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quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

50 anos depois–Parte 2- Francisco Cândido Xavier

para todos os efeitos, que a esposa lhe foi infiel, apresentando-lhe o fruto de

um crime... A escolha da criança ficará ao teu critério... Poderei contar

absolutamente contigo ?

- Pela fé no poder de Júpiter, podeis confiar em mim, senhora.

Irei à coluna lactária, depois da meia-noite, e levarei comigo a criança. Os

recém-nascidos são ali abandonados diariamente, às dezenas...

Assentada a combinação sinistra, a noite já havia desdobrado

sobre Roma o seu manto de sombras espessas.

Todavia, enquanto Hatéria retornava à casa dos amos, Cláudia

Sabina privava-se das festas noturnas do Imperador, encaminhando-se à

Porta de Óstia apressadamente..

Encontrando-se lá com o filho de Cneio Lucius, solicitou-lhe o

favor de uma palavra em particular, no que foi imediatamente atendida.

- Helvídio - falou a perversa criatura com a sua facilidade de

dissimulação -, aqui estou para prevenir-te, reservadamente, de graves

acontecimentos, aliás, já por mim previstos, quando na Grécia.

- Mas, que acontecimentos? - interrogou o patrício com ansiedade.

- Deves estar preparado para ouvir-me, pois acredito que o prefeito

dos pretorianos, com a bruteza dos seus sentimentos, chegou a macular a

honra da tua casa.

- Impossível ! - exclamou o tribuno com veemência.

- Entretanto, deves ouvir Alba Lucínia imediatamente, verificando

até que ponto conseguiu Lólio Úrbico introduzir-se no teu lar.

- Eu não posso duvidar de minha mulher sequer um minuto -

revidou com sinceridade.

- Queres ou não ouvir-me até o fim, para conheceres os

pormenores do fato? - perguntou Sabina encolerizada.

- Ouvi-la-ei com prazer, desde que o assunto não se refira à minha

família e à honra da minha casa.

- É possível que tua opinião amanhã se modifique.

E, despedindo-se bruscamente do homem de suas paixões, que

sabia defender as tradições do lar e da família, a antiga plebéia regressava

ao Capitólio, mais que nunca interessada no desdobramento dos seus

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

sinistros desígnios. O gênio do mal, que lhe falava no coração, preparava

para aquela noite os acontecimentos mais terríveis.

Enquanto a vemos, pela madrugada, a examinar documentos e

pergaminhos no gabinete de Lólio Úrbico, acompanhemos Hatéria até o

mercado de legumes.

A sociedade romana já se havia habituado a ver junto da coluna

lactária os míseros enjeitadinhos. Esse local de triste memória, onde

muitas mães abnegadas acolhiam pobres crianças abandonadas, constituía

como que os primórdios das famosas "rodas-de-expostos", nos

estabelecimentos de caridade cristã, que floresceriam mais tarde para o

mundo.

A claridade mortiça da Lua, antes do amanhecer, a velha serva

verificou a presença de três míseros pequeninos. Um deles, porém,

chamou-lhe a atenção pelos seus suaves vagidos de recém-nato. Era uma

criancinha de traços delicados e nobres, que a cúmplice de Cláudia pode

examinar, minuciosamente, à luz de uma tocha. O enjeitadinho, com

roupas muito pobres, parecia nascido de poucas horas. Hatéria tomou-o nos

braços, quase com enlevo, considerando intimamente: esta criança deve ser

um digno rebento de patrícios romanos!.. Que penoso romance não se

ocultará no seu vestidinho roto e ordinário...

Levou-o consigo, penetrando na casa dos amos com todo o

cuidado.

Amanhecia...

À noite, a criminosa adicionara o narcótico aos remédios de sua

senhora.

Entrou no quarto onde a esposa de Helvídio repousava,

tranqüilamente, depôs a criança ao seu lado, envolvendo-a no ambiente

tépido das coberturas. Em seguida, preparou ali toda a encenação

necessária, sem que a pobre vítima do filtro que a mergulhara em longo e

pesado sono pudesse perceber o que se passava.

Todavia, o pequenino começou a chorar fracamente, embora a

serva criminosa fizesse o possível por acalmá-lo.

No quarto contíguo ao de sua mãe, dado o ruído insólito, Célia

despertava.

Acordou aturdida e sensibilizada. Acabava de sonhar que se

encontrava, novamente, no cemitério triste da Porta Nomentana, como na

memorável noite em que pudera rever o bem-amado de sua alma.

Figurou-se-lhe contemplar Ciro a seu lado, enquanto Nestório mantinha a

mesma atitude das suas antigas prédicas, perguntando : - quem é minha

mãe e quem são os meus irmãos? Tinha o cérebro ainda preso de

emoções carinhosas, e as mais ternas lembranças no coração de

menina e moça...

Nesse instante, o ruído insólito chegava-lhe aos ouvidos.

Vagidos de criança? Que significaria aquilo ?

Levantou-se, apressada, com o pensamento ansioso, mergulhado

em dolorosas perspectivas.

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

Notando o movimento de alguém que se aproximava, Hatéria fez

menção de retirar-se à pressa, mas a jovem já havia transposto a porta,

verificando-lhe a presença.

Contemplando a criança ao lado de sua mãe adormecida e os

sinais evidentes de quanto caracteriza o lugar de um parto, presumiu

adivinhar o drama com as amargas suspeitas do seu coração filial.

Um turbilhão de pensamentos penosos surpreendeu-lhe o cérebro

enfraquecido. Sim, aquela criancinha deveria ter nascido ali, como

conseqüência fatal de uma tragédia inesquecível.

- Hatéria - exclamou num gemido -, que significa tudo isso?

- Vossa mãe, esta noite, minha boa menina - respondeu a serva

criminosa, sem se perturbar -, deu à luz um pequenino...

- É incrível ! - soluçou a filha de Helvídio com a voz estrangulada.

- Entretanto é a verdade - revidou Hatéria em voz muito baixa -;

não dormi, auxiliando a senhora em seus sofrimentos !

E, apontando para a infortunada consorte do tribuno, exclamava

quase tranqüila :

- Agora ela dorme... e precisa repousar.

Célia não podia definir a intensidade dolorosa dos pensamentos

que a empolgavam. Nunca acreditara que sua mãe pudesse prevaricar na

ausência paterna. Seu coração carinhoso sempre fora, ao seu ver, um

modelo de virtudes, um símbolo de honestidade. Certamente Lólio Úrbico

levara a infâmia aos mais pavorosos extremos. Ela bem que lhe ouvira

as palavras de conquistador desalmado e cruel ! Além de tudo, sua mãe

há muito que andava doente. Com certeza, seu coração bondoso e honesto

estava cheio de tormentos da compunção e do arrependimento. Sentia pela

mãe um enternecimento infinito. Seu pai regressara na véspera, cheio de

novas esperanças. Ela surpreendera lágrimas nos olhos maternos, pranto

esse que deveria ser de júbilo intenso e de comovedora alegria. Quanto

não haveria sofrido o coração materno naqueles longos meses de

expectativas angustiosas ! Alba Lucínia, porém, sua mãe e melhor

amiga, tinha agora um filhinho que não era uma flor do tálamo conjugal.

Helvídio Lucius não lhe perdoaria nunca. Célia conhecia a enfibratura do

pai, assaz generoso, mas demasiadamente impulsivo. Além de tudo, a

sociedade romana não admitia transigências em se tratando de tragédia

como aquela, no seio do patriciado. Com as lágrimas a borbulharem-lhe

dos olhos, naquelas ríspidas e singulares meditações, a jovem cristã

lembrou-se do sonho daquela noite, e pareceu-lhe ainda ouvir Nestório a

repetir as palavras do Evangelho - "Quem é minha mãe e quem são meus

irmãos?" – Levando as suas lembranças ainda mais longe, recordou a

exortação nas vésperas do sacrifício, quando afirmara que a melhor

renúncia por Jesus não era propriamente a da morte, mas a do

testemunho que o crente fornece com os exemplos da sua vida. Depois, a

figura do avô surgiu, espontânea, em sua mente. Parecia-lhe que Cneio

voltava do túmulo para recomendar-lhe, mais uma vez, a tranqüilidade

do pai e a ventura da mãe, nas provas aspérrimas...

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

De olhos molhados, aproximou-se do pequenino, que abrira os

olhos pela primeira vez, às primeiras claridades do dia... O enjeitadinho fez

um movimento com os braços minúsculos, como se os levantasse para

ela, suplicando-lhe conforto e afeto. Célia sentiu que as suas lágrimas

caíam-lhe no rosto alvo e minúsculo, experimentando no coração uma

ternura infinita. Retirou-o com cuidado como se o fizesse a um irmãozinho...

Sentiu que o coraçãozinho batia-lhe de encontro ao seu, como o de uma ave

assustada, sem direção e sem ninho... Seu espírito, como que tocado de

sentimentos misteriosos e inexplicáveis, estava também povoado das mais

profundas emoções maternas...

Depois de alguns minutos, em que Hatéria a contemplava

surpreendida, Célia ajoelhou-se aos pés da serva, exclamando

comovedoramente no seu sublime espírito de sacrifício :

- Hatéria, minha mãe é honesta e pura! Esta criança que vês nos

meus braços é meu filho ! Sê-lo-á, meu filhinho, agora e sempre,

compreendes?

- Jamais o direi - respondeu a cúmplice de Cláudia, aterrada.

- Mas, ouve! Tu que foste a confidente de minha mãe ajuda-me a

salvá-la !.. Pelo amor de tuas crenças, confirma os meus propósitos !...

Minha mãe precisa cuidar de meu pai no curso da vida e meu pai a adora! Se

ela errou, porque não auxiliarmos a sua felicidade, devolvendo à sua alma a

ventura merecida? Minha mãe nunca erraria de moto próprio !.. Foi sempre

boa, carinhosa e fiel... Só um homem muito perverso poderia induzi-la a

uma falta dessa natureza, pelos caminhos do crime !..

Lacrimejante, enquanto a criada a escutava estarrecida,

continuava:

- Cede aos meus desejos! Esquece o que viste esta noite,

considerando que os tiranos dos nossos tempos costumam raptar nobres

damas, aplicando-lhes filtros de esquecimento ! Minha pobre mãe deve

ter sido vítima desses processos miseráveis!.. Quero salvá-la e conto

contigo!... Dar-te-ei todas as minhas jóias mais preciosas. Meu pai não

costuma dar-me dinheiro em espécie, mas tenho dele e de meu avô as

lembranças mais ricas... Ficarão contigo! Vendê-las-ás, onde quiseres...

Arranjarás uma pequena fortuna...

- Mas, e a menina ? - murmurou Hatéria espantada com o

imprevisto dos acontecimentos - já pensou que essa idéia do sacrifício é

impossível? Com quem ficaríeis no mundo? Vosso pai, porventura,

suportaria ver-vos assim, como mãe de uma criança infeliz?

- Eu.. - exclamou a jovem com atitudes reticenciosas, como se

desejasse lembrar alguém que a pudesse valer em tão dolorosas

circunstâncias - eu... ficarei com Jesus!...

Em seguida, ante o silêncio de Hatéria, que lhe obedecia

maquinalmente, todo o cenário foi transportado ao seu quarto, enquanto

Célia conchegava o pequenino ao coração, entregando à serva ambiciosa

todas as jóias mais preciosas e guardando, apenas a pérola que Helvídio

lhe dera na véspera.

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

Alba Lucínia, contudo, saíra do seu torpor, repentinamente.

Aturdida com os efeitos do narcótico, estava surpresa, ouvindo no quarto da

filha os vagidos da criança.

Divisando o vulto de Hatéria através de uma cortina, chamou-a em

voz alta para certificar-se do que ocorria.

A criada criminosa, porém, apareceu-lhe de frente, lívida e

aterrada...

Levando as mãos à cabeça num gesto de fingido desespero,

exclamava com esgares estranhos :

- Senhora!... Senhora! que grande desgraça!...

A esposa do tribuno, com o coração a lhe saltar do peito, pálida

e aturdida, ia interrogar a serva, quando alguém transpôs a porta e

penetrou no aposento.

Era Helvídio. O genro de Fábio não conseguira conciliar o sono.

Depois das insinuações pérfidas de Sabina, parecia que veneno atroz lhe

destruía todas as forças do coração. Trabalhou intensamente para que as

horas da noite lhe fossem menos amargurosas e, todavia, ao dealbar da

aurora, montara um cavalo veloz que o transportou, célere, a casa, para

consolidar a sua tranqüilidade espiritual, junto da mulher e da filhinha.

Lá chegando, ainda ouviu a velha serva exclamar desesperada:

- Uma desgraça!.. uma grande desgraça...

Enquanto Lucínia o contemplava aflita e amargurada, Helvídio

Lucius caminhava para ela e para a criada, com o semblante carregado e

triste...

- Explica-te, Hatéria!.. - teve forças para murmurar a pobre senhora,

aflitamente.

Nesse instante, porém, depois de longa prece, a jovem cristã

surgiu, quase cambaleante, à porta da alcova materna.

Tinha os olhos vermelhos e tristes, a roupa mal posta, os cabelos

em desalinho. Acalentado em seus braços afetuosos, o pequerrucho se

acalmara, qual pássaro que houvesse reencontrado o ninho tépido.

Helvídio e sua mulher contemplaram a filha, surpresos e aterrados.

- Mas, que significa tudo isso ? – explodiu o tribuno dirigindo-se à

serva.

Célia quis explicar-se, mas a voz estrangulara-se-lhe na garganta,

enquanto Hatéria esclarecia:

- Meu senhor, a menina, esta noite...

Contudo, ante o olhar duro do patrício, a sua voz se perdia nas

reticências dos remorsos e das dúvidas, quanto às terríveis conseqüências

da sua infâmia.

Célia, porém, cheia de fé na Providência Divina e sinceramente

desejosa de sacrificar-se por sua mãe, ajoelhara-se, humilde, exclamando

com voz quase firme :

- Sim, meu pai... minha mãe... pesa-me a confissão da minha falta,

mas esta criança é meu filho !...

O tribuno sentiu que uma comoção desconhecida invadiu-lhe todo

o ser. A cabeça andava-lhe à roda, ao mesmo tempo que lividez de mármore

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

cobria-lhe as feições, vincadas de cólera e angústia. Os mesmos fenômenos

fisiológicos passavam-se com sua mulher, cujos olhos aterrados não

encontravam lágrimas para chorar. Alba Lucínia, contudo, ainda teve

energia para murmurar, olhando o Alto :

- Deus do céu !..

Célia, porém, genuflexa, enquanto Hatéria erguia a cabeça, fria e

impassível, exclamava com o pranto da sua humildade :

- Se puderdes, perdoai à filha que não conseguiu ser feliz ! Sei o

crime cometido e aceito de boa vontade as conseqüências da minha falta!

De olhos baixos, com as lágrimas a aljofrarem a face do

inocentinho, a jovem continuava dirigindo-se ao pai, que a ouvia

estarrecido, como se o pavor daquela hora o houvesse petrificado:

- Na vossa ausência, andou nesta casa o espírito de um tirano!..

Recebido como amigo, assediou minha mãe com todos os seus processos

de infâmia... Ela, porém, como sabeis, foi sempre fiel e pura!..

Reconhecendo-lhe a virtude incorruptível, o prefeito dos pretorianos abusou

da minha inocência, levando-me ao que vedes !... Nunca confessei a mamãe

as faltas de minha alma, mas, esta noite senti a realidade da minha

desventura! No auge dos sofrimentos, busquei o auxílio de Hatéria, para

salvar a vida deste inocentinho!.

E erguendo os olhos súplices para a criada impassível, a jovem

acrescentava:

- Não é verdade, Hatéria?

Lucínia e o esposo não queriam acreditar no que viam, mas a serva

criminosa confirmava com fingida amargura:

- É verdade...

- Sei que as nossas tradições não me perdoam a falta - continuava

Célia, tristemente -, mas toda a minha mágoa vem do fato de haver

maculado o lar paterno, aceitando uma afronta e dando margem à desonra!..

Não posso ser perdoada, mas vede o meu arrependimento e tende

compaixão do meu espírito abatido! Expiarei o crime como as

circunstâncias exigirem, e, se for indispensável a morte para lavar a mácula,

saberei morrer com humildade !..

As lágrimas embargavam-lhe a voz, não obstante sentir-se

amparada por braços intangíveis do plano espiritual, no instante penoso do

sacrifício.

Helvídio Lucius, saindo do seu pasmo, deu alguns passos em

direção à esposa trêmula, perguntando com voz estranha e quase sinistra:

- Lólio Úrbico é, de fato, esse infame?

Alba Lucínia, experimentando a queda de todas as suas energias,

recordava o seu calvário doméstico, em face das investidas do

conquistador, cuja perseguição à filha o seu espírito adivinhara. Longe de

sentir toda a realidade tenebrosa daquelas cenas que o gênio criminoso de

Cláudia Sabina havia idealizado, murmurou fracamente :

- Sim, Helvídio, o prefeito tem sido o verdugo impiedoso da

nossa casa!

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

- Mas, meu coração não quer acreditar no que os meus olhos

vêem - murmurou o tribuno surdamente.

Célia continuava genuflexa, olhos nevoados de lágrimas,

amparando o pequenino que chorava.

Alba Lucínia contemplava a filha, tomada de amargura e de

assombro. Agora, presumia compreender as esquivanças da filhinha a

todos os passeios, nos derradeiros tempos, para só confugir-se ao

insulamento do seu quarto, engolfada em preces e meditações. Atribuía o

retraimento de Célia à morte do avô, que lhes deixara a ambas as mais

penosas saudades. Entretanto, sua desconfiança de mãe entendia, agora,

que o conquistador covarde havia abusado da inexperiência de sua filha.

Muitas vezes, receara sair deixando-a só, no lar, porquanto a intuição

materna há muito lhe advertia que Lólio Úrbico buscaria vingar-se

executando as suas terríveis ameaças. Agora, a realidade amarga torturavalhe

o espírito.

- Lucínia - continuou Helvídio sombriamente -, explica-te !.. Não

terias exercido nesta casa a preciosa vigilância materna? É verdade que o

prefeito dos pretorianos insultou a tua dignidade?...

- Helvídio - soluçou com voz tremente -, tudo que ocorre é

absolutamente estranho e incrível, mas o fato aí está patente,

atestando a realidade mais amarga ! Desconfiava que a nossa pobre filha

fosse também vítima do perverso amigo de meu pai, porquanto, de minha

parte, venho sofrendo, desde que partiste, as mais atrozes perseguições,

traduzidas em contínuas ameaças, dada a minha resistência aos seus

inconfessáveis desejos...

Ante o esboroar de suas últimas esperanças, com a palavra sincera

da esposa que se mostrava amargurada e surpreendida, o orgulhoso

patrício deixou-se dominar completamente pelas realidades aparentes

daquela hora trágica.

De punhos cerrados, olhos duros e sombrios a revelarem

disposições inflexíveis de vingança, Helvídio Lucius exclamou com voz

terrível, dominadas todas as suas expressões fisionômicas por um ricto de

angústia:

- Vingar-me-ei do infame, sem piedade !...

E contemplando a filha que permanecia de joelhos e de olhos

baixos, como se evitasse o olhar paterno, acentuou terrivelmente:

- Quanto a ti, deverás morrer para resgatar o crime hediondo !..

Iniciando os meus desgostos, com o preferir aos escravos, acabaste

arruinando o meu nome, levando esta casa a uma situação execrável !

Mas, saberei lavar a mancha criminosa com as minhas decisões implacáveis

!..

Dito isso, o orgulhoso tribuno arrancou acerado punhal, que

reluziu à luminosidade do Sol matinal, mas Alba Lucínia, de um salto,

prevendo-lhe a resolução inflexível, susteve-lhe o braço, exclamando

angustiada:

- Helvídio, pelos deuses e por quem és... Não basta a dor

imensa da nossa vergonha e da nossa desventura?!... Queres agravar

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

nossos padecimentos com a morte e com o crime? Não! Isso não!.. Acima

de tudo, Célia é nossa filha!

Nesse instante, o tribuno lembrou-se repentinamente das rogativas

amoráveis do genitor, na mais profunda recordação, como a pedir-lhe calma,

resignação e clemência. Pareceu-lhe que Cneio Lucius regressava das

sombras do sepulcro para lhe suplicar pela neta idolatrada, cooperando nas

exortações da esposa.

Então, sentindo o coração saturado de um sofrimento moral

indefinível, acentuou com voz cavernosa:

- Os deuses não permitirão seja eu um miserável filicida... Mas,

esmagarei o traidor como se esmaga uma víbora!

E, voltando-se de repente para a filha humilhada, sentenciou com

energia:

- Poupo-te a vida, mas, doravante estás definitivamente morta

para a nossa desdita imensurável, porque tua indignidade não te permite

viver mais um minuto sob o teto paterno !. És maldita para sempre!..

Foge para qualquer parte, sem te lembrares de teus pais ou do teu

nascimento, porque Roma assistirá ao teu funeral em breves dias ! Serás

estranha ao nosso afeto !.. Não nos recordes, nunca, nem busques o

passado, pois eu poderia exterminar-te nos meus impulsos!..

Célia continuava na sua atitude humilde, de joelhos, mas aos

seus ouvidos ressoavam as palavras decisivas do pai orgulhoso e ofendido

no seu amor-próprio.

- Vai-te, foge, maldita !..

Ergueu-se ela, então, cambaleante, endereçando à mãe um

derradeiro olhar, no qual parecia concentrar toda a sua crença e toda a

sua esperança... Alba Lucínia retribuiu-lhe o gesto afetuoso, fixando-a com

a sua ternura dolorosa. Pareceu-lhe descobrir na limpidez daquele olhar

toda a inocência da alma piedosa e cristã da desventurada filha; todavia, o

seu coração maternal agradecia intimamente aos deuses o lhe haverem

poupado a vida...

Compreendendo a inflexibilidade da ordem paterna, Célia deu

alguns passos vacilantes e, saindo por uma porta lateral encontrou-se em

plena rua, sem direção nem destino, enquanto atrás dela se fechavam as

portas do lar paterno, para sempre.

Depois de exprobrar a conduta da esposa, culpando-a pela

indiferença e falta de vigilância, e após prometer recompensar o silêncio

de Hatéria, ameaçando-a também com o cárcere, caso viesse a verificarse

o contrário, mandou um servo dos mais prestimosos à residência dos

sogros, chamando-os a sua casa com a maior urgência.

Dentro de uma hora, Fábio Cornélio e sua mulher encontravam-se

junto do casal, inteirando-se de todo o acontecido.

Enquanto o coração de Júlia Spinter se sentia tocado das mais

dolorosas emoções, o velho e orgulhoso censor exclamava convictamente :

- Sim, Helvídio, vamos procurar o traidor quanto antes, a fim de

o exterminar, sejam quais forem as conseqüências; mas, devias ter

aniquilado a filha, pois o sangue deve compensar os prejuízos da vergonha,

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

segundo os nossos códigos de honra !.. Mas, enfim, ela estará moralmente

morta para sempre. Depois de eliminarmos Lólio Úrbico, faremos que as

cinzas de Célia venham de Cápua para serem recolhidas em Roma, ao jazigo

da família. Ao passo que as duas senhoras, mãe e filha, ficavam no aposento,

sucumbidas, consolando-se reciprocamente e rogando a proteção dos

deuses para a tragédia inesperada e dolorosa, Fábio e Helvídio dirigiram-se

apressadamente para o Capitólio, a fim de exterminarem o inimigo, como se

o fizessem a uma serpente imunda e venenosa.

Todavia, uma surpresa, tão grande quanto a primeira, os esperava.

No palácio do prefeito dos pretorianos o movimento era desusado

e estranho.

Antes de atingirem o átrio, os dois patrícios foram informados de

que Lólio Úrbico havia falecido minutos antes, acreditando-se que se tratava

de um suicídio.

A morte do marido constava do programa sinistro de Cláudia,

agora dona de opulento patrimônio financeiro, porquanto, desse modo, não

ficaria voz alguma que pudesse elucidar Helvídio Lucius, quanto à infâmia

que a antiga plebéia acreditava haver atirado ao nome de sua esposa. Além

disso, alta madrugada, Sabina tomara de um dos pergaminhos em branco,

assinados pelo prefeito, e escreveu, com perfeita imitação caligráfica, um

bilhete lacônico, no qual se confessava enfarado da vida, e rogava a Flávio

Cornélio, amigo de todos os tempos, perdoasse o dano moral que lhe

causara.

Penetrando, aturdidos, na casa do inimigo morto, Fábio e Helvídio

foram abordados por Cláudia Sabina, que lhes apareceu lacrimosa, naquela

manhã trágica.

Depois de se lastimar, comentando a tétrica resolução do esposo

em desertar da vida, Sabina entregava ao censor o último bilhete de Úrbico,

que dizia grafado pelo marido à última hora, deixando transparecer

curiosidade a respeito daquele pedido de perdão, injustificável e estranho.

Desejava, assim, conhecer os primeiros resultados do trabalho tenebroso de

Hatéria, esperando ansiosamente, dos lábios de Helvídio ou de alguma

alusão de Fábio as informações indiretas que o seu espírito vingativo

ansiosamente aguardava.

O censor e o genro, entretanto, receberam o suposto bilhete de

Úrbico com secura e indiferença. E como era preciso dizer alguma coisa em

face daquele imprevisto, Fábio Cornélio acrescentou :

- Guardarei este bilhete como prova do seu desequilíbrio mental

nos últimos momentos, pois só assim se justifica este pedido. E agora,

minha senhora - acentuou enigmaticamente para Cláudia, que o ouvia com

atenção -, há-de perdoar a nossa ausência, porquanto cada qual tem os

seus infortúnios...

O velho patrício estendia-lhe as mãos em despedida mas, sentindo

a sua curiosidade fundamente aguçada por aquelas expressões, a antiga

plebéia interrogou com interesse, como a provocar algum esclarecimento de

Helvídio Lucius, que se fechara em mutismo enigmático.

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

- Infortúnios? mas que desejais dizer com isso ? Pretendeis

abandonar-me nesta situação ? Qual a razão de sairdes assim, desta casa,

quando o cadáver de um amigo e chefe exige testemunhos de veneração e

amizade? Porventura aconteceu algo de grave a Alba Lucínia?..

Notava-se que a última pergunta transpirava um sentido misterioso.

Ela esperava que Helvídio lhe falasse da sua tragédia doméstica, dos seus

profundos desgostos conjugais, da infidelidade da esposa, conforme previa

e decorria dos seus planos. Seu coração bastardo aguardava que o homem

amado, naquele instante, iria dispensar-lhe as atenções amorosas tão

ardentemente aneladas naqueles últimos meses, em que os seus

sentimentos mesquinhos haviam acariciado tão grandes esperanças. O

tribuno, porém, mantinha-se impassível, como se tivesse os lábios

petrificados.

Fábio Cornélio, todavia, sem trair a fibra orgulhosa, esclarecia

Sabina nestes termos:

- Minha filha vai bem, graças aos deuses, mas também nós

acabamos de ser feridos no mais íntimo do coração! Um emissário da

Campânia nos trouxe, esta manhã, a dolorosa notícia da morte repentina

de minha neta solteira, que se encontrava junto da irmã, numa estação de

repouso. Esta a razão que nos impede prestar ao prefeito as derradeiras

homenagens, porquanto vínhamos justamente comunicar-lhe a imediata

partida para Cápua, a fim de promover o transporte das cinzas!...

Dito isso, os dois homens despediram-se secamente, saindo a

passo firme, no burburinho dos amigos e dos servos apressados, que

emulavam no patentear a Lólio Úrbico a bajulação derradeira.

Ante a cena enigmática, Sabina deixava vagar o pensamento em

conjeturas. Hatéria ter-se-ia esquecido de cumprir cegamente as suas

ordens? Que ocorrera com a rival, cujas notícias a deixavam perplexa,

quando tudo premeditara com tanta segurança? Os preconceitos sociais,

contudo, as obrigações daquela hora extrema, que a sua própria

maldade havia provocado, não lhe permitiam correr como louca no encalço

da cúmplice, fosse onde fosse, para matar a curiosidade.

Enquanto o seu espírito se perdia em divagações ansiosas, Fábio

Cornélio e o genro dirigiam-se ao Imperador, obtendo a necessária licença

para a precisa viagem a Campânia, cedendo-se-lhes, incontinenti, uma

galera confortável que os receberia em Óstia, de modo a abreviar a viagem o

mais possível.

Naquela mesma tarde, a embarcação saía do porto mencionado,

conduzindo a família ao seu destino, salientando-se que Helvídio Lucius não

se esquecera de levar Hatéria com os outros serviçais de sua confiança.

Enquanto o patriciado romano rende homenagens ao prefeito dos

pretorianos e a galera de Helvídio se afasta conduzindo em seu bojo

quatro corações angustiados, sigamos a jovem cristã nas suas primeiras

horas de amargura e sacrifício.

Saindo da casa paterna, Célia atravessou ruas e praças, receosa de

encontrar alguém que a reconhecesse no seu doloroso caminho...

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

Conchegava o pequenino de encontro ao coração, como se ele fôra

seu próprio filho, tal o enternecimento que a sua figurinha lhe inspirava.

Depois de errar longamente, presa de acerbas meditações, sentiu

que o Sol ia muito alto e precisava cuidar da nutrição do inocentinho.

Atravessara os bairros aristocráticos, encontrava-se agora junto à ponte

Fabrícius (1) , cheia de cansaço, extenuada. Além do Tibre, surgiam as

modestas edificações dos judeus e dos libertos pobres; ali estava a famosa

Ilha do Tibre, onde outrora se erguiam os templos de Júpiter Licaônio e o de

Esculápio... A seu lado passavam os filhos da plebe, inquietos e apressados.

De vez em quando, surgiam soldados da marinha, da frota de Ravena,

aquartelados no Trastevere e que lhe deitavam olhares libidinosos.

Cansada, dirigiu-se a uma casa de judeus, onde uma mulher do povo lhe

deu de comer, provendo-a de tudo quanto necessitava o pequenino. Mais

confortada, levando uma pequena provisão de leite de jumenta, a filha de

Helvídio continuou a dolorosa peregrinação pelas vias públicas, como se

aguardasse uma inspiração feliz para o seu penoso destino.

(1) A Ponte Fabrícius foi depois denominada Ponto di Quatri Capi, em vista de uma

estátua de Janus Quadrifons, posta à entrada da praça. Foi construída de pedra,

depois da conjuração de Catilina. - Nota de Emmanuel.

A tarde, porém, voltou ao mesmo ponto, nas proximidades do qual

fôra socorrida pelos mais humildes.

Triste e só, descansou num dos ângulos da ponte Fabrícius, ora

contemplando os transeuntes mal vestidos, ora fixando as águas do Tibre,

com o coração envolto em dolorosas cismas.

Aos poucos, o Sol se escondia lentamente, dourando ao longe as

derradeiras nuvens do horizonte.

Um vento frio, cortante, começava a soprar em todas as direções.

Contemplando os operários pobres que se recolhiam aos lares, a jovem

cristã aconchegou mais fortemente ao peito a mísera criancinha. Sentindose

desalentada, começou a orar e lembrou-se de que Jesus também andara

no mundo, ao desamparo, experimentando um suave consolo nessa

reminiscência evangélica. Contudo, pungente saudade do lar feria-lhe o

coração sensível e carinhoso. Mulheres do povo, depois das fainas penosas

do dia, regressavam a casa com uma auréola de júbilo tranqüilo a lhes

transparecer no rosto, enquanto que ela, filha de patrícios, se sentia

acabrunhada ante as incertezas da sorte e exposta ao frio cortante do

crepúsculo...

Estreitando sempre o pequenino, como se quisesse furtá-lo ao ar

glacial da tarde, mau grado à sua fé e resignação, não pôde conter o pranto,

refletindo amargamente no seu penoso destino!..

As grandes nuvens, batidas de sol, esmaeciam-se pouco a pouco,

dando lugar às primeiras estrelas.

III - ESTRADA DE AMARGURA

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

Desembarcando num porto da Campânia, nas proximidades de

Cápua, Helvídio Lucius adiantou-se a todos os familiares, a fim de preparar

os filhos para a consecução dos seus desejos.

Caio Fabrícius e sua mulher sofreram rude golpe com as

revelações inesperadas a respeito da irmã, e, obedecendo às determinações

do tribuno, criaram o ambiente necessário para que os círculos

aristocráticos da cidade recebessem a notícia da casa, enquanto os

sacerdotes do templo, sem desprezarem as largas compensações

financeiras que Helvídio oferecia, facilitavam a solução do assunto,

guardando-se assim, para sempre, todas as recordações da jovem num

punhado de cinzas.

Após receberem as homenagens da sociedade patrícia de Cápua,

que não deixou de estranhar o misterioso acontecimento, Fábio Cornélio e

todos da família retornaram prestes a Roma, onde promoveram o funeral

com a maior simplicidade, embora ao gosto da época e consoante as

exigências da tradição familiar.

Todavia, enquanto as supostas cinzas de Célia baixavam ao

sarcófago, nova dor assaltava o círculo doméstico das nossas personagens.

Profundamente ferida nas fibras mais sensíveis do coração

materno, Júlia Spinter, não conseguindo suportar tão fundo desgosto,

acrescido aos muitos que lhe minavam a existência, abandonara a Terra

inopinadamente, sem que os íntimos pudessem, ao menos, prever-lhe a

aproximação da morte, que se verificou dentro de uma noite, em

conseqüência de um colapso cardíaco.

Novo luto envolveu a casa de Helvídio, experimentando Alba

Lucínia os mais atrozes padecimentos íntimos. A esse tempo, Fábio

Cornélio, dado o desaparecimento de Lólio Úrbico, havia recebido novos

encargos do Imperador, encargos que lhe deferiram grandes poderes e

graves responsabilidades na solução de todos os problemas financeiros.

A morte da esposa encheu-lhe o coração de estranho pesar.

Buscou, contudo, reagir às forças que lhe deprimiam o ânimo, prosseguindo

na sua tarefa de domínio, com o mesmo orgulho que lhe temperava o

caráter.

Sentindo-se muito a sós, Helvídio Lucius e a esposa planejaram

voltar à tranqüilidade provinciana da Palestina, mas o falecimento

imprevisto da nobre matrona impedia-lhes, de novo, a execução dos

projetos há muito acarinhados, atento o insulamento em que ficaria o

velho censor, cujo coração orgulhoso e frio lhes dera sempre as mais

inequívocas provas de amor e dedicação.

Elucidando a situação de todas as personagens, resta-nos lembrar

Cláudia Sabina, após o desfecho singular dos acontecimentos dolorosos

que ela mesma sinistramente engendrara. Morto o marido e sabendo

frustrados todos os seus planos, procurou em vão ouvir Hatéria, que,

elevada a uma posição de redobrada confiança no lar de Helvídio Lucius,

dispusera-se a não abandonar jamais a casa, receosa das suas

represálias. De posse da grande soma que lhe dera o tribuno em troca do

seu silêncio, a velha serviçal chamara o genro e a filha à residência dos

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

patrões, onde lhes entregou parte da pequena fortuna, com a qual adquiriu,

em seu nome, um belo sítio em Benevento, lá arrumando os filhos, até que

ela se dispusesse a partir para a vida rural.

Cláudia Sabina, apesar dos esforços despendidos, nunca mais

pôde ouvir-lhe a palavra, porquanto, se Hatéria jamais se ausentava de casa,

também Fábio Cornélio detinha poderes cada vez mais fortes, na cidade

imperial, obrigando-a, indiretamente, a manter-se em silêncio e a distância.

Foi assim que a antiga plebéia se retirou de Roma para Tibur,

acompanhando as futilidades da Corte de Adriano, cujos últimos tempos

de reinado se caracterizaram por uma indiferença cruel.

Rodeada de servos, mas em pleno ostracismo social, a viúva do

prefeito dos pretorianos adquirira uma chácara tranqüila, onde devia passar

largos anos, requintando o seu ódio em detestáveis meditações.

Depois destas notícias breves, retomemos o caminho de Célia

para acompanhar-lhe a dolorosa peregrinação.

Deixando a Ponte Fabrícius, ela caminhou ao léu, procurando

alcançar a ilha do Tibre, onde se acotovelava a multidão dos pobres.

Aos derradeiros clarões da tarde, buscou atravessar a Ponte

Cestius, encontrando num trecho do caminho uma mulher do povo, de

semblante alegre e humilde. Célia assentara-se, por instantes, ajeitando o

pequenino. Sentiu, porém, que o olhar da desconhecida lhe penetrava

brandamente o coração.

Nesse comenos, experimentando a secreta confiança que lhe

inspirava aquela mulher simples, traçou com a destra, na poeira do solo,

um pequeno sinal da cruz, mediante o qual todos os cristãos da cidade se

reconheciam.

Ambas trocaram, então, um olhar expressivo de simpatia,

enquanto a desconhecida se aproximava, exclamando bondosamente:

- És cristã ?

- Sim - sussurrou Célia em surdina.

- Estás desamparada? - perguntou a desconhecida, discretamente,

revelando nas palavras breves a máxima cautela, de modo a não serem

surpreendidas como adeptas do Cristianismo.

- Sim, minha senhora - revidou Célia, algo confortada com aquele

interesse espontâneo -, estou só no mundo com este filhinho.

- Então, vem comigo, é possível que te seja útil em alguma coisa.

A neta de Cneio Lucius seguiu-a, sôfrega de proteção, no pélago

de incertezas em que se achava. Atravessaram a Ponte Cestius,

calmamente, como velhas amigas que se houvessem encontrado, dirigindose

para um quarteirão de casas pobres.

Distanciadas da multidão, a mulher do povo, sempre carinhosa,

começou a falar:

- Minha boa menina, chamo-me Orfília e sou tua irmã na fé! Logo

que te avistei, compreendi que estavas só e desamparada no mundo,

precisando do auxílio de teus irmãos! Estás moça e Jesus é poderoso..

Surpreendi lágrimas nos teus olhos, mas não deves chorar quando tantos

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

irmãos nossos têm padecido atrozes sacrifícios nos tempos amargos que

atravessamos...

Célia ouvia-a consolada, mas, intimamente, não sabia como

proceder em tão difíceis circunstâncias, nas quais uma companheira de

crença se lhe revelava com toda a sinceridade.

Enquanto Orfília calava um instante, a filha de Helvídio agradecialhe

em breves palavras:

- Sim, minha senhora, estou comovida e não sei como agradecerlhe.

- Sou lavadeira - continuou a plebéia com a sua simplicidade de

coração -, mas tenho a ventura de possuir um marido piedoso e cristão, que

não se cansa de me proporcionar no trabalho e no conchego do lar os

mais sagrados testemunhos de nossa fé ! Vais conhecê-lo !.. Chama-se

Horácio e terá prazer quando souber que te podemos ser úteis de algum

modo... Tenho, também, um filho de nome Júnio, que constitui a nossa

esperança para o futuro, quando em nossa pobreza material estivermos

imprestáveis para o trabalho !..

E, aproximando-se cada vez mais da casinha pobre, acrescentava:

- E tu, minha irmã, que te aconteceu para trazeres um semblante

tão triste e amargurado assim?.. Tão jovem e com um filhinho nos braços,

tão formosa e tão desventurada?...

- Fiquei viúva e abandonada - exclamou Célia de olhos molhados

-, mas espero em Jesus alcançar o necessário a mim e a meu filho...

Ainda não havia terminado as explicações timidamente

formuladas, quando transpuseram o umbral de uma sala muito pobre e

quase desguarnecida.

Dois homens conversavam à claridade frouxa de uma tocha e logo

se ergueram para recebê-las.

Devidamente apresentada ao pai e ao filho, Célia notou que

Horácio tinha, de fato, um aspecto conselheiral e bondoso, observando,

porém, no filho, algo que a desagradou de pronto, um olhar de moço

leviano e frívolo, cheio de fantasia e de loquacidade.

- Sabes, mãe - exclamou o rapaz como se guardasse todas as

qualidades de um porta-novas -, o grande acontecimento que abalou toda a

cidade?

Enquanto Orfília fazia um gesto de estranheza, Júnio continuava:

- A primeira notícia que abalou hoje as proximidades do Forum,

pela manhã, foi a da morte do prefeito Lólio Úrbico, que se suicidou

escandalosamente, obrigando o governo a numerosas homenagens!

- É estranho - exclamou a interpelada -, muitas vezes vi em público

esse homem fidalgo, de porte orgulhoso e varonil. Ainda ontem eu o vi nos

carros de triunfo, nas festas do Imperador. Seu rosto transbordava alegria

e, no entanto...

- Ora - interpôs o chefe da casa -, atravessamos uma fase

dolorosa de terríveis surpresas para todas as classes sociais. Quem nos

poderá afiançar com certeza, que o prefeito dos pretorianos se tenha

suicidado realmente? No mês findo, a cidade assistiu a dois acontecimentos

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

como esse e, no entanto, soube-se depois que os dois patrícios suicidas

foram assassinados cruelmente por sicários da sua própria grei.

Célia, encostada a um canto, como se fôra uma jovem mendiga,

ouvia aquelas notícias, amargamente impressionada. A estranha morte de

Lólio Úrbico aterrava-a. Embora inquieta, fazia o possível para não trair as

mais vivas emoções.

- Mas o dia não se caracterizou somente por isso - continuava

Júnio, loquaz -; disseram-me no Forum que alguns cristãos foram presos

quando reunidos próximo do Esquilino, bem como que o censor Fábio

Cornélio e família partiram para Cápua, a fim de trazerem para aqui as cinzas

de uma filha do tribuno Helvídio Lucius, lá falecida recentemente...

A jovem cristã recolheu a notícia com espanto, compreendendo a

gravidade da sua condição perante os parentes orgulhosos e inexoráveis.

Seu espírito chocava-se tristemente, em face de notícias tão amargurosas...

A mente lhe veio a idéia de regressar a casa e repousar o corpo alquebrado...

Nunca se afastara do lar, a não ser quando descansava junto do avô

enfermo, no palácio do Aventino. Lembrou os servos amigos e dedicados,

invocou todos os recantos do ninho paterno com os seus aspectos

peculiares. Uma saudade imensa de sua mãe invadia-lhe o íntimo e, contudo,

o coração lhe afirmava, por secreta intuição, que seus olhos nunca mais

voltariam a refletir a placidez do lar paterno, a não ser quando abandonasse

o ergástulo do mundo. Consoante as informações de Júnio, compreendeu

que as portas da casa paterna lhe estavam fechadas para sempre...

Simbolicamente morta, não poderia voltar aos seus senão como

sombra...

Observando-a de olhos úmidos e reconhecendo-lhe o enorme

cansaço, Orfília procurou quebrar a frivolidade dos assuntos, dirigindo-lhe a

palavra bondosamente :

- E tu, minha querida menina, por pouco não continuávamos a

nossa história. Afirmas-te viúva? Mas, que lástima !.. Assim tão nova!

Tomando-a pela mão, para conduzi-la ao interior sob o olhar

surpreso dos dois homens que reparavam a nobreza de traços da

desconhecida, continuava :

- Entremos, filha !... Está muito frio e pareces fatigada. Além disso,

precisamos cuidar da alimentação do pequeno. Vem!

Enquanto Célia exorava a Jesus que a inspirasse em tão difíceis

circunstâncias, compreendendo, após as notícias de Júnio, que não poderia

expor àquela amiga ocasional a realidade da sua situação, Orfília prosseguia

com interesse:

- Mas, como te chamas, minha irmã? Enviuvaste há muito tempo ? E

não tens outra amizade por ti ?.

A filha de Helvídio, medindo a delicadeza do momento, deu um

nome suposto, exclamando:

- Enviuvei há quatro meses apenas e estou inteiramente

desamparada, com este filhinho de poucos dias. Tenho experimentado

todos os sofrimentos de uma infortunada filha da plebe, mas tenho guardado

a fé em Jesus, como único refúgio. Ainda agora, a sua caridade fraterna,

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

recolhendo-me a esta casa, foi para mim o testemunho vivo da proteção do

Mestre Divino, a cuja misericórdia tenho endereçado todas as minhas

súplicas!...

Não somente Orfília, mas o marido e o filho a ouviram penalizados.

- E quais os teus projetos, minha filha? - perguntou a dona da casa,

compungida.

A tal pergunta, Célia lembrou-se de Cneio Lucius, que lhe havia

prometido amparo em todos os momentos difíceis, se o Senhor o

permitisse, e, implorando-lhe um alvitre valioso, com as vibrações

silenciosas do seu pensamento, retrucou com certa firmeza:

- Tenho necessidade de sair de Roma na primeira oportunidade.

Infelizmente, faltam-me os recursos necessários, mas espero que Jesus me

ajudará... Tenho alguns parentes nos arredores de Nápoles e nos confins

da Campânia. Quero recorrer a todos eles, porquanto não poderia aqui viver

sem elementos para me sustentar e ao meu pobre filhinho.

- Isso é justo - respondeu Orfília brandamente -, eu e Horácio

poderemos ajudar-te nas primeiras providências.

- Aliás - replicou o chefe da família, com um gesto paternal -, Júnio

terá de viajar ainda este mês, como empregado do Forum, levando

documentos de pouca importância até Gaeta! Munida dos pequenos

recursos que poderemos arranjar, estarás habilitada a encetar nova

diligência para te reunires aos teus parentes.

Célia ouvia-lhe a palavra, confortada e agradecida, enquanto

Orfília tomava a criança para nutri-la convenientemente, obrigando a

jovem a tomar, por sua vez, um prato de caldo.

- Essa idéia é bem lembrada - disse Orfília dirigindo-se ao marido -

os nobres poderão dirigir-se a Nápoles no bojo de luxuosas galeras, mas

nós, os humildes, temos de nos valer dos mais pobres recursos.

- Tudo, porém, está na pauta da misericórdia divina - glosou

Horácio, convicto.

E dirigindo-se ao filho, enquanto a mulher silenciava, perguntou:

- Quando partes?

- Acredito que dentro de duas semanas.

- Pois bem, Orfília, até lá, buscaremos prover nossa irmã do

indispensável à sua viagem.

Célia esboçou um sorriso de agradecimento, sentindo-se bem,

ao lado daqueles corações simples e generosos.

Daí a pouco repousava com o pequenito, numa cama humilde, mas

muito limpa, que a dona da casa lhe preparou, junto do seu próprio quarto.

A filha de Helvídio Lucius, ajeitando carinhosamente a criancinha

entre as coberturas pobres, começou a orar, meditando nas dolorosas

peripécias daquele dia inolvidável. Quando se sofre, a vida é qual

turbilhão de pesadelos intensos. Ao seu espírito combalido, pareceu-lhe

estar apartada dos seus há muitos anos, tal a angústia martirizante das

horas intermináveis em que vagara pelas vias públicas, sem destino e sem

nenhuma esperança... Sem perder de vista a criancinha, sentiu que aos

poucos o organismo exausto cedia ao sono reparador. Adormeceu,

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

então, tranqüila, como se nas asas da noite o espírito fugisse

temporariamente do ergástulo, livre da realidade dolorosa.

Durante duas semanas, valendo-se da proteção de Orfília e seu

esposo, a jovem cristã preparou o seu e o vestuário do pequeno. Com os

elementos que os amigos lhe proporcionaram, talhou fatos pobres e

singelos, com os quais empreenderia o seu roteiro de humildade.

Aonde iria? Não poderia sabê-lo ao certo.

Não conhecia Nápoles senão através das descrições do velho avô,

quando fazia viagens imaginárias no intuito de ilustrar a neta estremecida.

Possivelmente, não chegaria até Nápoles, nem mesmo à Campânia,

onde guardava a recordação da irmã e de Caio Fabrícius, domiciliados em

Cápua. Inútil presumir qualquer auxílio da irmã, porquanto, certamente,

Helvídia e o esposo, cientes do que ocorrera em Roma, não lhe poderiam

perdoar, em hipótese alguma.

Entretanto, predispunha-se a partir, cheia de confiança em Deus.

No instante oportuno Jesus haveria de abençoar-lhe os passos, guiandoos

a um destino certo. No complexo de suas meditações, recordava-se,

incessantemente, da palavra do avô no dia do sacrifício de Ciro e Nestório,

esperando que os mensageiros do Senhor ou as almas dos entes queridos

regressassem do túmulo para lhe orientar o coração no dédalo das

ansiedades angustiosas.

Receosa de complicações, a jovem nunca saiu do humilde

quarteirão transteverino, onde fôra acolhida, até que um dia, ao dealbar da

aurora, despediu-se da amiga com lágrimas nos olhos.

O carro de Júnio fôra preparado de véspera, de modo que a partida

se efetuasse ao amanhecer. Orfília e Horácio estavam igualmente

comovidos, mas, obedecendo ao imperativo das provações terrenas, Célia

aboletava-se no interior da viatura, construída à guisa de diligência dos

tempos medievais, onde acomodou o saco de roupas e a larga provisão de

alimentos para o inocentinho, que Orfília não se esquecera de preparar

carinhosamente.

Abraços carinhosos, votos de ventura e, daí a instantes, sob o

frio intenso da manhã, Júnio estalava o pequeno chicote no dorso dos

animais, através das vias públicas.

Célia rogava a Jesus que lhe fortalecesse o espírito angustiado,

dando-lhe coragem para enfrentar as sendas procelosas da vida... Ao

despedir-se de Roma, olhos nevoados de pranto, pareceu-lhe mais intenso

o martírio íntimo, sentindo o coração azorragado pelas saudades

impiedosas. Contemplando, porém, o pequenino meio adormecido em

seus braços, experimentava uma força incoercível que a sustentaria em

todos os sacrifícios.

Os primeiros raios do Sol começavam a invadir o céu escampo,

quando o carro transpôs a Porta Caelimontana (1) , entrando os cavalos,

logo após, a largo trote, na Via Ápia... Defrontando as campinas romanas

no trecho em que se erguia o admirável aqueduto de Cláudio, a filha de

Helvídio embevecia-se na contemplação da Natureza, com o espírito

mergulhado em preces carinhosas e profundas meditações.

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

(1) A Porta Caelimontana foi chamada, mais tarde, Porta de São João. - Nota

de Emmanuel.

Passava pouco de dez horas quando defrontaram Alba Longa,

com o seu casario simples e confortável.

Júnio, com reflexos enigmáticos no olhar, fez que a companheira

de viagem e o pequenino tomassem ligeira refeição, antes de iniciarem a

ascensão dos montes do Lácio.

Prosseguindo pelos caminhos orlados de árvores e flores

silvestres, atingiram Arícia, cercada de oliveiras viçosas e de hortos

imensos. Mais tarde alcançavam Genciano, vila graciosa e afortunada, ao

pé do lago Nemi, em cujas bordas floriam intérminos roseirais.

Célia trazia o espírito engolfado em meditações cariciosas, em face

do encanto maravilhoso da paisagem, cuja beleza ultrapassava todos os

quadros da Palestina guardados na sua retentiva para sempre. Por toda

parte, oliveiras amigas, laranjeiras em flor, hortos imensos e bem

cuidados, roseiras perfumadas e detalhes preciosos que o homem do campo

organizara.

Fosse pela influência cariciosa do ar embalsamado de aromas,

ou pelo cansaço da longa excursão, a criança adormecera no colo da

jovem mãezinha que o céu lhe dera, enquanto ela lhe acariciava o rosto

minúsculo com os mais ternos desvelos.

Enquanto a sombra do arvoredo atenuava os raios quentes do Sol

vespertino, Júnio, que nunca estava silencioso, chamando a atenção da

companheira de viagem para esse ou aquele pormenor do caminho,

começou a falar-lhe de assunto estranho. A jovem corou, pediu-lhe

recordasse a tradição cristã dos pais, que a haviam tratado generosamente,

suplicando-lhe que a deixasse em paz na sua dolorosa viuvez, ao léu da

sorte. Notou, porém, que o rapaz estava saturado dos vícios da época,

figurando-se-lhe que o filho dos seus protetores era insensível às suas

rogativas mais ardentes. Repelido nas suas propostas indecorosas, o filho

de Horácio exclamava para a sua vítima, deixando transparecer no

semblante uma repugnante expressão de abutre ferido.

- Estamos próximo de Velitrae, onde pernoitaremos, e como terás

de prosseguir comigo até Gaeta, espero convencer-te amanhã. Do

contrário...

Célia engoliu o insulto, lembrando-se dos seus deveres de orar e

vigiar e conservando o pensamento em preces fervorosas, a fim de que o

Divino Mestre, por seus mensageiros, lhe inspirasse o melhor caminho.

Daí a instantes, entravam na bela cidade, edificada em tempos

remotos pelos volscos e berço do grande Augusto. Velitrai, mais tarde

Velétri, assenta num grande outeiro, oferecendo as mais formosas

perspectivas topográficas ao viajante. Seus crepúsculos são tocados de

suave e maravilhosa beleza... Contemplando o Oriente, vêem-se os montes

da Sabina unidos aos barrancos profundos da cidade e, à tarde, quando o

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

Sol desaparece, a neve das montanhas mistura-se à neblina da noite,

proporcionando prismas visuais do mais deslumbrante efeito.

Júnio colheu as rédeas à frente de uma hospedaria do mais

humilde aspecto. Recebido com demonstrações de alegria por seus

antigos conhecidos, providenciava imediatamente a hospedagem de Célia

com a criança, recolhendo os animais à estrebaria.

A jovem cristã, após a refeição da tarde, buscou o silêncio do

quarto para refletir e orar. Júnio marcara o prosseguimento da viagem, ao

alvorecer. Todavia, ela estava tomada de angústia e de incerteza. O filho de

seus benfeitores não parecia dotado dos elevados sentimentos paternos.

Aquele olhar arisco parecia indicar a peçonha de um ofídio. Seus gestos

eram atrevidos, as idéias indiferentes às noções do dever e da

responsabilidade.

Noite alta, uma serva da casa veio saber se a hóspede reclamava

alguma coisa, encontrando-a inquieta e aflita, pensando no que pudesse

acontecer ao seu amanhã doloroso e cheio de ameaças.

Depois de amargas reflexões, deliberou, inspirada pelos amigos do

Invisível, retirar-se da estalagem nas primeiras horas da madrugada, por

fugir a qualquer perversidade do inimigo de sua paz íntima.

Assim, antes do alvorecer, afastou-se a medo do casarão

desconhecido. Apertando o pequenino de encontro ao peito, experimentava

o coração a lhe bater aceleradamente. Jamais enfrentara situações tão

difíceis e, todavia, confiava que Jesus a socorreria com os alvitres

necessários.

Deixando Velétri à esquerda, tomou corajosamente um largo

caminho, sobraçando o pequenino e o seu saco de bagagens pobres,

caminhando até o completo alvorecer e encontrando-se na antiga vila de

Cora, famosa pelo seu templo de Castor e Pólux. Ali, uma mulher do povo

recolheu-a por minutos, munindo-a de novas provisões; considerando a sua

penosa jornada, com o inocentinho ao colo.

Continuando a caminhar, possuída de estranha força, como se

alguém lhe guiasse os passos, apesar do rumo incerto, achou-se em breve à

margem do rio Astura, atravessando aldeias pequeninas, onde havia

sempre um bom coração a lhe prodigalizar uma gentileza fraterna.

Antes do meio-dia, defrontou humildes carreteiros, assalariados

pelos ricos senhores da região nos trabalhos de transporte, salientando-se

que um deles, de aspecto patriarcal, ofereceu-lhe um lugar a seu lado,

mitigando-lhe a dor dos pés.

Em breve, assim instalada num veículo bastante ligeiro para a

época, a jovem cristã divisava, à frente, as famosas Lagoas Pontinas, vasto

terreno sem inclinação, para onde convergem as pesadas massas dágua de

alguns rios.

Célia atravessava numerosos grupos de casas, aldeias nascentes

ou antigas cidades em ruínas, detendo os olhos tristes, com mais

insistência, nas humildes edificações de Forápio ( Forum Appü ) , onde

as tradições cristãs de Roma asseveravam que se dera o encontro de Paulo

de Tarso com os seus irmãos da cidade de César.

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

Dentro de suas meditações, a viajante defrontava Anxur, mais

tarde Terracina, de onde saía por escarpada encosta da montanha,

passando pelas ruínas bem conservadas de castelos antigos, dos mais

remotos dominadores. Da culminância, seus olhos abrangiam toda a

região das Lagoas célebres, bem como vasta extensão do mar Tirreno.

Aí, porém, sentiu o coração gelado e dolorido. Era dali, daquela

estrada hostil e montanhosa, que o idoso cocheiro, benfeitor e amigo,

deveria retroceder, em obediência às ordens recebidas.

Entardecia. O velho lidador da gleba despediu-se da

companheira, com os olhos umedecidos. Por todo o caminho, Célia se

conservara triste e silenciosa, mas, percebendo que o seu benfeitor estava

receoso e sensibilizado por ter de abandoná-la em sítio tão ingrato, e a tais

horas, disse-lhe corajosamente :

- Adeus, meu bom amigo ! Que o céu lhe recompense a bondade.

Seu oferecimento generoso evitou-me grande cansaço pelo caminho!...

- Ides a Fondi? - perguntou o bom do velho com carinhoso

interesse.

- Não precisarei chegar até lá – respondeu a jovem com inaudita

coragem -; a propriedade de meus parentes está muito próxima.

- Ainda bem - replicou ele mais conformado -, temia que

precisásseis caminhar ainda muito, pois estas regiões são infestadas de

feras e bandidos.

- Fique descansado - disse Célia ocultando a própria angústia -,

estas estradas não me são desconhecidas. Além do mais, estou certa de

que o céu me protegerá, amparando o meu filhinho...

O generoso carreiro ao ouvir a invocação do céu, descobriu-se

respeitoso na sua simplicidade de alma devotada a Deus e, depois de

estender a destra à jovem desconhecida, preparou-se para descer a

montanha, onde fôra tão somente para atender a solicitação da sua graciosa

passageira, descendo pelas mesmas sendas escarpadas, a fim de cumprir

em Anxur a incumbência que levava.

Célia viu-o desaparecer nas curvas íngremes, acompanhando-lhe o

veículo com o olhar triste e ansioso. Desejava também retroceder, mas um

receio imenso dos homens impiedosos, que não saberiam respeitar-lhe a

castidade, a impelia a buscar o desconhecido, entre as sombras espessas

das florestas do Lácio.

Com o pensamento em prece, caminhou quase mecanicamente,

observando, angustiada, que se avizinhavam as sombras do crepúsculo...

A estrada corria por um vale apertado, vendo-se-lhe de um lado o

oceano, e do outro a cadeia das montanhas. Os derradeiros raios do Sol

douravam a cúpula imensa, quando seus olhos divisaram, à esquerda, uma

gruta providencial, formada pelos elementos da Natureza. Era, porém, uma

edificação natural tão imponente, que bastou um exame mais acurado

para que se recordasse das lições do avô, em outros tempos,

identificando o local com as suas reminiscências dos estudos com o

avozinho. Aquela gruta era o local famoso onde Sejano havia salvado a vida

de Tibério, quando o antigo Imperador, ainda príncipe, se dirigia com

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

alguns amigos para as cidades da Campânia. Sentindo-se rodeada pelos

clarões mortiços da tarde, dirigiu-se para o interior, onde uma cavidade

natural parecia bem disposta para o descanso de uma noite. Agradecendo a

Jesus o encontro de um pouso como aquele, ajeitou as roupas pobres que

trazia para acomodar o pequenino, colhendo, em seguida, grandes

braçadas de musgo selvagem, que caíam das árvores idosas e forrando

o leito de pedras com o maior carinho. Quando procurava interceptar a

passagem para a cavidade em que repousaria, com pedras e ramos verdes,

encarando a possibilidade do aparecimento de algum animal bravio, eis que

lhe chega aos ouvidos o tropel de cavalos trotando, aceleradamente, ao

longo do caminho...

Guardando o pequerrucho nos braços, correu para a frente,

desejosa de se comunicar com alguém, para afastar do espírito aquela

triste impressão de soledade, esperançosa de que a Providência Divina, por

intermédio de um coração bondoso, lhe evitasse a amargura daquela noite

que se prefigurava angustiosa e dolorida...

Seria um carro, ou seriam cavaleiros generosos que lhe

estenderiam mãos fraternas? Também podiam ser ladrões a cavalo,

perdidos na floresta em busca de aventuras... Considerando esta última

hipótese, tentou retroceder, mas três vultos destacaram-se ao seu lado, na

sombra da noite, impedindo-lhe a retirada, porquanto, sofreados com força,

os garbosos cavalos interromperam o trote acelerado e ruidoso.

Criando novo alento, ao influxo das energias poderosas que fluíam

do Invisível para o seu espírito, a filha de Helvídio perguntou :

- Ides a Fondi, cavalheiros?

Ao ouvir-lhe a voz, alguém, que parecia o chefe dos dois outros,

exclamou com voz aterrada:

- Urbano ! Lucrécio ! - acendam as lanternas.

Célia reconheceu aquela voz dentro da noite, com uma nota de

terrível espanto.

Tratava-se de Caio Fabrícius, que regressava de Roma, deixando

a esposa em companhia dos pais, compelido por suas obrigações

imperiosas em Cápua, depois do suposto funeral de Célia, conforme as

combinações da família.

Reconhecendo-o pela voz, a jovem cristã experimentou os mais

angustiosos receios, entremeados de esperanças. Quem sabe a sua

situação poderia modificar-se, em face daquele encontro imprevisto?

Antes que as suas cogitações tomassem longo curso duas

lanternas brilharam no ambiente.

O esposo de Helvídia contemplou-a, aterrado. A visão de Célia,

sozinha e abandonada, sustendo nos braços a criança que ele supunha

seu filho, comoveu-lhe o coração; todavia compreendendo a gravidade

dos acontecimentos de Roma, de conformidade com as informações

dolorosas do sogro, tratou de disfarçar a emoção, imprimindo no rosto a

mais fria indiferença:

- Caio !... - implorou a jovem com uma inflexão de voz

intraduzível, enquanto a luz lhe banhava o semblante abatido.

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

-Conheceis-me? - perguntou o orgulhoso patrício.

- Porventura me desconheces, tu ?

- Quem sois ?

- Pois será preciso abrir-te os olhos ?

- Não vos reconheço.

- Estarei, acaso, com a fisionomia transformada a tal ponto? Não

te recordas da irmã de tua mulher? - perguntou súplice.

- Minha esposa - concluiu o viajante, enquanto os dois servos o

contemplavam altamente surpreendidos - possuía apenas uma irmã, que

morreu há oito dias. Estais evidentemente equivocada porquanto, ainda

agora, venho de Roma, onde assisti ao seu funeral.

Aquelas palavras foram pronunciadas com frieza indefinível.

A filha de Helvídio Lucius fixou nele os olhos mareados de lágrimas

e o semblante transfigurado de infinita amargura. Compreendeu que era

inútil afagar qualquer esperança de voltar ao seio da família. Para todos

os efeitos estava morta, e para sempre. Figurou-se-lhe acordar, mais

intensamente, para a sua realidade dolorosa, mas, sentindo que alguém lhe

amparava o espírito em tão angustioso transe, exclamou :

- Compreendo!...

O esposo de Helvídia, contudo, aparentando máxima frieza, de

modo a não trair seus sentimentos diante dos servos, replicou :

- Senhora, se vos valeis desse expediente para obter o dinheiro

preciso às vossas necessidades, eu vo-lo dou de bom grado.

Mas, quando o orgulhoso romano revolvia a bolsa para cumprir

esse desígnio, ela lhe respondeu com nobreza e dignidade:

- Caio, segue em paz o teu caminho!... Guarda o teu dinheiro, pois

uma bênção de Jesus vale mais que um milhão de sestércios!..

Extremamente confundido, o marido de Helvídia recolheu a bolsa,

dirigindo-se contrariado aos servidores, nestes termos :

- Apaguem as lanternas e prossigamos a viagem !

E observando a consternação de ambos os escravos,

eminentemente impressionados com aquela cena, acrescentou com

altanaria:

- Que esperam mais para cumprir minhas ordens? Não nos

impressionemos com os incidentes do caminho. Nunca passei pelas

estradas de Anxur sem encontrar uma louca como esta!

Como se fossem repentinamente despertados por ordens mais

severas, Urbano e Lucrécio obedeceram às exigências do senhor, apagando

as luzes que bruxuleavam na escuridão da noite e, daí a instantes, os três

cavaleiros recomeçavam a marcha, como se coisa alguma houvesse

acontecido.

Caio Fabrícius era generoso, mas a falta de Célia, aos olhos da

família, era assaz grave para que pudesse ser perdoada. A ninguém

revelaria aquele encontro, ainda porque, entre ele e sua mulher, havia o

compromisso de absoluto sigilo a tal respeito. Resolveu, assim, sufocar

todos os estos de compaixão pela infeliz cunhada.

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

Quanto a esta, com os olhos mareados de lágrimas, ficou como

petrificada, a ouvir o compassado trote dos animais que se afastavam, até

que um silêncio profundo e misterioso se fez sentir por toda parte, dentro da

floresta sombria.

Vendo que Caio se afastava, teve ímpetos, na sua fragilidade

feminina, de suplicar o seu auxílio, rogando-lhe a caridade de conduzi-la até

ao povoado de Fondi, onde, por certo, encontraria alguém que a abrigasse

por uma noite. Todavia, permaneceu muda, como se a insensibilidade do

cunhado lhe houvesse enregelado a própria alma.

Chorou longamente misturando em orações as lágrimas amargas,

de olhos fitos no céu, onde apenas lucilavam raras estrelas...

A passos vacilantes voltou à gruta selvagem que a Natureza havia

edificado.

Lá dentro, acomodou a criança da melhor maneira e entrou a

meditar amargamente.

Os ventos do Lácio começaram a sussurrar uma sinfonia triste

estranha, e, de longe em longe, até aos seus ouvidos chegavam os ecos dos

lobos selvagens, ululando na floresta...

Célia sentiu-se abandonada mais que nunca. Profundo

desânimo se lhe apoderou do espírito, sentindo que, apesar da fé, a

fortaleza moral desfalecia em face de tão penosos padecimentos...

Lembrou, uma a uma, todas as suas alegrias domésticas recordando cada

familiar, com as particularidades encantadoras do seu extremoso afeto.

Nunca o sofrimento moral lhe atingira tão fundo o coração sensível !...

Enquanto as lágrimas silenciosas lhe rolavam dos olhos, lembrou-se, mais

que nunca, das exortações de Nestório nas vésperas do sacrifício, rogando a

Jesus lhe concedesse forças para as renúncias purificadoras..

Mergulhada em profunda escuridão, acarinhava o rosto do

pequenino, receosa de um ataque de répteis, enxugando as lágrimas, para

melhor pensar no futuro, sem perder a sua confiança na misericórdia de

Jesus.

Foi então que, com surpresa e pasmo dos seus olhos aflitos,

emergiu da sombra um ponto luminoso, avultando com rapidez prodigiosa,

sem que ela atinasse, de pronto, com o que se passava... Aturdida e

surpresa, acabou por divisar a seu lado a figura do avô, que lhe enviava ao

coração atormentado o mais terno dos sorrisos...

Tamanha era a sua amargura, tanto o fel do seu coração

angustiado, que não chegou a manifestar a menor estranheza. Dentro das

claridades da sua fé, recordou, imediatamente, a lição evangélica das

aparições do Divino Mestre a Maria Madalena e aos Discípulos, estendendo

para o avô os braços ansiosos. Para o seu espírito dolorido, a visão de

Cneio Lucius era uma bênção do Senhor aos seus inenarráveis martírios

íntimos. Quis falar, mas, ante a figura radiosa do velhinho bom, a voz morrialhe

na garganta sem conseguir articular uma palavra. Todavia, tinha os

olhos aljofrados de pranto e havia em seu rosto uma tal expressão de

sublimidade, que dir-se-ia mergulhada em profundo êxtase.

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

- Célia - sussurrou o Espírito carinhoso e benfazejo - Deus te

abençoe nas tormentas aspérrimas da vida material !... Feliz de ti, que

elegeste o sacrifício, como se houvesses recebido uma determinação grata

do Mestre!... Não desfaleças nas horas mais amargas, pois entre as flores

do Céu há quem te acompanhe os sofrimentos, fortalecendo as fibras do

teu espírito desterrado! Jamais te suponhas abandonada, porquanto, do

Além, nós te estendemos mãos fraternas. Todas as dores, filhinha, passam

como a vertigem dos relâmpagos ou como os véus da neblina desfeitos ao

Sol... Só a alegria é perene, só a alegria alcança a eternidade. Realizandonos

interiormente para Deus, nós compreendemos que todos os

sofrimentos são vésperas divinas do júbilo espiritual nos planos da

verdadeira vida! Conhecemos a intensidade dos teus padecimentos, mas,

coerente com a tua fé conserva o pensamento sempre puro! Crendo

sacrificar-te por tua mãe, estás cumprindo uma das mais formosas missões

de caridade e de amor, aos olhos do Cordeiro... Jamais agasalhes a idéia de

que o sentimento materno se houvesse desviado algum dia do código da

lealdade e da virtude doméstica, mas recebe todos os sofrimentos como

elementos sagrados da tua própria redenção espiritual ! Tua mãe nunca

faltou à fidelidade conjugal e o teu espírito de abnegação e renúncia

receberá de Jesus a mais farta messe de bênçãos.

Ouvindo aquelas palavras que lhe caíam como bálsamo divino no

coração desalentado, a filha de Helvídio deixava que as lágrimas de conforto

íntimo lhe rolassem das faces, como se o pranto, somente, lhe

pudesse lavar todas as amarguras. Ela identificava o avô carinhoso e

amigo, ali, a seu lado, como nos dias mais venturosos da sua existência.

Nimbado de uma luz suave e doce, Cneio Lucius sorria-lhe com a

benevolência de coração que sempre lhe demonstrara. Escutando-lhe a

revelação da integridade moral da genitora, Célia reconsiderou as

ocorrências dolorosas do lar. Bastou que esboçasse tais pensamentos, sem

exprimi-los verbalmente, para que a respeitável entidade espiritual a

esclarecesse, nestes termos :

- Filha, não cogites senão de bem cumprir os desígnios do

Senhor a teu respeito... Não permitas que os teus pensamentos voltem ao

passado para se eivarem de aflições e amaritudes da vida terrestre! Não

queiras estabelecer a culpa de alguém ou apontar o desvio de quem quer

que seja, porque há um tribunal de justiça incorruptível, que legisla acima

das nossas frontes !... Para ele não há processos obscuros, nem

informações inexatas! Se essa justiça sublime determinou a tua marcha

pelos carreiros da calúnia e do sacrifício, é que essa estrada conviria

mais ao teu aperfeiçoamento e às fórmulas de trabalho que te competem.

Nunca mais voltarás ao aconchego do lar paterno, ao qual te sentirás ligada

pelos elos inquebrantáveis da saudade e do amor, através de todos os

caminhos, mas essa separação de tua alma dos nossos afetos mais

queridos será como um ponto de luz imorredoura, assinalando a

transformação dos nossos destinos? Teu sacrifício, filhinha, há-de ser

para todo o sempre um marco renovador de nossas energias espirituais no

grande movimento das reencarnações sucessivas, em busca do amor e da

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

sabedoria! Ampliando os meus recursos para regressar às lutas terrestres,

abençôo a tua dor, porque a tua renúncia é grande e meritória aos olhos

de Jesus.

Foi aí que ela, conseguindo romper as emoções que a asfixiavam,

exclamou com voz amargurada e dolorida:

- Mais do que as palavras, meu coração, que o vosso espírito pode

perscrutar, pode dizer-vos da minha alegria e reconhecimento!... Protetor e

amigo, guia desvelado de minhalma, já que vindes das sombras do túmulo

para trazer-me as mais consoladoras verdades, ajudai-me a vencer nos

embates dolorosos da vida!... Animai-me! Inspirai-me com a vossa

sabedoria e o vosso amor compassivo! Não me deixeis desorientada, nestas

penhas escabrosas !.. Avô, meu coração tem andado triste como esta

noite, e o desalento e a amargura clamam no meu íntimo como os lobos

ferozes que uivam nestas selvas !.. Doravante, porém, saberei que vos

tenho junto a mim !... Caminharei consciente de que me seguireis os

passos em busca da felicidade real !.. Rogai a Jesus que eu desempenhe

austeramente todos os meus deveres ! E, sobretudo, amparai também o

inocentinho, cuja vida buscarei proteger em todas as circunstâncias !.

A voz de Célia, todavia, experimentava um estacato. Ouvindo-lhe as

súplicas com a mesma expressão de serenidade e de carinho no olhar,

Cneio Lucius avançou vagarosamente até o leito improvisado do pequenino,

iluminando-lhe o rostinho alvo com um gesto da sua destra radiosa e

exclamando num sorriso:

- Eis, filhinha - disse apontando a criancinha -, que Ciro cumpriu a

promessa, regressando prestes ao mundo para estar mais perto do teu

coração, sob as bênçãos do Cordeiro !...

- Como não mo revelastes antes? - monologou a jovem

intimamente possuída de sublime alvoroço.

- É que Deus - exclamou a entidade generosa, adivinhando-lhe os

pensamentos - quer que todos espiritualizemos o amor, buscando-lhe as

expressões mais puras e mais sublimes. Recebendo um enjeitadinho como

teu irmão, sem te deixares conduzir por qualquer disposição particular,

soubeste santificar, ainda mais, tua afeição por Ciro, no laço indissolúvel

das almas gêmeas, a caminho das mais lúcidas conquistas espirituais na

redenção suprema...

- Sim - falou a jovem patrícia dentro do seu júbilo espiritual -,

agora compreendo melhor o meu enternecimento, e já que me trouxestes ao

coração uma alegria tão doce, ensinai-me como devo agir, dai-me uma

orientação adequada, para que eu possa cumprir irrepreensivelmente todos

os meus deveres...

- Filha, a orientação de todos os homens está delineada nos

exemplos de Jesus-Cristo! Não temos o direito de tolher a iniciativa e a

liberdade dos entes que nos são mais caros, porque, no caminho da vida, o

esforço próprio é indispensável! Luta com energia, com fé e perseverança,

para que o reino do Senhor floresça em luz e paz na tua própria vida...

Mantém a tua consciência sempre pura e, se algum dia a dúvida vier

perturbar teu coração, pergunta a ti mesma o que faria o Mestre em teu

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

lugar, em idênticas circunstâncias... Assim aprenderás a proceder com

firmeza, iluminando as tuas resoluções com a luz do Evangelho !...

Depois de uma pausa em que Célia não sabia se fixava a

personalidade sobrevivente do avô, ou se despertava o enjeitadinho para

rever nos seus olhos, mais uma vez, as recordações do bem-amado.

Cneio Lucius acentuou :

- Depois de tantas surpresas empolgantes e de tanta fadiga,

precisas descansar! Repousa o corpo dolorido que ainda terá de

sustentar muitas lutas... Continua com a mesma oração e vigilância de

sempre, pois Jesus não te abandonará no mar proceloso da vida!...

Então, como se um poder invencível lhe anulasse as possibilidades

de resistência, Célia sentiu-se envolvida num magnetismo doce e suave. Aos

poucos, deixou de ver a figura radiosa do avô, que se postara a seu lado

qual sentinela afetuosa contra a incursão de todos os perigos... Um sono

brando cerrou-lhe as pálpebras cansadas e, abraçada ao pequenito, dormiu

tranqüilamente até que os primeiros raios do Sol penetrassem na gruta

anunciando o dia.

Enquanto a vida familiar de Fábio Cornélio transcorria, na cidade

imperial, sem acidentes dignos de menção, sigamos a filha de Helvídio

Lucius na sua via dolorosa.

Levantando-se pela manhã, Célia alcançou a povoação de

Fondi, em cujas cercanias uma criatura generosa acolheu-a por um dia, com

ternura e bondade. Foi o bastante para se reconfortar das caminhadas

ásperas e longas e, no dia seguinte, punha-se novamente a caminho em

direção de Itri, a antiga “Urbs Mamurrarum”, aproveitando o mesmo traçado

da Via Ápia.

Em caminho, teve a satisfação de encontrar a carreta de

Gregório, o mesmo carreiro humilde que a deixara, na antevéspera, nas

montanhas de Terracina, circunstância que lhe trouxe ao coração muita

alegria. Nas dificuldades e dores do mundo, a fraternidade tem elos

profundos, jamais facultados pelos gozos mundanos, sempre fugazes e

transitórios.

Gregório ofereceu-lhe o mesmo lugar ao seu lado, num gesto de

proteção que a jovem aceitou, considerando-o uma bênção do Alto.

Desta vez, reconheceram-se como dois bons amigos de

outros tempos. Falaram da paisagem e dos pequenos acidentes da

viagem, rematando Gregório com uma pergunta cheia de interesse:

- Tem a senhora outros parentes além de Fondi? Não me

pareceu pequeno o sacrifício em aventurar-se a uma jornada tão longa

como a de anteontem... Como consentiram prosseguisse outra viagem a pé

?

- Sim, meu amigo - respondeu buscando desviar a sua afetuosa

curiosidade -, meus parentes de Fondi são paupérrimos e não desejo

voltar a Roma sem rever um tio enfermo, que reside em Minturnes. (1)

(1) Minturnes, mais tarde passou a chamar-se Trajetta. - Nota de Emmanuel.

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

- Ainda bem - murmurou o generoso plebeu, satisfeito com a

resposta -, sendo assim, poderei levá-la hoje até ao fim da sua jornada, pois

vou além das lagoas da cidade.

A marcha continuou entre as gentilezas de Gregório e os

agradecimentos de Célia, que lhe apreciava a bondade, comovida.

Somente ao cair da tarde o veículo atingiu os arredores da cidade

famosa.

Despedindo-se do carinhoso companheiro, a jovem cristã atentou

na paisagem soberba que se desdobrava aos seus olhos. Uma formosa

vegetação litorânea repontava dos terrenos alagadiços, num dilúvio de

flores. A primeira porta da cidade estava a alguns metros, e, todavia, o seu

amor pela Natureza fê-la estacionar junto das grandes árvores do caminho.

O Sol, em declínio, enviava à tela florida os seus raios agonizantes.

Dominada por grandiosos pensamentos e experimentando um novo alento

de vida, com a palavra de verdade e de consolação que o avô lhe trouxera

na véspera, dos confins do túmulo, começou a orar, agradecendo a Jesus

as suas graças sublimes e infinitas.

No seu caricioso embevecimento, contemplou a figurinha mimosa

que se agitava em seus braços e beijou-lhe a fronte num arroubo de

espiritualidade.

Na véspera, haviam recebido a hospitalidade da Natureza, mas,

agora, ante as fileiras de casebres ali próximos da estrada, consultava a si

mesma sobre o melhor meio de recorrer à piedade alheia, contando,

porém, como das outras vezes, com o amparo de Jesus, que lhe

forneceria a inspiração mais acertada, por intermédio dos seus lúcidos

mensageiros.

Foi então que reparou numa choupana rodeada de laranjeiras, onde

a vida parecia ser a mais simples e mais solitária. Seu aspecto singelo

emergia do arvoredo a duzentos metros do local em que se encontrava, mas,

como que atraída por algum detalhe que não poderia definir, Célia alcançou

a trilha e bateu à porta. Brilhavam no céu as primeiras estrelas.

Depois de muito chamar, sentiu que alguém se aproximava com

dificuldade, para dar voltas ao ferrolho.

E não tardou tivesse diante dos olhos surpresos uma figura

patriarcal e veneranda, que a acolheu com solicitude e simpatia.

Era um velho de cabelos e barbas completamente encanecidos. As

cãs prateadas realçavam-lhe os nobres traços romanos, irrepreensíveis.

Aparentava mais de setenta anos, mas o olhar estava cheio de ternura e

de vida, como se os seus raciocínios estivessem em plenitude de

maturidade. Estendendo-lhe as mãos encarquilhadas e trêmulas, Célia

notou pequena cruz a pender-lhe do peito, fora da toga descolorida e

surrada.

Grandemente emocionada e compreendendo que se encontrava à

frente de um velho cristão, murmurou humilde :

- Louvado seja Nosso Senhor Jesus-Cristo !

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

- Para sempre, minha filha! - respondeu o ancião, esboçando num

sorriso o júbilo que aquela saudação lhe causava. - Entra na choupana do

mísero servo do Senhor e dispõe dele, teu servo, igualmente.

A filha de Helvídio Lucius explicou, então, que se encontrava no

mundo ao desamparo, com um filhinho de poucos dias, abençoando a

hora feliz de bater à porta de um cristão, que, desde aquele instante,

passaria a encarar como um mestre. Desde logo, estabeleceu-se entre

ambos uma cordialidade e um afeto mútuos, tão expressivos, tão puros, que

pareciam radicados na Eternidade.

Ouvindo-lhe a história, o ancião de Minturnes falou-lhe com

brandura e sinceridade:

- Depois de examinar a tua situação, minha filha, hás-de permitir te

assista como um pai ou irmão mais velho, na fé e na experiência. É que,

também, tive uma filha, perdida há pouco tempo, justamente quando

vinha buscá-la para acompanhar-me no meu voluntário e bendito

degredo na África... Parecia-se extraordinariamente contigo e terei grande

ventura se me olhares com a mesma simpatia que me inspiraste. Ficarás

nesta casa o tempo que quiseres, ou necessitares... Vivo só, após uma

existência fértil de prazeres e de amarguras... Antigamente, a afeição de

uma filha ainda me prendia o coração a cogitações mundanas, mas agora

vivo somente na minha fé em Jesus-Cristo, esperando que a sua palavra de

misericórdia me chame breve ao seu reino, para a verificação da minha

indigência!

Sua voz entrecortava-se de suspiros, como se os mais atrozes

padecimentos íntimos lhe azorragassem o coração, ao evocar

reminiscências.

- Há mais de um ano - continuou - aguardo oportunidade para

regressar a Alexandria, mas o deperecimento físico parece advertir-me que

em breve serei forçado a entregar o corpo à terra da Campânia, mau grado

ao desejo de morrer no pouso solitário a que transportei o meu espírito..

Enquanto ele fazia uma pausa, a jovem aventou

despreocupadamente:

- Sois romano, presumo, pelos traços inconfundíveis da vossa

fisionomia patrícia.

Fitando-a bem nos olhos, como se quisesse certificar-se de toda

a pureza e simplicidade dalma da sua interlocutora, o ancião respondeu

pausadamente :

- Filha, tua condição de cristã e a candidez que se irradia de tua

alma obrigam-me a maior sinceridade para contigo!...

Nesta cidade ninguém me conhece, tal como sou !.. Desde o dia

em que me consagrei à instituição cristã da qual participo no Egito

longínquo, chamo-me Marinho para todos os efeitos. Dentro da nossa

comunidade de homens sinceros e crentes, desprendidos dos bens

materiais, fizemos voto solene de renúncia a todas as regalias efêmeras

da Terra, a todas as suas alegrias, de modo a nos unirmos ao Senhor e

Mestre com a compreensão clara e profunda da sua doutrina. Enquanto

os déspotas do Império tramam a morte do Cristianismo, supondo aniquilá50

ANOS DEPOIS Emmanuel

lo com o suplício dos adeptos, fora de Roma organizam-se as forças

poderosas que hão-de agir no futuro, em defesa das idéias sagradas ! Em

todas as Províncias da Ásia e da África os cristãos se articulam em

sociedades pacíficas e laboriosas, e guardam os escritos preciosos dos

Discípulos do Senhor e dos seus seguidores abnegados, protegendo o

tesouro dos crentes para uma posteridade mais piedosa e mais feliz!...

Enquanto Célia o escutava com carinhoso interesse, o ancião de

Minturnes continuava, depois de uma pausa, como que preparando o

próprio pensamento para maior clareza das suas recordações.

- A outrem filha, não poderia confiar o que te revelo esta noite,

levado por um impulso do coração... Talvez meu espírito esteja acercandose

do sepulcro e o Mestre Amado queira advertir, indiretamente, a alma

culpada e dolorida. Há qualquer coisa que me compele a confessar-te o

passado com as suas inquietudes e incertezas... Não poderia explicar-te o

que seja... Sei, apenas, que a inocência do teu olhar de cristã, de filha

piedosa e meiga, faz nascer-me no peito exausto os bens divinos da

confiança!...

Meu verdadeiro nome é Lésio Munácio, filho de antigos guerreiros,

cujos ascendentes se notabilizaram nos feitos da República... Minha

mocidade foi uma esteira longa de crimes e desvios, aos quais se entregou o

meu espírito frágil, visto o desconhecimento do ensino de Jesus... Não

trepidei, noutros tempos, em brandir a espada homicida, disseminando a

ruína e a morte entre os seres mais humildes e desprezados... Auxiliei a

perseguição aos núcleos do Cristianismo nascente, levando mulheres

indefesas ao martírio e à morte, nos dias das festas execráveis !... Ai de mim,

porém !... Mal sabia que um dia ecoaria em meu íntimo a mesma voz divina e

profunda que soou para Paulo de Tarso a caminho de Damasco! Depois

dessa vida aventurosa, casei-me tarde, quando as flores da juventude já

se despetalavam no outono da vida! Antes não o fizesse!... Para conquistar o

afeto da companheira, fui compelido a gastar o impossível, lançando mão de

todos os recursos! Sem preparação espiritual, construí o lar sobre a

indigência mais triste! Em pouco tempo, uma filhinha graciosa vinha

iluminar o âmago escuro das minhas reflexões sobre o destino, mas,

atormentado pelas necessidades mais duras a fim de mantermos em Roma

o nosso padrão de vida social, senti que a pobre esposa, tomada de ilusões,

não beberia comigo o cálice da pobreza e da amargura! Com efeito, em breve

o meu lar estava ultrajado e deserto!...

O questor Flávio Hilas, abusando da amizade e da confiança que eu

lhe dispensava, seduziu minha mulher, desviando-a ostensivamente do

santuário doméstico, para escárnio de minhas esperanças e de meus

sofrimentos... Desejei sucumbir para furtar-me à vergonha, mas o apego à

filhinha me advertia de que esse gesto extremo significava apenas

covardia... Pensei, então, em procurar Flávio Hilas e a esposa infiel, para

trucidá-los sumariamente com um golpe de espada, mas, quando buscava

realizar o sinistro intento, encontrei um velho mendigo junto ao templo de

Serápis, que me estendeu a destra dilacerada, não para implorar esmola,

mas para dar-me um fragmento de pergaminho que tomei sôfrego, como se

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

recebesse secreta mensagem de um amigo. Depois de alguns passos

reconheci com assombro que ali se achavam grafados alguns pensamentos

de Jesus-Cristo e que, depois, vim a saber serem os do Sermão da

Montanha...

Junto a esse hino dos bem-aventurados, estava a participação de

que alguns amigos do Senhor se reuniriam junto dos velhos muros da Via

Salária, naquela noite!... Retrocedi para colher informes do mendigo; não o

encontrei, porém, nem pude jamais obter notícias dele.

Aqueles ensinamentos do Profeta Galileu encheram-me o coração...

Parece que somente nas grandes dores pode a alma humana sentir a

grandeza das teorias do amor e da bondade.. Voltei a casa sem cumprir os

malsinados propósitos, e, considerando a inocência de minha filha,

cujos carinhos infantis me concitavam a viver, fui à assembléia cristã, onde

tive a felicidade de ouvir pregadores valorosos, das verdades divinas.

Lá se congregavam homens sofredores e humilhados, entre os

quais alguns conhecidos meus, que as fúrias políticas haviam atirado ao

sofrimento e ao ostracismo.. Criaturas humildes ouviam a Boa Nova, de

mistura com elementos do patriciado, que as circunstâncias da sorte haviam

conduzido à adversidade... Para todos, a palavra de Jesus constituía um

consolo suave e uma energia misteriosa... Em todos os semblantes, à

claridade triste das tochas, surgia uma expressão de vida nova que se

comunicou ao meu espírito cansado e dolorido... Naquela noite regressei a

casa como se houvera renascido para enfrentar a vida!

No dia seguinte, porém, quando menos o esperava na quietação de

minha alma, eis que um pelotão de soldados me cercava a residência e

conduzia-me ao cárcere, sob a mais injusta acusação... É que, naquela noite,

o inditoso Flávio Hilas fôra apunhalado em misteriosas circunstâncias.

Diante do seu cadáver, minha própria mulher jurou fôra eu o assassino.

Arguida a calúnia, busquei interpor minhas relações de amizade para

recuperar a liberdade e poder cuidar da pobre filha recolhida, então, por

mãos generosas e humildes do Esquilino; mas os amigos responderam-me

que só o dinheiro poderia movimentar, a meu favor, os aparelhos judiciários

do Império, e eu já não o possuía...

Abandonado no cárcere, impossibilitado de justificar-me, visto

haver comparecido à assembléia cristã naquela noite, preferi silenciar a

comprometer os que me haviam proporcionado consolação ao espírito

abatido... Espezinhado nos meus sentimentos mais sagrados, esperei as

decisões da justiça imperial tomado de indefinível angústia. Afinal, dois

centuriões foram notificar-me a sentença iníqua. As autoridades,

considerando a extensão do crime, cassavam-me todos os títulos e

prerrogativas do patriciado, condenando-me à morte, visto o questor

assassinado ter sido homem da confiança de César... Recebi a sentença

quase sem surpresa, embora desejasse viver para servir àquele Jesus, cujos

ensinos grandiosos haviam sido a minha luz nas sombras espessas do

cárcere, e cumprir, igualmente, os deveres paternais para com a filhinha

abandonada pela ternura materna...

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

Esperei a morte com o pensamento em prece, mas, a esse tempo,

existia em Roma um homem justo, pouco mais moço que eu, cujo pai fôra

camarada de infância do meu genitor. Esse homem conhecia o meu caráter

defeituoso, mas leal. Chamava-se Cneio Lucius e foi pessoalmente a Trajano

advogar a causa da minha liberdade. Afrontando as iras de Augusto, não

trepidou em lhe solicitar clemência para o meu caso e conseguiu que o

Imperador comutasse a pena para o banimento da Corte, com a supressão

de todas as regalias que o nome me outorgava...

Enquanto o ancião fazia uma pausa, a jovem começou a chorar

comovidamente, em face da alusão ao avô, cuja lembrança lhe enchia o

íntimo de vivas saudades.

- Uma vez livre - prosseguiu o velho de Minturnes -, aproximei-me

de antigos companheiros que comigo haviam provado do mesmo cálice com

as perseguições de ordem política e que já partilhassem da mesma fé em

Jesus-Cristo.. Banidos de Roma e humilhados, dirigimo-nos à África, onde

fundamos um pouso solitário, não longe de Alexandria, a fim de

cultivarmos o estudo dos textos sagrados e conservar, simultaneamente, os

tesouros espirituais dos apóstolos.

Deixando a Capital do Império, confiei minha única filha a um casal

amigo, cuja pobreza material não lhe deslustrava os sentimentos nobres.

Provendo o futuro da filhinha com todos os recursos ao meu alcance, parti

para o Egito cheio de novos ideais, à luz da nova crença! Nas severas

meditações e austeros exercícios espirituais a que me submeti, cheguei a

olvidar as grandes lutas e penosas amarguras do meu destino !.

O descanso da mente em Jesus aliviou-me de todos os pesares. O

único elo que ainda me prendia à Península era justamente a filha, então já

moça, e cuja afetividade desejava transportar para junto de mim, na África

longínqua... Depois de vinte anos no seio da nossa comunidade, em preces

e meditações proveitosas, solicitei do nosso diretor espiritual a necessária

permissão para recolher um familiar ao nosso retiro. Referi-me a um familiar,

pois desejava convencer minha pobre Lésia de que deveria partir em

minha companhia, em trajes masculinos, considerando o ensino de Jesus

de que existem no mundo os que se fazem eunucos por amor a Deus...

Os estatutos da comunidade não permitem mulheres junto de nós

outros, por decisão de Aufídio Prisco, ali venerado como chefe, sob o

nome de Epifânio... Não era meu propósito menosprezar as leis da nossa

ordem e sim arrebatar a filhinha ao ambiente de seduções desta época de

decadência em que as intenções mais sagradas são colhidas pelos lobos da

vaidade e da ambição, que ululam no caminho... Desejaria conservá-la, junto

de mim, no mais santo dos anonimatos, até que conseguisse modificar as

disposições de Epifânio, acerca dos regulamentos da nossa ordem,

atentas as circunstâncias especiais da minha vida!...

Obtendo a necessária permissão para vir à Península, aqui

aportei há quase dois anos, experimentando a angústia de reencontrar

minha Lésia nos derradeiros instantes de vida... Descrever-te meu

sofrimento com a separação da filha querida, depois de ausente tantos anos

e de haver acariciado tão grandes esperanças, é tarefa superior às minhas

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

forças... Acompanhei-lhe os despojos ao sepulcro, para onde mandei

transportar, pouco depois, os dos carinhosos amigos que lhe haviam

servido de pais, também vitimados pela peste, que, há tempos, flagelou toda

a população de Minturnes!...

Ai de mim, que não mereci senão angústias e tormentos, nas

estradas ásperas da existência, em vista dos meus crimes inomináveis na

juventude!...

Resta-me, contudo, a esperança no amor do Cordeiro de Deus,

cuja misericórdia veio a este mundo arrebatar-nos da humilhação e do

pecado...

Avizinhando-me do túmulo, rogo ao Senhor que me não

desampare... Além do sepulcro, sinto que esplende a luz dos seus

ensinamentos, num

Reino de paz misericordiosa e compassiva ! Certamente, lá me

esperam a filha idolatrada e os amigos inesquecíveis. A terra florescente da

Campânia, pressinto-o, guardará em breve o meu corpo combalido; mas,

além das forças exaustas da vida material, espero encontrar a verdade

consoladora da nossa sobrevivência ! Receberei de boa vontade o

julgamento mais severo, do meu passado delituoso, e, renunciando a todos

os sentimentos pessoais, hei-de aceitar plenamente os desígnios de Jesus

na sua justiça equânime e misericordiosa !.

O ancião de Minturnes falava comovido, com o olhar lúcido, fixo no

Alto, como se estivesse diante de um plenário celeste, com a serenidade da

sua fé robusta e ardente.

Mas, chegando ao termo das confidências dolorosas, observou

que Célia tinha os olhos rasos de lágrimas, a ponto de não poder falar de

pronto, tal a comoção que lhe estrangulava a voz no imo do peito dolorido.

- Porque choras minha filha - ajuntou com brandura -, se a minha

pobre história de velho não te pode interessar diretamente o coração?

A filha de Helvídio não respondeu, dominada pela emoção do

momento, mas o ancião continuava, surpreso e melancólico :

- Acaso terás também uma história amargurada quanto a minha?

Apesar da fé ardente que pressinto em teu espírito, não se justifica tamanha

sensibilidade espiritual na tua idade. Dize, filha, se tens o coração

igualmente tocado por uma úlcera dolorosa... Se as dores te pesam na

alma desiludida, recorda a palavra do Mestre, quando exortava em

Cafarnaum: - "Vinde a mim todos vós que trazeis no íntimo os tormentos do

mundo e eu vos aliviarei..." É verdade que não estás à frente do Messias de

Deus, mas, ainda aqui, deveremos lembrar a lição de Jesus, aceitando o

carinho do Cireneu que o ajudou a carregar a cruz !.

Ele, que era a personificação de toda a energia do amor, não hesitou

em aceitar o amparo de um filho humilde do infortúnio... Também eu sou um

mísero pecador, filho das provações mais ásperas e espinhosas; mas, se

puderes, lê em meu coração e verás que no meu íntimo palpita, por ti, a

afetividade de um pai. Tua presença desperta-me inexplicável e misteriosa

simpatia... Confiei ao teu espírito o que diria somente à filhinha

adorada, que me precedeu nas sombras do túmulo. Se te sentes

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

sobrecarregada dos pesares do mundo, dize-me algo de tuas dores.

Repartirás comigo os teus sofrimentos e a cruz das provas te parecerá

mais leve !..

Ouvindo aquelas exortações carinhosas e espontâneas, que não

mais ouvira desde a morte do avô, cujo nome fôra ali pronunciado pelo

ancião de Minturnes, como um ponto de referência à sua confiança, Célia,

depois de acomodar o pequenino adormecido, sentou-se ao lado do seu

benfeitor, com a intimidade de quem o conhecesse de muito tempo, e, com a

voz entrecortada de reticências da sua emoção profunda, começou a falar:

- Se me tendes chamado filha, permitireis vos beije as mãos

generosas, chamando-vos pai, pelas afinidades mais santas do coração.

Acabastes de invocar um nome que me obriga a chorar de

emoção, no tumulto de recordações também amargas e dolorosas...

Confiarei em vós, qual o fiz sempre ao carinhoso avô, que relembrastes

agradecido. Também eu venho de Roma, pelos mesmos caminhos ásperos

de amargor e sacrifício. Reconhecida à vossa confiança, revelarei

igualmente o meu romance infortunoso, quando a mocidade parecia sorrirme

em plena floração primaveril.

Abandonada e só, receberei, por certo, da vossa experiência nas

estradas da vida o bom conselho que me habilite a fixar-me em qualquer

parte, a fim de cumprir a missão de mãe, junto deste pobre inocentinho!

Desde Roma, venho experimentando a mais atroz necessidade de me

comunicar com um coração afetuoso e amigo, que me possa orientar e

esclarecer. Nas minhas caminhadas encontrei por toda parte homens

impiedosos, que me envolviam com olhares de corrupção e

voluptuosidade.. Alguns chegaram a insultar minha castidade mas

roguei insistentemente a Jesus a oportunidade de encontrar um espírito

benfazejo e cristão, que me fortalecesse!.

Sentindo-se tomada por inexplicável confiança, enquanto o

velhinho de Minturnes a ouvia surpreso, embora a imensa serenidade que

lhe transparecia do olhar a filha de Helvídio Lucius começou a desfiar o seu

romance, cheio de lances intensos e comovedores. Confessando-se neta do

magnânimo Cneio, o que sensibilizou profundamente o interlocutor, narroulhe

todos os episódios da sua vida, desde as primeiras contrariedades de

menina e moça, na Palestina, e terminando a longa narrativa com a visão do

avô, na noite precedente, quando forçada a pernoitar na gruta de Tibério.

Ao concluir, tinha os olhos inchados de chorar, como alguém que

muito se demorara em alijar do coração o peso da amargura.

O ancião alisava-lhe os cabelos, comovidamente, como se o fizesse

a uma filha após longa ausência repleta de saudades angustiosas,

exclamando por fim :

- Minha filha, propondo-me confortar-te, é o teu próprio coração

de menina, nos mais belos exemplos de sacrifício e coragem, que me

consola !. Para mim, que, muitas vezes, agasalhei o mal e extraviei-me no

crime, os sofrimentos da Terra significam a justiça dos destinos humanos;

mas, para o teu espírito carinhoso e bom, as provações terrestres

constituem um heroísmo do Céu!.

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

Deus te abençoe o coração fustigado pelas tempestades do mundo,

antes das florações da primavera.

Das alegrias do Reino de Jesus, Cneio Lucius deverá regozijar-se no

Senhor pelos teus heróicos feitos... Sinto que a sua alma, enobrecida na

prática do bem e da virtude, segue-te os passos como sentinela fidelíssima

!...

Depois de longa pausa, em que Marinho pareceu meditar no futuro

da graciosa companheira, disse paternalmente:

- Enquanto narravas teus padecimentos íntimos, considerava eu a

melhor maneira de ajudar-te neste meu ocaso da vida! Compreendo a tua

situação de jovem abandonada e só, no mundo, com o pesado encargo de

cuidar de uma criancinha acolhida em tão estranhas circunstâncias.

Aconselhar que voltes ao lar, não o posso fazer, conhecendo a rigidez dos

costumes em determinadas famílias do patriciado. Além disso, a casa

paterna considera-te morta para sempre, e a palavra carinhosa de Cneio

Lucius só poderia ter valor inestimável para nós, que lhe compreendemos

o alcance e a sublime revelação. Ante os seus conceitos, temos de admitir a

plena inocência de tua mãe, mas, se regressares a Roma, a aparição

desta noite não bastaria para elucidar todos os problemas da situação,

mantendo-se as mesmas características de suspeição a teu respeito. E tu

sabes que entre a dúvida e a verdade é sempre melhor o sacrifício, pois a

verdade é de Jesus e vencerá tão logo a sua misericórdia julgue a vitória

oportuna.

Velho conhecedor dos nossos tempos de decadência e

desmantelos morais, sei que, ante a tua juventude, quase todos os homens

moços, cheios de materialidade, se curvarão com ignominiosas propostas.

A destruição do meu lar será sempre um atestado vivo das misérias morais

da nossa época.

Ponderando as tuas dificuldades, desejo salvar-te o coração de

todos os perigos, evitando-te as ciladas dos caminhos insidiosos;

entretanto, a enfermidade e a decrepitude não me possibilitam mais a tua

defesa... Em Minturnes, quase todos me odeiam gratuitamente, em virtude

das idéias que professo. Um cristão sincero, por muito tempo ainda, terá de

sofrer a incompreensão e a tortura dos algozes do mundo, e somente não

me levam ao sacrifício, nas festas regionais que aqui se efetuam, atenta

a minha velhice avançada e dolorosa, de rugas e cicatrizes... Apresentar um

velho mísero às feras potentes ou ao exercício dos atletas da devassidão e

da impiedade, poderia parecer entranhada covardia, razão pela qual me

julgo poupado.

Não possuo, pois, nenhuma relação de amizade que te possa valer

neste transe.

Lembra-te de que, ainda agora, eu te falei do meu antigo

projeto de levar a filha ao Egito, em trajes masculinos, de modo a arrebatá-la

deste antro de corrupção e impenitência. Esse gesto de um pai é bem de um

coração amoroso, em franco desespero quanto ao porvir espiritual desta

região da iniqüidade.

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

Contemplando a tua inerme juventude carregada de tão nobres

sacrifícios, receio pelos teus dias futuros mas rogo a Jesus que nos

esclareça o pensamento.

Após alguns minutos de recolhimento, a jovem retrucou:

- Mas, meu desvelado amigo, não me considerais como vossa

própria filha?.

O ancião de Minturnes, no clarão sereno dos grandes olhos, deixou

transparecer que entendera a alusão e revidou bondosamente:

- Compreendo; filha, o alcance de tuas palavras, mas, estarás

sinceramente decidida a mais esse nobre sacrifício ?

- Como não, se em torno de mim surgem as mais temerosas

perseguições?

- Sim, tuas ações nobilíssimas dão-me a entender que devo confiar

nas tuas resoluções. Pois bem; se teu espírito se sente disposto à luta pelo

Evangelho, não vacilemos em preparar-te as estradas porvindouras! Ficarás

nesta casa pelo tempo que desejares, se bem esteja convicto de que não

tardará muito a minha viagem para o Além. Amanhã mesmo entrarás nos

teus novos trajes, a fim de facilitar a tua ida para a África, no momento

oportuno. Serás "meu filho" aos olhos do mundo, para todos os efeitos.

Chamarei amanhã a esta casa o pretor de Minturnes, a fim de que ele cuide

da tua situação legal, caso eu venha a falecer. Tenho o dinheiro

necessário para que te transportes a Alexandria e, antes de morrer, deixarte-

ei uma carta apresentando-te a Epifânio, como meu sucessor legítimo na

sede da nossa comunidade. Lá, tendo empregadas todas as derradeiras

economias que consegui retirar de Roma nos tempos idos, é possível que

não te criem embaraços para que te entregues a uma vida de repouso

espiritual na prece e na meditação, durante os anos que quiseres.

Epifânio é um espírito enérgico e algo dogmático em suas

concepções religiosas, mas tem sido meu amigo e meu irmão por largos

anos, durante os quais as mesmas aspirações nos uniram nesta vida. As

vezes, costuma ser ríspido nas suas decisões, caracterizando tendências

para o sacerdócio organizado, que o Cristianismo deve evitar com todas as

suas forças, para não prejudicar o messianismo dos apóstolos do Senhor;

mas, se algum dia fores ferida por suas austeras resoluções de chefe,

lembra-te de que a humildade é o melhor tesouro da alma, como chavemestra

de todas as virtudes e recorda a suprema lição de Jesus nos braços

do madeiro!.. Em todas as situações, a humildade pode entrar como

elemento básico de solução para todos os problemas!...

- Sim, meu amigo, sinto-me abandonada e só no mundo e temo o

assédio dos homens pervertidos. Jesus me perdoará a decisão de adotar

outros trajes aos olhos dos nossos irmãos da Terra, mas, na sua bondade

infinita, sabe ele das necessidades prementes que me compelem a tomar

essa insólita atitude. Além do mais, prometo, em nome de Deus, honrar a

túnica que vestirei, possivelmente, em Alexandria, a serviço do

Evangelho... Levarei comigo o filhinho que o Céu me concedeu, e suplicarei

a Epifânio me permita velar por ele sob o céu africano, com as bênçãos de

Jesus !

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

Que o Mestre te abençoe os bons propósitos, filha.... - respondeu

o ancião com uma expressão de júbilo sereno.

Ambos se sentiam dominados por intensa alegria íntima, como se

fossem duas almas profundamente irmanadas de outros tempos, num

reencontro feliz, depois de prolongada ausência.

Já os galos de Minturnes saudavam os primeiros clarões da

madrugada. Beijando as mãos do velho benfeitor, com os olhos rasos de

lágrimas, a jovem patrícia buscou, desta vez, o repouso noturno com a alma

satisfeita, sem as angustiosas preocupações do dia seguinte agradecendo

a Jesus com a oração do seu amor e do seu reconhecimento.

No outro dia, a gente pobre daquele arrabalde de Minturnes ficou

sabendo que um filho do ancião chegara de Roma para assistir-lhe os dias

derradeiros.

Aproveitando os trajes antigos, que o seu benfeitor lhe

apresentava para resolver a situação, Célia não hesitou em tomar o novo

indumento, por fugir à perseguição irreverente de quantos poderiam

abusar da sua fragilidade feminina.

O velho Marinho apresentava-a aos raros vizinhos que se

interessavam pela sua saúde, como sendo um filho muito caro, e explicando

que ele enviuvara recentemente, trazendo o netinho para iluminar as

sombras da sua desolada velhice.

A filha dos patrícios, travestida agora pela força das

circunstâncias num garboso rapaz imberbe, ocupava-se carinhosamente

de todos os serviços domésticos, buscando servir ao ancião generoso com

a mais desvelada solicitude.

Um fato, porém, veio impressionar amargamente o coração

sensível de Célia. Fôsse pelo trato deficiente que recebera até ali, ou pelas

privações suportadas em tantas milhas de caminho, o pequenito começou a

definhar, apresentando em breve todos os sintomas de morte inevitável.

Debalde o ancião empregou todos os recursos ao seu alcance, para

assegurar a vida bruxuleante do inocentinho.

Tocada nas fibras mais sensíveis do seu coração, em virtude

das revelações do avô, quanto à personalidade de Ciro, a jovem sentiu no

íntimo dorido a repercussão dilatada de todos os padecimentos físicos do

pequenino. Desejava amparar-lhe a existência com todas as energias do seu

espírito dilacerado, operar um milagre com todas as suas forças afetuosas

para arrebatá-lo às garras da morte, mas em vão misturou lágrimas e

preces nos seus arrebatamentos emotivos.

Contemplando-lhe a agonia, a criança parecia falar-lhe à alma

carinhosa e sensível, com o olhar cintilante e profundo, no qual

predominavam as expressões de uma dor estranha e indefinível.

Por fim, após uma noite de insônia dolorosa, Célia rogou a Jesus

fizesse cessar, na sua misericórdia, aquele quadro de intensa amargura.

Cheia de fé, rogava ao Cordeiro de Deus que reconduzisse o seu bem-amado

ao plano espiritual, se esses eram os seus desígnios inescrutáveis. Ela, que

tanto o amava e tanto se havia sacrificado para conservar-lhe a luz da vida,

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

estaria conformada com as decisões do Alto, como no dia em que o vira

marchar para o sacrifício, exposto à perversidade dos homens impiedosos.

Como se fôra ouvida a sua rogativa dolorosa, cheia de lágrimas de

fé e esperança na bondade do Senhor, o inocentinho fechou os olhos da

carne, para sempre, ao desabrochar da alvorada, como se o seu coração

fosse uma andorinha celeste que, receosa das invernias do mundo,

remontasse célere ao Paraíso.

Sobre o corpinho enrijecido, a filha de Helvídio carpiu a sua dor

intraduzível, com lágrimas ardentes, experimentando a amargura das

suas esperanças desfeitas e dos seus sonhos maternos desmoronados...

Todavia, a palavra sábia e evangélica do ancião de Minturnes ali

estava para reerguê-la de todos os abatimentos e, depois da hora

angustiada da separação, ela buscou entronizar a saudade no santuário de

suas preces humildes e fervorosas.

Sim, seu coração carinhoso sabia que Jesus não desampara,

nunca, o espírito das ovelhas tresmalhadas nos abismos do mundo e,

refugiando-se na oração, esperou que viessem do Alto todos os recursos

espirituais necessários ao seu reconforto. Os vizinhos humildes

impressionavam-se, sobremaneira, com aquele rapaz, de cujo semblante

delicado irradiava-se uma terna simpatia, de mistura à tristeza inalterável,

que tocava a sua personalidade de singulares encantos..

Uma noite serena, quando a alma cariciosa da Natureza se havia

plenamente aquietado, Célia recolheu-se depois do serão habitual com o

generoso velhinho, que lhe era como um pai devotado pelo coração,

sentindo que força estranha lhe adormentava o cérebro exausto e dolorido.

Dentro em pouco, sem se dar conta da surpresa e do

aturdimento, viu-se diante de Ciro, que lhe estendia as mãos carinhosas,

com um olhar de súplica e reconhecimento intraduzível.

- Célia - começou por dizer suavemente, enquanto ela se

concentrava em doce emoção para ouvi-lo -, não renegues o cálice das

provações redentoras, quando as mais puras verdades nos felicitam o

coração !. Depois de algum tempo na tua companhia, eis-me de novo

aqui, onde devo haurir forças novas para recomeçar a luta !.. Não

entristeças com as circunstâncias penosas da nossa separação pelas

sendas escuras do destino. És minha âncora de redenção, através de todos

os caminhos! Jesus na infinita extensão de sua misericórdia, permitiu que a

tua alma, qual estrela do meu espírito, descesse das amplidões sublimes

e radiosas para clarificar meus passos no mundo. Luz da abnegação e do

martírio moral, que salva e regenera para sempre!...

Se as mãos sábias e justas de Deus me fizeram regressar aos

planos invisíveis, regozijemo-nos no Senhor, pois todos os sofrimentos são

premissas de uma ventura excelsa e imortal ! Não te entregues ao desalento,

porque, antigamente, Célia, meu espírito se tingiu de luto quase perene, no

fausto de um tirano ! Enquanto brilhavas no Alto como um astro de amor

para o meu coração cruel, decretava eu a miséria e o assassínio! Abusando

da autoridade e do poder, da cultura e da confiança alheias, não trepidei em

destruir esperanças cariciosas, espalhando o crime, a ruína e a desolação

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

em lares indefesos! Fui quase um réprobo, se não contasse com o teu

espírito de renúncia e dedicação ilimitadas ! Ao passo que eu descia,

degrau a degrau, a escada abominável do crime, no pretérito longínquo e

doloroso, teu coração amoroso e leal rogava ao Senhor do Universo a

possibilidade do sacrifício!...

E, sem medir as trevas agressivas e pavorosas que me cercavam,

desceste ao cárcere de minhas impenitências !... Espalhaste em torno da

minha miséria o aroma sublime da renúncia santificante e eu acordei para os

caminhos da regeneração e da piedade ! Tomaste-me das mãos, como se o

fizesses a uma criança desventurada, e ensinaste-me a erguê-las para o

Alto, implorando a proteção e misericórdia divinas! Já de alguns séculos teu

espírito me acompanha com as dedicações santificadas e supremas ! É que

as almas gêmeas preferem chegar juntas às regiões sublimes da Paz e da

Sabedoria, e, dentro do teu amor desvelado e compassivo, não hesitaste

em me estender as mãos dedicadas e generosas, como estrela que

renunciasse às belezas do céu para salvar um verme atolado num pântano,

em noite de trevas perenes.

E acordei, Célia, para as belezas do amor e da luz e, não contente

ainda, por me despertares, me vens auxiliando a resgatar todos os débitos

onerosos..

Teu espírito, carinhoso e impoluto, não vacilou em sustentar-me,

através das estradas pedregosas e tristes que eu havia traçado com a

minha ambição terrível e desvairada! Tens sido o ponto de referência para

minha alma em todos os seus esforços de paz e regeneração, na reconquista

das glórias espirituais. Ao teu influxo pude testemunhar minha fé, no circo

do martírio, selando, pela primeira vez, minha convicção em prol da

fraternidade e do amor universal! Por ti, desterro de mim o egoísmo e o

orgulho, sustentando todas as batalhas íntimas, na certeza da vitória!

Voltando ao mundo, fui novamente arrebatado dos teus braços

materiais, em obediência às provas ríspidas que ainda terei que sustentar

por largo tempo! Jesus, porém, que nos abençoa do seu trono de luz e

misericórdia, de perdão e bondade infinita, permitirá que eu esteja

contigo nos teus testemunhos de fé e humildade, destinados à exaltação

espiritual de todos os seres bem-amados que gravitam na órbita dos nossos

destinos! E se Deus abençoar minhas esperanças e minhas preces sinceras,

voltarei de novo para junto do teu coração, nas lutas ásperas.... Espera e

confia sempre!.

Na sua magnanimidade indefinível, permite o Senhor possamos voltar

dos caminhos almos do túmulo, para consolar os corações ligados ao nosso

e ainda retidos nos tormentos da carne... Somente lá, nas moradas do

Senhor, onde a ventura e a concórdia se confundem, poderemos

repousar no amor grande e santo, marchando de mãos dadas para os

triunfos supremos, sem as inquietações e provas rudes do mundo!.

Por muito tempo a voz cariciosa de Ciro falou-lhe ao coração,

propiciando-lhe ao espírito sensível as mais santas consolações e as mais

doces esperanças ! No auge do seu deslumbramento espiritual, a jovem

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

cristã experimentou as mais comovedoras alegrias, desejando que aquele

minuto glorioso se prolongasse ao infinito...

Quando a palavra do bem-amado parecia finalizar com um brando

estacato, em vibrações silenciosas e profundas, Célia rogou-lhe que a

acompanhasse em todos os seus lances terrestres, implorando-lhe

assistência e proteção em todas as circunstâncias da vida; confiou-lhe

seus pesares mais secretos e angustiosas expectativas, quanto à nova

situação, mas Ciro parecia sorrir-lhe bondosamente, prometendo-lhe carinho

incessante, através de todos os percalços e reafirmando a sua confiança no

amparo do Senhor, que não haveria de abandoná-los...

No dia seguinte, ei-la reanimada, deixando transparecer no

semblante a serenidade íntima do seu espírito.

O velhinho notou, com alegria, aquela mudança e, como se

estivesse em preparativos constantes para a jornada do túmulo, não

perdeu o ensejo para esclarecer a jovem sobre os problemas que a

esperavam na vida solitária de Alexandria. Com solicitude extrema, davalhe

notícia de todos os pormenores da vida nova a encetar, fornecendo-lhe

o nome de antigos companheiros de fé e dando conta de todos os

costumes da comunidade.

Célia em trajes masculinos, ouvia-lhe a palavra carinhosa e

benevolente, com o desejo íntimo de prolongar indefinidamente aquela

vida bruxuleante, de modo a nunca mais separar-se daquele coração

bondoso e amigo; mas, ao revés de suas mais caras esperanças, o estado

do ancião agravou-se repentinamente. Todos os esforços foram baldados

para lhe restituir o "hônus vital" do plano físico e, assistido pela jovem, que

tudo fazia por vê-lo restabelecido, o velho Marinho recebeu a visita do pretor

da cidade, que, cedendo a instantes pedidos, vinha receber-lhe as

derradeiras recomendações.

Apresentando a jovem como filho, o moribundo ordenou que lhe

fossem entregues todas as suas parcas economias, antecipando que ele

deveria partir para a África, tão logo se verificasse o seu óbito.

- Marinho - interpelou a autoridade, depois das necessárias

anotações -, será possível que este jovem participe das tuas superstições?

O generoso velhinho compreendeu o alcance da pergunta e

respondeu com desassombro:

- De mim e por mim, não precisaremos cogitar das convicções

religiosas, aqui de todos conhecidas, desde que entrei nesta casa! Sou

cristão e saberei morrer, íntegro, na minha fé !. Quanto a meu filho, que

deverá partir para Alexandria, a fim de amparar nossos interesses

particulares, tem o espírito livre para escolher a idéia religiosa que mais lhe

aprouver.

O pretor olhou com simpatia para o jovem triste e abatido, e

exclamou :

- Ainda bem !.

Despedindo-se do moribundo, cujos instantes de vida pareciam

prestes a extinguir-se, a autoridade deixava-os ambos com a precisa

liberdade para trocarem as derradeiras impressões.

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

Marinho fez ver, então, à sua pupila, que aquela resposta hábil

destinava-se a fazer que o pretor de Minturnes lhe cumprisse a vontade,

sem relutância, dentro dos dispositivos legais, recomendando-lhe todas as

providências que a sua morte exigiria da sua inexperiência. Célia ouvia-lhe

as exortações roucas e entrecortadas, extremamente acabrunhada mas,

como em todas as penosas circunstâncias da sua vida, confiava em Jesus.

Após uma agonia excruciante de longas horas, em que a filha de

Helvídio viveu momentos de indescritível emoção, o generoso Marinho

abandonava o mundo, depois de longa existência, povoada de pesadelos

terríveis e dolorosos. Seus olhos se fecharam para sempre, com uma

lágrima, ao tombar do dia. Piedosamente, diante de alguns raros

assistentes, Célia fechou-lhe as pálpebras, num gesto carinhoso, e,

ajoelhando-se, como se quisesse transformar as brisas da tarde em

mensageiras dos seus apelos ao Céu, deixou que o coração se diluísse em

lágrimas de saudade, suplicando a Jesus recebesse o benfeitor no seu reino

de maravilhas, concedendo-lhe um recanto de paz, onde a alma exausta

lograsse esquecer as tormentas dolorosas da existência material.

Dada a sua qualidade de cristão confesso, o velho de Minturnes

teve uma sepultura mais que singela, que a filha do patrício encheu com as

flores do seu afeto e mergulhando na sombra de uma soledade quase

absoluta.

Dentro de poucos dias, o pretor entregou-lhe a pequena soma, que

Marinho lhe deixava, um pouco mais que o suficiente para a viagem em

demanda da África distante. E, numa radiosa manhã de primavera,

carregando no íntimo a sua serenidade triste e inalterável, a moça cristã,

depois de uma prece longa e angustiosa sobre os túmulos humildes do

pequenino e do ancião, na qual lhes rogava proteção e assistência, tomou o

lugar que lhe competia numa galera napolitana que periodicamente recebia

passageiros para o Oriente.

Sua figura triste, metida em roupas masculinas, atraía a atenção de

quantos lhe faziam companhia eventual no grande cruzeiro pelo

Mediterrâneo, mas, profundamente desencantada do mundo, a jovem se

mantinha em silêncio quase absoluto.

O desembarque em Alexandria verificou-se sem incidentes dignos

de menção. Todavia, seguindo as recomendações do benfeitor, junto dos

seus conhecidos da cidade, viera a saber que o monastério demorava a

algumas milhas de distância, pelo que houve de tomar um guia até o local do

seu recolhimento.

O mosteiro, isolado, distava da cidade dez léguas mais ou menos,

em marcha de quase um dia apesar dos bons cavalos atrelados ao veículo.

A filha de Helvídio defrontou o grande e silencioso edifício na hora

crepuscular, empolgada pela visão do casario amplo, entre a vegetação

agreste. Sentiu, porém, um singular descanso mental naquela soledade

imponente que parecia acolher todos os corações desolados.

Puxando o cordel que ligava o portão de entrada, ouviu, ao longe,

os sons de pesada sineta, cujo ruído estranho parecia despertar um gigante

adormecido.

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

Daí a instantes, os velhos gonzos rangiam pesadamente, deixando

entrever um homem trajado com uma túnica cinzento-escura, semblante

grave e triste, que interpelava a jovem transformada num rapaz de fisionomia

tristonha, nestes termos :

- Irmão, que desejais do nosso retiro de meditação e oração?

- Venho de Minturnes e trago uma carta de meu pai, destinada ao Sr.

Aufídio Prisco.

- Aufídio Prisco ? - perguntou o porteiro admirado.

- Não é ele, aqui, o vosso superior?

- Referi-vos ao pai Epifânio?

- Isso mesmo.

- Escutai-me - ponderou o irmão porteiro complacente -, sois,

porventura, o filho de Marinho, o companheiro que daqui partiu há cerca de

dois anos, a fim de vos trazer ao nosso recolhimento ?

- É verdade. Meu pai chegou, há muito tempo, aos portos da Itália,

onde nos encontramos, todavia, sempre doente, não logrou a ventura de

acompanhar-me à soledade das vossas orações.

- Morreu? - revidou o interlocutor extremamente admirado.

- Sim, entregou a alma ao Senhor, há muitos dias.

- Que Deus o tenha em sua santa guarda!

Dito isso, pôs-se a meditar um instante, como se tivesse o

pensamento mergulhado em preces fervorosas.

Em seguida, contemplou com muita ternura o jovem humilde e

triste, exclamando significativamente :

- Agora que já sei donde vindes e quem sois, eu vos saúdo em

nome de Nosso Senhor Jesus-Cristo !

- Que o Mestre seja louvado – respondeu a filha de Helvídio

Lucius, com os seus modos singelos.

- Não haveis de reparar vos tenha recebido com prudência, à

primeira vista... Atravessamos uma fase de intensas e amarguradas

perseguições, e os servos do Senhor, no estudo do Evangelho, devem ser

os primeiros a observar se os lobos chegam ao redil com vestes de cordeiro.

- Compreendo...

- Não desejo aborrecer-vos com indagações descabidas, mas,

pretendeis adotar a vida monástica?

- Sim - respondeu a jovem timidamente -, e, assim procedendo, não

só obedeço a uma vocação inata, como satisfaço a uma das maiores

aspirações paternas.

- Estais informado das exigências desta casa?

- Sim, meu pai mas revelou antes de morrer.

O irmão porteiro deitou o olhar para todos os lados e,

observando que se encontravam a sós, exclamou em voz discreta:

- Se trazeis a esta casa uma vocação pura e sincera, acredito que

não tereis dificuldade em observar as nossas disciplinas mais rígidas;

contudo, devo esclarecer-vos que pai Epifânio, como diretor desta

instituição, é o espírito mais ríspido e arbitrário que já conheci na minha

vida. Este retiro de oração é o fruto de uma experiência que ele começou

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

com o vosso digno pai, há mais de vinte anos. A princípio, tudo ia bem,

mas, nos últimos anos, o velho Aufídio Prisco vem abusando largamente da

sua autoridade, máxime depois da partida do Irmão Marinho para a Itália. Daí

para cá, pai Epifânio tornou-se despótico e quase cruel. Aos poucos vai

transformando este pouso do Senhor em caserna de disciplina militar, onde

ele recebeu a educação dos primeiros anos.

A neta de Cneio Lucius ouvia-o profundamente admirada.

Pela amostra da portaria, seu espírito observador compreendeu,

de pronto, que o retiro dos filhos da oração estava igualmente repleto

das intrigas mais penosas.

Todavia, enquanto coordenava as suas considerações íntimas, o

Irmão Filipe continuava:

- Imaginai que o nosso superior vem transformando a ordem de

todos os ensinamentos, criando as mais incríveis extravagâncias religiosas.

Em contraposição aos ensinamentos do Evangelho, obriga-nos a chamar-lhe

"pai" ou "mestre", nomes que o próprio Jesus se negou a aceitar na sua

missão divina. Além de inventar toda a sorte de trabalhos para os quarenta

e dois homens desencantados do mundo que estacionam aqui, vem

aplicando as lições de Jesus à sua maneira. Se bem nada possamos revelar

lá fora, a bem do caráter cristão da nossa comunidade, é lastimável

observar que todo o recinto está cheio de símbolos que nos recordam as

festividades materiais dos deuses cruéis. E nada poderemos dizer em tom

de crítica ou de censura, porquanto o pai Epifânio manda em nós como um

rei.

A jovem ainda não conseguira manifestar a sua opinião, dada a

fluência com que o porteiro discorria, quando lhes chegou o ruído de uns

passos fortes que se aproximavam, Filipe calava-se, como quem já estivesse

habituado a cenas como aquelas, e, modificando a expressão fisionômica,

exclamou com voz abafada :

-É ele!...

Célia, metida nos seus trajes estranhos e pobres, não conseguiu

dissimular o espanto.

No limiar de uma porta ampla, surgia a figura de um velho

septuagenário, cujos caracteres fisionômicos apresentavam a mais profunda

expressão de convencionalismo e orgulhosa severidade. Vestia-se como um

sacerdote romano nos grandes dias dos templos politeístas e, apoiado a

uma bengala expressiva, passeava por toda parte o olhar fulgurante, como

a procurar motivos de irritação e desagrado.

- Filipe ! - exclamou ele em tom intempestivo.

- Mestre - exclamou o irmão da portaria, com a mais fingida

humildade -, apresento-vos o filho de Marinho, que o seu coração de pai não

pôde acompanhar até aqui, dada a surpresa da morte, em Minturnes.

Ouvindo aquele esclarecimento inesperado, Epifânio caminhou

para o jovem que lhe era inteiramente desconhecido, pronunciando quase

secamente a saudação evangélica, como se fôra um leão utilizando a

legenda de um cordeiro :

- Paz em nome do Senhor!

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

Célia respondeu, conforme o seu venerando amigo lhe havia

ensinado antes da morte, entregando ao superior da comunidade a carta

paternal.

Depois de passar rapidamente os olhos pelo pergaminho,

Epifânio acentuou com austeridade :

- Marinho deve ter morrido com todo o seu idealismo de cigarra.

E como se houvera pronunciado aquele conceito tão somente

para si mesmo, acrescentou com a sua expressão severa, dirigindo-se à

jovem:

- Desejas, de fato, permanecer aqui?

- Sim, meu pai - respondeu o suposto rapaz, entre tímido e

respeitoso. - Continuar as tradições de meu pai foi sempre o meu desejo,

desde a infância.

Aquele tom humilde agradou a Epifânio, que lhe falou menos

agressivo:

- Sabes, porém, que a nossa organização é constituída de cristãos

convertidos, que possam cooperar em nossos esforços não somente com o

valor espiritual, mas também com os recursos financeiros imprescindíveis

às nossas realizações ? Teu pai não te deixou pecúlio algum, após haver

baixado ao sepulcro em Minturnes?

- Minha herança cifrou-se, apenas, ao capital indispensável à

viagem até Alexandria. Entretanto - acentuou inocentemente -, meu pai

revelou-me, há tempos, que a sua pequena fortuna foi empregada aqui,

asseverando-me que a administração da casa saberia acolher-me,

recordando os seus serviços.

- Ora - revidou Epifânio, evidenciando contrariedade -, fortuna por

fortuna, todos os que descansam neste retiro tiveram-na no mundo,

trazendo os seus melhores valores para esta casa.

- Mas meu pai - implorou Célia com sincera humildade -, se existem

aqui os que descansam, devem existir igualmente os que trabalham. Se não

tenho dinheiro, tenho forças para servir a instituição nalguma coisa. Não me

negueis a realização de um ideal tanto tempo acariciado.

O superior parecia comovido, revidando com ênfase:

- Está bem. Farei por ti quanto estiver ao meu alcance.

E mandando Filipe ao interior, em busca de um grande livro de

apontamentos, iniciou minucioso interrogatório:

- Seu nome?

- O mesmo de meu pai.

- Onde nasceu?

- Em Roma.

- Onde recebeu o batismo?

- Em Minturnes.

E após as detalhadas inquirições, Epifânio falou-lhe ríspido,

investido na sua austera superioridade :

- Atendendo à tua vocação e à memória de um velho companheiro,

ficarás conosco, laborando nos serviços da casa. Quero, contudo,

esclarecer-te que, aqui dentro, faço cumprir rigorosamente o Evangelho do

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

Senhor, de acordo com a minha vontade, inspirada do Alto. Depois de

muitos anos de experiência, reconheci que o pensamento evangélico terá de

organizar-se segundo as leis humanas, ou não poderá sobreviver para a

mentalidade do futuro. Os cristãos de Roma, como os da Palestina,

padecem de uma hipertrofia de liberdade que os leva, instintivamente, à

disseminação de todos os absurdos. Aqui, todavia, a disciplina cristã haverá

de caracterizar-se pela abdicação total da própria vontade.

A jovem escutou-o serenamente, guardando no íntimo as suas

impressões particulares, de quanto lhe era dado observar, enquanto Epifânio

a encaminhava ao interior, apresentando-a aos demais companheiros.

Transformada no Irmão Marinho, Célia passou a viver a sua vida

nova, singular e desconhecida.

O mosteiro vasto onde se reuniam mais de quatro dezenas de

cristãos ricos, desiludidos dos prazeres do mundo, era bem um dos

pontos de partida do segundo século para o Catolicismo e para o

sacerdócio organizado sobre bases econômicas, eliminativas de todas as

florações do messianismo.

Reparou que ali não mais havia a simplicidade das catacumbas. A

simbologia pagã parecia invadir todos os departamentos da casa. Aqueles

romanos convertidos não dispensavam as fórmulas de oração aos seus

antigos deuses. Por toda parte pendiam cruzes grandes e pequenas,

talhadas em mármores ou madeira, esculturadas em moldes diversos. Havia

salas de preces em que repousavam imagens do Cristo, de marfim e de cera

prateada, dormindo inertes entre verdadeiros tufos de rosas e violetas. O

culto exterior do politeísmo parecia redivivo, indestrutível e inelutável. Para a

sua manutenção, notava ela a mesma intriga dos padres flamíneos, de

Roma, figurando-se-lhe que o Evangelho, ali, constituía mero pretexto para

galvanizar as crenças mortas.

O espírito formalista de Epifânio buscara dotar o estabelecimento

de todas as convenções imprescindíveis.

Um sino anunciava a mudança das meditações, a hora do trabalho,

das preces, das refeições, e o tempo destinado ao repouso do espírito.

O sentido de espontaneidade da lição do Senhor no Tiberíades, por

conciliar a possibilidade e a necessidade dos crentes, havia desaparecido.

A convenção implacável de Epifânio regulamentava todos os serviços.

O mais interessante é que, naqueles monastérios remotos da África

e da Ásia, onde se acolhiam os cristãos receosos das perseguições

inflexíveis da Metrópole, já existiam as famosas horas do Capítulo, isto é, a

reunião íntima de todos os membros da comunidade, para repasto das

intrigas e dos pontos de vista individuais.

Célia estranhou que, dentro de um instituto cristão por excelência,

pudessem vigorar aberrações como essa que vinha diretamente dos

colégios romanos, onde pontificavam sacerdotes flamíneos ou vestais; mas

era obrigada a aceitar as ordens superiores, sem deixar transparecer o seu

desencanto. Condenando, embora, tais manifestações nocivas do culto

exterior, a filha de Helvídio em breve conquistaria a admiração e confiança

de todos, pela retidão do proceder, a evidenciar os mais elevados atos de

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

humildade e compreensão do Evangelho. De trato ameníssimo, com o

amavio das suas palavras carinhosas e amigas, o Irmão Marinho

transformava-se no ímã de todas as atenções, edificando as afeições mais

puras naquele convívio singular.

Contudo, alguém havia ali que guardava o mais venenoso

despeito em face da sua vida pura. Esse alguém era Epifânio, cujo espírito

despótico e original, se habituara a mandar em todos os corações, com

brutalidade e aspereza. A circunstância de nada encontrar no filho do antigo

companheiro, que merecesse censura, irritava-lhe o espírito tirânico. Nas

horas do Capítulo, observava que as opiniões do Irmão Marinho triunfavam

sempre, pela sublime compreensão de fraternidade e de amor, de que

davam pleno testemunho. A jovem, porém, não obstante estranhar-lhe as

atitudes, não podia definir os gestos rudes do superior, dentro da sua

candidez espiritual.

Certo dia, na hora consagrada às intrigas e devassas, que

antecederam, no Catolicismo, o instituto da confissão auricular, cheio de

austeridade e artificialismo, Epifânio fez longa preleção sobre as tentações

do mundo, dizendo dos seus caminhos abomináveis e das trevas que

inundavam o coração de todos os pecadores, envolvendo todas as coisas da

vida na sua condenação e na sua fúria religiosa.

Terminada a palestra fanática, solicitou, ao modo das primeiras

assembléias cristãs, que todos os irmãos se pronunciassem sobre a

preleção, mas, enquanto todos aprovavam os conceitos, irrestritamente,

Célia, na sua inocente sinceridade, replicou :

- Mestre Epifânio, vossa palavra é extremamente respeitável para

quantos laboram nesta casa, mas, peço licença para ponderar que Jesus

não deseja a morte do pecador... Suponho justo que nos refugiemos neste

retiro, até que passe a onda sanguinária das perseguições aos adeptos do

Cordeiro ; todavia, amainada a tempestade, acho imprescindível que

regressemos ao mundo, mergulhando-nos em suas lutas dolorosas,

porque, sem esses campos de sofrimento e trabalho, não poderemos dar o

testemunho da nossa fé e da nossa compreensão do amor de Jesus.

O diretor espiritual lançou-lhe um olhar sombrio, enquanto toda a

assembléia parecia satisfeita com a oportunidade daquele esclarecimento.

- No próximo Capítulo prosseguiremos, então, com os mesmos

estudos - disse Epifânio em tom quase rude visivelmente contrariado com o

argumento irretorquível, apresentado contra a sua inovação despótica, em

detrimento dos ensinamentos evangélicos.

No dia seguinte, o Irmão Marinho foi chamado ao gabinete do

superior, que lhe dirigiu a palavra nestes termos :

- Marinho, nosso Irmão Dioclécio, provedor desta casa há mais

de dez anos, encontra-se alquebrado, doente, e eu preciso confiar esse

encargo a alguém, cuja noção de responsabilidade me dispense de

sindicâncias e cuidados especiais. Dessarte, de amanhã em diante, ficarás

com o encargo de ir ao mercado mais próximo, duas vezes por semana, de

modo a cuidares convenientemente das pequenas provisões do mosteiro.

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

A jovem acolheu a recomendação, agradecendo a confiança a ela

deferida e, com semelhante providência, a palavra de Epifânio, nos dias do

Capítulo, já não seria perturbada pelas suas observações simples e

portadoras dos melhores esclarecimentos evangélicos.

O mercado distava três léguas do convento, porquanto estava

situado numa grande povoação na estrada de Alexandria. Desse modo,

em sua caminhada a pé, sobraçando dois cestos enormes, a filha de

Helvídio era obrigada a pernoitar na única estalagem ali existente, visto ter

de esperar a parte da manhã seguinte, quando o mercado exibia os seus

produtos.

Aquelas jornadas semanais cansavam-na sobremaneira, a

princípio; mas, pouco a pouco, foi-se habituando ao novo imperativo de

suas obrigações. Aproveitando a solidão dos caminhos para os melhores

exercícios espirituais, não só relia velhos pergaminhos que continham os

princípios do Evangelho e as narrativas dos Apóstolos, como exercitava as

mais sadias meditações, nas quais deixava o coração evolar-se em preces

cariciosas ao Senhor.

No mosteiro todos os irmãos respeitavam-na. Por seus atos e

palavras, ela centralizava os afetos gerais, que lhe cercavam o espírito de

consideração e de amor desvelado...

Três anos passaram, sem que um só dia desse prova de desânimo

ou de revolta, de indecisão ou de amargura, consolidando cada vez mais as

suas tradições de virtude irrepreensível.

Na povoação mais próxima, igualmente, onde os serviços do

mercado a convocavam ao cumprimento do dever, todos lhe apreciavam os

generosos dotes dalma, mormente na hospedaria em que pernoitava duas

vezes por semana.

Acontece, porém, que Menênio Túlio, o hospedeiro, tinha uma filha

de nome Brunehilda, que reparara os belos traços fisionômicos do Irmão

Marinho, tomada de singulares impressões. Embalde se ataviava para lhe

provocar a atenção sempre voltada para os assuntos espirituais, irritandose,

intimamente, com a sua afetuosa indiferença, sempre cordial e fraterna.

Longos meses transcorreram, sem que Brunehilda pudesse

desvendar o mistério daquela alma esquiva, cheia de beleza e delicada

masculinidade, aos seus olhos, enquanto o Irmão Marinho, dentro de suas

elevadas disposições espirituais, nunca chegou a perceber a bastardia dos

pensamentos e intenções da jovem, que, tantas vezes, o cumulava de

gentilezas cariciosas.

Foi então que Brunehilda, desenganada nos seus propósitos

inconfessáveis, passou a relacionar-se com um soldado romano, amigo de

seu pai e da família, recém-chegado da Capital do Império e cheio de

ousadias e atitudes insinuantes.

Em breve, a filha do estalajadeiro inclinava-se para o desfiladeiro

da perdição, ao passo que o sedutor da sua alma inquieta e versátil se

ausentava propositadamente, regressando a Roma, depois de obter o

consentimento dos superiores.

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

Abandonada à sua prova aspérrima, Brunehilda procurou disfarçar

os seus angustiosos pensamentos íntimos. Com a alma tomada de

inquietações em face da severidade dos princípios familiares, desejava

morrer de modo a eliminar todos os resquícios da falta e desaparecendo

para sempre. Faltava-lhe, porém, o ânimo para realizar tão odioso crime.

Dia chegou, contudo, em que não mais pôde ocultar, aos olhos

paternos, a realidade.

Recolhendo-se ao leito na véspera de receber o fruto dos seus

amores, foi obrigada a cientificar Menênio de quanto ocorria. Tomado de dor

selvagem, o coração paterno obrigou a filha a confessar-se plenamente, a

fim de poder vingar-se. Brunehilda, contudo, no instante de revelar o nome

de quem a infelicitara, sentiu o pavor da situação, dizendo

caluniosamente:

- Meu pai, perdoai-me a falta que vos desonra o nome, respeitável e

impoluto, mas quem me levou a transigir tão penosamente com os sagrados

princípios familiares, que nos ensinastes, foi o Irmão Marinho com a sua

delicadeza capciosa..

Menênio Túlio sentiu o coração abrir-se em chaga viva. Nunca

poderia imaginar semelhante coisa. O Irmão Marinho consolidara no seu

conceito as mais confortadoras esperanças, e ele confiava na sua conduta

como confiaria no melhor dos amigos.

Mas, ante a evidência dos fatos, exclamou em voz ríspida:

- Pois bem, minha casa não ficará com essa mancha indelével. Tua

prevaricação não desonrará o nome de minha família, porque ninguém

saberá que acedeste aos propósitos criminosos do infame! Eu mesmo

levarei a criança a Epifânio, a fim de que os seus sequazes considerem a

enormidade desse crime ! Se tanto for necessário, não desdenharei

empunhar a espada em defesa do círculo sagrado da família, mas preferirei

humilhá-los, devolvendo ao sedutor o fruto da sua covardia!..

Com efeito, dissimulando a dor imensa do seu coração e do seu lar,

Menênio Túlio, no dia seguinte, ao alvorecer, marchou para o mosteiro

levando consigo um pequeno cesto, de que um mísero pequenino era o

singular conteúdo.

Chamado à portaria pelo Irmão Filipe, quando o Sol ia alto, a fim de

atender à insistência do visitante o superior da comunidade ouviu os

impropérios de Menênio, com o coração gelado de rancor.

Cientificado de todas as confissões de Brunehilda, em relação a

Marinho, mestre Epifânio mandou chamá-lo à sua presença, com a

brutalidade dos seus gestos selvagens.

- Irmão Marinho - exclamou o superior para a filha de Helvídio que o

escutava, amargurada e surpreendida -, então é assim que demonstras

gratidão a esta casa? Onde se encontram as tuas avançadas concepções

do Evangelho, que não te impediram de praticar tão nefando delito?

Recebendo-te no mosteiro e confiando-te uma missão de trabalho neste

retiro do Senhor, depositei nos teus esforços uma sagrada confiança de pai.

Entretanto, não hesitaste em lançar o nosso nome ao escândalo,

enxovalhando uma instituição que nos é sumamente venerável ao espírito !

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

Observando a miserável criança, junto do estalajadeiro, que lhe não

correspondia à saudação, a jovem interrogou, enquanto Epifânio fazia uma

pausa:

- Mas, de que me acusam?

- Ainda o perguntas? - revidou Menênio Túlio, de faces congestas. -

Minha desventurada filha revelou-me a tua ação torpe, não vacilando em

levar ao meu lar honesto a lama da tua concupiscência. Estás enganado se

supões que minha casa vá acolher o fruto criminoso das tuas desregradas

paixões, porque esta miserável criança ficará nesta casa, a fim de que o pai,

infame, resolva sobre o seu destino.

Depois de pronunciar estas palavras acrescidas de impropérios ao

suposto conquistador da filha, o estalajadeiro retirou-se, ante o pasmo de

Célia e de Epifânio, deixando ali a criança mísera, em completo abandono.

A jovem compreendeu, num relance, que o mundo espiritual exigia

um novo testemunho da sua fé e, enquanto caminhava, quase serenamente,

para tomar nos braços o inocentinho, o superior da comunidade a advertia

colérico :

- Irmão Marinho, esta casa de Deus não pode tolerar por mais tempo

a tua escandalosa presença. Explica-te ! Confessa as tuas faltas, a fim de

que a minha autoridade possa cuidar das providências oportunas e

necessárias!..

Célia em poucos instantes, mergulhou o pensamento dolorido nas

meditações indispensáveis, e, valendo-se da mesma fé intangível e cristalina

que lhe havia orientado todos os penosos sacrifícios do destino, exclamou

com humildade:

- Pai Epifânio, quem comete um ato dessa natureza é indigno do

hábito que nos deve aproximar do Cordeiro de Deus ! Estou pronto, pois, a

aceitar com resignação as penas que a vossa autoridade me impuser...

- Pois bem - replicou o superior na sua orgulhosa severidade -,

deves sair imediatamente do mosteiro, levando contigo essa criança

miserável!..

Nesse instante, porém, quase todos os religiosos se haviam

aproximado, observando a relevância da cena. Custava-lhes crer na

culpabilidade do Irmão Marinho, que ali se encontrava humilde,

evidenciando a mais consoladora serenidade no brilho calmo dos olhos

úmidos.

E, sentindo que todos os companheiros eram simpáticos à sua

causa, a filha de Helvídio, com uma inflexão de voz inesquecível, ajoelhou

diante de Epifânio e pediu:

- Meu pai, não me expulseis desta comunidade para sempre!...

Não conheço as regiões que nos rodeiam ! Sou ignorante e encontro-me

doente! Não me desampareis, considerando a palavra do Divino Mestre,

que se afirmava como o recurso de todos os enfermos e desvalidos

deste mundo ! Se tenho a alma indigna de permanecer neste retiro de Jesus,

dai-me a permissão de habitar o casebre abandonado ao pé do horto. Eu vos

prometo trabalhar de manhã à noite, no amanho da terra, a fim de esquecer

os meus desvios.. Pai Epifânio, se não me concederdes essa graça, por

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

mim, concedei-a por este pequenino abandonado, para quem viverei com

todas as forças do meu coração!..

Chorava copiosamente ao fazer a dolorosa rogativa. No íntimo, o

orgulhoso Aufídio Prisco, que desejava aplicar o Evangelho à sua maneira,

quis negar, mas, num relance, notou que todos os companheiros da

comunidade estavam comovidos e apiedados.

- Não resolverei por min. - clamou exasperado -, todos os

membros do mosteiro deverão considerar estranha e descabida a tua

solicitação.

Todavia, consultados os companheiros, para quem a jovem

caluniada erguia os olhos súplices, houve um movimento geral favorável

à filha de Helvídio. Epifânio não conseguiu a desejada recusa e,

endereçando aos seus benfeitores um carinhoso olhar de agradecimento,

o Irmão Marinho abandonou o recinto, erguendo corajosamente a

criancinha nos braços e retirando-se para a choupana abandonada, ao pé do

imenso horto do mosteiro.

Dessa vez, Célia não se entregou à peregrinação por caminhos

ásperos, mas só Deus poderia testificar dos seus imensuráveis sacrifícios.

Com inauditas dificuldades, buscou adaptar-se com o pequenino, à sua nova

vida, à custa dos mais ingentes trabalhos, na sua soledade dolorosa, a

cujas angústias alguns irmãos do mosteiro estendiam mãos carinhosas.

Lembrando-se de Ciro, cercava o pequenito de todos os cuidados,

esperando que Jesus lhe concedesse forças para o integral cumprimento de

suas provações.

Durante o dia, trabalhava exaustivamente no cultivo das hortaliças,

aproveitando os crepúsculos para as meditações e os estudos, que

pareciam povoados de seres e de vozes carinhosas do Invisível.

Dia houve em que uma pobre mulher do povo passava pelo sítio, a

pé, com um filhinho quase agonizante, buscando as estradas de

Alexandria à cata de recursos. Era de tarde. Batendo à porta humilde do

Irmão Marinho, este lhe levantou as fibras da alma abatida, convidando-a

às preciosas meditações do Evangelho. Solicitado com insistência pela

humilde criatura para impor as mãos, qual faziam os apóstolos de Jesus,

sobre o doentinho, tal o ambiente de confiança e de amor que sabia criar

com as suas palavras, Célia, entregando-se a esse ato de fé, pela primeira

vez, teve a ventura de observar que o pequeno agonizante recuperava o

alento e a saúde, num sorriso. Então, a mulher do povo prosternou-se ali

mesmo, rendendo graças ao Senhor e misturando as suas lágrimas com as

do Irmão Marinho, que também chorava de comoção e agradecimento.

Desde esse dia, nunca mais a casinhola do horto deixou de receber

os pobres e aflitos de todas as categorias sociais, que lá iam rogar as

bênçãos de Jesus, através daquela alma pura e simples, santificada

pelos mais acerbos sofrimentos.

V - O CAMINHO EXPIATÓRIO

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

Enquanto Célia cumpre a sua missão de caridade à luz do

Evangelho, voltemos a Roma, onde vamos encontrar as nossas antigas

personagens.

Dez anos haviam corrido na esteira infinita do Tempo, desde que

Helvídio Lucius e família haviam experimentado as mais singulares

viravoltas do destino.

Apesar de dissimularem as amarguras no meio social em que se

agitavam, Fábio Cornélio e família sentiam o coração inquieto e angustiado,

desde o dia infausto em que a filha mais moça de Alba Lucínia se ausentara

para sempre, pelas injunções dolorosas do seu desditoso destino. Na

intimidade comentava-se, às vezes o que teria sido feito daquela que Roma

relembrava tão somente como se fôra uma querida morta da família. A

esposa de Helvídio, essa, remoía os mais tristes padecimentos morais,

desde a manhã fatal em que fôra cientificada dos fatos ocorridos com a

filhinha.

Nos seus traços fisionômicos, Alba Lucínia não apresentava mais a

jovialidade franca e a espontaneidade de sentimentos que sempre deixara

transparecer nos dias felizes, em que o seu semblante parecia prolongar,

indefinidamente, as linhas graciosas da primeira mocidade. Os tormentos

íntimos vincavam-lhe as faces numa expressão de angústia recalcada. Nos

olhos tristes parecia vagar um fantasma de desconfiança, que a perseguia

por toda parte. Os primeiros cabelos brancos, filhos do seu espírito

atormentado, figuravam-lhe na fronte como dolorosa moldura da sua virtude

sofredora e desolada. Nunca pudera esquecer a filha idolatrada, que surgia

no quadro de sua imaginação afetuosa, errante e aflita sob os signos

tenebrosos da maldição doméstica. Por muito que a sustentasse a

palavra amiga e carinhosa do esposo, que tudo fazia por manter inflexível a

sua fibra corajosa e resoluta, moldada nos princípios rígidos da família

romana, a pobre senhora parecia sofrer indefinidamente, como se uma

enfermidade misteriosa a conduzisse traiçoeiramente para as sombras do

túmulo. De nada valiam as festas da Gorte, os espetáculos, os lugares de

honra nos teatros ou nos divertimentos públicos.

Helvídio Lucius, se bem fizesse o possível por ocultar as próprias

mágoas, buscava levantar, em vão o ânimo abatido da companheira. Como

pai, sentia, muitas vezes, o coração torturado e aflito, mas procurava fugir ao

seu próprio íntimo, tentando distrair-se no turbilhão das suas atividades

políticas e nas festas sociais, onde comparecia habitualmente, levado pela

necessidade de escapar às meditações solitárias, nas quais o coração

paterno mantinha os mais acerbos diálogos com a razão preconceituosa

do mundo. Assim, sofria intensamente, entre a indecisão e a saudade, a

energia e o arrependimento.

Muitas mudanças se haviam operado em Roma, desde o evento

doloroso que lhe mergulhara a família em sombras espessas.

Élio Adriano, após muitos anos de injustiça e crueldade, desde que

transferira a Corte para Tibur, havia partido para o Além, deixando o Império

nas mãos generosas de Antonino, cujo governo se caracterizava pelos feitos

de concórdia e de paz, na melhor distribuição de justiça e de tolerância. O

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

novo Imperador, contudo, conservava Fábio Cornélio como um dos

melhores auxiliares da sua administração liberal e sábia. Ao antigo censor

agradava, sobremaneira, essa prova da confiança imperial, salientando-se

que, na sua velhice decidida e experimentada, mantinha-se em posição de

franca ascendência perante os próprios senadores e outros homens de

Estado, obrigados a lhe ouvirem as opiniões e pareceres.

Um homem havia que crescera muito na confiança do antigo

censor, tornando-se o seu agente ideal em todos os serviços. Era Silano.

Satisfeito por cumprir uma recomendação afetuosa do seu velho amigo

de outros tempos, Fábio Cornélio fizera do antigo combatente das Gálias um

oficial inteligente e culto, a quem prestavam o máximo de honrarias. Silano

representava, de algum modo, a sua força de outra época, quando a

senectude não se aproximava, obrigando o organismo ao mínimo de

aventuras. Para o velho censor, o antigo recomendado de Cneio Lucius era

quase um filho, em cuja virilidade poderosa sentia ele o prolongamento das

suas energias. Em todas as empresas, ambos se encontravam sempre

juntos, para a execução de todas as ordens privadas de César, criando-se

entre os seus espíritos a mais elevada atmosfera de afinidade e confiança.

Ao lado das nossas personagens, uma havia que se fechara em

profundo enigma. Era Cláudia Sabina. Desde a morte de Adriano, fôra

relegada ao ostracismo social, recolhendo-se de novo ao anonimato da

plebe, de onde emergira para as mais altas camadas do Império. De suas

aventuras, ficara-lhe a fortuna monetária, que lhe permitia residir onde lhe

aprouvesse, com todas as comodidades do tempo. Desgostosa, porém, com

o retraimento absoluto das amizades espetaculosas dos bons tempos de

prestígio social, adquirira pequena chácara nos arredores de Roma, num

modesto subúrbio entre as Vias Salária e Nomentana, onde passou a viver

entregue às suas dolorosas recordações.

Não faltavam boatos acerca de suas atividades novas e algumas

de suas mais antigas relações chegavam afiançar que a viúva de Lólio

Úrbico começava a entregar-se às práticas cristãs, nas catacumbas,

esquecendo o passado de loucuras e desvios.

Na verdade, Cláudia Sabina tivera os primeiros contactos com a

religião do Crucificado, mas sentia o coração assaz intoxicado de ódio para

identificar-se com os postulados de amor e singeleza. Decorridos dez anos,

não conseguira saber o resultado real da tragédia que armara na esteira do

seu destino. Vivera com a terrível preocupação de reconquistar o homem

amado, ainda que para isso tivesse de movimentar todos os bastidores do

crime. Seus planos haviam fracassado. Sem o apoio de outros tempos,

quando o prestígio do marido lhe propiciava uma turba de aduladores e de

servos, nada conseguira, nem mesmo a palavra de Hatéria, que, amparada

por Helvídio, retirara-se para o seu sítio de Benevento, onde passou a viver

na companhia dos filhos, com a máxima prudência, necessária à própria

segurança.

Cláudia Sabina encontrara algum conforto para o remorso que lhe

mordia a alma, mas não poderia nunca, a seu ver, conciliar o seu ódio e o

seu orgulho inflexíveis com a exemplificação daquele Jesus crucificado e

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

humilde, que prescrevera a humildade e o amor como fulcro de todas as

venturas terrenas.

Debalde ouvira os pregadores cristãos das assembléias a que

comparecera com a sua curiosidade sôfrega. As teorias de tolerância e

penitência não encontraram eco no seu espírito intoxicado. E, sentindose

desamparada no íntimo, com as penosas recordações do passado

criminoso, a antiga plebéia julgava-se folha solta, ao sabor dos ventos

impetuosos. De quando em quando, entretanto, assaltava-a o pavor da

morte e do Além desconhecido. Desejava uma fé para o coração exausto das

paixões do mundo; mas, se de um lado estavam os antigos deuses, que lhe

não satisfaziam ao raciocínio, do outro estava aquele Jesus imaculado e

santo inacessível aos seus anseios tristes e odiosos. Por vezes, lágrimas

amargas aljofravam-lhe os olhos escuros e, contudo, bem percebia que

aquelas lágrimas não eram de purificação, mas de desespero, irremediável

e profundo. Carregando no íntimo o esquife pesado dos sonhos mortos,

Cláudia Sabina penetrava no crepúsculo da vida, qual náufrago cansado de

lutar com as ondas de um mar tormentoso, sem a esperança de um porto, na

desesperação do seu orgulho e do seu ódio nefandos.

O ano de 145 corria calmo, com as mesmas recordações amargas

dos nossos amigos, quando alguém nas primeiras horas da manhã de um

soberbo dia de primavera, batia à porta de Helvídio com singular insistência.

Era Hatéria, que, em singulares condições de magreza e

abatimento, foi levada ao interior da casa e recebida por Alba Lucínia, com

simpatia e agrado.

A antiga serva parecia extremamente aflita e perturbada, mas

expunha com clareza os seus pensamentos. Solicitou à antiga patroa a

presença de seu pai e do esposo, a fim de explanar um assunto grave.

A consorte de Helvídio conjeturou que a mulher desejava falar

particularmente de algum assunto de ordem material, que a interessasse em

Benavento.

Diante de tanta insistência, chamou o velho censor que, desde a

morte de Júlia, passara a residir em sua companhia, convidando igualmente

o esposo a atender à solicitação de Hatéria, que lhes granjeara, desde o

drama de Célia, singular consideração e especial estima.

Com espanto dos três, a serva pedia um compartimento reservado,

de modo a tratar livremente do assunto.

Fábio e Helvídio julgaram-na demente, mas a dona da casa os

convidou a acompanhá-la, a fim de satisfazer o que julgavam mero capricho.

Reunidos num gracioso cubículo junto do tablino, Hatéria falou

nervosamente, com intensa palidez no semblante :

- Venho aqui fazer uma confissão dolorosa e terrível e não sei

como devo expor meus crimes de outrora!... Hoje, sou cristã, e perante

Jesus preciso esclarecer aos que me dispensaram, no passado, uma estima

dedicada e sincera...

- Então - perguntou Helvídio, julgando-a sob a influência de uma

perturbação mental -, és hoje cristã?

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

- Sim, meu senhor - respondeu de olhos brilhantes, enigmáticos,

como que tomada de resolução extrema -, sou cristã, pela graça do Cordeiro

de Deus, que veio a este mundo remir todos os pecadores... Até há pouco,

preferiria morrer a vos revelar meus dolorosos segredos. Tencionava baixar

ao túmulo com o mistério terrível do meu criminoso passado, mas, de um

ano a esta parte, assisto às pregações de um homem justo, que, nos confins

de Benevento, anuncia o reino dos céus, com Jesus-Cristo, induzindo os

pecadores à reparação de suas faltas. Desde a primeira vez que ouvi a

promessa do Evangelho do Senhor, sinto o coração ingrato sob o peso de

um grande remorso. Além disso, ensina Jesus que ninguém poderá ir a Ele

sem carregar a própria cruz, de modo a segui-lo... Minha cruz é o meu

pecado... Hesitei em vir, receosa das conseqüências desta minha revelação,

mas preferi arrostar com todos os efeitos do meu crime, pois, somente

assim, pressinto que terei a paz de consciência indispensável ao trabalho do

sofrimento que há-de regenerar minha alma Depois da minha confissão,

matai-me se quiserdes!

Submetei-me ao sacrifício! Ordenai a minha morte!... Isso aliviará, de

algum modo, a minha consciência denegrida!.. No Alto, aquele Jesus amado,

que prometeu auxílio sacrossanto a todos os cultivadores da verdade,

levará em conta o meu arrependimento e dará consolo às minhas mágoas,

concedendo-me os meios para redimir-me com a sua misericórdia !...

Então, ante a perplexidade dos três, Hatéria começou a desdobrar o

drama sinistro da sua vida. Narrou os primeiros encontros com Cláudia

Sabina, suas combinações, a vida particular de Lólio Úrbico, o plano sinistro

para inutilizar Alba Lucínia no conceito da família e da sociedade romana; a

ação de Plotina e o epílogo do trágico projeto, que terminou com o sacrifício

de Célia, cuja lembrança lhe embargava a voz numa torrente de lágrimas, em

recordando a sua bondade, a sua candura, o seu sacrifício... Narrativa

longa, dolorosa... Por mais de duas horas, prendeu a atenção de Fábio

Cornélio e dos seus, que a escutavam estupefatos.

Ouvindo-a e considerando os pormenores da confissão, Alba

Lucínia sentiu o sangue gelar-se-lhe nas veias, tomada de singular angústia.

Helvídio tinha o peito opresso, sufocado, tentando em vão dizer uma palavra.

Somente o censor, na sua inflexibilidade terrível e orgulhosa, mantinha-se

firme, embora evidenciando o pavor íntimo, com uma expressão

desesperada a dominar-lhe o rosto.

- Desgraçada ! - murmurou Fábio Cornélio com grande esforço - até

onde nos conduziste com a tua ambição desprezível e mesquinha!...

Criminosa! Bruxa maldita, como não temeste o peso de nossas mãos ?

Sua voz, porém, parecia igualmente asfixiada pela mesma emoção

que empolgara os filhos.

- Vingar-me-ei de todos !. - gritou o velho censor com a voz

estrangulada.

Nesse instante, Hatéria ajoelhou a seus pés e murmurou :

- Fazei de mim o que quiserdes ! Depois de me haver confessado, a

morte me será um doce alívio !...

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

- Pois morrerás, infame criatura - disse o censor desembainhando

um punhal, que reluziu à claridade do Sol, através de uma janela alta e

estreita.

Mas, quando a destra parecia prestes a descer, Alba Lucínia, como

que impelida por misteriosa força, deteve o braço paterno, exclamando :

- Para trás, meu pai ! Cesse para sempre a tragédia em nossos

destinos!.. Que adianta mais um crime ?

Mas, ao passo que Fábio Cornélio cedia, atônito, marmórea palidez

se estendia ao rosto da desventurada senhora, que tombou redondamente

no tapete, sob o olhar angustiado do marido, pressuroso no acudi-la.

Lançando, então, um olhar de fundo desprezo a Hatéria, que

auxiliava o tribuno a acomodar a senhora num largo divã, o velho censor

acentuou:

- Coragem, Helvídio!.. Vou chamar um médico imediatamente.

Deixemos esta maldita bruxa entregue à sua sorte ; mas, hoje mesmo,

mandarei eliminar a infame que nos envenenou a vida para sempre..

Helvídio Lucius desejava falar, mas não sabia se devia aconselhar

ponderação ao sogro impulsivo, ou socorrer a esposa, cujos membros

estavam frios e rijos, em conseqüência do traumatismo moral.

Amparando Alba Lucínia no divã, enquanto Hatéria se dirigia ao

interior para tomar as providências primeiras, Helvídio Lucius viu o sogro

ausentar-se, pisando forte.

Por mais que fizesse, o tribuno não conseguiu coordenar idéias

para resolver a angustiosa situação. Levada ao leito, Alba Lucínia parecia

sob o império de uma força destruidora e absoluta, que não lhe permitia

recobrar os sentidos. Debalde o médico administrava poções e preconizava

unguentos preciosos. Fricções medicamentosas não deram o menor

resultado. Apenas os movimentos convulsos do pesadelo acusavam a

pletora de energias orgânicas. As pálpebras continuavam cerradas e a

respiração opressa, como a dos enfermos prestes a entrar em agonia.

Enquanto Helvídio Lucius se desdobrava em cuidados e procurava

tranqüilizar-se, Fábio Cornélio dirigiu-se ao gabinete e, chamando Silano em

particular, falou-lhe austero:

- Mais que nunca, preciso hoje da tua dedicação e dos teus

serviços!

- Determinai! - exclamou o oficial, pressuroso.

- Necessito hoje de uma diligência punitiva, para eliminar uma

antiga conspiradora do Império. Há mais de dez anos, observo-lhe as

manobras, porém, só agora consegui positivar os seus crimes políticos e

resolvi confiar-te mais essa tarefa de singular relevância para minha

administração.

- Pois bem - exclamou o rapaz serenamente -, dizei do que se trata

e cumprirei vossas ordens com o zelo de sempre.

- Levarás contigo Lídio e Marcos, porquanto necessito auxiliar-te

com dois homens de inteira confiança.

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

E, em voz discreta, indicou ao preposto o nome da vítima, sua

residência, condições sociais e tudo quanto pudesse facilitar a execução

do sinistro mandado.

Por fim, acentuou com voz cavernosa:

- Mandarei que alguns soldados cerquem a chácara, de modo a

prevenir qualquer tentativa de resistência dos fâmulos; e, depois de

ordenares a abertura das veias dessa mulher infame, dirás que a sentença

parte de minha autoridade, em nome das novas forças do Império.

- Assim o farei - retrucou o emissário resoluto.

- Trata de agir com a maior prudência. Quanto a mim, volto agora a

casa, onde reclamam a minha presença. A tarde, aqui estarei para saber do

ocorrido.

Enquanto Silano arrebanhava os auxiliares destinados à

empresa, Fábio Cornélio regressava ao lar, onde baldos se faziam todos os

recursos médicos para despertar Alba Lucínia do seu torpor estranho.

Movimentando todos os servos, Helvídio Lucius tudo fazia para despertar a

companheira. Como louco, seu coração diluía-se amargamente em torrentes

de lágrimas, e era improficuamente que recorria às promessas silenciosas

aos deuses familiares. Enquanto Hatéria se sentava humildemente à

cabeceira da antiga patroa, o tribuno desdobrava-se em esforços inauditos e

Fábio Cornélio passeava de um lado para outro, agitado, no interior de um

gabinete próximo, ora esperando as melhoras da enferma, ora contando as

horas, a fim de conhecer o resultado da comissão sinistra.

Com efeito, de tarde, o emissário do censor, rodeado de soldados e

dos dois companheiros de confiança que deveriam penetrar na residência de

Cláudia, chegara ao aprazível sítio, arborizado e florido, onde a antiga

plebéia se entregava às suas meditações, no doloroso outono de sua vida.

A viúva de Lólio Úrbico passara o dia entregue a reflexões amargas

e angustiosas. Como se uma força misteriosa a dominasse, experimentara

as sensações mais tristes e incompreensíveis. Em vão, passeara pelos

deliciosos jardins da principesca residência, onde as avenidas graciosas e

bem cuidadas se saturavam dos fortes perfumes da Primavera. Sentimentos

estranhos e intraduzíveis sufocavam-lhe o íntimo, como se o espírito

estivesse mergulhado em amaríssimos presságios. Buscou fixar o

pensamento em algum ponto de referência sentimental e, todavia, o coração

estava indigente de fé, qual deserto adusto.

Foi com a alma imersa em penosos cismares que viu aproximar-se,

com grande surpresa, o destacamento de pretorianos.

Tomada de emoção, lembrando-se do que representavam aquelas

pequenas expedições de terror, noutros tempos, recebeu no seu

gabinete o oficial que a procurava acompanhado de dois homens

espadaúdos e atléticos, com os quais trocara significativos olhares.

- Ao que devo a honra de vossa visita? - perguntou depois de

sentar-se, dirigindo a Silano um olhar de curiosidade intensa.

- Sois, de fato, a viúva do antigo prefeito Lólio Úrbico?

- Sim... - replicou a interpelada com displicência.

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

- Pois bem, eu sou Silano Plautius e aqui estou por ordem do

censor Fábio Cornélio, que, depois de longo processo, expediu a última

sentença contra a vossa pessoa, esperando eu que saibais morrer

dignamente, dada a vossa condição de conspiradora do Império...

Cláudia ouviu aquelas palavras sentindo que o sangue se lhe

gelava no coração. Uma palidez de alabastro lhe cobriu a fronte, enquanto

as têmporas batiam aceleradamente. Estendeu precipitadamente as mãos a

um móvel próximo, tentando utilizar uma grande campainha, mas Silano

deteve-lhe o gesto, exclamando com serenidade:

- É inútil qualquer resistência! A casa está cercada. Encomendai

aos deuses os vossos últimos pensamentos !.

A esse tempo, obedecendo aos sinais convencionais Lídio e

Marcos, dois gigantes, avançavam para Cláudia Sabina, que mal se

levantara, cambaleante... Enquanto o primeiro a amordaçava

impiedosamente, o segundo avançou, cortando-lhe os pulsos com uma

lâmina acerada..

Cláudia, todavia, sentindo o horror da situação irremediável,

entregava-se aos verdugos sem resistência, endereçando, porém, a Silano

um olhar inesquecível.

Fosse, contudo, pelo pavor daquele minuto inolvidável, ou em

vista de qualquer emoção irresistível e profunda, o sangue da desventurada

não vazava das veias abertas. Dir-se-ia que abrasadora emoção sacudia

todas as suas forças psíquicas, contrariando as leis comuns das energias

orgânicas.

Ante o fato insólito e raramente observado nas sentenças daquela

natureza, e observando o olhar angustioso e insistente que a vítima lhe

dirigia, como a suplicar-lhe que a ouvisse, o oficial ordenou que Lídio

sustasse o amordaçamento, a fim de que a condenada pudesse fazer as

suas recomendações e morresse tranqüila.

Aliviada do arrocho, Cláudia Sabina exclamou em voz soturna:

- Silano Plautius, meu sangue se recusa a vazar, antes que te

confesse todas as peripécias da minha vida! Afasta os teus homens deste

gabinete e nada temas de uma mulher indefesa e moribunda!..

Altamente impressionado, o filho adotivo de Cneio Lucius

ordenou aos companheiros se retirassem para uma sala próxima, enquanto

Cláudia, a sós com ele, atirou-se-lhe aos pés, com as veias gotejantes,

dizendo amargamente :

- Silano, perdoa o coração miserável que te deu a vida!... Sou tua

mãe, desgraçada e criminosa, e não quero morrer sem te pedir que me

vingues ! Fábio Cornélio é um monstro. Odeio-o ! Meu passado está cheio de

sombras espessas!.. Mas, quem te fez hoje um matricida é mandatário de

muitos crimes !

O pobre rapaz contemplava a vítima, tomado de doloroso espanto.

Uma brancura de neve subira-lhe ao rosto, denunciando comoções íntimas ;

todavia, se os olhos refletiam ansiedade angustiosa, os lábios continuavam

mudos, enquanto a viúva de Lólio Úrbico lhe beijava os pés, desfeita em

pranto.

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

Então, era ali que estava o mistério do seu nascimento e da sua

vida? Dolorosa emoção dominou-o e Silano prorrompeu em soluços, que

lhe rebentavam do peito saturado de angústias. Desde a morte de Cneio,

vinha alimentando o desejo de esclarecer o mistério do seu nascimento.

Muitas vezes projetou constituir família e sentia-se desarmado perante os

preconceitos sociais, pensando no futuro da prole. Em determinadas

ocasiões, experimentava o desejo de abrir o pequeno medalhão que o

venerando protetor lhe confiara nas vascas da morte e, contudo, um receio

atroz da verdade paralisava-lhe os propósitos.

Enquanto as mais penosas reflexões lhe obumbravam o raciocínio,

Cláudia, de joelhos, contava-lhe, detalhe por detalhe, a história dolorosa

da sua vida. Estarrecido ante aquelas verdades pronunciadas por uma voz

que se abeirava do túmulo, Silano inteirava-se das suas primeiras

aventuras amorosas, do seu encontro com Helvídio Lucius, nos tumultos

aventurosos da vida mundana, da sua incerteza quanto à paternidade

legítima e da resolução de confiá-lo a Cneio, onde sabia existir a mais

carinhosa dedicação pelo nome de Helvídio, circunstância que garantiria ao

enjeitado um ditoso porvir; dos golpes da sorte posterior desposando um

homem de Estado; de suas combinações com Fábio Cornélio, em tempos

idos, para a execução de sentenças iníquas no seio da sociedade romana,

omitindo, porém, o drama terrível da sua vida em relação a Alba Lucínia.

Sentindo que a iminência da morte agravava o ódio pelo censor, que a

determinara, e por sua família, Cláudia Sabina, dando curso aos derradeiros

desvios da sua alma, deixou transparecer que a morte de Lólio Úrbico,

misteriosa e inesperada, fôra obra de Fábio Cornélio e seus sequazes,

ávidos de sangue, a fim de acarretarem a sua ruína.

Nos últimos instantes, levada pelo negrume do seu ódio tigrino,

não vacilara em arquitetar o derradeiro castelo de calúnias e mentiras, para

levar a desolação à família detestada.

Aquelas terríveis confidências soavam aos ouvidos do oficial como

um clamor de vinganças que reivindicassem desforços supremos. Todavia,

em consciência, não lhe bastavam apenas as emoções para identificar a

verdade. Necessitava de alguma coisa que lhe falasse à razão.

Mas, como se Cláudia Sabina lhe adivinhasse os pensamentos, foi

logo ao encontro das suas vacilações silenciosas :

- Silano, meu filho, Cneio Lucius não te confiou um pequeno

medalhão, que envolvi nas tuas roupinhas de enjeitado?

- Sim - disse o rapaz extremamente perturbado -, trago comigo essa

lembrança...

- Nunca o abriste?

- Nunca...

Nesse instante, porém, o emissário de Fábio revolveu uma bolsa

que trazia sempre consigo, retirando o pequeno medalhão que a condenada

contemplou ansiosamente.

- Aí dentro, meu filho - disse ela -, escrevi um dia as seguintes

palavras: Filhinho, eu te confio à generosidade alheia com a bênção dos

deuses. - Cláudia Sabina.

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

Silano Plautius abriu o medalhão, nervosamente, conferindo, uma

por uma, todas as palavras.

Foi aí que uma emoção violenta lhe abalou todas as faculdades.

Acentuou-se a brancura de mármore que se lhe estampara na fronte. O

olhar inquieto e triste tomou uma expressão vítrea, de pavor e assombro. As

lágrimas secaram como se um sentimento lhe aflorasse nalma. Cláudia

Sabina, sentindo-se nos derradeiros instantes, contemplava, ansiosa,

aquelas transformações súbitas.

Como se houvera sentido a mais radical de todas as

metamorfoses, o rapaz inclinou-se para a vítima e gritou aterrado :

- Mãe!... minha mãe !..

Nas suas expressões havia um misto de sentimentos indefiníveis e

profundos; elas se lhe escapavam do peito como um grito de saciedade

afetuosa, depois de muitos anos de inquietação e de angústia.

Recebendo aquela suprema e doce manifestação de carinho na

hora extrema, a condenada, com a voz a extinguir-se, falou :

- Meu filho, perdoa-me o passado vil e tenebroso !.. Os deuses me

castigam fazendo-me perecer às mãos daquele a quem dei a vida !.. Meu

filho, meu filho, apesar de tudo, amo essas mãos que me trazem a morte !.

O pupilo de Cneio Lucius inclinara-se sobre o tapete manchado de

sangue. Num gesto supremo, que evidenciava sua angústia e o

esquecimento do abandono materno, para considerar somente o destino

doloroso que o conduzira ao matricídio, tomou nas mãos a cabeça exânime

da condenada, cujo olhar, parecia, agora, rejubilar-se com os

pensamentos enigmáticos e criminosos de sua alma.

Verificou-se, então, um fenômeno interessante. Como se houvera

satisfeito cabalmente o último desejo, o organismo espiritual de Cláudia

Sabina abandonava o corpo terrestre. Satisfeita a sua vontade psíquica, o

sangue começou a jorrar em borbotões intensos e rubros, dos pulsos

abertos..

Sentindo-se nos braços do oficial, que a encarava alucinado, voltou

a dizer em voz entrecortada:

- Assim... meu filho... sinto... que me... perdoas!.. Vinga-me!...

Fábio... Cornélio... deve morrer...

Os singultos da agonia não lhe permitiram continuar, mas os olhos

enviavam a Silano as mais singulares mensagens, que o rapaz

interpretava como apelos supremos de desforra e vingança.

Quando um palor de cera lhe cobriu a fronte contraída num ricto de

pavor angustiado, o mensageiro do censor abriu as portas, apresentando-se

aos companheiros com a fisionomia transtornada.

Seu olhar fixo e terrível parecia de um louco. No íntimo, as mais

fortes perturbações mentais premiam-lhe o espírito desolado. Sentia-se o

mais ínfimo e o mais desgraçado dos seres. Apenas com uma palavra de

ordem, colocou-se a caminho, de volta ao centro urbano, enquanto os

servos dedicados de Cláudia lhe amortalhavam o cadáver, entre lágrimas.

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

Embalde Lídio e Marcos, bem como outros pretorianos amigos lhe

chamavam a atenção para esse ou aquele detalhe da empreitada, porquanto

Silano Plautius mantinha um silêncio inflexível e sombrio.

A idéia de que Fábio Cornélio lhe conhecia o passado doloroso,

não vacilando em fazê-lo assassino de sua mãe, bem como as histórias

caluniosas de Cláudia Sabina, à extrema hora, a respeito do censor e do seu

procedimento no passado, provocaram-lhe uma perturbação cerebral

intraduzível. O pensamento de que para o resto dos seus dias devia

considerar-se um matricida, atormentava-o, sugerindo-lhe os mais

horríveis projetos de vingança. Dominado por sentimentos inferiores,

acariciava um punhal que descansava nas armaduras, antegozando o

instante em que se sentisse vingado de todos os ultrajes experimentados na

vida.

Era noitinha quando penetrou no imponente edifício onde Fábio

Cornélio o esperava, num gabinete soberbo e amplamente iluminado.

O velho censor recebeu-o com visível interesse e, buscando isolarse

dos presentes, inquiriu-o num canto da sala:

- Então, que novas me trazes ? Tudo bem ?

Silano fitava-o de olhos gázeos, como presa das mais atrozes

perturbações.

- Mas, que é isso? - insistia o censor extremamente conturbado -

estás enfermo?!.. Que teria acontecido?...

Fábio Cornélio não pôde prosseguir, porque, sem dizer palavra,

qual um alucinado em crise extrema, o oficial desembainhou o punhal,

celeremente, cravando-o no peito do censor, que caiu redondamente,

gritando por socorro.

Silano Plautius contemplava a sua vítima com a "facies" terrível

dos dementes, sem dar o mínimo sinal de responsabilidade.. Na sua

indiferença, via o sangue do velho político escapar-se a jorros pela ferida

entre a garganta e a omoplata, enquanto o ferido, nos estertores da morte,

lhe dirigia um olhar terrível... Foi nesse instante que os numerosos

guardas rodearam o antigo protegido de Cneio Lucius, eliminando-lhe

igualmente a vida em rápidos segundos. Debalde, o oficial tentou resistir aos

pretorianos e a outros amigos do assassinado, porque, em poucos minutos,

estava reduzido a frangalhos pelos golpes de espada, com que pagava a

afronta ao Estado, com a perpetração do seu crime.

A notícia correu a cidade celeremente.

Assistido pelos amigos mais dedicados, Helvídio Lucius precisou

invocar todas as forças para não fraquejar sob golpes tão rudes.

Dada a situação delicada em que se encontrava a esposa,

providenciou para que os despojos sangrentos fossem levados à residência,

com especial cuidado, a fim de que o quadro sinistro e doloroso não

agravasse a moléstia de Alba Lucínia, na hipótese de suas melhoras, após a

síncope prolongada.

Um correio célere foi despachado para Cápua, chamando Caio

Fabrícius e sua mulher a Roma, imediatamente.

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

Entre as preocupações mais acerbas e impossibilitado de

comunicar o peso que lhe oprimia o coração a qualquer amigo, dadas as

penosas circunstâncias familiares em jogo, o filho de Cneio vertia lágrimas

dolorosas ao lado da esposa entre a vida e a morte, enquanto Márcia

assumia a direção de todos os protocolos sociais, em sua residência para

atender a quantos visitavam os despojos dos dois desaparecidos.

Alba Lucínia despertara e, contudo, vagava-lhe no olhar uma

expressão de alheamento do mundo.

Pronunciava palavras ininteligíveis, que Helvídio Lucius daria a

vida para compreender. Percebia-se que ela perdera a razão para sempre.

Além disso, as síncopes renovavam-se periodicamente, como se as células

cerebrais, à pressão de uma força incoercível, rebentassem, vagarosamente,

uma por uma...

Obedecendo aos imperativos da situação, o tribuno expediu ordens

para que os funerais do sogro e do irmão adotivo se efetuassem com a

celeridade possível, tanto assim, que, antes de uma semana, chegavam, da

Campânia, Helvídia e o esposo, sem alcançarem as cerimônias fúnebres, e

penetrando no lar paterno tão somente para se ajoelharem à cabeceira de

Alba Lucínia que, desde a véspera, entrara em dolorosa agonia...

A presença dos filhos constituiu para o tribuno um suave consolo,

mas, ao seu espírito dilacerado figurava-se não haver consolação bastante,

no mundo, para o coração humilhado e ferido.

Tocado nas fibras mais sensíveis, via agonizar a esposa,

lentamente, como se um sicário invisível lhe houvesse cravado no coração

acerado punhal. Diante da morte, cessavam todos os seus poderes, todas as

suas dedicações carinhosas. Submerso num oceano de lágrimas,

guardando entre as suas as mãos frias da companheira, Helvídio Lucius

não abandonou o aposento, nem mesmo para atender ao apelo dos filhos

recém-chegados. Pressentindo que a morte lhe arrebataria em breve a

esposa idolatrada, conservava-se à sua cabeceira, dominado pelas

meditações mais atrozes.

De quando em quando, emergia do abismo de suas reflexões,

exclamando amargamente como se guardasse a convicção de que era

ouvido pela moribunda :

- Lucínia, pois também tu me abandonas? Desperta, ilumina de

novo a minha soledade!.. Se te ofendi alguma vez, perdoa-me. Mais não fiz

que te amar muito !.. Vamos. Atende. Eu vencerei a morte para te guardar em

meus braços ! Lutarei contra todos ! Junto de ti, terei forças para viver

reparando os erros do passado; mas que farei sozinho e abandonado se

partires para o mistério? Deuses do céu! não bastariam as ruínas do meu lar,

os destroços de minha felicidade doméstica para me redimir aos vossos

olhos? Tende compaixão do meu ser desventurado! Que fiz para pagar tão

pesado tributo ?..

E contemplando o céu, como se estivesse vislumbrando os

numes que presidem aos destinos humanos, apontava a esposa

agonizante, redizendo em voz abafada e dolorida :

- Deuses do bem, conservai-lhe a vida !...

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

Entretanto, como se as suas rogativas morressem apagadas

diante de uma esfinge, Alba Lucínia desprendia-se do mundo com uma

lágrima silenciosa, ao amanhecer, enquanto os clarões rubros do Sol

tingiam as primeiras nuvens do céu romano, ao caricioso despontar da

aurora.

Percebendo-lhe o derradeiro suspiro, Helvídio Lucius

ensimesmou-se numa tristeza indizível. Nos olhos agora secos e esquisitos,

perpassava uma expressão de revolta contra todas as divindades a seu ver

insensíveis aos seus padecimentos e apelos desesperados. A residência

do tribuno cobriu-se, então, de crepes negros, enquanto a sua silhueta

agoniada permanecia junto à urna magnífica que encerrava os despojos da

companheira, qual sentinela que se houvera petrificado em desespero.

Enérgico e impassível, respondia aos apelos afetuosos dos

amigos com monossílabos amargos, enquanto Caio, Helvídia e a

bondosa Márcia faziam as honras da casa.

Após uma semana de homenagens da sociedade romana, efetuouse

o funeral da inditosa senhora, que tombara, qual ave ferida, no seu

profundo amor materno, enquanto o marido, curtindo a mais angustiosa

soledade, se sentia desamparado e ferido para sempre.

Amargurada e silenciosa, Hatéria permanecera na casa, até o

instante em que os carros mortuários acompanharam Alba Lucínia às

sombras do sepulcro.

Impressionada com as tragédias que a sua revelação havia

desfechado dentro daquele lar outrora tão feliz, sentiu-se humilhada no mais

íntimo do coração. Muitas vezes, nas horas terríveis da agonia da ex-patroa,

dirigira o olhar súplice ao tribuno, a fim de verificar se lhe perdoara, de modo

a tranqüilizar a consciência abatida. Helvídio Lucius parecia não vê-la,

indiferente à sua presença e a sua vida...

Experimentando sinistro remorso, Hatéria abandonou a casa de

Helvídio, onde se sentia como verme asqueroso, tal a angústia dos seus

tristes pensamentos na dolorosa noite caída sobre a casa do tribuno, após o

funeral.

Fazia frio. As sombras noturnas eram espessas, impenetráveis

como as angústias que lhe gelavam o coração... A permanência ali, porém,

depois do enterro, não mais era possível, em vista das amarguradas

emoções que lhe vibravam nalma.

A velha criada saiu, então, demandando o Trastevere, onde possuía

antigas relações de amizade. Interessante é que, no percurso pelas ruas

estreitas, seguira trajeto idêntico ao da jovem Célia, quando compelida a

abandonar o lar paterno... Depois de muito caminhar, deteve-se perto da

Ponte Fabricius, temendo prosseguir. Era quase meia-noite e as

proximidades da ilha do Tibre estavam desertas. Quis retroceder, premida

por uma força inexplicável, como se pressentisse algum perigo iminente,

quando dois homens mascarados se aproximaram, quais massas escuras

que se movessem rápidas entre as pesadas sombras da noite. Tentou

gritar, mas era tarde. Um deles atirava-se rápido a ela, amordaçando-a

fortemente.

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

- Lucano - dizia baixinho o desconhecido a envolver-lhe o rosto

com uma toalha grossa -, apalpa-a depressa! Urge terminar o serviço!...

- Ora essa - dizia o companheiro decepcionado -, trata-se de uma

velha desprezível !

- Não desanimes ! - prosseguiu o outro - palpita-me que é boa presa.

Vamos! Essas velhas costumam trazer o dinheiro oculto no seio, quando são

ardilosas e avarentas!...

O bandido que tinha as mãos livres levou-as ao tórax da velha

criada de Helvídio Lucius, sentindo que o seu coração batia acelerado. De

fato, era ali que Hatéria guardava, numa bolsa reforçada, todo o cabedal

sonante das suas economias. Encontrando-lhe o pequeno tesouro, ambos

os malfeitores esboçaram um sorriso de satisfação e, obedecendo a um

sinal do companheiro, Lucano bateu fortemente na cabeça da vítima

amordaçada, com uma pequena bengala de ferro, exclamando com voz

sumida, quando percebeu que ela desmaiara:

- Assim, sempre é melhor! Amanhã não poderás relatar a proeza

aos vizinhos, para que as autoridades nos venham incomodar.

Em seguida, arrastaram a vítima atordoada pelos golpes rijos,

atirando-a sem piedade nas águas pesadas do rio que rolava

silenciosamente. Hatéria teve assim os seus últimos instantes, como a

expiar o torpe delito do passado culposo.

Todavia após examinarmos a derradeira provação da velha

cúmplice de Cláudia Sabina, voltemos a seguir Helvídio Lucius na sua

pesada noite de sofrimentos íntimos.

Somente no dia imediato ao funeral da mulher, conseguiu o

tribuno reunir os filhos num gabinete privado, confidenciando-lhes as

tristes revelações que desfecharam nos terríveis acontecimentos,

aniquiladores da sua ventura para todo o sempre.

Terminada a impressionante narrativa, Caio Fabricius contou à

esposa e ao sogro o encontro com Célia, dez anos antes, quando se dirigia à

Campânia, chamado por interesses urgentes. Jamais aludira ao fato,

considerando o voto formal de se lembrarem da jovem tão somente como

de uma morta sempre querida. Nunca esquecera aquele quadro triste, da

cunhada abandonada na solidão da noite, junto à montanha de Terracina, e

muita vez recriminou-se por se haver mantido indiferente e surdo aos seus

apelos.

Helvídia e seu pai ouviam-no tomados de mágoa e assombro.

Somente aí, no exame de todos os sacrifícios da filhinha,

ponderando os seus tormentos morais para isentar a família dos golpes da

desventura e da calúnia, o filho de Cneio Lucius conseguiu despertar o

resquício da sua sensibilidade, para apegar-se de novo à vida. A narrativa

do genro vinha indiciar que Célia vivia em qualquer parte.

Lembrou-se da esposa e pôs-se a pensar que, se Alba Lucínia ainda

estivesse na Terra, sentiria imenso júbilo se pudesse abraçar de novo a

filha desprezada. Certamente, do Céu, a companheira querida haveria de

lhe orientar os passos, abençoaria o seu esforço. E um dia, quando a

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

providência dos deuses permitisse, a alma da esposa lhe guiaria o coração

ulcerado até à filha, para que pudesse morrer beijando-lhe as mãos.

Mergulhado nessas cogitações angustiosas, com uma serenidade

triste a clarear seus passos, Helvídio Lucius conseguiu chorar de maneira a

aliviar a íntima angústia. Suas lágrimas, agora que Helvídia as enxugava

com carinho, eram como essas chuvas benéficas que lavam o céu, após o

fragor da tempestade.

Então, como se o animasse uma esperança nova, o tribuno

converteu todas as dores na preocupação de reencontrar a filhinha expulsa

do lar, fosse onde fosse, para alívio da consciência. Desejava morrer para

reunir-se à companheira bem-amada, mas quisera levar-lhe também a

certeza de que Célia reaparecera, e que, de joelhos, havia suplicado o perdão

da filha, a quem não pudera compreender. Com esse propósito,

encaminhou-se à Campânia com os filhos, de regresso a Cápua, e, depois

de alguns dias de repouso, dispensando a companhia de qualquer servo, a

fim de entregar-se sozinho às investigações necessárias, partiu para o

Lácio, apesar de todas as súplicas de Helvidia para que aceitasse, ao

menos, a companhia do genro.

Triste e só, o velho tribuno perambulou inutilmente por todas as

cidades próximas de Terracina, estacionando longo tempo junto à gruta de

Tibério, a evocar as penosas recordações do genro. A despeito de todos os

esforços, foi em vão que viajou a Itália inteira.

Assim que, decorrido um ano da morte de Lucínia, regressou a

Roma, abatido e desolado como nunca.

Sentindo-se profundamente desamparado, era qual árvore

frondosa, singularmente insulada na planície extensa da vida. Enquanto

mantinha a seu lado as outras companheiras, podia suportar os furacões

violentos que desciam dos montes, mas, destruídos os troncos próximos,

cuja presença a fortalecia, era agora incapaz de resistir aos ventos mais

leves dos vales obscuros da dor e do destino.

Recolhido ao gabinete, recebia tão somente a visita dos amigos

mais íntimos, cuja palavra não trouxesse ao seu espírito atormentado

qualquer lembrança do passado infortunoso.

Um dia porém, um escravo veio anunciar antigo camarada de

infância, Rúfio Propércio, cuja história amarga dos últimos tempos ele

bem conhecia. Apesar das suas próprias lutas, conhecera-lhe todas as

desgraças e infortúnios.

Helvídio Lucius mandou-o entrar, sofregamente, como irmão de

dores e martírios íntimos.

Trocadas as primeiras impressões, Rúfio Propércio advertiu :

- Caro Helvídio, depois de tão longa separação, surpreende-te a

minha fortaleza moral ante as hecatombes dolorosas da existência. Devo

explicar-te o porquê da minha resignação e serenidade.

É que, hoje, abandonei nossas crenças inexpressivas para apegar-me

a Jesus-Cristo, o Filho de Deus Vivo !..

- Será possível? - exclamou o tribuno interessado.

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

- Sim, hoje compreendo melhor a vida e os sofrimentos neste

mundo. Somente nos tesouros do ensino cristão encontrei a força

indispensável à compreensão da dor e do destino. Só Jesus, com a sua

lição de piedade e misericórdia, pode salvar-nos do abismo de nossas

angústias profundas para uma vida melhor, que não comporta os

enganos e desilusões amargas da Terra...

E enquanto Helvídio Lucius o ouvia, assombrado por encontrar um

amigo íntimo estabilizado na fé ardente e pura, entre os escombros da

época, Propércio acrescentava:

- Já que te sentes igualmente ferido pelo destino, porque não

freqüentares conosco as reuniões cristãs, onde eu te poderia acompanhar?

É bem possível que encontres no Evangelho a paz almejada e a energia

imprescindível para triunfar de todos os tormentos da vida.

Ouvindo o carinhoso convite do amigo de infância, o tribuno

lembrou-se instintivamente da filha, das suas convicções. Sim, fôra o

Cristianismo que lhe dera tamanhas forças para o sofrimento e para o

sacrifício. Além disso, recordou as figuras de Nestório e Ciro, que haviam

caminhado para a morte sem um gemido, sem uma queixa.

Como que cedendo a uma súbita resolução, respondeu resoluto:

- Aceito o convite. Onde é a reunião?

- Numa casa humilde, junto à Porta Ápia.

- Pois bem, irei contigo.

Rúfio despediu-se, prometendo buscá-lo à noitinha, enquanto ele

passava o resto do dia em cogitações graves e profundas.

A hora convencionada, demandaram o local das assembléias

humildes, onde, pela primeira vez, Helvídio Lucius ouviu a leitura do

Evangelho e os comentários singelos dos cristãos. A princípio, estranhou

aquele Jesus que perdoava e amava a todos, com o mesmo carinho e a

mesma dedicação. Mas, no curso de numerosas reuniões, entendeu

melhor o Evangelho e, apesar de lhe não sentir as lições inteiramente,

admirava o profeta simples e amoroso, que abençoava os pobres e os aflitos

do mundo, prometendo um reino de luz e de amor, para além das ingratas

competições da Terra.

Seu esforço na aquisição da fé seguia o curso comum, quando um

pregador famoso surgiu, um dia, naquele núcleo de gente simples e

bondosa.

Tratava-se de um homem ainda novo, inteligente e culto, de nome

Saulo Antônio, que fizera da existência um sacrossanto apostolado, no

trabalho da evangelização.

Sua palavra inflamada e vibrante sobre os Atos dos Apóstolos,

logo após a partida do Cordeiro para as regiões da luz, impressionara o

tribuno profundamente. Pela primeira vez, escutava um intelectual, quase

sábio, a exaltar as virtudes dos seguidores do Cristo, fazendo comparações

extraordinárias entre o Evangelho e as teorias do tempo, que ele se

habituara a considerar como notas de evolução, inexcedíveis.

Terminada a preleção inspirada e brilhante, Helvídio acercou-se

do orador, exclamando com sinceridade:

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

- Meu amigo, trago-lhe meus votos para que a sua palavra

iluminada continue a clarear os caminhos da Terra. Desejava, porém, ouvilo

sobre uma dúvida que me nasceu há tempos no coração.

E enquanto o pregador lhe acolhia as palavras com profunda

simpatia, continuou :

- Não duvido dos atos dos Apóstolos de Jesus, mas estranho que,

de há muito tempo para cá, não haja mais, na Terra, organizações

privilegiadas como a dos antigos seguidores do Cristo, que possam aliviar

nossas dores e esclarecer-nos o coração nos sofrimentos!..

- Meu irmão - replicou o orador sem se perturbar -, antes de

recorrermos aos intermediários, urge prepararmos o coração para sentir a

inspiração direta do Cordeiro. A sua objeção, porém, é muito justificável.

Contudo, cumpre-me esclarecer que as vocações apostólicas não morreram

para o mundo. Em toda a parte elas florescem sob as bênçãos de Deus, que

nunca se cansou de enviar até nós os mensageiros de sua misericórdia

infinita.

E depois de ligeira pausa, como se desejasse transmitir uma

impressão fiel de suas reminiscências mais íntimas, Saulo Antônio

acrescentou convictamente :

- Faz alguns anos, era eu inimigo acérrimo do Cristianismo e dos

seus divinos postulados; todavia, bastou a contribuição de um verdadeiro

discípulo de Jesus, para que meus olhos se aclarassem buscando o

verdadeiro caminho... Ainda hoje, lá está ele, franzino e humilde como

uma flor do Céu, inaclimatável entre as urzes da Terra... Trata-se do Irmão

Marinho, que, nos arredores de Alexandria, constitui uma bênção de

Jesus, permanente e divina, para todas as criaturas.. Imagem do bem,

personificação da perfeita caridade evangélica, vi-o curar leprosos e

paralíticos, restituir esperanças e fé aos mais tristes e mais empedernidos !

Ao seu tugúrio miserável acorrem multidões de aflitos e desamparados, que

o venerável apóstolo do Cordeiro reanima e consola com as lições

profundas de amor e de humildade! Depois de peregrinar pelas sendas mais

escuras, tive a dita de encontrar a sua palavra carinhosa e benevolente, que

me despertou para Jesus, dos negrores do meu destino !...

Sentindo-lhe a profunda sinceridade, Helvídio Lucius interrogou

ansioso :

- E esse homem extraordinário recebe a todos indistintamente ?...

- Todas as criaturas lhe merecem atenção e amor.

- Pois meu amigo - revidou o tribuno no seu íntimo desconsolo -,

não obstante minha posição financeira e a consideração pública que

desfruto em Roma, trago o coração acabrunhado e doente como

nunca... As lições do Evangelho têm sustentado, de algum modo, meu

espírito abatido. Contudo, sinto necessidade de um remédio espiritual que,

suavizando-me as dores íntimas, me leve a compreender melhor os divinos

exemplos do Cordeiro... Suas referências chegam a propósito, pois irei a

Alexandria buscar a consolação desse apóstolo, mesmo porque, uma

viagem ao Egito, nas atuais circunstâncias da minha vida, far-me-á grande

bem ao coração...

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

No dia seguinte, o filho de Cneio Lucius deu os primeiros passos

para efetuar a excursão com a presteza possível.

E antes que a galera largasse de óstia, começou a concentrar as

suas esperanças naquele Irmão Marinho, cujas virtudes famosas eram

veneradas em todas as comunidades cristãs e havido por emissário de

Jesus, destinado a sustentar no mundo as tradições divinas dos tempos

apostólicos.

VI - NO HORTO DE CÉLIA

Nos arredores de Alexandria, a filha de Helvídio havia granjeado a

melhor e merecida fama de amor e bondade.

Transferida para aquela região de gente pobre e humilde,

convertera todas as recordações mais queridas, bem como as suas

dores mais íntimas, em hinos de caridade pura, que se evolavam ao

Céu entre as bênçãos de todos os sofredores infelizes.

O sofrimento e a saudade como que lhe modelaram as feições

angélicas porque, no semblante calmo, esbatia-se um traço indefinível de

visão celestial... A vida de ascetismo, de abnegação e renúncia dera-lhe

uma nova "facies" que deixava transparecer nos olhos, serenos e

brilhantes, a pureza indefinível dos que se encontram prestes a atingir as

claridades radiosas de outra vida.

Havia muito, começara a entisicar e, contudo, não abandonara a

faina apostolar junto dos sofredores. De tarde, lia o Evangelho, ao ar livre,

para quantos lhe buscavam o amparo espiritual, explicando os ensinos de

Jesus e de seus divinos seguidores, fazendo crer, nesses momentos, que

uma força divina dela se apossava. A voz, habitualmente débil, ganhava

tonalidades diferentes, como se as cordas vocais vibrassem ao sopro de

uma divina inspiração.

Conservava-se no mesmo tugúrio, ao pé do horto, cujos

trabalhos rudes nunca deixaram de lhe merecer atenção e carinho. Todos

os irmãos do mosteiro, exceto Epifânio, buscavam-lhe agora a

convivência, acatando-lhe as elucidações evangélicas e cooperando nos

seus esforços.

A jovem romana, transformada em irmão carinhoso dos infelizes,

guardava as mesmas disposições íntimas de sempre, cheia de fé e

esperança no Senhor de bondade e sabedoria.

O pequeno enjeitado de Brunehilda, depois de lhe suavizar a

soledade, por alguns anos, com os seus carinhos e sorrisos, havia falecido,

deixando-a amargurada e abatida mais que nunca. Impressionada com o

acontecimento, Célia deprecara fervorosamente e, uma noite, quando se

entregava à solidão de suas preces e meditações, divisou a seu lado o vulto

de Cneio Lucius, contemplando-a com infinita ternura.

- Filha querida, não te magoe essa nova separação do ser

idolatrado! Prossegue na tua fé, cumprindo a missão divina que o Senhor

houve por bem deferir à tua alma sensível e generosa! Depois de perfumar,

por alguns anos, a tua senda terrena, o Espírito de Ciro volve de novo ao

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

Além para saturar-se de forças novas ! Não desanimes pela saudade que

te punge o coração sensibilíssimo, pois nossa alma semeia o amor na Terra

para vê-lo florir nos Céus, onde não chegam as tristes inquietações do

mundo !... Além do mais, Ciro tem necessidade dessas provações, que lhe

hão-de temperar a vontade e o sentimento para os gloriosos feitos do seu

porvir espiritual !...

Nessa altura, a amorável entidade deteve-se como que

intencionalmente, a fim de observar o efeito de suas palavras.

Desfeita em lágrimas, a jovem falou mentalmente, como se

palestrasse com o avô no ádito do coração:

- Não duvido de que todas as dores nos são enviadas por Jesus, a

fim de aprendermos o caminho da redenção divina, mas, qual a razão dessas

vidas temporárias de Ciro na Terra? Se ele tem chegado a viver no

ambiente humano, ainda necessitado das experiências terrestres, porque

vem a morte decepando as nossas esperanças?

- Sim - replicou a entidade amorosamente -, são as leis da prova

que regem os nossos destinos.

- Mas Ciro, há alguns anos, não chegou a morrer pelo Divino

Mestre, no martírio e no sacrifício ?

- Filha, entre os mártires do Cristianismo, há os que se desprendem

do mundo em missão sacrossanta e os que morrem para os mais

penosos resgates... Ciro é do número destes últimos... Em séculos

anteriores, foi um déspota cruel, exterminando esperanças e envenenando

corações... Mergulhado depois na luta expiatória, renegou as dores

santificantes e enveredou pela senda ignominiosa do suicídio. É justo, pois,

que agora aprecie os benefícios da luta e da vida, na dificuldade de os

readquirir para a sua redenção espiritual, ansiosamente colimada. As

experiências fracassadas hão-de valorizar o seu futuro de realizações e

esforços nobilíssimos. Em face da dor e do trabalho, no porvir que se

aproxima, seu coração amará todos os detalhes da luta redentora. Saberá

prezar no trabalho ingente e doloroso os recursos sagrados da sua elevação

para Deus, reconhecendo a grandeza do esforço, da renúncia e do

sacrifício!...

Confortada com os esclarecimentos do mentor espiritual, logo

entreviu outra entidade de semblante nobre e triste, a contemplá-la num

misto de alegria e amargura.

Estranhando a visão, sentiu que a palavra carinhosa do avô

esclarecia :

- Não te surpreendas nem te assustes! Tua mãe, hoje no plano

espiritual, aqui vem comigo, trazer-te o coração bondoso e agradecido !...

Dolorosas emoções lhe vibraram no íntimo, por força daquelas

revelações inesperadas. As lágrimas se fizeram mais amargas e copiosas.

Duvidava da própria vidência, lembrando o passado com os seus espinhos e

sombras desoladoras. Mas, anjo ou sombra, o Espírito Alba Lucínia,

como que submerso num véu de tristeza impenetrável, aproximou-se e lhe

beijou as mãos.

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

Célia desejava que aquela entidade triste e benfazeja lhe

dissesse algo ao coração. A sombra materna, porém, continuava muda e

consternada. Contudo, sentiu que, na mão direita que a sombra osculara,

persistia uma sensação indefinível, como se, com o seu beijo, Alba Lucínia

trouxesse também uma lágrima ardente e dolorida.

Ante o choque inesperado, a jovem romana notou que ambas as

entidades escapavam novamente ao seu olhar.

Nessa noite, meditou sobre o passado, mais que em outros

dias, entregando a Jesus as suas preocupações e as suas mágoas,

rogando ao Senhor lhe fortificasse o espírito, a fim de compreender e

cumprir integralmente os santos desígnios da sua vontade divina.

No dia imediato ao de suas amargas reflexões concernentes ao

passado doloroso, grande multidão buscava-lhe os fraternos serviços. Eram

velhinhos desolados à cata de uma palavra consoladora e amiga,

mulheres das povoações mais próximas, que lhe traziam os filhinhos

enfermos, sem falar das muitas pessoas procedentes de Alexandria, em

busca de lenitivo espiritual para os dissabores da vida.

A medida que as cercanias do mosteiro se enchiam de viaturas,

seu vulto franzino e melancólico desdobrava-se em esforços inauditos

para consolar e esclarecer a todos.

De vez em quando, um acesso de tosse sobrevinha, provocando a

piedade alheia ; ela, porém, transformando a sua fragilidade em energia

espiritual inquebrantável, parecia não sentir o aniquilamento do corpo, de

modo a manter sempre acesa a luz da sua missão de caridade e de amor.

De tarde, invariavelmente, procedia às leituras evangélicas, ouvidas

pelos visitantes numerosos e pela gente simples do povo.

Foi aí, aos lampejos do crepúsculo, que seus olhos atentaram

numa viatura elegante e nobre, de cujo interior saltava Helvídio Lucius,

que o seu coração filial identificou imediatamente. O antigo tribuno,

encontrando a pequena assembléia ao ar livre, procurou acomodar-se

como pôde, enquanto nos traços fisionômicos do Irmão Marinho surgiam

os sinais da emoção que lhe vibrava na alma... Entretanto, sua palavra

prosseguia sempre, saturada de intensa ternura, em minudente comentário

à parábola do Senhor. O irmão dos infortunados e dos doentes falava das

pregações do Tiberíades, como se houvesse conhecido a Jesus de Nazaré,

tal a fidelidade e a amorosa vibração da sua palavra.

Enlevado na contemplação do maravilhoso quadro, o filho de Cneio

Lucius fixou o famoso missionário, tomado de surpresa estranha! Aquela

voz, aquele perfil lembrando um mármore precioso, burilado pelas lágrimas

e sofrimentos da vida, não lhe recordavam a própria filha? Se aquele Irmão

Marinho vestisse a indumentária feminina, raciocinava o tribuno vivamente

interessado, seria a imagem perfeita da filhinha que ele vinha buscando por

toda a parte, sem consolação e sem esperança. Assim conjeturando, seguialhe

a palavra, cheio de surpresa cariciosa.

Ninguém ainda lhe falara do Evangelho com aquela clareza e

simplicidade, com aquela unção de amor e firmeza, que, instintivamente,

lhe penetravam o coração, propiciando-lhe um brando consolo. Fizera a

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

viagem de Óstia a Alexandria, abatido e enfermo. Seu estado orgânico

chegara a despertar o interesse de alguns amigos romanos, a ponto de

insistirem pelo seu imediato regresso à metrópole. Profundo cansaço

transparecia-lhe dos olhos tristes, de uma tristeza inalterável e de um

penoso desencanto da vida. Mas, ao ouvir aquele apóstolo extraordinário,

cheio de benevolência e brandura, experimentava no imo um alívio salutar.

A brisa vespertina afagava-lhe levemente o rosto, com os derradeiros

reflexos do Sol a diluir-se em nuvens distantes. A seu lado, concentrada, a

multidão dos pobres, dos enfermos, dos desventurados da sorte, em preces

fervorosas, como se esperassem todas as felicidades do Céu para os seus

dias tristes.

A poucos passos, a figura esbelta e delicada do irmão dos

infortunados e aflitos, que lhe falava ao coração com maravilhosa suavidade.

A Helvídio Lucius pareceu-lhe que fôra transportado a um país

misterioso, cheio de figuras apostólicas e sentia-se, entre aqueles crentes

anônimos, na posse de um bem-estar indizível.

Desde a dolorosa desencarnação da companheira, tinha o espírito

mergulhado num véu de amarguras atrozes. Nunca mais desfrutara

tranqüilidade íntima, sob o peso de suas angústias pungentes. Entretanto,

os ensinamentos do Irmão Marinho, suas considerações e suas preces,

proporcionavam-lhe intraduzível esperança. Figurou-se-lhe que bastava

aquele instante breve para que pudesse reerguer a confiança num futuro

espiritual, pleno de realidades divinas. Sem poder explicar a causa da sua

emotividade, começou a chorar silenciosamente, como se somente naquele

instante houvesse afeiçoado, de fato, o coração às belezas imensas do

Cristianismo. Terminadas as interpretações e as preces do dia, enquanto

a multidão se retirava comovida, Célia deixara-se ficar no mesmo ponto, sem

saber que norma adotar naquelas circunstâncias. No íntimo, contudo,

agradecia a Deus a graça sublime de surpreender o espírito paterno tocado

de suas luzes divinas, suplicando ao Senhor permitisse ao seu coração filial

receber a necessária inspiração dos seus augustos mensageiros. Na quase

imobilidade de suas conjeturas, naquele momento grave do seu destino, foi

despertada pela voz de Helvídio Lucius que se aproximara, exclamando :

- Irmão Marinho, sou um pecador desencantado do mundo, que

vem até aqui atraído por vossas virtudes sacrossantas. Venho de longe e

bastou um momento de contacto com a vossa palavra e ensinamentos para

que me reconfortasse um pouco, experimentando mais fé e mais

esperança. Desejava falar-vos... A noite, contudo, não tarda e temo

aborrecer-vos...

A humildade dolorida daquelas palavras dera à jovem cristã uma

idéia perfeita de todos os tormentos que haviam aniquilado o coração

paterno.

Helvídio Lucius já não apresentava aquele porte ereto e firme que o

caracterizava como legítimo cidadão do Império e da sua época. Os lábios

tranqüilos, de outrora, ajustavam-se num ricto de tristeza e angústia

indefiníveis. Os cabelos estavam completamente brancos, como se um

inverno implacável e rijo lhe houvesse despejado na cabeça um punhado de

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

neve indestrutível. Os olhos, aqueles olhos que tantas vezes lhe

patentearam uma energia impulsiva e orgulhosa, eram agora melancólicos,

espraiando-se com humildade sincera por toda parte, ou dirigindo-se com

expressões súplices para o Alto, como se de há muito estivessem

mergulhados nas mais angustiosas rogativas.

Célia compreendeu que uma tempestade dolorosa e inflexível

havia desabado sobre a alma paterna, para que se pudesse realizar aquela

metamorfose.

- Meu amigo - murmurou de olhos úmidos -, rogo a Deus que se

não dissipem as vossas impressões primeiras e é em seu nome que vos

ofereço a minha choupana humilde! Se vos apraz, ficai comigo, pois terei

grande júbilo com a vossa presença generosa!...

Helvídio Lucius aceitou o delicado oferecimento, enxugando uma

lágrima.

E foi com enorme surpresa que reparou no casebre onde vivia,

conformado, o irmão dos infelizes.

Em poucos instantes o Irmão Marinho arranjou-lhe um leito

humilde e limpo, obrigando-o a repousar. Guardando nalma uma alegria

santa, a jovem se movia de um lado para outro e não tardou levasse ao

tribuno surpreso um caldo substancioso e um copo de leite puro, que lhe

confortaram o organismo. Depois, foram os remédios caseiros manipulados

por ela mesma, com satisfação intraduzível.

A noite caíra de todo com o seu cortejo de sombras, quando o

Irmão Marinho se assentou à frente do hóspede, encantado e comovido com

tantas provas de carinhoso desvelo.

Falaram então de Jesus, do Evangelho, casando harmônicas as

opiniões e os conceitos acerca do Cordeiro de Deus e da exemplificação de

sua vida.

De vez em quando, o tribuno contemplava o interlocutor, com o

mais acentuado interesse, guardando a impressão de que o conhecera

alhures.

Por fim, dentro do profundo bem-estar que sentia renascer-lhe

no íntimo, Helvídio Lucius ponderou:

- Cheguei ao Cristianismo qual náufrago, após as mais ásperas

derrotas do mundo ! Sinto que o Divino Mestre endereçou à minha alma

todos os apelos suaves da sua misericórdia; no entanto, eu estava surdo e

cego, no âmbito de lamentáveis desvarios. Foi preciso que uma hecatombe

desabasse em meu lar e sobre o meu destino, para que no fragor da

tempestade destruidora, conseguisse romper as muralhas que me

separavam da nítida compreensão dos novos ideais florescentes para a

mentalidade e o coração do mundo.

Jamais confiei a alguém os episódios pungentes da minha vida,

mas sinto que vós, apóstolo de Jesus e seguidor do Mestre na

exemplificação do bem, podereis compreender minha existência, ajudandome

a raciocinar evangelicamente, para que cumpra os meus deveres

nestes últimos dias de atividade terrena. Nunca, em parte alguma, deixei de

experimentar uma tal ou qual dúvida que me desconsola; aqui, porém, sem

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

saber porquê, experimento uma tranqüilidade desconhecida. Julgo dever

confiar em vós, como em mim mesmo !. Há muito, sinto necessidade de

um conforto direto, e somente a vós confio as minhas chagas, na

expectativa de um auxílio carinhoso e fraterno!.

- Se isso vos faz bem, meu amigo - obtemperou a jovem, enxugando

uma lágrima discreta - podeis confiar no meu coração, que rogará ao Senhor

pela vossa paz espiritual em todos os transes da vida...

E enquanto o Irmão Marinho lhe acariciava a cabeça encanecida

prematuramente, atormentado por dolorosas recordações, Helvídio Lucius,

sem saber explicar o motivo de sua confiança, começou a contar-lhe o

penoso romance da sua existência. De vez em quando, a voz tornava-se

abafada por uma que outra lembrança ou episódio. A cada pausa o

interlocutor, comovido, respondia ao seu estado dalma com essa ou aquela

advertência, traindo as próprias reminiscências. O tribuno surpreendia-se

com isso, mas atribuía o fato às faculdades divinatórias, presumíveis no

apóstolo do amor e da caridade pura, que tinha à sua frente.

Depois de longas horas de confidência, em que ambos choravam

silenciosamente, Helvídio concluía:

- Aí tem, Irmão Marinho, minha história amargurada e triste. De

todas as tragédias lembradas, guardo profundo remorso, mas o que mais me

acabrunha é lembrar que fui um pai injusto e cruel. Um pouco mais de calma

e um pouco menos de orgulho, teria chegado à verdade, afastando os gênios

sinistros que pesavam sobre o meu lar e o meu destino!... Relembrando

esses acontecimentos, ainda hoje me sinto transportado ao dia terrível em

que expulsei do coração a filha querida. Desde que me certifiquei da sua

inocência, procuro-a, ansioso, por toda parte; parece-me, contudo, que

Deus, punindo meus atos condenáveis, entregou-me aos supremos martírios

morais, para que eu compreendesse a extensão da falta. É por isso, Irmão,

que me sinto réu da justiça divina, sem consolação e sem esperança. Tenho

a impressão de que, para reparar meu grande crime, terei de andar como o

judeu errante da lenda, sem repouso e sem luz no pensamento. Pela minha

exposição sincera e amargurada, compreendeis, agora, que sou um pecador

desiludido de todos os remédios do mundo. Por isso, resolvi apelar para

a vossa bondade, a fim de me proporcionardes um lenitivo. Vós que

tendes iluminado tantas almas, apiedai-vos de mim que sou um náufrago

desesperado!

As lágrimas abafaram-lhe a voz.

Célia também o ouvia de olhos molhados, sentindo-se tocada em

todas as fibras do seu coração de filha meiga e afetuosa.

Desejou revelar-se ao pai, beijar-lhe as mãos encarquilhadas,

dizer-lhe do seu júbilo em reencontrá-lo no mesmo caminho que a

conduzia para Jesus... Quis afirmar que o amara sempre e olvidara o

passado de prantos dolorosos, a fim de poderem ambos elevar-se para o

Senhor, na mesma vibração de fé, mas uma força misteriosa e incoercível

paralisava-lhe o ímpeto.

Foi assim que murmurou carinhosamente :

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

- Meu amigo, não vos entregueis de todo ao desânimo e ao

abatimento! Jesus é a personificação de toda a misericórdia e há-de,

certamente, confortar-vos o coração ! Creiamos e esperemos na sua

bondade infinita!...

- Mas - obtemperava Helvídio Lucius na sua sinceridade dolorosa -

eu sou um pecador que se julga sem perdão e sem esperança!

- Quem não o seria neste mundo, meu amigo? - exclamou Célia

cheia de bondade. - Porventura, não seria destinada a todos os homens a

lição da "primeira pedra"? Quem poderá dizer "nunca errei", no oceano de

sombras em que vivemos? Deus é o juiz supremo e na sua misericórdia

inexaurível não pode cobrar aos filhos um débito inexistente!... Se vossa

filha sofreu, houve, em tudo, uma lei de provações, que se cumpriu

conforme com a sabedoria divina!...

- No entanto - gemeu o tribuno em voz amarga -, ela era boa e

humilde, carinhosa e justa! Além do mais, sinto que fui impiedoso, pelo

que, experimento agora as mais rudes acusações da própria

consciência!...

E como se quisesse transmitir ao interlocutor a imagem exata das

suas reminiscências, o filho de Cneio Lucius acrescentou, enxugando as

lágrimas :

- Se a vísseis, Irmão, no dia fatídico e doloroso, concordaríeis,

certo, em que minha desventurada Célia era qual ovelha imaculada a

caminhar para o sacrifício. Não poderei esquecer o seu olhar pungente, ao

afastar-se do aprisco doméstico, ao segregar-se do santuário da família,

honrado sempre pela sua alma de menina com os atos mais nobres de

trabalho e renúncia! Recordando esses fatos, vejo-me qual tirano que,

depois de se abandonar a toda sorte de crimes, andasse pelo mundo

mendigando a própria justiça dos homens, de modo a experimentar o

desejado alívio da consciência!

Ouvindo-lhe as palavras, a jovem chorava copiosamente, dando

curso às suas próprias reminiscências, eivadas de dor e de amargura.

- Sim, Irmão - continuou o tribuno angustiado -, sei que chorais

pelas desventuras alheias; sinto que as minhas provas tocaram igualmente o

vosso coração. Mas, dizei-me!... que deverei fazer para encontrar, de novo, a

filha bem-amada? Será que também ela tenha buscado o Céu sob o látego

das angústias humanas? Que fazer para beijar-lhe, um dia, as mãos, antes

da morte?

Essas perguntas dolorosas encontravam tão somente o silêncio da

jovem, que chorava comovida. Breve, porém, como tomada de súbita

resolução, acentuou:

- Meu amigo, antes de tudo precisamos confiar plenamente em

Jesus, observando em todos os nossos sofrimentos a determinação sagrada

da sua sabedoria e bondade infinitas! Não desprezemos, porém, o tempo,

a lastimar o passado. Deus abençoa os que trabalham e o Mestre prometeu

amparo divino a quantos laborem no mundo, com perseverança e boa

vontade!... Se ainda não reencontrastes a filhinha carinhosa, é necessário

dilatar os laços do sangue, a fim de que eles se conjuguem nos laços

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

eternos e luminosos da família espiritual. Deus velará por vós, desde que,

para substituir o afeto da filha ausente, busqueis estender o coração a todos

os desamparados da sorte... Há milhares de seres que suplicam uma

esmola de amor aos semelhantes ! Debalde mostram os braços nus aos que

passam, felizes, pelos caminhos floridos de esperanças mundanas.

Conheço Roma e o turbilhão de suas misérias angustiosas. Ao

lado das residências nobres das Carinas, dos edifícios soberbos do

Palatino e dos bairros aristocráticos, há os leprosos da Suburra, os cegos

do Velabro, os órfãos da Via Nomentana, as famílias indigentes do

Trastevere, as negras misérias do Esquilino !.. Estendei vosso braço às

filhas dos pais anônimos, ou dos lares desprotegidos da fortuna !...

Abracemo-nos com os miseráveis, repartamos nosso pão para mitigar a

fome alheia ! Trabalhemos pelos pobres e pelos desgraçados, pois a

caridade material, tão fácil de ser praticada, nos levará ao conhecimento

da caridade moral que nos transformará em verdadeiros discípulos do

Cordeiro. Amemos muito !.. Todos os apóstolos do Senhor são unânimes

em declarar que o bem cobre a multidão de nossos pecados! Toda vez que

nos desprendemos dos bens deste mundo, adquirimos tesouros do Alto,

inacessíveis ao egoísmo e à ambição que devoram as energias terrestres.

Convertei o supérfluo de vossas possibilidades financeiras em pão para os

desgraçados. Vesti os nus, protegei os orfãozinhos! Todo o bem que

fizermos ao desamparado constitui moeda de luz que o Senhor da Seara

entesoura para nossa alma. Um dia nos reuniremos na verdadeira pátria

espiritual, onde as primaveras do amor são infindáveis. Lá, ninguém nos

perguntará pelo que fomos no mundo, mas seremos inquiridos sobre as

lágrimas que enxugamos e as boas ou más ações que praticamos na

estância terrena.

E, de olhos fixos, como a vislumbrar paisagens celestes,

prosseguia :

- Sim, há um reino de luz onde o Senhor nos espera os

corações! Façamos por merecer-lhe as graças divinas. Os que praticam o

bem são colaboradores de Deus no infinito caminho da vida... Lá, não mais

choraremos em noite escura, como acontece na Terra. Um dia perene

banhará a fronte de todos os que amaram e sofreram nas estradas

espinhosas do mundo. Harmonias sagradas vibrarão nos Espíritos eleitos

que conquistarem essas moradas cariciosas !... Ah ! que não faremos nós

para alcançar esses jardins de delícia, onde repousaremos nas

realizações divinas do Cordeiro de Deus ? ! Mas, para penetrar essas

maravilhas, temos de início o trabalho de aperfeiçoamento interior,

iluminando a consciência com a exemplificação do Divino Mestre!

Havia no olhar do Irmão Marinho um clarão sublimado, como se

os olhos mortais estivessem descansando nesse país da luz, formoso e

fulgurante, que as suas promessas evangélicas descreviam. Lágrimas

serenas deslizavam-lhe dos olhos calmos, selando a verdade das suas

palavras.

Helvídio Lucius chorava, sensibilizado, sentindo que as sagradas

emoções da jovem lhe invadiam igualmente o coração, num divino contágio.

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

- Irmão Marinho - disse a custo -, pressinto a realidade luminosa

dos vossos conceitos e por isso trabalharei indefessamente, a fim de obter a

precisa paz de consciência e poder meditar na morte, com a beleza de

vossas concepções. Praticarei o bem, doravante, sob todos os aspectos e

por todos os meios ao meu alcance, e espero que Jesus se apiede de mim.

- Certo, o Divino Mestre nos ajudará - concluiu a jovem,

acariciando-lhe os cabelos brancos.

A noite ia adiantada e Célia, deixando o coração paterno banhado

de consoladoras esperanças, recolheu-se a um mísero cubículo, onde,

desfeita em pranto, rogou a Cneio Lucius a esclarecesse naquele transe

difícil, por isso que o afeto filial se apossava de suas fibras mais sensíveis.

Sorrindo piedoso e calmo, o Espírito do velhinho correspondeu-lhe

às súplicas, dizendo do seu intenso agradecimento a Deus, por ver o filho

entre as luzes cristãs, mas advertindo que a revelação da sua identidade

filial era, naquelas circunstâncias, inaproveitável e extemporânea, e

encarecendo aos seus olhos a delicadeza da situação e as realizações do

porvir.

Fortalecida e encorajada, Célia preparou a primeira refeição da

manhã, que o tribuno ingeriu, sentindo um novo sabor e experimentando

as melhores disposições para enfrentar de novo a vida.

Sabendo da sua antiga predileção pelo ambiente rural, o Irmão

Marinho levou-o a visitar o horto extenso, onde, à custa de seus esforços e

trabalhos ingentes, o mosteiro de Epifânio possuía um verdadeiro parque de

produção sadia e sem preço.

Nos grandes talhões da terra, elevavam-se árvores frutíferas,

cultivadas com esmero, salientando-se as seções de legumes e a zona bem

cuidada onde se alinhavam animais domésticos. Sob as ramagens frondosas

descansavam cabras mansas, a confundirem-se com as ovelhas de lã clara

e macia. Além, pastavam jumentas tranqüilas e, de quando em quando,

nuvens de pombos passavam alto em revoada alegre. Entre as verduras,

brincavam os fios móveis de um grande regato e, em tudo, observava

Helvídio Lucius cuidadosa limpeza, convidando o homem à vida bucólica,

simples e generosa.

De espaço a espaço, encontravam um velhinho humilde ou uma

criança sadia, que o Irmão Marinho saudava com um gesto de ternura e

bondade.

Fundamente impressionado com o que via, o filho de Cneio Lucius

acentuou, comovidamente :

- Este horto maravilhoso dá-me a impressão de um quadro bíblico!

Entre estas árvores respiro o ar balsâmico, como se o campo aqui me

falasse mais intimamente à alma ! Esclarecei-me ! Quais os vossos

elementos de trabalho ? Quanto pagais aos trabalhadores dedicados, que

devem ser os vossos auxiliares?..

- Nada pago, meu bom amigo, cultivo este horto há muitos anos e é

daqui que se abastece o mosteiro, do qual tenho sido modesto jardineiro.

Não tenho empregados. Meus auxiliares são antigos moradores da

vizinhança, que me ajudam graciosamente, quando podem dispor de alguma

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

folga. Os demais, são crianças da minha modesta escola, fundada há mais

de cinco anos para satisfazer as necessidades da infância desvalida, dos

povoados mais próximos !...

- Mas, que segredo haverá nestas paragens - exclamou Helvídio

respirando a longos haustos -, para que a terra se mostre tão dadivosa e

exuberante ?

- Não sei - disse o Irmão dos pobres, com singeleza -, aqui tão

somente amamos muito a terra! Nossas árvores frutíferas nunca são

cortadas, para que recebamos as suas dádivas e as suas flores. Os

cordeiros nos dão a lã preciosa, as cabras e as jumentas o leite nutritivo,

mas não os deixamos matar, nunca. As laranjeiras e oliveiras são as nossas

melhores amigas. As vezes, é à sua sombra que fazemos nossas preces, nos

dias de repouso. Somos, aqui, uma grande família. E os nossos laços de

afeto são extensivos à Natureza.

Fornecendo as explicações que Helvídio aceitava atenciosamente,

enumerava fatos e descrevia episódios de sua observação e experiência

próprias, imprimindo em cada palavra o cunho de amor e simplicidade do

seu espírito.

- Um dia - explicou com um sorriso infantil - observamos que os

cabritos mais idosos gostavam de perseguir os cordeirinhos mansos e

pequeninos. Então, as crianças da escola, recordando que Jesus tudo

obtinha pela brandura do ensinamento, resolveram auxiliar-me na criação

das ovelhas e das cabras, construindo para isso um só redil... Ainda

pequenos, uns e outros, filhos de mães diferentes, eram reunidos em todos

os lugares e, com o amparo dos meninos, levados às nossas preces e aulas

ao ar livre. As crianças sempre acreditaram que as lições de Jesus deviam

sensibilizar os próprios animais e eu as tenho deixado alimentar essa

convicção encantadora e suave. O resultado foi que os cabritos brigões

desapareceram. Desde então o redil foi um ninho de harmonia. Crescendo

juntos, comendo a mesma relva e sentindo sempre a mesma companhia, uns

e outros eliminaram as instintivas aversões!... Por mim, observando essas

lições de cada instante, fico a pensar como será feliz a coletividade humana

quando todos os homens compreenderem e praticarem o Evangelho?...

O tribuno ouviu a historieta na sua radiosa simplicidade, com

lágrimas nos olhos.

Fixando o interlocutor, Helvídio Lucius acentuou, deixando

transparecer um brilho novo no olhar:

- Irmão Marinho, estou compreendendo, agora, a exuberância da

terra e a maravilha da paisagem. Todos esses feitos são um milagre do

devotamento com que vindes consagrando todas as energias à terra

benfazeja. Tendes amado muito e isso é essencial. Por muitos anos, fui

também homem do campo, mas, até agora, venho explorando o solo apenas

com o interesse comercial. Agora compreendo que, doravante, devo amar

também a terra, se algum dia regressar à lavoura. Hoje entendo que tudo no

mundo é amor e tudo exige amor.

A jovem ouvia as considerações paternas, enlevada nas suas

esperanças.

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

Três dias ali ficou Helvídio Lucius, a edificar-se naquela paz

inalterável. Horas de tranqüilidade suave, em que todas as amarguras

terrestres como por encanto se lhe aquietavam no íntimo do coração

entristecido.

Por vezes, Célia teve ímpetos de lhe comunicar as carinhosas

emoções do seu coração filial e, contudo estranha força parecia coarctar-lhe

a vontade, dando-lhe a entender que ainda era prematura qualquer

revelação.

Por fim, ao despedir-se, mais fortalecido e confortado, o tribuno

falou :

- Irmão Marinho, parto com o espírito tocado de novas disposições

e de outras energias para enfrentar a luta e as tristes expiações que me

competem na Terra!.. Rogai a Deus por mim, pedi a Jesus que eu tenha o

ensejo e a força de pôr em prática os vossos conselhos. Volto a Roma com a

idéia do bem a cantar-me nalma. Seguirei vossas sugestões em todos os

passos e, nesse escopo, é bem possível que o Senhor satisfaça as

minhas justas aspirações paternas. Logo que possa, regressarei para

abraçar-vos !... Jamais poderei esquecer o bem que me fizestes !

Ela tomou-lhe, então, a destra e beijou-a de olhos úmidos,

enquanto o tribuno considerava, comovido, aquele gesto de humildade.

Ansiosamente, deteve-se a contemplar o carro que o transportava,

de volta a Alexandria, até que ele se sumisse ao longe, numa nuvem de pó.

Fechando-se então, no seu cubículo, abriu uma pequena caixa de

madeira trazida de Minturnes, na qual guardava a túnica com que saíra de

casa no dia amargurado do seu exílio. Entre as poucas peças, repousava a

pérola que o pai lhe trouxera da Fócida, única jóia que lhe ficara, depois de

totalmente espoliada pela criminosa ambição de Hatéria. E revirava nas

mãos, entre lágrimas, os objetos antigos e simples de suas cariciosas

lembranças.

Elevando-se, em prece a Deus, rogou não lhe faltassem as energias

indispensáveis ao cumprimento integral de sua missão.

Quanto a Helvídio Lucius, de regresso, sentia-se como que

banhado numa corrente de pensamentos novos.

O Irmão Marinho, a seus olhos, era um símbolo perfeito dos dias

apostólicos, quando os seguidores de Jesus operavam no mundo, em seu

nome.

Desembarcando em Nápoles, dirigiu-se para Cápua, onde foi

recebido pelos filhos com excepcionais demonstrações de carinho.

Caio e a esposa exultaram com as suas melhoras físicas e

espirituais, apenas estranhando que regressasse do Egito com tantas idéias

de caridade e beneficência.

Depois de esclarecê-los, quanto ao Irmão Marinho e à fascinação

que ele exercera no seu espírito, Helvídio Lucius acentuou :

- Filhos, sinto que não poderei viver muito tempo e quero morrer de

conformidade com a doutrina que abracei de coração. Voltarei agora a

Roma e tratarei de preparar o porvir espiritual, conforme as minhas novas

concepções. Espero que me não contrariem os últimos desejos. Dividirei

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

nossos bens e a terça parte ser-lhes-á entregue em tempo oportuno. O

restante, buscarei movimentar de acordo com a minha crença nova. Conto

com o auxílio de ambos, neste particular.

No íntimo, Caio e Helvídia atribuíram a súbita transformação

paterna a sortilégio dos cristãos, que, a seu ver, teriam abusado da sua

situação de fraqueza e abatimento, em face dos muitos abalos morais. Nada

obstante, com a generosidade que a caracterizava, a esposa de Fabrícius

acentuou :

- Meu pai, não ouso discutir vossos pontos de fé, pois, acima de

qualquer controvérsia religiosa, estão o nosso amor e o vosso bem-estar!

Procedei como melhor vos prouver. Financeiramente, não há preocuparvos

com o nosso futuro. Caio é trabalhador e eu não tenho grandes

pretensões. Além do mais, os deuses velarão sempre por nós, como o têm

feito até agora. Portanto, podereis agir, sempre confiante em nosso afeto e

acatamento às vossas decisões.

Helvídio Lucius abraçou a filha, em sinal de júbilo pela sua

compreensão, enquanto Caio, num sorriso, esboçava o seu assentimento.

Voltando a Roma dos seus dias de triunfo e mocidade, o orgulhoso

patrício estava radicalmente transformado. Seu primeiro ato de verdadeira

conversão a Jesus foi libertar todos os escravos da sua casa,

providenciando solicitamente pelo futuro deles.

Afrontando os perigos da situação política, não fez mistério de

suas convicções religiosas, exaltava as virtudes do Cristianismo nas esferas

mais aristocráticas. Os amigos, porém, o ouviam penalizados. Para os de

sua esfera social, Helvídio Lucius padecia as mais evidentes perturbações

mentais, provenientes da tragédia dolorosa que lhe enchera o lar de um luto

perpétuo e angustioso. O tribuno, todavia, como se prescindisse de todas as

honrarias exigidas pelos de sua condição, parecia inacessível aos conceitos

alheios e, com assombro de todas as suas relações, dispôs da maioria dos

bens patrimoniais em obras piedosas, com as quais os órfãos e as viúvas

se beneficiavam. Seus companheiros humildes da Porta Ápia se regozijaram

com o ardor evangélico de que dava, agora, pleno testemunho, auxiliandolhes

os esforços e defendendo-os publicamente. Não mais se entregou

aos ócios sociais, porquanto, às vezes, pela manhã, era visto no Esquilino

ou na Suburra, no Trastevere ou no Velabro, buscando informações dessa

ou daquela família de indigentes. Não só isso. Visitou os descendentes de

Hatéria, procurou-a no intuito de perdoar-lhe, mas não encontrou sequer

notícias, pois ninguém conhecia o trágico fim da velhinha, ocorrido no

mesmo sentido oculto por ela utilizado para a prática do mal. O tribuno,

todavia, aproveitou a estada em Benevento para ensinar aos membros

daquela família, que se considerava integrada na sua tutela, os métodos

seguidos pelo Irmão Marinho no trato carinhoso da terra. Em seguida, ei-lo

na herdade de Caio Fabrícius, onde assumiu voluntariamente a direção de

numerosos serviços rurais, utilizando aqueles processos que jamais poderia

esquecer, tornando-se amado como um pai pelos que recebiam, de boa

vontade, suas idéias novas e interessantes.

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

Todavia, depois de tantos e benéficos labores, o antigo tribuno

adoeceu, sobressaltando o coração dos filhos e dos amigos.

Assim esteve um mês, combalido e padecente, quando um dia,

melancólico e trêmulo, chamou a filha e lhe disse com a maior ternura:

- Helvídia, sinto que meus dias neste mundo estão contados e

desejava rever o Irmão Marinho, antes de morrer.

Ela lhe fez sentir a inconveniência da viagem, mas o tribuno insistia

com tanto empenho que acabou anuindo, com a condição de fazer-se

acompanhar pelo genro. Helvídio Lucius recusou, porém, alegando não

desejar interromper o ritmo doméstico. Resolveram então, que seguisse

acompanhado por dois servos de confiança, na previsão de qualquer

eventualidade.

Sentindo-se melhor com a consoladora perspectiva de voltar a

Alexandria e rever os sítios onde lograra tanto conforto para o espírito

abatido, o tribuno preparou-se convenientemente, não obstante os temores

da filha, que lhe beijou as mãos enternecida, de coração pressago, quando o

viu partir.

Helvídio Lucius estreitou-a nos braços com um olhar intraduzível,

contemplando em seguida a paisagem rural, melancolicamente, como se

quisesse guardar na retina um quadro precioso, observado pela última vez.

Caio e sua mulher, a seu turno, não conseguiram ocultar as

lágrimas afetuosas.

Com o espírito de resolução que o caracterizava, o filho de Cneio

Lucius não se deu conta dos temores e inquietações dos filhos, partindo

serenamente, seguido pelos dois servos de Caio Fabrícius, que o não

abandonavam um só instante.

Contudo, antes que a embarcação aproasse a Alexandria ele

começou a sentir a recrudescência do seu mal orgânico. A noite, não

conseguia forrar-se à dispnéia inflexível e, durante o dia, sentia-se tomado

de profunda fraqueza.

Fazia mais de um ano que conhecera de perto o Irmão Marinho.

Um ano mais, de trabalhos incessantes ao serviço da caridade evangélica. E

Helvídio Lucius, que se deixara fascinar pelo espírito carinhoso do irmão

dos infortunados e humildes, não queria morrer sem lhe demonstrar que

aproveitara as lições sublimes. Não sabia explicar a simpatia infinita que o

monge lhe despertara. Sabia, tão somente, que o amava com arroubos

paternais. Assim, vibrando de júbilo por haver aplicado os seus

ensinamentos com dedicação e destemor, aguardava ansioso o instante de

revê-lo e cientificá-lo de todos os seus feitos, que, embora tardios, lhe

haviam acalmado extraordinariamente o coração.

De Alexandria ao mosteiro, viajou numa liteira especial, com o

conforto possível. Ainda assim, chegou ao destino grandemente

combalido.

O Irmão Marinho, por sua vez, estava vivendo os derradeiros dias

do seu apostolado. Os olhos se lhe haviam tornado mais fundos e, no

rosto, pairava uma expressão dolorosa e resignada, como se tivesse

absoluta certeza do próximo fim.

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

O reencontro de ambos foi uma cena comovedora e tocante,

porque Célia também esperava ansiosa o coração paterno, crente de que, em

breve, partiria ao encontro dos entes queridos que a precederam nas

sombras do sepulcro. Havia meses, interrompera as prédicas porque

todos os esforços físicos lhe produziam hemoptises. Todavia, os estudos

evangélicos continuavam sempre. Os Irmãos do mosteiro se incumbiram

de prosseguir na tarefa sagrada, e os velhos e as crianças substituíam-na

nos serviços do horto, onde as árvores se cobriam de flores novamente.

Foi debalde que Epifânio, então tocado pelos atos de sacrifício e

humildade daquela alma generosa, tentou levá-la para um aposento

confortável e lavado de Sol, no interior do mosteiro, a fim de lhe atenuar os

padecimentos. Ela preferiu a casinhola singela do horto, fazendo questão

de ficar no insulamento das suas meditações e das suas preces, convicta

de que o pai voltaria e desejando revelar-se-lhe, antes de morrer.

Era quase noite fechada quando o patrício lhe bateu à porta,

atormentado por singulares padecimentos.

Recebeu-o com intenso júbilo, e, embora fraquíssima, providenciou

a acomodação imediata dos servos em singela dependência distante, logo

voltando ao interior, onde Helvídio a esperava aflito, dado o agravo súbito de

todos os seus males.

Debalde lhe trouxe a jovem os recursos da sua medicina caseira,

porque, de hora a hora, o tribuno experimentava a dispnéia, cada vez mais

intensa, enquanto o coração lhe pulsava em ritmo precipitoso..

A noite ia adiantada quando Helvídio Lucius, fazendo a filha sentarse

junto dele, murmurou com dificuldade :

- Irmão Marinho... não cuides mais do meu corpo... Tenho a

impressão de estar vivendo os últimos instantes... Guardava o secreto

desejo de morrer aqui, ouvindo as vossas preces, que me ensinaram a amar

a Jesus... com mais carinho..

Célia começou a chorar amargamente, percebendo a realidade

dolorosa.

- Chorais ? ?.. sereis sempre o irmão... dos infelizes e desditosos...

Não me esqueçais nas vossas orações...

E, lançando à filha um olhar inolvidável e triste, continuava na voz

reticenciosa da agonia:

- Quis voltar para dizer-vos que procurei pôr em prática as vossas

lições sublimes. Sei que outrora fui um perverso, um orgulhoso... Fui

pecador, Irmão, vivia longe da luz e... da verdade. Mas... desde que me

fui daqui, tenho procurado proceder conforme me ensinastes... Dispus da

maior parte dos bens em favor dos pobres e dos mais desfavorecidos da

sorte... Procurei proteger as famílias desventuradas do Trastevere,

busquei os órfãos e as viúvas do Esquilino... Proclamei minha crença nova

entre todos os amigos que me ridiculizaram... Doei uma casa aos

companheiros de fé, que se reúnem perto da Porta Apia... Busquei todos

os meus inimigos e lhes pedi perdão para poder repousar o pensamento

atormentado... Permanecendo muitos meses na herdade de meus filhos,

ensinei o Cristianismo aos escravos, dando-lhes notícias do vosso horto,

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

onde a terra recebe a mais elevada cooperação de amor... Então, via que

todos trabalhavam como me ensinastes... Em cada moeda que oferecia aos

desgraçados, eu vos via abençoando o meu gesto e a minha

compreensão... Não tenho coragem de me dirigir a Jesus... Sinto-me fraco e

pequenino diante da sua grandeza... Pensava assim em vós, que

conheceis a dolorosa história da minha vida... Pedireis por mim ao Divino

Mestre, pois as vossas orações devem ser ouvidas no Céu...

Fizera uma pausa na exposição dolorosa, enquanto a jovem se

mantinha em silêncio, orando com lágrimas.

Sentando-se a custo, porém, o patrício tomou-lhe a destra e,

fixando-lhe os olhos percucientes, continuou em voz entrecortada a revelar

as suas derradeiras esperanças e desejos:

- Irmão Marinho, tudo fiz com a mesma aspiração paterna de

encontrar minha filha no plano material... Buscando os pobres e

desamparados da sorte, muitas vezes julguei encontrá-la, restituída ao meu

coração... Desde que me fiz adepto do Senhor, creio firmemente na outra

vida... Creio que encontrarei além do sepulcro todos os afetos que me

antecederam no túmulo e quisera levar à minha companheira a certeza de

haver reparado os erros do passado doloroso... Minha esposa foi sempre

ponderada e generosa e eu desejava levar-lhe a notícia... de haver reparado

os impulsos doutros tempos, quando não sentia Jesus no coração...

E como se desejasse mostrar o seu último desencanto, o

moribundo concluía, depois de uma pausa:

- Entretanto... Irmão... o Senhor não me considerou digno dessa

alegria... Esperarei, então, o seu breve julgamento, com o mesmo remorso e

com o mesmo arrependimento...

Ante aquele ato de humildade suprema e de suprema esperança no

Senhor Jesus, o Irmão Marinho levantou-se e, fitando-o de olhos úmidos

e brilhantes, exclamou :

- Vossa filha aqui está, esperando a vossa vinda!... Haveis de

reconhecer que Jesus ouviu as nossas súplicas !..

Helvídio despediu um olhar penetrante, cheio de amargura e de

incredulidade, enquanto, pelas faces pálidas, lhe escorria copioso o suor da

agonia.

- Esperai ! - disse a jovem num gesto carinhoso.

E volvendo rápida ao interior, desfez-se do burel, e vestiu a

velha túnica com que se ausentara do lar no momento crítico do seu

doloroso destino, colocando ao peito a pérola da Fócida que o pai lhe

ofertara na véspera do angustioso acontecimento. E dando aos cabelos o

seu penteado antigo, penetrou no quarto ansiosamente, enquanto o

moribundo verificava a sua metamorfose, assomado de espanto.

- Meu pai ! meu pai !... - murmurou enlaçando-lhe o busto, com

ternura, como se naquele instante conseguisse realizar todas as

esperanças da sua vida.

Mas, Helvídio Lucius, com a fronte empastada de álgido suor, não

teve forças para externar a alegria íntima, colhido de surpresa e assombro

indefiníveis. Quis abraçar-se à filha idolatrada, beijar-lhe as mãos e pedir-lhe

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

perdão, na sua alegria suprema. Desejava ter voz para dizer do júbilo que

lhe dominava o coração paterno, inquirindo-a e expondo-lhe os seus

sofrimentos inenarráveis. A alegria intensa havia rompido, porém, as suas

derradeiras possibilidades verbais. Apenas os olhos, percucientes e lúcidos,

refletiam-lhe o estado dalma, dando conta da sua emoção indescritível.

Lágrimas silenciosas começaram a rolar-lhe pelas faces descarnadas,

enquanto Célia o osculava, murmurando ternamente :

- Meu pai, do seu reino de misericórdia Jesus ouviu as nossas

preces ! Eis-me aqui. Sou vossa filha !... Nunca deixei de vos amar !...

E como se quisesse identificar-se por todos os modos aos olhos

paternais, no instante supremo, acrescentava:

- Não me reconheceis? Vede esta túnica! É a mesma com que saí

de casa no dia doloroso... Vedes esta pérola? É a mesma que me destes na

véspera de nossas provações angustiosas e rudes... Louvado seja o Senhor

que nos reúne aqui, nesta hora de dor e de verdade. Perdoai-me se fui

obrigada a adotar uma indumentária diferente, a fim de enfrentar a minha

nova vida! Precisei desses recursos para defender-me das tentações e

furtar-me à concupiscência dos homens inferiores !... Desde que saí do lar,

tenho empregado o tempo em honrar o vosso nome... Que desejais vos diga

ainda, por demonstrar minha afeição e meu amor?..

Mas, Helvídio Lucius sentia que misteriosa força o arrebatava do

corpo; uma sensação desconhecida lhe vibrava no íntimo, envolvia-o

numa atmosfera glacial.

Ainda tentou falar, mas as cordas vocais estavam hirtas. A língua

paralisara na boca intumescida. Todavia, atestando os profundos

sentimentos que lhe vibravam no coração, vertia copiosas lágrimas,

envolvendo a filha adorada num olhar amoroso e indefinível. Esboçou um

gesto supremo, desejando levar as mãos de Célia aos lábios, mas foi ela

quem, adivinhando-lhe a intenção, tomou-lhe as mãos inertes, frias, e

osculou-as longamente. Depois, beijou-lhe a fronte, tomada de imensa

ternura !...

Ajoelhando-se em seguida, rogou ao Senhor, em voz alta,

recebesse o espírito generoso do pai, no seu reino de amor e de bondade

infinita !...

Com lágrimas de afeto e de agradecimento ao Altíssimo, cerrou-lhe

as pálpebras no derradeiro sono, observando que a fisionomia do tribuno

estava, agora, nimbada de paz e serenidade.

Por instantes permaneceu genuflexa e viu que o ambiente se

enchera de numerosas entidades desencarnadas, entre as quais se

destacavam os perfis de sua mãe e do avô, que ali permaneciam de

semblante calmo e radiante, estendendo-lhe os braços generosos.

Figurou-se-lhe que todos os amigos do tribuno estavam presentes

no instante extremo, a fim de lhe escoltar a alma regenerada, aos luminosos

páramos do Cordeiro de Deus.

Aos primeiros clarões da aurora, deu as necessárias providências,

solicitando a presença dos servos do morto, que acorreram pressurosos

ao chamado.

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

Novamente reintegrada no seu hábito de monge, Célia encaminhouse

ao mosteiro e comunicou o fato à autoridade superior, rogando

providências.

Todos, inclusive o próprio Epifânio, auxiliaram o Irmão Marinho na

solução do assunto.

Os serviçais de Caio Fabrícius explicaram, porém, que seus

patrões, em Cápua, estavam certos de que o viajante não poderia resistir aos

percalços da viagem mais que penosa, e os haviam esclarecido sobre as

personalidades a quem se deveriam dirigir em Alexandria, para que os

despojos voltassem à Campânia, caso o tribuno falecesse.

E assim, de manhã bem cedo, um grupo de quatro homens,

inclusive os dois servos aludidos, transportavam o cadáver de Helvídio

Lucius para a cidade próxima.

Encostada à porta da sua choupana e ante o olhar dos irmãos do

mosteiro que a acompanhavam, Célia contemplou a liteira fúnebre até

que desaparecesse ao longe, entre nuvens de pó.

Quando o grupo desapareceu nas derradeiras curvas da estrada,

Célia sentiu-se só e abandonada, como nunca. A revivescência da afeição

paterna, em tais circunstâncias, lhe havia trazido amargurosa tristeza.

Jamais a angústia do mundo se apossara tão fortemente de sua alma.

Buscou o refúgio da prece e, todavia, figurou-se-lhe que as mais pesadas

sombras lhe haviam invadido o ser. Não tinha desesperado o coração, nem

o senso do infortúnio lhe consentia queixumes e lamentações. Mas, uma

saudade singular dos seus mortos bem-amados enchia-lhe, agora, o

coração, de um como filtro misterioso de indiferentismo para o mundo.

Começou a fixar o pensamento em Jesus, mas, em breve, as rosas de

sangue começaram a brotar de sua boca, num fluxo contínuo.

Alguns irmãos amigos acercaram-se, enquanto Epifânio, tocado no

mais fundo do coração, mandava transferi-la para o mosteiro com a maior

solicitude. De nada valeram, porém, os recursos médicos e as supremas

dedicações da extrema hora.

As hemoptises se prolongavam, assustadoramente, sem

ensejarem qualquer esperança.

Na sua velhice cheia de unção e arrependimento, o superior tudo

envidava para restituir a saúde ao jovem monge, cujas virtudes se

impuseram como símbolo de amor e de trabalho...

Dois dias se passaram, de angústia infinita.

Durante aquelas horas torturantes, Epifânio deu ordem para que

as visitas fossem recebidas. Pela primeira vez, as portas do convento se

abriram para os populares e os velhinhos das redondezas se aproximaram

do Irmão Marinho, cheios de lágrimas sinceras.

Um a um, acercaram-se da jovem, beijando-lhe as mãos trêmulas e

descarnadas.

- Irmão Marinho - dizia um deles -, tu não deverias morrer !.. Se

partires agora, quem ensinará o bom caminho às nossas filhas?

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

- E quem ensinará o Evangelho aos nossos netos? - clama um

outro, disfarçando as lágrimas.

Mas a jovem, de olhar firme e sereno, exclamava com bondade :

- Ninguém morre, meus irmãos! Não nos prometeu Jesus a vida

eterna?... Para cada qual, tinha um olhar de ternura e a luz cariciosa de um

sorriso.

Na noite imediata agravaram-se de maneira atroz os seus

padecimentos.

Compreendendo que o fim se aproximava, o velho Epifânio

perguntou-lhe algo, quanto aos seus últimos desejos, e ela, erguendo para o

superior o olhar sereno, acentuou :

- Meu pai, rogo que me perdoeis se alguma vez vos ofendi por atos

ou por palavras!... Orai por mim, para que Deus tenha compaixão de minha

alma... e se é permitido pedir-vos alguma coisa... desejo ver as crianças da

escola, antes de morrer...

Epifânio ocultou as lágrimas levando as mãos ao rosto, e, antes do

amanhecer, três irmãos saíram pelos povoados mais próximos, a fim de

reunir os pequeninos, por satisfazer os últimos desejos da agonizante.

Depois do meio-dia, todas as crianças da escola penetraram o

quarto, respeitosas.

O Irmão Marinho, contudo, recostado nas almofadas, enviava-lhes

um sorriso bom e compassivo, embora o peito lhe arfasse penosamente.

Num gesto extremo chamou-as a si, inquirindo a cada uma sobre

os estudos, o trabalho, a escola...

Os meninos, mal percebendo a hora dolorosa, sentiam-se à

vontade, enquanto Célia lhes sorria.

- Irmão Marinho - dizia um pequenote de olhos graves -, todos nós,

lá em casa, temos pedido a Deus pelas vossas melhoras !

- Obrigado, meu filho !... - dizia a agonizante, fazendo o possível

por dissimular os sofrimentos.

Em seguida, era uma pequenina interessante no seu vestidinho

pobre, a balbuciar em tom discreto :

- Irmão Marinho, pai Epifânio não deixou que eu plantasse a

roseira ao pé do redil e me repreendeu asperamente.

- Que tem isso, filhinha?... Pai Epifânio tem razão... o redil não é

lugar das flores... Plantarás a roseira nova perto da janela. Lá ela receberá

mais Sol... E tu darás ao pai Epifânio a primeira flor..

- Olha, Irmão - repetia outro pequenito de cabelos despenteados -,

as ovelhas esta noite nos deram dois novos cordeirinhos.

- Tratarás deles, meu filho !... - dizia a jovem com dificuldade.

- Irmão - exclamava outro menino -, tenho rogado a Jesus que te

devolva a saúde preciosa.

- Meu filho... - dizia a agonizante -, nós não devemos pedir ao

Senhor isso ou aquilo, e sim a compreensão de sua vontade que é soberana

e justa..

Mas, em face da inquietude infantil que a rodeava, exclamou,

desejando concentrar as derradeiras energias para a prece:

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

- Filhinhos... cantem... para mim...

Entre as crianças deu-se ligeiro tumulto, quanto à escolha do hino

a ser cantado.

Foi, então, que uma pequenita lembrou que o Sol se preparava

para mergulhar no horizonte, fazendo sentir aos companheiros que, nessa

hora, o Irmão Marinho preferira sempre o "Hino do Entardecer", ensinado a

todos com carinho fraternal.

Então, todos, de mãos dadas, rodearam o leito, no qual a enferma

oferecia a Deus os seus derradeiros pensamentos, enquanto todos os

irmãos da comunidade observavam, chorando, a distância, a cena

comovedora e dolorosa.

Mais alguns minutos e elevaram-se aos céus as notas cristalinas

do cântico singelo:

Louvado sejas, Jesus!

Na aurora cheia de orvalho,

Que traz o dia, o trabalho,

Em que andamos a aprender.

Louvado sejas, Senhor!

Pela luz das horas calmas,

Que adormenta as nossas almas

No instante do entardecer...

O campo repousa em preces,

O céu formoso cintila,

E a nossa crença tranqüila

Repousa no teu amor;

É a hora da tua bênção

Nas luzes da Natureza,

Que nos conduz à beleza

Do plano consolador.

É nesta hora divina,

Que o teu amor grande e augusto

Dá paz à mente do justo,

Alívio e conforto à dor!

Amado Mestre abençoa

A nossa prece singela,

Faze luz sobre a procela

Do coração pecador!

Vem a nós! Do céu ditoso

Ampara a nossa esperança,

Temos sede de bonança,

De amor, de vida e de luz!

Na tarde feita de calma,

Sentimos que és nosso abrigo,

Queremos viver contigo,

Vem até nós, meu Jesus!..

Célia ouvia o hino das crianças, em seus últimos acordes.

Figurou-se-lhe que a sala humilde estava povoada de artistas inimitáveis.

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

Eram todos jovens graciosos e crianças risonhas, que empunhavam

flautas e harpas siderais, alaúdes e timbales divinos. Desejou contemplar os

meninos da sua escola humilde e falar-lhes, mais uma vez, da sua alegria

infinda, mas, ao mesmo tempo, sentiu-se rodeada de seres carinhosos que,

sorridentes, lhe estendiam os braços. Ali estavam seus pais, o venerando

avô, Nestório, Hatéria, Lésio Munácio e a figura encantadora de Ciro, como

que envolta num peplo de neve translúcida... A um gesto da amorável

entidade Cneio Lucius, Ciro avançava estendendo-lhe os braços. Era o

gesto de carinho que o seu coração esperara toda a vida!... Quis falar da sua

felicidade e gratidão ao Senhor dos Mundos, mas, sentia-se exausta, como

se chegasse de uma luta extenuante.

Guardando-lhe a fronte nas mãos, sob a música do carinho, Ciro

lhe dizia de olhos úmidos:

- Ouve, Célia! Este é um dos sublimes cantos de amor, que te

consagram na Terra!

Ela não viu que as crianças ansiosas lhe cobriam de lágrimas as

mãos imóveis e alvas, abraçando ternamente o seu cadáver de neve... A um

só tempo, todos os irmãos do mosteiro se lançaram comovidos para os seus

despojos, ao passo que, no plano invisível, um grupo de entidades amigas

e carinhosas conduzia numa onda de luz e perfumes, aos páramos do

Infinito, aquela alma ditosa de mártir.

VII - NAS ESFERAS ESPIRITUAIS

Prestando as derradeiras homenagens ao Irmão Marinho, os

religiosos do mosteiro conheceram a verdade dolorosa. Só então,

certificaram-se de que o caluniado irmão dos pobres e da infância desvalida

era uma virgem cristã, que exemplificava, entre eles, as mais elevadas

virtudes evangélicas.

Diante do fato imprevisto e passada a comoção do espanto, todos

os monges inclusive Epifânio, se prosternavam humildes, banhados no

pranto da compunção e do arrependimento.

Debalde procuraram investigar a origem e antecedentes da jovem

mártir, para só conservarem da sua pessoa e dos seus feitos imorredoura

lembrança, a fim de poderem, mais tarde, justificar a sua exemplificação

santificante.

Cheio de amargura, o velho superior da comunidade reclamou a

presença de Menênio Túlio e da filha, para que se esclarecesse a pérfida

calúnia, mas, ante o cadáver da virgem cristã e recordando a sua humildade,

Brunehilda perdeu a razão, para sempre.

Nunca mais a figura de Célia foi olvidada pelos religiosos, pelos

crentes, pelos desventurados e pelos aflitos. Convertida em símbolo de

amor e piedade, sua memória centralizou, nos arredores de Alexandria, os

votos e rogativas das almas fervorosas e sinceras.

Mas, acompanhando nossas principais personagens à vida do

além-túmulo, antes de iniciarem novas lutas remissoras, vamos encontrá-las

em grupos dispersos, conforme o seu estado consciencial, às vésperas de

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

regressarem, convocadas ao esforço coletivo nos sagrados institutos da

família.

A exceção de Célia, chamada a um mundo superior, onde lhe foi

concedida a tarefa de velar pela evolução dos seus entes bem-amados, os

demais permaneciam nas esferas mais próximas da Terra, regiões de

trabalho e de luta, buscando cada qual armazenar energias novas para

subseqüentes esforços no plano material.

De todo o grupo, as personalidades de Cláudia Sabina, Lólio

Úrbico, Fábio Cornélio e Silano Plautius eram as que se conservavam nas

regiões mais rasas e mais sombrias, atento o doloroso estado de

consciência que as caracterizava.

Em esferas mais elevadas, Helvídio Lucius junto de quantos lhe

foram familiares, inclusive Ciro, repousavam do trabalho, esforçando-se, em

conjunto, por fixar as bases espirituais, asseguradoras de êxito futuro.

Algumas personagens, como Nestório e Policarpo, faziam

grandes excursões pelos arredores sombrios do planeta, cooperando com

os mensageiros de Jesus, que pregavam a Boa Nova aos espíritos

desalentados e sofredores, levando a efeito o mais sadio aprendizado

evangélico para as lutas do futuro nos ambientes terrenos, onde

prosseguiriam, mais tarde, no abençoado labor de redenção do passado

culposo.

A vida cariciosa do plano espiritual constituía, para todos, um

conforto suave.

Continuamente, os grandes portadores das determinações divinas

ensinavam aí as verdades do Mestre, enchendo os corações de paz e de

esperança.

As almas afins, reunidas em grupos familiares, sabem apreciar,

fora das vibrações pesadas do mundo físico, os bens supremos da verdade

e da paz, sob os laços sublimes do amor e da sabedoria.

Examinadas as disposições felizes dessas esferas, cuja intimidade

encantadora não poderemos descrever aos leitores humanos, vamos

encontrar o agrugamento de Cneio Lucius na região de repouso em que

todas as nossas personagens se encontravam, embaladas na carícia suave

de numerosos afetos dos séculos longínquos.

Tudo era uma carinhosa esperança nos corações e um generoso

propósito nas almas.

Os nobres projetos, com vistas ao porvir, sucediam-se uns aos

outros.

No grupo em que a tranqüilidade se estampava no espírito de

todos os componentes, esperava-se Júlia Spinter que, em companhia de

Nestório, descera aos ambientes inferiores do orbe terrestre, tentando

acordar com o seu amor os sentimentos entorpecidos do companheiro, que

se mantinha nas mesmas atitudes de ódio e vingança.

- É inútil - dizia Cneio Lucius, bondosamente, dirigindo-se aos

filhos e aos amigos -, é inútil mantermos propósitos de vindita depois das

lutas terrestres, pois a reencarnação, nesse caso, soluciona todos os

problemas ! Na minha última ida a Roma, tive ocasião de ver o Imperador

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

Élio Adriano no corpo miserável do filhinho de uma escrava. Desde essa

hora, tenho ponderado bastante os nossos deveres e a necessidade de

recebermos com o maior amor a vontade divina.

- Sim - exclamava Lésio Munácio, então presente -, nas minhas

excursões evangélicas pelas zonas inferiores, tenho encontrado antigos

nobres de nossa época, que suplicam a Deus uma nova oportunidade na

Terra, sem escolherem as condições do futuro aprendizado.

- O conhecimento no Espaço - aventava Helvídio Lucius - parece

que nos enche o coração de profunda dedicação pelo sofrimento. Em face

da grandeza divina e reconhecendo, aqui, a nossa insignificância, sentimonos

capazes de todas as tarefas de redenção, porquanto, agora, aos

nossos olhos, os maiores feitos da Terra são ações humildes e pequeninas.

- Grande é a misericórdia de Jesus – dizia Cneio - que nos

concedeu os patrimônios da vida eterna.

Enquanto a conversação ia animada com o concurso de Alba

Lucínia e da sua antiga serva, regressaram Nestório e Júlia Spinter da sua

excursão de amor e de fraternidade.

A velha matrona trazia o semblante contrafeito, fornecendo aos

companheiros o testemunho de sua amargura e de suas lágrimas.

- Então, minha mãe - exclamou Lucínia, abraçando-a, ao mesmo

tempo que usava a linguagem amiga e carinhosa da Terra -, conseguiste

alguma coisa?...

- Por enquanto, filhinha - retrucava Júlia Spinter enxugando as

lágrimas-, todos os meus esforços resultam inúteis. Infelizmente, Fábio não

trabalha, intimamente, por adquirir a suprema compreensão das grandes

leis da vida. Encarcerado nos seus pensamentos tristes, não cede,

absolutamente, às minhas súplicas !...

- Entretanto - elucidava Nestório aos companheiros, que lhe

ouviam a palavra com interesse -, Policarpo já se prepara, junto de

quantos o acompanham na luta, para a próxima reencarnação coletiva. A

nossa não poderá tardar muito. O único obstáculo que parece retardar nossa

marcha é a ausência de uma compreensão perfeita daquele inolvidável

ensinamento de Jesus, quanto ao perdão de setenta vezes sete vezes.

- Bastaria perdoarmos para que o Senhor nos permitisse voltar

ao trabalho santificante? - perguntou Cneio Lucius, intencionalmente.

- Sim - esclarecia Nestório na sua fé -, o perdão sincero é uma

grande conquista da alma.

Nesse comenos, Cneio Lucius preparava os filhos que se

entreolhavam com alguma tristeza, pela dificuldade que tinham em esquecer

os atos de Lólio Úrbico e de Cláudia Sabina.

- De minha parte - dizia Júlia Spinter resignada -, não tenho coisa

alguma a perdoar aos outros. Desde a minha desencarnação roguei

insistentemente a Jesus que me fizesse esquecer todas as expressões de

orgulho e amor-próprio.

- Muito bem, minha irmã - advertia Cneio com um sorriso sereno -,

um coração feminino é inacessível aos sentimentos de ódio e represália.

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

E como percebera que os presentes relembravam, no íntimo, os

atos de Cláudia, em face de sua alusão generalizada, acrescentou com

bondade :

- A mulher que odeia é uma dolorosa exceção no caminho da vida,

pois Deus confiou às almas femininas o seu ministério mais santo, no seio

da criação infinita!

Todos compreenderam os seus generosos pensamentos e

louvavam as suas idéias fraternais, quando Hatéria murmurou :

- Tenho suplicado ao Senhor dos Mundos que me faça digna de

viver junto de Cneio Lucius nos meus próximos trabalhos.

- Ora, filha - retrucou o ancião com um sorriso -, bem sei que nada

valho, mas terei imenso júbilo se te puder ser útil alguma vez... Apenas te

recomendo que, de futuro, deves temer o dinheiro como o pior inimigo da

nossa tranqüilidade.

Todos sorriram a essa alusão e a palestra continuou animada.

Algum tempo se passou, ainda, enquanto os corações das

nossas personagens se retemperavam nas idéias do amor e do bem, da

fraternidade e da luz, esperando as novas lutas.

Um dia, porém, um mensageiro das alturas veio convocar o grupo

de Cneio Lucius a comparecer perante os numes tutelares que lhe

presidiam os destinos, de modo a efetuar-se a livre escolha das provações

futuras.

Examinados os projetos de esforço, com a livre cooperação de

todos os que se achavam em condições evolutivas, imprescindíveis ao

ato de resolução e de escolha, na esfera da responsabilidade individual, o

grupo de Cneio Lucius continuava aguardando as determinações

superiores para regressar à Terra.

De vez em quando, observavam-se, entre as nossas

personagens, pequeninas impressões como estas:

- Uma das situações que mais receio - exclamava Helvídio Lucius - é

a vida em comum com Lólio Úrbico, pois temo que ele reincida nas

tendências inferiores da sua personalidade.

- Convencê-lo-emos pela dedicação e pelo amor - esclarecia Alba

Lucínia. - Tenho suplicado a Jesus que nos conceda forças para tanto e

estarei constantemente ao teu lado, a fim de podermos transfundir os

seus sentimentos em fraternidade e afeição espiritual.

- Sim, meus filhos - ponderava o experiente e generoso Cneio

Lucius -, precisamos amar muito ! Somente com a renúncia sincera

poderemos alcançar o reino de luz, prometido pelo Salvador. Entre todos os

que ficarão sob a nossa responsabilidade, no porvir, uma alma existe,

credora da nossa compaixão mais profunda!..

E como Helvídio e a companheira silenciassem, adivinhando-lhe

os pensamentos, o ancião continuou :

- Refiro-me a Cláudia Sabina, que ainda tem o coração como um

deserto árido. As últimas visitas que lhe fiz, na região das sombras,

deixaram-me envolto num véu de amargura!... Remorsos terríveis

transformaram-lhe o mundo psíquico num caos de angustiosas

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

perturbações ! Debalde lhe tenho falado de Deus e de sua inesgotável

misericórdia, porquanto, na caligem de seus pensamentos, não consegue

perceber as nossas advertências consoladoras.

Alba Lucínia e o companheiro ouviram-no comovidos e, todavia,

abstiveram-se de comentar o doloroso assunto.

Hatéria, entretanto, que lhe bebia avidamente as palavras, objetou,

deixando entrever os amargos receios que lhe povoavam a mente:

- Meu generoso protetor, já fui notificada de que o meu roteiro de

lutas se verificará em linhas paralelas ao de Cláudia Sabina, em vista de

meus erros imperdoáveis; contudo, suplico o vosso amparo, apesar das

novas energias que me felicitam a alma. Cláudia é autoritária e insinuante

e, se hoje se encontra acabrunhada e ensandecida, em virtude dos

sofrimentos no plano invisível, não duvido que, novamente na Terra,

procure retomar a sua feição de orgulho e mandonismo.

- Filha - ponderava o ancião com um leve sorriso -, Jesus velará por

nós, concedendo-nos a força precisa para o desempenho dos nossos

deveres mais sagrados.

Júlia Spinter acompanhava as impressões de todos com

amoroso interesse e exclamava, por vezes:

- Eu tudo daria por cultivar em nosso meio, no porvir que se

aproxima, a paz perpétua e a harmonia duradoura. Repararei minhas

faltas do passado, buscando compreender a essência do Cristianismo, para

cuja luz eterna hei-de conduzir o coração de Fábio, com o amparo do

Cordeiro de Deus que há-de ouvir minhas sinceras rogativas..

A vida do grupo do venerando Cneio Lucius decorria, assim, em

expectativas promissoras para o futuro. Cada qual, erguendo muito alto o

coração, buscava apreender, cada vez mais e melhor, os ensinamentos de

Jesus, de modo a recordar a sua claridade sublime entre as sombras

espessas da Terra.

Os grupos afins de Policarpo e de Lésio Munácio já haviam

regressado aos labores do mundo, quando as nossas personagens foram

chamadas à determinação superior, a fim de baixarem aos tormentos e lutas

purificadoras do ambiente terrestre.

Tomados de veneração e de esperança, acomodaram-se perante os

executores da justiça divina, enquanto ao seu lado estacionava quase uma

centena de companheiros, incluindo escravos, serviçais e amigos de

outrora.

No recinto espiritual, de beleza maravilhosa, intraduzível na

pobre linguagem humana, havia a cariciosa vibração de uma prece coletiva,

que se escapava de todos os peitos, plenos de receio e de esperança.

- Irmãos - começou de dizer um mentor divino, a cuja

responsabilidade estava afeta a direção daquele amistoso conclave -, breve

estareis de novo na Terra, onde sereis convocados a praticar os divinos

ensinamentos adquiridos no plano espiritual !... Agradeçamos à

misericórdia do Senhor, que nos concede as preciosas oportunidades do

trabalho a favor de nossa própria redenção, em marcha incessante para o

amor e para a sabedoria. Vós que partis, amai a luta redentora, como se

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

deve amar uma alvorada divina! Aqui, sob a luz da bondade infinita do

Cordeiro de Deus, a alma egressa do mundo pode descansar de suas

profundas mágoas. Os corações ulcerados se retemperam junto à fonte

inesgotável do consolo evangélico; mas, acima de nossas frontes, há um

reino de amor perene e de paz inolvidável, que necessitamos conquistar com

os mais altos valores da consciência ! Adquiristes aqui os mais elevados

conhecimentos, em matéria de sabedoria e amor; experimentastes o bafejo

de sublimes consolações, como somente poderá senti-las o Espírito

liberto das sombras e angústias materiais; observastes a beleza e a ventura

que aguardam, no Infinito, as almas redimidas; todavia, é necessário

regressardes à carne a fim de poderdes experimentar o valor do vosso

aprendizado ! É na Terra, escola dolorosa e bendita da alma, que se

desdobra o campo imenso de nossas realizações. Os erros de outrora

devem ser reparados lá mesmo, entre as suas sombras angustiosas e

espessas !... Enquanto se reparam, na sua superfície, os desvios das

épocas remotas, faz-se mister aplicar nas suas estradas sombrias os

ensinamentos recebidos do Alto, em virtude do acréscimo de misericórdia

de Jesus, que não nos desampara. Na Terra está o aprendizado melhor, e

aqui vigora o exame elevado e justo. Lá é a sementeira, aqui a colheita.

Voltai novamente aos carreiros terrestres e reparai o passado doloroso!.

Abraçai os vossos inimigos de ontem, para vos aproximardes dos vossos

benfeitores no porvir ! Fechai as portas da exaltação no mundo e sede

surdos às ambições ! Edificai o reino de Jesus no imo, porque, um dia, a

morte vos arrebatará de novo às angústias e mentiras humanas, para as

análises proveitosas. A exemplificação de Jesus é o modelo de todos os

corações. Não vos queixeis da orientação precisa, porque, em toda parte do

mundo, como em todas as idéias religiosas e doutrinas filosóficas, há

uma atalaia de Deus esclarecendo a consciência das criaturas ! O mundo

tem as suas lágrimas penosas e as suas lutas incruentas. Nas suas sendas

de espinhos torturantes se congregam todos os fantasmas dos sofrimentos

e das tentações, e sereis compelidos a positivar os vossos valores

intrínsecos. Amai, porém, a luta como se os seus benefícios fossem os de

um pão espiritual, imprescindível e precioso !... Depois de todas as

conquistas que o plano terrestre vos possa proporcionar, sereis, então,

promovidos aos mundos de regeneração e de paz, onde preparareis o

coração e a inteligência para os reinos da luz e da bem-aventurança

supremas !...

A palavra sábia e inspirada do esclarecido mentor do Alto era

ouvida com singular atenção.

Em dado instante, porém, sua voz esclareceu, depois de uma

pausa:

- Agora, irmãos bem-amados, encontrareis aqui os adversários de

ontem, para a conciliação e para os trabalhos futuros. Escolhestes e

delineastes o mapa de vossas provas, porquanto já possuís a noção de

responsabilidade e a precisa educação psíquica, para colaborar nesse

esforço dos vossos guias!... Nossos irmãos infelizes, entretanto, ainda não

possuem essas condições evolutivas e serão compelidos a aceitar as

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

decisões daqueles gênios tutelares, que lhes acompanham a trajetória na

trama dos destinos humanos... E esses gênios do bem deliberaram que eles

vivam convosco, que aprendam nos vossos atos, que vibrem nas vossas

experiências do futuro! Os executores dessas elevadas resoluções os

trouxeram a todos, a fim de se processar a decisão final com o vosso

concurso, nesta assembléia de divinos ensinamentos. Tendes, pois, o

direito de escolher, entre eles, os companheiros do porvir, sem vos

esquecerdes de que, nestes momentos, pode o nosso coração dar as

melhores provas de compreensão daquele "amai-vos uns aos outros",

da lição do Evangelho, onde repousa a base da nossa suprema evolução

para os planos divinos !...

Nossas personagens entreolharam-se ansiosas.

A esse tempo, contudo, algumas entidades penetravam no recinto.

Atrás dos vultos nobres de alguns Espíritos caridosos e amigos, vinham

Cláudia Sabina, Fábio Cornélio, Silano Plautius, Lólio Úrbico e, um pouco

distantes, numerosos servos de outrora, comparsas dos mesmos erros e

das mesmas ilusões dos nossos amigos, como, por exemplo, Pausânias,

Plotina, Quinto Bíbulo, Pompônio Gratus, Lídio, Marcos e outros, enquanto o

recinto se povoava de suas vibrações estranhas, saturadas de amargura

indefinível.

A maior parte demonstrava surpresa amarga e dolorosa.

Quase todos se conservavam cabisbaixos e tristes, fazendo ouvir,

de quando em quando, soluços dolorosos.

Observando a penosa impressão dos filhos e sentindo que

ambos se encontravam sob as tenazes de indecisão angustiosa, Cneio

Lucius suplicava ao Senhor que o inspirasse quanto à melhor maneira de

sacrificar-se pelos filhos bem-amados, conciliando o seu afeto com as

próprias necessidades deles, em face do futuro.

Então, viu-se que o generoso velhinho levantava-se com

desassombro e serenidade e, caminhando para a desolada Cláudia Sabina,

que não ousara erguer os olhos saturados de lágrimas, falar-lhe com

infinita brandura:

- Já que a misericórdia de Jesus-Cristo me faculta a escolha dos

que viverão comigo, considerar-te-ei, minha irmã, desde já como filha, a

quem devo consagrar uma afeição duradoura e divina!...

E, abraçando-a, concluía :

- De futuro permanecerás no meu lar, a fim de transfundirmos o

ódio e a vingança em fraternidade sublime e sacrossanta!... Comerás do

nosso pão, participarás das minhas alegrias e das minhas dores, serás irmã

de meus filhos !...

Cláudia Sabina soluçava, sensibilizada pelo amor daquela alma

devotada e generosa.

Hatéria, levantando-se, caminhou até Cneio Lucius e lhe beijou as

mãos, que, naquele instante, estavam luminosas e translúcidas.

A esse tempo, Júlia Spinter amparava o coração desolado do

companheiro, abraçando Silano Plautius e prometendo-lhe o seu auxílio

devotado e amigo, no curso das lutas planetárias.

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

Foi aí que Helvídio Lucius e Alba Lucínia se levantaram e, dirigindose

a Lólio Úrbico, que se ajoelhara como oprimido por um tormento

implacável, estenderam-lhe os braços fraternos, prometendo-lhe amor e

dedicação.

Continuando a mesma obra de solidariedade e devotamento, todos

chamaram a si esse ou aquele antigo servo, bem como os comparsas de

seus feitos passados, a fim de associá-los aos seus esforços no futuro.

Terminada essa tarefa bendita, o mentor da reunião perguntou

serenamente:

- Todos estais certos de haver suficientemente perdoado?

Amargurado silêncio... No íntimo, as nossas personagens

experimentavam, ainda, certas dificuldades para esquecer o passado.

Helvídio Lucius não olvidara as perseguições de Lólio Úrbico ; Alba Lucínia

não esquecera as ações de Sabina, e Fábio Cornélio, por sua vez, apesar

dos sofrimentos, não se sentia capaz de perdoar o crime de Silano.

A indecisão era geral, mas uma luz branda e misericordiosa

começou a verter do Alto, atingindo em cheio todos os corações. Sem

exceção de um só, todos os membros do grupo de Cneio Lucius começaram

a chorar, possuídos de emoção indefinível.

A um só tempo, divisaram no Alto a figura sublime de Célia, que

lhes acenava cheia de ternura e de carinho.

Movidos, então, por um doce mistério, deram guarida a um perdão

sincero e puro, sentindo-se reciprocamente tocados de profunda piedade.

Como se as substâncias do ambiente fossem sensíveis ao estado

íntimo dos presentes, uma claridade doce e branda começou a fazer-se em

torno, enquanto a maioria das nossas personagens chorava enternecida.

Entremostrando um sorriso suave, o mentor exclamou :

- Graças à misericórdia do Altíssimo, sinto que todos regressais

aos planos terrestres com uma vibração nova, que vos edifica o coração e a

consciência nas mais formosas expressões de espiritualidade ! Que as

bênçãos do Senhor encham de luz e de paz os vossos caminhos no porvir!...

Sede felizes! Todos os segredos da ventura estão no amor e no trabalho

da consciência redimida !... Esquecei o passado umbroso e dolorido e atiraivos

à luta remissora, com heroísmo e humildade... Sinto que estais

irmanados pela mesma vibração de piedade e faço votos a Deus para que

compreendais, em todas as circunstâncias, que somos irmãos pelas

mesmas fraquezas e pelas mesmas quedas, a caminho da redenção

suprema, nas lutas do Infinito !...

Em face da palavra carinhosa e sábia do mensageiro divino que

os dirigia, os nossos amigos sentiam-se confortados por uma nova luz,

que lhes esclarecia o imo com a mais bela compreensão da existência real.

A visão de Célia havia desaparecido, mas, como se a sua grande

alma estivesse assistindo à cena comovedora através das luminosas

cortinas do Ilimitado, ouviu-se em vibrações cariciosas, provindas do Alto,

um hino maravilhoso, cantado por centenas de vozes infantis, derramando

em todos os corações a coragem e o amor, a consolação e a

esperança... As estrofes harmoniosas atravessavam o recinto e elevavam50

ANOS DEPOIS Emmanuel

se para as Alturas em notas melodiosas, subindo para o sólio de Jesus,

qual incenso divino! Era um brado de fé e de incitamento, que fazia nascer

nas almas dos presentes as mais piedosas lágrimas.

Em seguida, sob as preces dos carinhosos amigos e benfeitores

espirituais, que ficavam no plano invisível, todos os membros do grupo de

Cneio Lúcius abandonavam o recinto, reunidos numa caravana fraterna, em

direção às esferas mais inferiores que envolvem o planeta terrestre.

Nessa hora, havia entre todos o bom desejo de consolidar uma paz

íntima, antes de recomeçar a luta.

Foi então que Cláudia Sabina, num gesto espontâneo, aproximouse

de Alba Lucínia e exclamou com angustiada expressão :

- Não me atrevo a chamar-vos irmã, pois fui outrora o impiedoso

verdugo de vosso coração sensível e bondoso !... Mas, por quem sois, pelos

sentimentos generosos que vos exornam a alma, perdoai-me mais uma vez.

Fui o algoz e vós a vítima; todavia, bem vedes aqui a minha ruína dolorosa.

Dai-me o vosso perdão para que eu sinta a claridade do meu novo dia !...

Cneio Lucius contemplou a nora, com evidente ansiedade, como a

implorar-lhe clemência.

Alba Lucínia compreendeu a gravidade daquele instante e,

vencendo as hesitações que lhe turbavam o espírito, murmurou comovida:

- Estais perdoada... Deus me auxiliará a esquecer o passado,

para que a genuína fraternidade se faça entre nós, nas lutas do futuro!...

Júlia Spinter fitou a filha, deixando transparecer o júbilo que lhe ia

no coração, em vista do seu gesto generoso; ao mesmo tempo que

Cneio Lucius envolvia a companheira de Helvídio num olhar caricioso de

satisfação e de profundo reconhecimento.

Enquanto a maioria das personagens trocava idéias sobre o porvir,

surgia, ao longe, a atmosfera do planeta terrestre, envolta num turbilhão de

sombras espessas.

Alguém falou com voz melancólica e imponente, do seio da

caravana:

- Eis a nossa escola milenária!...

Decididos na sua fé, olhos para o Alto, implorando a misericórdia

divina, guiados todos eles pelas forças esclarecidas do bem, que os

envolviam, penetraram a atmosfera planetária, habilitados a uma

compreensão cada vez mais elevada e mais nobre, dos valores eficientes do

trabalho e da luta.

Apenas Nestório se conservava em oração junto dos fluidos

terrenos, notando-se-lhe os olhos mareados de lágrimas, na comoção

daquela hora cheia de apreensões e de esperanças.

- Senhor - exclamava o antigo escravo, evocando amargurosas

lembranças -, novamente na Terra, escola abençoada de nossas almas,

contamos com a vossa misericordiosa complacência, a fim de cumprirmos

todos os nossos deveres, a caminho do arrependimento e da reparação.

Auxiliai-nos na luta! Somente os séculos de trabalho e dor poderão anular

os séculos de egoísmo, orgulho e ambição, que nos conduziram à

iniqüidade !... Perdoai-nos, Jesus! Dignai-vos abençoar nossas aspirações

50 ANOS DEPOIS Emmanuel

sinceras e humildes !.. Ensinai-nos a amar o planeta com as suas paisagens

procelosas, a fim de podermos encontrar, nas sendas terrestres, a luz da

nossa regeneração espiritual, a caminho do vosso reino de paz

indestrutível !...

Entre as lágrimas de suas rogativas, Nestório foi o último a imergir

na vastidão dos fluidos planetários.

Do Alto, porém, emanava uma claridade branda e compassiva. Toda

a caravana sentiu o bafejo divino de uma esperança nova, atirando-se ao

ambiente da Terra, tomada de uma coragem redentora. Reconfortados na

meditação e na prece, os corações adivinhavam que a luz da Providência

Divina seguiria as suas experiências na dor e no trabalho, como uma

bênção.

NOTA DA EDITORA - Se o leitor já

leu Há Dois Mil Anos, não deverá deixar

de ler Paulo e Estevão, Renúncia e Ave,

Cristo!, todos do mesmo Autor.

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