se não houvesse uma crença universal como o próprio fato univer­sal, de que dos homens e de sua determinação de­pende conformar-se ou não? O homem que melhor evidencia seu valor moral é o que se observa a si mesmo, dirige as suas paixões, vive conforme a regra que se impôs, estuda suas aptidões e SUAS falhas.

Eis, verdadeiramente, o homem: sua grandeza está na sua liberdade. Não fora livre o homem, não se lhe permitiria ter fome e sede, nem comer nem beber; nem senhorear, em coisa alguma, as tendências do seu corpo. A ordem social não se te­ria constituído.

Mas nós não temos necessidade de prova alguma exterior para afirmar a nossa liber­dade. Ninguém melhor o sabe do que a nossa pró­pria consciência. Ela é, aliás, a única coisa que possuímos completamente nossa, e a boa ou má direção que lhe damos, em definitivo, só depende de nós. Nossos hábitos e pendores não são nossos amos, mas servos. Mesmo quando com eles transi­gimos, a consciência adverte-nos de que poderíamos resistir e que, para vencê-los, não careceríamos de fortaleza superior às nossas possibilidades, se fi­zéssemos finca-pé. É pelo emprego livre da razão que nos fazemos o que somos. Se ela apenas pro­pende para o sensualismo é que a vontade, forte e demoníaca, subjuga e escraviza a inteligência. Bem dirigida, porém, essa mesma vontade compa­ra-se a uma rainha, tendo por ministros as facul­dades intelectuais e presidindo ao maior desenvol­vimento compatível com a natureza humana.

Este pretenso ateismo científico tomou o en­cargo de rebaixar e destruir todos os caracteres da grandeza humana. Não pode, contudo, impedir a alma de provar o seu valor, de assomar a matéria, construindo-se de si mesma com os elementos do seu meio e do seu, clima.

Ele, o materialismo, não percebe que se a per­sonalidade humana fôsse resultado de influências fatalísticas da Natureza, a criança e o selvagem, sob o governo quase exclusivo dessas forças, seriam mais sensatos, mais íntegros que o sábio, o filósofo, o artista. Uma tal consequência destrói, por si só, a teoria dos nossos adversários.

Moleschott ri-se inconsideradamente do químico espiritualista Liebig, a propósito desta assertiva do eminente pensador: “O homem tem umas tantas necessidades que radicam na sua natureza espiri­tual e não podem ser satisfeitas pelas forças físicas, necessidades que são as diversas condições de suas funções intelectuais.” É claro — responde Moles­chott — que estas palavras não têm sentido. Pode a ambição humana imaginar um fim mais orgulhoso que o decorrente de sua própria elevação a neces­sidades impossíveis de serem providas por forças naturais?

Certo, o autor de A Circulação da Vida jamais sentiu essas aspirações superiores à natureza físi­ca e às forças que a regem. Nunca contemplou o ideal do bem e do belo, jamais exorbitou da esfera das funções corporais, seja da assimilação e desas­similação orgânicas. Se assim é, nós o lastimamos e nos contristàmos de saber que há, no mundo pen­sante, criaturas para as quais o mundo intelectual permanece completamente fechado.

Mas, dirijo-me a vós, espíritos pensantes que aqui me lêdes, sejais quem fordes, homem ou mu­lher, criança ou velho, moça ou rapaz: Concordais em que todos os anseios dalma, todos os requisi­tórios do coração, todas as aspirações da mente não tendam a fins estranhos e transcendentes às transformações da matéria? Acreditais que no cír­culo da sensação e do sensualismo se encerrem to­das as tendências da nossa personalidade? Se já amastes na aurora da vida, se já sonhastes os so­nhos primaveris, se o céu de vossa juventude já vos deixou entrever, ainda que por um instante, uma estrela verdadeiramente celestial em sua au­réola atrativa; dizei-me se é possível aceitar, como expressão de realidade, a palavra de Stendhal, quan­do diz que o amor não é mais que um contacto de duas epidermes?

Se tendes estudado as obras da Natureza, o céu cujos mundos incontáveis gravitam harmônicos no âmbito da luz e da vida, a Terra, a Terra em cuja superfície se conjugam e se desdobram de con­certo as manifestações da força vital, a atmosfera, cujas leis periódicas regulam o regime geral; as plantas, ornamento e perfume do solo, base do edi­fício das existências; os seres vivos, cuja estrutura revela, a cada passo, a maravilhosa adaptação das funções aos órgãos; se tendes estudado as lições grandiosas e o mecanismo geral desta Natureza tão rica e tão fecunda, podereis recusar-vos a saudar do uno de vossa alma a Inteligência suprema com tamanho império manifestada sob o véu da maté­ria? Se, no silêncio eloquente das noites estreladas, vossa alma se deixou arrebatar num voo olímpico a esses focos de vida desconhecida; se já fostes al­guma vez levado a perguntar quais possam ser as formas da vida futura, e se já houverdes pressentido que o idealismo de nossas aspirações não se realizou neste mundo, porventura não estremecestes à idéia do infinito e da eternidade que nos aguar­dam? Se tendes presenciado as obras sublimes de devotamento e caridade, que espalham o bálsamo da consolação nos espíritos sofredores; que levam os proscritos da Terra a esperar uma justiça ima­nente; que sustentam o passo vacilante dos feridos e que se consagram de corpo e alma ao alívio das misérias terrenas; — dizei-me: não tendes concluí­do que o sensualismo e o egoísmo indiferente não são tudo o que encerra o coração humano? Se sen­tistes, alguma vez, a magia da música deixando-vos embalar por essas obras-primas, cujos autores ilus­tres têm pontilhado de encantos a travessia oceâ­nica da vida, dizei-me: — não vos parece que há fazes acústicas, harmonias que o ouvido não en­tendeu e das quais as melodias terrenas não repre­sentam mais que um eco amortecido? Se tendes vivido a vida da alma, enfim, essa vida entrecortada de êxtases e angústias, sensível e dominadora ao mesmo tempo; — vida que se conturba com as mágoas do coração e sabe, todavia, calcar a pés os prejuízos vulgares e dominar triunfante os nadas mundanos. se tendes caminhado de fronte erguida, fitando o céu, não compreendestes que a inteligên­cia ultrapassa a matéria, que a alma tem necessi­dades extracorpóreas e que a nossa dignidade moral não conhece a poeira das praças públicas, onde os saltimbancos divertem as turbas vadias com jogos de Física recreativa?

Se, qual temos visto, a Ciência do mundo físico perde, na hipótese da inexistência de Deus, a sua base e a sua luz, para resvalar na incapacidade absoluta de explicar razoàvelmente a construção do Universo, a ciência do mundo intelectual perde, maiormente, a sua razão de ser. Esvanecem-se o verdadeiro, o belo, o bem. Em que báratros tene­brosos mergulham, então, os velhos princípios da Filosofia, da Estética, da Moral?

A meditação das eternas verdades já não pas­sará de um sonho.

O sábio, o pensador e o artista estrebucham na treva e no caos?

Em vão se pretenderá que a Arte possa coli­mar outros fins que não sejam a representação de formas agradáveis? Escultura, música, pintura, ape­nas visam deleitar-nos os sentidos? Erro profundo! Qual a beleza, que a nossa alma contempla na es­tatuária, no desenho, na harmonia? Qual a magia que nos atrai através das luzes e sombras dos en­saios perecíveis? Não será a beleza ideal, a ver­dade misteriosamente oculta, da qual temos sede, procurando vê-la em tudo? Não será o ideal puro, translúcido, soberano, ímã possante, sedutor irre­sistível de inteligência?

A Humanidade não se elevou acima das outras espécies terrenas senão por sua constante ascensão para o ideal, para a verdade espiritual. A Arte seria um mito, um engodo, um exercício mecãnico, um nada, se não radicasse na beleza suprema. Nisto

— nisto sobretudo — é que o homem se afirma por predicados estranhos à matéria e confinantes com a esfera do Infinito. Nisto, sobretudo, é que o homem entra em comunhão com os esplendores infinitos e os fixa, para sempre, em louvores Imor­tais... Tenho diante de mim a poeira vil, a maté­ria inanimada, um fragmento de argila!

Minha alma, inspirada, concebeu o tipo visível de uma virtude sobre-humana, a manifestação do heroismo, do devotamento, do amor, da adoração... Argila! terra colhida nalgum fosso húmido, em ti vou transfundir a inspiração de minha alma... Em ti vai encarnar-se a minha inteligência! Em ti vai manifestar-se e esplender o tipo sublime que o meu espírito contempla! Em ti vão fremir as pal­pitações do meu pensamento! E enquanto meu des­pojo miserando, caído em inominável ignomínia, vai sumir-se e afastar-se no tempo e na História, den­tro ainda de quarenta séculos, os olhos que te contemplarem em ti verão meu pensamento! Milhões de corações terão palpitado e palpitarão ainda, em uníssono, com o meu... E diante de ti as almas se inclinarão para saudar a virtude divina, que te deu uma auréola imperecível!

O apanágio mais glorioso da natureza humana não passaria de grosseiro engodo, se prevaler pu­desse a teoria mecânica do Universo. A Verdade, o Bem, o Belo, desaparecem nela. Em vão os ad­versários nos alegam sua conduta exemplar, ina­tacável.

No caso, não se trata das consequências da sua vida pessoal e sim das de sua doutrina. Pois bem: logicamente, sem contradizer-se a si mesmo, não pode o ateísmo constituir-se em moral. “O mate­rialismo — diz judiciosamente Patrício Larroque — para mais nada presta, senão para tirar à vida humana a sua gravidade e o seu valor, dando ra­zão aos seres miseráveis, cuja habilidade consiste em explicar, com a maior segurança possível, as misérias e fraquezas do próximo.”

Queremos lealmente acreditar que todos os ma­terialistas, em o serem, não se tornem só por isso corrompidos. Não nos fazemos eco dos que os ar­gúem de “viverem mergulhados na embriaguez e no deboche”. Conhecemos homens e mulheres cuja vida pode apontar-se como modelo de moralidade, embora não crendo na existência de Deus e da alma. Não, não podemos deixar de confessar que, no seu próprio sistema, essa honestidade é apenas uma questão de temperamento e que, justos e bons, conscienciosos e benevolentes, afetuosos e morali­zados, em suma, se praticam a caridade, se não sacrificam ao bezerro de ouro, se preferem a Inte­gridade e a pureza de caráter à fortuna ilícita, não é devido ao seu sistema e sim a uma convicção íntima, que os guia a seu talante e protesta contra as suas palavras e a sua filosofia. Sim: não são moralizados por serem cépticos, mas, a despeito de o serem.

Pois na verdade, que significa uma moralidade sem base, sem motivo e sem finalidade?

Certo, não duvidamos possa haver uma moral independente do Catolicismo, mesmo do Cristianis­mo e, em geral, de qualquer confissão religiosa. O que não cremos é na moral independente da idéia de Deus. Se só existissem as verdades de ordem física, se místicas fôssem as que havemos como de ordem moral, a própria moral não Passaria de utopia, e a honestidade de mera tolice.

Outras propensões existem, porém, que não pro­cedem da matéria.

“O homem que passa os dias sofrivelmente trabalhando, ou, antes, que não consome todo o tempo em prover a existência física — diz um gran­de astrônomo (87) — experimenta necessidades nas quais não intervém os sentidos, penas e gozos, que nada têm de comum com as misérias da vida. E, uma vez manifestadas com certa intensidade, ele não mais pode confundi-las com os apetites animais.

(87) Discurso en the Study Natural Philosophy, by J. F. W. Herschel.

Sente-as como de outra espécie e de uma ordem mais elevada. Mas isto não é tudo. O ho­mem não é sensível somente aos jogos da imagi­nação, às suavidades dos costumes sociais, mas sim especulativo por natureza. Não contempla o mun­do e tudo que o rodeia, passiva e admirativamente, como se fôssem fenômenos seriados e apenas dig­nos de interesse pelas relações que mantêm com ele. Ao revés, considera-os como sistematizados, dispostos e coordenados com desígnio. A harmonia das partes, a sagacidade das combinações, causam-lhe a mais viva admiração. Assim, é levado à conjetura de uma potência, de uma inteligência supe­rior à sua e capaz de produzir e conceber, quanto se lhe depara na Natureza. Infinita, pode chamar a essa potência, de vez que lhe não percebe limite nas obras com que se lhe manifesta. Quanto mais examina, observa, indaga, maiores magnificências descobre e mais grandezas lobriga.

“Vê que tudo o que lhe pode facultar a mais longa existência e a maior inteligência, já como fruto de experiência própria, já como patrimônio de esforço alheio, só pode conduzi-lo aos limites da Ciência. Como estranhar, então, que um ser assim constituído comece por agasalhar a esperança e acabe convicto de que o seu princípio espiritual não acompanhe as vicissitudes da carcassa, que lhe sobreviva ao desaparecimento? Como admirar se persuada ele, que, longe de extinguir-se, passará a uma vida nova, na qual, liberto dos mil entraves que aqui lhe tolhem o voo, dotado de sentidos mais sutis, de faculdades mais altas, se dessedentará na fonte de sabedoria que tão sequioso buscara na Terra?

A hipótese materialista exclui todas estas gran­dezas morais, todas estas altas aspirações e con­soladoras esperanças. Nossos adversários, porém, tomam facilmente o seu partido: “Façamos abstra­ção — diz o autor de Força e Matéria — de toda questão de moral e de utilidade. A Natureza não existe para a Religião, nem para a Moral, nem para os homens. Não seríamos ridículos vejam bem ridículos, se fôssemos chorar como crianças só porque as nossas torradas têm pouca manteiga ?“ Que tal vos parecem as... torradas? Pelo que nos toca, confessamos não compreender o gracejo em assunto de tanta relevância.

Diante dos grandes fatos de ordem moral e intelectual, parece-nos haver perdido todo o senso da verdade para subordinar estas virtudes, as “vir­tudes”, aos movimentos da matéria. Como atribuir a esse predomínio, com Moleschott que o “homem deva, em parte, o lugar privilegiado na escala zoo­lógica, à faculdade de alimentarse tanto de vege­tais como de carne? O mesmo vale dizer, com Hel­vétius, que “o homem só deve à conformação das mãos a superioridade que desfruta em relação aos Outros animais”.

Como admitir que Büchner, apregoando a ma­téria como base de toda a força espiritual, de toda a grandeza terrestre e humana — que aquele mes­mo que reconheceu a igualdade do espírito e da matéria e julgue hOnroso o título de materia­lista, pois ao materialismo é que o mundo deve a sua grandeza? (88).

Como afinar com Spêncer nestas declarações:

“O que denominamos quantidade de consciência édeterminado pelos elementos constitutivos do san­gue; vemo-lo Claramente na exaltação que se dá quando introduzimos na circulação uns quantos compostos químicos, como sejam o álcool e os alca­lóides vegetais.” Como Compartilhar da opinião de Litré ao declarar que a “vontade é inerente à subs­tância cerebral, assim como a contratilidade o édos músculos, e que o livre arbítrio não é mais que simples modalidade do trabalho cerebral”? (89)

(88) Force et Matière, ch. V. Dignité de la Matière.

(89) Dictionaire de Nysten, article Volonté.

Como reduzir a proporções da Química e da Física orgânicas, a simples fenômenos de nutrição e assimilação, essas realizações magníficas do gê­nio e da virtude?

Terminando este capítulo, volvamos ao objetivo com que o encetamos e constatemos a inconsequên­cia desses filósofos que imaginam, arrogantemente, ter lançado uma ponte entre o espírito e a matéria, sem perceberem que apenas lançaram seixos no abismo. Descrevem eles o movimento atômico das substâncias, metamorfoses de combinações, proces­sos de assimilação e desassimilação e pretendem que essas transformações que levam do pulmão ao cérebro uma molécula de ferro, são de molde a explicar claramente a formação do pensamento. Isto posto, não temem acrescentar: — “Temos pro­vas tão certas desta verdade, que uma profissão de fé materialista não deve ser considerada apenas como premissa de grande alcance, nem como arro­jada profecia, mas, como fruto de uma convicção profundamente enraizada” (90).

Eis o que se pode chamar ousadia! Sabei assim todos vós, ó filósofos e moralistas! que o homem é manufatura do seu alimento, da sua pa­ternidade, do seu clima, do seu solo e da sua edu­cação. Se afagais o nobre intuito de colaborar para a melhoria humana, não é, precisamente, a gra­duação do nível moral e intelectual do indivíduo o que vos deve preocupar, e sim de como vive e como se alimenta. Se ele tem muito ferro (já que o ferro é uma das amofinações maiores da época e as moças muito necessitam dele; (Carta 11ª) se tem fósforo que baste; (já que sangue, cérebro, ovos e esperma, todas as partículas do corpo, em suma, que ocupam os mais altos postos na escala da vida devem à gordura fosforada (91) o seu caráter­

(90) Moleschott — Circulation de la Vie, t. 2º, página 57.

(91) A propósito desta apologia dos alimentos fosfo­rados, perguntaremos aos que os entusiasmo se imaginam que os pescadores da Picardia e da Bretanha, que comem muito Pescado, se destacam por uma inteligência excepcional

(92) Moleschott — Loc. cit. conclus. t. 2º, página 225.

mais essencial) (Carta 11ª) se tem bas­tante sal no espírito e açúcar no coração...

A questão fundamental é alimentar-se bem e estabelecer uma conveniente harmonia entre os re­gimes vegetal e animal. Escolhamos então, nos ele­mentos deste último, os mais ricos de substâncias nutrientes e, sobretudo os que primam por abundância de fósforo, sem chegar, claro, aos extremos de engulir cabeças do dito.

Mas, à batata, ao arroz, à cenoura, ao nabo, às verduras, prefiramos o feijão, as ervilhas e len­tilhas. Eis os três restauradores do espírito! e eis como se escreve a respeito destes beneméritos legumes.

Ouçamos esta tirada: “As ervilhas, o feijão e as lentilhas continuam a florescer em nossos olhos, elas contêm aproximadamente tanta albumina (le­gumina) quanto o nosso sangue; e duas ou três vezes mais matérias adipógenas que legumina. Em­bora mais caras e de preparação mais dispendiosa, as ervilhas, o feijão e as lentilhas dão melhor re­sultado que as batatas. Elas são de molde a pro­duzir um bom sangue e a fortificar os músculos e o cérebro, qual o não faz a batata. As ervilhas, o feijão e as lentilhas, atento às suas qualidades nutritivas, são mais baratos que as batatas, pela mesma razão que o ferro é mais barato que a ma­deira, quando se trate de fabricar trilhos. Ervilha, feijão e lentilha dão energias para o trabalho, pa­gam por si mesmos o seu custo; ao passo que um regime longo de batata acarreta debilidade e de­cadência. O homem que, durante quinze dias, só comesse batatas, ficaria impossibilitado de as ar­rancar por si mesmo” (92).

O prolator deve ter assinado contrato com algum hortelão (ou talvez hoteleiro), exclusivamente devotado a estes onipotentes legumes. Que lhes faça bom proveito...

Sob este novo panegírico das ditas substâncias alimentares, o materialismo desliza suavemente e insinua-se sem rumor. Compararam-no certa feita (mas nós temos cá as nossas dúvidas) àquela coisa de que nos fala D. Basilio: um leve ruído res­valando pelo solo, qual andorinha que, prenuncian­do tempestades, pipila e passa, espalhando em seu curso a semente envenenada...

Seja, porém, qual for o efeito dos miríficos farináceos, não será neles que hajamos de procurar as manifestações do espírito humano.

Quando, finalmente, concluem que a influência incontestável e incontestada do regime alimentar, sobre o físico e o moral, basta para justificar, em absoluto, a suserania da matéria, caem nos exces­sos do sistematismo, a negarem tudo que se não enquadra no seu sistema, e a torcerem os fatos para os ajeitar aos seus estreitos moldes. Basta­ria, contudo, ponderassem um tanto mais, para não sustentarem semelhantes erros.

Quaisquer que sejam o caráter, o propósito e a persistência de ânimo daqueles de quem aqui te­mos falado, seus exemplos valem como protesto de afirmações tão insensatas.

Eis aqui o grande missionário das Índias, Fran­cisco Xavier. Sigamo-lo no barco que o transportou às Índias portuguesas, por ordem de D. João 3º, a descer o Tejo, envolvido na sua estamenha re­mendada e com a só bagagem do seu breviário, ele, o generoso gentilhomem, o sábio de 22 anos, o já consagrado professor de Filosofia na Universidade de Paris, que tudo abandonava para acompanhar um amigo. Durante o dia, trabalha com os mari­nheiros e aos marinheiros se devota; à noite, dor­me no convés e tem por travesseiro um rolo de cordoalha.

Em Goa se encontra no meio de uma população miserável, sem outra preocupação que a de libertá-la do miasma moral e material. Mais tarde, em prosseguimento de abnegada missão, ei-lo a des­cer as costas de Comorim e fundando uma igreja no Cabo. Depois, encontramo-lo em Malaca e no Japão, a defrontar novas raças e novos climas. Sabemos que toda a sua vida foi um rosário de sofrimentos físicos e de conquistas espirituais. Fome, sede, torturas inauditas, barraram a senda do peregrino da Fé.

Tudo vencia, porém, e Caminhava avante como que impelido por uma vontade incoercível “Seja qual for a morte, o Suplício que me reservem — dizia —, estou disposto a sofrê-lo mil vezes pela salvação de uma só alma.” A febre e a morte de­tiveram-no nas fronteiras da China. Em face de exemplos Como este, que se poderia concluir das teorias do feijão, das ervilhas e lentilhas? Em que, Como e quando, o regime alimentar teria governado a alma do apóstolo? Teria ele encontrado nessas regiões desconhecidas aquela balança metódica que se oferece ao cidadão e que o capitalista pregui­çoso pode encomendar ao seu Vatel? Que relação pode haver entre Brillat-Savarin e Grimod de la Reyniêre com um Inácio de Loiola e um Vicente de Paula? Os grandes exploradores, à testa dos quais se encontram um Dumont-d’Urville, um Cook, um Livingstone, etc., não vingaram, todos eles, os seus desígnios em circunstâncias e condições físicas as mais contrárias e variadas?

Poder-se-á sustentar que, mudando de terra, de alimentação, de clima, de meio social, de elemen­tos outros e até de corpo, dado a transformação molecular, mudassem também de alma, de fé e de coragem? Pois não é verdade que persistiram ínte­gros na consecução do ideal, através de vicissitudes tremendas e dos mais fortes obstáculos? (93) Na verdade, insistirmos seria injuriar o leitor. Exclu­sive nossos sistemáticos adversários, nenhum espí­rito sensato duvida que matéria e espírito sejam coisas diferentes. Ninguém ignora que, se a assi­milação corporal atua em nosso pensamento, assim como a beleza do dia influi na serenidade de nossa alma, isso não impede seja essa alma um ser pessoal, que chora às vezes quando as aves cantam e as flores exalam perfumes, e outras vezes se en­trega serenamente ao estudo, enquanto o céu tem­pestuoso se funde em raios e trovões (94).

(93) Moleschott ainda não se penitenciou do seu erro e continua sustentando as mesmas opiniões de 1852. Bom seria que imitasse, até o fim, o exemplo de Cabanis. Depois dos exemplos que acabámos de citar, concebe-se que um observador de boa fé proponha, em princípio geral, o se­guinte conceito: — “Em toda a série animal vemos funções múltiplas da vida cerebral em correspondência com as fases de crescimento e decrescimento do órgão; vemos a sensibilidade, o “julgamento”, a “consciência” a coragem e o amor mudarem com o regime alimentar e com o estado de saúde”. Curso de 1865 na Universidade de Zurich.

(94) A Filosofia não se deixa dominar por esses mis­térios. O vitae philosophia dux — exclamava Cícero. (Tese quaest). O virtutis indagatrix espultrixque vitiorun. (Tu urbe. peperisti; tu Inventrix legum, tu magistra morum. et discipline fuisti: “ad te confugimus, a te opem pertimus”.)

Entendam-nos bem e não venham interpretar infielmente as nossas alegações. Nós não dizemos que a matéria seja destituída de toda e qualquer influência sobre o espírito; não dizemos que a alma humana seja completamente independente do orga­nismo e nem mesmo estamos com Platão, a pre­tender que o espírito é estranho ao corpo e que há antipatia entre eles.

Certo, ninguém dirá que uma criatura a mor­rer de fome esteja disposta a cantar. Quem duvi­dará de que, após uma jornada fatigante, cabeceando de sono, tenhamos disposição para dançar?

Então não sabemos, todos, que nossa alma se impressiona com e pelos aspectos exteriores? Que um dia luminoso nos alegra, que uma manhã som­bria e chuvosa nos entristece? Que a placidez das belas noites nos penetra intimamente, proporcionan­do-nos gozos calmos? E, dizei: os poemas sonoros, os amavios da música, sinfonias deliciosas, sonatas apaixonadas, nunca vos arrebataram, nunca vos sa­cudiram os nervos? Será que, nas vossas dispo­sições habituais, tanto quanto nos sonhos que povoam as vossas noites, nunca experimentastes o efeito da alimentação e dos vossos hábitos e mis­teres? Dar-se-á que a maneira pela qual findastes a vossa tarefa, não tenha afetado os vossos sonhos?

Numa palavra: será possível ao observador ne­gar a influência permanente e variável que o mun­do exterior, sociedade, relações, alimento, frio, luz, obscuridade, cidade ou aldeia e causas mil outras, de nós independentes, não influam em nossos pensamentos, sentimentos e sensibilidade? Não. Essas influências são reais, admitimo-las e indicamo-las. Montesquieu, cuja declaração é menos exclusiva do que supõem, escreveu: “Nos países frios haverá pouca tendência para os prazeres, que será mais acentuada nos climas temperados, e sempre exube­rante nas regiões quentes. Ouvindo as mesmas ópe­ras na Inglaterra e na Itália, notei que a mesma música produzia efeitos diferentes, isto é: enquanto na primeira o auditório se mantinha calmo, na se­gunda vibrava de forma inconcebível. O mesmo se dá com relação à dor... A grande estatura e os nervos enrijados dos povos do Norte são menos vibráteis que os da gente dos países quentes. Lá, há menos sensibilidade na dor. Para sensibilizar um moscovita, há que o esfolar.” Mais adiante, porém, acrescenta que, entre as coisas que gover­nam o homem, importa distinguir “a religião, as leis, as máximas, os exemplos”. Concordaremos com o autor de O Espírito das Leis, com restrições, isto é, no que concerne a influências extrínsecas, por assim dizer; mas daí a admitir quê só elas fazem o homem, vai todo um abismo. Uma coisa é dizer que a alma é impressionada por causas situadas fora dela, outra é dizer que essa alma não existe. Chegamos mesmo a nos perguntar como podem os adversários conciliar as duas proposições, quando, no fundo, imaginam que a alma não existe e os pensamentos não passam de produtos da substân­cia cerebral, variáveis com as impressões recebidas. Eis ao que se reduz o homem!

Abstraindo de todas as provas precedentemente acumuladas, a testificação da nossa liberdade viria, enfim, depor a favor da força pensante que nos anima. — O panteismo, fazendo da alma uma par­tícula da substância divina, a escraviza e arrasta, inevitàvelmente, ao fatalismo absoluto. — O ateís­mo, negando a existência do espírito, faz da alma a escrava da matéria e conduz, por outra via, ao mesmo fatalismo. Poderíamos, portanto, proceder por eliminação, e demonstrando a inanidade dessas doutrinas, forçar o acolhimento da nossa, como a única que concilia os diversos imperativos de nossa consciência. Assim, permitiu a sorte fôssem os adversários batidos em todos os quadrantes, e que a negação da personalidade ficasse presa ao pelou­rinho por todos os elementos de nossa convicção.

Concluindo o arrazoado sobre a existência da alma, afirmamos: a dignidade humana não permite um semelhante atentado ao que constitui o seu su­premo fanal, antes protesta contra essas tendências exageradas. As influências exageradas atuam mais ou menos em nós, conforme a nossa sensibilidade nervosa; mas, tanto quanto a composição química do cérebro, elas não constituem o nosso valor mo­ral e intelectual. Para arrasar essa hipótese, bem como a precedente, basta considerar a potenciali­dade da nossa força mental. Só com ela podemos afrontar todas essas influências e seguir desdenho­sos, de fronte erguida, por entre essas ações e rea­ções ambientes.

Quando a alma se acabrunha ao peso de uma dor profunda, pouco nos preocupamos com o estado do céu, que chova ou vente.

Quando nos abandonamos a um enlevo de alegrias íntimas, pouco se nos dá o dia e o mês em que estamos. Quando sérios estudos nos absorvem a atenção, esquecemo-nos de jantar e até de dormir. Quando o som das fanfarras atroa os ares e a ci­dade em alvoroço festeja a liberdade, não ocorre saber se estamos em Julho ou Fevereiro. Quando a pátria periclita, o pavilhão francês não se preo­cupa com a data e o barômetro. A vontade suse­rana não cogita dessas pretensas causas. As pro­fundas emoções do coração desprezam bagatelas. Se a saúde é excelente condição para bem pensar e sentir, não quer dizer que ela só por si promova o estado da alma. Há, na vida, horas mais delicio­sas que as dos mais ôpíparos banquetes, e nas quais se esquecem as iguanas deleitosas aos paladares insaciáveis; horas que eclipsam câmaras suntuosas, peles caras, jóias brilhantes, todos os regalos do mundo, enfim, para só nos absorvermos em gozos mais íntimos e mais vivazes... Quantos, na Terra, fruiram esses momentos de felicidade, sabem que acima da esfera material existe uma região inaces­sível aos tormentos inferiores, onde as almas idea­listas se encontram em comunhão com a Beleza espiritual e incriada.

QUARTA PARTE

Destino dos seres e das coisas

1

PLANO DA NATUREZA — CONSTRUÇÃO DOS SERES VIVOS

SUMÁRIO — O erro e o ridículo dos que tudo ligam ao homem. — Erro semelhante dos que negam a exis­tência de um plano natural. — As leis organizadoras da vida revelam uma causa inteligente. Construção maravilhosa dos órgãos e dos sentidos. — A vista e o ouvido. — Hipótese da formação dos seres vivos sob o influxo de uma força instintiva universal. — Hipó­tese da transformação das espécies. — Todas as hi­póteses são impotentes para destruir a sabedoria do plano divino.

Certa feita, ao deixar uma aldeia à tardinha, vi uma dezena de meninas que corriam e brinca­vam sob a copa de frondosas e velhas tílias. Qual bando gárrulo de aves inquietas, corriam e casqui­navam sob aquelas frondes seculares, que, indubi­tavelmente, viram por ali passar sucessivas gera­ções infantis. Que pensariam a respeito, aquelas árvores imóveis? Quantos sóis teriam visto passar-lhes por sobre as comas verdes? Sonhariam, aca­so, com os esplendores da prístina vegetação que tào gloriosamente vestiu a Terra nos seus dias prima­veris? Teriam elas uma vaga consciência da importância do reino vegetal e da grandeza do seu papel no sistema geral da vida terrena? Talvez... Mas, seguramente, o que não suspeitariam era a opinião que a seu respeito me externava uma daquelas lin­das crianças, quando, metendo-me no brinquedo, lhe perguntei para que serviam aquelas grandes tílias...

— Para brincar de cabra-cega quando a tarde está bonita — respondeu naquele timbre de fran­queza que revela as convicções profundas.

E logo após, como a completar seu pensamento de filha amorosa: — elas servem, também, para a mamãe fazer chá. — E disse-o, oferecendo-me um raminho branco e cheiroso, que caíra de um galho...

Outra noite, em Paris, um tal M. C... a quem falávamos da imensidade do céu e da infinidade dos Mundos, entre os quais a Terra vale por átomo insignificante, respondeu-nos ele com uma ingenui­dade menos perdoável que a precedente, visto pro­vir de um adulto:

— Pregais idéias desastrosas, quando dizeis que a Terra não é privilegiada, nem pode ser su­perior aos astros; pois a verdade é que ela for­neceu o corpo divino de Jesus-Cristo e o da Santa Virgem, e só isso basta para graduá-la acima de todos os astros, autorizando-nos a afirmar que to­dos os astros foram feitos para ela (95).

Simultâneamente, outra boa criatura, que é o Sr. Le Prieur, possuído das melhores intenções, presumia que as marés eram dadas ao Oceano a fim de facilitar a entrada de navios nos portos (96).

A isso, aditava Voltaire, que também não ha­via razão para duvidar fôssem as pernas criadas para enfiar as botas, e o nariz para sustentar os óculos; pois — arrazoava ainda (97) —, para nos podermos certificar das verdadeiras causas, não há como desatender à continuidade dos seus efeitos, em todos os tempos e lugares. Igualmente pueril fora agradecer a Deus o ter feito passar os grandes

(95) Ver Bibliographie catholique, Mars 1866, página 225.

(96) Spectacle de la Nature.

(97) Dictionnaire Fhilosophique.

rios pelas grandes cidades e encalhar os navios nas regiões polares, para assim fornecer aos Groe­landeses a lenha com que se aqueçam. Sente-se quão ridículo fora presumir que a Natureza hou­vesse, de todos os tempos, trabalhado para ajus­tar-se às nossas invenções artísticas e arbitrárias, mas, se evidentemente os narizes não foram feitos para os óculos, foram-no para o olfato e isso desde que há homens.

Assim, também, não tendo sido as mãos en­gendradas para gáudio dos luveiros, destinam-se, evidentemente a todos os usos que o metacarpo, as falanges digitais e os movimentos musculares do punho nos facultam.

Teólogos há que aplicam a causalidade fina­lista por justificar a existência de animais nocivos, qual o fazem com as enfermidades e misérias hu­manas, tudo carregando em conta do pecado ori­ginal.

No parecer de Meyer e Stilling, répteis e in­setos daninhos e venenosos são frutos da maldição que inquina a Terra cóm os terrícolas. As formas não raro monstruosas de tais seres devem representar a figura do pecado e da perfeição.

O autor das Cartas a Sofia, Sr. Aimé Martin, nos sugere a crença de que prevendo o Eterno que o homem não poderia habitar a zona tórrida, nela formou as mais altas montanhas, para aí lhe pro­porcionar um clima agradável. Mais adiante, acres­centa que, “se a chuva escasseia nas regiões are­nosas, é porque aí se tornaria inútil”.

Na baixa Normandia é usual despejar-se o cá­lice do conhaque no café, e eu muitas vezes tive ocasião de conjeturar que, se ao bom Deus aprouve fôsse a aguardente mais leve que o café, não seria senão para que ele pudesse arder à tona e desse, assim, mais um aroma à excelente fusão colonial. Há ainda um infinito número de fatos não menos importantes, que nos fazem amar as causas finais. Talvez devamos advertir que nem todos se podem atribuir a Deus, e alguns antes parecem negócio do diabo, como, por exemplo, o de que nos falava um epicurista amigo, isto é — a condensação nas vidraças, da evaporação noturna, a formar uma dis­creta cortina de certas carruagens fechadas.

Segundo Bernardin de Saint-Pierre, os vulcões, localizados sempre perto dos mares, destinam-se a consumir as matérias corrompidas que carreiam e que poderiam infeccionar a atmosfera.

As tempestades têm a virtude de refrescar a mesma atmosfera, etc. Pensava ele, também, que as pulgas nasceram pretas para que as pudéssemos distinguir na brancura de nossa pele e então pu­ni-las. A plumagem retinta dos corvos, na opinião do Sr. Martin, é para que perdizes e lebres, de que se alimentam no Inverno, possam percebê-los, de longe, sobre a neve. O eloquente autor do Gênio do Cristianismo diz que, vendo-se qual pequena flama azulada, fugir a serpente ondulante, fácil-mente nos convencemos de que foi ela quem sedu­ziu a primeira mulher, O autor das Cartas pré-ci­tadas também afirma que os insetos venenosos são feitos para que o homem desconfie deles.

É claro que o Ideal religioso e a doutrina da Providência nem sempre foram bem servidos por seus prosélitos. Quando se escoram tais sentimen­tos com motivos assim pueris, e frívolos, corre-se o risco de comprometer a causa perante os semi-sábios, o que vale por dizer — a maioria dos es­píritos. Tentativas que tais, não logam senão caricaturar o Ser supremo. A propósito de uns tantos filósofos do seu tempo, dizia Duclos: «Essa gente acabará levando-me à missa.” Hoje, diante da opi­nião de uns tantos devotos, também chegamos a imaginar que: esta gente acabará fazendo-nos du­vidar da Providência.

São idéias que pecam, não apenas por falsi­dade, mas pelo imperdoável estigma do ridículo. Assemelham-se àqueles camponeses de que nos fala Riehl (98), incapazes de ver no mundo outras bele­zas além das roupas domingueiras das alentadas conterrâneas, que também vestem as imagens em certos dias festivos.

O próprio Fenelon não se forra à censura. Assim é que nos representa o Sol como regulando expressamente o trabalho e o repouso, as necessi­dades e os prazeres. Graças ao seu movimento diur­no e anual, um único sol basta para toda a Terra. Se fora maior, à mesma distância, abrasaria, pulve­rizaria o mundo; se menor, a Terra se congelaria, tornar-se-ia inabitável Se, do mesmo tamanho, es­tivesse mais afastado, deixaríamos de viver, à mingua de calor. Que compasso, pois, abrangendo em seu círculo céu e Terra, teria assinalado medidas tão exatas? De fato, ele não beneficia menos as regiões das quais se afasta, do que o faz àquelas de que se aproxima por favorecê-las com os seus raios... Destarte, a Natureza adornada em diver­sas maneiras, oferece simultâneamente tão variados espetáculos que não dá tempo ao homem para des­gostar-se do que possui. Mas, entre os astros, diviso a Lua, que parece compartilhar com o Sol o cuidado de nos aclarar. Ei-la que surge, então, com o seu cortejo estelar, no momento exato em que o Sol vai irradiar noutro hemisfério.”

Lícito é, certamente, pôr em dúvida o valor absoluto deste raciocínio, pois a partilha uniforme dos dias e das noites só se verifica no equador, para diminuir progressívamente e desaparecer nos pólos, com todas as suas virtudes e benefícios. Se lá, nos pólos, algum dia escreverem para glorificar a Pro­vidência, hão-de ver que lhe renderão graças pelos dias e noites semestrais.

Em Mercúrio, ou em Netuno, hão-de concluir que o Sol também está à distância convinhável à eclosão da vida ambiente. Era Júpiter, louvarão o Criador por lhes ter concedido quatro luas, tanto

(98) Die Burgeliche Geseltschaft.

quanto em Saturno agradecerão a dádiva de um anel, que reúne o útil ao agradável, etc.

Diante de tais argumentos não há que admirar tenha a causalidade final caído no mais absoluto descrédito. Eis aí, contudo — dizia J. B. Biot (99) — a que extremos levaram a mania, hoje tão co­mum, de explicar o como e o porquê de todas as coisas naturais, conforme o imperfeito e vago sen­timento utilitário que delas possamos ter. Cada qual, assim, regula a previdência da Natureza ao nível de suas luzes, tornando-a mais ou menos lou­ca, na pauta da própria ignorância. Isso nada re­presentaria, uma vez que tais sonhos fôssem in­culcados pelo seu justo valor e não pretendessem insinuá-los como verdades, como artigos de fé, a ponto de considerarem os seus autores uma impiedade, quando os tachamos de absurdos.

“É preciso — opina Montaigne — julgar com muita moderação as coisas divinas. O em que mais se acredita é justamente o que menos se conhece; nem haverá pessoas mais autorizadas do que aque­las que nos contam fábulas, como sejam os alqui­mistas, os adivinhos, quiromantes, médicos, id gezus omne, aos quais de bom grado eu juntaria, se mo permitissem, uma certa classe de indivíduos que se metem a interpretar e controlar os desígnios de Deus, gabando-se de encontrar as causas de cada acidente e de ver, nos segredos da vontade divina, a razão incompreensível da sua obra. Esbarrados a cada canto, atirados de um lado para outro, mercê da variedade e discordância contínua dos episódios, nem assim deixam eles de seguir o seu painel, a pintarem com o mesmo lápis o preto e o branco.”

Por terem sido escritas há quatrocentos anos, estas judiciosas palavras do venerando ancião não deixam de exprimir uma verdade, que tem aplica­ção a cada momento. Elas merecem ser juntadas àcomparação que o mesmo autor faz do homem com

(99) Mélanges Scientifiques et Litteraires.

o ganso, que se gloria de ser o “favorito da Natu­reza” — comparação já por nós desenvolvida (100) a propósito da vaidade humana, que, de longada, construiu o Universo nos moldes de sua fantasia.

Desde que o homem se deixa arrastar pelo natural pendor de tudo referir a si, torna-se capaz de reduzir o mundo inteiro, para fazê-lo entrar nos seus planos estreitos e mesquinhos.

O Sol já não é, então, mais que um seu mísero servo; as estrelas não passam de ornamento para decoração do seu cenário e servindo-lhe de roteiro na exploração dos mares. Se a atração luno-solar, duas vezes por dia, levanta as águas oceânicas, éapenas para facilitar a entrada no Havre dos na­vios que chegam de Nova-Iorque ou do Rio Amarelo. Se a casca do carvalho excreta o tanino, é para que possamos ter bons couros. Se o bômbix fia a seda no seu casulo, é para ofertar belos estojos às mulheres elegantes. O rouxinol saúda a aurora? — então é para o encanto auditivo de quem o ouve. A Natureza inteira, enfim, foi criada visando o ho­mem, e toda ela concorre para ajudá-lo e o fazer feliz.

É evidente que, quando se chega a tais ex­centricidades, a causalidade final fica singularmente prejudicada. Pretender que tudo tenha sido expres­samente criado para o homem é abusar muito ingê­nuamente da nossa posição.

Antes de tudo, é preciso distinguir a Natureza em duas partes bem diferentes: o Céu e a Terra.

O Céu é o espaço infinito, a multidão incalculável de mundos, o conjunto; a Terra, uma gota dágua no oceano, um grão de areia, um átomo. Que o Céu se tenha criado para o habitante da Terra, é idéia absurda, inconcebível. O Céu não conhece a Terra e o homem, por sua vez, não conhece a mínima partí­cula do Céu. As estrelas são sóis, centros de sistema

(100) Mundos Reais e Mundos Imaginários parte 2ª, capítulo 5º.

de outras terras habitadas. Contamo-las por mi­lhões e certificamo-nos de que o nosso planeta lhes é absolutamente desconhecido e insignificante, em relação a elas que ocupam no espaço domínios tão vastos que a própria luz leva milhares de anos para atravessá-los. De sorte que, se o nosso globo deixasse hoje de existir, seu desaparecimento não seria matemàticamente percebido pelos mundos si­derais.

O átomo terrestre turbilhona, célere, em torno do Sol, com a docilidade da funda nas mãos de um gigante. Mil revoluções siderais se completam simultaneamente, no infinito, em todas as latitudes imagináveis e distantes deste átomo... Quando, pois, o homem pretende a imensidade opulenta dos céus desdobrada no vácuo em sua exclusiva inten­ção; quando fala de princípio e fim do mundo, como se se referisse à sua pessoa, equipara-se a uma formiga que julgasse o campo em que assenta o seu formigueiro, traçado para oferecer-lhe belas perspectivas. As árvores floridas foram destinadas ao prazer da vista, e aquela casinha branca, lá mais longe, não foi construída senão para lhe ser­vir de ponto de referência; e finalmente: o proprie­tário desse campo não cogitou senão dela — formi­ga inteligente — quando organizou o seu habitat” com aqueles jardins, pomares, campos e florestas. Desígnio manifesto. Se, secundàriamente, nos restringirmos à Terra, a idéia de uma finalidade cria­dora é aqui mais particularista, e não haverá ab­surdidade em pretender o homem tenha sido ela construída e organizada para sede da vida e da inteligência. Pode-se mesmo ajuntar que, no plano terreno, o homem é o ser mais elevado. Só ele recebeu o dom da inteligência. Se desaparecesse da Terra, é de crer que esta perderia a sua razão de ser no concerto universal, a menos que não vies­se outra raça intelectual suceder-lhe, o que leva a crer tenha sido mesmo destinado para ser habitado.

Temos precisamente demonstrado, em uma obra anterior, que os mundos foram construídos para moradia do espírito.

Considerando, porém, o homem como o último ser nascido entre os seres terrícolas, cujo surgi­mento sucessivo obedeceu à lei geral de progresso, e considerando-o como o mais perfeito da escala, a pressupor-se o centro final — ou pelo menos atual — da evolução terrestre, negamos-lhe, contudo, o direito de atribuir a Deus as suas mesquinhas con­cepções, e supor que as suas mínimas combinações domésticas participaram do plano divino e eterno. Nem é fora de si que ele deverá procurar a razão de sua grandeza: é naquilo mesmo que o distingue, isto é, no seu valor intelectual. Se, por sua inteli­gência, se apropriou de uns tantos serviços que lhe pode prestar a Natureza, não há confundir essa apropriação com o plano geral.

A estrela polar não foi criada para nortear navios, mas o navegador soube utilizar-se da sua posição peculiar. O carvalho não foi feito para apro­veitar aos cortumes, mas o fabricante descobriu, com a sua inteligência, as propriedades do tanino no tratamento das peles. A púrpura, molusco gas­trópodo do Mediterrâneo, não nasceu para tingir o manto real dos potentados, mas a indústria houve como extrair um colorido brilhante das suas con­chas, o carneiro, o bicho da seda, as aves de plu­ma, as plantas téxteis, o algodoeiro, o linho, o câ­nhamo; as minas de ouro, prata, chumbo, níquel; as safiras, rubis, esmeraldas, etc.; tudo enfim — seres e coisas, que a Natureza oferece ao homem, não foi criado nem posto no mundo com fins par­ticularistas e, se o homem tem progressivamente se apropriado dos elementos, é claro que o deve às suas faculdades eletivas, à sua inteligência e não a um plano primordial necessário, que se houvera de executar fatalmente e, por assim dizer, à revelia da escolha da indústria humana.

Expõe-se o homem a cair em erro grosseiro, quando tudo refere a si, mediante um processo incompleto. Mas, negar um plano à Criação só pelo fato de esse plano não se reportar exclusivamente ao homem, é cair noutro erro. Voltaire deplora em belos versos o terremoto de Lisboa e pergunta, com acrimonia, onde está essa Potência amiga do ho­mem e de que tanto se fala.

Rousseau responde-lhe, então, que a culpa é só dos homens, pois ninguém lhes mandou edificar num solo assim. Nem um nem outro tem razão. O homem enganou-se no seu egoísmo, nisso esta­mos de acordo, e até nos propomos evidenciar a fantasia desse método.

Mas, a falsidade de método não é razão bas­tante para concluir que o objeto desse método não exista, e que o fundo da doutrina seja um erro.

Ora, isso é justamente o que fazem os mate­rialistas, sem perceberem que se deixam seduzir por uma estranha confusão. Certo, a causalidade final, o conhecimento do plano da Criação, não étão simples como imaginam espíritos superficiais. Ë, assim, de extrema complexidade e apresenta dificuldades quase insuperáveis, mesmo para espíritos mais clarividentes. Nós não assistimos aos de­sígnios de Deus e não passamos de pobres ignoran­tes em face de tanta grandeza. Mas, com franqueza, em que pode a nossa incapacidade afetar o prin­cípio das causas? Em que os nossos erros dimi­nuem a idéia da onipotência criadora? Considerais o homem um ser bem importante para armar este dilema: — ou a Natureza gravita para o homem, ou conserva-se em repouso.

Esqueceis, assim, os vossos próprios princípios e habitual desdém pelas aspirações humanas, para nos colocar na alternati­va de crer que a destinação de tudo converge seus raios para nós, ou que não haja nenhum desígnio na unidade universal! Mas, não... A verdade é que deixais o ser humano assaz envolto nas gangas da matéria, para o evidenciardes de um jato no seu aspecto superior. Tende-lo assaz eclipsado na sua intelectualidade para poderdes, de improviso, formular essa alternativa. Mas, como explicar a vossa absoluta negação de qualquer plano da Natureza?

Ei-la aí, esta grande, pretensa explicação, me­diante a qual imaginam suprimir toda a idéia de finalidade geral e particular! Vamos ver que essa explicação é tão frágil quanto as alegações opostas às eternas verdades, e que esses mesmos homens que nos increpam de forjadores de hipóteses, mais não fazem, na verdade, que substituir hipóteses por hipóteses mais complicadas. A diferença principal, entre nós, está em que eles se atolam no seu labi­rinto escuro, enquanto marchamos em reta para o nosso alvo luminoso.

Emmanuel Kant, cuja mão esquerda continha tantos erros quantas verdades continha a direita (balança invejável, mesmo em se tratando de ho­mens privilegiados), não escapou de afirmar, certa feita, que a “conformidade com o desígnio só podia ser criada por um espírito refletido, que, conse­quentemente, admira um milagre por ele mesmo criado”.

Percebeis, por aí, a fecundidade de uma seme­lhante proposição para os senhores de além-Reno. Eles vão extrair-lhe um suco abundante, leitoso, que oferecerão como remédio às imaginações doen­tias; assim um como elixir para velhos e crianças, igualmente aperitivo e nutriente dos que madrugam com fome. Essa declaração genial vai arrasar o secular juízo humano. Abstrai-se de Deus o pen­samento de ordem e harmonia, para dá-lo em home­nagem à inteligência humana. Cirurgiões de nova espécie abrem a veia ao bom Deus, para inocular no cérebro do feliz habitante da Terra o seu prin­cípio vital. É claro, pois não? —. que, se existe ordem na disposição do mundo, e se há inteligência na organização dos seres, ao homem é que o deve­mos atribuir, visto como, evidentemente, no Uni­verso nada pode haver inteligente além do homem, e, presumir um Deus a ele superior, fora Insultar a dignidade do bípede humano.

Ouçamo-los ainda um instante. Um dos principais argumentos dos que admitem deveremos atribuir a origem e conservação do mundo a uma potência criadora, tudo governando e regulando Universo – diz Büchner – sempre foi e continua a ser a pretença doutrina da destinação dos seres, na Natureza. Toda flor espanejando as pétalas brilhantes, todo sopro de vento agitando o ar, toda estrela luzindo na amplidão da noite, toda ferida cicatrizando-se, todo som, tudo enfim, na Natureza, excita a admiração dos partidários da predestinação, pela profunda sabedoria dessa potência superior. A ciência natural dos nossos dias emancipou-se dessas balofas concepções teológicas, que apenas se detém à superfície das coisas, e relega estes inocentes estudos aos que preferem conciderar a Natureza com os olhos do sentimento e não com os do entendimento.

Como poderíamos falar de conformidade aos fins, objetam-nos, se não conhecemos aos seres sob esta exclusiva e única forma e nenhum pressentimento temos do que seriam eles se de outra forma nos surgissem? Nosso espírito nem mesmo é constrangido a contentar-se com a realidade. Qual seria o arranjo natural que não pode ainda realizar-se, de qualquer maneira, mais conforme com o fim? Hoje admiramos os seres, sem nos advertirmos da infidelidade de outras formas, organizações, processos que a Natureza empregou, emprega e empregará na conformidade dos seus fins.

Do acaso depende que eles vinguem, ou não. Então, não há formas grandiosas de vegetais e animais mais desaparecidas a muito tempo e que só conhecemos por destroços fossilizados? Toda essa formosa Natureza, conformemente ajustada a um fim, acrescentam, não será possivelmente destruída por um cataclisma planetário e não se fará preciso ainda uma eternidade para que essas e outras formas desabrochem do limo?

Ainda mesmo que ela fosse destruída, isso nada provaria contra a nossa tese. Não interrompamos, porém, os locutores e continuemos a ouvir-lhes as objeções.

A seguir, vem o velho argumento dos animais inúteis ou nocivos ao homem, que nada prova, igual­mente, contra a inteligência organizada e cai pe­rante esta verdade: — a de não ser a Terra um mundo perfeito. Animais muito nocivos, escreve o autor de Força e Matéria, como por exemplo o rato dos campos, são de uma fecundidade tal, que não podemos prever seu desaparecimento; os gafanho­tos, os pombos errantes, formam bandos compactos de obscurecer o Sol e levam a devastação, a fome e a morte por onde passam... Os que só enxer­gam sabedoria, desígnio, causas finalistas na Natu­reza — diz Giebel — poderiam empregar sua pers­picácia no estudo dos vermes solitários. Toda a atividade vital desses animais consiste em produzir ovos próprios para desenvolver-se, e uma tal ati­vidade só pode ser exercida mediante sofrimento de outros animais. Milhões de ovos perecem inuti­lizados, o embrião transforma-se num escólex, que não faz outra coisa que sugar e engendrar. É um processo em que não há beleza, nem sabedoria, nem conformidade determinativa, na acepção humana.

Para quê? — perguntam depois — as enfer­midades, os males físicos em geral? Qual a razão desse ror de crueldades, de atrocidades, que a Na­tureza inflige a cada dia, a cada hora, às suas cria­turas? O ser que deu ao gato e à aranha a cruel­dade e dotou o homem, essa obra-prima da Criação, de uma índole que o faz tantas vezes tão bárbara e cruel, poderá, assim procedendo, ser um ente bon­doso e benévolo, conforme a idéia teológica?

Mas, em que o fato da aranha devorar moscas e os gatos comerem ratos, tanto quanto o de se­rem os homens criaturas inferiores, avassalando-se aos instintos materiais, prova a maldade ou a ine­xistência de Deus? Como demonstração científica, confessemolo, é superficialíssima.

Depois, procuram nas exceções, nas monstruo­sidades da Natureza, nos seres atrofiados, de incom­pleto desenvolvimento, exemplos de inutilidade ca­pazes de desviar a atenção do plano geral e assim demonstrarem a ausência de inteligência, como se algumas pedras isoladas — que, de resto, entram de si mesmas no plano geral — pudessem destruir a simetria do conjunto e aniquilar o valor arquite­tônico do edifício.

A Anatomia comparada — acrescenta o mes­mo materialista — ocupa-se principalmente no in­vestigar a conformidade de estrutura das diferentes espécies de animais, fazendo ver, em cada espécie ou gênero, o princípio fundamental da sua orga­nização.

Baseada nestes dados, a Ciência nos mostra em cada ordem animal um grande número de for­mas, de órgãos, etc., que lhe são inteiramente inú­teis, não conformes com o seu fim e antes pare­cendo não passarem de forma primitiva da sua constituição, de rudimentos de uma disposição, ou de uma parte do corpo, que atingiu em outra es­pécie um desenvolvimento capaz de facultar ao indi­víduo uma certa e determinada utilidade. A coluna vertebral do homem termina em pequena ponta de nenhuma utilidade, que muitos anatomistas consi­deram como rudimentos da cauda dos vertebrados.

A estrutura corporal dos animais e das plan­tas oferece inúmeros dispositivos sem finalidade apreciável. Ninguém ainda sabe para que serve o apêndice vermicular, a glândula mamária do ho­mem, o osso clavicular do gato, a asa de algumas aves incapazes de voar, os dentes da baleia. —Vogt adverte que há animais verdadeiramente her­mafroditas, possuindo os órgãos de ambos os sexos e não podendo, contudo, reproduzir-se por si mes­mos. Para que serve uma tal organização? — per­gunta ele.

A fecundidade de uns tantos animais é tal, que, abandonados a si mesmos, em poucos anos repletariam os mares e envolveriam a Terra numa crosta da altura de uma casa. Para que serve essa organização? Espaço e matéria não bastam a uma tal quantidade de animais. — Que fim poderia ter a Natureza desenvolvendo uma glândula mamária nas costas de um homem de 34 anos, fenômeno este recentemente observado e descrito pelo Dr. Hobbe, de Viena? Porque dar três Seios completa­mente formados a uma mulher, e quatro a uma outra? E porque, num cortiço de abelhas, milhares de zangões tão só destinados ao extermínio? Ani­mais há que jamais nadam e, no entanto, têm patas providas de membranas natatórias, enquanto que aves aquáticas importantes apenas apresentam del­gadas membranas.

O ferrão da vespa e da abelha apenas lhes serve de arma mortífera ao inseto que o experi­menta, e assim por diante, O desígnio de um Cria­dor Onipotente e onisciente deveria, antes de tudo, ser possível de interpretação racional. Se assim fôsse, não daria, certo, órgãos inúteis aos animais.

Qual a finalidade e utilldade das formas fetais transitorias, nas quais os mamíferos se assemelham aos peixes e aos répteis, antes de atingirem com­pleta formação? Para que servem, no feto humano, os arcos bronquiais com suas aberturas? Porque, nos mamíferos, órgãos rudimentares que só se de­senvolvem nos répteis? E porque, nos mamíferos machos, órgãos genitais femininos que se não de­senvolvem, e vice-versa?

Tuttle não percebe que estas anomalias se in­tegram de si mesmas no plano geral, cuja lei de progresso é princípio e fim.

O autor de Força e Matéria apega-se com unhas e dentes a esses artifícios, no intuito de dissimular a cambalhota, trazendo à baila todos os monstros de terra e mar.

“Um dos fatos mais importantes que desmentem as causas finais da Natureza são os monstros, A. prova de que o simples bom senso não podia conciliar a existência de tais aberrações com a crença de um criador, operando determina­damente, está em que os povos antigos os consi­deravam como expressões de cólera dos deuses, e ainda hoje os simplórios vêem nesses fatos um cas­tigo do céu. Vimos no gabinete de um veterinário uma cabra recém-nascida, perfeitamente conforma­da, mas, sem cabeça. Haverá nada de mais absurdo e mais contrário ao fim, do que ensejar a formação perfeita de um organismo prêviamente inviável, per­mitindo-lhe acesso ao mundo? O professor Lotze, de Goetting, excede-se a si mesmo ao dizer, a pro­pósito de monstros, que, quando a um feto falta o cérebro, a única coisa a fazer, digna de uma potência absoluta, seria sustar os efeitos, desde que não podia remediar o fracasso. Um corpo es­tranho na glote é suscetível de expelir-se com a tosse provocada; mas, um corpo estranho no esô­fago pode, excitando os nervos da laringe, deter­minar a asfixia.

— Cada dia, a toda hora, pode o médico con­vencer-se pelas moléstias, deformidades, abortos, etc., do abandono em que a Natureza deixa as suas criaturas. Outrossim, para que serviriam os médicos, se a Natureza agisse de acordo com um fim?

Sob estes argumentos exagerados, há uma ver­dade constante que é, certo, uma das maiores difi­culdades que se nos podem opor.

Por nós, confessamos que jamais se nos depa­rou um aleijão, que nos não sentíssemos molestados em nossas convicções.

O Gabinete de Anatomia de Estrasburgo, tão rico de monstros acéfalos e de espécimes teratoló­gicos, não nos desperta, neste particular, nenhuma atração. Que alma teriam tido esses fetos detidos uns, desviados outros, em sua evolução normal? Problema que, nem Santo Agostinho, nem São Tomás nos ajudam a resolver, e que a Ciência pouco elu­cida. Considerando, porém, as coisas no seu jus­to ponto de vista, temos que aí militam exceções muito raras, de sorte a não poderem infirmar o ensino de conjunto. Que uma planta se empole aci­ma de um ligamento; que as veias intumesçam à compressão do braço, que impede o retorno do sangue; que um feto paralise a sua evolução, ou que um órgão se atrofie em consequência de parti­cularidade orgânica qualquer, anomalias são essas mais aparentes que reais, a mostrarem que as leis são gerais, tanto quanto não ser Deus um ser mes­quinho, cuja ação se modele pelos obstáculos pas­sageiros produzidos pelo homem, ou por quaisquer acidentes, quando por elas induzem a inexistência de Deus, ou que Deus deveria proceder de acordo com as idéias humanas.

Insistindo mais especialmente acerca das mons­truosidades, também nos advertem da possibilidade de as produzir artificialmente com uma simples lesão do ovo ou do feto. A Natureza, dizem, não tem meios de reparar esse mal e, muito ao contrá­rio, segue o impulso recebido, continua a operar na falsa direção e acaba engendrando um monstro. “Haverá quem possa duvidar da ausência total de inteligência e do puro mecanismo deste processo?

Diante de um fato, desta ordem, poder-se-á admi­tir um criador inteligente governando a matéria a seu nuto? Seria, então, Possível que essa inteli­gência se deixasse vencer ou desviar pela vontade arbitrária do homem ?“

Admiremos aqui, até onde ousam levar esta crítica às obras da Natureza (101). Para que esses senhores se contentassem e se dignassem fazer jus­tiça à inteligência que rege o mundo, fora preciso que a ordem soberana e inflexível cercasse os seres de uma couraça de aço rígido. Admirais a fina tessitura da pele, uma cútis acetinada, sua alvura e sensibilidade ao menor contacto. E, na verdade, não tendes razão. Essas qualidades, não provam que a Natureza tenha operado inteligentemente e preparado ao mesmo tempo as condições sanitárias de um corpo bem constituído, assim como as sen­sações úteis ou agradáveis, que essa carne vibrátil venha a experimentar. Não. Esses filósofos have­riam de preferir o mármore ou o ferro: “a Natu­reza poderia ter agido de forma que as balas es­fusiassem do corpo e as espadas acutilassem sem ferir (102). Que tal esta crítica? Eis aqui uma criança que acaba de nascer: se lhe decepardes a cabeça, essa cabeça não tornará a nascer. Estúpida Natureza! que se deixa assim . anular pelo arbitrá­rio capricho humano”... E, quereis ainda conhecer uma outra prova da ininteligência de Deus e da futilidade dos que nele acreditam? — Ei-la e tomai bem nota, porque é prova irresistível. A luz, cuja velocidade se estima em 75.000 léguas por segundo, não vai assaz rapulamente. “A luz atravessa tão lentamente o Universo, que seriam precisos milhões de anos para chegar de uma a outra estrela. Que se há-de pensar destas restrições tão pouco Sábias, como manifestações de uma vontade criadora? (103).

(101) Já registamos que esta crítica é velha quanto o mundo. Diz Lucrécio: (parte 5ª) “como é que as vagas dos elementos criadores fundaram o céu, a Terra, cavaram o fundo oceano e dirigiram o curso do Sol e dos astros? Repito: este conjunto não pode ser obra de inteligência os elementos do Universo não poderiam ter meditado a ordem que a eles preside, não Combinaram de antemão o surto e o movimento que deveriam sustentar mutuamente a ver­dade, porém, é que, infinitos em número, esses elementos Sacudidos em todas as direções, submetidos de toda a eter­nidade, a choques estranhos levados pelo próprio peso, atraídos, reunidos em todos os sentidos tentaram, tomaram, abandonaram e retomaram todas as combinações, e, à custa. de movimentos conjuntivos, coordenando-se, engendraram essas grandes massas, que se tornaram mais ou menos no primitivo esboço da Terra, do céu, dos mares e das espécies animadas.”

(102) Büchner — Força e Matéria, capítulo 11º.

(103) Idem, idem.

Talvez objeteis, ingênuo leitor, que a maior ou menor velocidade da luz nada tem que ver com a inexistência de uma vontade criadora. Mas, nesse caso, é que não percebestes que esses escritores julgam que Deus, se existisse, deveria ter as mes­mas nossas fantasias. E como ao Sr. Büchner não lhe apraz que a luz apenas percorra 4.620.000 lé­guas por minuto, é claro que ela deveria correr mais. Arrastando-se assim penosamente no espaço, é porque não existe Criador. Isto posto, podeis per­guntar qual a cifra que agradaria ao talentoso crítico e sabereis que o próprio Sr. B... não o sabe ao certo, e o que só deseja, para o momento, é que a luz caminhe mais depressa. — Mas, a des­peito de tudo, não nos devemos formalizar por esta inocente fantasia, antes, pelo contrário, comparti­lhar do mesmo nobre desejo. Assim, confessamos que veríamos com prazer quaisquer progressos de rapidez na luz, mesmo aqui por baixo.

Aí estão, dir-se-á, objeções meramente ridícu­las. Entretanto, as mais sérias dificuldades desa­parecem por si mesmas, quando o homem deixa de apresentar-se como ponto de referência. E isso é o que se lhe impõe, de vez que é, ele próprio, parte integrante de um plano geral, extensivo a outroS mundos, na imensidade da Criação. Se o Cid, se Ãndrômaco — advertimos com E. Bersot (104) ressuscitassem para se verem representados por Corneille e Racine — tendo em vista o belo papel que lhes atribuiram, o relevo em relação a outras personagens, a predileção do poeta neles concentra­da — diriam, seguramente, que Corneille e Racine tiveram em mira erguer um monumento à sua glória, e mais — que são eles finalidade da obra, a sua mola real, e que os demais comparsas apenas vêm à cena por causa deles... A verdade é que o objetivo do autor é realizar o belo, cuja perspec­tiva o inflama; é traduzir na linguagem dos homens o ideal invisível. As personagens não passam de instrumentos. Não temos aí uma justa imagem da Criação? Tem graça, então, ver como algum dos

(104) Du Spiritualisme et de la Nature.

atores, chamados à cena para balbuciar um só vo­cábulo em toda a peça, imagina que o teatro foi construído e ornamentado para ele e que estivera vazio até então, etc.

A ilusão dos sentidos e a vaidade aí se juntam para induzir-nos em erro, O fim da Ciência é li­bertar-nos da mais funesta superstição, dos inimi­gos da verdade. Deixem-se os teólogos de invocar as causas finais, pois não há como ser juiz e parte ao mesmo tempo. O mundo organizado é toda uma harmonia imensa; os monstros de que falámos, são atestados de unidade da lei e do plano da Natu­reza, Os seres inúteis e os nocivos ao homem são manifestações da força criadora e das etapas gra­dativas. O conjunto é o que importa considerar, e não o “habitat” humano. À face desse panorama, esvanecem-se todas as objeções derivadas de uma acanhada aplicação ao homem.

Concentremos agora a nossa atenção na cons­trutividade inteligente dos órgãos destinados a trans­mitir ao cérebro o conhecimento do mundo exte­rior, isto é, dos sentidos e, particularmente, da vista. A beleza da conformação ótica do olho, não há quem a possa contestar. Afirmar que ele foi feito para ver, como o ouvido para ouvir, é come­ter pleonasmo. Repetir que a sua organização émais perfeita que a de qualquer câmara fotográfica é incidir em banalidade. Mas, para combater o adversário no mesmo pé e no mesmo terreno, im­porta entrar em detalhes por um momento e invo­car a descrição anatômica do olho.

A visão nos olhos do homem, como nos do animal — dizia Euler — é coisa maravilhosa. A forma do globo é, em geral, esférica e compõe-se de três folhetos. A membrana mais superficial cha­ma-se esclerótica (branco do olho), é opaca, assaz espessa e cerca mais ou menos os três quartos posteriores do globo visual, dando-lhe consistência e forma. Sua parte anterior apresenta uma abertura. arredondada, na qual se embute a córnea transparente. A essa membrana estão ligados os músculos destinados a movimentar o globo. Por baixo dessa primeira membrana fica a coróide, de cor negra retinta, que faz do olho uma verdadeira câmara-escura, absorvendo os raios que pudessem irritar a retina; em sua parte anterior, ela forma um como repartimento diafragmático, chamado íris, disco cir­cular com um orifício central e colorido de diversos matizes, cuja suave atração é, às vezes, maravilho­samente poderosa.

O orifício central é a chamada pupila (ou me­nina dos olhos) e nós sabemos que ela nada tem de objetivo, como se afigura, e sim, apenas, uma abertura que se dilata, mais ou menos, conforme a quantidade de luz que os olhos recebem, pois que a íris goza da propriedade curiosa de se contrair ou dilatar para tornar-se, assim, um graduador in­dispensável. É por essa abertura variável da íris que os raios luminosos penetram na câmara-escura que lhe fica por trás. Uma lente biconvexa lá está suspensa, para receber esses raios — é o cristalino.

Toda a parte posterior, a partir dessa lente até o fundo do olho, está cheia de massa gelatinosa, diáfana, semelhante à clara de ovo e conhecida por humor vítreo.

Finalmente, atrás desse humor e defronte da pupila, localiza-se a mais delicada e importante das membranas, a placa sensível, que recebe a imagem e, comunicando-se com o cérebro, lhe dá a percep­ção: é a retina, uma floração do nervo ótico, pro­veniente do cérebro. Vê-se, pois, sem metáfora, que é o cérebro que se vem colocar à janela para ver o mundo exterior.

O prolongamento da retina forra toda a zona posterior e interna dos olhos.

O cristalino, lente pela qual passam todos os raios luminosos, a fim de chegar à retina, pode, com extraordinária facilidade, modificar a cada ins­tante a sua flexão, de maneira a adaptar-se à dis­tância e levar constantemente à retina uma imagem nítida. Mas, como concebermos possa esse cristal orgânico dilatar-se e retrair-se assim, à sua von­tade? Sem concebermos esta possibilidade, fora pre­ciso uma estrutura ainda mais admirável que o próprio efeito. É preciso saber que esse globo len­ticular não é nenhum sólido constituindo uma peça inteiriça, mas, antes, uma associação de finissimas lâminas transparentes, justapostas e tão delgadas que preciso fora reunir um milhar para perfazer a espessura de uma unha, e que, na realidade, o cris­talino contém assim uma como bagatela de cinco milhões. Considere-se, a mais, que essas lâminas por sua vez se compõem de pequenos fragmentos soldados entre si, e que é o jogo desses fragmen­tos que produz a extraordinária mobilidade interna dessa lente diáfana.

Aí estão as criações maravilhosas, das quais se repleta a Natureza, e que passam comumente despercebidas!

Mediante essa estrutura engenhosa quão inimi­tável da vista, os objetos exteriores passam do campo físico ao mental, tornam-se acessíveis ao espírito e deixam-se tatear, como se deles não nos separasse qualquer distância. É um mecanismo que se molda a todas as contingências. De si mes­mo e a nosso nuto, ele se adapta às variações de luz, como as de espaço, e faz o que nenhum outro instrumento é capaz de fazer, isto é, sabe distin­guir os corpos celestes a distâncias enormes, tanto quanto os seres microscópicos que se lhe acercam de centímetros.

Brewster tem razão quando o denomina “sen­tinela que guarda a passagem entre os mundos material e espiritual, executando a. permuta de suas comunicações”.

Nós compreendemos que, depois de haver pon­derado a estrutura do órgão visual, Euler dê arras à sua admiração, dizendo: “O olho ultrapassa, por­tanto, infinitamente, todas as máquinas que o en­genho humano possa construir. As diversas matérias transparentes de que ele se compõe, têm, não apenas um grau de densidade capaz de causar re­frações diferentes, como bem determinada se apre­senta a sua configuração, de sorte que todos os raios saídos de um ponto do objeto são exatamente reunidos num mesmo ponto, ainda que o objeto esteja mais ou menos distante, situado direta ou oblíqüamente, e que seus raios sofram refração diferente. À mínima alteração que se operasse na natureza e na configuração das matérias transpa­rentes, o olho perderia desde logo todas as vanta­gens que acabámos de admirar.

Nada obstante, os ateus ousam sustentar que os olhos, bem como o mundo inteiro, não passam de obra de mero acaso. Nada encontram eles, em tudo isso, digno de sua atenção. Não reconhecem na estrutura do globo visual indício qualquer de sabedoria, antes acreditam haver motivo para las­timar-lhe a imperfeição, de vez que não domina a obscuridade, não atravessa uma parede, não dis­tingue as particularidades de um objeto mais dis­tanciado, quais a Lua e outros corpos celestes. Gritam eles, alto e bom som, que o olho nada é que indique um desígnio e foi feito ao acaso, como qualquer fruto silvestre, pelo que fora absurdo di­zer que tivemos olhos para podermos ver. O que se conclui é que, ao invés, tendo recebido ocasio­nalmente os órgãos, deles nos aproveitamos tanto quanto o permite a Natureza. É inútil discutir com essa gente: inabalável nas suas convicções, ela despreza as coisas mais respeitáveis. Suas presúnções a respeito dos olhos, vê-se, são absurdas quan­to injustas (105).

Os raios que ao nosso cérebro transmitem o aspecto dos objetos, penetram no olho, obedecendo às leis da refração, em virtude das quais as subs­tâncias do olho se encontram de si mesmas dispos­tas. A íris enche o globo ocular e exerce, em rela­ção

(105) Lettre à une Princesse d’Aliemagne, 41º.

aos raios luminosos, o papel de diafragma. A chispa central, luminosa, que atravessa a pupila, atinge logo o cristalino; esses raios são fortemente aproximados por essa lente biconvexa, mas, sem que daí resulte decomposição de raios luminosos, assim facultando a coloração prismática objetiva. Este perfeito acromatismo, tão rara e dificilmente obtido na construção das objetivas, é devido à di­ferença de densidade das numerosas camadas con­cêntricas do cristalino. Os raios luminosos, tornan­do-se fortemente convergentes ao atravessarem o cristalino e, mais ainda, pelo humor vítreo que se lhe segue, tendem a reunir-se num foco comum e a formar uma imagem que se vai desenhar na su­perfície da retina. O olho se adapta, pois, de si mesmo, às distâncias, seja pela contração da íris, seja pelo alongamento ou retração do eixo do cris­talino. Ao demais, exposto, devido à sua posição, a numerosas alterações, a Natureza tomou as maio­res precauções em sua garantia. Assim, para sub­trai-lo a uma excessiva excitação luminosa, dispôs na parte anterior as pálpebras movediças, guar­necendo-as de cílios protetores, e cujo interior se forra de membrana delicadíssima, lubrificada com a secreção de uma glândula situada na abóbada orbitária, a verter de seis ou sete pequeninos ca­nais que se abrem ao alto da pálpebra superior.

Ante a descrição anatômica do globo visual, que desejaríamos poder ilustrar direta ou gràfica­mente, a nós mesmos nos perguntamos como New­ton, “se o olho poderia ser feito sem conhecimento da Ótica”, para responder com o ilustre pensador que essa estrutura demonstra, sem contestação pos­sível, não só a existência de uma inteligência co­nhecedora da Ótica, como capaz de lhe submeter às leis todos os movimentos da matéria.

Efetivamente, é preciso audácia para diante da construção portentosa do órgão visual, preten­dê-la originária de uma força cega e ignorante, simples jogo da matéria e independente de inteligência Se a luneta astronômica, que não passa de grosseiro arranjo de lentículas, testifica ao senso comum a intervenção de um técnico, como poderia a lente do homem, infinitamente superior a todo e qualquer aparelho físico, ser considerada obra es­pontânea do acaso? Pois isso — pesa dizê-lo — é o que propugna a escola materialista!

O olho formou-se por si mesmo! Este fato im­portante é uma aquisição dessa meia-ciência, rea­lizada em duas fases, a primeira com Darwin e a segunda com Büchner. Este nos diz que ao escre­ver, há sete anos, sobre a inexistência de Deus, não esperava que os progressos constantes da Na­tureza lhe fornecessem, tão cedo, “provas tão exatas e convincentes”, em apoio de sua doutrina, e essas provas é Darwin quem se encarrega de as editar. Está, enfim, provado (?) que o olho, órgão dos mais perfeitos do corpo animal (o Sr. B. confes­sa-o) desenvolveu-se insensívelmente de um simples nervo sensitivo! O Sr. Büchner exulta de alegria com esse feito, ou por melhor dizer, com essa teo­ria que lhe prova, ao seu ver, a inexistência de Deus. Ouçamos o próprio Darwin, vejamos se o fato está bem comprovado e se, mesmo neste caso, a explicação secundária suprime a existência de Deus.

Antes de mais, diz o naturalista (106), parece, confesso, estranhável absurdo supormos que o olho, tão admiràvelmente construído para suportar mais ou menos luz, para ajustar o foco dos raios visuais a diferentes distâncias e a corrigir a aberração esférica e cromática, possa formar-se por seleção natural.

E contudo, quando pela primeira vez foi dito que o Sol estava imóvel e a Terra girava, o bom senso declarou falsa a teoria. Todos os filósofos sabem que, em matéria de Ciência, não podemos

(106) On the origin of species by means of natural se­leotion.

confiar no velho adágio — vor populi, vor Dei. A razão me diz e assegura podermos demonstrar inúmeros graus de transição entre o globo mais perfeito e complicado e o mais simples e imper­feito. Cada um desses graus de perfeição aproveita útilmente a quem o desfruta. Se, de resto, o olho varia algumas vezes, por pouco que seja, e se as variações se herdam, o que se pode demonstrar por fatos; se, enfim, as variações ou modificações do órgão jamais puderam ter alguma utilidade para um animal colocado em condições mutáveis de exis­tência; desde logo ressalta o pressuposto de que um olho perfeito e complicado pode ter sido for­mado por seleção natural e esta rigorosamente con­siderada como verdadeira. Como pode um nervo tornar-se sensível à luz? É um problema que nos importa tão pouco quanto o da origem da vida em si mesma.

Devo apenas dizer que vários fatos me levam a crer que os nervos sensíveis ao contacto podem tornar-se sensíveis à luz, bem como às vibrações menos sutis, produtoras do som.

Darwin não tem razão de julgar que a origem do órgão visual importa tão pouco quanto a da própria vida, e nós gostaríamos de saber se, para ele, essa origem elementar oferece alguma seme­lhança com a sensibilidade do iodo à luz, verificada na chapa fotográfica. Mas, visto que ele se cala, vamos admitir provisoriamente a possibilidade do fato, e ouçamos o desenvolvimento da teoria do pro­gresso.

Entre os vertebrados vivos não encontramos grande variedade de olhos; nos articulados, porém, podemos acompanhar toda uma série, partindo do simples nervo ótico, recoberto de camada pigmen­tar e formando, às vezes, uma espécie de pupila, embora sempre desprovido de lente ou qualquer mecanismo ótico. Depois desse olho rudimentar, ca­paz apenas de só diferençar a luz da obscuridade, deparam-se-nos duas séries paralelas de órgãos visuais, cada vez mais perfeitos, entre as quais, Muller diz haver diferenças fundamentais: — a dos olhos chamados simples, providos de lente e córnea, e a dos complexos que excluem os raios convergentes de todo o campo visual, exceto o pincel lumi­noso, que chega à retina seguindo uma linha per­pendicular ao seu plano.

O grande advogado da seleção natural pensa que, admitindo originariamente, nos primeiros organismos a existência de um nervo sensível à luz, põder-se-á admitir que a Natureza, em virtude dessa lei organizadora do progresso chega, insen­sivelmente aos aparelhos óticos, sejam cônicos, se­jam lenticulares, perfeitos

Os seres favorecidos com esse nervo maravilhoso dele se utilizaram e o aperfeiçoaram em be­nefício próprio. Se refletirmos, diz ele na varie­dade de graus que apresenta a estrutura ocular dos nossos crustáceos e nos lembrarmos do número de espécies extintas, não vejo dificuldade alguma, e, sobretudo, uma dificuldade maior que a relativa a outro órgão em admitir que a seleção natural haja transformado um aparelho simples, apenas constituído de um nervo ótico Pigmentado e reves­tido de membrana transparente, num Instrumento tão perfeito qual o podem Possuir quaisquer repre­sentantes da grande família dos articulados.

Parece muito natural comparar o órgão Visual a um telescópio. Ora, sabemos nós que este instru­mento tem sido sucessivamente aperfeiçoado gra­ças a esforços perseverantes de inteligências huma­nas, de ordem superior, e assim inferimos a formação do olho mediante análogo processo. “Será uma indução muito presunçosa? — pergunta ele com alguma razão. Que direito temos de afirmar que O Criador opera com o concurso das mesmas faculdades intelectuais do homem? Nada obstante a advertência, Darwín prossegue apllcando à obra divina as idéias afloradas em seu cérebro Eis como expõe ele a formação lenta, nas espécies vivas, do instrumento ótico que nos faz ver. É uma hipó­tese sem maldade preconcebida. “Precisamos figu­rar, diz, um nervo sensível à luz, colocado atrás de espessa camada de tecidos transparentes, con­tendo espaços cheios de fluidos; depois, au poremos que cada parte dessa camada transparente muda? contínua e lentamente, de densidade, de maneira a separar-se em camadas parciais, diferentes em den­sidade e espessura, colocadas a distâncias variáveis entre si e cujas duplas superfícies mudam lenta-mente de forma. Além disso, é preciso admitir exis­ta um poder inteligente e esse poder inteligente éa seleção natural, constantemente alertada de toda e qualquer alteração acidental das camadas trans­parentes, a fim de escolher, solícitas, aquelas que por circunstâncias diversas podem, de algum modo e em grau qualquer, favorecer a produção de ima­gens mais nítidas. Podemos ainda supor que esse instrumento foi multiplicado por um milhão, em cada um desses estados de perfectibilidade, e que cada uma dessas formas se perpetuasse, até que se lhe apresentasse ensejo de melhora, permitindo o quase imediato abandono e destruição da antiga.”

Nos seres vivos, a variabilidade produzirá as ligeiras modificações do instrumento natural, a des­cendência multiplicá-la-á ao infinito, assim modifi­cada, e a seleção natural escolherá, com infalível habilidade, cada novo aperfeiçoamento realizado. Que este processo continue operante por milhões e milhões de anos e, em cada ano, influindo sobre milhões de indivíduos de todas as espécies, já não será impossível acreditar possa constituir-se assim um aparelho de ótica viva, com requisitos superio­res aos de nossa manufatura, ou seja, com a supe­rioridade característica das obras divinas em rela­ção às humanas.

Os observadores podem assinalar no sistema darwiniano uma certa reserva favorável a Deus, mas essa reserva não quadra aos materialistas ra­dicais. Até o seu tradutor francês, senhorita Clemência Royer, censura-o com veemência, por des­viar-se em tão bela rota e ainda se deixar levar pela idéia de um Ser supremo. “O Sr. Darwin não me parece bastante corajoso — diz ela no seu pre­fácio. — Será por prudência que não vai ao fim do seu sistema, detendo-se a meio da cadeia das respectivas consequências? Quando espíritos ardo­rosos, senão mais lógicos, formularam consequên­cias extremas, o mundo dos puritanos, escandali­zado com a tese de que o planeta não descendia em linha reta da coxa de algum deus, protestou em altos brados”, etc... Essa moça, ao menos, vai até o fim; não tolera que ainda se possa tomar Deus a sério, ridiculiza igualmente os teólatras, sapateia sobre os destroços do teísmo e fulmina os defen­sores de uma Entidade suprema. Vira a cara a todo e qualquer sintoma de idéia religiosa e abre os braços aos declamadores alemães. O cura Mes­lier toca violão no seu tonel, e a dança prossegue maravilhosa...

Só há um pequeno defeito de lógica nestes exímios pensadores, qual o de ser essa presumida, rigorosa lógica, soberanamente ilógica, ainda mais quando os fatos e teorias consignados pelos darwi­nistas não comportam as consequências ridículas que lhes atribuem. E o mais curioso em tudo isto e que esses espíritos fortes — atordoados com a sua exaltação — não percebem a lacuna que per­sistem em manter, entre as premissas e conclusões do seu raciocínio. Sua maneira de falar compara-se a uma rota traçada em altiplano e seccionada a meio do seu curso por um abismo profundo, qual os que soem separar bruscamente duas galerias. As extremidades da rota não estariam màl feitas nem mal traçadas, mas, infelizmente, não se pode caminhar de ponta a ponta, de vez que o abismo as isola irremediàvelmente. E isso porque, lançar aí uma ponte, é mais difícil do que parece.

Ao pensar dos mestres, não há solução de con­tinuidade e a ação puramente constante de Deus vale para explicar tanto a origem como a sucessi­vidade das coisas: os discípulos, porém, pretendem (ultrapassar os mestres e desnaturam as teorias de que se dizem defensores. Pobres defensores! Temos já visto como raciocinam os experimentadores. Va­mos registar a opinião do autor da teoria da uni­dade de plano, Geoffroy Saint-Hilaire. Ao invés de pender para as negações que hoje nos opõem, o sábio fisiologista se julga no dever de afirmar bem alto, que, antes, vê na sucessão das espécies “uma das mais gloriosas manifestações da potência cria­dora, tanto quanto um motivo de maior admiração, de reconhecimento e de amor” (107).

Digamo-lo com firmeza: mesmo admitindo, sem reservas, todos os fatos invocados pelos materia­listas; mesmo perfilando-nos ao lado de Darwin, Owen, Lamarck, Saint-Hilaire e, sobretudo, com es­tes (porque há sempre gente mais realista do que o rei), para supor que os olhos, os sentidos, os homens, os animais, seres e plantas vivos, em suma, se tenham formado pela ação permanente de uma força natural, nem por isso se provaria a inexis­tência de Deus, e, sim, ao invés, que Deus existe. Somente, o que se dá é que, em vez de se nos re­velar como pedreiro, ele se nos antolha como arqui­teto. E com isso, cremos, nada perde, nem muito, nem pouco.

Em nosso estudo geral da Força e da Matéria (segunda parte, capítulo II), acompanhámos essa metamor­fose da idéia de Deus. Do ponto de vista da desti­nação dos seres e das coisas, a idéia correlativa sofre a mesma progressão; longe de enfraquecer a antiga beleza do plano criador, ela o desenvolve e reforça grandemente. Se, em vez de uma mão a construir o protótipo de cada espécie animal e ve­getal, admitirmos uma força íntima, aplicada à ma­téria, isso em nada afeta a idéia de uma inteligên­cia criadora e da finalidade da Criação. Porque,

(107) Principes de Philosophie Zoologique.

na verdade, é preciso cerrar preconcebidamente os olhos, para que se não veja nessa força íntima da Natureza o efeito de um pensamento inteligente. É preciso ser cego para desprezar o índice evidente de uma causa poderosa e eterna.

Pretender que a Natureza se forme de si mes­ma e progrida instintivamente, numa direção cons­tante para resultados cada vez mais perfeitos, éconfessar em parte que ela se encaminha a esse ideal devido a uma causa inteligente. Como pode­ria a matéria inerte ter tido a idéia de se enformar sucessivamente como vegetal, como animal, como homem, engendrando todos esses órgãos que cons­tituem o ser vivente e conservam a vida através dos séculos? Como construir esses aparelhos me­diante os quais o ser vivo se comunica permanen­temente com as causas que o não constituem? Por que capricho do acaso esses órgãos se teriam gra­dativa e lentamente formado para essa comunica­ção dos sentidos, ligados ao cérebro pensante, que, só ele, conhece e julga? Como explicar a técnica perfeita dessas construções? Porque completos e não falhos, esses aparelhos, em sua grande maio­ria? Como, em sua integridade, por geração, se per­petuam esses organismos vivos? Porque a Criação composta de gêneros, de espécies, de família? Por­que pode o espírito humano estabelecer classifica­ção baseada no conjunto dos seres? Como reconhe­cemos em tudo isso uma ordem geral? Porque a Natureza não representa um caos de monstruosi­dades?

A todas estas perguntas, respondem-nos com a lei de seleção natural. Explicam todos os pro­blemas repetindo que a Natureza é arrastada a um progresso incessante, que despreza o mau pelo bom e tende sempre a realizar formas mais perfeitas.

Mas, em suma, que é que vem a ser essa ten­dência, esse progresso instintivo, essa necessidade de engrandecimento, senão o ato de uma força uni­versal dirigindo o mundo para o ideal? Que significa essa marcha simultânea de todos os seres para a perfeição, senão a revelação eloquente de uma causa, que sabe onde e como conduz o carro, sem que a matéria servil pudesse jamais opor-lhe o mínimo obstáculo?

O que acabamos de expender com relação àvista, pode também aplicar-se ao ouvido, que não é menos admiràvelmente construído, conforme as leis da Acústica. Poderíamos, quiçá, conceder que os ignorantes, os que jamais fizeram observações anátomo-fisiológicas e desconhecem a Física, tives­sem a fantasia de acreditar que olhos e ouvidos não foram feitos. para ver e ouvir. Mas, que ho­mens instruídos, depois de escalpelarem, de obser­varem e tatearem esses órgãos, nos venham dizer que eles são produto de forças cegas, isso é o que nos parece aberração de espírito, dificilmente justificável. Não teriam visto que a só modelagem ceroplástica de um desses maravilhosos aparelhos basta para exaltar-nos o espírito e levá-lo a reco­nhecer a existência de um mecânico conhecedor das leis da Natureza? Quem já se não sentiu tomado de admiração emocional em contemplando o meca­nismo auditivo? O pavilhão exterior, cujas gracio­sas ondulações carreiaxn as ondas sonoras até o centro, mais não é que destinado a servir ao con­duto auditivo. Este, transportando o som, do ori­fício do ouvido à membrana do tímpano, o trans­mite integral ao nervo que deve realizar a sensação, forrado de uma substância mucosa, onde as glân­dulas segregam um humor destinado a moderar a impressão muito irritante do ar, bem como a in­terditar a entrada de corpos estranhos. Atrás do tímpano fica uma pequena câmara com duas jane­las, uma redonda e outra oval, contrapostas ao tím­pano e comunicando-se com o ouvido interno. Este compõe-se, em primeiro lugar, de uma cavidade óssea contornada em espiral, chamada caracol; e depois, de três cavidades semicirculares, finalmente, de uma cavidade central, cheia de líquido aquoso, no qual se banha o nervo acústico que lá termina. As vibrações sônicas chegam às membranas da janela oval e da redonda, deslizam pela rampa do caracol, daí pelos canais semicirculares, chegan­do, finalmente, à cavidade central cheia do líquido aquoso, que transmite as vibrações ao nervo acústico. Este é apenas timbrado, e a impressão trans­mitida ao cérebro é o que constitui a audição. Tal, em seu conjunto, o mecanismo da audição. Não entramos em pormenores, para não aumentar com­plicações. Mesmo nos limites desta singela descrição, que espírito culto ousará contestar, a Sério, que um tal mecanismo não prova que seu constru­tor soubesse que o som consiste em vibrações, e que estas não poderiam transmitir-se senão me­diante uns tantos dispositivos; bem como, que, para torná-lo integralmente perceptível ao cérebro, im­punha-se um aparelho acústico fronteiro ao nervo?

Que homem sensato recusará admitir que esse instrumento não podia construir-se de si mesmo, por acaso, sob o impulso de qualquer força bruta e sem plano preconcebido de construção” (108).

E, se, abstraindo-se do aspecto físico do ser pensante, déssemos aos adversários a honra emba­raçosa de penetrarem no caráter íntimo do pensa­mento? Se lhes perguntássemos como pode um som falar ao espírito e este atender ao ouvido? Se os convidássemos a demonstrar que o homem não é uma inteligência servida pelos órgãos, duvidamos pudessem eles safar-se airosamente, a menos que se não valessem dos subterfúgios próprios dos maus combatentes.

(108) Voltaire não podia sopitar a sua admiração diante dos negadores de uma causalidade geral. Em Filo­sofia, diz ele (Diccionaire Fhilosophique, Dieu). confesso que Lucrécio me parece muito inferior a um porteiro de colégio. Afirmou que olho, ouvido, estômago, não foram feitos para ver, ouvir e digerir; não é o maior dos absurdos, a mais revoltante das loucuras do espírito humano? Por muito céptico que sou, essa loucura me parece evidente e não vacilo em apontá-la.

Mas, ainda quando estivessem com a verdade, acerca das relações de órgão e função, ainda mes­mo que provado ficasse serem os órgãos desenvol­vidos e constituídos pelo jogo das funções; ainda assim, restaria por explicar um fato bem mais ge­ral e considerável. Que função explicaria a orga­nização total da vida terrestre? Vêde essas massas flocosas suspensas no firmamento como edifícios de prata, vaporosos, nuvens cuja sombra tempera o calor mortificante do dia. Elas nos vêm dos ma­res, trazidas sobre as vagas da atmosfera, dirigidas pelos ventos para os continentes e terras habita­das. Sob ação de uma força cega, que sucederia se elas deixassem de espalhar a chuva fecundante nos campos e nos prados? Prestes, uma seca im­piedosa crestaria o solo, a vegetação se fanaria, toda a seiva de vida estaria morta.

Se a organização geral da planta não é regu­lada por um espírito superior, ousarão presumir que foi à força de rolar no espaço que a Terra adquiriu sucessivamente a faculdade de viver e re­novar-se em sentido constante e progressivo? Ainda nisto, opomos aos antagonistas ignorantes, ou sis­temáticos, o testemunho dos exploradores do mun­do físico, dos que descobriram o regime das cor­rentes aéreas e marítimas. “Depois da constatação, tão evidente, da ordem que preside à economia fí­sica do planeta — diz o comandante Maury — po­der-se-ia admitir que as rodas e peças de um relógio foram construídas e articuladas por acaso, dando-se ao mesmo acaso uma direção nos fenômenos da Natureza? Tudo obedece a leis conformadas ao fim supremo, tão claramente indicado pelo Criador, que quis fazer da Terra uma habitação para o homem” (109).

(109) Não podemos, a propósito, deixar de assinalar a confissão de um navegador ao comandante Maury: — “Vos­sas descobertas — diz ele — não nos ensinam apenas a seguir as rotas marítimas mais diretas e mais seguras, como também a conhecer as melhores manifestacões da sabedoria e bondade divinas, que nos rodeiam constantemente. Há muito comando um navio e jamais fui insensí­vel aos espetáculos da Natureza. Contudo, confesso que, antes de ler vossos trabalhos, atravessava o Oceano como um cego. Não via, não concebia a magnífica harmonia das obras daquele a quem tão justamente denominais — o grande Pensamento primário. Sinto, muito acima da satisfação e dos benefícios devidos aos vossos trabalhos, que eles fizeram de mim um homem melhor. Ensinastes-me a ver por toda parte, em torno de mim, e a reconhecer a Providência em todos os elementos que me rodeiam.” (Geo­graphie Physique.)

Ajuntaremos, com dois outros oficiais de marinha, os Senhores Zurcher e Margollé, que o estudo das obras de Maury exalça a sua elevação de vistas, a sua fé religiosa, para aproximá-lo dos gênios que, como Cersted, Herschel, Geof­froy Saint Hilaire, Ampère, Goethe, nos revelam a suprema sabedoria, com o desvelarem a magnificência das obras divinas. Herschel dizia: Quanto mais se alarga o campo da ciência, mais numerosas e Irrecusáveis se tornam as demonstrações de uma vida eterna, de uma inteligência criadora e onipotente. Geólogos, matemáticos, astrônomos, naturalistas, todos carrearam a sua pedra para o grande templo da ciência, erguido ao mesmo Deus.”

(110) Force et Matiêre, capítulo 6º.

O panorama das obras da Natureza, de elo­quente e irresistível beleza, não lhes fala ao cora­ção nem à razão. Depois de o contemplarem de­claram, sem cerimônia, que — “os fatos apenas atestam formações orgânicas e inorgânicas, em re­novações permanentes, sem que haja nisso ação direta de inteligência qualquer”.

O ‘instinto natural de criar é prescrito formalmente, afirmam eles (110) sem perceberem que suas mesmas afirmativas deixam entrever a neces­sidade de ‘uma lei ordenadora na Natureza.

De resto, com eles, não há conjeturar explica­ções de um plano qualquer na Natureza. As idéias de finalidade devem ser recusadas como fermento azedo, já o dizia G. Foster; e o autor de Lehre der Nahrungsmittel für das Volk, reiterando essa declaração, acrescenta que, “quanto mais nos habi­tuamos a combater, mais devemos temer as tenta­tivas surdamente feitas para introduzir na Ciência a idéia de uma finalidade, a fim de esclarecer os fenômenos da Natureza”.

Eis, numa palavra, o que eles tanto temem — a luz! Quanto mais escuro o labirinto, quanto mais cerrado o nevoeiro, tanto melhor para os ale­mães. Quiséssemos levar a defesa da nossa causa ao âmago das suas trincheiras, ficaríamos de ante­mão tão bem colocados que as nossas perguntas haveriam de parecer ridículas.

Explicai-nos, por exemplo, conspícuos juizes, porque os olhos não brotaram nos pés e os ouvidos nos joelhos. Circunstâncias devidas à medula espi­nal, ....... Vamos lá, pois: será que a medula saiba o que faz? Dizei porque as pálpebras e sobrancelhas não se formaram com o pavilhão au­ricular e porque este, à sua vez, não se contrai como aquelas. Sorrides, creio... Ainda bem, pois é a mais espiritual das respostas que nos pudestes dar até o presente.

A adaptação do órgão às funções que devem preencher o estado orgânico do ser, segundo a sua função na economia geral, constituem exemplos tão evidentes do plano da Natureza, que é preciso li­mitar-se a uma observação muito completa para desautorizar a nossa tese. Por qualquer aspecto que encaremos os seres vivos, esse plano se evi­dencia em caracteres bem legíveis. Sem a idéia de finalidade geral, o fisiologista não poderia deter­minar o jogo de qualquer órgão e a Ciência se es­terilizaria. Elevando-nos dos fatos particulares aos fatos gerais, se considerarmos não já um órgão especial, mas um ser na sua individualidade inte­gral, segundo a sua função na Natureza — o sexo, por exemplo — haveremos de reconhecer que tudo, nesse indivíduo, concorre para um fim determinado. Não precisamos estender-nos mais sobre este deli­cado aspecto da questão, ainda que prêviamente seguros da vitória, sobretudo se tomarmos por estalão o tipo médio do gênero humano, sensivelmente diferente do nosso, quer no seu caráter anatômico, quer na sua maleabilidade espiritual. De fato, o plano criacional está tão universalmente assinalado, que Rabelais poderia provar a existência de Deus pela imoralidade de umas tantas descríções. Mas... basta neste particular.

O velho problema da origem das espécies in­teressa mais ainda que o da adaptação dos órgãos aos seus fins. Já vimos que a vida planetária só se pode explicar mediante uma causa Primária.

Do Ponto de vista das causas finais, aqui fala­mos Somente da organização das espécies segundo o clima e o meio, e do enigma de sua transformação segundo os períodos geológicos. Os que negam a existência de um poder inteligente na direção do mundo, pretendem que as espécies podem transformar-se umas nas outras, a partir do mais baixo nível da escala zoológíca impelidas pelo meio e circunstâncias dominantes. É uma hipótese que, por incidir imedíatamente no ponto nodal do pro­blema, explica a adaptação ao meio, pois ensina que os seres são o produto desse meio. Vêde, por exemplo, esta girafa: se tem um pescoço assim longo, é porque a primitiva espécie de que descen­de habitou regiões onde não havia frondes baixas. Obrigada a levantar constantemente a cabeça, o pescoço se foi sucessivamente alongando até che­gar ao que é hoje. Tal pescoço não foi, portanto, dado à girafa tendo em vista a natureza da alimentação, mas é O resultado definitivo desse processo alimentar. Uma águia cinde o espaço em voo rápido: admiraís a construção engenhosa desse apa­relho até agora inimitável aparelho complexo, que faculta aos voltivolos o domínio dos ares (111). Pois bem: as asas não foram dadas às aves para que voassem, e elas só voam porque tem asas. Como as adquiriram? Uma primeira espécie teria começa­do a saltitar e ter-se-ia comprazido com essa novidade.­

(111) Que nos diria hoje o eminente astrônomo diante dos progressos da aviação, com o mais leve e com o mais pesado que o ar? — Nota do Tradutor

Primeiro, pulinhos curtos. Depois, exercitan­do-se, foi dando maior desenvolvimento aos mem­bros anteriores e assim prosseguindo, por milhões de anos, acabaria provendo-se de uma transforma­ção radical nos ditos órgãos anteriores. E aí está como as asas são o resultado do voo. Essa gente coloca o Criador em situação embaraçosa, visto que ele, o bom Deus, dera as asas para voar e eis que elas, por se adaptarem perfeitamente ao seu fim, acabam por não provar, mas, contraprovar a inte­ligência de quem as fêz! À puridade, senhores, que­reríeis mesmo que ele fizesse voar as aves com os vossos roupões de banho? Prossigamos ainda um instante.

Tendo o mar recoberto outrora todas as re­giões do globo, é natural conjeturar que todas as espécies, vegetais e animais, inclusive o homem, começaram pela vida do peixe. Admira-vos a trans­formação de peixes em cavalos e homens? Pois não há motivo, que fatos há, mais maravilhosos na Natureza. Dignai-vos, ao menos, prestar um pouco de atenção ao editor responsável desta teoria, o falecido Sr. Maillet. Não há animal volátil ou ras­teiro que não tenha no mar espécies semelhantes, ou aparentadas, e cuja transição de um para outro elemento seja impossível e, dir-se-ia, até provável com exemplos numerosos. Não nos referimos somente aos anfíbios, serpentes, crocodilos, lontras, focas e muitos outros que vivem tanto nágua como em terra, ou no ar, mas, também aos de vida aérea exclusiva. Sabemos que o mar produz dois generos de animais: os que nadam, viajam, passeiam, ca­çam, e os que rastejam no fundo, dai não se afas­tam, ou raramente o fazem, sem qualquer propen­são natatória. Como duvidar que, do gênero dos peixes voláteis tenham provindo as nossas aves e que dos rastejantes descendam os nossos animais terrestres, sem pendor nem habilidade para alar-se? Para nos convencermos de que uns e outros pas­saram do elemento eqüóreo ao terrestre, basta analisar-lhes a forma, as disposições e tendências re­cíprocas, confrontando-as de conjunto.

Para começar pelos voláteis, atentai, se vos prouver, não só na forma de todas as espécies de ave, mas também na diversidade da plumagem e das inclinações peculiares. Não encontrareis uma só que não pudésseis encontrar no mar.

Observai, ainda, que a transição do ambiente eqüóreo para o aéreo é muito mais natural do que comumente se presume.

O ar que envolve o globo está impregnado de muitas partículas dágua. Esta, dir-se ia, é um ar carregado de partículas mais grosseiras, mais hú­midas e mais pesadas que o fluido superior, que denominamos ar, posto que uma e outro não sejam mais que a mesma coisa, para as necessidades teó­ricas de Telliamed. É fácil, portanto, conceber que animais habituados ao ambiente eqüóreo tenham podido conservar a vida respirando um ar dessa qualidade. “O ar inferior não é senão água difun­dida.” É húmido porque provém da água, e é quen­te porque não é tão frio como poderia ser, transformando-se em água. Mais abaixo, acrescenta:

“Há no mar peixes de formas semelhantes a de quase todos os animais terrestres, mesmo pás­saros.” Também lá existem plantas, flores e alguns frutos: a urtiga, a rosa, o cravo, o melão, a uva, lá encontram seus congêneres.

Acrescentemos a isso as disposições favoráveis que se podem encontrar em dadas regiões, facili­tando a passagem do meio aquático para o aéreo; a necessidade mesmo dessa passagem em dadas cir­cunstâncias, como, por exemplo, o isolamento em lagos cuja seca progressiva obrigasse a viver em terra; ou ainda por qualquer acidente dos que se não podem considerar como extraordinários, dar-se-ia que os peixes voadores, caçando ou sendo caçados, no mar fôssem, pelo temor ou pelo desejo de presa, arremessados a maior distância das praias, entre caniços e pedregais, na impossibilidade de regressar ao “habitat”, tirassem do próprio esforço para o conseguirem uma faculdade maior de voo. Neste caso, não mais banhadas pela água as bar­batanas fenderam-se, ressecaram e caíram. Enquan­to encontraram, em o novo meio, algum alimento que os nutrisse, as cânulas das barabatanas sepa­raram-se, prolongaram-se e revestiram-se de plu­mas, ou, por melhor dizer, as membranas, antes co­ladas entre si, metamorfosearam-se.

O pêlo formado dessas películas arqueadas alon­gou-se por si mesmo; a pele revestiu-se insensívelmente de uma penugem da mesma cor original, e essa penugem cresceu também. As pequenas bar­batanas ventrais, que, como as natatórias, lhes auxiliavam a cortar as águas, transmutaram-se em pés e lhes serviram para percorrer o solo. Ainda outras pequenas alterações lhes sobrevieram na con­formação. O bico e o pescoço de uns alongaram-se e os outros retrairam-se. A mesma coisa se deu com o corpo. Contudo, a conformidade primária subsiste no todo, e é sempre fácil reconhecê-la.

A respeito dos animais que rastejam ou canil­nham, a transição do meio líquido é ainda mais fácil de conceber. Não custa crer, por exemplo, que serpentes e répteis pudessem viver igualmente num e noutro elemento. As experiências não permitem dúvidas a respeito.

Quanto aos quadrúpedes, não só encontramos no mar espécies semelhantes, com os mesmos pen­dores, nutrindo-se dos mesmos alimentos que utili­zam em terra, como ainda temos cem outros exem­plos de espécies que vivem no ar, como nas águas. Não têm os macacos marinhos o mesmo aspecto dos terrestres? Há até mais de uma espécie. O leão, o cavalo, o porco, o lobo, o gato, o cão, a ca­bra, o carneiro, também têm no mar os seus afins.

A história romana menciona focas aprisionadas e exibidas ao povo nos espetáculos, a saudá-lo com os seus gritos e mesuras, ao mando de um treina­dor, tal como se pratica com outros animais adestrados para esse fim. E não sabemos que elas se afeiçoam a quem delas cuida, como o fazem os cães a seus donos?

Compreende-se que esse progresso, obtenível com as focas, a Natureza o possa realizar por si mesma e que, em certas ocasiões, obrigado a viver alguns dias fora dágua, não seja de todo impossível ao animal identificar-se com o novo ambiente, quando ao antigo não possa regressar. Foi assim, decerto, que todos os animais terrestres passaram do meio eqüóreo ao etéreo e, por efeito da respiração do ar, adquiriram a faculdade de mugir, uivar, la­drar, faculdade que antes tinham imperfeitas (112).

Não iremos mais longe para ouvir este escritor, maiormente celebrizado pelas sátiras de Voltaire, do que pelo seu filósofo indiano. Diremos apenas que ele prossegue com uma série de historietas e contos mais ou menos autênticos, de homens selva­gens, homens de cauda, imberbes, unípedes, mane­tas, pretos, gigantes, anões, etc., para culminar na transmigração dos homens e macacos marinhos para a terra firme. Cuvier, o mais ilustre dos geólogos, consignou a sua opinião sobre esta renovada teo­ria dos Gregos, agora proposta sob aspecto algo diferente, a saber: “Naturalistas materializados em suas idéias, permaneceram como sectários humildes de Maillet; vendo que o exercício mais ou menos intenso de um órgão lhe aumenta ou diminui, por vezes, a força e o volume, imaginaram que o hábito e as influências exteriores por muito tempo com­binados, puderam alterar gradatívamente as for­mas animais, a ponto de atingirem o que demons­tram hoje as diferentes espécies. É a mais vã e, Porventura, a mais superficial de quantas idéias temos tido ensejo de refutar. Nela, os corpos são considerados simples massa, pasta argilosa que se pudesse modelar entre os dedos.

(112) Telliamed ou entretien d’un Philosophe Indien avec un Missionaire français, 1748

“E assim é que, quando autores outros tenta­ram entrar em minúcias, caíram no ridículo. Quem quer que ouse afirmar a sério que um peixe, à força de jazer em seco, poderia ver as escamas fenderem-se e transformarem-se em penas, tornan­do-se ele mesmo em ave ou quadrúpede; e que àforça de esgueirar-se por fendas estreitas, no intuito de regressar ao velho habitat, houvera de tornar-se em serpente; quem assim conjetura, repetimos, só faz prova de ignorância cabal do que seja Ana­tomia.”

Essa teoria, contra a qual se levantam tantas dificuldades, pressupõe que todos os seres derivam dum tipo primordial, mercê de uma série de trans­formações sucessivas, constituindo a unidade or­gânica.

Olho e ouvido não passam de nervo sensorial desenvolvido pelo exercício; fronte e crânio foram modelados pelo cérebro, e este mais não é que um desdobramento da medula espinal.

Mas — objetaremos com Paulo Janet — como pode o hábito operar semelhante metamorfose e mudar a vértebra superior da coluna em cavidade capaz de conter o encéfalo? Eis, para tanto, o que importaria presumir: que um animal, apenas pro­vido de uma medula espinal, à força de exercitá-la, conseguiu produzir essa expansão de matéria ner­vosa a que chamamos cérebro; que, à medida que essa parte superior se alargasse, iria recalcando primeiramente as paredes moles que a revestem, até obrigá-las a tomar sua própria conformação de caixa craniana... Mas, quantas hipóteses nesta hipótese!

Em primeiro lugar, teríamos de imaginar ani­mais com medula espinal sem cérebro, pois de outro modo tanto podemos considerar a medula um pro­longamento do cérebro, como este mesmo cérebro um prolongamento da medula. Isso, aliás, parece indiciar-se quando encontramos algo de análogo ao cérebro, em animais desprovidos de medula, quais os moluscos e os anelídeos. Ora, se o cérebro pre­existe nos vertebrados, preexiste o crânio, e não é, portanto originário do hábito. Acrescentai que dificilmente se podem admitir exercício e hábito sem cérebro, como produtos que são da vontade, pois não há como negar seja o cérebro o órgão da Vontade. Tende em conta, finalmente, que ainda restaria admitir que a matéria óssea tivesse antes sido cartilaginosa, a fim de prestar-se às dilatações sucessivamente requeridas pelo progresso do sistema nervoso, o que implicaria notável acomo­dação nessa primitiva maleabilidade óssea, sem o que, impossível se tornaria qualquer desenvolvimento do sistema nervoso.

Órgãos e funções se têm manifestado de para­lelo, segundo o plano geral. A causalidade pare­ce-nos tão evidente que, a bem dizer, nossos adver­sários mereceriam que a Natureza os privasse, al­gum tempo, de uns tantos músculos (digamos o esfíncter), forçando-os assim a confessar que os mais Insignificantes órgãos têm uma finalidade a preencher.

Não queremos retomar neste capítulo a ques­tão primária da origem da vida em nosso globo, bem como do seu entretenimento e progresso sob o guante de leis providenciais.

Examinámos essa questão sob todos os seus aspectos num capítulo Sobre a Origem dos seres, e chegámos à conclusão inatacável (ver página 138) de que a vida terrestre é Constituída por uma força, única e central para cada ser, condicionando a matéria segundo um tipo do qual o individuo deve ser a expressão física. Vimos que a lei de pro­gresso nos seres organizados da planta ao homem, atesta a inteligência divina e evidencia a presença Constante de Deus na Natureza, jamais induzindo ànegação de uma potência criadora.

Em nosso caso particular (Plano da Natureza — construção de seres vivos), temos uma afirmação ainda mais direta da ação inteligente na maravilhosa organização dos corpos animados, atento a que essa ação é igualmente necessária nos casos em que as espécies se houvessem sucessivamente transformado em ascensão zoológica (hipótese que está longe de ser admitida), e naqueles em que o primeiro casal de cada espécie fôsse o produto de uma força particular, que não nos é dado apreciar. Temos, assim, o direito de fechar esta controvér­sia da adaptação de cada espécie ao seu gênero de vida, com a declaração de que, mesmo supondo uma progressão natural, instintiva, lenta e insen­sível; uma plasticidade normal do organismo e obe­diência cega de cada espécie às forças dominan­tes, a hipótese materialista nada adianta com isso. A apropriação da matéria organizada às causas exteriores demonstraria, simplesmente, uma grande sabedoria nos desígnios e nos feitos do Criador. Se, como acima lhes perguntávamos, os seres fôs­sem de ferro ou de mármore, haveria críticos que com isso se contentariam. E contudo, que sucede­ria? Qualquer mudança de clima, de temperatura, de ambiente, de alimentação, seria uma parada mor­tal para essas espécies inflexíveis, O junco verga, enquanto que o carvalho é derrancado pelo aquilão.

Longe, pois, de ver ausência de pensamento e desígnio nessa flexibilidade maravilhosa do orga­nismo vivo, nessa faculdade imperecível de tirar o melhor partido das circunstâncias mais incômodas, vencer obstáculos e plantar, a despeito de tudo, o estandarte da vida no solo mais sáfaro e mais in­grato, o que reconhecemos é o depoimento irrecusá­vel da causa onipotente, que, a partir dos primei­ros tempos, houve por bem que os mundos se emba­lassem harmônicamente na amplidão do infinito e fôssem envolvidos em carícias da vida.

A inteligência criadora e ordenadora, que de­nominamos Deus, permanece, portanto, como lei primordial e eterna, força intrínseca, universal, constituindo a unidade viva do mundo. Toda difi­culdade desaparece, substituindo-se a idéia de plano geral à de causalidade humana Órgãos e funções, espécies e indivíduos, é tudo conduzido na mesma direção.

O Universo é o desdobro de um só pensamento e a unidade de tipo é sensível sob todas as formas particulares da vida terrestre Em que direção nos conduz o pensamento eterno?

É o que tentaremos entrever, ao terminar este estudo sobre a finalidade dos Seres e das coisas.

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PLANO DA NATUREZA — INSTINTO E INTELIGÊNCIA

SUMÁRIO — Leis que presidem à conservação das espé­cies. — Faculdades Instintivas especiais. — Não se explica o Instinto pela suposição de hábitos hereditá­rios. — Distinção fundamental entre os fatos instin­tivos e racionais. — Desígnio nas obras da Natureza. - Ordem geral e harmonias universais. — Qual a distinção geral do mundo? — Magnitude do proble­ma. — Insuficiência da razão humana.

A construção lenta e progressiva dos seres e a formação das espécies duradouras estabelecem a presença permanente da causa criadora e procla­mam, eloqüentemente, a sua sabedoria e inteli­gência.

Se deixarmos agora de parta a organização do indivíduo para estudarmos a da família, penetra­remos nos mistérios do instinto e, ainda aí, encon­traremos o plano do Criador brilhantemente carac­terizado.

Muito se há discutido sobre a alma animal, depois que Descartes, Leibnitz e a seguir Reaniur, se deram ao trabalho de observar in natura, dire­tamente, a vida e costumes dos animais. É, so­bretudo, pela observação direta que nos podemos instruir acerca da preciosa faculdade das espécies vivas, que lhes assegura à conservação, e basta constatar os sinais evidentes dessa lei universal, para lhe aferir o valor, sob o ponto de vista dos desígnios da Criação.

Antes de tudo, convém distinguir inteligência e instinto. Os animais possuem uma e outro como faculdades bem distintas. Com a primeira pensam, refletem, compreendem, decidem, recordam, adqui­rem experiência, amam, odeiam, julgam, por pro­cessos análogos aos da inteligência humana; com a segunda, operam obedecendo a uma impulsão íntima, sem apreensão, sem conhecimento, incons­cientes do motivo e do resultado de seus atos. Fi­xemos alguns exemplos, para melhor definir esses caracteres.

Eis com nos fala Buffon de um orangotango ainda novo, por ele observado: — “Vi-o apresentar a mão para conduzir as pessoas que o visitavam e passear com elas como se estivesse convencido do seu papel; vi-o sentar-se à mesa, tomar o guar­danapo, limpar os lábios, utilizar-se da colher e do garfo, encher o copo e tocá-lo noutro, quando a isso convidado; vi-o buscar uma chávena, deitar-lhe o açúcar e o chá, aguardando que este es­friasse para então bebê-lo. Tudo isso, sem outra instigação que a palavra e a mímica do seu dono, e, algumas vezes, por si mesmo. Não molestava a quem quer que fôsse; mostrava-se mesmo circuns­pecto e na atitude de quem pedisse carinho, etc.”

O Sr. Flourens diz que havia no Jardim Zoológico um orango notável pela inteligência: meigo, aman­te de carícias, principalmente das crianças, com elas brincava procurando imitar quanto via, etc. Assim é que sabia manejar a chave do seu com­partimento, enfiando-a na fechadura e abrindo a porta. Se acontecia pendurarem a chave na cha­miné, lá trepava por meio de uma corda presa ao teto, e que lhe servia comumente de balanço. Cer­ta feita, deram na corda um nó, para fazê-lo mais curta, e ele o desatou imediatamente. Tal como o de Buffon, não revelava a impaciência e petulância próprias da espécie, antes tinha um ar tristonho, passos lentos e gestos comedidos.

O professor foi visitá-lo um dia, acompanhado por um ilustre ancião, que era também um obser­vador sagas e profundo.

Um trajo algo esquisito, os passos lentos e va­cilantes, o busto arqueado do visitante, logo des­pertaram a atenção do símio. Prestou-se ele, com­placente, a tudo o que se lhe exigiu, mas, de olho sempre atento no objeto de sua curiosidade. Quan­do nos íamos retirar e ele mais se aproximou do novo visitante, tomou-lhe delicada e maliciosamente a bengala e, fingindo apoiar-se nela, curvado e va­garoso, deu uma volta ao compartimento, como procurando imitar o meu velho amigo.

Depois, de si mesmo restituiu-lhe a bengala. Evidente que ele também sabia observar...

Cuvier, por sua vez, observou fatos não menos curiosos. Seu orangotango se divertia trepando nas árvores e nelas permanecendo encarapitado. Um dia, fizeram menção de lá o buscarem e ele logo se pôs a sacudir a árvore, assim procedendo sem­pre que tentavam apanhá-lo. “De qualquer modo — diz Cuvier — que consideremos esse ato, não será possível negá-lo como resultante de uma com­binação de idéias, para reconhecer que o animal possui a faculdade de generalizar.

De fato, o orango, aqui, concluía de si para outrem: mais de uma feita, o abalo violento dos corpos, em que se houvera apoiado, tê-lo-ia espa­vorido, levando-o a concluir que esse mesmo temor atingiria a outrem, ou — por melhor dizer com Cuvier — “de uma circunstância particular ele fa­zia uma regra geral”.

Flourens cita o exemplo de um curioso indício de inteligência, observado no Jardim Zoológico. Jul­gado excessivo o número de ursos lá existentes, ficou resolvida a eliminação de dois exemplares. O veneno seria o ácido prússico, ministrado em pe­quenos bolos. À vista dos bolos, os animais logo se ergueram nas patas traseiras, abrindo a boca, na qual conseguiram atirar alguns bolos. Entre­tanto, logo rejeitaram o manjar e puseram-se em fuga. Dir-se-ia que não seriam mais tentados a to­car na iguaria, e, contudo, ei-los a empurrar com as patas os bolos para dentro do tanque, e, depois de muito revolverem a água, iam comendo os bolos, à medida que o veneno se evaporava. Em o fazerem assim, impunemente demonstraram uma sagacidade que lhes granjeou a revogação da sen­tença.

Plutarco afirma ter visto um cão lançar pedri­nhas dentro de uma talha, não completamente cheia de óleo, admirando-se de como o cão pudesse in­duzir que o peso das pedras haveria de fazer subir e transbordar o conteúdo.

Buffon escreveu belas páginas sobre a inteligência do cão, mas não lhe interpretou o alto va­lor. Há, nos fastos da espécie canina, exemplos de inteligência, habilidade raciocínio, julgamento, e também de afeição, devotamento bondade e reco­nhecimento, dignos de serem apontados como mo­delo a uma grande parte do gênero humano.

Poder-seia escrever uma série de volumes e nem assim se esgotaria o acervo de fatos compro­batórios da inteligência animal, notadamente do cão. De resto, os adversários estão conosco em admitir esses fatos. Citemos aqui o exemplo inte­ressante de uma deliberação de andorinha, contado pelo autor de Força e Matéria. Um casal de ando­rinhas tinha começado a construir o ninho na cu­meira da casa. Um dia, entra por lá um bando de Companheiras e travam longa discussão com as posseiras do ninho. Reunidas no forro da casa e não longe do ninho disputado, fizeram uma algazar­ra infernal. Depois de algum tempo, enquanto algu­mas andorinhas se destacavam para inspecionar O ninho, dissolveu-se a assembleia e o resultado foi o casal abandonar o ninho começado, entrando logo a construir outro em lugar quiçá mais adequado.”

Um fato ainda mais notável veio à baila re­centemente. Nos arredores de uma granja de Wed­dendorg, perto de Magdebourg as cegonhas, após sério debate, julgaram uma companheira adúltera. Mataram-na a bicadas e lançaram-na fora do ninho (113).

Agassiz, mais que ninguém, exalta as faculda­des intelectuais dos animais. Depois de mostrar as dificuldades que ainda não permitem estabelecer uma comparação científica entre instintos e facul­dades humanas e animais, emite ele as seguintes idéias: — “O desenvolvimento das paixões é tão extenso no animal, quanto no homem, e eu me en­contraria sêriamente embaraçado para lhes apreen­der diferenças específicas, naturais, ainda que as haja, e grandes, no graduamento das manifestações e na forma de expressão. Ao demais, a gradação das faculdades morais entre os animais e o homem é tão imperceptível, que, recusar aos primeiros um certo sentimento de responsabilidade e consciência, fora, certo, exagerar a diferença. Além disso, há neles limitadas às suas respectivas capacidades,

(113) Temos numerosos documentos comprovantes da inteligência dos animais. Aqui, porém, não nos podemos alongar no assunto. Ao exemplo precedente, acrescentemOS que a dar crédito a uns tantos barqueiros ingleses, chama­dos “panters”, os patos selvagens fazem reuniões parla­mentares e votam. Estes, como todos os animais, têm ex­pressões próprias para traduzir alegria, dor, fome, amor, medo, ciúme, etc. Esses termos variam, conforme as espé­cies. Antes da revoada matinal, uma discussão muito viva se empenha durante dez a vinte minutos, e só depois de assente uma resolução é que se opera a debandada. Con­ta-se, também, que uma ave, tombada num choque, apelou a seu modo para uma outra, que, procurando aleitá-la, ficou a seu lado por uma hora mais ou menos, até que a outra morresse. Segundo E. W. Gruner, os gansos têm inflexões e tonalidades vocais muito variadas. O cão alegre late de modo mui diverso de quando está raivoso. A linguagem mímica e sônica dos insetos (abelhas, formigas, escarave­lhos, etc.), por meio das antenas e movimentos de asas, é, como sabemos, muito rica e variada. Não iremos ao ex­tremo de os traduzir em francês com Dupont de Nemours, mas a verdade é que se não pode negar que os animais se permutem as suas impressõeS. Eles têm mesmo, sobre nós, o privilégio de compreender nossas palavras, ao passo que nós não compreendemos as suas. Mais: compreendem-se em qualquer latitude, ao passo que um francês não compreende um alemão, nem um chinês.

individualidades tão definidas como no homem, Os criadores de cavalos, os guardadores de animais, pastores, etc., aí estão para confirmá-lo.

E aí temos argunento dos mais fortes a favor da existência de um princípio imaterial em todos os animais análogo ao que, por excelência e facul­dades superiores coloca o homem em plano emi­nente. A mor parte dos argumentos filosóficos em prol da imortalidade do homem, aplica-se igual­mente, à indestrutibilidade desse principio nos ou­tros Seres Vivos (114).

Quem se atreveria hoje a pôr em dúvida a in­teligência animal? Só um tímido espírito de siste­ma, temeroso das consequências dessa verdade, em relação a umas tantas crenças, pode fechar os olhos à evidência A nós, cumpria-nos Constatar antes de tudo essa verdade, a fim de mais livremente podermos falar do instinto e derrocar a argumentação dos que presumem que o inStinto não existe.

Há, certamente uma grande diferença entre atos instintivos e atos racionais. Não que esses dois caracteres da força viva se encontrem isolados (nada o está na Natureza), mas por não se en­contrarem na mesma graduação e não se poderem confundir Não devemos insistir, maiormente aqui, a respeito dos fatos de ordem intelectual Vamos, porem, compará-los aos fatos inerentes ao domínio do instinto, e que revelam existir uma providência universal presidindo à vida em geral e que não explicam de modo algum, pela instrução, o racio­cínio ou o julgamento nos animais em que se de­param.

Chama-se instinto ao conjunto das diretivas que impelem O animal, obedecendo a uma necessi­dade constante. O instinto é inato, atua à revelia da Instrução, inexperiente e invariàvelmente e não realiza progresso algum. É em tudo a antítese da

(114) Contribuitions to the Natural History of the United States of North America volume 1 — 1ª parte.

inteligência. Tanto mais notáveis são os fenômenos do instinto, quanto mais se afirmam inteiramente involuntários. “Não podemos fazer uma idéia níti­da do instinto — dizia Georges Cuvier — senão admitindo que os animais sejam submetidos a ima­gens ou sensações inatas constantes, que os obri­gam a proceder como levados por sensações acidentais. É uma espécie de sonho ou visão que os persegue incessante e, em tudo que se reporta ao instinto, podemos julgar os animais assim uma es­pécie de sonâmbulos.”

Frederico Cuvier consagrou parte da vida a descobrir a linha que separa o instinto da inteli­gência. Pode dizer-se, sem paradoxo, que não há linhas divisórias na Natureza. Aqui, porém, não se trata de metafísica. Contentemo-nos, assim, em ouvir o que diz o Sr. Flourens, das laboriosas obser­vações do esforçado naturalista.

O castor é um mamífero da ordem dos roedo­res, isto é, da ordem menos inteligente, e, contudo, possui um instinto maravilhoso, qual o de construir uma cabana sobre água, com calçadas, diques, e tudo mercê de uma indústria que demandaria inte­ligência elevadíssima, se de inteligência dependesse.

O essencial, portanto, fora provar essa inde­pendência e foi isso o que fêz F. Cuvier. Tomou castores muito novos, educados longe de seus pares e, por conseguinte, nada havendo com eles ou deles aprendido. Esses castores, assim isolados, solitá­rios, postos numa jaula expressamente destinada àexperiência e de forma a dispensá-los do seu tra­balho peculiar construtivo, não se forraram de o realizar, impelidos por uma força maquinal cega, ou seja um puro instinto.

A mais completa antítese separa o instinto da inteligência. No instinto tudo é cego, necessário, invariável; na inteligência é tudo elevado, condi­cional, modificável. O castor que constrói uma ca­bana, o pássaro que constrói um ninho, só o fazem por instinto. O cão e o cavalo que chegam a compreender o sentido de algumas palavras e nos obe­decem, o fazem por inteligência.

No instinto é tudo inato: o castor constrói sem haver aprendido. Dir-se-ia que o faz por uma fata­lidade, dirigido por uma força constante e incoer­cível.

Na inteligência é tudo o resultado da expe­riência e da instrução: o cão obedece quando ensi­nado. E aí tudo é livre, o cão obedece porque quer.

Finalmente, tudo no instinto é particular; essa indústria admirável que o castor utiliza no cons­truir a cabana não pode ele utilizá-la senão com esse fim; ao passo que, na inteligência, tudo se ge­neraliza, de vez que essa mesma maleabilidade de atenção e de concepção do cavalo e do cachorro pode aproveitar-lhes para fazer coisas diversas.

Distinção que se impunha, esta. Na história da Natureza importa reconhecer em cada qual o que lhe pertence e exatamente o que lhe pertence, sem restrição sistemática, sem prevenção tenden­ciosa. Descartes e Buffon (este contraditório às vezes) negam aos animais qualquer partícula de in­teligência. Condilac e G. Leroy, ao contrário, che­gam a conceder-lhes operações intelectuais das mais elevadas. É um erro duplo. Os animais não são plantas nem são homens. Weinband não tem razão em pretender que isso que designamos como ins­tinto não passa de “indolência do espírito para for­rar-se aos penosos esforços que o estado da alma animal reclama”. Não na tem, tão-pouco, Sachus, quando adita que “não há necessidade imediata, resultante da organização intelectual, nem pendores cegos e arbitrários que impulsem os animais”. Não hesitamos em reconhecer que esta questão, como todos os grandes problemas da Natureza, é difícil de resolver. Pensamos que, no seu estudo, como de resto em outras questões sucede, o homem se tem pago mais com palavras que com idéias. Quan­do não se compreende o ato inteligente de um ani­mal, é comum forrar-se ao embaraço, utilizando a palavra instinto, assim como um véu lançado ao objeto que se quer examinar; mas, à parte este processo ilusório, restam fatos que não são certa­mente resultado de reflexão, nem de julgamento. Em vão o Sr. Darwin, e com ele Lamarck, afirmam que o instinto é um hábito hereditário. Essa expli­cação não transfere o instinto aos domínios da In­teligência, e, ainda menos, aos domínios do mate­rialismo puro. Tão-pouco está demonstrado seja o. instinto um hábito hereditário. Consideremos essas borboletas que vivem no ar, e que, chegando à ter­ceira fase da sua maravilhosa existência, entrea­brem-se aos beijos da luz e aos eflúvios do amor.

Presto, depositarão em círculos concêntricos minúsculos ovos brancos, sobre talos ou folhas. Esses ovos não vingarão antes da próxima estação, quando surgem as pequenas lagartas, e isso depois de transcorridos muitos dias, quando as borboletas já dormem na poeira o sono da morte. Que voz teria ensinado a estas novas borboletas que as fu­turas lagartas, ao desovarem, hão-de encontrar tal ou tal alimentação? Quem lhes aponta os talos e folhas em que hajam de depositar seus ovos? Os pais? Mas, se os não conhecem? Será, então, das folhas e talos que lhes advém a memória?

Que memória, porém, se elas viveram três exis­tências após essa época longínqua, e substituiram os alimentos inferiores pelo manjar delicado das corolas olentes? Eis aqui, porém, espécies outras que protestam, ainda mais vivamente, contra as ex­plicações humanas. Os necróforos (nome lúgubre). morrem imediatamente após a postura e as gera­ções jamais se conhecem. Nenhum ser desta espé­cie viu mãe nem verá filhos, e, contudo, as mães têm grande cuidado em dispor cadáveres ao lado dos ovos, para que aos filhos não falte alimento logo ao nascer. Em que parte aprenderam esses necróforos que os seus ovos contêm germe de inse­tos que em tudo se lhes semelham? Há outras espécies, nas quais o regime alimentar é inteiramente oposto, para a larva e para o inseto. Nos pompilídeos as mães são herbívoras e os filhos car­nívoros. Em fazerem a postura sobre cadáveres, contrariam os próprios hábitos. E aqui não colhe admitir o acaso, nem hábito lentamente adquirido. Qualquer espécie que aberrasse desta lei não pode­ria subsistir, visto que os rebentos morreriam de fome logo após o nascimento. A estes insetos, po­demos juntar os odíneros e os sphex. As larvas destes últimos são carnívoras e o ninho precisa ser provido de carne fresca. Para preencher essa con­dição, a fêmea que vai desovar busca uma presa convinhável, tendo o cuidado de não a matar, limi­tando-se a feri-la de paralisia irremediável. Coloca, depois, sobre cada ovo um certo número desses enfermos incapazes de se defenderem da larva que os há-de devorar, mas, com vida bastante para que o corpo não se corrompa. Em algumas famílias acresce o cuidado pela alimentação da presa, até à eclosão da larva.

Nossos elementos de argumentação, neste par­ticular, são tão numerosos que impossível seria reu­ni-los todos. Limitamo-nos, assim, a citar alguns exemplos, convidando o leitor a tirar da letra o espírito. Entre estes exemplos, incluamos o da abe­lha xilófaga, com a qual o Sr. Milne Edwards en­treteve recentemente, na Sorbone, a curiosidade dos seus ouvintes.

Essa abelha que vemos adejar na Primavera, que vive solitária e pouco sobrevive à postura, não viu jamais os genitores e não viverá o tempo sufi­ciente para assistir ao nascimento das pequeninas larvas vermiformes, desprovidas de patas e incapa­zes, não só de se protegerem, como de angariar alimento. E contudo, elas precisam permanecer em repouso cerca de um ano, numa habitação bem fechada, sob pena de extinguir-se a espécie.

Como, então, supor que a abelha gestante, an­tes de pôr o primeiro ovo, tenha podido adivinhar as necessidades da prole futura e o que deve fazer para assegurar-lhe o bem-estar? Tivesse ela em par­tilha a inteligência humana, e nada soubera a tal respeito, visto que todo o raciocínio requer premis­sas. Este inseto, que nada pôde aprender, tudo pre­para e opera sem hesitação, como se o futuro lhe estivera devassado e uma previdência racional a norteasse. Apenas lhe despontam as asas e logo a xilófaga trata de preparar a casa dos filhos. Com as mandíbulas, broca um tronco de madeira exposto ao Sol, excava uma longa galeria e vai depois bus­car, longe, no pólen das flores, o néctar açucarado. É o cibo do recém-nascido e que lhe há-de bastar, o “quantum satis”, para bem-viver até à Primavera próxima.

Uma vez provida a despensa, aí deposita o ovo e ei-la amalgamando com terra a serragem pruden­temente guardada, e fazendo uma como argamassa, de maneira que o leito dessa primeira cela se trans­forme em teto de uma segunda despensa, e berço da larva a nascer de outro ovo. Assim se constrói um edifício de alguns andares, no qual cada alo­jamento recolhe um ovo e servirá, mais tarde, àlarva desse ovo.

“Admira — diz Edwards — como diante de fa­tos tão significativos e numerosos ainda haja quem nos venha dizer que todas as maravilhas da Natu­reza não passam de obras do acaso, ou, então, de consequências das propriedades gerais da matéria; desta Natureza que faz a substância da pedra como da madeira, e que os instintos da abelha, assim como as mais altas expressões da genialidade hu­mana, não são mais que resultados de um jogo de forças físicas, ou químicas, as mesmas que deter­minam a congelação da água, a combustão do car­vão e a queda dos corpos... Essas hipóteses balofas, ou melhor, essas aberrações do espírito, que se mascaram, às vezes, com o nome de ciência po­sitiva, só podem ser repelidas pela verdadeira Ciên­cia. O naturalista não poderia acreditá-lo.

“Por pouco que penetremos num desses obscuros redutos onde se esconde o débil inseto, nele ouvimos distintamente a voz da Providência ditando às criaturas a sua conduta diária.”

Em todas as províncias da vida — acrescenta­mos nós — a mão do Criador inteligente e previ­dente se revela aos olhos que sabem verdadeira­mente ver. E sempre que a dúvida nos perturbe, nada melhor se nos impõe que o estudo acurado da Natureza, porqüanto, todos os que tiverem con­sigo o sentimento do belo e verdadeiro, ante o espetáculo maravilhoso da Criação, logo terão dissi­padas as nuvens cai floração de luz.

Enquanto traço estas linhas, aqui, dentro de pequeno bosque cujas aves me conhecem, tenho defronte um ninho de rouxinóis.

Quatro filhotes implumes, trêmulos, ali se pre­mem tão conchegados que mal se lhes distingue as cabeças volumosas, relativamente, e os olhos ne­gros, ainda mais. Nascidos de ante-ontem, nada vêem, nada sabem ainda, se há arvoredos e luz.

Se fôssem abandonados assim, não tardariam a perecer. O coração dos genitores, porém, freme por eles em anseios verdadeiramente maternos. Eles lá estão, ambos, pai e mãe, à borda do ninho e con­chegados também. Enfiam o bico nos quatro biqui­nhos escancarados, e é de notar a força que lhes sustenta e alonga os pescocitos. Pai e mãe, tra­zendo-lhes no papo a provisão, ministram-lhes des­sarte, durante alguns minutos, os primeiros alimen­tos o mel e o leite que os há-de nutrir no futuro. Que família encantadora! E como prezam a vida todos os seis! Os raios solares coam-se através dos ramos, do vale evolam-se perfumes, é a vida a espanejar-se em luz e nesta temperatura tépida de Maio. Por vezes, o minúsculo casal suspende a tarefa e contempla os filhotes com ar de con­tentamento e movimentos de cabeça significativos -Também se fitam silenciosos, colam-se as cabeças e confundem-se os bicos, como num beijo de amor.. Depois, ei-los como a se consultarem. Uma nuvem refrescou a atmosfera. O pai voou, a mãe aninhou-se, abrindo as asas de maneira a cobrir todo o ninho e, todavia, alto mantendo a cabeça, por ver o horizonte e sondar as redondezas. Mas, agora, eis que regressa o rouxinol e se coloca, tal como antes, na beira do ninho, a procurar o bico da companheira. É que, chegou a hora do jantar da família e o chefe solícito lhe traz o cibo preferido. Quanto a ela, parece não lhe desprazer o regime, de vez que aspira, como inebriada, o manjar que lhe trazem. Tremem-lhe as asas, todo o corpo lhe palpita, enquanto o marido vai e volta num afã constante, carreando-lhe no bico um repasto com­pleto. Muito lhes cabe fazer pela prole. Agora. ei-los sérios. Há 15 dias, passavam o tempo a can­tar, a saltitar de galho em galho, a brincar, a amar... Agora, nada fazem assim, estão casados, chefes de família, responsáveis por uma nova ge­ração. Até que os filhotes emplumem, precisam levar-lhes à boca o que mais convém na sua idade, e preocupam-se já com o seu destino. Amam-nos e talvez eles não compreendam aquela afeição ma­ternal. É possível que voem, tão logo a mãe lhes ensine a voar; é possível que sübitamente a rele­guem a uma solidão definitiva, sem jamais se lem­brarem da infância. “A afeição é como os rios; desce e não sobe.”

Em que pensam, hoje, esse rouxinol e a sua companheira? Sem dúvida, ao cogitarem do futuro dos filhos, não têm em mente as profissões sociais e os princípios de honorabilidade que devem nor-tear todas as carreiras. Sem dúvida que não serão atormentados por cálculos econômicos, tantas ve­zes falaciosos para o homem. Mas aos que negam o instinto, perguntaremos: em que escola essa es­posa, antes de ser mãe, aprendeu a construir o ninho que lhe haja de receber os ovos?

Ela tem apenas um ano e ainda não chocou:

quem lhe ensinou a fazer esse ninho, precisamente assim e não de outro modo? Quem lhe teria falado de temperatura necessária à incubação e eclosão do ovo fecundado? Quem lhe diria que chocando, aquecendo por 15 dias aqueles ovos, facultaria a sua geração? Posição de constrangimento, apesar do alívio que experimenta, tornar-se-ia insuportável à sua vivacidade, se um determinismo instintivo não a amparasse. E quando os ovos vingaram, quem lhe disse que precisava sair do ninho e que, vivos e precisando subsistir os pequeninos seres, impor­tava granjear-lhes alimentação adequada? Quem a forçou a passar mais quinze noites de asa aberta sobre o ninho, na mais fatigante das posições para uma ave que deve dormir sobre as patas? A estas, poderíamos juntar mil outras advertências. Hão-de responder-nos que a primeira espécie aprendeu tudo isso pelo hábito, e que as tendências se transmi­tem por hereditariedade; mas é recair no mistério das gerações, é não mais que recuar o problema à primeira espécie, ou melhor ainda, se o quise­rem — aos primeiros tipos, supostos geradores de todas as variedades. Ora, admitindo-se mesmo, con­tra toda a probabilidade, que a construção dos ni­nhos, a incubação e os primeiros cuidados com a prole sejam mostras de inteligência, não do ins­tinto, e que as espécies tenham, sucessivamente, aprendido a proceder dessa maneira — o que, di-gamo-lo ainda uma vez, nos parece inadmissível —como resolver as questões atinentes à formação do ser dentro do ovo? Quem construiu o ovo, berço de uma geração futura? Quem criou e colocou o germe no centro desse ovo? Mediante um poder misterioso, um ser da mesma natureza dos pais vai mover-se neste fluido, o ovo incipiente vai sofrer a mais maravilhosa das metamorfoses, vai viver! Completada a transformação, surge uma ave! Assaz débil para expor-se fora, não se exterioriza e, en­quanto aguarda, ei-la cercada pela clara do ovo, que é precisamente o alimento que lhe convém até o nascimento.

Assim, pouco a pouco, se forma inteiramente, asas e patas se desligam, a cabeça sobreleva o pei­to, só lhe resta deixar a prisão e para isso o bico se reveste de um esmalte, que cai logo depois do nascimento. Com o bico assim aparelhado, ele se põe a quebrar a casca do ovo, até que consegue pôr de fora a cabeça. Utiliza, então, as asas e acaba por libertar-se inteiramente.

Pois bem: — que os adversários, em tudo isto se esfalfem por formular as mais vastas e intermi­náveis teorias, que acumulem hipóteses sobre hipó­teses, que recusem chamar instinto aos atos do nascituro, como da ave que o engendrou; que em­brulhem o assunto com explicações tortuosas, con­fusas, e nem por isso deixamos de aí ter um fato natural, eloquente na sua simplicidade e que eles, os adversários, não poderão derrocar. Aquele que criou o rouxinol e quis nos alegrasse ele com o seu canto vespertino, criou o mundo e houve por bem dar-lhe as leis da própria conservação. Não há idéia mais simples e majestosa, nem que mais sa­tisfaça a nossa necessidade de conhecimento. Negar as leis conservadoras da vida é negar toda a Natureza. A nós nos parece, que, para ir a tais extremos, é preciso ser estólido ou vítima de aber­ração espiritual. A verdadeira Ciência está muito longe de tais negações! Seria, na verdade, uma des­graça se o fruto da sabedoria redundasse em ani­quilamento das leis que regem o Universo e cons­tituem a sua unidade viva.

Porque, pois, em face de fatos tão irresistíveis, quanto os do instinto animal, não confessar uma verdade bela e tocante ao mesmo tempo? Será pre­cisamente por bela e tocante que a recusam? Se­ríamos quase levados a supô-lo, pois nestas teorias materialistas, basta seja uma coisa agradável ao espírito, para logo ser repelida. Esta, contudo, não é uma razão assaz suficiente. Para nós, ao contrá­rio, contemplamos a Natureza em todos os seus aspectos. A verdade não pode deixar de ser bela. e não é só Platão a pensar que o belo é o esplendor da verdade. A Natureza é verdadeiramente bela. Longe de desviar os olhos sempre que encontramos uma forma expressiva da beleza eterna, admira­mo-la e reconhecemo-la tão sinceramente, quanto o fazemos a uma verdade matemática. Não é a Natureza a nossa mãe? Onde já passámos horas mais deliciosas e instrutivas do que as vividas inti­mamente com ela, no seio das matas silenciosas?

Contemplai, na sua maravilhosa harmonia, a lei de continuidade da espécie humana, procurai por-fundar a ordem misteriosa que preside à nossa ge­ração e crescimento. Que maior prova de habilidade pudera dar a Natureza ao envolver cada sexo nessa atração indefinível, que o escraviza suavemente aos seus desígnios soberanos? Que sabedoria não nos testemunha ela, organizando, em bases rígidas, a vida oculta do ser em formação, que, até o dia do nascimento, se beneficia de uma existência intei­ramente diversa da de todos os outros seres vivos? Que previdência não demonstra ao criar, para nu­trição do tesouro oculto, órgãos diferentes dos que lhe haverão de servir na vida atmosférica, e ao preparar para os primeiros dias a mais pura das ambrosias? Perguntai às jovens mães quantos cui­dados requerem esses recém-nacidos fragílimos e trêmulos. E, contudo, a Natureza ainda será a mais vigilante das mães. Qual a afeição mais tenra, o amor mais carinhoso, o devotamento mais extremado, de mãe; qual a inteligência mais lúcida, a previdência mais sábia de um pai, que poderiam rivalizar com os cuidados incessantes e universais da Natureza, tão profusa, infatigável e prôdiga­mente despendidos na proteção individual, ativa, a cada um de seus filhos?

Sobre a previdência da Natureza, poderíamos escrever grossos “in-fólios”. Poderíamos perguntar se é por acaso e sem objetivo que as espécies mais fracas e expostas à morte são precisamente as mais fecundas, como sejam galináceos, perdizes, etc., pondo dezenas de ovos fecundados e deixando, ao fim de um ano, centenas de rebentos, en­quanto as aves de rapina, condores, águias, etc., se apresentam, comparativamente, quase estéreis. Poderíamos, também, perguntar se é às cegas que a Natureza decora de encantos particulares os pe­queninos seres sem força e sem amparo, desper­tando-nos interesse e atenção para essas cabecitas louras, que, privadas de assistência, acabariam dor­mindo em seu berço um sono eterno. Poderíamos, ainda, invocar aqui o espetáculo integral da Cria­ção vivente, mas, intimamente convencido da ade­são dos leitores, neste particular, não insistiremos inutilmente.

Parece-nos que esses eminentes trabalhadores fizeram entusiasmados o maior trecho do cami­nho e que, não possuindo vista telescópica capaz de distinguir o fim, esquecem que o progresso das ciências tem verdadeiramente um rim, e estacam, inertes, depois de provarem uma capacidade ativa incontestável. Por terem verificado que as causas finais, imaginadas pela vaidade humana, só lhe têm servido, há tantos séculos, de redança por emba­lar-se displicentemente; — depois de se haverem certificado que os deuses-escravos do orgulho, as criações da fantasia e as ilusórias teorias de um pensamento mesquinho mais não são que simula­cros sem realidade, sombras, fantasmas que um raio de luz das ciências basta para diluir — concluíram não haver diretriz nem finalidade na Criação. Por­que o homem se enganou na solução de um pro­blema, decidiram eles que não há problema nem solução. Confundindo inexplicavelmente a verdade com a noção do que nos é dado saber; confundindo, igualmente, a grandeza real de uma obra com a idéia que fazemos dela, tal como os teólogos da Idade Média a confundirem a idéia religiosa, em si mesma, com a forma católica particularista, proclamam eles que a falsidade das nossas noções in­dividuais acarretam a ruína do próprio objeto des­sas noções. Na verdade, para espíritos habituados aos rigores do raciocínio; para homens sábios, que parece procurarem com absoluto desinteresse a verdade tão longamente dissimulada, dir-se-á que não provam, dessarte, excelência nem superioridade de vistas. Antes, pelo contrário, evidenciam direta­mente a estreiteza da esfera que habitam, dispostos a recusar-lhe qualquer ampliação, obstinados em lhe vedar toda e qualquer luz, como se temessem que essa luz viesse espalhar reveladoras claridades no horizonte e recuar, para muito além dos seus re­cursos, os limites do Universo.

Nossos opugnadores pretendem fazer ciência quando declaram que a organização dos seres não justifica o ascendente de um desígnio na Natureza. Em lugar de ciência, o que eles fazem é puro sis­tematismo, arbitrário, nisto como em tudo o mais.

De fato: em que consista o método científico? Que será uma teoria em Astronomia, em Física, em Química? Observamos os fatos, e quando possuí­mos um conjunto de observações suficientes, pro­curamos religá-los mütuamente entre si, mediante uma lei. Vemos essa lei? Nunca, jamais. Adivinha­mo-la pela discussão dos fatos e talvez a denomi­nação que lhe damos não seja a que melhor con­venha.

Esta teoria, pela qual nosso espírito insaciável sente a necessidade de explicar todas as coisas, não é, antes de tudo, senão uma hipótese cujo valor consiste, principalmente, na satisfação que nos pro­porciona a explicação natural dos fatos estudados.

Por muito tempo ela não passa de hipótese, inconsistente e frágil, que o mais leve sopro pode derrubar, para só elevar-se à verdadeira teoria quando suficientemente examinada, experimentada e sancionada pelo estudo. De outra forma, resvala para o campo das erronias imaginárias.

Vejamos, por exemplo, os movimentos dos cor­pos celestes.

Notamos que eles descrevem elipses de que o Sol se constitui um dos focos; notamos que as superfícies percorridas são proporcionais aos tempos, e notamos que estes tempos de revolução, multi­plicados por si mesmos, estão entre si como os grandes eixos multiplicados três vezes por si mes­mos. Para explicar os movimentos da mecânica celeste, emite-se a hipótese de que os corpos se atraem na razão direta das massas e inversa do quadrado das distâncias. Enunciar esta hipótese, vale simplesmente por dizer que as coisas se pas­sam como se os astros se atraíssem. Depois, expli­cando essa hipótese, perfeitamente, todos os fatos observados e dando cónta de todas as circunstâncias do problema, torna-se ela uma teoria.

Enfim, achando-se esta lei universalmente de­monstrada, tanto pelo balanço das estrelas gêmeas, na profundeza dos céus, como pela queda de uma maçã na superfície da Terra, afirma-se que a lei chamada gravitação representa, de fato, a força reguladora dos mundos.

Idêntico é o processo que empregamos, ao de­clarar que os organismos vivos são construídos como se a causa, fôsse ela qual fôsse, que as condicio­nou, teria tido em vista uma destinação dos órgãos em relação à vida peculiar de cada ser, tanto quan­to à existência global de todos os seres em conjunto.

As verdadeiras causas finais são, portanto, um resultado da observação científica, O método é o mesmo, e, como bem o disse Flourens, é preciso partir não das causas finais para os fatos, mas destes para aquelas. Induzir do conhecido para o desconhecido, eis o único método positivo. Ora, o resultado deste método, seja ele qual for, merece ser proclamado como científico. Pode suceder que a revelação de um plano e de uma finalidade na Natureza não agrade a Fulano ou Beltrano, mas isso pouco importa. Fulano e Beltrano estão no mais falso dos erros, quando nos acusam de não proceder de acordo com a Ciência experimental, e incidem na mais fatal das ilusões quando imaginam proceder de acordo com essa ciência. Trocam, assim, os papéis pró domo sua, como sói vulgarmente acontecer.

A verdade, porém, despreza-lhes as tendências e fica inalteravelmente idêntica, sem se preocupar com os prismas através dos quais a encaram olhos interessados em vê-la abaixo da sua posição real.

Esquisitice inexplicável em homens judiciosos, pretenderem que, admitindo a existência de Deus, sejamos obrigados a admitir o arbítrio na Natureza, como se a vontade suprema não fôsse necessária e infinitamente sábia, e, por consequência, univer­salmente regular. “Os que só vêem em todos os movimentos da Natureza os meios de atingir um fim — diz Moleschott — chegam mui logicamente à noção de uma personalidade, que, num tal pro­pósito, confere à matéria as suas propriedades. Esta personalidade também designará o fim.

“Se assim é, se uma personalidade designa os fins ë escolhe os meios, a lei de necessidade desa­parece da Natureza. Cada fenômeno se torna par­tilha de um jogo do acaso e de um arbítrio sem finalidade.”

J. B. Biot afigura-se-nos mais bem inspirado quando assim conclui o exame da Natureza: (115) “Por mim, quanto mais considero a harmonia, a imensidade do Universo e as maravilhas da Cria­ção, tanto mais admiro esse concerto maravilhoso, e menos apto me julgo para explicá-lo. Ousarei di­zer, mesmo por havê-lo experimentado, que essas explicações imperfeitas, esses vagos ou falsos re­latórios, que alguns modernos escritores querem inculcar como harmonias sublimes, nunca nos pa­receram mais temerários e fúteis do que quando defrontamos a Natureza. Quando se há tido a ven­tura de conhecer e sentir as verdadeiras belezas que ela ostenta, somos tentados a conceituar, como profanadores e ímpios, quantos a desfiguram com indignos disfarces. Assim é que, todos os seres organizados

(115) Mélanges Scientifiques et Litteraires, t. 2º.

tiveram seus meios próprios de vida, tão numerosos e tão multiplicados na variação do me­canismo, quanto as estrelas do céu.

“E note-se que isto é o que percebemos exte­riormente, pois o mais maravilhoso nos fica oculto. Quem, jamais, pôde compreender a ação química das membranas vivas, a causa dos movimentos vo­luntários e Involuntários — que digo eu? — o voo da mosca, os torneios da borboleta? Quando nossa inteligência mal pode atingir o conhecimento das disposições exteriores do organismo e mal pode apreender as relações entre si, de alguma das peças que o compõem, seria, parece-nos, ilógico não ver no âmago desse conjunto o princípio inteligente, como o ordenador e regulador de tudo. Por mim quero, ao menos, possuir a filosofia da minha igno­rância.”

A ordem verificada nos fatos não produzidos pelo homem — advertiremos ainda com ilustre es­critor (116) — mostra-nos que as correlações apre­sentadas pelo mundo material resultam de ações

(116) J. M. de la Codre — Les Dessems de Dieu. Este ensaio de filosofia religiosa e prática caracteriza uma das felizes tendências contemporâneas, contra a Invasão do ateismo. Os argumentos, aí desenvolvidos, resumem-se no seguinte: Não existe o impossível; no Universo há ordem e a ordem só pode emanar de uma inteligência. O Universo é, portanto, obra de uma inteligência. Essa ordem resulta da execução de uma lei, ou do concerto de várias leis, e as leis são sempre, e necessàriamente, obra de uma vontade inteligente. O autor do Universo, Deus, sendo uma Inteli­gência, teve indubitàvelmente um fim, criando o Universo. Esse fim seria fazer-nos felizes, como no-lo atestam as nossas aspirações e faculdades, no que possuem de mais elevado. Todos os seres dotados de sensibilidade são, por conseguinte, convocados à felicidade. E nós vemos, de fato, que eles são até certo ponto felizes, por isso que todos vivem e amam a vida, assegurando-a e defendendo-a até os limites extremos. A felicidade, porém, não é igual para todos os seres: Há, notadamente, uma diferença marcante entre a felicidade dos animais e a presumida felicidade humana. Aquela se adstringe a estreitos limites, é uma felicidade simplesmente “dada”, enquanto que esta toma vastas proporções e reveste outro caráter; é uma felicidade merecida”.

Compreender-se-á facilmente esta distinção — diz o Autor — observando os fatos e comparando os raros e Incompletos prazeres de que compartilham os seres pura­mente sensitivos, com os gozos serenos, infinitos, que a alma humana encontra no cumprimento do dever, na pie­dade, nos doces afetos da família. A mor parte dos sofri­mentos nos sobrevêm quando, por ignorância ou rebeldia, contravimos às leis do criador.

Da perpetuidade dessa aspiração a uma felicidade com­pleta e indefinita, e da faculdade de aperfeiçoamento moral, bem como de conhecimento progressivo; — uma vez que essa felicidade não pode existir na Terra — devemos con­cluir que o homem não perecerá neste mundo com o seu invólucro corporal. A esta hermenêutica, podemos ajuntar o seguinte, que o autor nos expôs em carta pàrticular:

“A Natureza é ao mesmo tempo o laboratório e o ope­rário de Deus, assim como a oficina provida de um prepa­rador é o laboratório do físico ou do químico. Tanto mais superiores são os produtos brotados da Natureza, em rela­ção aos de nossas oficinas, quanto mais exaltam e atestam o poder e a inteligência divinos, em relação aos de nossos sábios. Estes, com os materiais que lhes oferece a Natu­reza, não conseguem fazer o que faz “o operário de Deus” sob a sua direção.

D:H::N:O

“Deus está para o homem como os produtos da Natu­reza estão para os da oficina.

D:N::H:B

Deus “atua” sobre a Natureza como a vontade do ho­mem, guiada pela sua inteligência, “atua” sobre os seus olhos e braços.

Num capítulo de Os Desígnios de Deus”, consagrado à Pluralidade dos Mundos habitados, o Autor contradita a nossa opinião sobre a variedade dos organismos no Universo e a idéia de uma semelhança entre todas as humanidades. Baseia-se ele no seguinte raciocínio: se os habitantes dou­tros mundos não têm a forma terrestre e se estamos des­tinados a viver também nesses mundos, não poderemos lá reconhecer os amigos caros... A objeção é mais sentimen­tal que científica e não cabe discuti-la aqui. Podemos, nada obstante, repetir que, em virtude da diversidade de ação das forças naturais, noutros planetas, é quase certo que a série zoológica lá se tenha construído sobre um tipo análogo ao da série terrestre.

e reações que, combinadas, regem-se por leis. Pela experiência contínua da vida, sabemos que sempre as correlações, as harmonias, as leis, são obra de uma inteligência cujo poder é proporcionado à ex­tensão dos fatos e das harmonias coordenadas. Te­mos assim, por evidente, que o Universo é gover­nado por uma inteligência. Estas correlações e estas harmonias estão em correspondência com as pro­priedades intrínsecas da matéria e a elas se ligam de tal sorte que deixariam de existir, se essas pro­priedades substanciais fôssem outras. Daí concluí­mos que a matéria com as suas propriedades intrínsecas é também obra da Inteligência, que lhe estabeleceu as leis. O bom senso decreta, imperiosamente, e no que pesem às alegações contrárias, que não podemos atribuir a uma circunstância mo­lecular, fortuita, a atração, a eletricidade, o calor, a composição do ar, fatos cósmicos perfeitamente apropriados à vegetação das plantas, à vida animal, pela mesma razão que ninguém admitiria pudessem milhares de tipos de impressão, espalhados ao acaso, produzir a ilíada ou a Jerusalém Libertada. Se, para fugir a conclusões lógicas, nos dissessem que essas qualidades são efeitos inerentes, nem por isso elidiriam a necessidade lógica de uma inter­venção suprema e inteligente.

Juntemos a esta imagem um aforismo pouco discutível: todo fim supõe uma intenção, toda intenção, uma consciência, e toda consciência uma personalidade.

O problema das causas finais, repitamo-lo, é de solução mais difícil e complicada do que se pre­figura a muitos imaginativos apressados. Ele se traduz, como diriam os antepassados, antes em po­tencial do que em ato, Os fatos gerais o decidem, e os particulares o dificultam. Para bem o apreen­der, importa ao espírito adstringir-se a um exame severo e, de um golpe de vista, abranger, senão a totalidade, pelo menos a maioria das coisas co­nhecidas, sob o duplo aspecto do tempo e do espaço.

O primeiro efeito desse rigoroso estudo crítico é, precisamente, afastá-lo de toda a crença e res­guardá-lo dessas mesquinhas interpretações huma­nas, que levam a criatura a referir tudo a si mes­ma, como eixo central da Criação.

Assim procedendo, poderemos, então, rir das ilusões, vaidades e tentativas insensatas do orgu­lho humano. Esse, o primeiro resultado do estudo geral dos seres.

Mas, quando prosseguimos inves­tigando, até perceber as forças íntimas que sustentam cada ser criado, até descobrirmos as leis universais que regem simultaneamente o edifício total e cada uma das partes desse imenso edifício, então, distinguiremos as linhas de um plano geral, perceberemos, aqui e ali, os elos de solidariedade que entrosam num só desígnio os corpos mais dis­tantes, reconheceremos a unidade do pensamento que presidiu — ou melhor — que preside eterna­mente o condicionado universal e governa, na rota do infinito, o carro imensurável da Criação. Enfim, acostumando-nos a essas contemplações essenciais, também chegaremos a concluir que esta noção da divindade ainda é muito humana para que seja ver­dadeira, e que essa força que sustenta o mundo, essa potência que lhe dá vida, essa sabedoria que o dirige, essa vontade que o impele eternamente para uma perfeição inacessível, essa unidade de pen­samento que se revela sob as formas transitórias da matéria não são uma força, um poder, uma sa­bedoria, uma vontade humana, mas atributos ine­rentes a um ser inominável, incompreensível, in­cognoscível, de cuja natureza nada podemos razoar, e cujo conhecimento é para nós cientificamente ina­bordável.

Este resultado final das investigações positivas explica porque e como, nesta discussão, se afigura que estendemos a mão esquerda a Berlim e a di­reita a Roma. A quem no-lo objete, responderemos que se não trata aqui senão de um fato geográfico, resultante do nosso pendor para visualizar sempre o Oriente. Sem dúvida, esta atitude nos granjeia o qualificativo de herético, conferido pelos doutores que se repoltreiam em sua cátedra secular, mesmo porque, seus olhos modorrentos vêm de há muito preferindo a suavidade das meias tintas crepuscula­res aos flamíneos raios aurorescentes.

A lealdade, porém, obriga-nos a proclamar que o exagero dogmático é tão falso como o cepticismo, e que a trilha do pensador oscila equidistante des­ses extremos. Sim, oscila... Os que se presumem mais firmes nesse terreno, são os que mais próxi­mo estão da queda. Para o homem que estuda, nada há definitivo neste mundo. Quanto mais pro­gride a Ciência, mais o homem percebe a sua igno­rância.

Todavia, parar é morrer. Caminhar, mesmo contramarchando às vezes, é realizar o fim mais nobre da existência.

Em Filosofia, como em Mecânica, o equilíbrio não passa, jamais, de um equilíbrio instável.

Na sua tendência para tudo referir à sua pes­soa como centro exclusivo, o homem restringe os fatos e as idéias. Vimos que a sua teoria da cau­salidade é disso um exemplo e dos mais famosos. Quando se pretende que os frangos foram feitos para o espeto, não deixa de haver um tanto de per­sonismo na afirmação. Pode dizer-se, é verdade — de vez que o homem é onívoro e que sua consti­tuição orgânica exige alimentação mista — que os animais e plantas de que se nutre destinam-se, efe­tivamente, a lhe prover a existência e que, sem eles, a espécie humana logo se extinguiria. Descer, porém, a minúcias particulares e afirmar que as perdizes fôssem criadas para combinar com os tem­peros da culinária de Vatel; dizer que os bovinos foram principalmente destinados ao caldo gordo, ao bife com batatas, etc.; que os quartos do car­neiro e assados de vitela correspondem à finalidade originária das espécies ovina e bovina; que os fei­jões para nada prestariam se não fôssem tempe­rados e que as ameixas só foram douradas pelo Sol para serem saboreadas frescas ou em compota, e assim por diante, é incidir no vulgar; é esquecer o sistema geral da Natureza e acreditar que só o homem vive no Universo.

Assim, vamos terminar, lembrando nossa pro­posição, que é substituir a idéia de causalidade par­ticular pela idéia de plano geral.

Não tomamos posição pró nem contra a teoria da transformação das espécies; apenas concluímos que, sem o princípio da destinação dos seres e dos astros, é impossível algo explicar, desde a anatomia à mecânica celeste: nenhuma causa exterior, ne­nhuma influência mesológica se isenta dessa grande lei. A teoria da seleção natural substitui, simples­mente, a intervenção miraculosa da causa criadora para. cada espécie, por uma lei inteligente, universal.

Ela deixa na Natureza o pensamento organi­zador do mundo sensível ao começo, ao meio como ao fim das coisas.

Esta concepção do desenvolvimento do mundo, mais positiva e científica, não se baseia no casual nem no arbitrário. Apresenta o Universo como uni­dade viva, cuja existência se desenvolve e se eleva eternamente a um ideal inacessível, de conformi­dade com a idéia primordial. Origem e fim coexis­tem, simultaneamente, no atual. Do inorgânico ao orgânico, do orgânico ao vivente e do ser vivente ao inteligente, há um. ciclo, uma circulação mate­rial e uma ascensão intelectual, obedientes a uma razão dominadora. O mundo não é um jogo de dis­parates, é um poema no seio do qual não passa­mos de humilíssimos comparsas, e cujo autor invi­sível nos envolve na sua radiação imensa, como a esses grãos de poeira que vemos flutuar numa réstea de sol.

Ousemos confessá-lo! O destino integral, abso­luto, dos seres é problema insolúvel na atualidade. É um problema que se abre insensivelmente como um abismo, quando procuramos sondar-lhe as pro­fundezas... Uma noite, em Paris, antes do pôr-do-sol, contemplava eu o Sena, debruçado à ponte do Instituto, de onde o panorama se apresenta às vezes maravilhoso, O horizonte purpurizado der­ramava uma luz rósea nas encarneiradas nuvens que se espalhavam pelo céu azul, e essa luz, ba­nhando a atmosfera da grande urbs, dava um as­pecto mágico aos edifícios silenciosos. O rio, qual enorme rubi, rolava morosamente para Oeste, su­mindo-se no indeciso da distância, onde se casavam a luz e a sombra. À minha esquerda, o zimbório sombrio cinzentava o casario e, além, duas flexas góticas espetavam o céu. À minha direita, as ja­nelas do Louvre, reverberando uma iluminação feé­rica, emprestavam ao velho edifício desmesurada extensão. O bosque escuro das Tulherias e as altu­ras vaporosas de uma colina além, prolongavam a perspectiva até às brumas do horizonte. Este panorama apresentava-se-me com duplo sentido: —era a idéia grandiosa da Natureza pairando sobre a massa de uma grande cidade humana. Pouco a pouco, sentia-me identificado com esse espetáculo de uma existência simultânea da Natureza e da ci­dade, existência permanente e contudo velha, mas cujo contraste não me houvera tocado ainda, tão vivamente. E contemplando esse duplo espetáculo, acompanhava os movimentos reais, quanto os apa­rentes, da Natureza. O Sol descia, lento, atrás das colinas; as nuvens se coloriam de um matiz mais róseo, o rio deslizava docemente para o mar dis­tante; o ar refrescado agitava-se brando, como um ritmo respiratório. Esse movimento geral impres­sionava-me, por isso que o imaginava extensivo a toda a Natureza, e como que me desvendava a cir­culação total da vida planetária. Mas o motivo pre­dominante da minha atenção era a idéia de que todo esse movimento se completava, como se o homem ali não estivesse.

Em pleno centro de Paris, o homem afigurou-se-me um cifrão da Natureza. Os transeuntes que por mim passavam, ali, naquela mesma ponte, não admirariam, certamente, aquele magnífico pôr-de-sol. Os homens de negócios pervagavam absortos nos seus cálculos. Os dois milhões de almas que formigam a dentro da cinta fortificada não me pareciam mais que um turbilhão efêmero neste se­tor do nosso globo. E eu dizia de mim para mim: eis que assim vai a Terra girando em torno da sua órbita e apresentando cada país, por sua vez, à fecundação solar; as nuvens percorrem a atmosfera, as plantas obedecem ao ciclo das estações; os rios correm para o mar, dias e noites se alter­nam, a harmonia terrena segue o seu curso regular, perpétuo... Mas, porque tudo isso? Os insetos com suas mandíbulas estrafegam pétalas, os passarinhos devoram os insetos, o gavião devora os passa­rinhos, ruge o leão nos desertos, baleias caçam na amplidão dos mares... Porque e para que? Fon­tes límpidas ostentam, na solidão das matas, es­pelhos translúcidos em molduras de pervincas; re­gatos múrmuros despenham-se das colinas, ribeiros prateados misturam-se com os grandes rios para caírem nos abismos oceânicos e aí perderem a exis­tência e o nome; ricas florações repontam e mor­rem no fundo tenebroso dos mares, apenas visi­tados por madréporas e corais, e, sob a atração celeste, o fluxo e refluxo dos mares desloca, de continentes a continentes, a massa líquida e formi­dável. Mas... que utilidade haverá em tudo isso? Essa vastíssima Natureza caminha impassível, me­canismo colossal, as coisas se renovam sem tréguas, o próprio homem não passa de átomo efêmero, que surge e funde-se num relâmpago. Deste universo imenso, o homem quase nada conhece, posto suponha conhecer tudo, e, de resto, empregando o tempo noutras cogitações. Antes que surgisse o ho­mem, já essas mesmas harmonias vibravam como ao presente. Para que ouvidos, porém? Tudo existia antes dele e quiçá sem ele. Tudo existirá de­pois dele! Porque existe, aqui, esta Criação? Por­que, sondando-lhe a profundeza, não posso eu ideli­zar qualquer resposta? Porque haveria Deus criado a Terra e a multidão infinita de outros mundos? E porque, vendo a inquietude da minha alma, dei­xa-a debater-se no abismo da ignorância, como se não conhecesse Ele, o Criador, esse pensamento, qual o do grão de areia levado pelo vento, ou da gotícula dágua deste rio que aqui resvala, a meus pés? Porque e para que serve tudo isto? Que im­portará a Deus haja um, milhões, ou nem um mun­do? Qual a finalidade desta obra? Ainda uma vez porque, ó Deus! existe a Criação? E, contudo, este conjunto formidável tem uma finalidade. Este véu oculta um problema grandioso, que nos envolve e aniquila. Nesse dia, retirei-me silencioso, olhos cerrados, em nada mais atentando. Desaparecera

o Sol, o Sena prosseguiu em seu curso, o manto da noite envolveu a cidade e logo entrei a ouvir o barulho ambiente. Mais tarde, muitas vezes, fui assaltado por essas mesmas reflexões, muitas ve­zes me vi constrangido a repetir a pergunta irre­torquível — porque existe o mundo? E sempre o silêncio e o vácuo por única resposta!

Pois quê! Sempre que tentava uma resposta, questão mais grave se me impunha, consequente. Acompanhando esse movimento impassível da Na­tureza, minha alma por vezes se emancipou do tem­po para interrogar-se onde estaria daqui a cem anos e, prosseguindo avante, imaginou, aterrada, o que poderia aguardá-la num milênio. Perpetuando o seu tesouro, viu que poderia viver ainda cem mil anos e perguntou o que seria nessa época.

Sonhando mais longe o abismo, lá se foi ela, infatigável, por beirar um milhão de anos, de sécu­los! E além dessas lindes, desses pontos já inaces­síveis ao pensamento, ei-la a imaginar nova linha de igual extensão; depois, uma segunda, terceira, quarta, décima, centésima, milésima... Já na eternidade, então, percebeu que o tempo não existe e que a eternidade é imóvel... Devo dizer que, por vezes, este último pensamento se tornava tão ater­rador, diante do inexorável destino, que me ani­quilava a noção de personalidade, como se esse quadro insustentável nos convidasse a esperar o repouso na morte, ou como se essa contemplação, muito vasta para o cérebro humano, o houvesse espedaçado e suprimido do número dos cérebros inteligentes. Talvez não me assista o direito de assim vos entreter com as minhas impressões pes­soais. No fundo, porém, não se trata aqui de um caso pessoal, mas de um estudo análogo ao do anatomista que sonda profundamente uma chaga desconhecida. Se o astrônomo se baseia em obser­vações pessoais para fixar o seu sistema; se o quí­mico fala pelo testemunho das suas retortas e aná­lises particulares; se o físico examina a Natureza com seus próprios olhos, natural se torna que o pensador, a exemplo deles, conte o resultado de suas elucubrações e confie, eventualmente, aos que o ouvem, as inquietações e labores do seu espírito. No mínimo, há nisto um ato de sinceridade e o penhor de uma opinião, independente de qualquer sectarismo.

Sim! O vasto problema da destinação dos seres e coisas envolve-nos na sua profundeza, sem que o possamos julgar nem resolver. Ele nos arrasta, quais infusórios microscópicos, perdidos no bojo dos oceanos, a procurarem compreender e explicar o fluxo e refluxo das águas.

QUINTA PARTE

Deus

1

DEUS

SUMÁRIO — Deus na Natureza, força viva e pessoal, causa dos movimentos atômicos, lei dos fenômenos, ordenador da harmonia, virtude e sustentáculo do mundo. — O homem criando Deus à sua imagem. — Erro antropomórfico. — O filósofo grego Zenófanes há. 2400 anos. — A natureza de Deus é incognoscível. —Nenhum sistema humano poderá defini-la. — Diferen­tes modalidades da idéia de Deus, segundo os homens. — Últimas perspectivas doutrinárias. — Conclusão geral. — Epilogo.

O prisma através, do qual nos permitimos con­cluir a nossa demonstração geral é antes síntese que peroração; e se é verdade que a Ciência e a Poesia estão intimamente associadas na contempla­ção da Natureza, não podemos, judiciosamente, im­pedir o sentimento poético de se manifestar nestas últimas impressões que o panorama do mundo nos sugere.

Apenas, necessário fôra nos consagrássemos, agora, a um estudo especial da causa divina, visto que por essa causa temos combatido de início, nes­te longo arrazoado, e todas as conclusões atingiram esse alvo supremo. Contudo, vale enfechá-las numa conclusão geral. Assim como o naturalista, o bo­tânico, o geômetra, o lavrador, o operário ou o poeta, depois de examinar as particularidades de uma paisagem e galgar a colina de cujo cimo se abrange os pontos estudados, volta-se por contem­plar de conjunto a distribuição, o plano e a beleza do panorama, assim também, após o estudo parti­cularizado das leis da matéria e da vida, apraz-nos a ele voltar e calmamente admirá-lo.

Aos olhos da alma apraz embevecer-se na ra­diação celeste, que inunda toda a Natureza. Aqui, já não é a discussão, mas a contemplação recolhida da luz e da vida resplandecentes na atmosfera, que brilham no cromatismo das flores e refulgem nos seus matizes; que circulam na folhagem dos bos­ques e envolvem num beijo universal os inumerá­veis seres palpitantes no seio da Natureza. Depois da potência, da sabedoria, da inteligência, é a bon­dade inefável o que se faz sentir; é a universal ternura de um ser misterioso sempre, fazendo su­cederem-se na superfície do globo as formas inu­meráveis de uma vida que se perpetua por amor, e que jamais se extingue.

A correlação das forças físicas nos mostrou a unidade de Deus, sob todas as formas transitárias do movimento. Pela síntese, o espírito se eleva ànoção de uma lei única — lei e força universais, que valem por expressão ativa do pensamento di­vino. Luz, calor, eletricidade, magnetismo, atração, afinidade, vida vegetal, instinto, inteligência, tudo deriva de Deus. O sentimento do belo, a estesia das ciências, a harmonia matemática, a geometria, iluminam essas forças múltiplas e lhes dão o per­fume do ideal. Seja qual for o prisma pelo qual o pensador observe a Natureza, encontra uma tri­lha conducente a Deus — força viva, cujas palpi­tações, através de todas as formas, ele as sentirá no estremecer da sensitiva, como no canto matinal dos passarinhos.

Tudo é número, correspondência, harmonia, re­lação de uma causa inteligente, agindo universal e eternamente.

Deus não é, pois, como dizia Lutero, “um qua­dro vazio, sem outra inscrição além da que lhe apomos”. Deus é, ao contrário, a força inteligente, universal e invisível, que constrói sem cessar a obra da Natureza. É sentindo-lhe a presença eterna que compreendemos as palavras de Leibnitz: “há meta­física, geometria e moral por toda a parte — bem como o velho aforismo de Platão, que poderemos assim traduzir: Deus é o geômetra que opera eter­namente.

É fora dos tumultos da sociedade mundana, éno silêncio das profundas meditações que a alma pode rever-se, em face da glória do invisível, ma­nifestada pelo visível.

É nessa visualização da presença de Deus na Terra, que a alma se eleva à noção do verdadei­ro (117). O ruído longínquo do oceano, a paisagem solitária, as águas cujos murmúrios valem sorrisos, o sono das florestas entrecortado de anseios, suspi­rosos, a altivez impassível das montanhas, tudo abrangendo de alto, são manifestações sensíveis da força que vela no âmago de todas as coisas. Aban­donei-me, algumas vezes, a contemplar-vos, ó es­plendores vividos da Natureza! e sempre vos senti envoltos e banhados de inefável poesia! Quando meu espírito se deixava seduzir pela magia da vossa beleza, ouvia acordes desconhecidos escapando-se do vosso concerto.

Sombras noturnas que flutuais pela encosta das montanhas, perfumes que baixais das florestas, flores pendidas que cerrais os lábios, surdos rumo­res oceânicos que nunca vos calais, calmarias pro­fundas de noites eStreladas, tendes-me falado de Deus, certo, com eloquência mais íntima e mais empolgante que todos os livros humanos! Em vós encontrei ternuras maternais, blãndícias de inocên­cia, e, sempre que me deixava adormecer no vosso regaço, despertava alegre e venturoso. Coloridos de esplêndidos crepúsculos, deslumbramentos de clarores

(117) Bellarmin — Ascencio mentis in Deum per scalas rerum creatarum.

moribundos, visões de sítios ermos, que deli­ciosos momentos de ebriedade não concedeis aos que vos amam! O lírio desabrocha e bebe, em êxtase, a luz que derrama dos céus! Nessas horas contemplativas, a alma transforma-se em flor, aspi­rando, ávida, as irradiações celestes.

A atmosfera já não é, tão somente, uma mis­tura de gases; as plantas deixam de ser simples agregados atômicos de carbono ou hidrogênio; os perfumes não se reduzem a moléculas impalpáveis e só derramados à noite, para resguardar as flores da friagem; a brisa embalsamada significa algo mais que uma simples corrente de ar; as nuvens não representam apenas vesículas de aquoso vapor; a Natureza não se oferece exclusivamente qual labo­ratório de química, ou gabinete de física... Antes, pelo contrário, pressentimos em tudo uma lei de harmonia soberana, que governa a marcha simul­tânea de todas as coisas, que cerca os mais íntimos seres de uma vigilância instintiva, que guarda cio­samente o tesouro da vida em plenitude de pujança e que, por seu perpétuo rejuvenescimento, desdobra em potência imutável a fecundidade criada. Em toda esta Natureza há uma espécie de beleza univer­sal, que a nossa alma respira e identifica, como se essa beleza ideal pertencesse unicamente, ao domicíl­io da inteligência.

Vésper que antecedes a noite! carro do Seten­trião! Magnificências estelares! Misteriosas pers­pectivas de abismo insondável! Que olhar, aper­cebido de vossas munificências, poderia fitar-vos indiferente? Quantos olhares sonhadores se têm perdido nos vossos desertos, ó solidões do espaço!

Quantos ansiosos pensamentos têm viajado de ilha em ilha, no vosso luminoso arquipélago! E nas horas da saudade e da melancolia, quantas pupilas molhadas têm baixado sobre os olhos fitos numa estrela predileta!

É que a Natureza tem nos lábios palavras doces, no olhar tesouros de amor, e no coração sentimentos afetivos de uma preciosidade esquisita, e isso porque ela, a Natureza, não consiste somente numa organização corporal, mas também tem alma e vida. Quem quer que só a tenha entrevisto no seu aspecto material, atenas lhe conhece a metade. A beleza íntima das coisas é tão verdadeira e positiva como a sua composição química. A harmonia do mundo não é menos digna de apreço do que o seu movimento mecânico. A direção inteligente do Universo deve ser constatada ao mesmo título das fórmulas matemáticas. Obstinar-se em só consi­derar a criatura com os olhos do corpo e jamais com os do Espírito, é parar voluntàriamente àsuperfície. Bem sabemos que os adversários vão objetar-nos que o Espírito não tem olhos, que éum cego de nascença e que toda afirmativa, não originária dos órgãos visuais, perde todo o valor. Mas, isto também não passa de um conceito arbi­trário, e, ao demais, infundado. Temos visto que é possível, de boa fé, pôr em dúvida as verdades de ordem intelectual, e que é em nosso próprio senso que se forma a convicção de toda e qualquer ver­dade.

Transporemos, portanto, sem receio, estas mo­finas objeções. Para nós a Natureza é um ser vivo e animado, e mais ainda — um ser amigo. Onipre­sente, fala-nos pelas suas cores, pelos sons e pelos movimentos; tem sorrisos para as nossas alegrias, gemidos para as nossas tristezas, simpatia para todas as nossas aspirações. Filhos da Terra, nosso organismo está em consonâncias vibratórias com todos os movimentos que constituem a vida da Na­tureza: ele os compreende e deles compartilhamos, de modo a nos deixarem nalma uma repercussão profunda, a menos que o artifício nos tenha atro­fiado. Congênita do princípio da criação, nossa alma reencontra o infinito na Natureza.

Para a ciência espiritualista, não mais se de­frontam um mecanismo automático e um Deus re­traído na sua imobilidade absoluta. Deus é potência e ato naturais; vive na Natureza, como nele vive ela. O Espírito se faz pressentir através das formas materiais, mutáveis. Sim, a Natureza tem harmonias para a alma, tem quadros para o pen­samento, tem tesouros para as ambições do Espírito e ternuras para as aspirações do coração. Sim, ela os tem, porque não nos é estranha, não está de nós segregada e somos um com ela.

Ora, a força viva da Natureza, essa vida men­tal que reside nela, essa organização peculiar ao destino dos seres, essa sabedoria e onipotência no entretenimento da criação, essa comunicação íntima de um espírito universal entre todos os seres, que coisa, outra, poderá significar senão a revelação da existência de Deus, a manifestação de um pensa­mento criador, eterno, imenso? Que significam a faculdade eletiva das plantas, o instinto inexplicável dos animais, a genialidade do homem? Que será o governo da vida terrestre, sua direção em torno do seu foco de luz e de calor, as revoluções solares, a movimentação de mundos incontáveis a gravitarem conjugados no infinito? Que significará tudo isso, senão a demonstração viva, imperiosa, de uma von­tade que subordina o mundo inteiro à sua potência, como envolve as nossas obscuridades na sua luz? Que será o aspecto espiritual da Natureza, senão pálida radiação da beleza eterna? — esplendor des­conhecido, que os nossos olhos, desviados por falsas claridades da Terra, mal podem entrever, nas horas santas e benditas em que o divino Ser nos permite sentir sua presença.

As leis da Natureza nos têm provado que existe uma inteligência ordenadora. Essas leis, diz John Herschel (118), são, não somente constantes, mas concordantes e inteligíveis. E são fáceis de apreen­der com o auxílio de algumas pesquisas, mais próprias a estimular que a extinguir a curiosidade. Se pertencêssemos a outro planeta e de súbito nos

(118) On the Study of the Natural Fhilosophy.

transportássemos a um dos nossos meios sociais no intuito de observar o que neles ocorre, ficaríamos desde logo embaraçados para dizer se uma tal so­ciedade se regeria por quaisquer leis. Se chegásse­mos a descobrir que ela presumia tê-las, haveríamos, então, de procurar, na sua conduta e consequências dela decorrentes, quais poderiam ser essas leis, em que sentido foram concebidas e não teríamos, tal­vez, grandes dificuldades no descobrir regras apli­cáveis aos casos particulares; mas, se quiséssemos generalizar, se tentássemos apreender alguns prin­cípios salientes, a massa de absurdos, de contradi­ções jorrantes de todos os lados, presto nos des­viaria de um amplo exame, ou nos convenceria da inexistência do objeto de nossa pesquisa. Com a Natureza dá-se inteiramente o contrário. Nela não há dissonância nem contradições e, sim, e só, harmonia. Não temos jamais de esquecer o que sou­bemos uma vez. Quando as regras se generalizam, as exceções aparentes tornam-se regulares. Qual­quer equívoco na sua legislação portentosa é tão inaudito como um ato mal entendido.

Os grandes fatos da moderna Ciência têm, por conseguinte, transformado a idéia de Deus, apre­sentando-o, ao demais, sob um aspecto bem diverso do encarado até agora. Esse aspecto é ao mesmo tempo mais grandioso e mais difícil de apreender.

E, contudo, nós podemos ao menos conceber, senão esboçar, o conjunto dessa metamorfose pro­gressiva.

A ignorância havia humanizado Deus e a Ciên­cia diviniza-o — se é que o pleonasmo não escan­daliza os senhores gramáticos.

Outrora, Deus foi homem; hoje, Deus é Deus. A fé do carvoeiro, ainda tão gabada, não é mais a verdadeira fé. O credo quia absurdum é absurdo duplicado. O Ser supremo, criado à imagem do homem, hoje vê apagar-se pouco a pouco essa ima­gem, substituída por uma realidade sem forma. Pois a forma, a definição; o tempo, a duração, a medida, o grau de potência ou atividade, a descri­ção, o conhecimento, não mais se aplicam a Deus e mal começam a ser percebidos. O próprio nome oculta uma idéia incompleta e preciso fora falar de Deus sem nomeá-lo. Outrora, Júpiter empunhava o raio, Apolo conduzia o Sol, Netuno senhoreava os mares... Na idolatria dos budistas, Deus ressuscitava um mõrto sobre o túmulo de um santo, fazia falar um mudo, ouvir um surdo, crescer um carvalho numa noite, emergir dágua um afogado... Desvendava a um estático as zonas do terceiro céu, imunizava do fogo, são e salvo, um santo mártir, transportava um pregador, num abrir e fechar de olhos, a cem léguas de distância, e derrogava, a cada momento, as suas próprias, eternas leis... Ainda hoje, lá no Tibet longínquo, adoram Maitreya. A mão deste deus refreia as ondas enfurecidas, abençoa um exército e amaldiçoa o rival; dirige as chuvas em rogativas de procissões e, qual hábil jardineiro, rega aqui, ensombra ali, poda acolá, ajusta, enxerta, combina, seleciona e mantém um cadastro heráldico de nomes e datas (119). A maio­ria dos crentes em Deus o conceituam como um super-homem, alhures assentado acima das nossas cabeças, presidindo os nossos atos. Dotado de exce­lente vista e não inferior ouvido, mantém as rédeas do mundo e, em caso de necessidade, chama um anjo serviçal e o envia a consertar qualquer peça desarranjada do seu mecanismo. A darmos crédito às tradições do Damapadam e às inscrições d’As­choka, o Buda tem um filho — Bodisatva — media­dor assentado à sua direita, além de uma terceira pessoa — Buda — Manouschi — “a realização de

(119) Neste lanço o Autor não é justo. O nosso cato­licismo de hoje (estamos em 1939 e este livro é de 1867) principalmente aqui, no Brasil, continua a abençoar espa­das e abençoar ou amaldiçoar governos e revoluções. Opor­tunista e mimetista, sempre, não há partido que lhe não quadre ao seu deus, exceto, claro, os que acreditam em Deus e lhe dispensam os cânones. — Nota do Tradutor

Deus pelo homem”. Todos eles vivem nas alturas do Nirvana eterno, rodeados de Espíritos, tronos, apóstolos, mártires, pontífices, confessores, domina­ções, potências, magos do culto precursor, videntes da filosofia sakhya, que foram purificados, etc.; tudo isso eternamente esquemado e graduado, se­gundo os méritos de uma vida efêmera.

A história da idéia de Deus mostra-nos que ela sempre foi relativa ao gráu intelectual dos povos e de seus legisladores, correspondendo aos movi­mentos civilizadores, à poesia dos climas, às raças, à florescência de diferentes povos; enfim, aos pro­gressos espirituais da Humanidade. Descendo pelo curso dos tempos, assistimos sucessivamente aos desfalecimentoS e tergiversações dessa idéia im­perecível, que, às vezes fulgurante e outras vezes eclipsada, pode, todavia, ser identificada sempre, nos fastos da Humanidade. Notamos, então, que esta idéia relativa difere do absoluto único, sem o qual é impossível, hoje, conceber-Se a personalidade divina.

Esse absoluto — importa afirmá-lo nestas úl­timas páginas — é absoluto mesmo e nós não o conhecemos. Ele não é o Varouna dos Árias, o Elim dos Egípcios, o Tien dos Chineses, o Ahoura-Mazda dos Persas, o Brama ou Buda dos Indianos, o Jeová dos Hebreus, o Zêus dos Gregos, o Júpiter dos Lati­nos, nem o que os pintores da Idade Médio entro­nizaram na cúspide dos céus.

Nosso Deus é um Deus ainda desconhecido, qual o era para os Vedas e para os sábios do Areópago de Atenas. A noção de alguns eminentes pais da Igreja cristã e de alguns esclarecidos teólo­gos modernos, aproxima-se, mais que outras quais­quer, desse Deus desconhecido. Mas, como com­preendê-lo, quando nenhum Espírito criado, nem mesmo os anjos (se é que existem) poderiam fazê-lo?

Não cabe aqui entreter-nos com as moradas imaginadas para a pessoa de Deus. Não abordaremos o poético céu dos gregos, povoado de figuras ideais, onde os deuses sempre jovens e belos se divertem, combatem e gozam com o tomar parte nos destinos humanos. Não falaremos do sombrio e iracundo Jeová dos Judeus, que pune até à terceira ou quarta geração. Nada diremos, tão-pouco, do céu dos Orientais, que reserva aos crentes nu­merosas huris, num ambiente de beleza e delícias eternas.

Omitiremos o céu dos Groelandeses, no qual a maior ventura consiste numa grande quantidade de peixes e de óleo de baleia, bem como o céu do In­diano caçador, que se paga com abundância de caça, e o do Germano que, no Walhalla, faz do crâ­nio do inimigo a sua taça de hidromel.

Se o simples bom senso humano não pode, jamais, fazer uma idéia pura e abstrata do abso­luto, as tentativas da Filosofia, por sua vez, pouco ou mesmo nada têm conseguido. Quem se desse ao trabalho de catalogar as idéias acerca de Deus, do absoluto ou daquilo a que os filósofos chamam alma do mundo, ficaria pasmo da quantidade e variedade de sistemas que, desde a origem dos tempos histó­ricos, até os nossos dias, a despeito dos progressos científicos, se imaginaram por oferecer poucos ra­ciocínios novos, e raramente razoáveis.

Dizia Goethe (120) que os homens tratam Deus como se o Ente supremo, o Ser incompreensível, fôsse a eles semelhante, pois de outro modo não diriam, o Senhor Deus, o nosso, o bom Deus.

Para eles e sobretudo para a gente beata, que o tem sempre nos lábios, Deus torna-se um simples vocábulo, uma expressão habitual, desligada de qualquer sentido. Entretanto, se estivessem com­penetrados da grandeza de Deus, silenciariam e, respeitosamente, se abateriam de o vocalizar.

Wirchow não está com a verdade quando diz que o homem nada pode conceber do que está fora

(120) Entretiens de Goethe et d’Eckemann, 1º, 8.

dele, e que tudo que está fora do homem é trans­cendental.

O homem se retrata nos seus Deuses, é ainda Schiller quem o diz.

A natureza de Deus, bem como a sua própria existência, está, em nosso século, no mesmo pé em que se encontrava ao alvorecer da Filosofia. Já se pode observar, no curso geral desta obra, que o nosso fim é, hoje, o mesmo que Xenófanes coli­mava, seiscentos anos antes da nossa era; isto é, opor uma convicção pura e racional aos dois erros capitais, que são o ateísmo absoluto e o antropo­morfismo. Há muito tempo que este filósofo (121), fundador da escola de Eléa, protestou judiciosamente contra essas duas ilusões funestas. “Parece que os homens é que criaram os deuses, atribuindo-lhes as suas paixões, a sua voz, a sua fisiono­mia” (122). Se os bois e os leões tivessem mãos, se soubessem pintar e trabalhar com as mãos, como fazem os homens, os cavalos utilizariam cavalos e os bois aproveitariam os bois para representar seus deuses, dando-lhes corpo idêntico ao seu. Ele refutou as superstições que consistiam em atribuir aos deuses a própria cor, como, por exemplo, a dos Etíopes que, em serem negros de nariz chato, assim representavam os seus deuses; os Trácios, que lhes emprestavam olhos azuis e cabelos ruivos, e os Medas e Persas, que não fugiam à regra.

Há um só Deus que a tudo mais supera,

Aos deuses não somente, como aos homens,

E que aos mortais em nada se assemelha,

Nem na forma exterior e nem na essência.

Clemente de Alexandria, que nos guardou estes versos, muito bem os caracteriza quando diz que

(121) V. Clén. Alex. Strom. V. — Eusèbe. Proep. Evang. 13º.

(122) Theodor — De Affect. Curat, 3º.

Xenófanes aí predica a unidade e a espiritualidade divina. Onde encontrar num filósofo jônio, antes de Anaxágoras, um pensamento como este: “Sem fatigar-se, ele tudo dirige pela potência intelectual.”

Arístoto, Simplícius e Théofrasto conserva­ram-nos a estrutura da argumentação pela qual Xenófanes demonstrava que Deus não tivera prin­cípio nem poderia ter nascido. Impossível — diz V. Cousin (123) — não experimentar uma profun­da, quase solene impressão, diante desses argumen­tos, quando se diz que eles representam, ao menos para a Grécia, a primeira tentativa do espírito humano para analisar sua fé e converter suas cren­ças em teorias.

É natural, acrescenta o filósofo eclético, quan­do temos a noção da vida e desta existência tão grandiosa e variada, da qual compartilhamos; quan­do consideramos a extensão deste mundo visível, a par da harmonia que nele reina e da beleza que reluz em todas as suas partes; quando nos detemos onde se detêm os nossos sentidos imaginativos; é natural, repetimos, concluir que os seres compo­nentes deste mundo são os únicos que existem, que este grande todo, tão harmonioso e uno, é o verda­deiro objeto e a última aplicação do conceito de unidade, e que, numa palavra, esse tudo é Deus. Exprima-se esta tirada em língua grega e aí tere­mos o panteísmo, que é a concepção do todo como Deus único. Por outro lado, quando descobrimos que a unidade aparente do todo não é senão uma harmonia que comporta variedade infinita, asseme­lhando-se a uma guerra e a uma revolução perma­nentes, então, já não é natural destacar do mundo o conceito de unidade, que é indestrutível em nós, e, assim destacada do modelo imperfeito deste mundo visível, ligá-la a um ser invisível, tipo sa­grado da unidade absoluta, além da qual nada mais há que conceber e investigar.

(123) Fragments de Philosophie Ancienne.

Estas duas soluções exclusivistas do problema fundamental, sempre vieram à tona em todas as grandes épocas da história da Filosofia, alterada, éfato, com o progresso dos tempos, mas no fundo sempre idênticas, de modo a poder dizer-se que a história do seu perpétuo litígio com alternativas de predomínio de uma ou de outra foi, até o presente, a história mesma da Filosofia. E justamente por estarem no âmago do pensamento, é que essas duas soluções se reproduzem constantemente, incapazes de se separarem e de se satisfazerem.

Pela documentação de Arístoto, vemos que a grande preocupação de Xenófanes era não iden­tificar Deus com o mundo, sem contudo concei­tuá-lo uma abstração. A idéia de um ser infinito, fora do movimento, parecia-lhe uma idéia pura­mente negativa, e, por isso, receava aplicá-la a Deus. Ao mesmo tempo, como pitagórico, repugna­va-lhe fazer dele um ser finito, móbil e ünicamente dotado de atributos mundanos. Simplícius lembrou dois versos do filósofo, nos quais parece admitir a imobilidade do primeiro princípio: — “Ele per­manece imutável em si mesmo, não se desloca de um lugar para outro, de vez que é idêntico a si mesmo.” Xenófanes preocupou-se principalmente com o mundo exterior, mas, não estranho às espe­culações pitagóricas, soube entrevisar a inteligên­cia, a harmonia e a unidade deste mundo, chamando Deus a essa unidade, tal como a entrevia e sentia, isto é: em relação íntima com o mundo, sem negar que fôsse essencialmente distinta, mas tão-pouco afirmando que o fôsse.

Todos os historiógrafos concordam em atribuir a Xenófanes a invenção do cepticismo universal, ao mesmo tempo que o acusam de panteísmo. Va­lerá, talvez, frisar aqui a extravagância dessa forma de acusação, que começa por irrogar a um homem o seu ferrenho dogmatismo, e acaba censurando-o por haver introduzido na Filosofia a doutrina da incompreensibilidade de todas as coisas. Sêxtus cita em apoio desta opinião um texto de Xenófanes:

“Nenhum homem soube nem saberá nada de certo a respeito dos deuses e de tudo quanto falo. E o que melhor fala nada sabe, e o que predomina em tudo é a opinião.”

O próprio filósofo, também ele, não se explica de um modo claro. Pois não diz tratar-se daqueles deuses aos quais sabemos que ele movia uma guerra encarniçada? O laço que o prendia às duas escolas de que fazia parte era. o cepticismo, e nessas escolas vigorava, com fórmula convencionada, que a cren­ça nos deuses era extra-científica. Hoje, estamos na mesma situação: há deuses humanos a desmas­carar e um Deus verdadeiro a revelar.

Hoje ainda, como no tempo de Xenófanes, im­porta combater essas tendências do homem para tudo referir a si, e para transportar as suas idéias imperfeitas ao domínio do Criador. A ciência icono­ciasta derruba as nossas imagens pueris. A Ciência, é verdade, não se ocupa diretamente com as nossas crenças; ninguém duvida tenha ela outros motivos de estudo menos incompreensíveis e mais positivos. Mas, por suas conquistas no plano físico e por seu espírito de análise, ela modifica, necessàriamente, a nossa forma de ver e não mais podemos conciliar o caráter do espírito científico com essas encarna­ções de idéias pueris e indignas do absoluto. Nisso consiste, precisamente, a sua tendência geral. E aqui, como se dá em relação às causas finais, temos a tristeza de observar que um certo número de cientistas, reconhecendo os erros humanos, dos quais acabámos de assinalar alguns tipos, abandonaram ao mesmo tempo os erros e a crença. Como se a ilusão e a incapacidade da nossa penúria implicas­sem a queda da causa primária, que elas mesmas desfiguraram! Ao demais, pois que a oportunidade se apresenta, ajuntemos que este exagero de cepti­cismo não deve ser rigorosamente imputado a um deliberado propósito dos que caíram tão baixo, de vez que a isso foram compelidos por uma espécie de reação aos exageros da parte contrária. A prin­cipal força do ateísmo provém, indubitàvelmente, dos excessos mesmos do Espiritualismo, a desafiarem uma inevitável quão legítima correção. Como têm tratado a Natureza os imprudentes espiritualistas? Admitiram uma eternidade inativa, uma criação es­pontânea do Universo: no vácuo infinito, uma von­tade arbitrária estabelece a sucessão, a duração e a extensão. O mundo não radica no passado e aparece-nos como puro acidente. Mas, não é só: o espiritualismo exclusivista comporta concepções ainda mais temerárias, tais, como a negação da ma­téria, que já entrevimos na primeira parte (página 81.)

Berkley (124) emitiu estas duas afirmações:

“Há verdades tão perto de nós e tão fáceis de alcançar, que basta abrir os olhos para as perceber. Entre as mais importantes, parece-me encontrar-se a de que a luminosa abóbada celeste, a Terra e quanto nela se contém; tudo, em suma, que compõe este Universo esplêndido, não tem realidade fora do nosso Espírito.” Confessemos que levar o para­doxo a esse ponto é provocar o excesso contrário, que não demora a rebatida violenta sob o prisma do ateísmo. Fanáticos outros há, que, não só acre­ditam firmemente nos mais clamorosos absurdos, como se presumem em relação direta com o pró­prio Deus e se conferem, por virtude dessa mesma graça, um privilégio de Infalibilidade. Esses Espí­ritos pecos imaginam, ingênuamente, que o fantas­ma que eles forjaram é o verdadeiro Deus, criador do céu e da Terra, e, ao mínimo pretexto, averbam doutoralmente, de ateus e ímpios, quantos com eles não comungam.

Em os ouvindo, é preciso acreditar nas suas pataratas, ou de tudo descrer. Não há meios ter­mos. Todo Espírito que se não veste pelo seu figu­rino é anátema. Chegam mesmo a declarar que preferem o mais obstinado incrédulo ao crente que

(124) Princ. Conn. Hum.

diverge das suas opiniões. Não sabem distinguir o formal do essencial. Se, por exemplo, escrevermos esta profissão de fé: “cremos de todo o coração na existência de Deus, mas, não conhecemos o Ser misterioso, assim denominado e julgamos impossível que o homem consiga compreendê-lo” — estamos certo de que os zelotes da religião e da moral vão de pronto gritar — blasfêmia, iniquidade! — e interditar às suas ovelhas a leitura deste livro.

Não nos detivesse aqui um escrúpulo todo pes­soal e poderíamos, assim, de antemão citar o título dos jornais e o nome dos escritores que nos vão increpar de blasfemo. Espíritos assim tacanhos, encontramo-los em todas as confissões e. em todos os dogmas; nos católicos e protestantes da Irlanda ou da Alemanha, como nos judeus ou nos muçul­manos do Cairo e de Constantinopla. Toda bandeira tem os seus imprudentes.

Todavia, a investigação imparcial da verdade exclui de seus domínios os exageros do fanatismo, tanto quanto os do cepticismo. Ela prossegue na sua tarefa laboriosa e fecunda, e expõe sincera-mente o ensinamento recolhido das suas descober­tas sucessivas.

Dos progressos gerais da Ciência resulta, di­zíamos, que a idéia comum, acerca de Deus, está atrasada e tornou-se até mesquinha e inaceitável, à face desses enormes progressos.

A medida que se amplia o conhecimento da Natureza, faz-se necessário desenvolver a concepção do seu Autor. São noções paralelas, que participam, necessariamente, dos mesmos movimentos. Assim como nada existe de absoluto em os nossos conhe­cimentos da criação, assim, também, nada absoluto podemos idealizar sobre o Criador. E a Ciência, longe de destruir a velha idéia da existência de Deus, desenvolve-a e torna-a gradualmente menos indigna da majestade que lhe é apanágio.

Assim, não é mais um ser humano, não é mais uma personagem real que a inteligência atilada lobriga na cimeira da criação. Nossos mais altos conceitos de hierarquia, de soberania, de cetros e tronos, perderam toda a capacidade de comparação; os mais nobres sentimentos de santidade, grandeza, poder, bondade, justiça, abatem-se estéreis perante o ser desconhecido. Quando pronunciamos a pala­vra — infinito, queremos referir um atributo cujo caráter ignoramos totalmente. A soma integral dos nossos pensamentos é menos que zero no cômputo do absoluto. Comparados à realidade desse abso­luto, estão dele mais infinitamente distantes, do que estariam dos nossos os de um mísero peixe nas profundezas oceânicas. É nessa altura que as reve­lações da Ciência nos convidam a crer.

Dilatando-se a esfera de nossa contemplação e espalhando uma luz mais instrutiva sobre a com­posição geral do Universo, também avulta e acla­ra-se-nos o senso íntimo da divindade. Ora, ainda que a Ciência não nos houvera prestado outros serviços, ainda assim, enorme seria a sua influência, visto que, ensejando o desmoronamento dos velhos andaimes para substitui-los e entremostrar o edi­fício ideal da verdade, ela desloca o eixo do mundo e renova a superfície do terreno intelectual. É ao espírito científico que se aplica doravante o Reno­vabis faciem terrae.

Passando dos domínios dos seres criados para os do Espírito puro, a noção de Deus sofre uma metamorfose correlata à noção das forças da Natu­reza. Estas forças não são mais elos materiais, nem mesmo fluídicos. Deus aparece-nos sob a idéia de um Espírito permanente e residente no âmago das coisas. Deixa de ser o soberano a governar das alturas celestes, para ser a lei invisível dos fenômenos. Não habita um Paraíso povoado de anjos e de eleitos e sim a amplidão infinita, repleta da sua presença, ubiqüidade imóvel, totalizada em cada ponto do Espaço, em cada instante do tempo, ou, por melhor dizer — eternamente infinita e sobranceira a tempo, espaço e ordem de sucessão, qualquer Passado e futuro existem para nós, seres sujeitos a. tempo e medida, não para o Eterno. O espaço oferece-nos dimensões variadas e o Infinito, não. Não são afirmações metafísicas de cuja soli­dez possamos suspeitar, mas, antes, deduções inevitáveis e resultantes dos próprios dados da Ciência sobre a relatividade dos movimentos e a universa­lidade das leis.

A ordem universal reinante na Natureza, a inteligência revelada na construção dos seres, a sa­bedoria espalhada em todo o conjunto, qual uma aurora luminosa e, sobretudo, a universidade do plano geral regida pela harmoniosa lei da perfecti­bilidade constante, apresenta-nos, já agora, a oni­potência divina como sustentáculo invisível da Natureza, lei organizadora, força essencial, da qual derivam todas as forças físicas, como outras tantas manifestações particulares suas.

Podemos, assim, encarar Deus como um pen­samento imanente, residente inatacável na essência mesma das coisas, sustentando e organizando, ele mesmo, as mais humildes criaturas, tanto quanto os mais vastos sistemas solares, de vez que as leis da Natureza não mais seriam concebíveis fora desse pensamento, antes são dele eterna expressão.

Esta convicção, adquirimo-la no exame e aná­lise dos fenômenos da Natureza. Para nós, Deus não está fora do mundo, nem a sua personalidade se confunde na ordem física das coisas. Ele é o pensamento incognoscível, do qual as leis diretivas do mundo representam uma forma de atividade.

Tentar a definição desse pensamento e explicar o seu processo operatório, pretender discutir seus atributos ou procurar os seus caracteres, resolver o abismo infinito na esperança de poder satisfazer nossa avidez de conhecimento, seria, ao nosso ver, empresa não apenas insensata, mas até ridícula. Um tal ensaio demonstraria que o seu autor não compreendera a distinção essencial que separa o infinito do finito. Entre estes dois termos há uma distância que ponte alguma poderia cobrir. Deus é, por sua natureza mesma, incognoscível e incom­preensível para nós.

Não é preciso mergulhar no labirinto do des­conhecido para chegarmos à certeza da existência de Deus. Em o fazer, talvez houvesse mesmo algum perigo, se se obstinassem a viver nas sombras de um mistério impenetrável. Certo, é já dificílimo inferir do Ser supremo a noção científica que aqui deixamos entrever. Os próprios Espíritos mais ponderados experimentam áridos obstáculos para assim penetrar no desconhecido pelo conhecido, no invisível pelo visível, na lei pensada pela lei mani­festada, na força original pela força sensível. E nós estamos tão intimamente convencidos do tra­balho necessário ao intelecto humano para chegar à noção filosófica do Deus da Natureza, que nos abstivemos de profundar mais a sua concepção, temendo que uma forçada contensão de Espírito pudesse empanar a própria idéia. Concepção só acessível, portanto, às almas que compreendem a importância e o interesse destes problemas, sonhando, nas horas de solitude, com a revolução de Deus pela ciência da Natureza e descendo ou ele­vando-se (em Astronomia é a mesma coisa) através do velário das aparências corpóreas, até à causa virtual que tudo movimenta em plano de ordem e harmonia, tudo dispondo consoante seu peso e medida.

Esta concepção do pensamento eterno poderá parecer racional (assim o esperamos) a quantos estejam habituados ao método das ciências positi­vas e não se tenham transviado nelas, a ponto de obliterar a noção de causa primária.

À progênie dos que mütuamente se incendiaram nos tempos de João Huss e de Miguel Cervet, a nossa concepção há-de parecer herética. Eles nos inquinarão de panteísta, sem querer compreender que não identificamos a personalidade divina com as transformações da matéria. Hão-de declarar que pretendemos que tudo é Deus e que todo o mundo se governa por si mesmo. Outros, terão a fantasia de nos qualificar de ateu e corruptor da moral evan­gélica, incapazes, que são, de compreender a ado­ração a outro Deus que não o seu.

Uma terceira categoria, ainda mais radicalista e exagerada, tratará de malfeitores a quantos se deixarem levar pela idéia acima formulada. Mas, aonde iríamos parar se houvéssemos de revidar a toda essa gente? Na realidade, toda essa atoarda só significa uma coisa: que estamos caminhando para a frente.

Nesta, como nas obras precedentes, os leitores poderão notar a voluntária ausência de nomencla­turas escolásticas. Houve quem nos chamasse dina­mista e quem fôsse além, dizendo-nos duo-dinamista. Reconhecem-nos, uns, tendências para o mais evi­dente animismo, enquanto outros nos rotulam de organicista. Eis, agora, o vitalismo, que nos con­vida a declarar francamente se a ele temos aderido. A maioria acusa-nos de ecletismo. Deixamos de parte os títulos de panteísta e teísta em contradição aos de materialista e ateu, que nos foram irrogados de campos opostos. A posição de um Espírito que busca unicamente a verdade, só pode ser a de um grande isolado. Ele expõe-se a ser tratado como protestante pelos católicos, e como romancista pelos reformados; os cristãos tacham-no de herético e os filósofos averbam-no de cristão. Ao critério de cada qual, ele não pode deixar de pertencer a um sistema, a uma seita, a uma escola.

Ora, francamente declaramos; a ninguém per­tencemos.

Porque nos privarmos de recolher o bom e combater o mau onde quer que os encontremos? Porque nos convidarem a respeitar o erro pela só razão de sua antigüidade? Porque pretender encer­rar-nos num círculo de antemão preconcebido? Que significam barreiras, dogmas, bandeiras que tais? Ilusão e nada mais. Sistemas? — jamais. Apenas, e só apenas, independência absoluta na investiga­ção e culto da verdade.

O que tem prejudicado a um grande número de Espíritos é essa propensão ou essa condenação para encarrilar-se numa senda. Certo, há necessidade de seguir um método pessoal, apoiar-se em verdades tradicionalmente reconhecidas, conhecer o objeto positivo dos nossos estudos e trabalhar sem esmo­recimentos na conquista do saber. Nós, porém, não nos revestimos de ouropéis fictícios, nem ocultamos o nosso céu sob uma bandeira. Estudamos pouco a pouco a Natureza, através de todas as suas for­mas, em todos os seus aspectos, exprimindo com sinceridade o resultado do nosso estudo, sem nos preocuparmos com as palavras em disputa de pon­tos e vírgulas. A andorinha que volta aos penates na estação própria, singra livremente a amplidão do Espaço...

Que sucederia se a obrigássemos a torcer as asas, a baixar os olhos, a levar na pata um galhar­dete e a rebocar consigo uma fileira de balões?

A doutrina aqui professada pode considerar-se um ateísmo ontológico, o esforço do homem para conhecer o Ente absoluto. É uma forma necessária, imposta pelo teísmo racional. O argumento extraí­do da Teologia prova um Deus universal, autor de todas as coisas e o argumento da Ontologia prova a infinidade de Deus. Não podemos admitir um sem outro, quaisquer que sejam as dificuldades para conciliar as respectivas conclusões. Essas dificuldades decorrem da grandeza do assunto, e ainda que não podendo ir além do alcance da nossa vista, não é razão para fechar os olhos ao que se torna evidente. Trocando o vocábulo panteísmo por teísmo, confessamos, com um pastor angli­cano (125), que o “teísmo” é, por toda parte, reco­nhecido como teologia da razão, razão que poderá

(125) Reverendo John Hunt — An Essai on Pantheism, 1866.

ser impotente, mas, em definitiva, é a única que possuímos.

O teísmo é a filosofia da religião, de todas as religiões, é õ alvo da verdade. Preciso se nos faz pensar, ou deixar de pensar e raciocinar acerca de todos os problemas da criação. Podem as criaturas deter-se no símbolo; Igrejas e seitas podem lutar e tolher a meio caminho as consciências, apelando para Escrituras ou tentando fixar limites ao pen­samento religioso, mas, Deus, esse, não os tem fixado.

A razão humana, todavia, incoercível e inevi­tável no seu progredir, como no seu divino amor à liberdade, quebra todas as cadeias e vence todos os entraves.

Se, ao invés de tomar por objeto de estudo Deus, na Natureza, preferíssemos aqui apresentar Deus segundo os homens, competiria discutir, agora, a idéia que os filósofos contemporâneos formula­ram, a respeito do Ente supremo. E seria, na ver­dade, um exame digno do maior interesse. Mas, os limites sempre crescentes desta obra nos forçam a restringir a argumentação ao seu objetivo pre­cípuo. Nosso dever, portanto, é aqui juntar sim­plesmente o esboço das figuras em que se fixaram os nossos pensadores, para representar a personi­ficação divina.

A opinião que proclama a identidade substan­cial de Deus com o mundo e que recentemente tem tido uma revivescência favorável, não passa de panteísmo absoluto, na sua forma simples e íntegra. Quaisquer que sejam as palavras com que o expres­sem, um espírito judicioso jamais se iludiria. Se Deus e o mundo não são mais que um mesmo e único ser, Deus não existe.

Outra concepção baseada na precedente, porém, elevada a um grau de extrema sutileza, é a do Deus-ideal, a afirmar que Deus e o mundo são substancial, mas não logicamente idênticos. Deus seria, assim, a idéia do mundo, para que o mundo fôsse a realidade de Deus. “Esse Deus que um filósofo nos inculca relegado em seu trono, em plenitude de eternidade silenciosa e vazia, não tem outra realidade que não a idéia, nem trono outro além do Espírito.” Deus, aí, separa-se do mundo, mediante uma operação intelectual do homem.

É um ideal criado pela lógica. Pensando em Deus, criámo-lo. Não existisse o homem e Deus tão-pouco existiria.

Assim, com esta hipótese, o Deus real, idêntico aó mundo, não é Deus, e o Deus ideal, distinto do mundo, em realidade não existe.

É já de si, como vemos, uma teoria alambi­cada. A que goza agora de maior conceito, para uma certa categoria de Espíritos convencidos de sua superioridade, é, porém, a que reverencia com a maior polidez o Deus vulgar, pessoal e huma­no, que venera os grandes princípios da Moral, da Filosofia e da Estética, declarando, todavia, que Deus, tal como o Bem, o Belo, a Verdade, ainda não existem, mas “estão à bica”. Kant, na Crítica da Razão Pura, demonstrou que o homem está invencivelmente disposto a supor reais os objetos de sua crença, sendo estes embora puramente subjetivos. Hégel retomou a grande máxima do velho Protá­goras, que diz — ser o homem a medida de todas as coisas, e ensinou que o indivíduo tende a erigir-se em princípio absoluto, reportando tudo a si, mos­trando aos clarividentes Germanos, de olhar pre­venido nesse sentido, a idéia a desenvolver-se no Universo. A escola a que nos referimos, atualmente representada por Vacherot, Renan, Taine, Scherer e talvez Saint-Beuve, ensina o desenvolvimento da idéia na Natureza, o futuro universal. O Universo caminha para a perfeição, à revelia de qualquer direção inteligente. Deus é um filósofo sem sabedoria, inferior mesmo ao herói de Sedan, visto que não se conhece a si mesmo e não tem existência pessoal. É simplesmente Divino; portanto, uma qualidade e não um ser. Nem há uma verdade absoluta, mas nuanças e metamorfoses. O pensador que contempla esse vago progresso é o mais ditoso e o mais santo dos homens. O Sr. Caro definiu bem esta religião, dizendo-a a alucinação do Divino ou o quietismo científico. A Ciência, porém, não admite semelhante quietismo, nem uma tal aluci­nação. É uma hipótese que se desvanece diante da crítica severa. Já evidenciamos: a tendência geral e progressiva do átomo para a mônada ani­mada e desta para o homem, não se pode explicar sem a existência de um pensamento diretor e, em todos os casos, bem mais difícil de aceitar que o do próprio Deus.

Uma quarta escola é a que se intitula positi­vista e que resolveu — fato virgem — pela primeira vez, construir uma religião atéia, engendrando uma nova classificação dos conhecimentos humanos, fun­dada na observação pura e isenta de toda e qualquer investigação causal.

Mau grado ao seu sistema, algo vaidoso, de eliminação e negação, essa escola não prescindiu de cultuar um Deus; — a Humanidade — e cujo profeta é Augusto Comte. É um Deus que tem altares, culto, sacerdotes (tanto é verdade que os extremos se tocam), calendário, festividades. O orçamento é de antemão regulado, cabendo aos vigários seis mil e aos curas doze mil francos. O grão-sacerdote, que é no caso o Sr. Comte, tem sessenta mil francos, etc. Aqui, não há outro Deus senão a Humanidade.

Essas teorias, para os espíritos afeitos a espe­culações metafísicas, ainda guardam um aspecto compreensível. Outros há que, sublimados e quin­tessenciados, resolvem o panteísmo, numa espécie de vapor transparente, elevam a metáfora a um tal ponto que Deus deixa completamente de existir, para que só domine a sua metáfora transcendente.

“No acume das coisas, nos píncaros do éter luminoso e inacessível, pronuncia-se o axioma eter­no e a repercussão prolongada desta fórmula criadora compõe, por suas ondulações inexauríveis, a imensidade do Universo. Todas as séries de coisas provêm dela, religadas pelos divinos anéis de áurea cadeia.” Certo, seria difícil imaginar como este misterioso axioma pode extrair de sua abstração o mundo real e como, ondeando no seu vácuo eterno, cria e aciona as leis gerais do mundo. Ao nosso ver, quando acusamos a teologia católica de haver tirado o mundo do nada, não adianta a troca, substituindo um milagre pelo outro.

A hipótese do axioma eterno é mais que pan­teísta, tem mais jus ao título de atéia, e podemos exorná-la com o qualificativo de ateísmo filosófico. poderíanlos, ainda, ajuntar-lhe aqui duas outras formas, quais as de teísmo cosmolágico e ateísmo fisiológico.

O primeiro, consiste em substituir as palavras do apóstolo pelo seguinte versículo: no princípio era o átomo, e o átomo era de si mesmo, e o áto­mo é o gerador do mundo. O segundo, consiste em substituir a direção de uma causa inteligente por forças naturais inconscientes. Estas duas espécies de ateísmo, temo-las alternativamente evidenciado no curso desta obra, e, com o haver feito justiça às suas pretensões, dispensamo-nos de as reconsiderar.

Por fim, vejamos o ateísmo absoluto, que se afirma quadradamente, sem pestanejar, e vai até à blasfêmia. Eis um exemplo:

“A análise metafísica reduziu a nada o velho dogma. Reduzindo Deus a entidade incondicionada, demonstrou-o impossível; provou que os seus atri­butos são os mesmos do nosso ser... Com que direito me viriam agora dizer — seja santo porque eu o sou? Mentiroso! — dir-lhe-ia eu — Deus im­becil, teu reino findou, procura outras vítimas entre os animais... Se é que Satâ existe, o Satã és tu. Outrora, podias triunfar, mas hoje, eis-te des­tronado. Teu nome que foi, por tanto tempo, a última palavra do sábio, a sanção do juiz, a força do príncipe, a esperança do pobre, o refúgio do pecador repeso; esse nome Intransmissível, inalie­nável, de agora em diante está fadado ao desprezo, ao anátema, ao apupo dos homens.

Porque Deus é asneira e covardia, hipocrisia e mentira, miséria e tirania; é, em suma, o mal. Enquanto a Humanidade se prosternar diante de um altar, a Humanidade será réproba. Retira-te de mim, pois hoje, curado do teu temor e feito sábio, eu juro, de mãos levantadas para o céu, que não passas de carrasco da minha razão, espectro da minha consciência!” (126)

Esta cólera nada tem de científica, salvo, tal­vez, do ponto de vista médico, em relação aos cuidados que reclama a alienação mental. Presu­mimos que os nossos argumentos fizeram justiça a essa negação absoluta de pensamentos, na Na­tureza.

De resto, a que se reduz a negação materia­lista? Buscando o âmago das coisas, percebemos logo que essas negações não podem ser tão abso­lutamente negativas quanto o pretendem, O insen­sato não o será jamais impunemente e não é tão fácil, quanto possa parecer, uma convicção pro­funda no ateísmo. Na maioria dos casos, o que ocorre é o deslocamento da questão e nada mais. Em vez de chamar Deus à direção das forças que regem o mundo, os convencidos de ateísmo deixam de o nomear, e, em vez de atribuir a um ser inte­ligente a inteligência dessas forças, outorgam-na à própria matéria. Removem, assim, mas não re­solvem, o problema, pois os fatos continuam irre­vogáveis. Negam a Deus, mas não podem negar a força. Apenas, em lugar de proclamarem a soberania dessa força, consideram-na escrava da matéria inerte. Nisto reside todo o nó da questão, nó que ainda não foi desatado pelos materialistas nem pelos espiritualistas, visto que a observação

(126) Proudhon — Système des Contradictions Econo­miques, ou Philosophie de la Misère.

direta da retina humana não vai até lá. A dife­rença principal que os divide no discrime, está em que os primeiros não explicam a criação, nem o plano, nem a conservação da Natureza, enquanto que os segundos o fazem plausivelmente. Consi­deradas como duas hipóteses, as duas doutrinas contrárias não se equivalem, e todo o homem sin­cero há-de inclinar-se sempre para a que admite um Criador. Porque esta é, não só mais completa, como mais franca.

Todas as propriedades instintivas ou intelec­tuais que os nossos adversários não podem deixar de atribuir à matéria para explicar a ação desta, sua tendência progressiva, seu método selectivo, desde a formação do vegetal humilde à formação de um cérebro humano, são atributos que eles extraem do Ignoto que nós denominamos Deus, e que eles homenageiam chamando-lhe matéria. Mas, em abstrairem do mundo a idéia de ordem, verda­de, beleza, perfeição, harmonia espiritual e corporal, eles arrebatam ao mundo a sua alma e a sua vida. Nós, porém, não vemos a vantagem de substituir um ser vivo por um cadáver. Seu Universo asse­melha-se aos enforcados, com os quais fizemos experiências elétricas, há algum tempo. Eles como que. ressuscitavam, aparentemente, graças à apli­cação da eletricidade ao sistema nervoso, que lhes movimentava todo o corpo.

Gesticulavam, agitavam braços e pernas, como quem acordasse; abriam os olhos e a boca num perfeito simulacro de vida... Ora, fazendo circular no organismo universal as forças pelas quais substi­tuem a genuína vida, os ateus hodiernos oferecem-nos um simulacro, no qual estão obrigados a simu­lar a vida que abstraem. Sob este aspecto, é uma questão de palavras. Para nós, um cadáver é sem­pre cadáver, mesmo que esteja eletrizado. Em­prestando à matéria atributos só cabíveis à força suprema, eles reduzem o Universo a um estado lastimoso. Se Deus deixasse ele existir um momento, toda a vida universal ficaria suspensa. Seria curioso ver como esses bravos materialistas ressuscitariam e fariam circular uma vida facticia no corpo colos­sal de que somos, eles e nós, ínfimos parasitas.

Depois de haver visualizado a ordem universal, chegamos a confessar, levados por uma evidência irresistível, que, para uma criatura racional, é o cúmulo do contra-senso supor que exista a razão. Parece-nos absurdo integral a crença de que o Espírito pudesse surgir no cérebro humano e ma­nifestar-se nas leis do Universo, se não existisse de toda a eternidade. Nem sempre há que desdenhar os teólogos, e neste lanço o pregador da Notre­-Dame de Paris, parece-nos aplicar o seu talento na defesa da verdade. A força cega, diz o Padre Félix, produzindo a harmonia cósmica e levando-a aos últimos desdobros, até o aparecimento do ser pen­sante... Mas, santo Deus! — que vamos fazer da nossa razão se doravante nos forçam a admi­tir uma tal reviravolta de idéias e perversão de linguagem? Como admitir uma força ininteligente dando o que não tem, nem pode ter, isto é —inteligência? Como poderiam tais forças, ininte­ligentes e cegas, arrastando-se umas por outras, entrosando-se num mecanismo incompreensível, che­gar a produzir, ao termo de elaborações espontâneas, o pensamento, tal como a flor que desabrocha e se balança na ponta do hastil?

Pois quê! Será possível que o vosso critério filosófico possa tomar a sério a hipótese ridicula­mente metafísica da pré-existência de uma ordem universal, sem que houvesse um pensamento para concebê-la, uma inteligência para compreendê-la, um olhar para contemplá-la e uma alma para amá-la? Pois quê! Será essa Natureza, assim cega, inconsciente, escravizada, sem olhos de ver nem coração de amar, que vai, num silêncio eterno, tecendo a malha divina de tudo o que existe? Te­mo-la então, a cega Natureza originando sem o querer, nem saber, uma harmonia, até que finalmente, da base ao cimo do cosmos, como filho da cega fatalidade, surja o homem para ouvir a harmonia que não fêz, e tomar conhecimento dessa ordem que não procede dele, porque lhe precede!

No mínimo, há no Universo a razão espiritual dos que se elevaram à descoberta das leis que o regem e estas, por sua vez, existem, realmente. Se assim não fora, todo o edifício da razão humana ruiria pela base. Os processos de indução, que nos levam da análise à síntese, devem ter, com efeito, objetivos reais de aplicação, sem o que só podemos raciocinar no vácuo. Generalizar uma lei parcialmente observada, acreditar simplesmente que o Sol se levantará amanhã porque se levantou ontem; ou que o trigo semeado neste outono germinará antes do inverno e será colhido no próximo verão; traduzir os fatos naturais em fórmulas matemáti­cas, é supor que a Natureza subordina-se a uma ordem racional, e que o relógio marcará a hora acorde com a construção do relojoeiro.

O próprio processo de indução científica éum silogismo transportado dos domínios humanos aos da Natureza, reduz-se a este tipo fundamental; o mundo é regido por uma ordem racional; ora, a sucessão ou generalização de uns tantos fatos observados torna a entrar na ordem racional e, portanto, essa sucessão ou generalização existe.

Se o homem às vezes se engana nas aplica­ções deste processo, é que ele não se limita às aplicações imediatas, ou não tem uma base sufi­ciente de observações diretas. Todas as ciências e sinteses indutivas do homem repousam na con­vicção de que a Natureza está subordinada a um plano racional

A organização maravilhosa do mundo não vos obriga a confessar a existência do Ser supremo? Por nossa parte, muita vez temos perguntado, como se pode recusar tão obstinadamente essa existência. Quais as vantagens do ateísmo?

Em que pode ele preterir o teísmo? Que pode a Humanidade lucrar com o renegar, doravante, a crença em Deus? Qual é o melhor homem: o que crê, ou o que não crê? Será, então, um ato de fra­queza o sermos lógicos com a nossa consciência?

Falta grave, o senso comum? É possível que esses Espíritos fortes, galgando o céu por uma escada de paradoxos, acreditem estar bem alto... Enganam-se, porém, redondamente, com essa ilusão comparável àquela antiga prova maçônica, que era percorrer o iniciado uma escada de cento e cinquen­ta degraus descendentes, de sorte que, ao fim do percurso, no momento de atirar-se ao vácuo, apenas tocava o solo. Não, senhores, vossa escalada não é mais terrível do que essa e apenas pode acarretar maus resultados para os homens de vistas curtas, incapazes de perceber o vosso erro e até conside­rando-vos as fênix da Ciência. Fôsse agradável a vossa ilusão, consoladoras as vossas doutrinas; capazes, as vossas idéias, de estimular a emulação da Humanidade pensante para elevar-se a um ideal supremo, e talvez se pudesse perdoar-vos a tera­pêutica. Mas, com franqueza: — em que vos parece funesta, à inteligência humana, a crença em Deus? Onde e como verificastes que o conhecimento da verdade pode enfermar o cérebro? Despojando a Humanidade do seu tesouro mais precioso, banindo do Universo a vida, rechaçando da Natureza o Es­pírito, não admitindo mais que a matéria cega e forças zanagas, privais a família humana de ter paternidade e o mundo de ter um princípio e uma finalidade. Gênio e virtude, reflexos de um esplen­dor maior, eclipsam-se convosco, e o mundo moral, tanto quanto o físico, não serão mais que um caos imenso, digno da noite primitiva de Epícuro.

Mas, ainda bem que o ateísmo absoluto só pode ser uma loucura nominal e o Espírito mais negativista não pode, realmente, atribuir à matéria senão o que pertence ao Espírito, criando assim um deus-matéria, à sua imagem e semelhança. Assim, temos visto que, desde o panteísmo místico ao mais rigoroso ateísmo, os erros humanos a respeito da personalidade divina não puderam, senão, velar, ou desnaturar a revelação do Universo, sem aniqui­lá-la. Nosso Deus da Natureza permanece inata­cável, no seio mesmo da Natureza, força intrínseca e universal governando cada átomo, formando organismos e mundos, princípio e fim das criações que passam, luz incriada a brilhar no mundo in­visível e para a qual, oscilantes, se dirigem as almas, como a agulha imantada, que não mais re­pousa enquanto não se encontra identificada com o plano do pólo magnético.

* * *

Acercando-nos do fim deste livro, detenhamo-nos um instante por bem nos compenetrar das verdades adquiridas em nossa argumentação, guar­dando a legítima impressão deste arrozoado cientí­fico. Vigem hoje no mundo dois grandes erros, tão vivazes, e profundos como nos tempos mais obscuros da História, isto é, nas épocas recuadas em que a inteligência humana ainda não podia formular ne­nhuma concepção exata da Natureza.

Esses dois erros, por nós combatidos paralelamente, são: de um lado o ateísmo, que nega a existência do Espírito; e do outro, a superstição religiosa, que concebeu um “Deusinho” semelhante a ela e fêz do Universo uma lanterna mágica, para uso e gozo da Humanidade.

Como esses dois erros igualmente funestos — posto que à primeira vista pareçam inócuos e seja o segundo essencialmente orgulhoso — pro­curam agora apoiar-se em princípios sólidos da Ciência contemporânea, impusemo-nos o dever de mostrar que eles não podem reivindicar tais prin­cípios em seu favor; que jazem fatalmente isolados da ciência positiva e desarticulam-se ao primeiro embate, qual castelo de cartas, enquanto — idéia central — continua em linha reta o espiritualismo científico.

Resumamos nossa argumentação. Constatamos, de começo, locando o problema, que o essencial consiste em distinguir força e matéria, e examinar se é a matéria que rege a força, ou, ao invés, se é esta que governa aquela. As afirmativas mate­rialistas, decalcadas na primeira das premissas, pareceram-nos desde logo puramente arbitrárais, como simples petições de princípios, fáceis de des­mascarar.

Nosso exame do papel da força, na Natureza, começou pela perspectiva das grandezas celestes. Vimos que na imensidade do Espaço os mundos obedecem a uma lei matemática e que é à execução dessa lei que devemos a harmonia dos movimentos celestes, a fecundidade dos astros, a manutenência dos seres em cada mundo, a vida e a beleza do Universo, em suma. A matéria inerte não se nos figurou capaz de compreender e aplicar o cálculo infinitesimal, e então concluímos que a ordem numérica da organização astronômica é devida a um Espírito, indubitavelmente superior ao dos astrô­nomos que descobriram a fórmula dessas leis. As contraditas que nos opõem, refutam-se de si mes­mas, por suas respectivas puerilidades.

O exame das leis que presidem às combinações químicas, do papel da álgebra e da geometria no microcosmo, das forças que regem os fenômenos do mundo inorgânico e ordenam as viagens atômi­cas, das harmonias reveladas nas vibrações lumi­nosas, como nas cônicas, e do primeiro surto da força orgânica no rei vegetal, nos demonstrou que na Terra, como no céu, uma inteligência desco­nhecida tudo ordena e se traduz em beleza e gran­deza máximas.

O estabelecimento da verdadeira teoria das relações entre a força e a matéria tem, por epí­grafe, a velha divisa dos Pitagóricos — Os números regem o mundo.

Penetrando, então, nos domínios da vida, a primeira perspectiva que nos dominou foi a da unidade que abranje todos os seres. Sua substância pareceu-nos, muita vez, não lhes pertencer como propriamente deles e transitar, constante, de uns a outros, sendo o ar o veículo da organização vital do planeta. Os processos de respiração e alimen­tação nos demonstraram a solidariedade existente entre os animais e as plantas. O corpo humano apresenta-se-nos em transformação constante. O grande fenômeno da circulação da matéria estabe­leceu que a existência de uma força central, cons­tituindo a vida em cada ser, faz-se absolutamente necessária para explicar a permanência do organismo, o equilíbrio das funções vitais, a própria existência enfim. Essa força orgânica só é trans­missível pela geração.

O quadro das últimas conquistas da Química orgânica continuou afirmando a Força, qual a esta­belecera a Fisiologia.

Remontando, então, para além da vida atual, para a origem dos seres, a causa espiritualista re­velou num crescendo a sua necessidade e veridici­dade. Comparamos com a nova a velha hipótese materialista, e achamos que não são mais que uma e única hipótese, aliás, insuficientes.

A mesma perquirição nos levou ao problema, não resolvido, das gerações espontâneas. O ponto essencial da questão está no havermos constatado que, mesmo na hipótese da organização autônoma da matéria, a teologia natural não é atingida e a força diretiva continua a impor-se como absoluta­mente necessária. Vimos, ao demais, que não são os mestres que opõem teorias contrárias à admis­são de um Deus, e sim os discípulos inexperientes, de vez que a lei tanto impera na transformação e progressão das espécies, como na sua criação sepa­rada. E quanto ao homem em si mesmo, vemos que o seu posto característico na criação afirma-se, menos pelos índices anatômicos que por seu valor intelectual, tendo-se em vista a sua racionalidade e os progressos que é capaz de realizar.

Esse estudo geral da vida terrestre tem por epígrafe a proposição fundamental da obra de Arístoto: A alma é a causa eficiente e o princípio organizador dos Corpos vivos.

Mas, é sobretudo no próprio homem que temos reconhecido mais evidente e inatacável soberania da força. Nosso exame do cérebro revelou, desde logo, a ilusão dos metafísicos que desdenham o laboratório e a dissecação, pretendendo limitar a Natureza a uma simples definição. Esse exame serviu para estabelecer as relações do cérebro com o pensamento, e mostrou que a sua composição, forma, volume e peso, estão longe de ser estra­nhos à alma. A ação do Espírito sobre o cérebro ressaltou, íntegra, da fisiologia para afirmar-se no seu real valor. As hipóteses que resultaram na conceituação do pensamento como secreção de subs­tância cerebral, ou como dinamismo nervoso, só conseguiram notabilizar-se pela sua inanidade. A presença da alma evidenciou-se até nos fenômenos de loucura. O gênio apareceu-nos como a faculdade máxima de pensar.

Depois, a personalidade humana veio afirmar-se no seu valor. Temos visto que existimos, realmente, que não somos apenas a qualidade variável da substância cerebral.

A alma afirmou sua unidade e personalidade. A contradição entre essa unidade e a multiplici­dade dos movimentos cerebrais, sobretudo entre a identidade permanente da alma e a troca incessante das partes constitutivas do cérebro, reduziu a hipótese materialista a extrema pentiria. Em vão tentaram detê-la. Temos analisado a nulidade de suas explicações, à face dos grandes feitos afir­mativos de uma consciência em nós.

Por fim, para aniquilar até os fundamentos a singular e triste pretensão de ser o homem gover­nado pela matéria, discutimos, socorrendo-nos de fatos e exemplos, se poderia admitir-se não fôssem a vontade e a individualidade mais que ilusão, e que a consciência e o julgamento dependessem da alimentação.

Os exemplos históricos de homens enérgicos, dotados de grande força de vontade, de fortes ex­pressões de caráter, de perseverança e de virtudes, desmentiram essas últimas objeções do materialismo contemporâneo e mostraram que as faculdades in­telectuais e morais nada têm a ver com a Química, e que o Espírito reside num mundo distinto do material, superior às vicissitudes e movimentos transitórios do mundo físico.

Nossa alma não permitiu que a dignidade hu­mana, a liberdade, os sagrados princípios do belo, do bom, do verdadeiro, fôssem envolvidos no caos da hipótese materialista.

Esta declaração dos direitos da alma tem por epígrafe a proposição do doutor angélico: a alma conforma o corpo e nele se contém em ato e em potência.

As três grandes divisões que vimos de resumir, tiveram por complemento natural as nossas consi­derações sobre a destinação dos seres e das coisas. Comentamos o erro e o ridículo dos que tudo ligam ao homem, bem como o seu oposto, que nega a existência de um plano na Natureza. As leis orga­nizadoras da vida, a maravilhosa construção dos órgãos e dos sentidos, nos revelam uma causa inte­ligente na instalação da vida planetária. A hipótese da formação dos seres vivos sob a ação de uma força universal instintiva, e da transformação das espécies, longe de anularem a idéia do Criador, deixaram intactas a sua onipotência e sabedoria.

E assim, o plano da Natureza foi anunciado pela construção dos seres vivos.

Mais eloqüentemente ainda, foi esse plano afir­mado pelas provas do instinto no reino animal. A criação, aí, nos surgiu magnificamente completada por leis assecuratórias da sua duração e grandeza. Mas, ao mesmo tempo que a presença de Deus se manifestava mais imponente aos nossos olhos, o problema geral da finalidade do mundo surgia mais vasto e temeroso. Sentimos, então, a insignificân­cia comparativa, e assim fomos levados, natural­mente, pela diretriz do arrazoado, a retomar a idéia dominante do nosso ponto de partida, isto é, de­monstrar conjuntamente o erro do ateísmo e da Superstição religiosa.

Este exame da causalidade final teve por epí­grafe o título da obra do grande físico e filósofo Ested — O Espírito na Natureza.

A força espiritual que vive na essência das coisas e governa o Universo em suas partículas infinitesimais, revelou-se assim, sucessivamente, nos mundos sideral, inorgânico, vegetal, animal, pen­sante. Esperamos que o observador de boa fé, desprevenido do espírito de sistema, se contentará com esta exposição dos últimos resultados da Ciência contemporânea, confirmativos da soberania da força e da passividade da matéria.

Temos íntima convicção de que a idéia de Deus se apresentou a seus olhos maior e mais pura que toda e qualquer imagem simbólica e dogmática, e que a criação universal, misteriosa filha do mes­mo pensamento, lhe surgiu mais ampla e mais bela.

O Universo desdobra-se na sua realidade, como a manifestação de uma idéia una, de um plano único e de uma só vontade. Possa este quadro da vida eterna da natureza de Deus afastar o leitor dos erros grosseiros que o materialismo espalha por toda parte, robustecendo-lhe o intelécto no culto puro da Verdade. Possam os nossos espíritos se compenetrarem, cada vez mais, do Belo manifestado na Natureza e santificarem-se no Bem, com o apre­ciarem mais completamente a unidade da obra di­vina, fazendo uma idéia mais justa do nosso destino espiritual, e conhecendo a nossa categoria na Terra em relação ao conjunto dos mundos, e sabendo, finalmente, que a nossa grandeza está em nos elevarmos constantemente na posse e pela posse dos bens imperecíveis, que são apanágio da inteligência.

* * *

Uma tarde de verão, deixara eu as flóreas vertentes de Sainte-Adresse, deliciosa vila litoreana recortada em colinas, para galgar as grimpas do cabo Heve, que ao poente lhe demoram. Quando, de sua base contemplamos os cabeços desses pe­nhascos, acreditamos estar vendo colossos de gra­nito avermelhados pelo sol, quais gigantes imóveis que assistissem, petrificados, aos bramidos do ocea­no que vem morrer a seus pés. No seu isolamento, esses macissos enormes e inacessíveis pelo lado do mar, parecem talhados para dominar o soberbo panorama. A seu lado, fronteando o oceano, o homem sente-se tão insignificante que acaba per­dendo de vista a própria existência e confundindo-se com a vida abstrata, que paira acima dos bramidos oceânicos.

Sempre a subir, cheguei ao plano superior, onde ficam os semáforos que avisam, longe, aos navios o movimento horário das vagas costeiras, O onde os faróis se acendem à boca da noite, quais estrelas permanentes na amplidão das trevas. O Sol, glorioso, ainda se pendurava rubro das nuvens ia­cendidas, posto que já oculto para o Havre e para as planuras que bordam o estuário do Sena. Ao alto, o céu azul me coroava com a sua pureza. Em baixo, a mata, fervilhante de insetos, exalava em ondas o seu perfume. Caminhei até à escarpa, ao fundo da qual se mostram os abismos. Do cairel da rocha em vertical, o olhar domina a imensidão dos mares, desdobrados à esquerda, de sueste a nor­deste. Mergulhando-o perpendicularmente, ele se perde na profundeza de massas verdes, rochedos e brenhas escuras — tapete rústico estendido a tre­zentos pés abaixo dos contrafortes dessa muralha. O gemido das vagas mal nos chega nestas alturas, nosso ouvido apenas percebe um rumor uniforme, que o vento gradua de intensidade. É um silêncio que canta, longe do mar.

— A Natureza estava atenta ao derradeiro adeus, que o príncipe da luz enviava ao mundo, antes que descesse do seu trono para sumir-se no horizonte líquido. Calma e concentrada, ela assistia à prece universal dos seres, pois que eles a fazem — a santa prece do reconhecimento — ao recebe­rem os últimos olhares do Sol. E todos, desde a flébil e solitária medusa e a estrela-do-mar poli­croma, até os gafanhotos saltitantes e os alcíones de neve; todos lhe agradecem piedosamente. Era, então, um como incenso a subir das vagas e dos montes, parecendo que os ruídos temperados da plaga, a brisa que soprava do continente, a atmos­fera embalsamada, a luz palescente na serenidade do céu azul, o refrigério crepuscular e tudo o mais vinha, naquele sítio, consciência de vida, comun­gando contrita e amorosamente da adoração uni­versal.

Mentalmente, nesse holocausto da Terra, eu sentia as recíprocas atrações dos mundos; não apenas as que alternativamente afastam e aproxi­mam nosso orbe do foco solar, como as de todos os astros que gravitam na imensidão dos céus. Acima de minha cabeça, desdobravam-se as sublimes har­monias e as gigantescas translações dos corpos celestes! A Terra era qual átomo flutuante no infi­nito! Deste átomo, porém, a todos os sóis do espa­ço, àqueles cuja luz leva milhões de anos para che­gar até nós, aos que jazem desconhecidos para além da nossa visibilidade, eu sentia um laço invisível abrangendo, num só halo vivificante, todos os uni­versos e todas as almas. E a prece celestial, grandiosa, imensurável, tinha a sua repercussão, a sua. estrofe, a sua representação visível naquela vida terrena que palpitava em torno de mim, no rugido do mar, no perfume das selvas, no canto das aves, na melodia confusa dos insetos, no conjunto emo­cionante do cenário e, sobre tudo, na luminosa tonalidade daquele extraordinário crepúsculo!

Fitava-o embevecido, sim... mas, sentia-me tão pequeno no meio de tantas graças e grandezas, que acabei por entristecer-me. Senti como que esvanecer-ae a minha personalidade diante da imen­sidade da Natureza. Não me tardou a impressão de já não poder falar, nem pensar.

— O vasto mar fugia para o infinito. — Eu não mais existia, meus olhos se velavam... E, como as faces se me inundavam de pranto, sem que me pudesse explicar porque chorava, ajoelhei-me e, prosternado ante o céu, confundi minha fronte com as ervas... — o mar fugia sempre e os seres continuavam em prece.

E o Sol, fonte dessa luz e dessa vida, espiou uma última vez lá da faixa marinha do horizonte, como que satisfeito com aquela homenagem que nem um ser ousara recusar-lhe... E assim, con­tente da jornada, mergulhou orgulhoso no hemis­fério de outros povos.

Fêz-se, então, grande silêncio em toda a Natu­reza. Nuvens de ouro e púrpura evolaram-se às paragens reais e ocultaram os últimos timbres avermelhados. A sombra descia do alto. As ondas adormeceram, porque o vento abrandara. Os pe­queninos seres alados adormeceram também, e Vés­per, núncia da noite, começou a luciluzir no éter.

“Ó misterioso Incógnito! — exclamei — gran­de, imenso Ser, que somos nós, pois? Supremo au­tor da harmonia, quem és tu, se tão grandiosa é a tua obra? Pobres mitos humanos os que supõem conhecer-te — ó Deus! Átomos, nada mais que áto­mos, como somos ínfimos! E como tu és grande! Quem, pois, ousou nomear-te pela primeira vez?

Que orgulhoso insensato pretendeu definir-te, ó Deus! — ó meu Deus, todo poder e ternura, imensidade sublime e inconcebível!

E, como qualificar os que vos têm negado, que em vós não crêem, que vivem fora do vosso pensa­mento e jamais sentiram vossa presença — ó Pai da Natureza!

Amo-te! amo-te! Causa suprema e desconhe­cida, Ser que palavra alguma pode traduzir, eu vos amo, divino Princípio! mas... sou tão pequenino, que não sei se me ouvireis, se me entendereis..

Como estes pensamentos se precipitavam fora de mim, para fundirem-se na afirmação grandiosa de toda a Natureza, as nuvens se esgarçaram no poente e a radiação áurea das regiões iluminadas inundou a montanha.

“Sim! tu me ouves, ó Criador! tu que dás a beleza e o perfume à florinha silvestre! A voz do oceano não abafa a minha voz e meu pensamento a ti se eleva, ó Deus! com a prece coletiva.”

Do todo do Cabo, minha vista se estendia ao Sul como ao Ocidente, na planície como sobre o mar. Voltando-me, lobriguei as cidades humanas, meio adormecidas nas plagas. No Havre, as ruas comerciais se iluminavam, e além, na margem opos­ta, Trouville acendia o seu parque de diversões.

E enquanto a Natureza se mostrava reconhe­cida ao seu Autor com o saudar a missão de um dos seus astros fiéis; enquanto todos os seres lhe enviavam suas preces e o rugido dos mares mistu­rava-se ao vento, em ação de graças ao termo de um belo dia; enquanto a obra criada, unânime e recolhida, se oferecera ao Criador, a criatura imor­tal e responsável — ser privilegiado da Criação, expoente do pensamento — o Homem, vivia à mar­gem, indiferente a tantos esplendores, sem olhos de ver nem ouvidos de ouvir, parecendo ignorar essa harmonia universal, em cujo seio deveria en­contrar a sua felicidade e a sua glória.

Fim.