para todos os efeitos, que a esposa lhe foi infiel, apresentando-lhe o fruto de
um crime... A escolha da criança ficará ao teu critério... Poderei contar
absolutamente contigo ?
- Pela fé no poder de Júpiter, podeis confiar em mim, senhora.
Irei à coluna lactária, depois da meia-noite, e levarei comigo a criança. Os
recém-nascidos são ali abandonados diariamente, às dezenas...
Assentada a combinação sinistra, a noite já havia desdobrado
sobre Roma o seu manto de sombras espessas.
Todavia, enquanto Hatéria retornava à casa dos amos, Cláudia
Sabina privava-se das festas noturnas do Imperador, encaminhando-se à
Porta de Óstia apressadamente..
Encontrando-se lá com o filho de Cneio Lucius, solicitou-lhe o
favor de uma palavra em particular, no que foi imediatamente atendida.
- Helvídio - falou a perversa criatura com a sua facilidade de
dissimulação -, aqui estou para prevenir-te, reservadamente, de graves
acontecimentos, aliás, já por mim previstos, quando na Grécia.
- Mas, que acontecimentos? - interrogou o patrício com ansiedade.
- Deves estar preparado para ouvir-me, pois acredito que o prefeito
dos pretorianos, com a bruteza dos seus sentimentos, chegou a macular a
honra da tua casa.
- Impossível ! - exclamou o tribuno com veemência.
- Entretanto, deves ouvir Alba Lucínia imediatamente, verificando
até que ponto conseguiu Lólio Úrbico introduzir-se no teu lar.
- Eu não posso duvidar de minha mulher sequer um minuto -
revidou com sinceridade.
- Queres ou não ouvir-me até o fim, para conheceres os
pormenores do fato? - perguntou Sabina encolerizada.
- Ouvi-la-ei com prazer, desde que o assunto não se refira à minha
família e à honra da minha casa.
- É possível que tua opinião amanhã se modifique.
E, despedindo-se bruscamente do homem de suas paixões, que
sabia defender as tradições do lar e da família, a antiga plebéia regressava
ao Capitólio, mais que nunca interessada no desdobramento dos seus
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
sinistros desígnios. O gênio do mal, que lhe falava no coração, preparava
para aquela noite os acontecimentos mais terríveis.
Enquanto a vemos, pela madrugada, a examinar documentos e
pergaminhos no gabinete de Lólio Úrbico, acompanhemos Hatéria até o
mercado de legumes.
A sociedade romana já se havia habituado a ver junto da coluna
lactária os míseros enjeitadinhos. Esse local de triste memória, onde
muitas mães abnegadas acolhiam pobres crianças abandonadas, constituía
como que os primórdios das famosas "rodas-de-expostos", nos
estabelecimentos de caridade cristã, que floresceriam mais tarde para o
mundo.
A claridade mortiça da Lua, antes do amanhecer, a velha serva
verificou a presença de três míseros pequeninos. Um deles, porém,
chamou-lhe a atenção pelos seus suaves vagidos de recém-nato. Era uma
criancinha de traços delicados e nobres, que a cúmplice de Cláudia pode
examinar, minuciosamente, à luz de uma tocha. O enjeitadinho, com
roupas muito pobres, parecia nascido de poucas horas. Hatéria tomou-o nos
braços, quase com enlevo, considerando intimamente: esta criança deve ser
um digno rebento de patrícios romanos!.. Que penoso romance não se
ocultará no seu vestidinho roto e ordinário...
Levou-o consigo, penetrando na casa dos amos com todo o
cuidado.
Amanhecia...
À noite, a criminosa adicionara o narcótico aos remédios de sua
senhora.
Entrou no quarto onde a esposa de Helvídio repousava,
tranqüilamente, depôs a criança ao seu lado, envolvendo-a no ambiente
tépido das coberturas. Em seguida, preparou ali toda a encenação
necessária, sem que a pobre vítima do filtro que a mergulhara em longo e
pesado sono pudesse perceber o que se passava.
Todavia, o pequenino começou a chorar fracamente, embora a
serva criminosa fizesse o possível por acalmá-lo.
No quarto contíguo ao de sua mãe, dado o ruído insólito, Célia
despertava.
Acordou aturdida e sensibilizada. Acabava de sonhar que se
encontrava, novamente, no cemitério triste da Porta Nomentana, como na
memorável noite em que pudera rever o bem-amado de sua alma.
Figurou-se-lhe contemplar Ciro a seu lado, enquanto Nestório mantinha a
mesma atitude das suas antigas prédicas, perguntando : - quem é minha
mãe e quem são os meus irmãos? Tinha o cérebro ainda preso de
emoções carinhosas, e as mais ternas lembranças no coração de
menina e moça...
Nesse instante, o ruído insólito chegava-lhe aos ouvidos.
Vagidos de criança? Que significaria aquilo ?
Levantou-se, apressada, com o pensamento ansioso, mergulhado
em dolorosas perspectivas.
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
Notando o movimento de alguém que se aproximava, Hatéria fez
menção de retirar-se à pressa, mas a jovem já havia transposto a porta,
verificando-lhe a presença.
Contemplando a criança ao lado de sua mãe adormecida e os
sinais evidentes de quanto caracteriza o lugar de um parto, presumiu
adivinhar o drama com as amargas suspeitas do seu coração filial.
Um turbilhão de pensamentos penosos surpreendeu-lhe o cérebro
enfraquecido. Sim, aquela criancinha deveria ter nascido ali, como
conseqüência fatal de uma tragédia inesquecível.
- Hatéria - exclamou num gemido -, que significa tudo isso?
- Vossa mãe, esta noite, minha boa menina - respondeu a serva
criminosa, sem se perturbar -, deu à luz um pequenino...
- É incrível ! - soluçou a filha de Helvídio com a voz estrangulada.
- Entretanto é a verdade - revidou Hatéria em voz muito baixa -;
não dormi, auxiliando a senhora em seus sofrimentos !
E, apontando para a infortunada consorte do tribuno, exclamava
quase tranqüila :
- Agora ela dorme... e precisa repousar.
Célia não podia definir a intensidade dolorosa dos pensamentos
que a empolgavam. Nunca acreditara que sua mãe pudesse prevaricar na
ausência paterna. Seu coração carinhoso sempre fora, ao seu ver, um
modelo de virtudes, um símbolo de honestidade. Certamente Lólio Úrbico
levara a infâmia aos mais pavorosos extremos. Ela bem que lhe ouvira
as palavras de conquistador desalmado e cruel ! Além de tudo, sua mãe
há muito que andava doente. Com certeza, seu coração bondoso e honesto
estava cheio de tormentos da compunção e do arrependimento. Sentia pela
mãe um enternecimento infinito. Seu pai regressara na véspera, cheio de
novas esperanças. Ela surpreendera lágrimas nos olhos maternos, pranto
esse que deveria ser de júbilo intenso e de comovedora alegria. Quanto
não haveria sofrido o coração materno naqueles longos meses de
expectativas angustiosas ! Alba Lucínia, porém, sua mãe e melhor
amiga, tinha agora um filhinho que não era uma flor do tálamo conjugal.
Helvídio Lucius não lhe perdoaria nunca. Célia conhecia a enfibratura do
pai, assaz generoso, mas demasiadamente impulsivo. Além de tudo, a
sociedade romana não admitia transigências em se tratando de tragédia
como aquela, no seio do patriciado. Com as lágrimas a borbulharem-lhe
dos olhos, naquelas ríspidas e singulares meditações, a jovem cristã
lembrou-se do sonho daquela noite, e pareceu-lhe ainda ouvir Nestório a
repetir as palavras do Evangelho - "Quem é minha mãe e quem são meus
irmãos?" – Levando as suas lembranças ainda mais longe, recordou a
exortação nas vésperas do sacrifício, quando afirmara que a melhor
renúncia por Jesus não era propriamente a da morte, mas a do
testemunho que o crente fornece com os exemplos da sua vida. Depois, a
figura do avô surgiu, espontânea, em sua mente. Parecia-lhe que Cneio
voltava do túmulo para recomendar-lhe, mais uma vez, a tranqüilidade
do pai e a ventura da mãe, nas provas aspérrimas...
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
De olhos molhados, aproximou-se do pequenino, que abrira os
olhos pela primeira vez, às primeiras claridades do dia... O enjeitadinho fez
um movimento com os braços minúsculos, como se os levantasse para
ela, suplicando-lhe conforto e afeto. Célia sentiu que as suas lágrimas
caíam-lhe no rosto alvo e minúsculo, experimentando no coração uma
ternura infinita. Retirou-o com cuidado como se o fizesse a um irmãozinho...
Sentiu que o coraçãozinho batia-lhe de encontro ao seu, como o de uma ave
assustada, sem direção e sem ninho... Seu espírito, como que tocado de
sentimentos misteriosos e inexplicáveis, estava também povoado das mais
profundas emoções maternas...
Depois de alguns minutos, em que Hatéria a contemplava
surpreendida, Célia ajoelhou-se aos pés da serva, exclamando
comovedoramente no seu sublime espírito de sacrifício :
- Hatéria, minha mãe é honesta e pura! Esta criança que vês nos
meus braços é meu filho ! Sê-lo-á, meu filhinho, agora e sempre,
compreendes?
- Jamais o direi - respondeu a cúmplice de Cláudia, aterrada.
- Mas, ouve! Tu que foste a confidente de minha mãe ajuda-me a
salvá-la !.. Pelo amor de tuas crenças, confirma os meus propósitos !...
Minha mãe precisa cuidar de meu pai no curso da vida e meu pai a adora! Se
ela errou, porque não auxiliarmos a sua felicidade, devolvendo à sua alma a
ventura merecida? Minha mãe nunca erraria de moto próprio !.. Foi sempre
boa, carinhosa e fiel... Só um homem muito perverso poderia induzi-la a
uma falta dessa natureza, pelos caminhos do crime !..
Lacrimejante, enquanto a criada a escutava estarrecida,
continuava:
- Cede aos meus desejos! Esquece o que viste esta noite,
considerando que os tiranos dos nossos tempos costumam raptar nobres
damas, aplicando-lhes filtros de esquecimento ! Minha pobre mãe deve
ter sido vítima desses processos miseráveis!.. Quero salvá-la e conto
contigo!... Dar-te-ei todas as minhas jóias mais preciosas. Meu pai não
costuma dar-me dinheiro em espécie, mas tenho dele e de meu avô as
lembranças mais ricas... Ficarão contigo! Vendê-las-ás, onde quiseres...
Arranjarás uma pequena fortuna...
- Mas, e a menina ? - murmurou Hatéria espantada com o
imprevisto dos acontecimentos - já pensou que essa idéia do sacrifício é
impossível? Com quem ficaríeis no mundo? Vosso pai, porventura,
suportaria ver-vos assim, como mãe de uma criança infeliz?
- Eu.. - exclamou a jovem com atitudes reticenciosas, como se
desejasse lembrar alguém que a pudesse valer em tão dolorosas
circunstâncias - eu... ficarei com Jesus!...
Em seguida, ante o silêncio de Hatéria, que lhe obedecia
maquinalmente, todo o cenário foi transportado ao seu quarto, enquanto
Célia conchegava o pequenino ao coração, entregando à serva ambiciosa
todas as jóias mais preciosas e guardando, apenas a pérola que Helvídio
lhe dera na véspera.
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
Alba Lucínia, contudo, saíra do seu torpor, repentinamente.
Aturdida com os efeitos do narcótico, estava surpresa, ouvindo no quarto da
filha os vagidos da criança.
Divisando o vulto de Hatéria através de uma cortina, chamou-a em
voz alta para certificar-se do que ocorria.
A criada criminosa, porém, apareceu-lhe de frente, lívida e
aterrada...
Levando as mãos à cabeça num gesto de fingido desespero,
exclamava com esgares estranhos :
- Senhora!... Senhora! que grande desgraça!...
A esposa do tribuno, com o coração a lhe saltar do peito, pálida
e aturdida, ia interrogar a serva, quando alguém transpôs a porta e
penetrou no aposento.
Era Helvídio. O genro de Fábio não conseguira conciliar o sono.
Depois das insinuações pérfidas de Sabina, parecia que veneno atroz lhe
destruía todas as forças do coração. Trabalhou intensamente para que as
horas da noite lhe fossem menos amargurosas e, todavia, ao dealbar da
aurora, montara um cavalo veloz que o transportou, célere, a casa, para
consolidar a sua tranqüilidade espiritual, junto da mulher e da filhinha.
Lá chegando, ainda ouviu a velha serva exclamar desesperada:
- Uma desgraça!.. uma grande desgraça...
Enquanto Lucínia o contemplava aflita e amargurada, Helvídio
Lucius caminhava para ela e para a criada, com o semblante carregado e
triste...
- Explica-te, Hatéria!.. - teve forças para murmurar a pobre senhora,
aflitamente.
Nesse instante, porém, depois de longa prece, a jovem cristã
surgiu, quase cambaleante, à porta da alcova materna.
Tinha os olhos vermelhos e tristes, a roupa mal posta, os cabelos
em desalinho. Acalentado em seus braços afetuosos, o pequerrucho se
acalmara, qual pássaro que houvesse reencontrado o ninho tépido.
Helvídio e sua mulher contemplaram a filha, surpresos e aterrados.
- Mas, que significa tudo isso ? – explodiu o tribuno dirigindo-se à
serva.
Célia quis explicar-se, mas a voz estrangulara-se-lhe na garganta,
enquanto Hatéria esclarecia:
- Meu senhor, a menina, esta noite...
Contudo, ante o olhar duro do patrício, a sua voz se perdia nas
reticências dos remorsos e das dúvidas, quanto às terríveis conseqüências
da sua infâmia.
Célia, porém, cheia de fé na Providência Divina e sinceramente
desejosa de sacrificar-se por sua mãe, ajoelhara-se, humilde, exclamando
com voz quase firme :
- Sim, meu pai... minha mãe... pesa-me a confissão da minha falta,
mas esta criança é meu filho !...
O tribuno sentiu que uma comoção desconhecida invadiu-lhe todo
o ser. A cabeça andava-lhe à roda, ao mesmo tempo que lividez de mármore
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
cobria-lhe as feições, vincadas de cólera e angústia. Os mesmos fenômenos
fisiológicos passavam-se com sua mulher, cujos olhos aterrados não
encontravam lágrimas para chorar. Alba Lucínia, contudo, ainda teve
energia para murmurar, olhando o Alto :
- Deus do céu !..
Célia, porém, genuflexa, enquanto Hatéria erguia a cabeça, fria e
impassível, exclamava com o pranto da sua humildade :
- Se puderdes, perdoai à filha que não conseguiu ser feliz ! Sei o
crime cometido e aceito de boa vontade as conseqüências da minha falta!
De olhos baixos, com as lágrimas a aljofrarem a face do
inocentinho, a jovem continuava dirigindo-se ao pai, que a ouvia
estarrecido, como se o pavor daquela hora o houvesse petrificado:
- Na vossa ausência, andou nesta casa o espírito de um tirano!..
Recebido como amigo, assediou minha mãe com todos os seus processos
de infâmia... Ela, porém, como sabeis, foi sempre fiel e pura!..
Reconhecendo-lhe a virtude incorruptível, o prefeito dos pretorianos abusou
da minha inocência, levando-me ao que vedes !... Nunca confessei a mamãe
as faltas de minha alma, mas, esta noite senti a realidade da minha
desventura! No auge dos sofrimentos, busquei o auxílio de Hatéria, para
salvar a vida deste inocentinho!.
E erguendo os olhos súplices para a criada impassível, a jovem
acrescentava:
- Não é verdade, Hatéria?
Lucínia e o esposo não queriam acreditar no que viam, mas a serva
criminosa confirmava com fingida amargura:
- É verdade...
- Sei que as nossas tradições não me perdoam a falta - continuava
Célia, tristemente -, mas toda a minha mágoa vem do fato de haver
maculado o lar paterno, aceitando uma afronta e dando margem à desonra!..
Não posso ser perdoada, mas vede o meu arrependimento e tende
compaixão do meu espírito abatido! Expiarei o crime como as
circunstâncias exigirem, e, se for indispensável a morte para lavar a mácula,
saberei morrer com humildade !..
As lágrimas embargavam-lhe a voz, não obstante sentir-se
amparada por braços intangíveis do plano espiritual, no instante penoso do
sacrifício.
Helvídio Lucius, saindo do seu pasmo, deu alguns passos em
direção à esposa trêmula, perguntando com voz estranha e quase sinistra:
- Lólio Úrbico é, de fato, esse infame?
Alba Lucínia, experimentando a queda de todas as suas energias,
recordava o seu calvário doméstico, em face das investidas do
conquistador, cuja perseguição à filha o seu espírito adivinhara. Longe de
sentir toda a realidade tenebrosa daquelas cenas que o gênio criminoso de
Cláudia Sabina havia idealizado, murmurou fracamente :
- Sim, Helvídio, o prefeito tem sido o verdugo impiedoso da
nossa casa!
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
- Mas, meu coração não quer acreditar no que os meus olhos
vêem - murmurou o tribuno surdamente.
Célia continuava genuflexa, olhos nevoados de lágrimas,
amparando o pequenino que chorava.
Alba Lucínia contemplava a filha, tomada de amargura e de
assombro. Agora, presumia compreender as esquivanças da filhinha a
todos os passeios, nos derradeiros tempos, para só confugir-se ao
insulamento do seu quarto, engolfada em preces e meditações. Atribuía o
retraimento de Célia à morte do avô, que lhes deixara a ambas as mais
penosas saudades. Entretanto, sua desconfiança de mãe entendia, agora,
que o conquistador covarde havia abusado da inexperiência de sua filha.
Muitas vezes, receara sair deixando-a só, no lar, porquanto a intuição
materna há muito lhe advertia que Lólio Úrbico buscaria vingar-se
executando as suas terríveis ameaças. Agora, a realidade amarga torturavalhe
o espírito.
- Lucínia - continuou Helvídio sombriamente -, explica-te !.. Não
terias exercido nesta casa a preciosa vigilância materna? É verdade que o
prefeito dos pretorianos insultou a tua dignidade?...
- Helvídio - soluçou com voz tremente -, tudo que ocorre é
absolutamente estranho e incrível, mas o fato aí está patente,
atestando a realidade mais amarga ! Desconfiava que a nossa pobre filha
fosse também vítima do perverso amigo de meu pai, porquanto, de minha
parte, venho sofrendo, desde que partiste, as mais atrozes perseguições,
traduzidas em contínuas ameaças, dada a minha resistência aos seus
inconfessáveis desejos...
Ante o esboroar de suas últimas esperanças, com a palavra sincera
da esposa que se mostrava amargurada e surpreendida, o orgulhoso
patrício deixou-se dominar completamente pelas realidades aparentes
daquela hora trágica.
De punhos cerrados, olhos duros e sombrios a revelarem
disposições inflexíveis de vingança, Helvídio Lucius exclamou com voz
terrível, dominadas todas as suas expressões fisionômicas por um ricto de
angústia:
- Vingar-me-ei do infame, sem piedade !...
E contemplando a filha que permanecia de joelhos e de olhos
baixos, como se evitasse o olhar paterno, acentuou terrivelmente:
- Quanto a ti, deverás morrer para resgatar o crime hediondo !..
Iniciando os meus desgostos, com o preferir aos escravos, acabaste
arruinando o meu nome, levando esta casa a uma situação execrável !
Mas, saberei lavar a mancha criminosa com as minhas decisões implacáveis
!..
Dito isso, o orgulhoso tribuno arrancou acerado punhal, que
reluziu à luminosidade do Sol matinal, mas Alba Lucínia, de um salto,
prevendo-lhe a resolução inflexível, susteve-lhe o braço, exclamando
angustiada:
- Helvídio, pelos deuses e por quem és... Não basta a dor
imensa da nossa vergonha e da nossa desventura?!... Queres agravar
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
nossos padecimentos com a morte e com o crime? Não! Isso não!.. Acima
de tudo, Célia é nossa filha!
Nesse instante, o tribuno lembrou-se repentinamente das rogativas
amoráveis do genitor, na mais profunda recordação, como a pedir-lhe calma,
resignação e clemência. Pareceu-lhe que Cneio Lucius regressava das
sombras do sepulcro para lhe suplicar pela neta idolatrada, cooperando nas
exortações da esposa.
Então, sentindo o coração saturado de um sofrimento moral
indefinível, acentuou com voz cavernosa:
- Os deuses não permitirão seja eu um miserável filicida... Mas,
esmagarei o traidor como se esmaga uma víbora!
E, voltando-se de repente para a filha humilhada, sentenciou com
energia:
- Poupo-te a vida, mas, doravante estás definitivamente morta
para a nossa desdita imensurável, porque tua indignidade não te permite
viver mais um minuto sob o teto paterno !. És maldita para sempre!..
Foge para qualquer parte, sem te lembrares de teus pais ou do teu
nascimento, porque Roma assistirá ao teu funeral em breves dias ! Serás
estranha ao nosso afeto !.. Não nos recordes, nunca, nem busques o
passado, pois eu poderia exterminar-te nos meus impulsos!..
Célia continuava na sua atitude humilde, de joelhos, mas aos
seus ouvidos ressoavam as palavras decisivas do pai orgulhoso e ofendido
no seu amor-próprio.
- Vai-te, foge, maldita !..
Ergueu-se ela, então, cambaleante, endereçando à mãe um
derradeiro olhar, no qual parecia concentrar toda a sua crença e toda a
sua esperança... Alba Lucínia retribuiu-lhe o gesto afetuoso, fixando-a com
a sua ternura dolorosa. Pareceu-lhe descobrir na limpidez daquele olhar
toda a inocência da alma piedosa e cristã da desventurada filha; todavia, o
seu coração maternal agradecia intimamente aos deuses o lhe haverem
poupado a vida...
Compreendendo a inflexibilidade da ordem paterna, Célia deu
alguns passos vacilantes e, saindo por uma porta lateral encontrou-se em
plena rua, sem direção nem destino, enquanto atrás dela se fechavam as
portas do lar paterno, para sempre.
Depois de exprobrar a conduta da esposa, culpando-a pela
indiferença e falta de vigilância, e após prometer recompensar o silêncio
de Hatéria, ameaçando-a também com o cárcere, caso viesse a verificarse
o contrário, mandou um servo dos mais prestimosos à residência dos
sogros, chamando-os a sua casa com a maior urgência.
Dentro de uma hora, Fábio Cornélio e sua mulher encontravam-se
junto do casal, inteirando-se de todo o acontecido.
Enquanto o coração de Júlia Spinter se sentia tocado das mais
dolorosas emoções, o velho e orgulhoso censor exclamava convictamente :
- Sim, Helvídio, vamos procurar o traidor quanto antes, a fim de
o exterminar, sejam quais forem as conseqüências; mas, devias ter
aniquilado a filha, pois o sangue deve compensar os prejuízos da vergonha,
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
segundo os nossos códigos de honra !.. Mas, enfim, ela estará moralmente
morta para sempre. Depois de eliminarmos Lólio Úrbico, faremos que as
cinzas de Célia venham de Cápua para serem recolhidas em Roma, ao jazigo
da família. Ao passo que as duas senhoras, mãe e filha, ficavam no aposento,
sucumbidas, consolando-se reciprocamente e rogando a proteção dos
deuses para a tragédia inesperada e dolorosa, Fábio e Helvídio dirigiram-se
apressadamente para o Capitólio, a fim de exterminarem o inimigo, como se
o fizessem a uma serpente imunda e venenosa.
Todavia, uma surpresa, tão grande quanto a primeira, os esperava.
No palácio do prefeito dos pretorianos o movimento era desusado
e estranho.
Antes de atingirem o átrio, os dois patrícios foram informados de
que Lólio Úrbico havia falecido minutos antes, acreditando-se que se tratava
de um suicídio.
A morte do marido constava do programa sinistro de Cláudia,
agora dona de opulento patrimônio financeiro, porquanto, desse modo, não
ficaria voz alguma que pudesse elucidar Helvídio Lucius, quanto à infâmia
que a antiga plebéia acreditava haver atirado ao nome de sua esposa. Além
disso, alta madrugada, Sabina tomara de um dos pergaminhos em branco,
assinados pelo prefeito, e escreveu, com perfeita imitação caligráfica, um
bilhete lacônico, no qual se confessava enfarado da vida, e rogava a Flávio
Cornélio, amigo de todos os tempos, perdoasse o dano moral que lhe
causara.
Penetrando, aturdidos, na casa do inimigo morto, Fábio e Helvídio
foram abordados por Cláudia Sabina, que lhes apareceu lacrimosa, naquela
manhã trágica.
Depois de se lastimar, comentando a tétrica resolução do esposo
em desertar da vida, Sabina entregava ao censor o último bilhete de Úrbico,
que dizia grafado pelo marido à última hora, deixando transparecer
curiosidade a respeito daquele pedido de perdão, injustificável e estranho.
Desejava, assim, conhecer os primeiros resultados do trabalho tenebroso de
Hatéria, esperando ansiosamente, dos lábios de Helvídio ou de alguma
alusão de Fábio as informações indiretas que o seu espírito vingativo
ansiosamente aguardava.
O censor e o genro, entretanto, receberam o suposto bilhete de
Úrbico com secura e indiferença. E como era preciso dizer alguma coisa em
face daquele imprevisto, Fábio Cornélio acrescentou :
- Guardarei este bilhete como prova do seu desequilíbrio mental
nos últimos momentos, pois só assim se justifica este pedido. E agora,
minha senhora - acentuou enigmaticamente para Cláudia, que o ouvia com
atenção -, há-de perdoar a nossa ausência, porquanto cada qual tem os
seus infortúnios...
O velho patrício estendia-lhe as mãos em despedida mas, sentindo
a sua curiosidade fundamente aguçada por aquelas expressões, a antiga
plebéia interrogou com interesse, como a provocar algum esclarecimento de
Helvídio Lucius, que se fechara em mutismo enigmático.
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
- Infortúnios? mas que desejais dizer com isso ? Pretendeis
abandonar-me nesta situação ? Qual a razão de sairdes assim, desta casa,
quando o cadáver de um amigo e chefe exige testemunhos de veneração e
amizade? Porventura aconteceu algo de grave a Alba Lucínia?..
Notava-se que a última pergunta transpirava um sentido misterioso.
Ela esperava que Helvídio lhe falasse da sua tragédia doméstica, dos seus
profundos desgostos conjugais, da infidelidade da esposa, conforme previa
e decorria dos seus planos. Seu coração bastardo aguardava que o homem
amado, naquele instante, iria dispensar-lhe as atenções amorosas tão
ardentemente aneladas naqueles últimos meses, em que os seus
sentimentos mesquinhos haviam acariciado tão grandes esperanças. O
tribuno, porém, mantinha-se impassível, como se tivesse os lábios
petrificados.
Fábio Cornélio, todavia, sem trair a fibra orgulhosa, esclarecia
Sabina nestes termos:
- Minha filha vai bem, graças aos deuses, mas também nós
acabamos de ser feridos no mais íntimo do coração! Um emissário da
Campânia nos trouxe, esta manhã, a dolorosa notícia da morte repentina
de minha neta solteira, que se encontrava junto da irmã, numa estação de
repouso. Esta a razão que nos impede prestar ao prefeito as derradeiras
homenagens, porquanto vínhamos justamente comunicar-lhe a imediata
partida para Cápua, a fim de promover o transporte das cinzas!...
Dito isso, os dois homens despediram-se secamente, saindo a
passo firme, no burburinho dos amigos e dos servos apressados, que
emulavam no patentear a Lólio Úrbico a bajulação derradeira.
Ante a cena enigmática, Sabina deixava vagar o pensamento em
conjeturas. Hatéria ter-se-ia esquecido de cumprir cegamente as suas
ordens? Que ocorrera com a rival, cujas notícias a deixavam perplexa,
quando tudo premeditara com tanta segurança? Os preconceitos sociais,
contudo, as obrigações daquela hora extrema, que a sua própria
maldade havia provocado, não lhe permitiam correr como louca no encalço
da cúmplice, fosse onde fosse, para matar a curiosidade.
Enquanto o seu espírito se perdia em divagações ansiosas, Fábio
Cornélio e o genro dirigiam-se ao Imperador, obtendo a necessária licença
para a precisa viagem a Campânia, cedendo-se-lhes, incontinenti, uma
galera confortável que os receberia em Óstia, de modo a abreviar a viagem o
mais possível.
Naquela mesma tarde, a embarcação saía do porto mencionado,
conduzindo a família ao seu destino, salientando-se que Helvídio Lucius não
se esquecera de levar Hatéria com os outros serviçais de sua confiança.
Enquanto o patriciado romano rende homenagens ao prefeito dos
pretorianos e a galera de Helvídio se afasta conduzindo em seu bojo
quatro corações angustiados, sigamos a jovem cristã nas suas primeiras
horas de amargura e sacrifício.
Saindo da casa paterna, Célia atravessou ruas e praças, receosa de
encontrar alguém que a reconhecesse no seu doloroso caminho...
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
Conchegava o pequenino de encontro ao coração, como se ele fôra
seu próprio filho, tal o enternecimento que a sua figurinha lhe inspirava.
Depois de errar longamente, presa de acerbas meditações, sentiu
que o Sol ia muito alto e precisava cuidar da nutrição do inocentinho.
Atravessara os bairros aristocráticos, encontrava-se agora junto à ponte
Fabrícius (1) , cheia de cansaço, extenuada. Além do Tibre, surgiam as
modestas edificações dos judeus e dos libertos pobres; ali estava a famosa
Ilha do Tibre, onde outrora se erguiam os templos de Júpiter Licaônio e o de
Esculápio... A seu lado passavam os filhos da plebe, inquietos e apressados.
De vez em quando, surgiam soldados da marinha, da frota de Ravena,
aquartelados no Trastevere e que lhe deitavam olhares libidinosos.
Cansada, dirigiu-se a uma casa de judeus, onde uma mulher do povo lhe
deu de comer, provendo-a de tudo quanto necessitava o pequenino. Mais
confortada, levando uma pequena provisão de leite de jumenta, a filha de
Helvídio continuou a dolorosa peregrinação pelas vias públicas, como se
aguardasse uma inspiração feliz para o seu penoso destino.
(1) A Ponte Fabrícius foi depois denominada Ponto di Quatri Capi, em vista de uma
estátua de Janus Quadrifons, posta à entrada da praça. Foi construída de pedra,
depois da conjuração de Catilina. - Nota de Emmanuel.
A tarde, porém, voltou ao mesmo ponto, nas proximidades do qual
fôra socorrida pelos mais humildes.
Triste e só, descansou num dos ângulos da ponte Fabrícius, ora
contemplando os transeuntes mal vestidos, ora fixando as águas do Tibre,
com o coração envolto em dolorosas cismas.
Aos poucos, o Sol se escondia lentamente, dourando ao longe as
derradeiras nuvens do horizonte.
Um vento frio, cortante, começava a soprar em todas as direções.
Contemplando os operários pobres que se recolhiam aos lares, a jovem
cristã aconchegou mais fortemente ao peito a mísera criancinha. Sentindose
desalentada, começou a orar e lembrou-se de que Jesus também andara
no mundo, ao desamparo, experimentando um suave consolo nessa
reminiscência evangélica. Contudo, pungente saudade do lar feria-lhe o
coração sensível e carinhoso. Mulheres do povo, depois das fainas penosas
do dia, regressavam a casa com uma auréola de júbilo tranqüilo a lhes
transparecer no rosto, enquanto que ela, filha de patrícios, se sentia
acabrunhada ante as incertezas da sorte e exposta ao frio cortante do
crepúsculo...
Estreitando sempre o pequenino, como se quisesse furtá-lo ao ar
glacial da tarde, mau grado à sua fé e resignação, não pôde conter o pranto,
refletindo amargamente no seu penoso destino!..
As grandes nuvens, batidas de sol, esmaeciam-se pouco a pouco,
dando lugar às primeiras estrelas.
III - ESTRADA DE AMARGURA
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
Desembarcando num porto da Campânia, nas proximidades de
Cápua, Helvídio Lucius adiantou-se a todos os familiares, a fim de preparar
os filhos para a consecução dos seus desejos.
Caio Fabrícius e sua mulher sofreram rude golpe com as
revelações inesperadas a respeito da irmã, e, obedecendo às determinações
do tribuno, criaram o ambiente necessário para que os círculos
aristocráticos da cidade recebessem a notícia da casa, enquanto os
sacerdotes do templo, sem desprezarem as largas compensações
financeiras que Helvídio oferecia, facilitavam a solução do assunto,
guardando-se assim, para sempre, todas as recordações da jovem num
punhado de cinzas.
Após receberem as homenagens da sociedade patrícia de Cápua,
que não deixou de estranhar o misterioso acontecimento, Fábio Cornélio e
todos da família retornaram prestes a Roma, onde promoveram o funeral
com a maior simplicidade, embora ao gosto da época e consoante as
exigências da tradição familiar.
Todavia, enquanto as supostas cinzas de Célia baixavam ao
sarcófago, nova dor assaltava o círculo doméstico das nossas personagens.
Profundamente ferida nas fibras mais sensíveis do coração
materno, Júlia Spinter, não conseguindo suportar tão fundo desgosto,
acrescido aos muitos que lhe minavam a existência, abandonara a Terra
inopinadamente, sem que os íntimos pudessem, ao menos, prever-lhe a
aproximação da morte, que se verificou dentro de uma noite, em
conseqüência de um colapso cardíaco.
Novo luto envolveu a casa de Helvídio, experimentando Alba
Lucínia os mais atrozes padecimentos íntimos. A esse tempo, Fábio
Cornélio, dado o desaparecimento de Lólio Úrbico, havia recebido novos
encargos do Imperador, encargos que lhe deferiram grandes poderes e
graves responsabilidades na solução de todos os problemas financeiros.
A morte da esposa encheu-lhe o coração de estranho pesar.
Buscou, contudo, reagir às forças que lhe deprimiam o ânimo, prosseguindo
na sua tarefa de domínio, com o mesmo orgulho que lhe temperava o
caráter.
Sentindo-se muito a sós, Helvídio Lucius e a esposa planejaram
voltar à tranqüilidade provinciana da Palestina, mas o falecimento
imprevisto da nobre matrona impedia-lhes, de novo, a execução dos
projetos há muito acarinhados, atento o insulamento em que ficaria o
velho censor, cujo coração orgulhoso e frio lhes dera sempre as mais
inequívocas provas de amor e dedicação.
Elucidando a situação de todas as personagens, resta-nos lembrar
Cláudia Sabina, após o desfecho singular dos acontecimentos dolorosos
que ela mesma sinistramente engendrara. Morto o marido e sabendo
frustrados todos os seus planos, procurou em vão ouvir Hatéria, que,
elevada a uma posição de redobrada confiança no lar de Helvídio Lucius,
dispusera-se a não abandonar jamais a casa, receosa das suas
represálias. De posse da grande soma que lhe dera o tribuno em troca do
seu silêncio, a velha serviçal chamara o genro e a filha à residência dos
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
patrões, onde lhes entregou parte da pequena fortuna, com a qual adquiriu,
em seu nome, um belo sítio em Benevento, lá arrumando os filhos, até que
ela se dispusesse a partir para a vida rural.
Cláudia Sabina, apesar dos esforços despendidos, nunca mais
pôde ouvir-lhe a palavra, porquanto, se Hatéria jamais se ausentava de casa,
também Fábio Cornélio detinha poderes cada vez mais fortes, na cidade
imperial, obrigando-a, indiretamente, a manter-se em silêncio e a distância.
Foi assim que a antiga plebéia se retirou de Roma para Tibur,
acompanhando as futilidades da Corte de Adriano, cujos últimos tempos
de reinado se caracterizaram por uma indiferença cruel.
Rodeada de servos, mas em pleno ostracismo social, a viúva do
prefeito dos pretorianos adquirira uma chácara tranqüila, onde devia passar
largos anos, requintando o seu ódio em detestáveis meditações.
Depois destas notícias breves, retomemos o caminho de Célia
para acompanhar-lhe a dolorosa peregrinação.
Deixando a Ponte Fabrícius, ela caminhou ao léu, procurando
alcançar a ilha do Tibre, onde se acotovelava a multidão dos pobres.
Aos derradeiros clarões da tarde, buscou atravessar a Ponte
Cestius, encontrando num trecho do caminho uma mulher do povo, de
semblante alegre e humilde. Célia assentara-se, por instantes, ajeitando o
pequenino. Sentiu, porém, que o olhar da desconhecida lhe penetrava
brandamente o coração.
Nesse comenos, experimentando a secreta confiança que lhe
inspirava aquela mulher simples, traçou com a destra, na poeira do solo,
um pequeno sinal da cruz, mediante o qual todos os cristãos da cidade se
reconheciam.
Ambas trocaram, então, um olhar expressivo de simpatia,
enquanto a desconhecida se aproximava, exclamando bondosamente:
- És cristã ?
- Sim - sussurrou Célia em surdina.
- Estás desamparada? - perguntou a desconhecida, discretamente,
revelando nas palavras breves a máxima cautela, de modo a não serem
surpreendidas como adeptas do Cristianismo.
- Sim, minha senhora - revidou Célia, algo confortada com aquele
interesse espontâneo -, estou só no mundo com este filhinho.
- Então, vem comigo, é possível que te seja útil em alguma coisa.
A neta de Cneio Lucius seguiu-a, sôfrega de proteção, no pélago
de incertezas em que se achava. Atravessaram a Ponte Cestius,
calmamente, como velhas amigas que se houvessem encontrado, dirigindose
para um quarteirão de casas pobres.
Distanciadas da multidão, a mulher do povo, sempre carinhosa,
começou a falar:
- Minha boa menina, chamo-me Orfília e sou tua irmã na fé! Logo
que te avistei, compreendi que estavas só e desamparada no mundo,
precisando do auxílio de teus irmãos! Estás moça e Jesus é poderoso..
Surpreendi lágrimas nos teus olhos, mas não deves chorar quando tantos
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
irmãos nossos têm padecido atrozes sacrifícios nos tempos amargos que
atravessamos...
Célia ouvia-a consolada, mas, intimamente, não sabia como
proceder em tão difíceis circunstâncias, nas quais uma companheira de
crença se lhe revelava com toda a sinceridade.
Enquanto Orfília calava um instante, a filha de Helvídio agradecialhe
em breves palavras:
- Sim, minha senhora, estou comovida e não sei como agradecerlhe.
- Sou lavadeira - continuou a plebéia com a sua simplicidade de
coração -, mas tenho a ventura de possuir um marido piedoso e cristão, que
não se cansa de me proporcionar no trabalho e no conchego do lar os
mais sagrados testemunhos de nossa fé ! Vais conhecê-lo !.. Chama-se
Horácio e terá prazer quando souber que te podemos ser úteis de algum
modo... Tenho, também, um filho de nome Júnio, que constitui a nossa
esperança para o futuro, quando em nossa pobreza material estivermos
imprestáveis para o trabalho !..
E, aproximando-se cada vez mais da casinha pobre, acrescentava:
- E tu, minha irmã, que te aconteceu para trazeres um semblante
tão triste e amargurado assim?.. Tão jovem e com um filhinho nos braços,
tão formosa e tão desventurada?...
- Fiquei viúva e abandonada - exclamou Célia de olhos molhados
-, mas espero em Jesus alcançar o necessário a mim e a meu filho...
Ainda não havia terminado as explicações timidamente
formuladas, quando transpuseram o umbral de uma sala muito pobre e
quase desguarnecida.
Dois homens conversavam à claridade frouxa de uma tocha e logo
se ergueram para recebê-las.
Devidamente apresentada ao pai e ao filho, Célia notou que
Horácio tinha, de fato, um aspecto conselheiral e bondoso, observando,
porém, no filho, algo que a desagradou de pronto, um olhar de moço
leviano e frívolo, cheio de fantasia e de loquacidade.
- Sabes, mãe - exclamou o rapaz como se guardasse todas as
qualidades de um porta-novas -, o grande acontecimento que abalou toda a
cidade?
Enquanto Orfília fazia um gesto de estranheza, Júnio continuava:
- A primeira notícia que abalou hoje as proximidades do Forum,
pela manhã, foi a da morte do prefeito Lólio Úrbico, que se suicidou
escandalosamente, obrigando o governo a numerosas homenagens!
- É estranho - exclamou a interpelada -, muitas vezes vi em público
esse homem fidalgo, de porte orgulhoso e varonil. Ainda ontem eu o vi nos
carros de triunfo, nas festas do Imperador. Seu rosto transbordava alegria
e, no entanto...
- Ora - interpôs o chefe da casa -, atravessamos uma fase
dolorosa de terríveis surpresas para todas as classes sociais. Quem nos
poderá afiançar com certeza, que o prefeito dos pretorianos se tenha
suicidado realmente? No mês findo, a cidade assistiu a dois acontecimentos
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
como esse e, no entanto, soube-se depois que os dois patrícios suicidas
foram assassinados cruelmente por sicários da sua própria grei.
Célia, encostada a um canto, como se fôra uma jovem mendiga,
ouvia aquelas notícias, amargamente impressionada. A estranha morte de
Lólio Úrbico aterrava-a. Embora inquieta, fazia o possível para não trair as
mais vivas emoções.
- Mas o dia não se caracterizou somente por isso - continuava
Júnio, loquaz -; disseram-me no Forum que alguns cristãos foram presos
quando reunidos próximo do Esquilino, bem como que o censor Fábio
Cornélio e família partiram para Cápua, a fim de trazerem para aqui as cinzas
de uma filha do tribuno Helvídio Lucius, lá falecida recentemente...
A jovem cristã recolheu a notícia com espanto, compreendendo a
gravidade da sua condição perante os parentes orgulhosos e inexoráveis.
Seu espírito chocava-se tristemente, em face de notícias tão amargurosas...
A mente lhe veio a idéia de regressar a casa e repousar o corpo alquebrado...
Nunca se afastara do lar, a não ser quando descansava junto do avô
enfermo, no palácio do Aventino. Lembrou os servos amigos e dedicados,
invocou todos os recantos do ninho paterno com os seus aspectos
peculiares. Uma saudade imensa de sua mãe invadia-lhe o íntimo e, contudo,
o coração lhe afirmava, por secreta intuição, que seus olhos nunca mais
voltariam a refletir a placidez do lar paterno, a não ser quando abandonasse
o ergástulo do mundo. Consoante as informações de Júnio, compreendeu
que as portas da casa paterna lhe estavam fechadas para sempre...
Simbolicamente morta, não poderia voltar aos seus senão como
sombra...
Observando-a de olhos úmidos e reconhecendo-lhe o enorme
cansaço, Orfília procurou quebrar a frivolidade dos assuntos, dirigindo-lhe a
palavra bondosamente :
- E tu, minha querida menina, por pouco não continuávamos a
nossa história. Afirmas-te viúva? Mas, que lástima !.. Assim tão nova!
Tomando-a pela mão, para conduzi-la ao interior sob o olhar
surpreso dos dois homens que reparavam a nobreza de traços da
desconhecida, continuava :
- Entremos, filha !... Está muito frio e pareces fatigada. Além disso,
precisamos cuidar da alimentação do pequeno. Vem!
Enquanto Célia exorava a Jesus que a inspirasse em tão difíceis
circunstâncias, compreendendo, após as notícias de Júnio, que não poderia
expor àquela amiga ocasional a realidade da sua situação, Orfília prosseguia
com interesse:
- Mas, como te chamas, minha irmã? Enviuvaste há muito tempo ? E
não tens outra amizade por ti ?.
A filha de Helvídio, medindo a delicadeza do momento, deu um
nome suposto, exclamando:
- Enviuvei há quatro meses apenas e estou inteiramente
desamparada, com este filhinho de poucos dias. Tenho experimentado
todos os sofrimentos de uma infortunada filha da plebe, mas tenho guardado
a fé em Jesus, como único refúgio. Ainda agora, a sua caridade fraterna,
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
recolhendo-me a esta casa, foi para mim o testemunho vivo da proteção do
Mestre Divino, a cuja misericórdia tenho endereçado todas as minhas
súplicas!...
Não somente Orfília, mas o marido e o filho a ouviram penalizados.
- E quais os teus projetos, minha filha? - perguntou a dona da casa,
compungida.
A tal pergunta, Célia lembrou-se de Cneio Lucius, que lhe havia
prometido amparo em todos os momentos difíceis, se o Senhor o
permitisse, e, implorando-lhe um alvitre valioso, com as vibrações
silenciosas do seu pensamento, retrucou com certa firmeza:
- Tenho necessidade de sair de Roma na primeira oportunidade.
Infelizmente, faltam-me os recursos necessários, mas espero que Jesus me
ajudará... Tenho alguns parentes nos arredores de Nápoles e nos confins
da Campânia. Quero recorrer a todos eles, porquanto não poderia aqui viver
sem elementos para me sustentar e ao meu pobre filhinho.
- Isso é justo - respondeu Orfília brandamente -, eu e Horácio
poderemos ajudar-te nas primeiras providências.
- Aliás - replicou o chefe da família, com um gesto paternal -, Júnio
terá de viajar ainda este mês, como empregado do Forum, levando
documentos de pouca importância até Gaeta! Munida dos pequenos
recursos que poderemos arranjar, estarás habilitada a encetar nova
diligência para te reunires aos teus parentes.
Célia ouvia-lhe a palavra, confortada e agradecida, enquanto
Orfília tomava a criança para nutri-la convenientemente, obrigando a
jovem a tomar, por sua vez, um prato de caldo.
- Essa idéia é bem lembrada - disse Orfília dirigindo-se ao marido -
os nobres poderão dirigir-se a Nápoles no bojo de luxuosas galeras, mas
nós, os humildes, temos de nos valer dos mais pobres recursos.
- Tudo, porém, está na pauta da misericórdia divina - glosou
Horácio, convicto.
E dirigindo-se ao filho, enquanto a mulher silenciava, perguntou:
- Quando partes?
- Acredito que dentro de duas semanas.
- Pois bem, Orfília, até lá, buscaremos prover nossa irmã do
indispensável à sua viagem.
Célia esboçou um sorriso de agradecimento, sentindo-se bem,
ao lado daqueles corações simples e generosos.
Daí a pouco repousava com o pequenito, numa cama humilde, mas
muito limpa, que a dona da casa lhe preparou, junto do seu próprio quarto.
A filha de Helvídio Lucius, ajeitando carinhosamente a criancinha
entre as coberturas pobres, começou a orar, meditando nas dolorosas
peripécias daquele dia inolvidável. Quando se sofre, a vida é qual
turbilhão de pesadelos intensos. Ao seu espírito combalido, pareceu-lhe
estar apartada dos seus há muitos anos, tal a angústia martirizante das
horas intermináveis em que vagara pelas vias públicas, sem destino e sem
nenhuma esperança... Sem perder de vista a criancinha, sentiu que aos
poucos o organismo exausto cedia ao sono reparador. Adormeceu,
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
então, tranqüila, como se nas asas da noite o espírito fugisse
temporariamente do ergástulo, livre da realidade dolorosa.
Durante duas semanas, valendo-se da proteção de Orfília e seu
esposo, a jovem cristã preparou o seu e o vestuário do pequeno. Com os
elementos que os amigos lhe proporcionaram, talhou fatos pobres e
singelos, com os quais empreenderia o seu roteiro de humildade.
Aonde iria? Não poderia sabê-lo ao certo.
Não conhecia Nápoles senão através das descrições do velho avô,
quando fazia viagens imaginárias no intuito de ilustrar a neta estremecida.
Possivelmente, não chegaria até Nápoles, nem mesmo à Campânia,
onde guardava a recordação da irmã e de Caio Fabrícius, domiciliados em
Cápua. Inútil presumir qualquer auxílio da irmã, porquanto, certamente,
Helvídia e o esposo, cientes do que ocorrera em Roma, não lhe poderiam
perdoar, em hipótese alguma.
Entretanto, predispunha-se a partir, cheia de confiança em Deus.
No instante oportuno Jesus haveria de abençoar-lhe os passos, guiandoos
a um destino certo. No complexo de suas meditações, recordava-se,
incessantemente, da palavra do avô no dia do sacrifício de Ciro e Nestório,
esperando que os mensageiros do Senhor ou as almas dos entes queridos
regressassem do túmulo para lhe orientar o coração no dédalo das
ansiedades angustiosas.
Receosa de complicações, a jovem nunca saiu do humilde
quarteirão transteverino, onde fôra acolhida, até que um dia, ao dealbar da
aurora, despediu-se da amiga com lágrimas nos olhos.
O carro de Júnio fôra preparado de véspera, de modo que a partida
se efetuasse ao amanhecer. Orfília e Horácio estavam igualmente
comovidos, mas, obedecendo ao imperativo das provações terrenas, Célia
aboletava-se no interior da viatura, construída à guisa de diligência dos
tempos medievais, onde acomodou o saco de roupas e a larga provisão de
alimentos para o inocentinho, que Orfília não se esquecera de preparar
carinhosamente.
Abraços carinhosos, votos de ventura e, daí a instantes, sob o
frio intenso da manhã, Júnio estalava o pequeno chicote no dorso dos
animais, através das vias públicas.
Célia rogava a Jesus que lhe fortalecesse o espírito angustiado,
dando-lhe coragem para enfrentar as sendas procelosas da vida... Ao
despedir-se de Roma, olhos nevoados de pranto, pareceu-lhe mais intenso
o martírio íntimo, sentindo o coração azorragado pelas saudades
impiedosas. Contemplando, porém, o pequenino meio adormecido em
seus braços, experimentava uma força incoercível que a sustentaria em
todos os sacrifícios.
Os primeiros raios do Sol começavam a invadir o céu escampo,
quando o carro transpôs a Porta Caelimontana (1) , entrando os cavalos,
logo após, a largo trote, na Via Ápia... Defrontando as campinas romanas
no trecho em que se erguia o admirável aqueduto de Cláudio, a filha de
Helvídio embevecia-se na contemplação da Natureza, com o espírito
mergulhado em preces carinhosas e profundas meditações.
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
(1) A Porta Caelimontana foi chamada, mais tarde, Porta de São João. - Nota
de Emmanuel.
Passava pouco de dez horas quando defrontaram Alba Longa,
com o seu casario simples e confortável.
Júnio, com reflexos enigmáticos no olhar, fez que a companheira
de viagem e o pequenino tomassem ligeira refeição, antes de iniciarem a
ascensão dos montes do Lácio.
Prosseguindo pelos caminhos orlados de árvores e flores
silvestres, atingiram Arícia, cercada de oliveiras viçosas e de hortos
imensos. Mais tarde alcançavam Genciano, vila graciosa e afortunada, ao
pé do lago Nemi, em cujas bordas floriam intérminos roseirais.
Célia trazia o espírito engolfado em meditações cariciosas, em face
do encanto maravilhoso da paisagem, cuja beleza ultrapassava todos os
quadros da Palestina guardados na sua retentiva para sempre. Por toda
parte, oliveiras amigas, laranjeiras em flor, hortos imensos e bem
cuidados, roseiras perfumadas e detalhes preciosos que o homem do campo
organizara.
Fosse pela influência cariciosa do ar embalsamado de aromas,
ou pelo cansaço da longa excursão, a criança adormecera no colo da
jovem mãezinha que o céu lhe dera, enquanto ela lhe acariciava o rosto
minúsculo com os mais ternos desvelos.
Enquanto a sombra do arvoredo atenuava os raios quentes do Sol
vespertino, Júnio, que nunca estava silencioso, chamando a atenção da
companheira de viagem para esse ou aquele pormenor do caminho,
começou a falar-lhe de assunto estranho. A jovem corou, pediu-lhe
recordasse a tradição cristã dos pais, que a haviam tratado generosamente,
suplicando-lhe que a deixasse em paz na sua dolorosa viuvez, ao léu da
sorte. Notou, porém, que o rapaz estava saturado dos vícios da época,
figurando-se-lhe que o filho dos seus protetores era insensível às suas
rogativas mais ardentes. Repelido nas suas propostas indecorosas, o filho
de Horácio exclamava para a sua vítima, deixando transparecer no
semblante uma repugnante expressão de abutre ferido.
- Estamos próximo de Velitrae, onde pernoitaremos, e como terás
de prosseguir comigo até Gaeta, espero convencer-te amanhã. Do
contrário...
Célia engoliu o insulto, lembrando-se dos seus deveres de orar e
vigiar e conservando o pensamento em preces fervorosas, a fim de que o
Divino Mestre, por seus mensageiros, lhe inspirasse o melhor caminho.
Daí a instantes, entravam na bela cidade, edificada em tempos
remotos pelos volscos e berço do grande Augusto. Velitrai, mais tarde
Velétri, assenta num grande outeiro, oferecendo as mais formosas
perspectivas topográficas ao viajante. Seus crepúsculos são tocados de
suave e maravilhosa beleza... Contemplando o Oriente, vêem-se os montes
da Sabina unidos aos barrancos profundos da cidade e, à tarde, quando o
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
Sol desaparece, a neve das montanhas mistura-se à neblina da noite,
proporcionando prismas visuais do mais deslumbrante efeito.
Júnio colheu as rédeas à frente de uma hospedaria do mais
humilde aspecto. Recebido com demonstrações de alegria por seus
antigos conhecidos, providenciava imediatamente a hospedagem de Célia
com a criança, recolhendo os animais à estrebaria.
A jovem cristã, após a refeição da tarde, buscou o silêncio do
quarto para refletir e orar. Júnio marcara o prosseguimento da viagem, ao
alvorecer. Todavia, ela estava tomada de angústia e de incerteza. O filho de
seus benfeitores não parecia dotado dos elevados sentimentos paternos.
Aquele olhar arisco parecia indicar a peçonha de um ofídio. Seus gestos
eram atrevidos, as idéias indiferentes às noções do dever e da
responsabilidade.
Noite alta, uma serva da casa veio saber se a hóspede reclamava
alguma coisa, encontrando-a inquieta e aflita, pensando no que pudesse
acontecer ao seu amanhã doloroso e cheio de ameaças.
Depois de amargas reflexões, deliberou, inspirada pelos amigos do
Invisível, retirar-se da estalagem nas primeiras horas da madrugada, por
fugir a qualquer perversidade do inimigo de sua paz íntima.
Assim, antes do alvorecer, afastou-se a medo do casarão
desconhecido. Apertando o pequenino de encontro ao peito, experimentava
o coração a lhe bater aceleradamente. Jamais enfrentara situações tão
difíceis e, todavia, confiava que Jesus a socorreria com os alvitres
necessários.
Deixando Velétri à esquerda, tomou corajosamente um largo
caminho, sobraçando o pequenino e o seu saco de bagagens pobres,
caminhando até o completo alvorecer e encontrando-se na antiga vila de
Cora, famosa pelo seu templo de Castor e Pólux. Ali, uma mulher do povo
recolheu-a por minutos, munindo-a de novas provisões; considerando a sua
penosa jornada, com o inocentinho ao colo.
Continuando a caminhar, possuída de estranha força, como se
alguém lhe guiasse os passos, apesar do rumo incerto, achou-se em breve à
margem do rio Astura, atravessando aldeias pequeninas, onde havia
sempre um bom coração a lhe prodigalizar uma gentileza fraterna.
Antes do meio-dia, defrontou humildes carreteiros, assalariados
pelos ricos senhores da região nos trabalhos de transporte, salientando-se
que um deles, de aspecto patriarcal, ofereceu-lhe um lugar a seu lado,
mitigando-lhe a dor dos pés.
Em breve, assim instalada num veículo bastante ligeiro para a
época, a jovem cristã divisava, à frente, as famosas Lagoas Pontinas, vasto
terreno sem inclinação, para onde convergem as pesadas massas dágua de
alguns rios.
Célia atravessava numerosos grupos de casas, aldeias nascentes
ou antigas cidades em ruínas, detendo os olhos tristes, com mais
insistência, nas humildes edificações de Forápio ( Forum Appü ) , onde
as tradições cristãs de Roma asseveravam que se dera o encontro de Paulo
de Tarso com os seus irmãos da cidade de César.
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
Dentro de suas meditações, a viajante defrontava Anxur, mais
tarde Terracina, de onde saía por escarpada encosta da montanha,
passando pelas ruínas bem conservadas de castelos antigos, dos mais
remotos dominadores. Da culminância, seus olhos abrangiam toda a
região das Lagoas célebres, bem como vasta extensão do mar Tirreno.
Aí, porém, sentiu o coração gelado e dolorido. Era dali, daquela
estrada hostil e montanhosa, que o idoso cocheiro, benfeitor e amigo,
deveria retroceder, em obediência às ordens recebidas.
Entardecia. O velho lidador da gleba despediu-se da
companheira, com os olhos umedecidos. Por todo o caminho, Célia se
conservara triste e silenciosa, mas, percebendo que o seu benfeitor estava
receoso e sensibilizado por ter de abandoná-la em sítio tão ingrato, e a tais
horas, disse-lhe corajosamente :
- Adeus, meu bom amigo ! Que o céu lhe recompense a bondade.
Seu oferecimento generoso evitou-me grande cansaço pelo caminho!...
- Ides a Fondi? - perguntou o bom do velho com carinhoso
interesse.
- Não precisarei chegar até lá – respondeu a jovem com inaudita
coragem -; a propriedade de meus parentes está muito próxima.
- Ainda bem - replicou ele mais conformado -, temia que
precisásseis caminhar ainda muito, pois estas regiões são infestadas de
feras e bandidos.
- Fique descansado - disse Célia ocultando a própria angústia -,
estas estradas não me são desconhecidas. Além do mais, estou certa de
que o céu me protegerá, amparando o meu filhinho...
O generoso carreiro ao ouvir a invocação do céu, descobriu-se
respeitoso na sua simplicidade de alma devotada a Deus e, depois de
estender a destra à jovem desconhecida, preparou-se para descer a
montanha, onde fôra tão somente para atender a solicitação da sua graciosa
passageira, descendo pelas mesmas sendas escarpadas, a fim de cumprir
em Anxur a incumbência que levava.
Célia viu-o desaparecer nas curvas íngremes, acompanhando-lhe o
veículo com o olhar triste e ansioso. Desejava também retroceder, mas um
receio imenso dos homens impiedosos, que não saberiam respeitar-lhe a
castidade, a impelia a buscar o desconhecido, entre as sombras espessas
das florestas do Lácio.
Com o pensamento em prece, caminhou quase mecanicamente,
observando, angustiada, que se avizinhavam as sombras do crepúsculo...
A estrada corria por um vale apertado, vendo-se-lhe de um lado o
oceano, e do outro a cadeia das montanhas. Os derradeiros raios do Sol
douravam a cúpula imensa, quando seus olhos divisaram, à esquerda, uma
gruta providencial, formada pelos elementos da Natureza. Era, porém, uma
edificação natural tão imponente, que bastou um exame mais acurado
para que se recordasse das lições do avô, em outros tempos,
identificando o local com as suas reminiscências dos estudos com o
avozinho. Aquela gruta era o local famoso onde Sejano havia salvado a vida
de Tibério, quando o antigo Imperador, ainda príncipe, se dirigia com
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
alguns amigos para as cidades da Campânia. Sentindo-se rodeada pelos
clarões mortiços da tarde, dirigiu-se para o interior, onde uma cavidade
natural parecia bem disposta para o descanso de uma noite. Agradecendo a
Jesus o encontro de um pouso como aquele, ajeitou as roupas pobres que
trazia para acomodar o pequenino, colhendo, em seguida, grandes
braçadas de musgo selvagem, que caíam das árvores idosas e forrando
o leito de pedras com o maior carinho. Quando procurava interceptar a
passagem para a cavidade em que repousaria, com pedras e ramos verdes,
encarando a possibilidade do aparecimento de algum animal bravio, eis que
lhe chega aos ouvidos o tropel de cavalos trotando, aceleradamente, ao
longo do caminho...
Guardando o pequerrucho nos braços, correu para a frente,
desejosa de se comunicar com alguém, para afastar do espírito aquela
triste impressão de soledade, esperançosa de que a Providência Divina, por
intermédio de um coração bondoso, lhe evitasse a amargura daquela noite
que se prefigurava angustiosa e dolorida...
Seria um carro, ou seriam cavaleiros generosos que lhe
estenderiam mãos fraternas? Também podiam ser ladrões a cavalo,
perdidos na floresta em busca de aventuras... Considerando esta última
hipótese, tentou retroceder, mas três vultos destacaram-se ao seu lado, na
sombra da noite, impedindo-lhe a retirada, porquanto, sofreados com força,
os garbosos cavalos interromperam o trote acelerado e ruidoso.
Criando novo alento, ao influxo das energias poderosas que fluíam
do Invisível para o seu espírito, a filha de Helvídio perguntou :
- Ides a Fondi, cavalheiros?
Ao ouvir-lhe a voz, alguém, que parecia o chefe dos dois outros,
exclamou com voz aterrada:
- Urbano ! Lucrécio ! - acendam as lanternas.
Célia reconheceu aquela voz dentro da noite, com uma nota de
terrível espanto.
Tratava-se de Caio Fabrícius, que regressava de Roma, deixando
a esposa em companhia dos pais, compelido por suas obrigações
imperiosas em Cápua, depois do suposto funeral de Célia, conforme as
combinações da família.
Reconhecendo-o pela voz, a jovem cristã experimentou os mais
angustiosos receios, entremeados de esperanças. Quem sabe a sua
situação poderia modificar-se, em face daquele encontro imprevisto?
Antes que as suas cogitações tomassem longo curso duas
lanternas brilharam no ambiente.
O esposo de Helvídia contemplou-a, aterrado. A visão de Célia,
sozinha e abandonada, sustendo nos braços a criança que ele supunha
seu filho, comoveu-lhe o coração; todavia compreendendo a gravidade
dos acontecimentos de Roma, de conformidade com as informações
dolorosas do sogro, tratou de disfarçar a emoção, imprimindo no rosto a
mais fria indiferença:
- Caio !... - implorou a jovem com uma inflexão de voz
intraduzível, enquanto a luz lhe banhava o semblante abatido.
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
-Conheceis-me? - perguntou o orgulhoso patrício.
- Porventura me desconheces, tu ?
- Quem sois ?
- Pois será preciso abrir-te os olhos ?
- Não vos reconheço.
- Estarei, acaso, com a fisionomia transformada a tal ponto? Não
te recordas da irmã de tua mulher? - perguntou súplice.
- Minha esposa - concluiu o viajante, enquanto os dois servos o
contemplavam altamente surpreendidos - possuía apenas uma irmã, que
morreu há oito dias. Estais evidentemente equivocada porquanto, ainda
agora, venho de Roma, onde assisti ao seu funeral.
Aquelas palavras foram pronunciadas com frieza indefinível.
A filha de Helvídio Lucius fixou nele os olhos mareados de lágrimas
e o semblante transfigurado de infinita amargura. Compreendeu que era
inútil afagar qualquer esperança de voltar ao seio da família. Para todos
os efeitos estava morta, e para sempre. Figurou-se-lhe acordar, mais
intensamente, para a sua realidade dolorosa, mas, sentindo que alguém lhe
amparava o espírito em tão angustioso transe, exclamou :
- Compreendo!...
O esposo de Helvídia, contudo, aparentando máxima frieza, de
modo a não trair seus sentimentos diante dos servos, replicou :
- Senhora, se vos valeis desse expediente para obter o dinheiro
preciso às vossas necessidades, eu vo-lo dou de bom grado.
Mas, quando o orgulhoso romano revolvia a bolsa para cumprir
esse desígnio, ela lhe respondeu com nobreza e dignidade:
- Caio, segue em paz o teu caminho!... Guarda o teu dinheiro, pois
uma bênção de Jesus vale mais que um milhão de sestércios!..
Extremamente confundido, o marido de Helvídia recolheu a bolsa,
dirigindo-se contrariado aos servidores, nestes termos :
- Apaguem as lanternas e prossigamos a viagem !
E observando a consternação de ambos os escravos,
eminentemente impressionados com aquela cena, acrescentou com
altanaria:
- Que esperam mais para cumprir minhas ordens? Não nos
impressionemos com os incidentes do caminho. Nunca passei pelas
estradas de Anxur sem encontrar uma louca como esta!
Como se fossem repentinamente despertados por ordens mais
severas, Urbano e Lucrécio obedeceram às exigências do senhor, apagando
as luzes que bruxuleavam na escuridão da noite e, daí a instantes, os três
cavaleiros recomeçavam a marcha, como se coisa alguma houvesse
acontecido.
Caio Fabrícius era generoso, mas a falta de Célia, aos olhos da
família, era assaz grave para que pudesse ser perdoada. A ninguém
revelaria aquele encontro, ainda porque, entre ele e sua mulher, havia o
compromisso de absoluto sigilo a tal respeito. Resolveu, assim, sufocar
todos os estos de compaixão pela infeliz cunhada.
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
Quanto a esta, com os olhos mareados de lágrimas, ficou como
petrificada, a ouvir o compassado trote dos animais que se afastavam, até
que um silêncio profundo e misterioso se fez sentir por toda parte, dentro da
floresta sombria.
Vendo que Caio se afastava, teve ímpetos, na sua fragilidade
feminina, de suplicar o seu auxílio, rogando-lhe a caridade de conduzi-la até
ao povoado de Fondi, onde, por certo, encontraria alguém que a abrigasse
por uma noite. Todavia, permaneceu muda, como se a insensibilidade do
cunhado lhe houvesse enregelado a própria alma.
Chorou longamente misturando em orações as lágrimas amargas,
de olhos fitos no céu, onde apenas lucilavam raras estrelas...
A passos vacilantes voltou à gruta selvagem que a Natureza havia
edificado.
Lá dentro, acomodou a criança da melhor maneira e entrou a
meditar amargamente.
Os ventos do Lácio começaram a sussurrar uma sinfonia triste
estranha, e, de longe em longe, até aos seus ouvidos chegavam os ecos dos
lobos selvagens, ululando na floresta...
Célia sentiu-se abandonada mais que nunca. Profundo
desânimo se lhe apoderou do espírito, sentindo que, apesar da fé, a
fortaleza moral desfalecia em face de tão penosos padecimentos...
Lembrou, uma a uma, todas as suas alegrias domésticas recordando cada
familiar, com as particularidades encantadoras do seu extremoso afeto.
Nunca o sofrimento moral lhe atingira tão fundo o coração sensível !...
Enquanto as lágrimas silenciosas lhe rolavam dos olhos, lembrou-se, mais
que nunca, das exortações de Nestório nas vésperas do sacrifício, rogando a
Jesus lhe concedesse forças para as renúncias purificadoras..
Mergulhada em profunda escuridão, acarinhava o rosto do
pequenino, receosa de um ataque de répteis, enxugando as lágrimas, para
melhor pensar no futuro, sem perder a sua confiança na misericórdia de
Jesus.
Foi então que, com surpresa e pasmo dos seus olhos aflitos,
emergiu da sombra um ponto luminoso, avultando com rapidez prodigiosa,
sem que ela atinasse, de pronto, com o que se passava... Aturdida e
surpresa, acabou por divisar a seu lado a figura do avô, que lhe enviava ao
coração atormentado o mais terno dos sorrisos...
Tamanha era a sua amargura, tanto o fel do seu coração
angustiado, que não chegou a manifestar a menor estranheza. Dentro das
claridades da sua fé, recordou, imediatamente, a lição evangélica das
aparições do Divino Mestre a Maria Madalena e aos Discípulos, estendendo
para o avô os braços ansiosos. Para o seu espírito dolorido, a visão de
Cneio Lucius era uma bênção do Senhor aos seus inenarráveis martírios
íntimos. Quis falar, mas, ante a figura radiosa do velhinho bom, a voz morrialhe
na garganta sem conseguir articular uma palavra. Todavia, tinha os
olhos aljofrados de pranto e havia em seu rosto uma tal expressão de
sublimidade, que dir-se-ia mergulhada em profundo êxtase.
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
- Célia - sussurrou o Espírito carinhoso e benfazejo - Deus te
abençoe nas tormentas aspérrimas da vida material !... Feliz de ti, que
elegeste o sacrifício, como se houvesses recebido uma determinação grata
do Mestre!... Não desfaleças nas horas mais amargas, pois entre as flores
do Céu há quem te acompanhe os sofrimentos, fortalecendo as fibras do
teu espírito desterrado! Jamais te suponhas abandonada, porquanto, do
Além, nós te estendemos mãos fraternas. Todas as dores, filhinha, passam
como a vertigem dos relâmpagos ou como os véus da neblina desfeitos ao
Sol... Só a alegria é perene, só a alegria alcança a eternidade. Realizandonos
interiormente para Deus, nós compreendemos que todos os
sofrimentos são vésperas divinas do júbilo espiritual nos planos da
verdadeira vida! Conhecemos a intensidade dos teus padecimentos, mas,
coerente com a tua fé conserva o pensamento sempre puro! Crendo
sacrificar-te por tua mãe, estás cumprindo uma das mais formosas missões
de caridade e de amor, aos olhos do Cordeiro... Jamais agasalhes a idéia de
que o sentimento materno se houvesse desviado algum dia do código da
lealdade e da virtude doméstica, mas recebe todos os sofrimentos como
elementos sagrados da tua própria redenção espiritual ! Tua mãe nunca
faltou à fidelidade conjugal e o teu espírito de abnegação e renúncia
receberá de Jesus a mais farta messe de bênçãos.
Ouvindo aquelas palavras que lhe caíam como bálsamo divino no
coração desalentado, a filha de Helvídio deixava que as lágrimas de conforto
íntimo lhe rolassem das faces, como se o pranto, somente, lhe
pudesse lavar todas as amarguras. Ela identificava o avô carinhoso e
amigo, ali, a seu lado, como nos dias mais venturosos da sua existência.
Nimbado de uma luz suave e doce, Cneio Lucius sorria-lhe com a
benevolência de coração que sempre lhe demonstrara. Escutando-lhe a
revelação da integridade moral da genitora, Célia reconsiderou as
ocorrências dolorosas do lar. Bastou que esboçasse tais pensamentos, sem
exprimi-los verbalmente, para que a respeitável entidade espiritual a
esclarecesse, nestes termos :
- Filha, não cogites senão de bem cumprir os desígnios do
Senhor a teu respeito... Não permitas que os teus pensamentos voltem ao
passado para se eivarem de aflições e amaritudes da vida terrestre! Não
queiras estabelecer a culpa de alguém ou apontar o desvio de quem quer
que seja, porque há um tribunal de justiça incorruptível, que legisla acima
das nossas frontes !... Para ele não há processos obscuros, nem
informações inexatas! Se essa justiça sublime determinou a tua marcha
pelos carreiros da calúnia e do sacrifício, é que essa estrada conviria
mais ao teu aperfeiçoamento e às fórmulas de trabalho que te competem.
Nunca mais voltarás ao aconchego do lar paterno, ao qual te sentirás ligada
pelos elos inquebrantáveis da saudade e do amor, através de todos os
caminhos, mas essa separação de tua alma dos nossos afetos mais
queridos será como um ponto de luz imorredoura, assinalando a
transformação dos nossos destinos? Teu sacrifício, filhinha, há-de ser
para todo o sempre um marco renovador de nossas energias espirituais no
grande movimento das reencarnações sucessivas, em busca do amor e da
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
sabedoria! Ampliando os meus recursos para regressar às lutas terrestres,
abençôo a tua dor, porque a tua renúncia é grande e meritória aos olhos
de Jesus.
Foi aí que ela, conseguindo romper as emoções que a asfixiavam,
exclamou com voz amargurada e dolorida:
- Mais do que as palavras, meu coração, que o vosso espírito pode
perscrutar, pode dizer-vos da minha alegria e reconhecimento!... Protetor e
amigo, guia desvelado de minhalma, já que vindes das sombras do túmulo
para trazer-me as mais consoladoras verdades, ajudai-me a vencer nos
embates dolorosos da vida!... Animai-me! Inspirai-me com a vossa
sabedoria e o vosso amor compassivo! Não me deixeis desorientada, nestas
penhas escabrosas !.. Avô, meu coração tem andado triste como esta
noite, e o desalento e a amargura clamam no meu íntimo como os lobos
ferozes que uivam nestas selvas !.. Doravante, porém, saberei que vos
tenho junto a mim !... Caminharei consciente de que me seguireis os
passos em busca da felicidade real !.. Rogai a Jesus que eu desempenhe
austeramente todos os meus deveres ! E, sobretudo, amparai também o
inocentinho, cuja vida buscarei proteger em todas as circunstâncias !.
A voz de Célia, todavia, experimentava um estacato. Ouvindo-lhe as
súplicas com a mesma expressão de serenidade e de carinho no olhar,
Cneio Lucius avançou vagarosamente até o leito improvisado do pequenino,
iluminando-lhe o rostinho alvo com um gesto da sua destra radiosa e
exclamando num sorriso:
- Eis, filhinha - disse apontando a criancinha -, que Ciro cumpriu a
promessa, regressando prestes ao mundo para estar mais perto do teu
coração, sob as bênçãos do Cordeiro !...
- Como não mo revelastes antes? - monologou a jovem
intimamente possuída de sublime alvoroço.
- É que Deus - exclamou a entidade generosa, adivinhando-lhe os
pensamentos - quer que todos espiritualizemos o amor, buscando-lhe as
expressões mais puras e mais sublimes. Recebendo um enjeitadinho como
teu irmão, sem te deixares conduzir por qualquer disposição particular,
soubeste santificar, ainda mais, tua afeição por Ciro, no laço indissolúvel
das almas gêmeas, a caminho das mais lúcidas conquistas espirituais na
redenção suprema...
- Sim - falou a jovem patrícia dentro do seu júbilo espiritual -,
agora compreendo melhor o meu enternecimento, e já que me trouxestes ao
coração uma alegria tão doce, ensinai-me como devo agir, dai-me uma
orientação adequada, para que eu possa cumprir irrepreensivelmente todos
os meus deveres...
- Filha, a orientação de todos os homens está delineada nos
exemplos de Jesus-Cristo! Não temos o direito de tolher a iniciativa e a
liberdade dos entes que nos são mais caros, porque, no caminho da vida, o
esforço próprio é indispensável! Luta com energia, com fé e perseverança,
para que o reino do Senhor floresça em luz e paz na tua própria vida...
Mantém a tua consciência sempre pura e, se algum dia a dúvida vier
perturbar teu coração, pergunta a ti mesma o que faria o Mestre em teu
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
lugar, em idênticas circunstâncias... Assim aprenderás a proceder com
firmeza, iluminando as tuas resoluções com a luz do Evangelho !...
Depois de uma pausa em que Célia não sabia se fixava a
personalidade sobrevivente do avô, ou se despertava o enjeitadinho para
rever nos seus olhos, mais uma vez, as recordações do bem-amado.
Cneio Lucius acentuou :
- Depois de tantas surpresas empolgantes e de tanta fadiga,
precisas descansar! Repousa o corpo dolorido que ainda terá de
sustentar muitas lutas... Continua com a mesma oração e vigilância de
sempre, pois Jesus não te abandonará no mar proceloso da vida!...
Então, como se um poder invencível lhe anulasse as possibilidades
de resistência, Célia sentiu-se envolvida num magnetismo doce e suave. Aos
poucos, deixou de ver a figura radiosa do avô, que se postara a seu lado
qual sentinela afetuosa contra a incursão de todos os perigos... Um sono
brando cerrou-lhe as pálpebras cansadas e, abraçada ao pequenito, dormiu
tranqüilamente até que os primeiros raios do Sol penetrassem na gruta
anunciando o dia.
Enquanto a vida familiar de Fábio Cornélio transcorria, na cidade
imperial, sem acidentes dignos de menção, sigamos a filha de Helvídio
Lucius na sua via dolorosa.
Levantando-se pela manhã, Célia alcançou a povoação de
Fondi, em cujas cercanias uma criatura generosa acolheu-a por um dia, com
ternura e bondade. Foi o bastante para se reconfortar das caminhadas
ásperas e longas e, no dia seguinte, punha-se novamente a caminho em
direção de Itri, a antiga “Urbs Mamurrarum”, aproveitando o mesmo traçado
da Via Ápia.
Em caminho, teve a satisfação de encontrar a carreta de
Gregório, o mesmo carreiro humilde que a deixara, na antevéspera, nas
montanhas de Terracina, circunstância que lhe trouxe ao coração muita
alegria. Nas dificuldades e dores do mundo, a fraternidade tem elos
profundos, jamais facultados pelos gozos mundanos, sempre fugazes e
transitórios.
Gregório ofereceu-lhe o mesmo lugar ao seu lado, num gesto de
proteção que a jovem aceitou, considerando-o uma bênção do Alto.
Desta vez, reconheceram-se como dois bons amigos de
outros tempos. Falaram da paisagem e dos pequenos acidentes da
viagem, rematando Gregório com uma pergunta cheia de interesse:
- Tem a senhora outros parentes além de Fondi? Não me
pareceu pequeno o sacrifício em aventurar-se a uma jornada tão longa
como a de anteontem... Como consentiram prosseguisse outra viagem a pé
?
- Sim, meu amigo - respondeu buscando desviar a sua afetuosa
curiosidade -, meus parentes de Fondi são paupérrimos e não desejo
voltar a Roma sem rever um tio enfermo, que reside em Minturnes. (1)
(1) Minturnes, mais tarde passou a chamar-se Trajetta. - Nota de Emmanuel.
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
- Ainda bem - murmurou o generoso plebeu, satisfeito com a
resposta -, sendo assim, poderei levá-la hoje até ao fim da sua jornada, pois
vou além das lagoas da cidade.
A marcha continuou entre as gentilezas de Gregório e os
agradecimentos de Célia, que lhe apreciava a bondade, comovida.
Somente ao cair da tarde o veículo atingiu os arredores da cidade
famosa.
Despedindo-se do carinhoso companheiro, a jovem cristã atentou
na paisagem soberba que se desdobrava aos seus olhos. Uma formosa
vegetação litorânea repontava dos terrenos alagadiços, num dilúvio de
flores. A primeira porta da cidade estava a alguns metros, e, todavia, o seu
amor pela Natureza fê-la estacionar junto das grandes árvores do caminho.
O Sol, em declínio, enviava à tela florida os seus raios agonizantes.
Dominada por grandiosos pensamentos e experimentando um novo alento
de vida, com a palavra de verdade e de consolação que o avô lhe trouxera
na véspera, dos confins do túmulo, começou a orar, agradecendo a Jesus
as suas graças sublimes e infinitas.
No seu caricioso embevecimento, contemplou a figurinha mimosa
que se agitava em seus braços e beijou-lhe a fronte num arroubo de
espiritualidade.
Na véspera, haviam recebido a hospitalidade da Natureza, mas,
agora, ante as fileiras de casebres ali próximos da estrada, consultava a si
mesma sobre o melhor meio de recorrer à piedade alheia, contando,
porém, como das outras vezes, com o amparo de Jesus, que lhe
forneceria a inspiração mais acertada, por intermédio dos seus lúcidos
mensageiros.
Foi então que reparou numa choupana rodeada de laranjeiras, onde
a vida parecia ser a mais simples e mais solitária. Seu aspecto singelo
emergia do arvoredo a duzentos metros do local em que se encontrava, mas,
como que atraída por algum detalhe que não poderia definir, Célia alcançou
a trilha e bateu à porta. Brilhavam no céu as primeiras estrelas.
Depois de muito chamar, sentiu que alguém se aproximava com
dificuldade, para dar voltas ao ferrolho.
E não tardou tivesse diante dos olhos surpresos uma figura
patriarcal e veneranda, que a acolheu com solicitude e simpatia.
Era um velho de cabelos e barbas completamente encanecidos. As
cãs prateadas realçavam-lhe os nobres traços romanos, irrepreensíveis.
Aparentava mais de setenta anos, mas o olhar estava cheio de ternura e
de vida, como se os seus raciocínios estivessem em plenitude de
maturidade. Estendendo-lhe as mãos encarquilhadas e trêmulas, Célia
notou pequena cruz a pender-lhe do peito, fora da toga descolorida e
surrada.
Grandemente emocionada e compreendendo que se encontrava à
frente de um velho cristão, murmurou humilde :
- Louvado seja Nosso Senhor Jesus-Cristo !
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
- Para sempre, minha filha! - respondeu o ancião, esboçando num
sorriso o júbilo que aquela saudação lhe causava. - Entra na choupana do
mísero servo do Senhor e dispõe dele, teu servo, igualmente.
A filha de Helvídio Lucius explicou, então, que se encontrava no
mundo ao desamparo, com um filhinho de poucos dias, abençoando a
hora feliz de bater à porta de um cristão, que, desde aquele instante,
passaria a encarar como um mestre. Desde logo, estabeleceu-se entre
ambos uma cordialidade e um afeto mútuos, tão expressivos, tão puros, que
pareciam radicados na Eternidade.
Ouvindo-lhe a história, o ancião de Minturnes falou-lhe com
brandura e sinceridade:
- Depois de examinar a tua situação, minha filha, hás-de permitir te
assista como um pai ou irmão mais velho, na fé e na experiência. É que,
também, tive uma filha, perdida há pouco tempo, justamente quando
vinha buscá-la para acompanhar-me no meu voluntário e bendito
degredo na África... Parecia-se extraordinariamente contigo e terei grande
ventura se me olhares com a mesma simpatia que me inspiraste. Ficarás
nesta casa o tempo que quiseres, ou necessitares... Vivo só, após uma
existência fértil de prazeres e de amarguras... Antigamente, a afeição de
uma filha ainda me prendia o coração a cogitações mundanas, mas agora
vivo somente na minha fé em Jesus-Cristo, esperando que a sua palavra de
misericórdia me chame breve ao seu reino, para a verificação da minha
indigência!
Sua voz entrecortava-se de suspiros, como se os mais atrozes
padecimentos íntimos lhe azorragassem o coração, ao evocar
reminiscências.
- Há mais de um ano - continuou - aguardo oportunidade para
regressar a Alexandria, mas o deperecimento físico parece advertir-me que
em breve serei forçado a entregar o corpo à terra da Campânia, mau grado
ao desejo de morrer no pouso solitário a que transportei o meu espírito..
Enquanto ele fazia uma pausa, a jovem aventou
despreocupadamente:
- Sois romano, presumo, pelos traços inconfundíveis da vossa
fisionomia patrícia.
Fitando-a bem nos olhos, como se quisesse certificar-se de toda
a pureza e simplicidade dalma da sua interlocutora, o ancião respondeu
pausadamente :
- Filha, tua condição de cristã e a candidez que se irradia de tua
alma obrigam-me a maior sinceridade para contigo!...
Nesta cidade ninguém me conhece, tal como sou !.. Desde o dia
em que me consagrei à instituição cristã da qual participo no Egito
longínquo, chamo-me Marinho para todos os efeitos. Dentro da nossa
comunidade de homens sinceros e crentes, desprendidos dos bens
materiais, fizemos voto solene de renúncia a todas as regalias efêmeras
da Terra, a todas as suas alegrias, de modo a nos unirmos ao Senhor e
Mestre com a compreensão clara e profunda da sua doutrina. Enquanto
os déspotas do Império tramam a morte do Cristianismo, supondo aniquilá50
ANOS DEPOIS Emmanuel
lo com o suplício dos adeptos, fora de Roma organizam-se as forças
poderosas que hão-de agir no futuro, em defesa das idéias sagradas ! Em
todas as Províncias da Ásia e da África os cristãos se articulam em
sociedades pacíficas e laboriosas, e guardam os escritos preciosos dos
Discípulos do Senhor e dos seus seguidores abnegados, protegendo o
tesouro dos crentes para uma posteridade mais piedosa e mais feliz!...
Enquanto Célia o escutava com carinhoso interesse, o ancião de
Minturnes continuava, depois de uma pausa, como que preparando o
próprio pensamento para maior clareza das suas recordações.
- A outrem filha, não poderia confiar o que te revelo esta noite,
levado por um impulso do coração... Talvez meu espírito esteja acercandose
do sepulcro e o Mestre Amado queira advertir, indiretamente, a alma
culpada e dolorida. Há qualquer coisa que me compele a confessar-te o
passado com as suas inquietudes e incertezas... Não poderia explicar-te o
que seja... Sei, apenas, que a inocência do teu olhar de cristã, de filha
piedosa e meiga, faz nascer-me no peito exausto os bens divinos da
confiança!...
Meu verdadeiro nome é Lésio Munácio, filho de antigos guerreiros,
cujos ascendentes se notabilizaram nos feitos da República... Minha
mocidade foi uma esteira longa de crimes e desvios, aos quais se entregou o
meu espírito frágil, visto o desconhecimento do ensino de Jesus... Não
trepidei, noutros tempos, em brandir a espada homicida, disseminando a
ruína e a morte entre os seres mais humildes e desprezados... Auxiliei a
perseguição aos núcleos do Cristianismo nascente, levando mulheres
indefesas ao martírio e à morte, nos dias das festas execráveis !... Ai de mim,
porém !... Mal sabia que um dia ecoaria em meu íntimo a mesma voz divina e
profunda que soou para Paulo de Tarso a caminho de Damasco! Depois
dessa vida aventurosa, casei-me tarde, quando as flores da juventude já
se despetalavam no outono da vida! Antes não o fizesse!... Para conquistar o
afeto da companheira, fui compelido a gastar o impossível, lançando mão de
todos os recursos! Sem preparação espiritual, construí o lar sobre a
indigência mais triste! Em pouco tempo, uma filhinha graciosa vinha
iluminar o âmago escuro das minhas reflexões sobre o destino, mas,
atormentado pelas necessidades mais duras a fim de mantermos em Roma
o nosso padrão de vida social, senti que a pobre esposa, tomada de ilusões,
não beberia comigo o cálice da pobreza e da amargura! Com efeito, em breve
o meu lar estava ultrajado e deserto!...
O questor Flávio Hilas, abusando da amizade e da confiança que eu
lhe dispensava, seduziu minha mulher, desviando-a ostensivamente do
santuário doméstico, para escárnio de minhas esperanças e de meus
sofrimentos... Desejei sucumbir para furtar-me à vergonha, mas o apego à
filhinha me advertia de que esse gesto extremo significava apenas
covardia... Pensei, então, em procurar Flávio Hilas e a esposa infiel, para
trucidá-los sumariamente com um golpe de espada, mas, quando buscava
realizar o sinistro intento, encontrei um velho mendigo junto ao templo de
Serápis, que me estendeu a destra dilacerada, não para implorar esmola,
mas para dar-me um fragmento de pergaminho que tomei sôfrego, como se
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
recebesse secreta mensagem de um amigo. Depois de alguns passos
reconheci com assombro que ali se achavam grafados alguns pensamentos
de Jesus-Cristo e que, depois, vim a saber serem os do Sermão da
Montanha...
Junto a esse hino dos bem-aventurados, estava a participação de
que alguns amigos do Senhor se reuniriam junto dos velhos muros da Via
Salária, naquela noite!... Retrocedi para colher informes do mendigo; não o
encontrei, porém, nem pude jamais obter notícias dele.
Aqueles ensinamentos do Profeta Galileu encheram-me o coração...
Parece que somente nas grandes dores pode a alma humana sentir a
grandeza das teorias do amor e da bondade.. Voltei a casa sem cumprir os
malsinados propósitos, e, considerando a inocência de minha filha,
cujos carinhos infantis me concitavam a viver, fui à assembléia cristã, onde
tive a felicidade de ouvir pregadores valorosos, das verdades divinas.
Lá se congregavam homens sofredores e humilhados, entre os
quais alguns conhecidos meus, que as fúrias políticas haviam atirado ao
sofrimento e ao ostracismo.. Criaturas humildes ouviam a Boa Nova, de
mistura com elementos do patriciado, que as circunstâncias da sorte haviam
conduzido à adversidade... Para todos, a palavra de Jesus constituía um
consolo suave e uma energia misteriosa... Em todos os semblantes, à
claridade triste das tochas, surgia uma expressão de vida nova que se
comunicou ao meu espírito cansado e dolorido... Naquela noite regressei a
casa como se houvera renascido para enfrentar a vida!
No dia seguinte, porém, quando menos o esperava na quietação de
minha alma, eis que um pelotão de soldados me cercava a residência e
conduzia-me ao cárcere, sob a mais injusta acusação... É que, naquela noite,
o inditoso Flávio Hilas fôra apunhalado em misteriosas circunstâncias.
Diante do seu cadáver, minha própria mulher jurou fôra eu o assassino.
Arguida a calúnia, busquei interpor minhas relações de amizade para
recuperar a liberdade e poder cuidar da pobre filha recolhida, então, por
mãos generosas e humildes do Esquilino; mas os amigos responderam-me
que só o dinheiro poderia movimentar, a meu favor, os aparelhos judiciários
do Império, e eu já não o possuía...
Abandonado no cárcere, impossibilitado de justificar-me, visto
haver comparecido à assembléia cristã naquela noite, preferi silenciar a
comprometer os que me haviam proporcionado consolação ao espírito
abatido... Espezinhado nos meus sentimentos mais sagrados, esperei as
decisões da justiça imperial tomado de indefinível angústia. Afinal, dois
centuriões foram notificar-me a sentença iníqua. As autoridades,
considerando a extensão do crime, cassavam-me todos os títulos e
prerrogativas do patriciado, condenando-me à morte, visto o questor
assassinado ter sido homem da confiança de César... Recebi a sentença
quase sem surpresa, embora desejasse viver para servir àquele Jesus, cujos
ensinos grandiosos haviam sido a minha luz nas sombras espessas do
cárcere, e cumprir, igualmente, os deveres paternais para com a filhinha
abandonada pela ternura materna...
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
Esperei a morte com o pensamento em prece, mas, a esse tempo,
existia em Roma um homem justo, pouco mais moço que eu, cujo pai fôra
camarada de infância do meu genitor. Esse homem conhecia o meu caráter
defeituoso, mas leal. Chamava-se Cneio Lucius e foi pessoalmente a Trajano
advogar a causa da minha liberdade. Afrontando as iras de Augusto, não
trepidou em lhe solicitar clemência para o meu caso e conseguiu que o
Imperador comutasse a pena para o banimento da Corte, com a supressão
de todas as regalias que o nome me outorgava...
Enquanto o ancião fazia uma pausa, a jovem começou a chorar
comovidamente, em face da alusão ao avô, cuja lembrança lhe enchia o
íntimo de vivas saudades.
- Uma vez livre - prosseguiu o velho de Minturnes -, aproximei-me
de antigos companheiros que comigo haviam provado do mesmo cálice com
as perseguições de ordem política e que já partilhassem da mesma fé em
Jesus-Cristo.. Banidos de Roma e humilhados, dirigimo-nos à África, onde
fundamos um pouso solitário, não longe de Alexandria, a fim de
cultivarmos o estudo dos textos sagrados e conservar, simultaneamente, os
tesouros espirituais dos apóstolos.
Deixando a Capital do Império, confiei minha única filha a um casal
amigo, cuja pobreza material não lhe deslustrava os sentimentos nobres.
Provendo o futuro da filhinha com todos os recursos ao meu alcance, parti
para o Egito cheio de novos ideais, à luz da nova crença! Nas severas
meditações e austeros exercícios espirituais a que me submeti, cheguei a
olvidar as grandes lutas e penosas amarguras do meu destino !.
O descanso da mente em Jesus aliviou-me de todos os pesares. O
único elo que ainda me prendia à Península era justamente a filha, então já
moça, e cuja afetividade desejava transportar para junto de mim, na África
longínqua... Depois de vinte anos no seio da nossa comunidade, em preces
e meditações proveitosas, solicitei do nosso diretor espiritual a necessária
permissão para recolher um familiar ao nosso retiro. Referi-me a um familiar,
pois desejava convencer minha pobre Lésia de que deveria partir em
minha companhia, em trajes masculinos, considerando o ensino de Jesus
de que existem no mundo os que se fazem eunucos por amor a Deus...
Os estatutos da comunidade não permitem mulheres junto de nós
outros, por decisão de Aufídio Prisco, ali venerado como chefe, sob o
nome de Epifânio... Não era meu propósito menosprezar as leis da nossa
ordem e sim arrebatar a filhinha ao ambiente de seduções desta época de
decadência em que as intenções mais sagradas são colhidas pelos lobos da
vaidade e da ambição, que ululam no caminho... Desejaria conservá-la, junto
de mim, no mais santo dos anonimatos, até que conseguisse modificar as
disposições de Epifânio, acerca dos regulamentos da nossa ordem,
atentas as circunstâncias especiais da minha vida!...
Obtendo a necessária permissão para vir à Península, aqui
aportei há quase dois anos, experimentando a angústia de reencontrar
minha Lésia nos derradeiros instantes de vida... Descrever-te meu
sofrimento com a separação da filha querida, depois de ausente tantos anos
e de haver acariciado tão grandes esperanças, é tarefa superior às minhas
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
forças... Acompanhei-lhe os despojos ao sepulcro, para onde mandei
transportar, pouco depois, os dos carinhosos amigos que lhe haviam
servido de pais, também vitimados pela peste, que, há tempos, flagelou toda
a população de Minturnes!...
Ai de mim, que não mereci senão angústias e tormentos, nas
estradas ásperas da existência, em vista dos meus crimes inomináveis na
juventude!...
Resta-me, contudo, a esperança no amor do Cordeiro de Deus,
cuja misericórdia veio a este mundo arrebatar-nos da humilhação e do
pecado...
Avizinhando-me do túmulo, rogo ao Senhor que me não
desampare... Além do sepulcro, sinto que esplende a luz dos seus
ensinamentos, num
Reino de paz misericordiosa e compassiva ! Certamente, lá me
esperam a filha idolatrada e os amigos inesquecíveis. A terra florescente da
Campânia, pressinto-o, guardará em breve o meu corpo combalido; mas,
além das forças exaustas da vida material, espero encontrar a verdade
consoladora da nossa sobrevivência ! Receberei de boa vontade o
julgamento mais severo, do meu passado delituoso, e, renunciando a todos
os sentimentos pessoais, hei-de aceitar plenamente os desígnios de Jesus
na sua justiça equânime e misericordiosa !.
O ancião de Minturnes falava comovido, com o olhar lúcido, fixo no
Alto, como se estivesse diante de um plenário celeste, com a serenidade da
sua fé robusta e ardente.
Mas, chegando ao termo das confidências dolorosas, observou
que Célia tinha os olhos rasos de lágrimas, a ponto de não poder falar de
pronto, tal a comoção que lhe estrangulava a voz no imo do peito dolorido.
- Porque choras minha filha - ajuntou com brandura -, se a minha
pobre história de velho não te pode interessar diretamente o coração?
A filha de Helvídio não respondeu, dominada pela emoção do
momento, mas o ancião continuava, surpreso e melancólico :
- Acaso terás também uma história amargurada quanto a minha?
Apesar da fé ardente que pressinto em teu espírito, não se justifica tamanha
sensibilidade espiritual na tua idade. Dize, filha, se tens o coração
igualmente tocado por uma úlcera dolorosa... Se as dores te pesam na
alma desiludida, recorda a palavra do Mestre, quando exortava em
Cafarnaum: - "Vinde a mim todos vós que trazeis no íntimo os tormentos do
mundo e eu vos aliviarei..." É verdade que não estás à frente do Messias de
Deus, mas, ainda aqui, deveremos lembrar a lição de Jesus, aceitando o
carinho do Cireneu que o ajudou a carregar a cruz !.
Ele, que era a personificação de toda a energia do amor, não hesitou
em aceitar o amparo de um filho humilde do infortúnio... Também eu sou um
mísero pecador, filho das provações mais ásperas e espinhosas; mas, se
puderes, lê em meu coração e verás que no meu íntimo palpita, por ti, a
afetividade de um pai. Tua presença desperta-me inexplicável e misteriosa
simpatia... Confiei ao teu espírito o que diria somente à filhinha
adorada, que me precedeu nas sombras do túmulo. Se te sentes
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sobrecarregada dos pesares do mundo, dize-me algo de tuas dores.
Repartirás comigo os teus sofrimentos e a cruz das provas te parecerá
mais leve !..
Ouvindo aquelas exortações carinhosas e espontâneas, que não
mais ouvira desde a morte do avô, cujo nome fôra ali pronunciado pelo
ancião de Minturnes, como um ponto de referência à sua confiança, Célia,
depois de acomodar o pequenino adormecido, sentou-se ao lado do seu
benfeitor, com a intimidade de quem o conhecesse de muito tempo, e, com a
voz entrecortada de reticências da sua emoção profunda, começou a falar:
- Se me tendes chamado filha, permitireis vos beije as mãos
generosas, chamando-vos pai, pelas afinidades mais santas do coração.
Acabastes de invocar um nome que me obriga a chorar de
emoção, no tumulto de recordações também amargas e dolorosas...
Confiarei em vós, qual o fiz sempre ao carinhoso avô, que relembrastes
agradecido. Também eu venho de Roma, pelos mesmos caminhos ásperos
de amargor e sacrifício. Reconhecida à vossa confiança, revelarei
igualmente o meu romance infortunoso, quando a mocidade parecia sorrirme
em plena floração primaveril.
Abandonada e só, receberei, por certo, da vossa experiência nas
estradas da vida o bom conselho que me habilite a fixar-me em qualquer
parte, a fim de cumprir a missão de mãe, junto deste pobre inocentinho!
Desde Roma, venho experimentando a mais atroz necessidade de me
comunicar com um coração afetuoso e amigo, que me possa orientar e
esclarecer. Nas minhas caminhadas encontrei por toda parte homens
impiedosos, que me envolviam com olhares de corrupção e
voluptuosidade.. Alguns chegaram a insultar minha castidade mas
roguei insistentemente a Jesus a oportunidade de encontrar um espírito
benfazejo e cristão, que me fortalecesse!.
Sentindo-se tomada por inexplicável confiança, enquanto o
velhinho de Minturnes a ouvia surpreso, embora a imensa serenidade que
lhe transparecia do olhar a filha de Helvídio Lucius começou a desfiar o seu
romance, cheio de lances intensos e comovedores. Confessando-se neta do
magnânimo Cneio, o que sensibilizou profundamente o interlocutor, narroulhe
todos os episódios da sua vida, desde as primeiras contrariedades de
menina e moça, na Palestina, e terminando a longa narrativa com a visão do
avô, na noite precedente, quando forçada a pernoitar na gruta de Tibério.
Ao concluir, tinha os olhos inchados de chorar, como alguém que
muito se demorara em alijar do coração o peso da amargura.
O ancião alisava-lhe os cabelos, comovidamente, como se o fizesse
a uma filha após longa ausência repleta de saudades angustiosas,
exclamando por fim :
- Minha filha, propondo-me confortar-te, é o teu próprio coração
de menina, nos mais belos exemplos de sacrifício e coragem, que me
consola !. Para mim, que, muitas vezes, agasalhei o mal e extraviei-me no
crime, os sofrimentos da Terra significam a justiça dos destinos humanos;
mas, para o teu espírito carinhoso e bom, as provações terrestres
constituem um heroísmo do Céu!.
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
Deus te abençoe o coração fustigado pelas tempestades do mundo,
antes das florações da primavera.
Das alegrias do Reino de Jesus, Cneio Lucius deverá regozijar-se no
Senhor pelos teus heróicos feitos... Sinto que a sua alma, enobrecida na
prática do bem e da virtude, segue-te os passos como sentinela fidelíssima
!...
Depois de longa pausa, em que Marinho pareceu meditar no futuro
da graciosa companheira, disse paternalmente:
- Enquanto narravas teus padecimentos íntimos, considerava eu a
melhor maneira de ajudar-te neste meu ocaso da vida! Compreendo a tua
situação de jovem abandonada e só, no mundo, com o pesado encargo de
cuidar de uma criancinha acolhida em tão estranhas circunstâncias.
Aconselhar que voltes ao lar, não o posso fazer, conhecendo a rigidez dos
costumes em determinadas famílias do patriciado. Além disso, a casa
paterna considera-te morta para sempre, e a palavra carinhosa de Cneio
Lucius só poderia ter valor inestimável para nós, que lhe compreendemos
o alcance e a sublime revelação. Ante os seus conceitos, temos de admitir a
plena inocência de tua mãe, mas, se regressares a Roma, a aparição
desta noite não bastaria para elucidar todos os problemas da situação,
mantendo-se as mesmas características de suspeição a teu respeito. E tu
sabes que entre a dúvida e a verdade é sempre melhor o sacrifício, pois a
verdade é de Jesus e vencerá tão logo a sua misericórdia julgue a vitória
oportuna.
Velho conhecedor dos nossos tempos de decadência e
desmantelos morais, sei que, ante a tua juventude, quase todos os homens
moços, cheios de materialidade, se curvarão com ignominiosas propostas.
A destruição do meu lar será sempre um atestado vivo das misérias morais
da nossa época.
Ponderando as tuas dificuldades, desejo salvar-te o coração de
todos os perigos, evitando-te as ciladas dos caminhos insidiosos;
entretanto, a enfermidade e a decrepitude não me possibilitam mais a tua
defesa... Em Minturnes, quase todos me odeiam gratuitamente, em virtude
das idéias que professo. Um cristão sincero, por muito tempo ainda, terá de
sofrer a incompreensão e a tortura dos algozes do mundo, e somente não
me levam ao sacrifício, nas festas regionais que aqui se efetuam, atenta
a minha velhice avançada e dolorosa, de rugas e cicatrizes... Apresentar um
velho mísero às feras potentes ou ao exercício dos atletas da devassidão e
da impiedade, poderia parecer entranhada covardia, razão pela qual me
julgo poupado.
Não possuo, pois, nenhuma relação de amizade que te possa valer
neste transe.
Lembra-te de que, ainda agora, eu te falei do meu antigo
projeto de levar a filha ao Egito, em trajes masculinos, de modo a arrebatá-la
deste antro de corrupção e impenitência. Esse gesto de um pai é bem de um
coração amoroso, em franco desespero quanto ao porvir espiritual desta
região da iniqüidade.
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
Contemplando a tua inerme juventude carregada de tão nobres
sacrifícios, receio pelos teus dias futuros mas rogo a Jesus que nos
esclareça o pensamento.
Após alguns minutos de recolhimento, a jovem retrucou:
- Mas, meu desvelado amigo, não me considerais como vossa
própria filha?.
O ancião de Minturnes, no clarão sereno dos grandes olhos, deixou
transparecer que entendera a alusão e revidou bondosamente:
- Compreendo; filha, o alcance de tuas palavras, mas, estarás
sinceramente decidida a mais esse nobre sacrifício ?
- Como não, se em torno de mim surgem as mais temerosas
perseguições?
- Sim, tuas ações nobilíssimas dão-me a entender que devo confiar
nas tuas resoluções. Pois bem; se teu espírito se sente disposto à luta pelo
Evangelho, não vacilemos em preparar-te as estradas porvindouras! Ficarás
nesta casa pelo tempo que desejares, se bem esteja convicto de que não
tardará muito a minha viagem para o Além. Amanhã mesmo entrarás nos
teus novos trajes, a fim de facilitar a tua ida para a África, no momento
oportuno. Serás "meu filho" aos olhos do mundo, para todos os efeitos.
Chamarei amanhã a esta casa o pretor de Minturnes, a fim de que ele cuide
da tua situação legal, caso eu venha a falecer. Tenho o dinheiro
necessário para que te transportes a Alexandria e, antes de morrer, deixarte-
ei uma carta apresentando-te a Epifânio, como meu sucessor legítimo na
sede da nossa comunidade. Lá, tendo empregadas todas as derradeiras
economias que consegui retirar de Roma nos tempos idos, é possível que
não te criem embaraços para que te entregues a uma vida de repouso
espiritual na prece e na meditação, durante os anos que quiseres.
Epifânio é um espírito enérgico e algo dogmático em suas
concepções religiosas, mas tem sido meu amigo e meu irmão por largos
anos, durante os quais as mesmas aspirações nos uniram nesta vida. As
vezes, costuma ser ríspido nas suas decisões, caracterizando tendências
para o sacerdócio organizado, que o Cristianismo deve evitar com todas as
suas forças, para não prejudicar o messianismo dos apóstolos do Senhor;
mas, se algum dia fores ferida por suas austeras resoluções de chefe,
lembra-te de que a humildade é o melhor tesouro da alma, como chavemestra
de todas as virtudes e recorda a suprema lição de Jesus nos braços
do madeiro!.. Em todas as situações, a humildade pode entrar como
elemento básico de solução para todos os problemas!...
- Sim, meu amigo, sinto-me abandonada e só no mundo e temo o
assédio dos homens pervertidos. Jesus me perdoará a decisão de adotar
outros trajes aos olhos dos nossos irmãos da Terra, mas, na sua bondade
infinita, sabe ele das necessidades prementes que me compelem a tomar
essa insólita atitude. Além do mais, prometo, em nome de Deus, honrar a
túnica que vestirei, possivelmente, em Alexandria, a serviço do
Evangelho... Levarei comigo o filhinho que o Céu me concedeu, e suplicarei
a Epifânio me permita velar por ele sob o céu africano, com as bênçãos de
Jesus !
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
Que o Mestre te abençoe os bons propósitos, filha.... - respondeu
o ancião com uma expressão de júbilo sereno.
Ambos se sentiam dominados por intensa alegria íntima, como se
fossem duas almas profundamente irmanadas de outros tempos, num
reencontro feliz, depois de prolongada ausência.
Já os galos de Minturnes saudavam os primeiros clarões da
madrugada. Beijando as mãos do velho benfeitor, com os olhos rasos de
lágrimas, a jovem patrícia buscou, desta vez, o repouso noturno com a alma
satisfeita, sem as angustiosas preocupações do dia seguinte agradecendo
a Jesus com a oração do seu amor e do seu reconhecimento.
No outro dia, a gente pobre daquele arrabalde de Minturnes ficou
sabendo que um filho do ancião chegara de Roma para assistir-lhe os dias
derradeiros.
Aproveitando os trajes antigos, que o seu benfeitor lhe
apresentava para resolver a situação, Célia não hesitou em tomar o novo
indumento, por fugir à perseguição irreverente de quantos poderiam
abusar da sua fragilidade feminina.
O velho Marinho apresentava-a aos raros vizinhos que se
interessavam pela sua saúde, como sendo um filho muito caro, e explicando
que ele enviuvara recentemente, trazendo o netinho para iluminar as
sombras da sua desolada velhice.
A filha dos patrícios, travestida agora pela força das
circunstâncias num garboso rapaz imberbe, ocupava-se carinhosamente
de todos os serviços domésticos, buscando servir ao ancião generoso com
a mais desvelada solicitude.
Um fato, porém, veio impressionar amargamente o coração
sensível de Célia. Fôsse pelo trato deficiente que recebera até ali, ou pelas
privações suportadas em tantas milhas de caminho, o pequenito começou a
definhar, apresentando em breve todos os sintomas de morte inevitável.
Debalde o ancião empregou todos os recursos ao seu alcance, para
assegurar a vida bruxuleante do inocentinho.
Tocada nas fibras mais sensíveis do seu coração, em virtude
das revelações do avô, quanto à personalidade de Ciro, a jovem sentiu no
íntimo dorido a repercussão dilatada de todos os padecimentos físicos do
pequenino. Desejava amparar-lhe a existência com todas as energias do seu
espírito dilacerado, operar um milagre com todas as suas forças afetuosas
para arrebatá-lo às garras da morte, mas em vão misturou lágrimas e
preces nos seus arrebatamentos emotivos.
Contemplando-lhe a agonia, a criança parecia falar-lhe à alma
carinhosa e sensível, com o olhar cintilante e profundo, no qual
predominavam as expressões de uma dor estranha e indefinível.
Por fim, após uma noite de insônia dolorosa, Célia rogou a Jesus
fizesse cessar, na sua misericórdia, aquele quadro de intensa amargura.
Cheia de fé, rogava ao Cordeiro de Deus que reconduzisse o seu bem-amado
ao plano espiritual, se esses eram os seus desígnios inescrutáveis. Ela, que
tanto o amava e tanto se havia sacrificado para conservar-lhe a luz da vida,
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
estaria conformada com as decisões do Alto, como no dia em que o vira
marchar para o sacrifício, exposto à perversidade dos homens impiedosos.
Como se fôra ouvida a sua rogativa dolorosa, cheia de lágrimas de
fé e esperança na bondade do Senhor, o inocentinho fechou os olhos da
carne, para sempre, ao desabrochar da alvorada, como se o seu coração
fosse uma andorinha celeste que, receosa das invernias do mundo,
remontasse célere ao Paraíso.
Sobre o corpinho enrijecido, a filha de Helvídio carpiu a sua dor
intraduzível, com lágrimas ardentes, experimentando a amargura das
suas esperanças desfeitas e dos seus sonhos maternos desmoronados...
Todavia, a palavra sábia e evangélica do ancião de Minturnes ali
estava para reerguê-la de todos os abatimentos e, depois da hora
angustiada da separação, ela buscou entronizar a saudade no santuário de
suas preces humildes e fervorosas.
Sim, seu coração carinhoso sabia que Jesus não desampara,
nunca, o espírito das ovelhas tresmalhadas nos abismos do mundo e,
refugiando-se na oração, esperou que viessem do Alto todos os recursos
espirituais necessários ao seu reconforto. Os vizinhos humildes
impressionavam-se, sobremaneira, com aquele rapaz, de cujo semblante
delicado irradiava-se uma terna simpatia, de mistura à tristeza inalterável,
que tocava a sua personalidade de singulares encantos..
Uma noite serena, quando a alma cariciosa da Natureza se havia
plenamente aquietado, Célia recolheu-se depois do serão habitual com o
generoso velhinho, que lhe era como um pai devotado pelo coração,
sentindo que força estranha lhe adormentava o cérebro exausto e dolorido.
Dentro em pouco, sem se dar conta da surpresa e do
aturdimento, viu-se diante de Ciro, que lhe estendia as mãos carinhosas,
com um olhar de súplica e reconhecimento intraduzível.
- Célia - começou por dizer suavemente, enquanto ela se
concentrava em doce emoção para ouvi-lo -, não renegues o cálice das
provações redentoras, quando as mais puras verdades nos felicitam o
coração !. Depois de algum tempo na tua companhia, eis-me de novo
aqui, onde devo haurir forças novas para recomeçar a luta !.. Não
entristeças com as circunstâncias penosas da nossa separação pelas
sendas escuras do destino. És minha âncora de redenção, através de todos
os caminhos! Jesus na infinita extensão de sua misericórdia, permitiu que a
tua alma, qual estrela do meu espírito, descesse das amplidões sublimes
e radiosas para clarificar meus passos no mundo. Luz da abnegação e do
martírio moral, que salva e regenera para sempre!...
Se as mãos sábias e justas de Deus me fizeram regressar aos
planos invisíveis, regozijemo-nos no Senhor, pois todos os sofrimentos são
premissas de uma ventura excelsa e imortal ! Não te entregues ao desalento,
porque, antigamente, Célia, meu espírito se tingiu de luto quase perene, no
fausto de um tirano ! Enquanto brilhavas no Alto como um astro de amor
para o meu coração cruel, decretava eu a miséria e o assassínio! Abusando
da autoridade e do poder, da cultura e da confiança alheias, não trepidei em
destruir esperanças cariciosas, espalhando o crime, a ruína e a desolação
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
em lares indefesos! Fui quase um réprobo, se não contasse com o teu
espírito de renúncia e dedicação ilimitadas ! Ao passo que eu descia,
degrau a degrau, a escada abominável do crime, no pretérito longínquo e
doloroso, teu coração amoroso e leal rogava ao Senhor do Universo a
possibilidade do sacrifício!...
E, sem medir as trevas agressivas e pavorosas que me cercavam,
desceste ao cárcere de minhas impenitências !... Espalhaste em torno da
minha miséria o aroma sublime da renúncia santificante e eu acordei para os
caminhos da regeneração e da piedade ! Tomaste-me das mãos, como se o
fizesses a uma criança desventurada, e ensinaste-me a erguê-las para o
Alto, implorando a proteção e misericórdia divinas! Já de alguns séculos teu
espírito me acompanha com as dedicações santificadas e supremas ! É que
as almas gêmeas preferem chegar juntas às regiões sublimes da Paz e da
Sabedoria, e, dentro do teu amor desvelado e compassivo, não hesitaste
em me estender as mãos dedicadas e generosas, como estrela que
renunciasse às belezas do céu para salvar um verme atolado num pântano,
em noite de trevas perenes.
E acordei, Célia, para as belezas do amor e da luz e, não contente
ainda, por me despertares, me vens auxiliando a resgatar todos os débitos
onerosos..
Teu espírito, carinhoso e impoluto, não vacilou em sustentar-me,
através das estradas pedregosas e tristes que eu havia traçado com a
minha ambição terrível e desvairada! Tens sido o ponto de referência para
minha alma em todos os seus esforços de paz e regeneração, na reconquista
das glórias espirituais. Ao teu influxo pude testemunhar minha fé, no circo
do martírio, selando, pela primeira vez, minha convicção em prol da
fraternidade e do amor universal! Por ti, desterro de mim o egoísmo e o
orgulho, sustentando todas as batalhas íntimas, na certeza da vitória!
Voltando ao mundo, fui novamente arrebatado dos teus braços
materiais, em obediência às provas ríspidas que ainda terei que sustentar
por largo tempo! Jesus, porém, que nos abençoa do seu trono de luz e
misericórdia, de perdão e bondade infinita, permitirá que eu esteja
contigo nos teus testemunhos de fé e humildade, destinados à exaltação
espiritual de todos os seres bem-amados que gravitam na órbita dos nossos
destinos! E se Deus abençoar minhas esperanças e minhas preces sinceras,
voltarei de novo para junto do teu coração, nas lutas ásperas.... Espera e
confia sempre!.
Na sua magnanimidade indefinível, permite o Senhor possamos voltar
dos caminhos almos do túmulo, para consolar os corações ligados ao nosso
e ainda retidos nos tormentos da carne... Somente lá, nas moradas do
Senhor, onde a ventura e a concórdia se confundem, poderemos
repousar no amor grande e santo, marchando de mãos dadas para os
triunfos supremos, sem as inquietações e provas rudes do mundo!.
Por muito tempo a voz cariciosa de Ciro falou-lhe ao coração,
propiciando-lhe ao espírito sensível as mais santas consolações e as mais
doces esperanças ! No auge do seu deslumbramento espiritual, a jovem
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
cristã experimentou as mais comovedoras alegrias, desejando que aquele
minuto glorioso se prolongasse ao infinito...
Quando a palavra do bem-amado parecia finalizar com um brando
estacato, em vibrações silenciosas e profundas, Célia rogou-lhe que a
acompanhasse em todos os seus lances terrestres, implorando-lhe
assistência e proteção em todas as circunstâncias da vida; confiou-lhe
seus pesares mais secretos e angustiosas expectativas, quanto à nova
situação, mas Ciro parecia sorrir-lhe bondosamente, prometendo-lhe carinho
incessante, através de todos os percalços e reafirmando a sua confiança no
amparo do Senhor, que não haveria de abandoná-los...
No dia seguinte, ei-la reanimada, deixando transparecer no
semblante a serenidade íntima do seu espírito.
O velhinho notou, com alegria, aquela mudança e, como se
estivesse em preparativos constantes para a jornada do túmulo, não
perdeu o ensejo para esclarecer a jovem sobre os problemas que a
esperavam na vida solitária de Alexandria. Com solicitude extrema, davalhe
notícia de todos os pormenores da vida nova a encetar, fornecendo-lhe
o nome de antigos companheiros de fé e dando conta de todos os
costumes da comunidade.
Célia em trajes masculinos, ouvia-lhe a palavra carinhosa e
benevolente, com o desejo íntimo de prolongar indefinidamente aquela
vida bruxuleante, de modo a nunca mais separar-se daquele coração
bondoso e amigo; mas, ao revés de suas mais caras esperanças, o estado
do ancião agravou-se repentinamente. Todos os esforços foram baldados
para lhe restituir o "hônus vital" do plano físico e, assistido pela jovem, que
tudo fazia por vê-lo restabelecido, o velho Marinho recebeu a visita do pretor
da cidade, que, cedendo a instantes pedidos, vinha receber-lhe as
derradeiras recomendações.
Apresentando a jovem como filho, o moribundo ordenou que lhe
fossem entregues todas as suas parcas economias, antecipando que ele
deveria partir para a África, tão logo se verificasse o seu óbito.
- Marinho - interpelou a autoridade, depois das necessárias
anotações -, será possível que este jovem participe das tuas superstições?
O generoso velhinho compreendeu o alcance da pergunta e
respondeu com desassombro:
- De mim e por mim, não precisaremos cogitar das convicções
religiosas, aqui de todos conhecidas, desde que entrei nesta casa! Sou
cristão e saberei morrer, íntegro, na minha fé !. Quanto a meu filho, que
deverá partir para Alexandria, a fim de amparar nossos interesses
particulares, tem o espírito livre para escolher a idéia religiosa que mais lhe
aprouver.
O pretor olhou com simpatia para o jovem triste e abatido, e
exclamou :
- Ainda bem !.
Despedindo-se do moribundo, cujos instantes de vida pareciam
prestes a extinguir-se, a autoridade deixava-os ambos com a precisa
liberdade para trocarem as derradeiras impressões.
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
Marinho fez ver, então, à sua pupila, que aquela resposta hábil
destinava-se a fazer que o pretor de Minturnes lhe cumprisse a vontade,
sem relutância, dentro dos dispositivos legais, recomendando-lhe todas as
providências que a sua morte exigiria da sua inexperiência. Célia ouvia-lhe
as exortações roucas e entrecortadas, extremamente acabrunhada mas,
como em todas as penosas circunstâncias da sua vida, confiava em Jesus.
Após uma agonia excruciante de longas horas, em que a filha de
Helvídio viveu momentos de indescritível emoção, o generoso Marinho
abandonava o mundo, depois de longa existência, povoada de pesadelos
terríveis e dolorosos. Seus olhos se fecharam para sempre, com uma
lágrima, ao tombar do dia. Piedosamente, diante de alguns raros
assistentes, Célia fechou-lhe as pálpebras, num gesto carinhoso, e,
ajoelhando-se, como se quisesse transformar as brisas da tarde em
mensageiras dos seus apelos ao Céu, deixou que o coração se diluísse em
lágrimas de saudade, suplicando a Jesus recebesse o benfeitor no seu reino
de maravilhas, concedendo-lhe um recanto de paz, onde a alma exausta
lograsse esquecer as tormentas dolorosas da existência material.
Dada a sua qualidade de cristão confesso, o velho de Minturnes
teve uma sepultura mais que singela, que a filha do patrício encheu com as
flores do seu afeto e mergulhando na sombra de uma soledade quase
absoluta.
Dentro de poucos dias, o pretor entregou-lhe a pequena soma, que
Marinho lhe deixava, um pouco mais que o suficiente para a viagem em
demanda da África distante. E, numa radiosa manhã de primavera,
carregando no íntimo a sua serenidade triste e inalterável, a moça cristã,
depois de uma prece longa e angustiosa sobre os túmulos humildes do
pequenino e do ancião, na qual lhes rogava proteção e assistência, tomou o
lugar que lhe competia numa galera napolitana que periodicamente recebia
passageiros para o Oriente.
Sua figura triste, metida em roupas masculinas, atraía a atenção de
quantos lhe faziam companhia eventual no grande cruzeiro pelo
Mediterrâneo, mas, profundamente desencantada do mundo, a jovem se
mantinha em silêncio quase absoluto.
O desembarque em Alexandria verificou-se sem incidentes dignos
de menção. Todavia, seguindo as recomendações do benfeitor, junto dos
seus conhecidos da cidade, viera a saber que o monastério demorava a
algumas milhas de distância, pelo que houve de tomar um guia até o local do
seu recolhimento.
O mosteiro, isolado, distava da cidade dez léguas mais ou menos,
em marcha de quase um dia apesar dos bons cavalos atrelados ao veículo.
A filha de Helvídio defrontou o grande e silencioso edifício na hora
crepuscular, empolgada pela visão do casario amplo, entre a vegetação
agreste. Sentiu, porém, um singular descanso mental naquela soledade
imponente que parecia acolher todos os corações desolados.
Puxando o cordel que ligava o portão de entrada, ouviu, ao longe,
os sons de pesada sineta, cujo ruído estranho parecia despertar um gigante
adormecido.
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
Daí a instantes, os velhos gonzos rangiam pesadamente, deixando
entrever um homem trajado com uma túnica cinzento-escura, semblante
grave e triste, que interpelava a jovem transformada num rapaz de fisionomia
tristonha, nestes termos :
- Irmão, que desejais do nosso retiro de meditação e oração?
- Venho de Minturnes e trago uma carta de meu pai, destinada ao Sr.
Aufídio Prisco.
- Aufídio Prisco ? - perguntou o porteiro admirado.
- Não é ele, aqui, o vosso superior?
- Referi-vos ao pai Epifânio?
- Isso mesmo.
- Escutai-me - ponderou o irmão porteiro complacente -, sois,
porventura, o filho de Marinho, o companheiro que daqui partiu há cerca de
dois anos, a fim de vos trazer ao nosso recolhimento ?
- É verdade. Meu pai chegou, há muito tempo, aos portos da Itália,
onde nos encontramos, todavia, sempre doente, não logrou a ventura de
acompanhar-me à soledade das vossas orações.
- Morreu? - revidou o interlocutor extremamente admirado.
- Sim, entregou a alma ao Senhor, há muitos dias.
- Que Deus o tenha em sua santa guarda!
Dito isso, pôs-se a meditar um instante, como se tivesse o
pensamento mergulhado em preces fervorosas.
Em seguida, contemplou com muita ternura o jovem humilde e
triste, exclamando significativamente :
- Agora que já sei donde vindes e quem sois, eu vos saúdo em
nome de Nosso Senhor Jesus-Cristo !
- Que o Mestre seja louvado – respondeu a filha de Helvídio
Lucius, com os seus modos singelos.
- Não haveis de reparar vos tenha recebido com prudência, à
primeira vista... Atravessamos uma fase de intensas e amarguradas
perseguições, e os servos do Senhor, no estudo do Evangelho, devem ser
os primeiros a observar se os lobos chegam ao redil com vestes de cordeiro.
- Compreendo...
- Não desejo aborrecer-vos com indagações descabidas, mas,
pretendeis adotar a vida monástica?
- Sim - respondeu a jovem timidamente -, e, assim procedendo, não
só obedeço a uma vocação inata, como satisfaço a uma das maiores
aspirações paternas.
- Estais informado das exigências desta casa?
- Sim, meu pai mas revelou antes de morrer.
O irmão porteiro deitou o olhar para todos os lados e,
observando que se encontravam a sós, exclamou em voz discreta:
- Se trazeis a esta casa uma vocação pura e sincera, acredito que
não tereis dificuldade em observar as nossas disciplinas mais rígidas;
contudo, devo esclarecer-vos que pai Epifânio, como diretor desta
instituição, é o espírito mais ríspido e arbitrário que já conheci na minha
vida. Este retiro de oração é o fruto de uma experiência que ele começou
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
com o vosso digno pai, há mais de vinte anos. A princípio, tudo ia bem,
mas, nos últimos anos, o velho Aufídio Prisco vem abusando largamente da
sua autoridade, máxime depois da partida do Irmão Marinho para a Itália. Daí
para cá, pai Epifânio tornou-se despótico e quase cruel. Aos poucos vai
transformando este pouso do Senhor em caserna de disciplina militar, onde
ele recebeu a educação dos primeiros anos.
A neta de Cneio Lucius ouvia-o profundamente admirada.
Pela amostra da portaria, seu espírito observador compreendeu,
de pronto, que o retiro dos filhos da oração estava igualmente repleto
das intrigas mais penosas.
Todavia, enquanto coordenava as suas considerações íntimas, o
Irmão Filipe continuava:
- Imaginai que o nosso superior vem transformando a ordem de
todos os ensinamentos, criando as mais incríveis extravagâncias religiosas.
Em contraposição aos ensinamentos do Evangelho, obriga-nos a chamar-lhe
"pai" ou "mestre", nomes que o próprio Jesus se negou a aceitar na sua
missão divina. Além de inventar toda a sorte de trabalhos para os quarenta
e dois homens desencantados do mundo que estacionam aqui, vem
aplicando as lições de Jesus à sua maneira. Se bem nada possamos revelar
lá fora, a bem do caráter cristão da nossa comunidade, é lastimável
observar que todo o recinto está cheio de símbolos que nos recordam as
festividades materiais dos deuses cruéis. E nada poderemos dizer em tom
de crítica ou de censura, porquanto o pai Epifânio manda em nós como um
rei.
A jovem ainda não conseguira manifestar a sua opinião, dada a
fluência com que o porteiro discorria, quando lhes chegou o ruído de uns
passos fortes que se aproximavam, Filipe calava-se, como quem já estivesse
habituado a cenas como aquelas, e, modificando a expressão fisionômica,
exclamou com voz abafada :
-É ele!...
Célia, metida nos seus trajes estranhos e pobres, não conseguiu
dissimular o espanto.
No limiar de uma porta ampla, surgia a figura de um velho
septuagenário, cujos caracteres fisionômicos apresentavam a mais profunda
expressão de convencionalismo e orgulhosa severidade. Vestia-se como um
sacerdote romano nos grandes dias dos templos politeístas e, apoiado a
uma bengala expressiva, passeava por toda parte o olhar fulgurante, como
a procurar motivos de irritação e desagrado.
- Filipe ! - exclamou ele em tom intempestivo.
- Mestre - exclamou o irmão da portaria, com a mais fingida
humildade -, apresento-vos o filho de Marinho, que o seu coração de pai não
pôde acompanhar até aqui, dada a surpresa da morte, em Minturnes.
Ouvindo aquele esclarecimento inesperado, Epifânio caminhou
para o jovem que lhe era inteiramente desconhecido, pronunciando quase
secamente a saudação evangélica, como se fôra um leão utilizando a
legenda de um cordeiro :
- Paz em nome do Senhor!
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
Célia respondeu, conforme o seu venerando amigo lhe havia
ensinado antes da morte, entregando ao superior da comunidade a carta
paternal.
Depois de passar rapidamente os olhos pelo pergaminho,
Epifânio acentuou com austeridade :
- Marinho deve ter morrido com todo o seu idealismo de cigarra.
E como se houvera pronunciado aquele conceito tão somente
para si mesmo, acrescentou com a sua expressão severa, dirigindo-se à
jovem:
- Desejas, de fato, permanecer aqui?
- Sim, meu pai - respondeu o suposto rapaz, entre tímido e
respeitoso. - Continuar as tradições de meu pai foi sempre o meu desejo,
desde a infância.
Aquele tom humilde agradou a Epifânio, que lhe falou menos
agressivo:
- Sabes, porém, que a nossa organização é constituída de cristãos
convertidos, que possam cooperar em nossos esforços não somente com o
valor espiritual, mas também com os recursos financeiros imprescindíveis
às nossas realizações ? Teu pai não te deixou pecúlio algum, após haver
baixado ao sepulcro em Minturnes?
- Minha herança cifrou-se, apenas, ao capital indispensável à
viagem até Alexandria. Entretanto - acentuou inocentemente -, meu pai
revelou-me, há tempos, que a sua pequena fortuna foi empregada aqui,
asseverando-me que a administração da casa saberia acolher-me,
recordando os seus serviços.
- Ora - revidou Epifânio, evidenciando contrariedade -, fortuna por
fortuna, todos os que descansam neste retiro tiveram-na no mundo,
trazendo os seus melhores valores para esta casa.
- Mas meu pai - implorou Célia com sincera humildade -, se existem
aqui os que descansam, devem existir igualmente os que trabalham. Se não
tenho dinheiro, tenho forças para servir a instituição nalguma coisa. Não me
negueis a realização de um ideal tanto tempo acariciado.
O superior parecia comovido, revidando com ênfase:
- Está bem. Farei por ti quanto estiver ao meu alcance.
E mandando Filipe ao interior, em busca de um grande livro de
apontamentos, iniciou minucioso interrogatório:
- Seu nome?
- O mesmo de meu pai.
- Onde nasceu?
- Em Roma.
- Onde recebeu o batismo?
- Em Minturnes.
E após as detalhadas inquirições, Epifânio falou-lhe ríspido,
investido na sua austera superioridade :
- Atendendo à tua vocação e à memória de um velho companheiro,
ficarás conosco, laborando nos serviços da casa. Quero, contudo,
esclarecer-te que, aqui dentro, faço cumprir rigorosamente o Evangelho do
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
Senhor, de acordo com a minha vontade, inspirada do Alto. Depois de
muitos anos de experiência, reconheci que o pensamento evangélico terá de
organizar-se segundo as leis humanas, ou não poderá sobreviver para a
mentalidade do futuro. Os cristãos de Roma, como os da Palestina,
padecem de uma hipertrofia de liberdade que os leva, instintivamente, à
disseminação de todos os absurdos. Aqui, todavia, a disciplina cristã haverá
de caracterizar-se pela abdicação total da própria vontade.
A jovem escutou-o serenamente, guardando no íntimo as suas
impressões particulares, de quanto lhe era dado observar, enquanto Epifânio
a encaminhava ao interior, apresentando-a aos demais companheiros.
Transformada no Irmão Marinho, Célia passou a viver a sua vida
nova, singular e desconhecida.
O mosteiro vasto onde se reuniam mais de quatro dezenas de
cristãos ricos, desiludidos dos prazeres do mundo, era bem um dos
pontos de partida do segundo século para o Catolicismo e para o
sacerdócio organizado sobre bases econômicas, eliminativas de todas as
florações do messianismo.
Reparou que ali não mais havia a simplicidade das catacumbas. A
simbologia pagã parecia invadir todos os departamentos da casa. Aqueles
romanos convertidos não dispensavam as fórmulas de oração aos seus
antigos deuses. Por toda parte pendiam cruzes grandes e pequenas,
talhadas em mármores ou madeira, esculturadas em moldes diversos. Havia
salas de preces em que repousavam imagens do Cristo, de marfim e de cera
prateada, dormindo inertes entre verdadeiros tufos de rosas e violetas. O
culto exterior do politeísmo parecia redivivo, indestrutível e inelutável. Para a
sua manutenção, notava ela a mesma intriga dos padres flamíneos, de
Roma, figurando-se-lhe que o Evangelho, ali, constituía mero pretexto para
galvanizar as crenças mortas.
O espírito formalista de Epifânio buscara dotar o estabelecimento
de todas as convenções imprescindíveis.
Um sino anunciava a mudança das meditações, a hora do trabalho,
das preces, das refeições, e o tempo destinado ao repouso do espírito.
O sentido de espontaneidade da lição do Senhor no Tiberíades, por
conciliar a possibilidade e a necessidade dos crentes, havia desaparecido.
A convenção implacável de Epifânio regulamentava todos os serviços.
O mais interessante é que, naqueles monastérios remotos da África
e da Ásia, onde se acolhiam os cristãos receosos das perseguições
inflexíveis da Metrópole, já existiam as famosas horas do Capítulo, isto é, a
reunião íntima de todos os membros da comunidade, para repasto das
intrigas e dos pontos de vista individuais.
Célia estranhou que, dentro de um instituto cristão por excelência,
pudessem vigorar aberrações como essa que vinha diretamente dos
colégios romanos, onde pontificavam sacerdotes flamíneos ou vestais; mas
era obrigada a aceitar as ordens superiores, sem deixar transparecer o seu
desencanto. Condenando, embora, tais manifestações nocivas do culto
exterior, a filha de Helvídio em breve conquistaria a admiração e confiança
de todos, pela retidão do proceder, a evidenciar os mais elevados atos de
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
humildade e compreensão do Evangelho. De trato ameníssimo, com o
amavio das suas palavras carinhosas e amigas, o Irmão Marinho
transformava-se no ímã de todas as atenções, edificando as afeições mais
puras naquele convívio singular.
Contudo, alguém havia ali que guardava o mais venenoso
despeito em face da sua vida pura. Esse alguém era Epifânio, cujo espírito
despótico e original, se habituara a mandar em todos os corações, com
brutalidade e aspereza. A circunstância de nada encontrar no filho do antigo
companheiro, que merecesse censura, irritava-lhe o espírito tirânico. Nas
horas do Capítulo, observava que as opiniões do Irmão Marinho triunfavam
sempre, pela sublime compreensão de fraternidade e de amor, de que
davam pleno testemunho. A jovem, porém, não obstante estranhar-lhe as
atitudes, não podia definir os gestos rudes do superior, dentro da sua
candidez espiritual.
Certo dia, na hora consagrada às intrigas e devassas, que
antecederam, no Catolicismo, o instituto da confissão auricular, cheio de
austeridade e artificialismo, Epifânio fez longa preleção sobre as tentações
do mundo, dizendo dos seus caminhos abomináveis e das trevas que
inundavam o coração de todos os pecadores, envolvendo todas as coisas da
vida na sua condenação e na sua fúria religiosa.
Terminada a palestra fanática, solicitou, ao modo das primeiras
assembléias cristãs, que todos os irmãos se pronunciassem sobre a
preleção, mas, enquanto todos aprovavam os conceitos, irrestritamente,
Célia, na sua inocente sinceridade, replicou :
- Mestre Epifânio, vossa palavra é extremamente respeitável para
quantos laboram nesta casa, mas, peço licença para ponderar que Jesus
não deseja a morte do pecador... Suponho justo que nos refugiemos neste
retiro, até que passe a onda sanguinária das perseguições aos adeptos do
Cordeiro ; todavia, amainada a tempestade, acho imprescindível que
regressemos ao mundo, mergulhando-nos em suas lutas dolorosas,
porque, sem esses campos de sofrimento e trabalho, não poderemos dar o
testemunho da nossa fé e da nossa compreensão do amor de Jesus.
O diretor espiritual lançou-lhe um olhar sombrio, enquanto toda a
assembléia parecia satisfeita com a oportunidade daquele esclarecimento.
- No próximo Capítulo prosseguiremos, então, com os mesmos
estudos - disse Epifânio em tom quase rude visivelmente contrariado com o
argumento irretorquível, apresentado contra a sua inovação despótica, em
detrimento dos ensinamentos evangélicos.
No dia seguinte, o Irmão Marinho foi chamado ao gabinete do
superior, que lhe dirigiu a palavra nestes termos :
- Marinho, nosso Irmão Dioclécio, provedor desta casa há mais
de dez anos, encontra-se alquebrado, doente, e eu preciso confiar esse
encargo a alguém, cuja noção de responsabilidade me dispense de
sindicâncias e cuidados especiais. Dessarte, de amanhã em diante, ficarás
com o encargo de ir ao mercado mais próximo, duas vezes por semana, de
modo a cuidares convenientemente das pequenas provisões do mosteiro.
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
A jovem acolheu a recomendação, agradecendo a confiança a ela
deferida e, com semelhante providência, a palavra de Epifânio, nos dias do
Capítulo, já não seria perturbada pelas suas observações simples e
portadoras dos melhores esclarecimentos evangélicos.
O mercado distava três léguas do convento, porquanto estava
situado numa grande povoação na estrada de Alexandria. Desse modo,
em sua caminhada a pé, sobraçando dois cestos enormes, a filha de
Helvídio era obrigada a pernoitar na única estalagem ali existente, visto ter
de esperar a parte da manhã seguinte, quando o mercado exibia os seus
produtos.
Aquelas jornadas semanais cansavam-na sobremaneira, a
princípio; mas, pouco a pouco, foi-se habituando ao novo imperativo de
suas obrigações. Aproveitando a solidão dos caminhos para os melhores
exercícios espirituais, não só relia velhos pergaminhos que continham os
princípios do Evangelho e as narrativas dos Apóstolos, como exercitava as
mais sadias meditações, nas quais deixava o coração evolar-se em preces
cariciosas ao Senhor.
No mosteiro todos os irmãos respeitavam-na. Por seus atos e
palavras, ela centralizava os afetos gerais, que lhe cercavam o espírito de
consideração e de amor desvelado...
Três anos passaram, sem que um só dia desse prova de desânimo
ou de revolta, de indecisão ou de amargura, consolidando cada vez mais as
suas tradições de virtude irrepreensível.
Na povoação mais próxima, igualmente, onde os serviços do
mercado a convocavam ao cumprimento do dever, todos lhe apreciavam os
generosos dotes dalma, mormente na hospedaria em que pernoitava duas
vezes por semana.
Acontece, porém, que Menênio Túlio, o hospedeiro, tinha uma filha
de nome Brunehilda, que reparara os belos traços fisionômicos do Irmão
Marinho, tomada de singulares impressões. Embalde se ataviava para lhe
provocar a atenção sempre voltada para os assuntos espirituais, irritandose,
intimamente, com a sua afetuosa indiferença, sempre cordial e fraterna.
Longos meses transcorreram, sem que Brunehilda pudesse
desvendar o mistério daquela alma esquiva, cheia de beleza e delicada
masculinidade, aos seus olhos, enquanto o Irmão Marinho, dentro de suas
elevadas disposições espirituais, nunca chegou a perceber a bastardia dos
pensamentos e intenções da jovem, que, tantas vezes, o cumulava de
gentilezas cariciosas.
Foi então que Brunehilda, desenganada nos seus propósitos
inconfessáveis, passou a relacionar-se com um soldado romano, amigo de
seu pai e da família, recém-chegado da Capital do Império e cheio de
ousadias e atitudes insinuantes.
Em breve, a filha do estalajadeiro inclinava-se para o desfiladeiro
da perdição, ao passo que o sedutor da sua alma inquieta e versátil se
ausentava propositadamente, regressando a Roma, depois de obter o
consentimento dos superiores.
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
Abandonada à sua prova aspérrima, Brunehilda procurou disfarçar
os seus angustiosos pensamentos íntimos. Com a alma tomada de
inquietações em face da severidade dos princípios familiares, desejava
morrer de modo a eliminar todos os resquícios da falta e desaparecendo
para sempre. Faltava-lhe, porém, o ânimo para realizar tão odioso crime.
Dia chegou, contudo, em que não mais pôde ocultar, aos olhos
paternos, a realidade.
Recolhendo-se ao leito na véspera de receber o fruto dos seus
amores, foi obrigada a cientificar Menênio de quanto ocorria. Tomado de dor
selvagem, o coração paterno obrigou a filha a confessar-se plenamente, a
fim de poder vingar-se. Brunehilda, contudo, no instante de revelar o nome
de quem a infelicitara, sentiu o pavor da situação, dizendo
caluniosamente:
- Meu pai, perdoai-me a falta que vos desonra o nome, respeitável e
impoluto, mas quem me levou a transigir tão penosamente com os sagrados
princípios familiares, que nos ensinastes, foi o Irmão Marinho com a sua
delicadeza capciosa..
Menênio Túlio sentiu o coração abrir-se em chaga viva. Nunca
poderia imaginar semelhante coisa. O Irmão Marinho consolidara no seu
conceito as mais confortadoras esperanças, e ele confiava na sua conduta
como confiaria no melhor dos amigos.
Mas, ante a evidência dos fatos, exclamou em voz ríspida:
- Pois bem, minha casa não ficará com essa mancha indelével. Tua
prevaricação não desonrará o nome de minha família, porque ninguém
saberá que acedeste aos propósitos criminosos do infame! Eu mesmo
levarei a criança a Epifânio, a fim de que os seus sequazes considerem a
enormidade desse crime ! Se tanto for necessário, não desdenharei
empunhar a espada em defesa do círculo sagrado da família, mas preferirei
humilhá-los, devolvendo ao sedutor o fruto da sua covardia!..
Com efeito, dissimulando a dor imensa do seu coração e do seu lar,
Menênio Túlio, no dia seguinte, ao alvorecer, marchou para o mosteiro
levando consigo um pequeno cesto, de que um mísero pequenino era o
singular conteúdo.
Chamado à portaria pelo Irmão Filipe, quando o Sol ia alto, a fim de
atender à insistência do visitante o superior da comunidade ouviu os
impropérios de Menênio, com o coração gelado de rancor.
Cientificado de todas as confissões de Brunehilda, em relação a
Marinho, mestre Epifânio mandou chamá-lo à sua presença, com a
brutalidade dos seus gestos selvagens.
- Irmão Marinho - exclamou o superior para a filha de Helvídio que o
escutava, amargurada e surpreendida -, então é assim que demonstras
gratidão a esta casa? Onde se encontram as tuas avançadas concepções
do Evangelho, que não te impediram de praticar tão nefando delito?
Recebendo-te no mosteiro e confiando-te uma missão de trabalho neste
retiro do Senhor, depositei nos teus esforços uma sagrada confiança de pai.
Entretanto, não hesitaste em lançar o nosso nome ao escândalo,
enxovalhando uma instituição que nos é sumamente venerável ao espírito !
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
Observando a miserável criança, junto do estalajadeiro, que lhe não
correspondia à saudação, a jovem interrogou, enquanto Epifânio fazia uma
pausa:
- Mas, de que me acusam?
- Ainda o perguntas? - revidou Menênio Túlio, de faces congestas. -
Minha desventurada filha revelou-me a tua ação torpe, não vacilando em
levar ao meu lar honesto a lama da tua concupiscência. Estás enganado se
supões que minha casa vá acolher o fruto criminoso das tuas desregradas
paixões, porque esta miserável criança ficará nesta casa, a fim de que o pai,
infame, resolva sobre o seu destino.
Depois de pronunciar estas palavras acrescidas de impropérios ao
suposto conquistador da filha, o estalajadeiro retirou-se, ante o pasmo de
Célia e de Epifânio, deixando ali a criança mísera, em completo abandono.
A jovem compreendeu, num relance, que o mundo espiritual exigia
um novo testemunho da sua fé e, enquanto caminhava, quase serenamente,
para tomar nos braços o inocentinho, o superior da comunidade a advertia
colérico :
- Irmão Marinho, esta casa de Deus não pode tolerar por mais tempo
a tua escandalosa presença. Explica-te ! Confessa as tuas faltas, a fim de
que a minha autoridade possa cuidar das providências oportunas e
necessárias!..
Célia em poucos instantes, mergulhou o pensamento dolorido nas
meditações indispensáveis, e, valendo-se da mesma fé intangível e cristalina
que lhe havia orientado todos os penosos sacrifícios do destino, exclamou
com humildade:
- Pai Epifânio, quem comete um ato dessa natureza é indigno do
hábito que nos deve aproximar do Cordeiro de Deus ! Estou pronto, pois, a
aceitar com resignação as penas que a vossa autoridade me impuser...
- Pois bem - replicou o superior na sua orgulhosa severidade -,
deves sair imediatamente do mosteiro, levando contigo essa criança
miserável!..
Nesse instante, porém, quase todos os religiosos se haviam
aproximado, observando a relevância da cena. Custava-lhes crer na
culpabilidade do Irmão Marinho, que ali se encontrava humilde,
evidenciando a mais consoladora serenidade no brilho calmo dos olhos
úmidos.
E, sentindo que todos os companheiros eram simpáticos à sua
causa, a filha de Helvídio, com uma inflexão de voz inesquecível, ajoelhou
diante de Epifânio e pediu:
- Meu pai, não me expulseis desta comunidade para sempre!...
Não conheço as regiões que nos rodeiam ! Sou ignorante e encontro-me
doente! Não me desampareis, considerando a palavra do Divino Mestre,
que se afirmava como o recurso de todos os enfermos e desvalidos
deste mundo ! Se tenho a alma indigna de permanecer neste retiro de Jesus,
dai-me a permissão de habitar o casebre abandonado ao pé do horto. Eu vos
prometo trabalhar de manhã à noite, no amanho da terra, a fim de esquecer
os meus desvios.. Pai Epifânio, se não me concederdes essa graça, por
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
mim, concedei-a por este pequenino abandonado, para quem viverei com
todas as forças do meu coração!..
Chorava copiosamente ao fazer a dolorosa rogativa. No íntimo, o
orgulhoso Aufídio Prisco, que desejava aplicar o Evangelho à sua maneira,
quis negar, mas, num relance, notou que todos os companheiros da
comunidade estavam comovidos e apiedados.
- Não resolverei por min. - clamou exasperado -, todos os
membros do mosteiro deverão considerar estranha e descabida a tua
solicitação.
Todavia, consultados os companheiros, para quem a jovem
caluniada erguia os olhos súplices, houve um movimento geral favorável
à filha de Helvídio. Epifânio não conseguiu a desejada recusa e,
endereçando aos seus benfeitores um carinhoso olhar de agradecimento,
o Irmão Marinho abandonou o recinto, erguendo corajosamente a
criancinha nos braços e retirando-se para a choupana abandonada, ao pé do
imenso horto do mosteiro.
Dessa vez, Célia não se entregou à peregrinação por caminhos
ásperos, mas só Deus poderia testificar dos seus imensuráveis sacrifícios.
Com inauditas dificuldades, buscou adaptar-se com o pequenino, à sua nova
vida, à custa dos mais ingentes trabalhos, na sua soledade dolorosa, a
cujas angústias alguns irmãos do mosteiro estendiam mãos carinhosas.
Lembrando-se de Ciro, cercava o pequenito de todos os cuidados,
esperando que Jesus lhe concedesse forças para o integral cumprimento de
suas provações.
Durante o dia, trabalhava exaustivamente no cultivo das hortaliças,
aproveitando os crepúsculos para as meditações e os estudos, que
pareciam povoados de seres e de vozes carinhosas do Invisível.
Dia houve em que uma pobre mulher do povo passava pelo sítio, a
pé, com um filhinho quase agonizante, buscando as estradas de
Alexandria à cata de recursos. Era de tarde. Batendo à porta humilde do
Irmão Marinho, este lhe levantou as fibras da alma abatida, convidando-a
às preciosas meditações do Evangelho. Solicitado com insistência pela
humilde criatura para impor as mãos, qual faziam os apóstolos de Jesus,
sobre o doentinho, tal o ambiente de confiança e de amor que sabia criar
com as suas palavras, Célia, entregando-se a esse ato de fé, pela primeira
vez, teve a ventura de observar que o pequeno agonizante recuperava o
alento e a saúde, num sorriso. Então, a mulher do povo prosternou-se ali
mesmo, rendendo graças ao Senhor e misturando as suas lágrimas com as
do Irmão Marinho, que também chorava de comoção e agradecimento.
Desde esse dia, nunca mais a casinhola do horto deixou de receber
os pobres e aflitos de todas as categorias sociais, que lá iam rogar as
bênçãos de Jesus, através daquela alma pura e simples, santificada
pelos mais acerbos sofrimentos.
V - O CAMINHO EXPIATÓRIO
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
Enquanto Célia cumpre a sua missão de caridade à luz do
Evangelho, voltemos a Roma, onde vamos encontrar as nossas antigas
personagens.
Dez anos haviam corrido na esteira infinita do Tempo, desde que
Helvídio Lucius e família haviam experimentado as mais singulares
viravoltas do destino.
Apesar de dissimularem as amarguras no meio social em que se
agitavam, Fábio Cornélio e família sentiam o coração inquieto e angustiado,
desde o dia infausto em que a filha mais moça de Alba Lucínia se ausentara
para sempre, pelas injunções dolorosas do seu desditoso destino. Na
intimidade comentava-se, às vezes o que teria sido feito daquela que Roma
relembrava tão somente como se fôra uma querida morta da família. A
esposa de Helvídio, essa, remoía os mais tristes padecimentos morais,
desde a manhã fatal em que fôra cientificada dos fatos ocorridos com a
filhinha.
Nos seus traços fisionômicos, Alba Lucínia não apresentava mais a
jovialidade franca e a espontaneidade de sentimentos que sempre deixara
transparecer nos dias felizes, em que o seu semblante parecia prolongar,
indefinidamente, as linhas graciosas da primeira mocidade. Os tormentos
íntimos vincavam-lhe as faces numa expressão de angústia recalcada. Nos
olhos tristes parecia vagar um fantasma de desconfiança, que a perseguia
por toda parte. Os primeiros cabelos brancos, filhos do seu espírito
atormentado, figuravam-lhe na fronte como dolorosa moldura da sua virtude
sofredora e desolada. Nunca pudera esquecer a filha idolatrada, que surgia
no quadro de sua imaginação afetuosa, errante e aflita sob os signos
tenebrosos da maldição doméstica. Por muito que a sustentasse a
palavra amiga e carinhosa do esposo, que tudo fazia por manter inflexível a
sua fibra corajosa e resoluta, moldada nos princípios rígidos da família
romana, a pobre senhora parecia sofrer indefinidamente, como se uma
enfermidade misteriosa a conduzisse traiçoeiramente para as sombras do
túmulo. De nada valiam as festas da Gorte, os espetáculos, os lugares de
honra nos teatros ou nos divertimentos públicos.
Helvídio Lucius, se bem fizesse o possível por ocultar as próprias
mágoas, buscava levantar, em vão o ânimo abatido da companheira. Como
pai, sentia, muitas vezes, o coração torturado e aflito, mas procurava fugir ao
seu próprio íntimo, tentando distrair-se no turbilhão das suas atividades
políticas e nas festas sociais, onde comparecia habitualmente, levado pela
necessidade de escapar às meditações solitárias, nas quais o coração
paterno mantinha os mais acerbos diálogos com a razão preconceituosa
do mundo. Assim, sofria intensamente, entre a indecisão e a saudade, a
energia e o arrependimento.
Muitas mudanças se haviam operado em Roma, desde o evento
doloroso que lhe mergulhara a família em sombras espessas.
Élio Adriano, após muitos anos de injustiça e crueldade, desde que
transferira a Corte para Tibur, havia partido para o Além, deixando o Império
nas mãos generosas de Antonino, cujo governo se caracterizava pelos feitos
de concórdia e de paz, na melhor distribuição de justiça e de tolerância. O
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
novo Imperador, contudo, conservava Fábio Cornélio como um dos
melhores auxiliares da sua administração liberal e sábia. Ao antigo censor
agradava, sobremaneira, essa prova da confiança imperial, salientando-se
que, na sua velhice decidida e experimentada, mantinha-se em posição de
franca ascendência perante os próprios senadores e outros homens de
Estado, obrigados a lhe ouvirem as opiniões e pareceres.
Um homem havia que crescera muito na confiança do antigo
censor, tornando-se o seu agente ideal em todos os serviços. Era Silano.
Satisfeito por cumprir uma recomendação afetuosa do seu velho amigo
de outros tempos, Fábio Cornélio fizera do antigo combatente das Gálias um
oficial inteligente e culto, a quem prestavam o máximo de honrarias. Silano
representava, de algum modo, a sua força de outra época, quando a
senectude não se aproximava, obrigando o organismo ao mínimo de
aventuras. Para o velho censor, o antigo recomendado de Cneio Lucius era
quase um filho, em cuja virilidade poderosa sentia ele o prolongamento das
suas energias. Em todas as empresas, ambos se encontravam sempre
juntos, para a execução de todas as ordens privadas de César, criando-se
entre os seus espíritos a mais elevada atmosfera de afinidade e confiança.
Ao lado das nossas personagens, uma havia que se fechara em
profundo enigma. Era Cláudia Sabina. Desde a morte de Adriano, fôra
relegada ao ostracismo social, recolhendo-se de novo ao anonimato da
plebe, de onde emergira para as mais altas camadas do Império. De suas
aventuras, ficara-lhe a fortuna monetária, que lhe permitia residir onde lhe
aprouvesse, com todas as comodidades do tempo. Desgostosa, porém, com
o retraimento absoluto das amizades espetaculosas dos bons tempos de
prestígio social, adquirira pequena chácara nos arredores de Roma, num
modesto subúrbio entre as Vias Salária e Nomentana, onde passou a viver
entregue às suas dolorosas recordações.
Não faltavam boatos acerca de suas atividades novas e algumas
de suas mais antigas relações chegavam afiançar que a viúva de Lólio
Úrbico começava a entregar-se às práticas cristãs, nas catacumbas,
esquecendo o passado de loucuras e desvios.
Na verdade, Cláudia Sabina tivera os primeiros contactos com a
religião do Crucificado, mas sentia o coração assaz intoxicado de ódio para
identificar-se com os postulados de amor e singeleza. Decorridos dez anos,
não conseguira saber o resultado real da tragédia que armara na esteira do
seu destino. Vivera com a terrível preocupação de reconquistar o homem
amado, ainda que para isso tivesse de movimentar todos os bastidores do
crime. Seus planos haviam fracassado. Sem o apoio de outros tempos,
quando o prestígio do marido lhe propiciava uma turba de aduladores e de
servos, nada conseguira, nem mesmo a palavra de Hatéria, que, amparada
por Helvídio, retirara-se para o seu sítio de Benevento, onde passou a viver
na companhia dos filhos, com a máxima prudência, necessária à própria
segurança.
Cláudia Sabina encontrara algum conforto para o remorso que lhe
mordia a alma, mas não poderia nunca, a seu ver, conciliar o seu ódio e o
seu orgulho inflexíveis com a exemplificação daquele Jesus crucificado e
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
humilde, que prescrevera a humildade e o amor como fulcro de todas as
venturas terrenas.
Debalde ouvira os pregadores cristãos das assembléias a que
comparecera com a sua curiosidade sôfrega. As teorias de tolerância e
penitência não encontraram eco no seu espírito intoxicado. E, sentindose
desamparada no íntimo, com as penosas recordações do passado
criminoso, a antiga plebéia julgava-se folha solta, ao sabor dos ventos
impetuosos. De quando em quando, entretanto, assaltava-a o pavor da
morte e do Além desconhecido. Desejava uma fé para o coração exausto das
paixões do mundo; mas, se de um lado estavam os antigos deuses, que lhe
não satisfaziam ao raciocínio, do outro estava aquele Jesus imaculado e
santo inacessível aos seus anseios tristes e odiosos. Por vezes, lágrimas
amargas aljofravam-lhe os olhos escuros e, contudo, bem percebia que
aquelas lágrimas não eram de purificação, mas de desespero, irremediável
e profundo. Carregando no íntimo o esquife pesado dos sonhos mortos,
Cláudia Sabina penetrava no crepúsculo da vida, qual náufrago cansado de
lutar com as ondas de um mar tormentoso, sem a esperança de um porto, na
desesperação do seu orgulho e do seu ódio nefandos.
O ano de 145 corria calmo, com as mesmas recordações amargas
dos nossos amigos, quando alguém nas primeiras horas da manhã de um
soberbo dia de primavera, batia à porta de Helvídio com singular insistência.
Era Hatéria, que, em singulares condições de magreza e
abatimento, foi levada ao interior da casa e recebida por Alba Lucínia, com
simpatia e agrado.
A antiga serva parecia extremamente aflita e perturbada, mas
expunha com clareza os seus pensamentos. Solicitou à antiga patroa a
presença de seu pai e do esposo, a fim de explanar um assunto grave.
A consorte de Helvídio conjeturou que a mulher desejava falar
particularmente de algum assunto de ordem material, que a interessasse em
Benavento.
Diante de tanta insistência, chamou o velho censor que, desde a
morte de Júlia, passara a residir em sua companhia, convidando igualmente
o esposo a atender à solicitação de Hatéria, que lhes granjeara, desde o
drama de Célia, singular consideração e especial estima.
Com espanto dos três, a serva pedia um compartimento reservado,
de modo a tratar livremente do assunto.
Fábio e Helvídio julgaram-na demente, mas a dona da casa os
convidou a acompanhá-la, a fim de satisfazer o que julgavam mero capricho.
Reunidos num gracioso cubículo junto do tablino, Hatéria falou
nervosamente, com intensa palidez no semblante :
- Venho aqui fazer uma confissão dolorosa e terrível e não sei
como devo expor meus crimes de outrora!... Hoje, sou cristã, e perante
Jesus preciso esclarecer aos que me dispensaram, no passado, uma estima
dedicada e sincera...
- Então - perguntou Helvídio, julgando-a sob a influência de uma
perturbação mental -, és hoje cristã?
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
- Sim, meu senhor - respondeu de olhos brilhantes, enigmáticos,
como que tomada de resolução extrema -, sou cristã, pela graça do Cordeiro
de Deus, que veio a este mundo remir todos os pecadores... Até há pouco,
preferiria morrer a vos revelar meus dolorosos segredos. Tencionava baixar
ao túmulo com o mistério terrível do meu criminoso passado, mas, de um
ano a esta parte, assisto às pregações de um homem justo, que, nos confins
de Benevento, anuncia o reino dos céus, com Jesus-Cristo, induzindo os
pecadores à reparação de suas faltas. Desde a primeira vez que ouvi a
promessa do Evangelho do Senhor, sinto o coração ingrato sob o peso de
um grande remorso. Além disso, ensina Jesus que ninguém poderá ir a Ele
sem carregar a própria cruz, de modo a segui-lo... Minha cruz é o meu
pecado... Hesitei em vir, receosa das conseqüências desta minha revelação,
mas preferi arrostar com todos os efeitos do meu crime, pois, somente
assim, pressinto que terei a paz de consciência indispensável ao trabalho do
sofrimento que há-de regenerar minha alma Depois da minha confissão,
matai-me se quiserdes!
Submetei-me ao sacrifício! Ordenai a minha morte!... Isso aliviará, de
algum modo, a minha consciência denegrida!.. No Alto, aquele Jesus amado,
que prometeu auxílio sacrossanto a todos os cultivadores da verdade,
levará em conta o meu arrependimento e dará consolo às minhas mágoas,
concedendo-me os meios para redimir-me com a sua misericórdia !...
Então, ante a perplexidade dos três, Hatéria começou a desdobrar o
drama sinistro da sua vida. Narrou os primeiros encontros com Cláudia
Sabina, suas combinações, a vida particular de Lólio Úrbico, o plano sinistro
para inutilizar Alba Lucínia no conceito da família e da sociedade romana; a
ação de Plotina e o epílogo do trágico projeto, que terminou com o sacrifício
de Célia, cuja lembrança lhe embargava a voz numa torrente de lágrimas, em
recordando a sua bondade, a sua candura, o seu sacrifício... Narrativa
longa, dolorosa... Por mais de duas horas, prendeu a atenção de Fábio
Cornélio e dos seus, que a escutavam estupefatos.
Ouvindo-a e considerando os pormenores da confissão, Alba
Lucínia sentiu o sangue gelar-se-lhe nas veias, tomada de singular angústia.
Helvídio tinha o peito opresso, sufocado, tentando em vão dizer uma palavra.
Somente o censor, na sua inflexibilidade terrível e orgulhosa, mantinha-se
firme, embora evidenciando o pavor íntimo, com uma expressão
desesperada a dominar-lhe o rosto.
- Desgraçada ! - murmurou Fábio Cornélio com grande esforço - até
onde nos conduziste com a tua ambição desprezível e mesquinha!...
Criminosa! Bruxa maldita, como não temeste o peso de nossas mãos ?
Sua voz, porém, parecia igualmente asfixiada pela mesma emoção
que empolgara os filhos.
- Vingar-me-ei de todos !. - gritou o velho censor com a voz
estrangulada.
Nesse instante, Hatéria ajoelhou a seus pés e murmurou :
- Fazei de mim o que quiserdes ! Depois de me haver confessado, a
morte me será um doce alívio !...
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
- Pois morrerás, infame criatura - disse o censor desembainhando
um punhal, que reluziu à claridade do Sol, através de uma janela alta e
estreita.
Mas, quando a destra parecia prestes a descer, Alba Lucínia, como
que impelida por misteriosa força, deteve o braço paterno, exclamando :
- Para trás, meu pai ! Cesse para sempre a tragédia em nossos
destinos!.. Que adianta mais um crime ?
Mas, ao passo que Fábio Cornélio cedia, atônito, marmórea palidez
se estendia ao rosto da desventurada senhora, que tombou redondamente
no tapete, sob o olhar angustiado do marido, pressuroso no acudi-la.
Lançando, então, um olhar de fundo desprezo a Hatéria, que
auxiliava o tribuno a acomodar a senhora num largo divã, o velho censor
acentuou:
- Coragem, Helvídio!.. Vou chamar um médico imediatamente.
Deixemos esta maldita bruxa entregue à sua sorte ; mas, hoje mesmo,
mandarei eliminar a infame que nos envenenou a vida para sempre..
Helvídio Lucius desejava falar, mas não sabia se devia aconselhar
ponderação ao sogro impulsivo, ou socorrer a esposa, cujos membros
estavam frios e rijos, em conseqüência do traumatismo moral.
Amparando Alba Lucínia no divã, enquanto Hatéria se dirigia ao
interior para tomar as providências primeiras, Helvídio Lucius viu o sogro
ausentar-se, pisando forte.
Por mais que fizesse, o tribuno não conseguiu coordenar idéias
para resolver a angustiosa situação. Levada ao leito, Alba Lucínia parecia
sob o império de uma força destruidora e absoluta, que não lhe permitia
recobrar os sentidos. Debalde o médico administrava poções e preconizava
unguentos preciosos. Fricções medicamentosas não deram o menor
resultado. Apenas os movimentos convulsos do pesadelo acusavam a
pletora de energias orgânicas. As pálpebras continuavam cerradas e a
respiração opressa, como a dos enfermos prestes a entrar em agonia.
Enquanto Helvídio Lucius se desdobrava em cuidados e procurava
tranqüilizar-se, Fábio Cornélio dirigiu-se ao gabinete e, chamando Silano em
particular, falou-lhe austero:
- Mais que nunca, preciso hoje da tua dedicação e dos teus
serviços!
- Determinai! - exclamou o oficial, pressuroso.
- Necessito hoje de uma diligência punitiva, para eliminar uma
antiga conspiradora do Império. Há mais de dez anos, observo-lhe as
manobras, porém, só agora consegui positivar os seus crimes políticos e
resolvi confiar-te mais essa tarefa de singular relevância para minha
administração.
- Pois bem - exclamou o rapaz serenamente -, dizei do que se trata
e cumprirei vossas ordens com o zelo de sempre.
- Levarás contigo Lídio e Marcos, porquanto necessito auxiliar-te
com dois homens de inteira confiança.
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
E, em voz discreta, indicou ao preposto o nome da vítima, sua
residência, condições sociais e tudo quanto pudesse facilitar a execução
do sinistro mandado.
Por fim, acentuou com voz cavernosa:
- Mandarei que alguns soldados cerquem a chácara, de modo a
prevenir qualquer tentativa de resistência dos fâmulos; e, depois de
ordenares a abertura das veias dessa mulher infame, dirás que a sentença
parte de minha autoridade, em nome das novas forças do Império.
- Assim o farei - retrucou o emissário resoluto.
- Trata de agir com a maior prudência. Quanto a mim, volto agora a
casa, onde reclamam a minha presença. A tarde, aqui estarei para saber do
ocorrido.
Enquanto Silano arrebanhava os auxiliares destinados à
empresa, Fábio Cornélio regressava ao lar, onde baldos se faziam todos os
recursos médicos para despertar Alba Lucínia do seu torpor estranho.
Movimentando todos os servos, Helvídio Lucius tudo fazia para despertar a
companheira. Como louco, seu coração diluía-se amargamente em torrentes
de lágrimas, e era improficuamente que recorria às promessas silenciosas
aos deuses familiares. Enquanto Hatéria se sentava humildemente à
cabeceira da antiga patroa, o tribuno desdobrava-se em esforços inauditos e
Fábio Cornélio passeava de um lado para outro, agitado, no interior de um
gabinete próximo, ora esperando as melhoras da enferma, ora contando as
horas, a fim de conhecer o resultado da comissão sinistra.
Com efeito, de tarde, o emissário do censor, rodeado de soldados e
dos dois companheiros de confiança que deveriam penetrar na residência de
Cláudia, chegara ao aprazível sítio, arborizado e florido, onde a antiga
plebéia se entregava às suas meditações, no doloroso outono de sua vida.
A viúva de Lólio Úrbico passara o dia entregue a reflexões amargas
e angustiosas. Como se uma força misteriosa a dominasse, experimentara
as sensações mais tristes e incompreensíveis. Em vão, passeara pelos
deliciosos jardins da principesca residência, onde as avenidas graciosas e
bem cuidadas se saturavam dos fortes perfumes da Primavera. Sentimentos
estranhos e intraduzíveis sufocavam-lhe o íntimo, como se o espírito
estivesse mergulhado em amaríssimos presságios. Buscou fixar o
pensamento em algum ponto de referência sentimental e, todavia, o coração
estava indigente de fé, qual deserto adusto.
Foi com a alma imersa em penosos cismares que viu aproximar-se,
com grande surpresa, o destacamento de pretorianos.
Tomada de emoção, lembrando-se do que representavam aquelas
pequenas expedições de terror, noutros tempos, recebeu no seu
gabinete o oficial que a procurava acompanhado de dois homens
espadaúdos e atléticos, com os quais trocara significativos olhares.
- Ao que devo a honra de vossa visita? - perguntou depois de
sentar-se, dirigindo a Silano um olhar de curiosidade intensa.
- Sois, de fato, a viúva do antigo prefeito Lólio Úrbico?
- Sim... - replicou a interpelada com displicência.
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
- Pois bem, eu sou Silano Plautius e aqui estou por ordem do
censor Fábio Cornélio, que, depois de longo processo, expediu a última
sentença contra a vossa pessoa, esperando eu que saibais morrer
dignamente, dada a vossa condição de conspiradora do Império...
Cláudia ouviu aquelas palavras sentindo que o sangue se lhe
gelava no coração. Uma palidez de alabastro lhe cobriu a fronte, enquanto
as têmporas batiam aceleradamente. Estendeu precipitadamente as mãos a
um móvel próximo, tentando utilizar uma grande campainha, mas Silano
deteve-lhe o gesto, exclamando com serenidade:
- É inútil qualquer resistência! A casa está cercada. Encomendai
aos deuses os vossos últimos pensamentos !.
A esse tempo, obedecendo aos sinais convencionais Lídio e
Marcos, dois gigantes, avançavam para Cláudia Sabina, que mal se
levantara, cambaleante... Enquanto o primeiro a amordaçava
impiedosamente, o segundo avançou, cortando-lhe os pulsos com uma
lâmina acerada..
Cláudia, todavia, sentindo o horror da situação irremediável,
entregava-se aos verdugos sem resistência, endereçando, porém, a Silano
um olhar inesquecível.
Fosse, contudo, pelo pavor daquele minuto inolvidável, ou em
vista de qualquer emoção irresistível e profunda, o sangue da desventurada
não vazava das veias abertas. Dir-se-ia que abrasadora emoção sacudia
todas as suas forças psíquicas, contrariando as leis comuns das energias
orgânicas.
Ante o fato insólito e raramente observado nas sentenças daquela
natureza, e observando o olhar angustioso e insistente que a vítima lhe
dirigia, como a suplicar-lhe que a ouvisse, o oficial ordenou que Lídio
sustasse o amordaçamento, a fim de que a condenada pudesse fazer as
suas recomendações e morresse tranqüila.
Aliviada do arrocho, Cláudia Sabina exclamou em voz soturna:
- Silano Plautius, meu sangue se recusa a vazar, antes que te
confesse todas as peripécias da minha vida! Afasta os teus homens deste
gabinete e nada temas de uma mulher indefesa e moribunda!..
Altamente impressionado, o filho adotivo de Cneio Lucius
ordenou aos companheiros se retirassem para uma sala próxima, enquanto
Cláudia, a sós com ele, atirou-se-lhe aos pés, com as veias gotejantes,
dizendo amargamente :
- Silano, perdoa o coração miserável que te deu a vida!... Sou tua
mãe, desgraçada e criminosa, e não quero morrer sem te pedir que me
vingues ! Fábio Cornélio é um monstro. Odeio-o ! Meu passado está cheio de
sombras espessas!.. Mas, quem te fez hoje um matricida é mandatário de
muitos crimes !
O pobre rapaz contemplava a vítima, tomado de doloroso espanto.
Uma brancura de neve subira-lhe ao rosto, denunciando comoções íntimas ;
todavia, se os olhos refletiam ansiedade angustiosa, os lábios continuavam
mudos, enquanto a viúva de Lólio Úrbico lhe beijava os pés, desfeita em
pranto.
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
Então, era ali que estava o mistério do seu nascimento e da sua
vida? Dolorosa emoção dominou-o e Silano prorrompeu em soluços, que
lhe rebentavam do peito saturado de angústias. Desde a morte de Cneio,
vinha alimentando o desejo de esclarecer o mistério do seu nascimento.
Muitas vezes projetou constituir família e sentia-se desarmado perante os
preconceitos sociais, pensando no futuro da prole. Em determinadas
ocasiões, experimentava o desejo de abrir o pequeno medalhão que o
venerando protetor lhe confiara nas vascas da morte e, contudo, um receio
atroz da verdade paralisava-lhe os propósitos.
Enquanto as mais penosas reflexões lhe obumbravam o raciocínio,
Cláudia, de joelhos, contava-lhe, detalhe por detalhe, a história dolorosa
da sua vida. Estarrecido ante aquelas verdades pronunciadas por uma voz
que se abeirava do túmulo, Silano inteirava-se das suas primeiras
aventuras amorosas, do seu encontro com Helvídio Lucius, nos tumultos
aventurosos da vida mundana, da sua incerteza quanto à paternidade
legítima e da resolução de confiá-lo a Cneio, onde sabia existir a mais
carinhosa dedicação pelo nome de Helvídio, circunstância que garantiria ao
enjeitado um ditoso porvir; dos golpes da sorte posterior desposando um
homem de Estado; de suas combinações com Fábio Cornélio, em tempos
idos, para a execução de sentenças iníquas no seio da sociedade romana,
omitindo, porém, o drama terrível da sua vida em relação a Alba Lucínia.
Sentindo que a iminência da morte agravava o ódio pelo censor, que a
determinara, e por sua família, Cláudia Sabina, dando curso aos derradeiros
desvios da sua alma, deixou transparecer que a morte de Lólio Úrbico,
misteriosa e inesperada, fôra obra de Fábio Cornélio e seus sequazes,
ávidos de sangue, a fim de acarretarem a sua ruína.
Nos últimos instantes, levada pelo negrume do seu ódio tigrino,
não vacilara em arquitetar o derradeiro castelo de calúnias e mentiras, para
levar a desolação à família detestada.
Aquelas terríveis confidências soavam aos ouvidos do oficial como
um clamor de vinganças que reivindicassem desforços supremos. Todavia,
em consciência, não lhe bastavam apenas as emoções para identificar a
verdade. Necessitava de alguma coisa que lhe falasse à razão.
Mas, como se Cláudia Sabina lhe adivinhasse os pensamentos, foi
logo ao encontro das suas vacilações silenciosas :
- Silano, meu filho, Cneio Lucius não te confiou um pequeno
medalhão, que envolvi nas tuas roupinhas de enjeitado?
- Sim - disse o rapaz extremamente perturbado -, trago comigo essa
lembrança...
- Nunca o abriste?
- Nunca...
Nesse instante, porém, o emissário de Fábio revolveu uma bolsa
que trazia sempre consigo, retirando o pequeno medalhão que a condenada
contemplou ansiosamente.
- Aí dentro, meu filho - disse ela -, escrevi um dia as seguintes
palavras: Filhinho, eu te confio à generosidade alheia com a bênção dos
deuses. - Cláudia Sabina.
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
Silano Plautius abriu o medalhão, nervosamente, conferindo, uma
por uma, todas as palavras.
Foi aí que uma emoção violenta lhe abalou todas as faculdades.
Acentuou-se a brancura de mármore que se lhe estampara na fronte. O
olhar inquieto e triste tomou uma expressão vítrea, de pavor e assombro. As
lágrimas secaram como se um sentimento lhe aflorasse nalma. Cláudia
Sabina, sentindo-se nos derradeiros instantes, contemplava, ansiosa,
aquelas transformações súbitas.
Como se houvera sentido a mais radical de todas as
metamorfoses, o rapaz inclinou-se para a vítima e gritou aterrado :
- Mãe!... minha mãe !..
Nas suas expressões havia um misto de sentimentos indefiníveis e
profundos; elas se lhe escapavam do peito como um grito de saciedade
afetuosa, depois de muitos anos de inquietação e de angústia.
Recebendo aquela suprema e doce manifestação de carinho na
hora extrema, a condenada, com a voz a extinguir-se, falou :
- Meu filho, perdoa-me o passado vil e tenebroso !.. Os deuses me
castigam fazendo-me perecer às mãos daquele a quem dei a vida !.. Meu
filho, meu filho, apesar de tudo, amo essas mãos que me trazem a morte !.
O pupilo de Cneio Lucius inclinara-se sobre o tapete manchado de
sangue. Num gesto supremo, que evidenciava sua angústia e o
esquecimento do abandono materno, para considerar somente o destino
doloroso que o conduzira ao matricídio, tomou nas mãos a cabeça exânime
da condenada, cujo olhar, parecia, agora, rejubilar-se com os
pensamentos enigmáticos e criminosos de sua alma.
Verificou-se, então, um fenômeno interessante. Como se houvera
satisfeito cabalmente o último desejo, o organismo espiritual de Cláudia
Sabina abandonava o corpo terrestre. Satisfeita a sua vontade psíquica, o
sangue começou a jorrar em borbotões intensos e rubros, dos pulsos
abertos..
Sentindo-se nos braços do oficial, que a encarava alucinado, voltou
a dizer em voz entrecortada:
- Assim... meu filho... sinto... que me... perdoas!.. Vinga-me!...
Fábio... Cornélio... deve morrer...
Os singultos da agonia não lhe permitiram continuar, mas os olhos
enviavam a Silano as mais singulares mensagens, que o rapaz
interpretava como apelos supremos de desforra e vingança.
Quando um palor de cera lhe cobriu a fronte contraída num ricto de
pavor angustiado, o mensageiro do censor abriu as portas, apresentando-se
aos companheiros com a fisionomia transtornada.
Seu olhar fixo e terrível parecia de um louco. No íntimo, as mais
fortes perturbações mentais premiam-lhe o espírito desolado. Sentia-se o
mais ínfimo e o mais desgraçado dos seres. Apenas com uma palavra de
ordem, colocou-se a caminho, de volta ao centro urbano, enquanto os
servos dedicados de Cláudia lhe amortalhavam o cadáver, entre lágrimas.
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
Embalde Lídio e Marcos, bem como outros pretorianos amigos lhe
chamavam a atenção para esse ou aquele detalhe da empreitada, porquanto
Silano Plautius mantinha um silêncio inflexível e sombrio.
A idéia de que Fábio Cornélio lhe conhecia o passado doloroso,
não vacilando em fazê-lo assassino de sua mãe, bem como as histórias
caluniosas de Cláudia Sabina, à extrema hora, a respeito do censor e do seu
procedimento no passado, provocaram-lhe uma perturbação cerebral
intraduzível. O pensamento de que para o resto dos seus dias devia
considerar-se um matricida, atormentava-o, sugerindo-lhe os mais
horríveis projetos de vingança. Dominado por sentimentos inferiores,
acariciava um punhal que descansava nas armaduras, antegozando o
instante em que se sentisse vingado de todos os ultrajes experimentados na
vida.
Era noitinha quando penetrou no imponente edifício onde Fábio
Cornélio o esperava, num gabinete soberbo e amplamente iluminado.
O velho censor recebeu-o com visível interesse e, buscando isolarse
dos presentes, inquiriu-o num canto da sala:
- Então, que novas me trazes ? Tudo bem ?
Silano fitava-o de olhos gázeos, como presa das mais atrozes
perturbações.
- Mas, que é isso? - insistia o censor extremamente conturbado -
estás enfermo?!.. Que teria acontecido?...
Fábio Cornélio não pôde prosseguir, porque, sem dizer palavra,
qual um alucinado em crise extrema, o oficial desembainhou o punhal,
celeremente, cravando-o no peito do censor, que caiu redondamente,
gritando por socorro.
Silano Plautius contemplava a sua vítima com a "facies" terrível
dos dementes, sem dar o mínimo sinal de responsabilidade.. Na sua
indiferença, via o sangue do velho político escapar-se a jorros pela ferida
entre a garganta e a omoplata, enquanto o ferido, nos estertores da morte,
lhe dirigia um olhar terrível... Foi nesse instante que os numerosos
guardas rodearam o antigo protegido de Cneio Lucius, eliminando-lhe
igualmente a vida em rápidos segundos. Debalde, o oficial tentou resistir aos
pretorianos e a outros amigos do assassinado, porque, em poucos minutos,
estava reduzido a frangalhos pelos golpes de espada, com que pagava a
afronta ao Estado, com a perpetração do seu crime.
A notícia correu a cidade celeremente.
Assistido pelos amigos mais dedicados, Helvídio Lucius precisou
invocar todas as forças para não fraquejar sob golpes tão rudes.
Dada a situação delicada em que se encontrava a esposa,
providenciou para que os despojos sangrentos fossem levados à residência,
com especial cuidado, a fim de que o quadro sinistro e doloroso não
agravasse a moléstia de Alba Lucínia, na hipótese de suas melhoras, após a
síncope prolongada.
Um correio célere foi despachado para Cápua, chamando Caio
Fabrícius e sua mulher a Roma, imediatamente.
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
Entre as preocupações mais acerbas e impossibilitado de
comunicar o peso que lhe oprimia o coração a qualquer amigo, dadas as
penosas circunstâncias familiares em jogo, o filho de Cneio vertia lágrimas
dolorosas ao lado da esposa entre a vida e a morte, enquanto Márcia
assumia a direção de todos os protocolos sociais, em sua residência para
atender a quantos visitavam os despojos dos dois desaparecidos.
Alba Lucínia despertara e, contudo, vagava-lhe no olhar uma
expressão de alheamento do mundo.
Pronunciava palavras ininteligíveis, que Helvídio Lucius daria a
vida para compreender. Percebia-se que ela perdera a razão para sempre.
Além disso, as síncopes renovavam-se periodicamente, como se as células
cerebrais, à pressão de uma força incoercível, rebentassem, vagarosamente,
uma por uma...
Obedecendo aos imperativos da situação, o tribuno expediu ordens
para que os funerais do sogro e do irmão adotivo se efetuassem com a
celeridade possível, tanto assim, que, antes de uma semana, chegavam, da
Campânia, Helvídia e o esposo, sem alcançarem as cerimônias fúnebres, e
penetrando no lar paterno tão somente para se ajoelharem à cabeceira de
Alba Lucínia que, desde a véspera, entrara em dolorosa agonia...
A presença dos filhos constituiu para o tribuno um suave consolo,
mas, ao seu espírito dilacerado figurava-se não haver consolação bastante,
no mundo, para o coração humilhado e ferido.
Tocado nas fibras mais sensíveis, via agonizar a esposa,
lentamente, como se um sicário invisível lhe houvesse cravado no coração
acerado punhal. Diante da morte, cessavam todos os seus poderes, todas as
suas dedicações carinhosas. Submerso num oceano de lágrimas,
guardando entre as suas as mãos frias da companheira, Helvídio Lucius
não abandonou o aposento, nem mesmo para atender ao apelo dos filhos
recém-chegados. Pressentindo que a morte lhe arrebataria em breve a
esposa idolatrada, conservava-se à sua cabeceira, dominado pelas
meditações mais atrozes.
De quando em quando, emergia do abismo de suas reflexões,
exclamando amargamente como se guardasse a convicção de que era
ouvido pela moribunda :
- Lucínia, pois também tu me abandonas? Desperta, ilumina de
novo a minha soledade!.. Se te ofendi alguma vez, perdoa-me. Mais não fiz
que te amar muito !.. Vamos. Atende. Eu vencerei a morte para te guardar em
meus braços ! Lutarei contra todos ! Junto de ti, terei forças para viver
reparando os erros do passado; mas que farei sozinho e abandonado se
partires para o mistério? Deuses do céu! não bastariam as ruínas do meu lar,
os destroços de minha felicidade doméstica para me redimir aos vossos
olhos? Tende compaixão do meu ser desventurado! Que fiz para pagar tão
pesado tributo ?..
E contemplando o céu, como se estivesse vislumbrando os
numes que presidem aos destinos humanos, apontava a esposa
agonizante, redizendo em voz abafada e dolorida :
- Deuses do bem, conservai-lhe a vida !...
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
Entretanto, como se as suas rogativas morressem apagadas
diante de uma esfinge, Alba Lucínia desprendia-se do mundo com uma
lágrima silenciosa, ao amanhecer, enquanto os clarões rubros do Sol
tingiam as primeiras nuvens do céu romano, ao caricioso despontar da
aurora.
Percebendo-lhe o derradeiro suspiro, Helvídio Lucius
ensimesmou-se numa tristeza indizível. Nos olhos agora secos e esquisitos,
perpassava uma expressão de revolta contra todas as divindades a seu ver
insensíveis aos seus padecimentos e apelos desesperados. A residência
do tribuno cobriu-se, então, de crepes negros, enquanto a sua silhueta
agoniada permanecia junto à urna magnífica que encerrava os despojos da
companheira, qual sentinela que se houvera petrificado em desespero.
Enérgico e impassível, respondia aos apelos afetuosos dos
amigos com monossílabos amargos, enquanto Caio, Helvídia e a
bondosa Márcia faziam as honras da casa.
Após uma semana de homenagens da sociedade romana, efetuouse
o funeral da inditosa senhora, que tombara, qual ave ferida, no seu
profundo amor materno, enquanto o marido, curtindo a mais angustiosa
soledade, se sentia desamparado e ferido para sempre.
Amargurada e silenciosa, Hatéria permanecera na casa, até o
instante em que os carros mortuários acompanharam Alba Lucínia às
sombras do sepulcro.
Impressionada com as tragédias que a sua revelação havia
desfechado dentro daquele lar outrora tão feliz, sentiu-se humilhada no mais
íntimo do coração. Muitas vezes, nas horas terríveis da agonia da ex-patroa,
dirigira o olhar súplice ao tribuno, a fim de verificar se lhe perdoara, de modo
a tranqüilizar a consciência abatida. Helvídio Lucius parecia não vê-la,
indiferente à sua presença e a sua vida...
Experimentando sinistro remorso, Hatéria abandonou a casa de
Helvídio, onde se sentia como verme asqueroso, tal a angústia dos seus
tristes pensamentos na dolorosa noite caída sobre a casa do tribuno, após o
funeral.
Fazia frio. As sombras noturnas eram espessas, impenetráveis
como as angústias que lhe gelavam o coração... A permanência ali, porém,
depois do enterro, não mais era possível, em vista das amarguradas
emoções que lhe vibravam nalma.
A velha criada saiu, então, demandando o Trastevere, onde possuía
antigas relações de amizade. Interessante é que, no percurso pelas ruas
estreitas, seguira trajeto idêntico ao da jovem Célia, quando compelida a
abandonar o lar paterno... Depois de muito caminhar, deteve-se perto da
Ponte Fabricius, temendo prosseguir. Era quase meia-noite e as
proximidades da ilha do Tibre estavam desertas. Quis retroceder, premida
por uma força inexplicável, como se pressentisse algum perigo iminente,
quando dois homens mascarados se aproximaram, quais massas escuras
que se movessem rápidas entre as pesadas sombras da noite. Tentou
gritar, mas era tarde. Um deles atirava-se rápido a ela, amordaçando-a
fortemente.
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
- Lucano - dizia baixinho o desconhecido a envolver-lhe o rosto
com uma toalha grossa -, apalpa-a depressa! Urge terminar o serviço!...
- Ora essa - dizia o companheiro decepcionado -, trata-se de uma
velha desprezível !
- Não desanimes ! - prosseguiu o outro - palpita-me que é boa presa.
Vamos! Essas velhas costumam trazer o dinheiro oculto no seio, quando são
ardilosas e avarentas!...
O bandido que tinha as mãos livres levou-as ao tórax da velha
criada de Helvídio Lucius, sentindo que o seu coração batia acelerado. De
fato, era ali que Hatéria guardava, numa bolsa reforçada, todo o cabedal
sonante das suas economias. Encontrando-lhe o pequeno tesouro, ambos
os malfeitores esboçaram um sorriso de satisfação e, obedecendo a um
sinal do companheiro, Lucano bateu fortemente na cabeça da vítima
amordaçada, com uma pequena bengala de ferro, exclamando com voz
sumida, quando percebeu que ela desmaiara:
- Assim, sempre é melhor! Amanhã não poderás relatar a proeza
aos vizinhos, para que as autoridades nos venham incomodar.
Em seguida, arrastaram a vítima atordoada pelos golpes rijos,
atirando-a sem piedade nas águas pesadas do rio que rolava
silenciosamente. Hatéria teve assim os seus últimos instantes, como a
expiar o torpe delito do passado culposo.
Todavia após examinarmos a derradeira provação da velha
cúmplice de Cláudia Sabina, voltemos a seguir Helvídio Lucius na sua
pesada noite de sofrimentos íntimos.
Somente no dia imediato ao funeral da mulher, conseguiu o
tribuno reunir os filhos num gabinete privado, confidenciando-lhes as
tristes revelações que desfecharam nos terríveis acontecimentos,
aniquiladores da sua ventura para todo o sempre.
Terminada a impressionante narrativa, Caio Fabricius contou à
esposa e ao sogro o encontro com Célia, dez anos antes, quando se dirigia à
Campânia, chamado por interesses urgentes. Jamais aludira ao fato,
considerando o voto formal de se lembrarem da jovem tão somente como
de uma morta sempre querida. Nunca esquecera aquele quadro triste, da
cunhada abandonada na solidão da noite, junto à montanha de Terracina, e
muita vez recriminou-se por se haver mantido indiferente e surdo aos seus
apelos.
Helvídia e seu pai ouviam-no tomados de mágoa e assombro.
Somente aí, no exame de todos os sacrifícios da filhinha,
ponderando os seus tormentos morais para isentar a família dos golpes da
desventura e da calúnia, o filho de Cneio Lucius conseguiu despertar o
resquício da sua sensibilidade, para apegar-se de novo à vida. A narrativa
do genro vinha indiciar que Célia vivia em qualquer parte.
Lembrou-se da esposa e pôs-se a pensar que, se Alba Lucínia ainda
estivesse na Terra, sentiria imenso júbilo se pudesse abraçar de novo a
filha desprezada. Certamente, do Céu, a companheira querida haveria de
lhe orientar os passos, abençoaria o seu esforço. E um dia, quando a
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
providência dos deuses permitisse, a alma da esposa lhe guiaria o coração
ulcerado até à filha, para que pudesse morrer beijando-lhe as mãos.
Mergulhado nessas cogitações angustiosas, com uma serenidade
triste a clarear seus passos, Helvídio Lucius conseguiu chorar de maneira a
aliviar a íntima angústia. Suas lágrimas, agora que Helvídia as enxugava
com carinho, eram como essas chuvas benéficas que lavam o céu, após o
fragor da tempestade.
Então, como se o animasse uma esperança nova, o tribuno
converteu todas as dores na preocupação de reencontrar a filhinha expulsa
do lar, fosse onde fosse, para alívio da consciência. Desejava morrer para
reunir-se à companheira bem-amada, mas quisera levar-lhe também a
certeza de que Célia reaparecera, e que, de joelhos, havia suplicado o perdão
da filha, a quem não pudera compreender. Com esse propósito,
encaminhou-se à Campânia com os filhos, de regresso a Cápua, e, depois
de alguns dias de repouso, dispensando a companhia de qualquer servo, a
fim de entregar-se sozinho às investigações necessárias, partiu para o
Lácio, apesar de todas as súplicas de Helvidia para que aceitasse, ao
menos, a companhia do genro.
Triste e só, o velho tribuno perambulou inutilmente por todas as
cidades próximas de Terracina, estacionando longo tempo junto à gruta de
Tibério, a evocar as penosas recordações do genro. A despeito de todos os
esforços, foi em vão que viajou a Itália inteira.
Assim que, decorrido um ano da morte de Lucínia, regressou a
Roma, abatido e desolado como nunca.
Sentindo-se profundamente desamparado, era qual árvore
frondosa, singularmente insulada na planície extensa da vida. Enquanto
mantinha a seu lado as outras companheiras, podia suportar os furacões
violentos que desciam dos montes, mas, destruídos os troncos próximos,
cuja presença a fortalecia, era agora incapaz de resistir aos ventos mais
leves dos vales obscuros da dor e do destino.
Recolhido ao gabinete, recebia tão somente a visita dos amigos
mais íntimos, cuja palavra não trouxesse ao seu espírito atormentado
qualquer lembrança do passado infortunoso.
Um dia porém, um escravo veio anunciar antigo camarada de
infância, Rúfio Propércio, cuja história amarga dos últimos tempos ele
bem conhecia. Apesar das suas próprias lutas, conhecera-lhe todas as
desgraças e infortúnios.
Helvídio Lucius mandou-o entrar, sofregamente, como irmão de
dores e martírios íntimos.
Trocadas as primeiras impressões, Rúfio Propércio advertiu :
- Caro Helvídio, depois de tão longa separação, surpreende-te a
minha fortaleza moral ante as hecatombes dolorosas da existência. Devo
explicar-te o porquê da minha resignação e serenidade.
É que, hoje, abandonei nossas crenças inexpressivas para apegar-me
a Jesus-Cristo, o Filho de Deus Vivo !..
- Será possível? - exclamou o tribuno interessado.
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
- Sim, hoje compreendo melhor a vida e os sofrimentos neste
mundo. Somente nos tesouros do ensino cristão encontrei a força
indispensável à compreensão da dor e do destino. Só Jesus, com a sua
lição de piedade e misericórdia, pode salvar-nos do abismo de nossas
angústias profundas para uma vida melhor, que não comporta os
enganos e desilusões amargas da Terra...
E enquanto Helvídio Lucius o ouvia, assombrado por encontrar um
amigo íntimo estabilizado na fé ardente e pura, entre os escombros da
época, Propércio acrescentava:
- Já que te sentes igualmente ferido pelo destino, porque não
freqüentares conosco as reuniões cristãs, onde eu te poderia acompanhar?
É bem possível que encontres no Evangelho a paz almejada e a energia
imprescindível para triunfar de todos os tormentos da vida.
Ouvindo o carinhoso convite do amigo de infância, o tribuno
lembrou-se instintivamente da filha, das suas convicções. Sim, fôra o
Cristianismo que lhe dera tamanhas forças para o sofrimento e para o
sacrifício. Além disso, recordou as figuras de Nestório e Ciro, que haviam
caminhado para a morte sem um gemido, sem uma queixa.
Como que cedendo a uma súbita resolução, respondeu resoluto:
- Aceito o convite. Onde é a reunião?
- Numa casa humilde, junto à Porta Ápia.
- Pois bem, irei contigo.
Rúfio despediu-se, prometendo buscá-lo à noitinha, enquanto ele
passava o resto do dia em cogitações graves e profundas.
A hora convencionada, demandaram o local das assembléias
humildes, onde, pela primeira vez, Helvídio Lucius ouviu a leitura do
Evangelho e os comentários singelos dos cristãos. A princípio, estranhou
aquele Jesus que perdoava e amava a todos, com o mesmo carinho e a
mesma dedicação. Mas, no curso de numerosas reuniões, entendeu
melhor o Evangelho e, apesar de lhe não sentir as lições inteiramente,
admirava o profeta simples e amoroso, que abençoava os pobres e os aflitos
do mundo, prometendo um reino de luz e de amor, para além das ingratas
competições da Terra.
Seu esforço na aquisição da fé seguia o curso comum, quando um
pregador famoso surgiu, um dia, naquele núcleo de gente simples e
bondosa.
Tratava-se de um homem ainda novo, inteligente e culto, de nome
Saulo Antônio, que fizera da existência um sacrossanto apostolado, no
trabalho da evangelização.
Sua palavra inflamada e vibrante sobre os Atos dos Apóstolos,
logo após a partida do Cordeiro para as regiões da luz, impressionara o
tribuno profundamente. Pela primeira vez, escutava um intelectual, quase
sábio, a exaltar as virtudes dos seguidores do Cristo, fazendo comparações
extraordinárias entre o Evangelho e as teorias do tempo, que ele se
habituara a considerar como notas de evolução, inexcedíveis.
Terminada a preleção inspirada e brilhante, Helvídio acercou-se
do orador, exclamando com sinceridade:
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
- Meu amigo, trago-lhe meus votos para que a sua palavra
iluminada continue a clarear os caminhos da Terra. Desejava, porém, ouvilo
sobre uma dúvida que me nasceu há tempos no coração.
E enquanto o pregador lhe acolhia as palavras com profunda
simpatia, continuou :
- Não duvido dos atos dos Apóstolos de Jesus, mas estranho que,
de há muito tempo para cá, não haja mais, na Terra, organizações
privilegiadas como a dos antigos seguidores do Cristo, que possam aliviar
nossas dores e esclarecer-nos o coração nos sofrimentos!..
- Meu irmão - replicou o orador sem se perturbar -, antes de
recorrermos aos intermediários, urge prepararmos o coração para sentir a
inspiração direta do Cordeiro. A sua objeção, porém, é muito justificável.
Contudo, cumpre-me esclarecer que as vocações apostólicas não morreram
para o mundo. Em toda a parte elas florescem sob as bênçãos de Deus, que
nunca se cansou de enviar até nós os mensageiros de sua misericórdia
infinita.
E depois de ligeira pausa, como se desejasse transmitir uma
impressão fiel de suas reminiscências mais íntimas, Saulo Antônio
acrescentou convictamente :
- Faz alguns anos, era eu inimigo acérrimo do Cristianismo e dos
seus divinos postulados; todavia, bastou a contribuição de um verdadeiro
discípulo de Jesus, para que meus olhos se aclarassem buscando o
verdadeiro caminho... Ainda hoje, lá está ele, franzino e humilde como
uma flor do Céu, inaclimatável entre as urzes da Terra... Trata-se do Irmão
Marinho, que, nos arredores de Alexandria, constitui uma bênção de
Jesus, permanente e divina, para todas as criaturas.. Imagem do bem,
personificação da perfeita caridade evangélica, vi-o curar leprosos e
paralíticos, restituir esperanças e fé aos mais tristes e mais empedernidos !
Ao seu tugúrio miserável acorrem multidões de aflitos e desamparados, que
o venerável apóstolo do Cordeiro reanima e consola com as lições
profundas de amor e de humildade! Depois de peregrinar pelas sendas mais
escuras, tive a dita de encontrar a sua palavra carinhosa e benevolente, que
me despertou para Jesus, dos negrores do meu destino !...
Sentindo-lhe a profunda sinceridade, Helvídio Lucius interrogou
ansioso :
- E esse homem extraordinário recebe a todos indistintamente ?...
- Todas as criaturas lhe merecem atenção e amor.
- Pois meu amigo - revidou o tribuno no seu íntimo desconsolo -,
não obstante minha posição financeira e a consideração pública que
desfruto em Roma, trago o coração acabrunhado e doente como
nunca... As lições do Evangelho têm sustentado, de algum modo, meu
espírito abatido. Contudo, sinto necessidade de um remédio espiritual que,
suavizando-me as dores íntimas, me leve a compreender melhor os divinos
exemplos do Cordeiro... Suas referências chegam a propósito, pois irei a
Alexandria buscar a consolação desse apóstolo, mesmo porque, uma
viagem ao Egito, nas atuais circunstâncias da minha vida, far-me-á grande
bem ao coração...
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
No dia seguinte, o filho de Cneio Lucius deu os primeiros passos
para efetuar a excursão com a presteza possível.
E antes que a galera largasse de óstia, começou a concentrar as
suas esperanças naquele Irmão Marinho, cujas virtudes famosas eram
veneradas em todas as comunidades cristãs e havido por emissário de
Jesus, destinado a sustentar no mundo as tradições divinas dos tempos
apostólicos.
VI - NO HORTO DE CÉLIA
Nos arredores de Alexandria, a filha de Helvídio havia granjeado a
melhor e merecida fama de amor e bondade.
Transferida para aquela região de gente pobre e humilde,
convertera todas as recordações mais queridas, bem como as suas
dores mais íntimas, em hinos de caridade pura, que se evolavam ao
Céu entre as bênçãos de todos os sofredores infelizes.
O sofrimento e a saudade como que lhe modelaram as feições
angélicas porque, no semblante calmo, esbatia-se um traço indefinível de
visão celestial... A vida de ascetismo, de abnegação e renúncia dera-lhe
uma nova "facies" que deixava transparecer nos olhos, serenos e
brilhantes, a pureza indefinível dos que se encontram prestes a atingir as
claridades radiosas de outra vida.
Havia muito, começara a entisicar e, contudo, não abandonara a
faina apostolar junto dos sofredores. De tarde, lia o Evangelho, ao ar livre,
para quantos lhe buscavam o amparo espiritual, explicando os ensinos de
Jesus e de seus divinos seguidores, fazendo crer, nesses momentos, que
uma força divina dela se apossava. A voz, habitualmente débil, ganhava
tonalidades diferentes, como se as cordas vocais vibrassem ao sopro de
uma divina inspiração.
Conservava-se no mesmo tugúrio, ao pé do horto, cujos
trabalhos rudes nunca deixaram de lhe merecer atenção e carinho. Todos
os irmãos do mosteiro, exceto Epifânio, buscavam-lhe agora a
convivência, acatando-lhe as elucidações evangélicas e cooperando nos
seus esforços.
A jovem romana, transformada em irmão carinhoso dos infelizes,
guardava as mesmas disposições íntimas de sempre, cheia de fé e
esperança no Senhor de bondade e sabedoria.
O pequeno enjeitado de Brunehilda, depois de lhe suavizar a
soledade, por alguns anos, com os seus carinhos e sorrisos, havia falecido,
deixando-a amargurada e abatida mais que nunca. Impressionada com o
acontecimento, Célia deprecara fervorosamente e, uma noite, quando se
entregava à solidão de suas preces e meditações, divisou a seu lado o vulto
de Cneio Lucius, contemplando-a com infinita ternura.
- Filha querida, não te magoe essa nova separação do ser
idolatrado! Prossegue na tua fé, cumprindo a missão divina que o Senhor
houve por bem deferir à tua alma sensível e generosa! Depois de perfumar,
por alguns anos, a tua senda terrena, o Espírito de Ciro volve de novo ao
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
Além para saturar-se de forças novas ! Não desanimes pela saudade que
te punge o coração sensibilíssimo, pois nossa alma semeia o amor na Terra
para vê-lo florir nos Céus, onde não chegam as tristes inquietações do
mundo !... Além do mais, Ciro tem necessidade dessas provações, que lhe
hão-de temperar a vontade e o sentimento para os gloriosos feitos do seu
porvir espiritual !...
Nessa altura, a amorável entidade deteve-se como que
intencionalmente, a fim de observar o efeito de suas palavras.
Desfeita em lágrimas, a jovem falou mentalmente, como se
palestrasse com o avô no ádito do coração:
- Não duvido de que todas as dores nos são enviadas por Jesus, a
fim de aprendermos o caminho da redenção divina, mas, qual a razão dessas
vidas temporárias de Ciro na Terra? Se ele tem chegado a viver no
ambiente humano, ainda necessitado das experiências terrestres, porque
vem a morte decepando as nossas esperanças?
- Sim - replicou a entidade amorosamente -, são as leis da prova
que regem os nossos destinos.
- Mas Ciro, há alguns anos, não chegou a morrer pelo Divino
Mestre, no martírio e no sacrifício ?
- Filha, entre os mártires do Cristianismo, há os que se desprendem
do mundo em missão sacrossanta e os que morrem para os mais
penosos resgates... Ciro é do número destes últimos... Em séculos
anteriores, foi um déspota cruel, exterminando esperanças e envenenando
corações... Mergulhado depois na luta expiatória, renegou as dores
santificantes e enveredou pela senda ignominiosa do suicídio. É justo, pois,
que agora aprecie os benefícios da luta e da vida, na dificuldade de os
readquirir para a sua redenção espiritual, ansiosamente colimada. As
experiências fracassadas hão-de valorizar o seu futuro de realizações e
esforços nobilíssimos. Em face da dor e do trabalho, no porvir que se
aproxima, seu coração amará todos os detalhes da luta redentora. Saberá
prezar no trabalho ingente e doloroso os recursos sagrados da sua elevação
para Deus, reconhecendo a grandeza do esforço, da renúncia e do
sacrifício!...
Confortada com os esclarecimentos do mentor espiritual, logo
entreviu outra entidade de semblante nobre e triste, a contemplá-la num
misto de alegria e amargura.
Estranhando a visão, sentiu que a palavra carinhosa do avô
esclarecia :
- Não te surpreendas nem te assustes! Tua mãe, hoje no plano
espiritual, aqui vem comigo, trazer-te o coração bondoso e agradecido !...
Dolorosas emoções lhe vibraram no íntimo, por força daquelas
revelações inesperadas. As lágrimas se fizeram mais amargas e copiosas.
Duvidava da própria vidência, lembrando o passado com os seus espinhos e
sombras desoladoras. Mas, anjo ou sombra, o Espírito Alba Lucínia,
como que submerso num véu de tristeza impenetrável, aproximou-se e lhe
beijou as mãos.
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
Célia desejava que aquela entidade triste e benfazeja lhe
dissesse algo ao coração. A sombra materna, porém, continuava muda e
consternada. Contudo, sentiu que, na mão direita que a sombra osculara,
persistia uma sensação indefinível, como se, com o seu beijo, Alba Lucínia
trouxesse também uma lágrima ardente e dolorida.
Ante o choque inesperado, a jovem romana notou que ambas as
entidades escapavam novamente ao seu olhar.
Nessa noite, meditou sobre o passado, mais que em outros
dias, entregando a Jesus as suas preocupações e as suas mágoas,
rogando ao Senhor lhe fortificasse o espírito, a fim de compreender e
cumprir integralmente os santos desígnios da sua vontade divina.
No dia imediato ao de suas amargas reflexões concernentes ao
passado doloroso, grande multidão buscava-lhe os fraternos serviços. Eram
velhinhos desolados à cata de uma palavra consoladora e amiga,
mulheres das povoações mais próximas, que lhe traziam os filhinhos
enfermos, sem falar das muitas pessoas procedentes de Alexandria, em
busca de lenitivo espiritual para os dissabores da vida.
A medida que as cercanias do mosteiro se enchiam de viaturas,
seu vulto franzino e melancólico desdobrava-se em esforços inauditos
para consolar e esclarecer a todos.
De vez em quando, um acesso de tosse sobrevinha, provocando a
piedade alheia ; ela, porém, transformando a sua fragilidade em energia
espiritual inquebrantável, parecia não sentir o aniquilamento do corpo, de
modo a manter sempre acesa a luz da sua missão de caridade e de amor.
De tarde, invariavelmente, procedia às leituras evangélicas, ouvidas
pelos visitantes numerosos e pela gente simples do povo.
Foi aí, aos lampejos do crepúsculo, que seus olhos atentaram
numa viatura elegante e nobre, de cujo interior saltava Helvídio Lucius,
que o seu coração filial identificou imediatamente. O antigo tribuno,
encontrando a pequena assembléia ao ar livre, procurou acomodar-se
como pôde, enquanto nos traços fisionômicos do Irmão Marinho surgiam
os sinais da emoção que lhe vibrava na alma... Entretanto, sua palavra
prosseguia sempre, saturada de intensa ternura, em minudente comentário
à parábola do Senhor. O irmão dos infortunados e dos doentes falava das
pregações do Tiberíades, como se houvesse conhecido a Jesus de Nazaré,
tal a fidelidade e a amorosa vibração da sua palavra.
Enlevado na contemplação do maravilhoso quadro, o filho de Cneio
Lucius fixou o famoso missionário, tomado de surpresa estranha! Aquela
voz, aquele perfil lembrando um mármore precioso, burilado pelas lágrimas
e sofrimentos da vida, não lhe recordavam a própria filha? Se aquele Irmão
Marinho vestisse a indumentária feminina, raciocinava o tribuno vivamente
interessado, seria a imagem perfeita da filhinha que ele vinha buscando por
toda a parte, sem consolação e sem esperança. Assim conjeturando, seguialhe
a palavra, cheio de surpresa cariciosa.
Ninguém ainda lhe falara do Evangelho com aquela clareza e
simplicidade, com aquela unção de amor e firmeza, que, instintivamente,
lhe penetravam o coração, propiciando-lhe um brando consolo. Fizera a
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
viagem de Óstia a Alexandria, abatido e enfermo. Seu estado orgânico
chegara a despertar o interesse de alguns amigos romanos, a ponto de
insistirem pelo seu imediato regresso à metrópole. Profundo cansaço
transparecia-lhe dos olhos tristes, de uma tristeza inalterável e de um
penoso desencanto da vida. Mas, ao ouvir aquele apóstolo extraordinário,
cheio de benevolência e brandura, experimentava no imo um alívio salutar.
A brisa vespertina afagava-lhe levemente o rosto, com os derradeiros
reflexos do Sol a diluir-se em nuvens distantes. A seu lado, concentrada, a
multidão dos pobres, dos enfermos, dos desventurados da sorte, em preces
fervorosas, como se esperassem todas as felicidades do Céu para os seus
dias tristes.
A poucos passos, a figura esbelta e delicada do irmão dos
infortunados e aflitos, que lhe falava ao coração com maravilhosa suavidade.
A Helvídio Lucius pareceu-lhe que fôra transportado a um país
misterioso, cheio de figuras apostólicas e sentia-se, entre aqueles crentes
anônimos, na posse de um bem-estar indizível.
Desde a dolorosa desencarnação da companheira, tinha o espírito
mergulhado num véu de amarguras atrozes. Nunca mais desfrutara
tranqüilidade íntima, sob o peso de suas angústias pungentes. Entretanto,
os ensinamentos do Irmão Marinho, suas considerações e suas preces,
proporcionavam-lhe intraduzível esperança. Figurou-se-lhe que bastava
aquele instante breve para que pudesse reerguer a confiança num futuro
espiritual, pleno de realidades divinas. Sem poder explicar a causa da sua
emotividade, começou a chorar silenciosamente, como se somente naquele
instante houvesse afeiçoado, de fato, o coração às belezas imensas do
Cristianismo. Terminadas as interpretações e as preces do dia, enquanto
a multidão se retirava comovida, Célia deixara-se ficar no mesmo ponto, sem
saber que norma adotar naquelas circunstâncias. No íntimo, contudo,
agradecia a Deus a graça sublime de surpreender o espírito paterno tocado
de suas luzes divinas, suplicando ao Senhor permitisse ao seu coração filial
receber a necessária inspiração dos seus augustos mensageiros. Na quase
imobilidade de suas conjeturas, naquele momento grave do seu destino, foi
despertada pela voz de Helvídio Lucius que se aproximara, exclamando :
- Irmão Marinho, sou um pecador desencantado do mundo, que
vem até aqui atraído por vossas virtudes sacrossantas. Venho de longe e
bastou um momento de contacto com a vossa palavra e ensinamentos para
que me reconfortasse um pouco, experimentando mais fé e mais
esperança. Desejava falar-vos... A noite, contudo, não tarda e temo
aborrecer-vos...
A humildade dolorida daquelas palavras dera à jovem cristã uma
idéia perfeita de todos os tormentos que haviam aniquilado o coração
paterno.
Helvídio Lucius já não apresentava aquele porte ereto e firme que o
caracterizava como legítimo cidadão do Império e da sua época. Os lábios
tranqüilos, de outrora, ajustavam-se num ricto de tristeza e angústia
indefiníveis. Os cabelos estavam completamente brancos, como se um
inverno implacável e rijo lhe houvesse despejado na cabeça um punhado de
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
neve indestrutível. Os olhos, aqueles olhos que tantas vezes lhe
patentearam uma energia impulsiva e orgulhosa, eram agora melancólicos,
espraiando-se com humildade sincera por toda parte, ou dirigindo-se com
expressões súplices para o Alto, como se de há muito estivessem
mergulhados nas mais angustiosas rogativas.
Célia compreendeu que uma tempestade dolorosa e inflexível
havia desabado sobre a alma paterna, para que se pudesse realizar aquela
metamorfose.
- Meu amigo - murmurou de olhos úmidos -, rogo a Deus que se
não dissipem as vossas impressões primeiras e é em seu nome que vos
ofereço a minha choupana humilde! Se vos apraz, ficai comigo, pois terei
grande júbilo com a vossa presença generosa!...
Helvídio Lucius aceitou o delicado oferecimento, enxugando uma
lágrima.
E foi com enorme surpresa que reparou no casebre onde vivia,
conformado, o irmão dos infelizes.
Em poucos instantes o Irmão Marinho arranjou-lhe um leito
humilde e limpo, obrigando-o a repousar. Guardando nalma uma alegria
santa, a jovem se movia de um lado para outro e não tardou levasse ao
tribuno surpreso um caldo substancioso e um copo de leite puro, que lhe
confortaram o organismo. Depois, foram os remédios caseiros manipulados
por ela mesma, com satisfação intraduzível.
A noite caíra de todo com o seu cortejo de sombras, quando o
Irmão Marinho se assentou à frente do hóspede, encantado e comovido com
tantas provas de carinhoso desvelo.
Falaram então de Jesus, do Evangelho, casando harmônicas as
opiniões e os conceitos acerca do Cordeiro de Deus e da exemplificação de
sua vida.
De vez em quando, o tribuno contemplava o interlocutor, com o
mais acentuado interesse, guardando a impressão de que o conhecera
alhures.
Por fim, dentro do profundo bem-estar que sentia renascer-lhe
no íntimo, Helvídio Lucius ponderou:
- Cheguei ao Cristianismo qual náufrago, após as mais ásperas
derrotas do mundo ! Sinto que o Divino Mestre endereçou à minha alma
todos os apelos suaves da sua misericórdia; no entanto, eu estava surdo e
cego, no âmbito de lamentáveis desvarios. Foi preciso que uma hecatombe
desabasse em meu lar e sobre o meu destino, para que no fragor da
tempestade destruidora, conseguisse romper as muralhas que me
separavam da nítida compreensão dos novos ideais florescentes para a
mentalidade e o coração do mundo.
Jamais confiei a alguém os episódios pungentes da minha vida,
mas sinto que vós, apóstolo de Jesus e seguidor do Mestre na
exemplificação do bem, podereis compreender minha existência, ajudandome
a raciocinar evangelicamente, para que cumpra os meus deveres
nestes últimos dias de atividade terrena. Nunca, em parte alguma, deixei de
experimentar uma tal ou qual dúvida que me desconsola; aqui, porém, sem
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
saber porquê, experimento uma tranqüilidade desconhecida. Julgo dever
confiar em vós, como em mim mesmo !. Há muito, sinto necessidade de
um conforto direto, e somente a vós confio as minhas chagas, na
expectativa de um auxílio carinhoso e fraterno!.
- Se isso vos faz bem, meu amigo - obtemperou a jovem, enxugando
uma lágrima discreta - podeis confiar no meu coração, que rogará ao Senhor
pela vossa paz espiritual em todos os transes da vida...
E enquanto o Irmão Marinho lhe acariciava a cabeça encanecida
prematuramente, atormentado por dolorosas recordações, Helvídio Lucius,
sem saber explicar o motivo de sua confiança, começou a contar-lhe o
penoso romance da sua existência. De vez em quando, a voz tornava-se
abafada por uma que outra lembrança ou episódio. A cada pausa o
interlocutor, comovido, respondia ao seu estado dalma com essa ou aquela
advertência, traindo as próprias reminiscências. O tribuno surpreendia-se
com isso, mas atribuía o fato às faculdades divinatórias, presumíveis no
apóstolo do amor e da caridade pura, que tinha à sua frente.
Depois de longas horas de confidência, em que ambos choravam
silenciosamente, Helvídio concluía:
- Aí tem, Irmão Marinho, minha história amargurada e triste. De
todas as tragédias lembradas, guardo profundo remorso, mas o que mais me
acabrunha é lembrar que fui um pai injusto e cruel. Um pouco mais de calma
e um pouco menos de orgulho, teria chegado à verdade, afastando os gênios
sinistros que pesavam sobre o meu lar e o meu destino!... Relembrando
esses acontecimentos, ainda hoje me sinto transportado ao dia terrível em
que expulsei do coração a filha querida. Desde que me certifiquei da sua
inocência, procuro-a, ansioso, por toda parte; parece-me, contudo, que
Deus, punindo meus atos condenáveis, entregou-me aos supremos martírios
morais, para que eu compreendesse a extensão da falta. É por isso, Irmão,
que me sinto réu da justiça divina, sem consolação e sem esperança. Tenho
a impressão de que, para reparar meu grande crime, terei de andar como o
judeu errante da lenda, sem repouso e sem luz no pensamento. Pela minha
exposição sincera e amargurada, compreendeis, agora, que sou um pecador
desiludido de todos os remédios do mundo. Por isso, resolvi apelar para
a vossa bondade, a fim de me proporcionardes um lenitivo. Vós que
tendes iluminado tantas almas, apiedai-vos de mim que sou um náufrago
desesperado!
As lágrimas abafaram-lhe a voz.
Célia também o ouvia de olhos molhados, sentindo-se tocada em
todas as fibras do seu coração de filha meiga e afetuosa.
Desejou revelar-se ao pai, beijar-lhe as mãos encarquilhadas,
dizer-lhe do seu júbilo em reencontrá-lo no mesmo caminho que a
conduzia para Jesus... Quis afirmar que o amara sempre e olvidara o
passado de prantos dolorosos, a fim de poderem ambos elevar-se para o
Senhor, na mesma vibração de fé, mas uma força misteriosa e incoercível
paralisava-lhe o ímpeto.
Foi assim que murmurou carinhosamente :
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
- Meu amigo, não vos entregueis de todo ao desânimo e ao
abatimento! Jesus é a personificação de toda a misericórdia e há-de,
certamente, confortar-vos o coração ! Creiamos e esperemos na sua
bondade infinita!...
- Mas - obtemperava Helvídio Lucius na sua sinceridade dolorosa -
eu sou um pecador que se julga sem perdão e sem esperança!
- Quem não o seria neste mundo, meu amigo? - exclamou Célia
cheia de bondade. - Porventura, não seria destinada a todos os homens a
lição da "primeira pedra"? Quem poderá dizer "nunca errei", no oceano de
sombras em que vivemos? Deus é o juiz supremo e na sua misericórdia
inexaurível não pode cobrar aos filhos um débito inexistente!... Se vossa
filha sofreu, houve, em tudo, uma lei de provações, que se cumpriu
conforme com a sabedoria divina!...
- No entanto - gemeu o tribuno em voz amarga -, ela era boa e
humilde, carinhosa e justa! Além do mais, sinto que fui impiedoso, pelo
que, experimento agora as mais rudes acusações da própria
consciência!...
E como se quisesse transmitir ao interlocutor a imagem exata das
suas reminiscências, o filho de Cneio Lucius acrescentou, enxugando as
lágrimas :
- Se a vísseis, Irmão, no dia fatídico e doloroso, concordaríeis,
certo, em que minha desventurada Célia era qual ovelha imaculada a
caminhar para o sacrifício. Não poderei esquecer o seu olhar pungente, ao
afastar-se do aprisco doméstico, ao segregar-se do santuário da família,
honrado sempre pela sua alma de menina com os atos mais nobres de
trabalho e renúncia! Recordando esses fatos, vejo-me qual tirano que,
depois de se abandonar a toda sorte de crimes, andasse pelo mundo
mendigando a própria justiça dos homens, de modo a experimentar o
desejado alívio da consciência!
Ouvindo-lhe as palavras, a jovem chorava copiosamente, dando
curso às suas próprias reminiscências, eivadas de dor e de amargura.
- Sim, Irmão - continuou o tribuno angustiado -, sei que chorais
pelas desventuras alheias; sinto que as minhas provas tocaram igualmente o
vosso coração. Mas, dizei-me!... que deverei fazer para encontrar, de novo, a
filha bem-amada? Será que também ela tenha buscado o Céu sob o látego
das angústias humanas? Que fazer para beijar-lhe, um dia, as mãos, antes
da morte?
Essas perguntas dolorosas encontravam tão somente o silêncio da
jovem, que chorava comovida. Breve, porém, como tomada de súbita
resolução, acentuou:
- Meu amigo, antes de tudo precisamos confiar plenamente em
Jesus, observando em todos os nossos sofrimentos a determinação sagrada
da sua sabedoria e bondade infinitas! Não desprezemos, porém, o tempo,
a lastimar o passado. Deus abençoa os que trabalham e o Mestre prometeu
amparo divino a quantos laborem no mundo, com perseverança e boa
vontade!... Se ainda não reencontrastes a filhinha carinhosa, é necessário
dilatar os laços do sangue, a fim de que eles se conjuguem nos laços
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
eternos e luminosos da família espiritual. Deus velará por vós, desde que,
para substituir o afeto da filha ausente, busqueis estender o coração a todos
os desamparados da sorte... Há milhares de seres que suplicam uma
esmola de amor aos semelhantes ! Debalde mostram os braços nus aos que
passam, felizes, pelos caminhos floridos de esperanças mundanas.
Conheço Roma e o turbilhão de suas misérias angustiosas. Ao
lado das residências nobres das Carinas, dos edifícios soberbos do
Palatino e dos bairros aristocráticos, há os leprosos da Suburra, os cegos
do Velabro, os órfãos da Via Nomentana, as famílias indigentes do
Trastevere, as negras misérias do Esquilino !.. Estendei vosso braço às
filhas dos pais anônimos, ou dos lares desprotegidos da fortuna !...
Abracemo-nos com os miseráveis, repartamos nosso pão para mitigar a
fome alheia ! Trabalhemos pelos pobres e pelos desgraçados, pois a
caridade material, tão fácil de ser praticada, nos levará ao conhecimento
da caridade moral que nos transformará em verdadeiros discípulos do
Cordeiro. Amemos muito !.. Todos os apóstolos do Senhor são unânimes
em declarar que o bem cobre a multidão de nossos pecados! Toda vez que
nos desprendemos dos bens deste mundo, adquirimos tesouros do Alto,
inacessíveis ao egoísmo e à ambição que devoram as energias terrestres.
Convertei o supérfluo de vossas possibilidades financeiras em pão para os
desgraçados. Vesti os nus, protegei os orfãozinhos! Todo o bem que
fizermos ao desamparado constitui moeda de luz que o Senhor da Seara
entesoura para nossa alma. Um dia nos reuniremos na verdadeira pátria
espiritual, onde as primaveras do amor são infindáveis. Lá, ninguém nos
perguntará pelo que fomos no mundo, mas seremos inquiridos sobre as
lágrimas que enxugamos e as boas ou más ações que praticamos na
estância terrena.
E, de olhos fixos, como a vislumbrar paisagens celestes,
prosseguia :
- Sim, há um reino de luz onde o Senhor nos espera os
corações! Façamos por merecer-lhe as graças divinas. Os que praticam o
bem são colaboradores de Deus no infinito caminho da vida... Lá, não mais
choraremos em noite escura, como acontece na Terra. Um dia perene
banhará a fronte de todos os que amaram e sofreram nas estradas
espinhosas do mundo. Harmonias sagradas vibrarão nos Espíritos eleitos
que conquistarem essas moradas cariciosas !... Ah ! que não faremos nós
para alcançar esses jardins de delícia, onde repousaremos nas
realizações divinas do Cordeiro de Deus ? ! Mas, para penetrar essas
maravilhas, temos de início o trabalho de aperfeiçoamento interior,
iluminando a consciência com a exemplificação do Divino Mestre!
Havia no olhar do Irmão Marinho um clarão sublimado, como se
os olhos mortais estivessem descansando nesse país da luz, formoso e
fulgurante, que as suas promessas evangélicas descreviam. Lágrimas
serenas deslizavam-lhe dos olhos calmos, selando a verdade das suas
palavras.
Helvídio Lucius chorava, sensibilizado, sentindo que as sagradas
emoções da jovem lhe invadiam igualmente o coração, num divino contágio.
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
- Irmão Marinho - disse a custo -, pressinto a realidade luminosa
dos vossos conceitos e por isso trabalharei indefessamente, a fim de obter a
precisa paz de consciência e poder meditar na morte, com a beleza de
vossas concepções. Praticarei o bem, doravante, sob todos os aspectos e
por todos os meios ao meu alcance, e espero que Jesus se apiede de mim.
- Certo, o Divino Mestre nos ajudará - concluiu a jovem,
acariciando-lhe os cabelos brancos.
A noite ia adiantada e Célia, deixando o coração paterno banhado
de consoladoras esperanças, recolheu-se a um mísero cubículo, onde,
desfeita em pranto, rogou a Cneio Lucius a esclarecesse naquele transe
difícil, por isso que o afeto filial se apossava de suas fibras mais sensíveis.
Sorrindo piedoso e calmo, o Espírito do velhinho correspondeu-lhe
às súplicas, dizendo do seu intenso agradecimento a Deus, por ver o filho
entre as luzes cristãs, mas advertindo que a revelação da sua identidade
filial era, naquelas circunstâncias, inaproveitável e extemporânea, e
encarecendo aos seus olhos a delicadeza da situação e as realizações do
porvir.
Fortalecida e encorajada, Célia preparou a primeira refeição da
manhã, que o tribuno ingeriu, sentindo um novo sabor e experimentando
as melhores disposições para enfrentar de novo a vida.
Sabendo da sua antiga predileção pelo ambiente rural, o Irmão
Marinho levou-o a visitar o horto extenso, onde, à custa de seus esforços e
trabalhos ingentes, o mosteiro de Epifânio possuía um verdadeiro parque de
produção sadia e sem preço.
Nos grandes talhões da terra, elevavam-se árvores frutíferas,
cultivadas com esmero, salientando-se as seções de legumes e a zona bem
cuidada onde se alinhavam animais domésticos. Sob as ramagens frondosas
descansavam cabras mansas, a confundirem-se com as ovelhas de lã clara
e macia. Além, pastavam jumentas tranqüilas e, de quando em quando,
nuvens de pombos passavam alto em revoada alegre. Entre as verduras,
brincavam os fios móveis de um grande regato e, em tudo, observava
Helvídio Lucius cuidadosa limpeza, convidando o homem à vida bucólica,
simples e generosa.
De espaço a espaço, encontravam um velhinho humilde ou uma
criança sadia, que o Irmão Marinho saudava com um gesto de ternura e
bondade.
Fundamente impressionado com o que via, o filho de Cneio Lucius
acentuou, comovidamente :
- Este horto maravilhoso dá-me a impressão de um quadro bíblico!
Entre estas árvores respiro o ar balsâmico, como se o campo aqui me
falasse mais intimamente à alma ! Esclarecei-me ! Quais os vossos
elementos de trabalho ? Quanto pagais aos trabalhadores dedicados, que
devem ser os vossos auxiliares?..
- Nada pago, meu bom amigo, cultivo este horto há muitos anos e é
daqui que se abastece o mosteiro, do qual tenho sido modesto jardineiro.
Não tenho empregados. Meus auxiliares são antigos moradores da
vizinhança, que me ajudam graciosamente, quando podem dispor de alguma
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
folga. Os demais, são crianças da minha modesta escola, fundada há mais
de cinco anos para satisfazer as necessidades da infância desvalida, dos
povoados mais próximos !...
- Mas, que segredo haverá nestas paragens - exclamou Helvídio
respirando a longos haustos -, para que a terra se mostre tão dadivosa e
exuberante ?
- Não sei - disse o Irmão dos pobres, com singeleza -, aqui tão
somente amamos muito a terra! Nossas árvores frutíferas nunca são
cortadas, para que recebamos as suas dádivas e as suas flores. Os
cordeiros nos dão a lã preciosa, as cabras e as jumentas o leite nutritivo,
mas não os deixamos matar, nunca. As laranjeiras e oliveiras são as nossas
melhores amigas. As vezes, é à sua sombra que fazemos nossas preces, nos
dias de repouso. Somos, aqui, uma grande família. E os nossos laços de
afeto são extensivos à Natureza.
Fornecendo as explicações que Helvídio aceitava atenciosamente,
enumerava fatos e descrevia episódios de sua observação e experiência
próprias, imprimindo em cada palavra o cunho de amor e simplicidade do
seu espírito.
- Um dia - explicou com um sorriso infantil - observamos que os
cabritos mais idosos gostavam de perseguir os cordeirinhos mansos e
pequeninos. Então, as crianças da escola, recordando que Jesus tudo
obtinha pela brandura do ensinamento, resolveram auxiliar-me na criação
das ovelhas e das cabras, construindo para isso um só redil... Ainda
pequenos, uns e outros, filhos de mães diferentes, eram reunidos em todos
os lugares e, com o amparo dos meninos, levados às nossas preces e aulas
ao ar livre. As crianças sempre acreditaram que as lições de Jesus deviam
sensibilizar os próprios animais e eu as tenho deixado alimentar essa
convicção encantadora e suave. O resultado foi que os cabritos brigões
desapareceram. Desde então o redil foi um ninho de harmonia. Crescendo
juntos, comendo a mesma relva e sentindo sempre a mesma companhia, uns
e outros eliminaram as instintivas aversões!... Por mim, observando essas
lições de cada instante, fico a pensar como será feliz a coletividade humana
quando todos os homens compreenderem e praticarem o Evangelho?...
O tribuno ouviu a historieta na sua radiosa simplicidade, com
lágrimas nos olhos.
Fixando o interlocutor, Helvídio Lucius acentuou, deixando
transparecer um brilho novo no olhar:
- Irmão Marinho, estou compreendendo, agora, a exuberância da
terra e a maravilha da paisagem. Todos esses feitos são um milagre do
devotamento com que vindes consagrando todas as energias à terra
benfazeja. Tendes amado muito e isso é essencial. Por muitos anos, fui
também homem do campo, mas, até agora, venho explorando o solo apenas
com o interesse comercial. Agora compreendo que, doravante, devo amar
também a terra, se algum dia regressar à lavoura. Hoje entendo que tudo no
mundo é amor e tudo exige amor.
A jovem ouvia as considerações paternas, enlevada nas suas
esperanças.
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
Três dias ali ficou Helvídio Lucius, a edificar-se naquela paz
inalterável. Horas de tranqüilidade suave, em que todas as amarguras
terrestres como por encanto se lhe aquietavam no íntimo do coração
entristecido.
Por vezes, Célia teve ímpetos de lhe comunicar as carinhosas
emoções do seu coração filial e, contudo estranha força parecia coarctar-lhe
a vontade, dando-lhe a entender que ainda era prematura qualquer
revelação.
Por fim, ao despedir-se, mais fortalecido e confortado, o tribuno
falou :
- Irmão Marinho, parto com o espírito tocado de novas disposições
e de outras energias para enfrentar a luta e as tristes expiações que me
competem na Terra!.. Rogai a Deus por mim, pedi a Jesus que eu tenha o
ensejo e a força de pôr em prática os vossos conselhos. Volto a Roma com a
idéia do bem a cantar-me nalma. Seguirei vossas sugestões em todos os
passos e, nesse escopo, é bem possível que o Senhor satisfaça as
minhas justas aspirações paternas. Logo que possa, regressarei para
abraçar-vos !... Jamais poderei esquecer o bem que me fizestes !
Ela tomou-lhe, então, a destra e beijou-a de olhos úmidos,
enquanto o tribuno considerava, comovido, aquele gesto de humildade.
Ansiosamente, deteve-se a contemplar o carro que o transportava,
de volta a Alexandria, até que ele se sumisse ao longe, numa nuvem de pó.
Fechando-se então, no seu cubículo, abriu uma pequena caixa de
madeira trazida de Minturnes, na qual guardava a túnica com que saíra de
casa no dia amargurado do seu exílio. Entre as poucas peças, repousava a
pérola que o pai lhe trouxera da Fócida, única jóia que lhe ficara, depois de
totalmente espoliada pela criminosa ambição de Hatéria. E revirava nas
mãos, entre lágrimas, os objetos antigos e simples de suas cariciosas
lembranças.
Elevando-se, em prece a Deus, rogou não lhe faltassem as energias
indispensáveis ao cumprimento integral de sua missão.
Quanto a Helvídio Lucius, de regresso, sentia-se como que
banhado numa corrente de pensamentos novos.
O Irmão Marinho, a seus olhos, era um símbolo perfeito dos dias
apostólicos, quando os seguidores de Jesus operavam no mundo, em seu
nome.
Desembarcando em Nápoles, dirigiu-se para Cápua, onde foi
recebido pelos filhos com excepcionais demonstrações de carinho.
Caio e a esposa exultaram com as suas melhoras físicas e
espirituais, apenas estranhando que regressasse do Egito com tantas idéias
de caridade e beneficência.
Depois de esclarecê-los, quanto ao Irmão Marinho e à fascinação
que ele exercera no seu espírito, Helvídio Lucius acentuou :
- Filhos, sinto que não poderei viver muito tempo e quero morrer de
conformidade com a doutrina que abracei de coração. Voltarei agora a
Roma e tratarei de preparar o porvir espiritual, conforme as minhas novas
concepções. Espero que me não contrariem os últimos desejos. Dividirei
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
nossos bens e a terça parte ser-lhes-á entregue em tempo oportuno. O
restante, buscarei movimentar de acordo com a minha crença nova. Conto
com o auxílio de ambos, neste particular.
No íntimo, Caio e Helvídia atribuíram a súbita transformação
paterna a sortilégio dos cristãos, que, a seu ver, teriam abusado da sua
situação de fraqueza e abatimento, em face dos muitos abalos morais. Nada
obstante, com a generosidade que a caracterizava, a esposa de Fabrícius
acentuou :
- Meu pai, não ouso discutir vossos pontos de fé, pois, acima de
qualquer controvérsia religiosa, estão o nosso amor e o vosso bem-estar!
Procedei como melhor vos prouver. Financeiramente, não há preocuparvos
com o nosso futuro. Caio é trabalhador e eu não tenho grandes
pretensões. Além do mais, os deuses velarão sempre por nós, como o têm
feito até agora. Portanto, podereis agir, sempre confiante em nosso afeto e
acatamento às vossas decisões.
Helvídio Lucius abraçou a filha, em sinal de júbilo pela sua
compreensão, enquanto Caio, num sorriso, esboçava o seu assentimento.
Voltando a Roma dos seus dias de triunfo e mocidade, o orgulhoso
patrício estava radicalmente transformado. Seu primeiro ato de verdadeira
conversão a Jesus foi libertar todos os escravos da sua casa,
providenciando solicitamente pelo futuro deles.
Afrontando os perigos da situação política, não fez mistério de
suas convicções religiosas, exaltava as virtudes do Cristianismo nas esferas
mais aristocráticas. Os amigos, porém, o ouviam penalizados. Para os de
sua esfera social, Helvídio Lucius padecia as mais evidentes perturbações
mentais, provenientes da tragédia dolorosa que lhe enchera o lar de um luto
perpétuo e angustioso. O tribuno, todavia, como se prescindisse de todas as
honrarias exigidas pelos de sua condição, parecia inacessível aos conceitos
alheios e, com assombro de todas as suas relações, dispôs da maioria dos
bens patrimoniais em obras piedosas, com as quais os órfãos e as viúvas
se beneficiavam. Seus companheiros humildes da Porta Ápia se regozijaram
com o ardor evangélico de que dava, agora, pleno testemunho, auxiliandolhes
os esforços e defendendo-os publicamente. Não mais se entregou
aos ócios sociais, porquanto, às vezes, pela manhã, era visto no Esquilino
ou na Suburra, no Trastevere ou no Velabro, buscando informações dessa
ou daquela família de indigentes. Não só isso. Visitou os descendentes de
Hatéria, procurou-a no intuito de perdoar-lhe, mas não encontrou sequer
notícias, pois ninguém conhecia o trágico fim da velhinha, ocorrido no
mesmo sentido oculto por ela utilizado para a prática do mal. O tribuno,
todavia, aproveitou a estada em Benevento para ensinar aos membros
daquela família, que se considerava integrada na sua tutela, os métodos
seguidos pelo Irmão Marinho no trato carinhoso da terra. Em seguida, ei-lo
na herdade de Caio Fabrícius, onde assumiu voluntariamente a direção de
numerosos serviços rurais, utilizando aqueles processos que jamais poderia
esquecer, tornando-se amado como um pai pelos que recebiam, de boa
vontade, suas idéias novas e interessantes.
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
Todavia, depois de tantos e benéficos labores, o antigo tribuno
adoeceu, sobressaltando o coração dos filhos e dos amigos.
Assim esteve um mês, combalido e padecente, quando um dia,
melancólico e trêmulo, chamou a filha e lhe disse com a maior ternura:
- Helvídia, sinto que meus dias neste mundo estão contados e
desejava rever o Irmão Marinho, antes de morrer.
Ela lhe fez sentir a inconveniência da viagem, mas o tribuno insistia
com tanto empenho que acabou anuindo, com a condição de fazer-se
acompanhar pelo genro. Helvídio Lucius recusou, porém, alegando não
desejar interromper o ritmo doméstico. Resolveram então, que seguisse
acompanhado por dois servos de confiança, na previsão de qualquer
eventualidade.
Sentindo-se melhor com a consoladora perspectiva de voltar a
Alexandria e rever os sítios onde lograra tanto conforto para o espírito
abatido, o tribuno preparou-se convenientemente, não obstante os temores
da filha, que lhe beijou as mãos enternecida, de coração pressago, quando o
viu partir.
Helvídio Lucius estreitou-a nos braços com um olhar intraduzível,
contemplando em seguida a paisagem rural, melancolicamente, como se
quisesse guardar na retina um quadro precioso, observado pela última vez.
Caio e sua mulher, a seu turno, não conseguiram ocultar as
lágrimas afetuosas.
Com o espírito de resolução que o caracterizava, o filho de Cneio
Lucius não se deu conta dos temores e inquietações dos filhos, partindo
serenamente, seguido pelos dois servos de Caio Fabrícius, que o não
abandonavam um só instante.
Contudo, antes que a embarcação aproasse a Alexandria ele
começou a sentir a recrudescência do seu mal orgânico. A noite, não
conseguia forrar-se à dispnéia inflexível e, durante o dia, sentia-se tomado
de profunda fraqueza.
Fazia mais de um ano que conhecera de perto o Irmão Marinho.
Um ano mais, de trabalhos incessantes ao serviço da caridade evangélica. E
Helvídio Lucius, que se deixara fascinar pelo espírito carinhoso do irmão
dos infortunados e humildes, não queria morrer sem lhe demonstrar que
aproveitara as lições sublimes. Não sabia explicar a simpatia infinita que o
monge lhe despertara. Sabia, tão somente, que o amava com arroubos
paternais. Assim, vibrando de júbilo por haver aplicado os seus
ensinamentos com dedicação e destemor, aguardava ansioso o instante de
revê-lo e cientificá-lo de todos os seus feitos, que, embora tardios, lhe
haviam acalmado extraordinariamente o coração.
De Alexandria ao mosteiro, viajou numa liteira especial, com o
conforto possível. Ainda assim, chegou ao destino grandemente
combalido.
O Irmão Marinho, por sua vez, estava vivendo os derradeiros dias
do seu apostolado. Os olhos se lhe haviam tornado mais fundos e, no
rosto, pairava uma expressão dolorosa e resignada, como se tivesse
absoluta certeza do próximo fim.
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
O reencontro de ambos foi uma cena comovedora e tocante,
porque Célia também esperava ansiosa o coração paterno, crente de que, em
breve, partiria ao encontro dos entes queridos que a precederam nas
sombras do sepulcro. Havia meses, interrompera as prédicas porque
todos os esforços físicos lhe produziam hemoptises. Todavia, os estudos
evangélicos continuavam sempre. Os Irmãos do mosteiro se incumbiram
de prosseguir na tarefa sagrada, e os velhos e as crianças substituíam-na
nos serviços do horto, onde as árvores se cobriam de flores novamente.
Foi debalde que Epifânio, então tocado pelos atos de sacrifício e
humildade daquela alma generosa, tentou levá-la para um aposento
confortável e lavado de Sol, no interior do mosteiro, a fim de lhe atenuar os
padecimentos. Ela preferiu a casinhola singela do horto, fazendo questão
de ficar no insulamento das suas meditações e das suas preces, convicta
de que o pai voltaria e desejando revelar-se-lhe, antes de morrer.
Era quase noite fechada quando o patrício lhe bateu à porta,
atormentado por singulares padecimentos.
Recebeu-o com intenso júbilo, e, embora fraquíssima, providenciou
a acomodação imediata dos servos em singela dependência distante, logo
voltando ao interior, onde Helvídio a esperava aflito, dado o agravo súbito de
todos os seus males.
Debalde lhe trouxe a jovem os recursos da sua medicina caseira,
porque, de hora a hora, o tribuno experimentava a dispnéia, cada vez mais
intensa, enquanto o coração lhe pulsava em ritmo precipitoso..
A noite ia adiantada quando Helvídio Lucius, fazendo a filha sentarse
junto dele, murmurou com dificuldade :
- Irmão Marinho... não cuides mais do meu corpo... Tenho a
impressão de estar vivendo os últimos instantes... Guardava o secreto
desejo de morrer aqui, ouvindo as vossas preces, que me ensinaram a amar
a Jesus... com mais carinho..
Célia começou a chorar amargamente, percebendo a realidade
dolorosa.
- Chorais ? ?.. sereis sempre o irmão... dos infelizes e desditosos...
Não me esqueçais nas vossas orações...
E, lançando à filha um olhar inolvidável e triste, continuava na voz
reticenciosa da agonia:
- Quis voltar para dizer-vos que procurei pôr em prática as vossas
lições sublimes. Sei que outrora fui um perverso, um orgulhoso... Fui
pecador, Irmão, vivia longe da luz e... da verdade. Mas... desde que me
fui daqui, tenho procurado proceder conforme me ensinastes... Dispus da
maior parte dos bens em favor dos pobres e dos mais desfavorecidos da
sorte... Procurei proteger as famílias desventuradas do Trastevere,
busquei os órfãos e as viúvas do Esquilino... Proclamei minha crença nova
entre todos os amigos que me ridiculizaram... Doei uma casa aos
companheiros de fé, que se reúnem perto da Porta Apia... Busquei todos
os meus inimigos e lhes pedi perdão para poder repousar o pensamento
atormentado... Permanecendo muitos meses na herdade de meus filhos,
ensinei o Cristianismo aos escravos, dando-lhes notícias do vosso horto,
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
onde a terra recebe a mais elevada cooperação de amor... Então, via que
todos trabalhavam como me ensinastes... Em cada moeda que oferecia aos
desgraçados, eu vos via abençoando o meu gesto e a minha
compreensão... Não tenho coragem de me dirigir a Jesus... Sinto-me fraco e
pequenino diante da sua grandeza... Pensava assim em vós, que
conheceis a dolorosa história da minha vida... Pedireis por mim ao Divino
Mestre, pois as vossas orações devem ser ouvidas no Céu...
Fizera uma pausa na exposição dolorosa, enquanto a jovem se
mantinha em silêncio, orando com lágrimas.
Sentando-se a custo, porém, o patrício tomou-lhe a destra e,
fixando-lhe os olhos percucientes, continuou em voz entrecortada a revelar
as suas derradeiras esperanças e desejos:
- Irmão Marinho, tudo fiz com a mesma aspiração paterna de
encontrar minha filha no plano material... Buscando os pobres e
desamparados da sorte, muitas vezes julguei encontrá-la, restituída ao meu
coração... Desde que me fiz adepto do Senhor, creio firmemente na outra
vida... Creio que encontrarei além do sepulcro todos os afetos que me
antecederam no túmulo e quisera levar à minha companheira a certeza de
haver reparado os erros do passado doloroso... Minha esposa foi sempre
ponderada e generosa e eu desejava levar-lhe a notícia... de haver reparado
os impulsos doutros tempos, quando não sentia Jesus no coração...
E como se desejasse mostrar o seu último desencanto, o
moribundo concluía, depois de uma pausa:
- Entretanto... Irmão... o Senhor não me considerou digno dessa
alegria... Esperarei, então, o seu breve julgamento, com o mesmo remorso e
com o mesmo arrependimento...
Ante aquele ato de humildade suprema e de suprema esperança no
Senhor Jesus, o Irmão Marinho levantou-se e, fitando-o de olhos úmidos
e brilhantes, exclamou :
- Vossa filha aqui está, esperando a vossa vinda!... Haveis de
reconhecer que Jesus ouviu as nossas súplicas !..
Helvídio despediu um olhar penetrante, cheio de amargura e de
incredulidade, enquanto, pelas faces pálidas, lhe escorria copioso o suor da
agonia.
- Esperai ! - disse a jovem num gesto carinhoso.
E volvendo rápida ao interior, desfez-se do burel, e vestiu a
velha túnica com que se ausentara do lar no momento crítico do seu
doloroso destino, colocando ao peito a pérola da Fócida que o pai lhe
ofertara na véspera do angustioso acontecimento. E dando aos cabelos o
seu penteado antigo, penetrou no quarto ansiosamente, enquanto o
moribundo verificava a sua metamorfose, assomado de espanto.
- Meu pai ! meu pai !... - murmurou enlaçando-lhe o busto, com
ternura, como se naquele instante conseguisse realizar todas as
esperanças da sua vida.
Mas, Helvídio Lucius, com a fronte empastada de álgido suor, não
teve forças para externar a alegria íntima, colhido de surpresa e assombro
indefiníveis. Quis abraçar-se à filha idolatrada, beijar-lhe as mãos e pedir-lhe
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
perdão, na sua alegria suprema. Desejava ter voz para dizer do júbilo que
lhe dominava o coração paterno, inquirindo-a e expondo-lhe os seus
sofrimentos inenarráveis. A alegria intensa havia rompido, porém, as suas
derradeiras possibilidades verbais. Apenas os olhos, percucientes e lúcidos,
refletiam-lhe o estado dalma, dando conta da sua emoção indescritível.
Lágrimas silenciosas começaram a rolar-lhe pelas faces descarnadas,
enquanto Célia o osculava, murmurando ternamente :
- Meu pai, do seu reino de misericórdia Jesus ouviu as nossas
preces ! Eis-me aqui. Sou vossa filha !... Nunca deixei de vos amar !...
E como se quisesse identificar-se por todos os modos aos olhos
paternais, no instante supremo, acrescentava:
- Não me reconheceis? Vede esta túnica! É a mesma com que saí
de casa no dia doloroso... Vedes esta pérola? É a mesma que me destes na
véspera de nossas provações angustiosas e rudes... Louvado seja o Senhor
que nos reúne aqui, nesta hora de dor e de verdade. Perdoai-me se fui
obrigada a adotar uma indumentária diferente, a fim de enfrentar a minha
nova vida! Precisei desses recursos para defender-me das tentações e
furtar-me à concupiscência dos homens inferiores !... Desde que saí do lar,
tenho empregado o tempo em honrar o vosso nome... Que desejais vos diga
ainda, por demonstrar minha afeição e meu amor?..
Mas, Helvídio Lucius sentia que misteriosa força o arrebatava do
corpo; uma sensação desconhecida lhe vibrava no íntimo, envolvia-o
numa atmosfera glacial.
Ainda tentou falar, mas as cordas vocais estavam hirtas. A língua
paralisara na boca intumescida. Todavia, atestando os profundos
sentimentos que lhe vibravam no coração, vertia copiosas lágrimas,
envolvendo a filha adorada num olhar amoroso e indefinível. Esboçou um
gesto supremo, desejando levar as mãos de Célia aos lábios, mas foi ela
quem, adivinhando-lhe a intenção, tomou-lhe as mãos inertes, frias, e
osculou-as longamente. Depois, beijou-lhe a fronte, tomada de imensa
ternura !...
Ajoelhando-se em seguida, rogou ao Senhor, em voz alta,
recebesse o espírito generoso do pai, no seu reino de amor e de bondade
infinita !...
Com lágrimas de afeto e de agradecimento ao Altíssimo, cerrou-lhe
as pálpebras no derradeiro sono, observando que a fisionomia do tribuno
estava, agora, nimbada de paz e serenidade.
Por instantes permaneceu genuflexa e viu que o ambiente se
enchera de numerosas entidades desencarnadas, entre as quais se
destacavam os perfis de sua mãe e do avô, que ali permaneciam de
semblante calmo e radiante, estendendo-lhe os braços generosos.
Figurou-se-lhe que todos os amigos do tribuno estavam presentes
no instante extremo, a fim de lhe escoltar a alma regenerada, aos luminosos
páramos do Cordeiro de Deus.
Aos primeiros clarões da aurora, deu as necessárias providências,
solicitando a presença dos servos do morto, que acorreram pressurosos
ao chamado.
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
Novamente reintegrada no seu hábito de monge, Célia encaminhouse
ao mosteiro e comunicou o fato à autoridade superior, rogando
providências.
Todos, inclusive o próprio Epifânio, auxiliaram o Irmão Marinho na
solução do assunto.
Os serviçais de Caio Fabrícius explicaram, porém, que seus
patrões, em Cápua, estavam certos de que o viajante não poderia resistir aos
percalços da viagem mais que penosa, e os haviam esclarecido sobre as
personalidades a quem se deveriam dirigir em Alexandria, para que os
despojos voltassem à Campânia, caso o tribuno falecesse.
E assim, de manhã bem cedo, um grupo de quatro homens,
inclusive os dois servos aludidos, transportavam o cadáver de Helvídio
Lucius para a cidade próxima.
Encostada à porta da sua choupana e ante o olhar dos irmãos do
mosteiro que a acompanhavam, Célia contemplou a liteira fúnebre até
que desaparecesse ao longe, entre nuvens de pó.
Quando o grupo desapareceu nas derradeiras curvas da estrada,
Célia sentiu-se só e abandonada, como nunca. A revivescência da afeição
paterna, em tais circunstâncias, lhe havia trazido amargurosa tristeza.
Jamais a angústia do mundo se apossara tão fortemente de sua alma.
Buscou o refúgio da prece e, todavia, figurou-se-lhe que as mais pesadas
sombras lhe haviam invadido o ser. Não tinha desesperado o coração, nem
o senso do infortúnio lhe consentia queixumes e lamentações. Mas, uma
saudade singular dos seus mortos bem-amados enchia-lhe, agora, o
coração, de um como filtro misterioso de indiferentismo para o mundo.
Começou a fixar o pensamento em Jesus, mas, em breve, as rosas de
sangue começaram a brotar de sua boca, num fluxo contínuo.
Alguns irmãos amigos acercaram-se, enquanto Epifânio, tocado no
mais fundo do coração, mandava transferi-la para o mosteiro com a maior
solicitude. De nada valeram, porém, os recursos médicos e as supremas
dedicações da extrema hora.
As hemoptises se prolongavam, assustadoramente, sem
ensejarem qualquer esperança.
Na sua velhice cheia de unção e arrependimento, o superior tudo
envidava para restituir a saúde ao jovem monge, cujas virtudes se
impuseram como símbolo de amor e de trabalho...
Dois dias se passaram, de angústia infinita.
Durante aquelas horas torturantes, Epifânio deu ordem para que
as visitas fossem recebidas. Pela primeira vez, as portas do convento se
abriram para os populares e os velhinhos das redondezas se aproximaram
do Irmão Marinho, cheios de lágrimas sinceras.
Um a um, acercaram-se da jovem, beijando-lhe as mãos trêmulas e
descarnadas.
- Irmão Marinho - dizia um deles -, tu não deverias morrer !.. Se
partires agora, quem ensinará o bom caminho às nossas filhas?
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
- E quem ensinará o Evangelho aos nossos netos? - clama um
outro, disfarçando as lágrimas.
Mas a jovem, de olhar firme e sereno, exclamava com bondade :
- Ninguém morre, meus irmãos! Não nos prometeu Jesus a vida
eterna?... Para cada qual, tinha um olhar de ternura e a luz cariciosa de um
sorriso.
Na noite imediata agravaram-se de maneira atroz os seus
padecimentos.
Compreendendo que o fim se aproximava, o velho Epifânio
perguntou-lhe algo, quanto aos seus últimos desejos, e ela, erguendo para o
superior o olhar sereno, acentuou :
- Meu pai, rogo que me perdoeis se alguma vez vos ofendi por atos
ou por palavras!... Orai por mim, para que Deus tenha compaixão de minha
alma... e se é permitido pedir-vos alguma coisa... desejo ver as crianças da
escola, antes de morrer...
Epifânio ocultou as lágrimas levando as mãos ao rosto, e, antes do
amanhecer, três irmãos saíram pelos povoados mais próximos, a fim de
reunir os pequeninos, por satisfazer os últimos desejos da agonizante.
Depois do meio-dia, todas as crianças da escola penetraram o
quarto, respeitosas.
O Irmão Marinho, contudo, recostado nas almofadas, enviava-lhes
um sorriso bom e compassivo, embora o peito lhe arfasse penosamente.
Num gesto extremo chamou-as a si, inquirindo a cada uma sobre
os estudos, o trabalho, a escola...
Os meninos, mal percebendo a hora dolorosa, sentiam-se à
vontade, enquanto Célia lhes sorria.
- Irmão Marinho - dizia um pequenote de olhos graves -, todos nós,
lá em casa, temos pedido a Deus pelas vossas melhoras !
- Obrigado, meu filho !... - dizia a agonizante, fazendo o possível
por dissimular os sofrimentos.
Em seguida, era uma pequenina interessante no seu vestidinho
pobre, a balbuciar em tom discreto :
- Irmão Marinho, pai Epifânio não deixou que eu plantasse a
roseira ao pé do redil e me repreendeu asperamente.
- Que tem isso, filhinha?... Pai Epifânio tem razão... o redil não é
lugar das flores... Plantarás a roseira nova perto da janela. Lá ela receberá
mais Sol... E tu darás ao pai Epifânio a primeira flor..
- Olha, Irmão - repetia outro pequenito de cabelos despenteados -,
as ovelhas esta noite nos deram dois novos cordeirinhos.
- Tratarás deles, meu filho !... - dizia a jovem com dificuldade.
- Irmão - exclamava outro menino -, tenho rogado a Jesus que te
devolva a saúde preciosa.
- Meu filho... - dizia a agonizante -, nós não devemos pedir ao
Senhor isso ou aquilo, e sim a compreensão de sua vontade que é soberana
e justa..
Mas, em face da inquietude infantil que a rodeava, exclamou,
desejando concentrar as derradeiras energias para a prece:
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
- Filhinhos... cantem... para mim...
Entre as crianças deu-se ligeiro tumulto, quanto à escolha do hino
a ser cantado.
Foi, então, que uma pequenita lembrou que o Sol se preparava
para mergulhar no horizonte, fazendo sentir aos companheiros que, nessa
hora, o Irmão Marinho preferira sempre o "Hino do Entardecer", ensinado a
todos com carinho fraternal.
Então, todos, de mãos dadas, rodearam o leito, no qual a enferma
oferecia a Deus os seus derradeiros pensamentos, enquanto todos os
irmãos da comunidade observavam, chorando, a distância, a cena
comovedora e dolorosa.
Mais alguns minutos e elevaram-se aos céus as notas cristalinas
do cântico singelo:
Louvado sejas, Jesus!
Na aurora cheia de orvalho,
Que traz o dia, o trabalho,
Em que andamos a aprender.
Louvado sejas, Senhor!
Pela luz das horas calmas,
Que adormenta as nossas almas
No instante do entardecer...
O campo repousa em preces,
O céu formoso cintila,
E a nossa crença tranqüila
Repousa no teu amor;
É a hora da tua bênção
Nas luzes da Natureza,
Que nos conduz à beleza
Do plano consolador.
É nesta hora divina,
Que o teu amor grande e augusto
Dá paz à mente do justo,
Alívio e conforto à dor!
Amado Mestre abençoa
A nossa prece singela,
Faze luz sobre a procela
Do coração pecador!
Vem a nós! Do céu ditoso
Ampara a nossa esperança,
Temos sede de bonança,
De amor, de vida e de luz!
Na tarde feita de calma,
Sentimos que és nosso abrigo,
Queremos viver contigo,
Vem até nós, meu Jesus!..
Célia ouvia o hino das crianças, em seus últimos acordes.
Figurou-se-lhe que a sala humilde estava povoada de artistas inimitáveis.
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
Eram todos jovens graciosos e crianças risonhas, que empunhavam
flautas e harpas siderais, alaúdes e timbales divinos. Desejou contemplar os
meninos da sua escola humilde e falar-lhes, mais uma vez, da sua alegria
infinda, mas, ao mesmo tempo, sentiu-se rodeada de seres carinhosos que,
sorridentes, lhe estendiam os braços. Ali estavam seus pais, o venerando
avô, Nestório, Hatéria, Lésio Munácio e a figura encantadora de Ciro, como
que envolta num peplo de neve translúcida... A um gesto da amorável
entidade Cneio Lucius, Ciro avançava estendendo-lhe os braços. Era o
gesto de carinho que o seu coração esperara toda a vida!... Quis falar da sua
felicidade e gratidão ao Senhor dos Mundos, mas, sentia-se exausta, como
se chegasse de uma luta extenuante.
Guardando-lhe a fronte nas mãos, sob a música do carinho, Ciro
lhe dizia de olhos úmidos:
- Ouve, Célia! Este é um dos sublimes cantos de amor, que te
consagram na Terra!
Ela não viu que as crianças ansiosas lhe cobriam de lágrimas as
mãos imóveis e alvas, abraçando ternamente o seu cadáver de neve... A um
só tempo, todos os irmãos do mosteiro se lançaram comovidos para os seus
despojos, ao passo que, no plano invisível, um grupo de entidades amigas
e carinhosas conduzia numa onda de luz e perfumes, aos páramos do
Infinito, aquela alma ditosa de mártir.
VII - NAS ESFERAS ESPIRITUAIS
Prestando as derradeiras homenagens ao Irmão Marinho, os
religiosos do mosteiro conheceram a verdade dolorosa. Só então,
certificaram-se de que o caluniado irmão dos pobres e da infância desvalida
era uma virgem cristã, que exemplificava, entre eles, as mais elevadas
virtudes evangélicas.
Diante do fato imprevisto e passada a comoção do espanto, todos
os monges inclusive Epifânio, se prosternavam humildes, banhados no
pranto da compunção e do arrependimento.
Debalde procuraram investigar a origem e antecedentes da jovem
mártir, para só conservarem da sua pessoa e dos seus feitos imorredoura
lembrança, a fim de poderem, mais tarde, justificar a sua exemplificação
santificante.
Cheio de amargura, o velho superior da comunidade reclamou a
presença de Menênio Túlio e da filha, para que se esclarecesse a pérfida
calúnia, mas, ante o cadáver da virgem cristã e recordando a sua humildade,
Brunehilda perdeu a razão, para sempre.
Nunca mais a figura de Célia foi olvidada pelos religiosos, pelos
crentes, pelos desventurados e pelos aflitos. Convertida em símbolo de
amor e piedade, sua memória centralizou, nos arredores de Alexandria, os
votos e rogativas das almas fervorosas e sinceras.
Mas, acompanhando nossas principais personagens à vida do
além-túmulo, antes de iniciarem novas lutas remissoras, vamos encontrá-las
em grupos dispersos, conforme o seu estado consciencial, às vésperas de
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
regressarem, convocadas ao esforço coletivo nos sagrados institutos da
família.
A exceção de Célia, chamada a um mundo superior, onde lhe foi
concedida a tarefa de velar pela evolução dos seus entes bem-amados, os
demais permaneciam nas esferas mais próximas da Terra, regiões de
trabalho e de luta, buscando cada qual armazenar energias novas para
subseqüentes esforços no plano material.
De todo o grupo, as personalidades de Cláudia Sabina, Lólio
Úrbico, Fábio Cornélio e Silano Plautius eram as que se conservavam nas
regiões mais rasas e mais sombrias, atento o doloroso estado de
consciência que as caracterizava.
Em esferas mais elevadas, Helvídio Lucius junto de quantos lhe
foram familiares, inclusive Ciro, repousavam do trabalho, esforçando-se, em
conjunto, por fixar as bases espirituais, asseguradoras de êxito futuro.
Algumas personagens, como Nestório e Policarpo, faziam
grandes excursões pelos arredores sombrios do planeta, cooperando com
os mensageiros de Jesus, que pregavam a Boa Nova aos espíritos
desalentados e sofredores, levando a efeito o mais sadio aprendizado
evangélico para as lutas do futuro nos ambientes terrenos, onde
prosseguiriam, mais tarde, no abençoado labor de redenção do passado
culposo.
A vida cariciosa do plano espiritual constituía, para todos, um
conforto suave.
Continuamente, os grandes portadores das determinações divinas
ensinavam aí as verdades do Mestre, enchendo os corações de paz e de
esperança.
As almas afins, reunidas em grupos familiares, sabem apreciar,
fora das vibrações pesadas do mundo físico, os bens supremos da verdade
e da paz, sob os laços sublimes do amor e da sabedoria.
Examinadas as disposições felizes dessas esferas, cuja intimidade
encantadora não poderemos descrever aos leitores humanos, vamos
encontrar o agrugamento de Cneio Lucius na região de repouso em que
todas as nossas personagens se encontravam, embaladas na carícia suave
de numerosos afetos dos séculos longínquos.
Tudo era uma carinhosa esperança nos corações e um generoso
propósito nas almas.
Os nobres projetos, com vistas ao porvir, sucediam-se uns aos
outros.
No grupo em que a tranqüilidade se estampava no espírito de
todos os componentes, esperava-se Júlia Spinter que, em companhia de
Nestório, descera aos ambientes inferiores do orbe terrestre, tentando
acordar com o seu amor os sentimentos entorpecidos do companheiro, que
se mantinha nas mesmas atitudes de ódio e vingança.
- É inútil - dizia Cneio Lucius, bondosamente, dirigindo-se aos
filhos e aos amigos -, é inútil mantermos propósitos de vindita depois das
lutas terrestres, pois a reencarnação, nesse caso, soluciona todos os
problemas ! Na minha última ida a Roma, tive ocasião de ver o Imperador
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
Élio Adriano no corpo miserável do filhinho de uma escrava. Desde essa
hora, tenho ponderado bastante os nossos deveres e a necessidade de
recebermos com o maior amor a vontade divina.
- Sim - exclamava Lésio Munácio, então presente -, nas minhas
excursões evangélicas pelas zonas inferiores, tenho encontrado antigos
nobres de nossa época, que suplicam a Deus uma nova oportunidade na
Terra, sem escolherem as condições do futuro aprendizado.
- O conhecimento no Espaço - aventava Helvídio Lucius - parece
que nos enche o coração de profunda dedicação pelo sofrimento. Em face
da grandeza divina e reconhecendo, aqui, a nossa insignificância, sentimonos
capazes de todas as tarefas de redenção, porquanto, agora, aos
nossos olhos, os maiores feitos da Terra são ações humildes e pequeninas.
- Grande é a misericórdia de Jesus – dizia Cneio - que nos
concedeu os patrimônios da vida eterna.
Enquanto a conversação ia animada com o concurso de Alba
Lucínia e da sua antiga serva, regressaram Nestório e Júlia Spinter da sua
excursão de amor e de fraternidade.
A velha matrona trazia o semblante contrafeito, fornecendo aos
companheiros o testemunho de sua amargura e de suas lágrimas.
- Então, minha mãe - exclamou Lucínia, abraçando-a, ao mesmo
tempo que usava a linguagem amiga e carinhosa da Terra -, conseguiste
alguma coisa?...
- Por enquanto, filhinha - retrucava Júlia Spinter enxugando as
lágrimas-, todos os meus esforços resultam inúteis. Infelizmente, Fábio não
trabalha, intimamente, por adquirir a suprema compreensão das grandes
leis da vida. Encarcerado nos seus pensamentos tristes, não cede,
absolutamente, às minhas súplicas !...
- Entretanto - elucidava Nestório aos companheiros, que lhe
ouviam a palavra com interesse -, Policarpo já se prepara, junto de
quantos o acompanham na luta, para a próxima reencarnação coletiva. A
nossa não poderá tardar muito. O único obstáculo que parece retardar nossa
marcha é a ausência de uma compreensão perfeita daquele inolvidável
ensinamento de Jesus, quanto ao perdão de setenta vezes sete vezes.
- Bastaria perdoarmos para que o Senhor nos permitisse voltar
ao trabalho santificante? - perguntou Cneio Lucius, intencionalmente.
- Sim - esclarecia Nestório na sua fé -, o perdão sincero é uma
grande conquista da alma.
Nesse comenos, Cneio Lucius preparava os filhos que se
entreolhavam com alguma tristeza, pela dificuldade que tinham em esquecer
os atos de Lólio Úrbico e de Cláudia Sabina.
- De minha parte - dizia Júlia Spinter resignada -, não tenho coisa
alguma a perdoar aos outros. Desde a minha desencarnação roguei
insistentemente a Jesus que me fizesse esquecer todas as expressões de
orgulho e amor-próprio.
- Muito bem, minha irmã - advertia Cneio com um sorriso sereno -,
um coração feminino é inacessível aos sentimentos de ódio e represália.
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
E como percebera que os presentes relembravam, no íntimo, os
atos de Cláudia, em face de sua alusão generalizada, acrescentou com
bondade :
- A mulher que odeia é uma dolorosa exceção no caminho da vida,
pois Deus confiou às almas femininas o seu ministério mais santo, no seio
da criação infinita!
Todos compreenderam os seus generosos pensamentos e
louvavam as suas idéias fraternais, quando Hatéria murmurou :
- Tenho suplicado ao Senhor dos Mundos que me faça digna de
viver junto de Cneio Lucius nos meus próximos trabalhos.
- Ora, filha - retrucou o ancião com um sorriso -, bem sei que nada
valho, mas terei imenso júbilo se te puder ser útil alguma vez... Apenas te
recomendo que, de futuro, deves temer o dinheiro como o pior inimigo da
nossa tranqüilidade.
Todos sorriram a essa alusão e a palestra continuou animada.
Algum tempo se passou, ainda, enquanto os corações das
nossas personagens se retemperavam nas idéias do amor e do bem, da
fraternidade e da luz, esperando as novas lutas.
Um dia, porém, um mensageiro das alturas veio convocar o grupo
de Cneio Lucius a comparecer perante os numes tutelares que lhe
presidiam os destinos, de modo a efetuar-se a livre escolha das provações
futuras.
Examinados os projetos de esforço, com a livre cooperação de
todos os que se achavam em condições evolutivas, imprescindíveis ao
ato de resolução e de escolha, na esfera da responsabilidade individual, o
grupo de Cneio Lucius continuava aguardando as determinações
superiores para regressar à Terra.
De vez em quando, observavam-se, entre as nossas
personagens, pequeninas impressões como estas:
- Uma das situações que mais receio - exclamava Helvídio Lucius - é
a vida em comum com Lólio Úrbico, pois temo que ele reincida nas
tendências inferiores da sua personalidade.
- Convencê-lo-emos pela dedicação e pelo amor - esclarecia Alba
Lucínia. - Tenho suplicado a Jesus que nos conceda forças para tanto e
estarei constantemente ao teu lado, a fim de podermos transfundir os
seus sentimentos em fraternidade e afeição espiritual.
- Sim, meus filhos - ponderava o experiente e generoso Cneio
Lucius -, precisamos amar muito ! Somente com a renúncia sincera
poderemos alcançar o reino de luz, prometido pelo Salvador. Entre todos os
que ficarão sob a nossa responsabilidade, no porvir, uma alma existe,
credora da nossa compaixão mais profunda!..
E como Helvídio e a companheira silenciassem, adivinhando-lhe
os pensamentos, o ancião continuou :
- Refiro-me a Cláudia Sabina, que ainda tem o coração como um
deserto árido. As últimas visitas que lhe fiz, na região das sombras,
deixaram-me envolto num véu de amargura!... Remorsos terríveis
transformaram-lhe o mundo psíquico num caos de angustiosas
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
perturbações ! Debalde lhe tenho falado de Deus e de sua inesgotável
misericórdia, porquanto, na caligem de seus pensamentos, não consegue
perceber as nossas advertências consoladoras.
Alba Lucínia e o companheiro ouviram-no comovidos e, todavia,
abstiveram-se de comentar o doloroso assunto.
Hatéria, entretanto, que lhe bebia avidamente as palavras, objetou,
deixando entrever os amargos receios que lhe povoavam a mente:
- Meu generoso protetor, já fui notificada de que o meu roteiro de
lutas se verificará em linhas paralelas ao de Cláudia Sabina, em vista de
meus erros imperdoáveis; contudo, suplico o vosso amparo, apesar das
novas energias que me felicitam a alma. Cláudia é autoritária e insinuante
e, se hoje se encontra acabrunhada e ensandecida, em virtude dos
sofrimentos no plano invisível, não duvido que, novamente na Terra,
procure retomar a sua feição de orgulho e mandonismo.
- Filha - ponderava o ancião com um leve sorriso -, Jesus velará por
nós, concedendo-nos a força precisa para o desempenho dos nossos
deveres mais sagrados.
Júlia Spinter acompanhava as impressões de todos com
amoroso interesse e exclamava, por vezes:
- Eu tudo daria por cultivar em nosso meio, no porvir que se
aproxima, a paz perpétua e a harmonia duradoura. Repararei minhas
faltas do passado, buscando compreender a essência do Cristianismo, para
cuja luz eterna hei-de conduzir o coração de Fábio, com o amparo do
Cordeiro de Deus que há-de ouvir minhas sinceras rogativas..
A vida do grupo do venerando Cneio Lucius decorria, assim, em
expectativas promissoras para o futuro. Cada qual, erguendo muito alto o
coração, buscava apreender, cada vez mais e melhor, os ensinamentos de
Jesus, de modo a recordar a sua claridade sublime entre as sombras
espessas da Terra.
Os grupos afins de Policarpo e de Lésio Munácio já haviam
regressado aos labores do mundo, quando as nossas personagens foram
chamadas à determinação superior, a fim de baixarem aos tormentos e lutas
purificadoras do ambiente terrestre.
Tomados de veneração e de esperança, acomodaram-se perante os
executores da justiça divina, enquanto ao seu lado estacionava quase uma
centena de companheiros, incluindo escravos, serviçais e amigos de
outrora.
No recinto espiritual, de beleza maravilhosa, intraduzível na
pobre linguagem humana, havia a cariciosa vibração de uma prece coletiva,
que se escapava de todos os peitos, plenos de receio e de esperança.
- Irmãos - começou de dizer um mentor divino, a cuja
responsabilidade estava afeta a direção daquele amistoso conclave -, breve
estareis de novo na Terra, onde sereis convocados a praticar os divinos
ensinamentos adquiridos no plano espiritual !... Agradeçamos à
misericórdia do Senhor, que nos concede as preciosas oportunidades do
trabalho a favor de nossa própria redenção, em marcha incessante para o
amor e para a sabedoria. Vós que partis, amai a luta redentora, como se
50 ANOS DEPOIS Emmanuel
deve amar uma alvorada divina! Aqui, sob a luz da bondade infinita do
Cordeiro de Deus, a alma egressa do mundo pode descansar de suas
profundas mágoas. Os corações ulcerados se retemperam junto à fonte
inesgotável do consolo evangélico; mas, acima de nossas frontes, há um
reino de amor perene e de paz inolvidável, que necessitamos conquistar com
os mais altos valores da consciência ! Adquiristes aqui os mais elevados
conhecimentos, em matéria de sabedoria e amor; experimentastes o bafejo
de sublimes consolações, como somente poderá senti-las o Espírito
liberto das sombras e angústias materiais; observastes a beleza e a ventura
que aguardam, no Infinito, as almas redimidas; todavia, é necessário
regressardes à carne a fim de poderdes experimentar o valor do vosso
aprendizado ! É na Terra, escola dolorosa e bendita da alma, que se
desdobra o campo imenso de nossas realizações. Os erros de outrora
devem ser reparados lá mesmo, entre as suas sombras angustiosas e
espessas !... Enquanto se reparam, na sua superfície, os desvios das
épocas remotas, faz-se mister aplicar nas suas estradas sombrias os
ensinamentos recebidos do Alto, em virtude do acréscimo de misericórdia
de Jesus, que não nos desampara. Na Terra está o aprendizado melhor, e
aqui vigora o exame elevado e justo. Lá é a sementeira, aqui a colheita.
Voltai novamente aos carreiros terrestres e reparai o passado doloroso!.
Abraçai os vossos inimigos de ontem, para vos aproximardes dos vossos
benfeitores no porvir ! Fechai as portas da exaltação no mundo e sede
surdos às ambições ! Edificai o reino de Jesus no imo, porque, um dia, a
morte vos arrebatará de novo às angústias e mentiras humanas, para as
análises proveitosas. A exemplificação de Jesus é o modelo de todos os
corações. Não vos queixeis da orientação precisa, porque, em toda parte do
mundo, como em todas as idéias religiosas e doutrinas filosóficas, há
uma atalaia de Deus esclarecendo a consciência das criaturas ! O mundo
tem as suas lágrimas penosas e as suas lutas incruentas. Nas suas sendas
de espinhos torturantes se congregam todos os fantasmas dos sofrimentos
e das tentações, e sereis compelidos a positivar os vossos valores
intrínsecos. Amai, porém, a luta como se os seus benefícios fossem os de
um pão espiritual, imprescindível e precioso !... Depois de todas as
conquistas que o plano terrestre vos possa proporcionar, sereis, então,
promovidos aos mundos de regeneração e de paz, onde preparareis o
coração e a inteligência para os reinos da luz e da bem-aventurança
supremas !...
A palavra sábia e inspirada do esclarecido mentor do Alto era
ouvida com singular atenção.
Em dado instante, porém, sua voz esclareceu, depois de uma
pausa:
- Agora, irmãos bem-amados, encontrareis aqui os adversários de
ontem, para a conciliação e para os trabalhos futuros. Escolhestes e
delineastes o mapa de vossas provas, porquanto já possuís a noção de
responsabilidade e a precisa educação psíquica, para colaborar nesse
esforço dos vossos guias!... Nossos irmãos infelizes, entretanto, ainda não
possuem essas condições evolutivas e serão compelidos a aceitar as
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decisões daqueles gênios tutelares, que lhes acompanham a trajetória na
trama dos destinos humanos... E esses gênios do bem deliberaram que eles
vivam convosco, que aprendam nos vossos atos, que vibrem nas vossas
experiências do futuro! Os executores dessas elevadas resoluções os
trouxeram a todos, a fim de se processar a decisão final com o vosso
concurso, nesta assembléia de divinos ensinamentos. Tendes, pois, o
direito de escolher, entre eles, os companheiros do porvir, sem vos
esquecerdes de que, nestes momentos, pode o nosso coração dar as
melhores provas de compreensão daquele "amai-vos uns aos outros",
da lição do Evangelho, onde repousa a base da nossa suprema evolução
para os planos divinos !...
Nossas personagens entreolharam-se ansiosas.
A esse tempo, contudo, algumas entidades penetravam no recinto.
Atrás dos vultos nobres de alguns Espíritos caridosos e amigos, vinham
Cláudia Sabina, Fábio Cornélio, Silano Plautius, Lólio Úrbico e, um pouco
distantes, numerosos servos de outrora, comparsas dos mesmos erros e
das mesmas ilusões dos nossos amigos, como, por exemplo, Pausânias,
Plotina, Quinto Bíbulo, Pompônio Gratus, Lídio, Marcos e outros, enquanto o
recinto se povoava de suas vibrações estranhas, saturadas de amargura
indefinível.
A maior parte demonstrava surpresa amarga e dolorosa.
Quase todos se conservavam cabisbaixos e tristes, fazendo ouvir,
de quando em quando, soluços dolorosos.
Observando a penosa impressão dos filhos e sentindo que
ambos se encontravam sob as tenazes de indecisão angustiosa, Cneio
Lucius suplicava ao Senhor que o inspirasse quanto à melhor maneira de
sacrificar-se pelos filhos bem-amados, conciliando o seu afeto com as
próprias necessidades deles, em face do futuro.
Então, viu-se que o generoso velhinho levantava-se com
desassombro e serenidade e, caminhando para a desolada Cláudia Sabina,
que não ousara erguer os olhos saturados de lágrimas, falar-lhe com
infinita brandura:
- Já que a misericórdia de Jesus-Cristo me faculta a escolha dos
que viverão comigo, considerar-te-ei, minha irmã, desde já como filha, a
quem devo consagrar uma afeição duradoura e divina!...
E, abraçando-a, concluía :
- De futuro permanecerás no meu lar, a fim de transfundirmos o
ódio e a vingança em fraternidade sublime e sacrossanta!... Comerás do
nosso pão, participarás das minhas alegrias e das minhas dores, serás irmã
de meus filhos !...
Cláudia Sabina soluçava, sensibilizada pelo amor daquela alma
devotada e generosa.
Hatéria, levantando-se, caminhou até Cneio Lucius e lhe beijou as
mãos, que, naquele instante, estavam luminosas e translúcidas.
A esse tempo, Júlia Spinter amparava o coração desolado do
companheiro, abraçando Silano Plautius e prometendo-lhe o seu auxílio
devotado e amigo, no curso das lutas planetárias.
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Foi aí que Helvídio Lucius e Alba Lucínia se levantaram e, dirigindose
a Lólio Úrbico, que se ajoelhara como oprimido por um tormento
implacável, estenderam-lhe os braços fraternos, prometendo-lhe amor e
dedicação.
Continuando a mesma obra de solidariedade e devotamento, todos
chamaram a si esse ou aquele antigo servo, bem como os comparsas de
seus feitos passados, a fim de associá-los aos seus esforços no futuro.
Terminada essa tarefa bendita, o mentor da reunião perguntou
serenamente:
- Todos estais certos de haver suficientemente perdoado?
Amargurado silêncio... No íntimo, as nossas personagens
experimentavam, ainda, certas dificuldades para esquecer o passado.
Helvídio Lucius não olvidara as perseguições de Lólio Úrbico ; Alba Lucínia
não esquecera as ações de Sabina, e Fábio Cornélio, por sua vez, apesar
dos sofrimentos, não se sentia capaz de perdoar o crime de Silano.
A indecisão era geral, mas uma luz branda e misericordiosa
começou a verter do Alto, atingindo em cheio todos os corações. Sem
exceção de um só, todos os membros do grupo de Cneio Lucius começaram
a chorar, possuídos de emoção indefinível.
A um só tempo, divisaram no Alto a figura sublime de Célia, que
lhes acenava cheia de ternura e de carinho.
Movidos, então, por um doce mistério, deram guarida a um perdão
sincero e puro, sentindo-se reciprocamente tocados de profunda piedade.
Como se as substâncias do ambiente fossem sensíveis ao estado
íntimo dos presentes, uma claridade doce e branda começou a fazer-se em
torno, enquanto a maioria das nossas personagens chorava enternecida.
Entremostrando um sorriso suave, o mentor exclamou :
- Graças à misericórdia do Altíssimo, sinto que todos regressais
aos planos terrestres com uma vibração nova, que vos edifica o coração e a
consciência nas mais formosas expressões de espiritualidade ! Que as
bênçãos do Senhor encham de luz e de paz os vossos caminhos no porvir!...
Sede felizes! Todos os segredos da ventura estão no amor e no trabalho
da consciência redimida !... Esquecei o passado umbroso e dolorido e atiraivos
à luta remissora, com heroísmo e humildade... Sinto que estais
irmanados pela mesma vibração de piedade e faço votos a Deus para que
compreendais, em todas as circunstâncias, que somos irmãos pelas
mesmas fraquezas e pelas mesmas quedas, a caminho da redenção
suprema, nas lutas do Infinito !...
Em face da palavra carinhosa e sábia do mensageiro divino que
os dirigia, os nossos amigos sentiam-se confortados por uma nova luz,
que lhes esclarecia o imo com a mais bela compreensão da existência real.
A visão de Célia havia desaparecido, mas, como se a sua grande
alma estivesse assistindo à cena comovedora através das luminosas
cortinas do Ilimitado, ouviu-se em vibrações cariciosas, provindas do Alto,
um hino maravilhoso, cantado por centenas de vozes infantis, derramando
em todos os corações a coragem e o amor, a consolação e a
esperança... As estrofes harmoniosas atravessavam o recinto e elevavam50
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se para as Alturas em notas melodiosas, subindo para o sólio de Jesus,
qual incenso divino! Era um brado de fé e de incitamento, que fazia nascer
nas almas dos presentes as mais piedosas lágrimas.
Em seguida, sob as preces dos carinhosos amigos e benfeitores
espirituais, que ficavam no plano invisível, todos os membros do grupo de
Cneio Lúcius abandonavam o recinto, reunidos numa caravana fraterna, em
direção às esferas mais inferiores que envolvem o planeta terrestre.
Nessa hora, havia entre todos o bom desejo de consolidar uma paz
íntima, antes de recomeçar a luta.
Foi então que Cláudia Sabina, num gesto espontâneo, aproximouse
de Alba Lucínia e exclamou com angustiada expressão :
- Não me atrevo a chamar-vos irmã, pois fui outrora o impiedoso
verdugo de vosso coração sensível e bondoso !... Mas, por quem sois, pelos
sentimentos generosos que vos exornam a alma, perdoai-me mais uma vez.
Fui o algoz e vós a vítima; todavia, bem vedes aqui a minha ruína dolorosa.
Dai-me o vosso perdão para que eu sinta a claridade do meu novo dia !...
Cneio Lucius contemplou a nora, com evidente ansiedade, como a
implorar-lhe clemência.
Alba Lucínia compreendeu a gravidade daquele instante e,
vencendo as hesitações que lhe turbavam o espírito, murmurou comovida:
- Estais perdoada... Deus me auxiliará a esquecer o passado,
para que a genuína fraternidade se faça entre nós, nas lutas do futuro!...
Júlia Spinter fitou a filha, deixando transparecer o júbilo que lhe ia
no coração, em vista do seu gesto generoso; ao mesmo tempo que
Cneio Lucius envolvia a companheira de Helvídio num olhar caricioso de
satisfação e de profundo reconhecimento.
Enquanto a maioria das personagens trocava idéias sobre o porvir,
surgia, ao longe, a atmosfera do planeta terrestre, envolta num turbilhão de
sombras espessas.
Alguém falou com voz melancólica e imponente, do seio da
caravana:
- Eis a nossa escola milenária!...
Decididos na sua fé, olhos para o Alto, implorando a misericórdia
divina, guiados todos eles pelas forças esclarecidas do bem, que os
envolviam, penetraram a atmosfera planetária, habilitados a uma
compreensão cada vez mais elevada e mais nobre, dos valores eficientes do
trabalho e da luta.
Apenas Nestório se conservava em oração junto dos fluidos
terrenos, notando-se-lhe os olhos mareados de lágrimas, na comoção
daquela hora cheia de apreensões e de esperanças.
- Senhor - exclamava o antigo escravo, evocando amargurosas
lembranças -, novamente na Terra, escola abençoada de nossas almas,
contamos com a vossa misericordiosa complacência, a fim de cumprirmos
todos os nossos deveres, a caminho do arrependimento e da reparação.
Auxiliai-nos na luta! Somente os séculos de trabalho e dor poderão anular
os séculos de egoísmo, orgulho e ambição, que nos conduziram à
iniqüidade !... Perdoai-nos, Jesus! Dignai-vos abençoar nossas aspirações
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sinceras e humildes !.. Ensinai-nos a amar o planeta com as suas paisagens
procelosas, a fim de podermos encontrar, nas sendas terrestres, a luz da
nossa regeneração espiritual, a caminho do vosso reino de paz
indestrutível !...
Entre as lágrimas de suas rogativas, Nestório foi o último a imergir
na vastidão dos fluidos planetários.
Do Alto, porém, emanava uma claridade branda e compassiva. Toda
a caravana sentiu o bafejo divino de uma esperança nova, atirando-se ao
ambiente da Terra, tomada de uma coragem redentora. Reconfortados na
meditação e na prece, os corações adivinhavam que a luz da Providência
Divina seguiria as suas experiências na dor e no trabalho, como uma
bênção.
NOTA DA EDITORA - Se o leitor já
leu Há Dois Mil Anos, não deverá deixar
de ler Paulo e Estevão, Renúncia e Ave,
Cristo!, todos do mesmo Autor.
Impresso na GRAPHO
Rio (021) 223-1272
com filmes fornecidos.