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sábado, 29 de janeiro de 2011

Entre a Terra e o Céu-Francisco Cândido Xavier

ENTRE A TERRA E O CÉU

FRANCISCO CÂNDIDO XAVIER

DITADO PELO ESPÍRITO ANDRÉ LUIZ

(8)


Série André Luiz

1 - Nosso Lar

2 - Os Mensageiros

3 - Missionários da Luz

4 - Obreiros da Vida Eterna

5 - No Mundo Maior

6 - Agenda Cristã

7 - Libertação

8 - Entre a Terra e o Céu

9 - Nos Domínios da Mediunidade

10 - Ação e Reação

11 - Evolução em Dois Mundos

12 - Mecanismos da Mediunidade

13 - Conduta Espírita

14 - Sexo e Destino

15 - Desobsessão

16 - E a Vida Continua...



Entre a Terra e o Céu

Desta história, recolhida por André Luiz entre a Terra e o Céu, destacam-se os impositivos do res­peito que nos cabe consagrar ao corpo físico e do culto incessante de serviço ao bem, para retirarmos da romagem terrena as melhores vantagens à vida imperecível.

Neste livro, não somos defrontados por qual­quer situação espetaculosa. Nem heróis, encarnan­do virtudes dificilmente acessíveis. Nem anjos ina­bordáveis.

Em cada capítulo, encontramos a nós mesmos, com nossos velhos problemas de amor e ódio, sim­patia e desafeto, através da cristalização mental em certas fases do caminho, na penumbra de nossos sonhos imprecisos ou na sombra das paixões que, por vezes, nos arrastam a profundos despenhadeiros.

Em quase todas as páginas, temos a vida comum das almas que aspiram à vitória sobre si mesmas, valendo-se dos tesouros do tempo, para a aquisição de luz renovadora.

Aqui, os quadros fundamentais da narrativa nos são íntimamente familiares...

O coração aflito em prece.

A mente paralisada na ilusão e na dor.

O lar varrido de provações.

A senda fustigada de lutas.

O desvario do ciúme.

O engano da posse.

Embates do pensamento.

Conflitos da emoção.

E sobre a contextura dos jatos puros e simples paira, por ensinamento central, a necessidade de valorização dos recursos que o mundo nos oferece para a reestruturação do nosso destino.

Em muitas ocasiões, somos induzidos a fitar a amplidão celestial, incorporando energia para con­quistar o futuro; entretanto, muitas vezes somos constrangidos a observar o trilho terrestre, a fim de entender o passado a que o nosso presente deve a sua origem.

Neste livro, somos forçados a contemplar-nos por dentro, no chão de nossas experiências e de nossas possibilidades, para que não nos falhe o equilíbrio à jornada redentora, no rumo do porvir.

Dele surge a voz inarticulada do Plano Divino, exortando-nos sem palavras:

— A Lei é viva e a Justiça não falha! Esquece o mal para sempre e semeia o bem cada dia!...

Ajuda aos que te cercam, auxiliando a ti mesmo! O tempo não pára, e, se agora encontras o teu “on­tem”, não olvides que o teu “hoje” será a luz ou a treva do teu “amanhã”!...

EMMANUEL

Pedro Leopoldo, 23 de janeiro de 1954.


1

Em torno da prece

No Templo do Socorro (1), o Ministro Clarên­cio comentava a sublimidade da prece, e nós o ouvíamos com a melhor atenção.

— Todo desejo — dizia, convincente — é ma­nancial de poder. A planta que se eleva para o alto, convertendo a própria energia em fruto que alimenta a vida, é um ser que ansiou por multipli­car-se...

— Mas todo petitório reclama quem ouça —interferiu um dos companheiros. — Quem teria respondido aos rogos, sem palavras, da planta?

O venerando orientador respondeu, tranquilo:

— A Lei, como representação de nosso Pai Celestial, manifesta-se a tudo e a todos, através dos múltiplos agentes que a servem. No caso a que nos reportamos, o Sol sustentou o vegetal, con­ferindo-lhe recursos para alcançar os objetivos que se propunha atingir.

E, imprimindo significativa entonação à voz, continuou:

— Em nome de Deus, as criaturas, tanto quan­to possível, atendem às criaturas. Assim como pos­suímos em eletricidade os transformadores de ener­gia para o adequado aproveitamento da força, temos igualmente, em todos os domínios do Universo,

(1) Instituição da cidade espiritual em que se encontra o Autor. — Nota do Autor espiritual.

os transformadores da bênção, do socorro, do esclarecimento... As correntes centrais da vida partem do Todo-Poderoso e descem a flux, tran­substanciadas de maneira infinita. Da luz suprema à treva total, e vice-versa, temos o fluxo e o re­fluxo do sopro do Criador, através de seres incontáveis, escalonados em todos os tons do instinto, da inteligência, da razão, da humanidade e da an­gelitude, que modificam a energia divina, de acordo com a graduação do trabalho evolutivo, no meio em que se encontram. Cada degrau da vida está superlotado por milhões de criaturas... O caminho da ascensão espiritual é bem aquela escada mila­grosa da visão de Jacob, que passava pela Terra e se perdia nos céus... A prece, qualquer que ela seja, é ação provocando a reação que lhe corres­ponde. Conforme a sua natureza, paira na região em que foi emitida ou eleva-se mais, ou menos, recebendo a resposta imediata ou remota, segundo as finalidades a que se destina. Desejos banais en­contram realização próxima na própria esfera em que surgem. Impulsos de expressão algo mais no­bre são amparados pelas almas que se enobreceram. Ideais e petições de significação profunda na imor­talidade remontam às alturas...

O mentor generoso fêz pequeno intervalo, como a dar-nos tempo para refletir e acentuou:

— Cada prece, tanto quanto cada emissão de força, se caracteriza por determinado potencial de frequência e todos estamos cercados por Inteligên­cias capazes de sintonizar com o nosso apelo, à maneira de estações receptoras. Sabemos que a Humanidade Universal, nos infinitos mundos da grandeza cósmica, está constituída pelas criaturas de Deus, em diversas idades e posições... No Rei­no Espiritual, compete-nos considerar igualmente os princípios da herança. Cada consciência, à me­dida que se aperfeiçoa e se santifica, aprimora em si qualidades do Pai Celestial, harmonizando-se, gradativamente, com a Lei. Quanto mais elevada a percentagem dessas qualidades num espírito, mais amplo é o seu poder de cooperar na execução do Plano Divino, respondendo às solicitações da vida, em nome de Deus, que nos criou a todos para o Infinito Amor e para a Infinita Sabedoria...

Quebrando o silêncio que se fizera natural para a nossa reflexão, o irmão Hilário perguntou:

— Contudo, como interpretar o ensinamento, quando estivermos à frente de propósitos malignos? um homem que deseja cometer um crime estará também no serviço da prece?

— Abstenhamo-nos de empregar a palavra «prece», quando se trate do desequilíbrio — aduziu Clarêncio, bondoso —, digamos «invocação».

E acrescentou:

— Quando alguém nutre o desejo de perpe­trar uma falta está invocando forças inferiores e mobilizando recursos pelos quais se responsabili­zará. Através dos impulsos infelizes de nossa alma, muitas vezes descemos às desvairadas vibrações da cólera ou do vício e, de semelhante posição, é fácil cairmos no enredado poço do crime, em cujas furnas nos ligamos, de imediato, a certas mentes estagnadas na ignorância, que se fazem instrumen­tos de nossas baixas idealizações ou das quais nos tornamos deploráveis joguetes na sombra. Todas as nossas aspirações movimentam energias para o bem ou para o mal. Por isso mesmo, a direção delas permanece afeta à nossa responsabilidade. Analisemos com cuidado a nossa escolha, em qual­quer problema ou situação do caminho que nos é dado percorrer, porqüanto o nosso pensamento voará, diante de nós, atraindo e formando a rea­lização que nos propomos atingir e, em qualquer setor da existência, a vida responde, segundo a nossa solicitação. Seremos devedores dela pelo que houvermos recebido.

O Ministro sorriu, benevolente, e lembrou:

— Estejamos convictos, porém, de que o mal é sempre um círculo fechado sobre si mesmo, guar­dando temporariamente aqueles que o criaram, qual se fora um quisto de curta ou longa duração, a dissolver-se, por fim, no bem infinito, à medida que se reeducam as Inteligências que a ele se aglu­tinam e afeiçoam. O Senhor tolera a desarmonia, a fim de que por intermédio dela mesma se efetue o reajustamento moral dos espíritos que a susten­tam, de vez que o mal reage sobre aqueles que o praticam, auxiliando-os a compreender a excelên­cia e a imortalidade do bem, que é o inamovível fundamento da Lei. Todos somos senhores de nos­sas criações e, ao mesmo tempo, delas escravos infortunados ou felizes tutelados. Pedimos e obte­mos, mas pagaremos por todas as aquisições. A responsabilidade é principio divino a que ninguém poderá fugir.

Nesse instante, uma jovem de semblante calmo penetrou no recinto e, dirigindo-se ao nosso orien­tador, falou algo aflita:

— Irmão Clarêncio, uma de nossas pupilas do quadro de reencarnações sob suas diretrizes pede socorro com insistência...

— É um apelo individual urgente? — indagou o Ministro, preocupado.

— É assunto inquietante, mas numa prece refratada.

O prestimoso instrutor convidou-nos a acom­panhá-lo e seguimo-lo, atentamente.


2

No cenário terrestre

Numa sala ampla, em que numerosas entida­des trabalhavam solícitas, Clarêncio recebeu da jo­vem um pequeno gráfico que passou a examinar, cauteloso.

Em seguida, comentou, espontâneo:

— Ainda agora, falávamos de responsabilida­de. Eis um fato que nos ilustra os conceitos.

E, exibindo o documento que trazia nas mãos, explicou:

— Temos aqui uma oração comovedora que superou as linhas vibratórias comuns do plano de matéria mais densa. Parte de uma devotada ser­vidora que se ausentou de nossa cidade espiritual, há precisamente quinze anos terrestres, para de­terminadas tarefas na reencarnação. Não seguiu, porém, desassistida. Permanece sob nossa orien­tação, O nascimento e o renascimento, no mundo, sob o ponto de vista físico, jazem confiados a leis biológicas de cuja execução se incumbem Inteligên­cias especializadas, contudo, em suas característi­cas morais, subordinam-se a certos ascendentes do espírito.

O Ministro deteve-se alguns instantes, analisan­do a pequenina e complicada ficha, todavia, como se provocasse a continuidade da lição que recebía­mos, meu companheiro considerou:

— Mas, indiscutivelmente, na reencarnação há um programa de serviço a realizar...

— Sim, sem dúvida — aclarou o instrutor —, quanto mais vastos os recursos espirituais de quem retorna à carne, mais complexo é o mapa de tra­balho a ser obedecido. Quase todos temos do pre­térito expressivo montante de débito a resgatar e todos somos desafiados pelas aquisições a fazer. Nisso está o programa, significando em si uma espécie de fatalidade relativa no ciclo de experiên­cias que nos cabe atender; entretanto, a conduta é sempre nossa e, dentro dela, podemos gerar cir­cunstâncias em nosso benefício ou em nosso des­favor. Reconhecemos, assim, que o livre arbítrio, também relativo, é uma realidade inconteste em todas as esferas de evolução da consciência. Não podemos olvidar, contudo, que, em todos os planos, marchamos em verdadeira interdependência. Nas linhas da experiência física, até certo ponto, os filhos precisam dos pais, os doentes necessitam dos médicos e os moços não prescindem do aviso dos mais velhos. Aqui, a habilitação depende dos educadores, o amparo eficiente exige quem sai­ba distribuí-lo, e a transferência de domicílio para trabalho enobrecedor, quando se trata de Espíritos sem méritos absolutos, reclama o endosso de auto­ridades competentes.

— Mas, que vem a ser uma oração refratada? — indagou o meu colega, mordido de curiosidade. Hilário fora igualmente médico no mundo e,

tanto quanto eu, permanecia em tarefas ligadas à responsabilidade de Clarêncio, adquirindo conheci­mentos especializados.

— A prece refratada é aquela cujo impulso luminoso teve a sua direção desviada, passando a outro objetivo.

Inclinávamo-nos a desfechar novas perguntas, no entanto, o orientador sossegou-nos, esclarecendo:

— Esperem. Reconhecerão comigo que nos achamos todos imanados uns aos outros.

Em seguida, falou para a jovem que o obser­vava, respeitosa:

— Chame a irmã Eulália.

Alguns momentos passaram, rápidos, e a co­operadora mencionada apareceu irradiando bonda­de e simpatia.

— Irmã — disse Clarêncio, preciso —, este gráfico registra aflitivo apelo de Evelina, cuja volta ao aprendizado na carne foi garantida por nossa organização. Parece-me estar a pobrezinha em ex­tremas dificuldades...

— Sim — concordou a interpelada —, Evelina, apesar da fragilidade do novo corpo, vem susten­tando imensa luta moral. O pai, sobrecarregado de questões íntimas, tem a saúde periclitante e a madrasta vem sofrendo obstinada perseguição, por parte de nossa desventurada Odila.

— A genitora de Evelina?

— Sim, ela mesma. Ainda não se resignou a perder a primazia feminina no lar. Há dois anos empenho energia e boa vontade por dissuadi-la. Vive, porém, enovelada nos laços escuros do ciúme e não nos ouve, O egoísmo desbordante fá-la es­quecida dos compromissos que abraçou.

Zulmira, por sua vez, a segunda esposa de Amaro, desde a morte do pequenino Júlio caiu em profundo aba­timento. Como não ignoramos, o pequeno desen­carnou afogado, consoante as provas de que se fêz devedor. A madrasta, contudo, que chegou a desejar-lhe o desaparecimento por não amá-lo, en­contrando-se sob as sugestões da mulher que a precedeu nas atenções do marido, crê-se culpada... Evelina, depois de perder o maninho em trágicas circunstâncias, acha-se desorientada, entre o geni­tor aflito e a segunda mãe, em desespero... Ainda anteontem, pude vê-la. Chorava, comovedoramen­te, diante da fotografia da mãezinha desencarna­da, suplicando-lhe proteção. Odila, porém, envolvida nas teias das próprias criações mentais, não se mostra capaz de corresponder à confiança e à ter­nura da menina. Ela, entretanto, tem insistido com tal vigor na obtenção de socorro espiritual que as suas rogativas, quebrando a direção, chegam até aqui, de tal modo...

Reparávamos o pequeno gráfico em Silêncio.

Sustando a pausa longa, o Ministro fixou Hilário e indagou:

— Compreendem agora o que seja uma oração refratada? Evelina recorre ao espírito materno que não se encontra em condições de escutá-la, mas a solicitação não se perde... Desferida em elevada frequência, a súplica de nossa irmãzinha vara os círculos inferiores e procura o apoio que lhe não faltará.

Passeando em nós o olhar muito lúcido, con­cluiu:

— Desejariam cooperar conosco na tarefa as­sistencial?

Sem dúvida, o caso fascinava-nos a atenção.

O orientador, no entanto, recomendou espe­rássemos dois dias. Desejava inteirar-se, a sós, de todas as ocorrências, para instruir-nos com segu­rança, quando estivéssemos a usufruir-lhe a companhia.

Nossa excursão, todavia, foi marcada e, no momento preciso, achávamo-nos a postos.

Sem delonga na viagem, Clarêncio, Eulália, Hilário e eu encontramo-nos em residência modesta, mas confortável, num dos bairros do Rio de Janeiro.

O relógio citadino acusava exatamente vinte e uma horas.

Entrâmos.

Em estreito compartimento, à guisa de gabi­nete de trabalho e biblioteca, um homem de trinta e cinco anos presumíveis lia, com visíveis sinais de preocupação, um manual de mecânica.

Na secretária singela, desdobravam-se publi­cações diversas, denunciando-lhe os estudos.

Clarêncio, assumindo com mais propriedade o papel de mentor do nosso grupo, informou, gentil:

— Este é Amaro, o chefe da casa. Tem, no longo pretérito, complicados compromissos. Em muitas ocasiões, usou projetis e lâminas de ferro para o mal. Hoje, é servidor categorizado numa ferrovia...

Em seguida, passámos a gracioso quarto próximo.

Encantadora adolescente de catorze anos bor­dava iniciais num lenço de linho.

Magra e triste, parecia concentrar a mente nos olhos grandes e serenos. Não nos assinalou a presença, mas, ao contacto das mãos espirituais do Ministro, revelou indefinível contentamento interior.

Instintivamente, desviou o olhar do pano alvo e fixou-o num retrato de mulher que pendia da

parede. Sorriu, enlevada, qual se conversasse com a imagem, enquanto Clarêncio nos dizia:

— Esta é a nossa Evelina, cuja reencarnação foi por nós organizada, faz alguns anos. A fotografia é uma lembrança da mãezinha que já par­tiu. Evelina está ligada aos pais, através de imenso amor, desde séculos remotos. Veio ao encontro de criaturas e situações das quais necessita para a garantia da própria ascensão, mas trouxe tam­bém consigo a tarefa de auxiliar os progenitores. No momento, acredita-se amparada pela mãezinha, entretanto, pelos méritos já acumulados na vida espiritual, é ela mesma quem continua socorrendo o coração materno, ainda em luta...

Abracei, comovido, a mocinha extática, que se guardava em luminoso halo de tranquilidade e, por alguns instantes, meditei na grandeza do amor e na sublimidade da oração.


3

Obsessão

Penetrámos o mais espaçoso aposento da casa, onde uma senhora de aspecto juvenil repousava abatida e insone.

Moça de vinte e cinco anos, aproximadamente, mostrava no semblante torturado harmoniosa be­leza. O rosto delicado parecia haver saido de uma tela preciosa, todavia, com a suavidade das linhas fisionômicas contrastavam a inquietação e o pavor dos olhos escuros e o abandono dos cabelos em desalinho.

Ao lado dela, descansava outra mulher, sem o veículo físico.

Recostada num travesseiro de grandes dimen­sões, dava a idéia de proteger a moça indiscutivelmente enferma, contudo, a vaguidão do olhar e o halo obscuro de que se cercava, não nos deixa­vam dúvida quanto à sua posição de desequilíbrio interior. Conservava a destra sobre a medula alon­gada da senhora vencida e doente, como se qui­sesse controlar-lhe as impressões nervosas, e fios cinzentos que lhe fluíam da cabeça, à maneira de tentáculos dum polvo, envolviam-lhe o centro co­ronário, obliterando-lhe os núcleos de força.

Indiferentes ambas à nossa presença, foi pos­sível observá-las atentamente, identificando-se-lhes a posição de verdugo e de vítima.

Arrancando-nos da indagação silenciosa em que nos demorávamos, Clarêncio explicou:

— A jovem senhora é Zulmira, a segunda orientadora deste lar, e a irmã desencarnada que presentemente lhe vampiriza o corpo é Odila, a primeira esposa de Amaro e mãezinha de Evelina, dolorosamente transfigurada pelo ciúme a que se recolheu. Empenhada em combater aquela que con­sidera inimiga, imanta-se a ela, através do veículo perispirítico, na região cerebral, dominando a com­plicada rede de estímulos nervosos e influenciando os centros metabólicos, com o que lhe altera pro­fundamente a paisagem orgânica.

— Mas, porque não há reação por parte da perseguida? — inquiri, perplexo.

— Porque Zulmira, a nossa amiga encarnada, caiu no mesmo padrão vibratório — aclarou o ins­trutor. — Ela também se devotou ao marido com egoísmo aviltante. Amaro sempre foi pai afetuosís­simo. O matrimônio anterior deixou-lhe um casal de filhinhos, mas o pequeno Júlio, formosa crian­ça de oito anos, perdeu a existência no mar. A segunda mulher nunca suportou, sem mágoa, o carinho do genitor para com os órfãos de mãe. Revoltava-se, choramingava e doía-se constante­mente, diante das menores manifestações de ter­nura paternal, entrelaçando-se, por isso mesmo, com as desvairadas energias da irresignada com­panheira de Amaro, arrebatada pela morte. Em suas preocupações doentias, Zulmira chegou a de­sejar a morte de uma das crianças.

Pretendia possuir o coração do homem amado, com absoluto exclusivismo. E porque as atenções de Amaro se concentravam particularmente sobre o menino, mui­tas vezes emitiu silenciosamente o anseio de vê-lo afogar-se na praia em que se banhavam. Certa manhã, custodiando os enteados, separou Evelina do irmão, permitindo ao petiz mais ampla incursão nas águas. O objetivo foi atingido. Uma onda rá­pida surpreendeu o miúdo banhista, arrojando-o ao fundo. Incapaz de reequilibrar-se. Júlio voltou cadaverizado à superfície. O sofrimento familiar foi enorme. O ferroviário sentiu-se psiquicamente distanciado da segunda esposa, ClaSsificando-a como relaxada e cruel com os filhinhos. Zulmira, a seu turno, acabrunhada com o acontecimento e guar­dando consigo a responsabilidade indireta pelo de­sastre havido, caiu obsidiada ante a influência perniciosa da rival que a Subjugava do plano invisível.

Clarêncio fêz ligeiro intervalo e continuou:

— O sentimento de culpa é sempre um colap­so da Consciência e, através dele, sombrias forças se insinuam... Zulmira, pelo remorso destrutivo, tombou no mesmo nível emocional de Odila e am­bas se digladíam num conflito de morte, inacessível aos Olhos humanos comuns. É um caso em que a medicina terrestre não consegue interferência.

Calara-se o Ministro.

Qual se nos registrasse a presença por intui­ção, Odila movimentou-se e, agarrando-se à pobre senhora com mais força, gritou:

— Ninguém a libertará! Sou infeliz mãe espoliada... Farei Justiça por minhas próprias mãos...

E contemplando a enferma com expressão ter­rível, acrescentava:

— Assassina! Assassina!... Mataste meu fi­lhinho! Morrerás também!...

A doente abriu desmesuradamente os olhos.

Extrema palidez cobriu-lhe a face.

Não ouvia as palavras da adversária que lhe era Invisível, mas, envolta na onda magnética que a enlaçava, sentia-se morrer.

Clarêncio afagou-lhe a fronte e disse, calmo:

— Pobre moça!...

Hilário e eu, instintivamente abeiramo-nos de Odila para afastá-la com a presteza Possível, mas o instrutor generoso deteve­-nos com um gesto, ad­vertindo:

— A violência não ajuda. As duas se encontram ligadas uma a outra. Separá-las à força seria a dilaceração de consequências imprevisíveis. A exasperação da mulher desencarnada pesaria demasiado sobre os centros cerebrais de Zulmira e a lipotimia poderia acarretar a paralisia ou mesmo a morte do corpo.

— Mas, então — clamou Hilário, contrafei­to —, como extinguir essa união indébita? Não será justo afastar o algoz da vítima?

Clarêncio sorriu e ponderou:

— Aqui, o quadro é diverso. Na esfera car­nal, a cápsula física é precioso isolante das energias desequilibradas de nossa mente, entretanto, em nosso plano de ação, no problema que obser­vamos, essas forças desbordam ameaçadoras sobre a infortunada mulher, cujo corpo pode ser compa­rado a uma lâmpada de fraca receptividade, sobre a qual seria perigoso arremessar uma corrente superior à capacidade de resistência a que se en­quadra. A inutilização seria completa.

— Que poderíamos fazer? — indagou Hilário, desapontado.

— Precisamos atuar na elaboração dos pen­samentos da infortunada irmã que tomou a iniciativa da perseguição. É imprescindível dar outro rumo à vontade dela, deslocando-lhe o centro men­tal e conferindo-lhe outros interesses e diferentes aspirações.

— E não podemos começar, exortando-a?

O Ministro, sereno, obtemperou sem alterar-se:

— Talvez, assim de momento, não pudéssemos ou não soubéssemos. A preparação é indispensável.

— Nada custa uma conversação de censura... — alegou meu companheiro, admirado.

— Sim, uma doutrinação pura e simples seria cabível, contudo, não podemos esquecer que a or­ganização cerebral da vítima permanece excessi­vamente martelada. Nossa intervenção no campo espiritual de Odila deve ser envolvente e segura para evitar choques e contrachoques, que repercutiriam desastrosamente sobre a outra. Nem doçura prejudicial, nem energia contundente...

O instrutor dirigiu piedoso olhar às duas mu­lheres e prosseguiu:

— A questão nesta casa surge realmente me­lindrosa. É necessário buscar alguém que já tenha amealhado na alma bastante amor e bastante en­tendimento para conversar com o poder criador da renovação.

Refletiu alguns instantes e aduziu:

— Contamos em nossas relações com a irmã Clara. Rogaremos o concurso dela. Modificará Odila com o seu verbo coroado de luz, inclinando-a ao serviço da conversão própria. Por agora, de nossa parte, somente nos é possível a dispensação de algum alívio e nada mais.

Recomendou a Eulália assistisse Evelina para o refazimento psíquico de que a menina necessita­va e, em seguida, aplicou recursos magnéticos so­bre Zulmira, em passes calmantes, de longo curso.

Qual se fosse brandamente anestesiada, a en­ferma passou da irritação à serenidade e pareceu dormir aos olhos do esposo que chegara, de man­sinho, acomodando-lhe os travesseiros.


4

Senda de provas

Zulmira ausentara-se do corpo, mas não des­frutava a paz que se lhe estampara na máscara física.

Enlaçada por Odila, a cujo olhar dominador se inclinava, submissa, não nos identificou a presença.

Com evidentes sinais de terror, ouvia as objur­gatórias da rival que a acusava, exclamando:

- Que fizeste de meu filhinho? Assassina! assassina! Pagarás muito caro a intromissão no lar que é somente meu!... Destroçarei tua vida, não me furtarás o afeto de Amaro... Armarei o coração de Evelina contra ti!...

— Não, não!... — respondia a vítima. —Não matei! não fui eu quem matou!...

— Hipócrita! acompanhei os teus pensamen­tos, teus desejos, teus votos..

Zulmira desembaraçou-se, de inopino, dos bra­ços que a envolviam e correu para fora, seguida pela outra.

Esclarecendo-nos, bondoso, Clarêncio observou:

— Quando a pobrezinha consegue sossegar o corpo, cai no pesadelo agitado.

Acompanhemo-las. Dirigem-se à praia, onde ocorreu a morte do pe­quenino. Premida pelo assédio de nossa irmã de­sequilibrada, Zulmira ainda não se libertou das aflitivas reminiscências de que se vê possuída.

Pusemo-nos na direção do mar, antecipando-as no trajeto.

E, enquanto nos afastávamos, a conversação fêz-se ativa.

— Não posso compreender porque a infeliz se declarou inocente... — comentou Hilário, pensa­tivo.

— Porque tamanha provação se não é ela a autora do crime? — inquiri por minha vez.

O Ministro, porém, informou, preciso:

— Segundo as anotações que já recolhemos da irmã Eulália, Zulmira não é propriamente a auto­ra, mas, com loucas ciumadas do marido, desejou ardentemente a morte da criança, chegando mesmo a favorecê-la. Para não repetirmos esclarecimentos aos quais já nos reportámos, faremos ligeiro re­trospecto, tão minudenciado quanto possível, exa­minando o problema aflitivo do casal.

Depois de breve pausa, prosseguiu:

— Amaro experimentava imensa devoção afe­tiva pelo filhinho. Quando Júlio adoecia, desvelava-se à cabeceira do petiz com ilimitada ternura. Sabendo-o sem o carinho materno e reconhecendo que a madrasta não primava pelo amor, junto dos enteados, passava a dormir ao lado do caçula, ro­deando-o de mimos. Quando tornava a casa, cada dia, confiava-se a longas conversações com o filho, lendo-lhe histórias ou escutando-lhe, atencioso, as narrativas infantis.

Assemelhavam-se a dois ve­lhos amigos, a se bastarem um ao outro. Zulmira, em razão disso, ralada de despeito, passou a ver no menino um adversário de sua felicidade domés­tica. A dedicação de Evelina para com o genitor não lhe doía tanto. A filha mais velha era mais doce e mais reservada. Comedida em suas mani­festações, sabia dividir gentilezas, sem olvidar a segunda mãe em seu culto de amizade. A madras­ta nada sentia contra ela, mas o pequeno exci­tava-a. Júlio, no extremado apego ao genitor, cos­tumava exagerar-se em traquinadas e caprichos que Amaro desculpava sempre, com benevolente sorriso. Zulmira, pouco a pouco, permitiu que o ódio lhe ocupasse o coração e deixou que o ciú­me a enceguecesse a ponto de suspirar pelo desaparecimento do alegre rapazinho. Despreocupava-se intencionalmente pela assistência que lhe devia e abandonava-o às extravagâncias, características de sua idade, alimentando o secreto anseio de pre­senciar-lhe o fim. Chegava mesmo a estimular-lhe indébitas incursões na via pública, admitindo que algum veículo podia fazer o que não tinha coragem de realizar com as próprias mãos... Foi nessa disposição de espírito que acompanhou a família ao banho matinal, em clara manhã domingueira. Entregues ao contentamento da excursão, Ama­ro e a filhinha distanciaram-se, de algum modo, numa lancha pequena, enquanto Zulmira assumia a guarda do garoto. Foi então que o cérebro da moça deixou nascer escuras divagações. Não seria aquele o momento azado para consumar o velho propósito? E se relegasse o menino a si mesmo? Decerto, Júlio, em sua curiosidade infantil, não resistiria à atração para o seio das águas... Nin­guém poderia culpá-la.

Passou do projeto à ação e de pronto se afastou. Em se vendo a sós, o caçula de Amaro interessou-se mais vivamente pelas con­chas multicores a se multiplicarem na areia, per­seguindo-as, encantado, pelo mar a dentro, até que uma onda veloz lhe chicoteou o corpo tenro, obri­gando-o a mergulhar. A criança gritou, pedindo-lhe amparo... Realmente, poderia ter retrocedido alguns passos, salvando-a, mas vencida pelos si­nistros pensamentos que lhe dominavam a cabeça, esperou que o mar concluísse o horrível trabalho que não tivera coragem de executar. Quando notou que o enteado havia desaparecido, começou a clamar por socorro, de alma repentinamente do­brada pelo remorso, mas era tarde... Amaro acor­reu, precípite, e, com o auxílio de companheiros, retirou para fora o corpinho inerte. Torturado, chorou amargosamente a perda do filhinho, recriminando a mulher. Foi então que Zulmira, domina­da pelo arrependimento e atormentada pela noção de culpa, desceu, em espírito, ao padrão vibratório de Odila que a seguia, em silêncio, revoltada. Enquanto se mantinha com a paz de consciência, defendia-se naturalmente contra a perseguição in­visível, como se morasse num castelo fortificado, mas, condenando a si mesma, resvalou em deplo­rável perturbação, à maneira de alguém que de­sertasse de uma casa iluminada, embrenhando-se numa floresta de sombra.

O Ministro fêz leve pausa de repouso e pros­seguiu:

— A pobre senhora, desde esse dia, perdeu a ventura doméstica e a tranquilidade própria. Ela e o marido respiram agora sob o mesmo teto, qual se fossem estranhos entre si.

— Mas, à frente da Lei, Zulmira é culpada? — perguntei com interesse.

O sábio mentor sorriu, significativamente, e considerou:

— Não, no sentido real da Lei, Zulmira não é culpada.

Entretanto, deitando-nos um olhar mais ex­pressivo que de costume, continuou:

— Todavia, quem de nós não é responsável pelas idéias que arroja de si mesmo? Nossas intenções são atenuantes ou agravantes das faltas que cometemos. Nossos desejos são forças mentais coagulantes, materializando-nos as ações que, no fundo, constituem o verdadeiro campo em que a nossa vida se movimenta. Os frutos falam pelas árvores que os produzem. Nossas obras, na esfera viva de nossa consciência, são a expressão gritante de nós mesmos. A forma de nosso pensamento dá feição ao nosso destino.

Hilário e eu ouvíamos, enlevados, sem pesta­nejar.

Clarêncio, no entanto, guardando a intuição clara do serviço imediato a fazer, para não delongar-se em digressões filosóficas, retomou o fio central do assunto, esclarecendo:

— Júlio trazia consigo a morte prematura no quadro de provações. Era um suicida reencarnado... A segunda esposa de Amaro, porém, sofre o resultado das infelizes deliberações que albergou no espírito. Padece o retorno das vibrações envene­nadas que arremessou na direção do menino. Pelo ciúme, criou ao redor de si mesma um ambiente pestilencial, em que os seus próprios pensamentos malignos conseguiram prosperar, assim como um fruto apodrecido desenvolve em si mesmo os ver­mes que o devoram.

Supondo-se responsável pela morte da crian­ça, de vez que asilou o delituoso plano a que nos referimos, Zulmira abandonou-se ao mal que tra­zia consigo, imantando-se, ainda, ao mal de que a adversária é portadora, e tornou-se, por isso, en­ferma e dementada.

— E o pequeno, em toda a história? — inqui­ri, admirado.

— Júlio foi conduzido à região que lhe é pró­pria.

— Mas, Odila não poderia vê-lo, certificando-se de toda a verdade?

— Infelizmente — explicou o venerando ins­trutor —, a infortunada criatura tem o centro genésico plenamente descontrolado e isso lhe impede a visão mais ampla. Não consegue querer senão o marido, em vista do apego enlouquecedor aos vínculos do sexo, que a paixão nada faz senão des­virtuar. Odila possui admiráveis qualidades morais que jazem, por enquanto, eclipsadas...

Desencar­nou em largo vigor de seu idealismo feminino, sem uma fé religiosa capaz de reeducar-lhe os impulsos, justificando-se, desse modo, a superexcitação em que se encontra.

Semelhante estado, contudo, é transitório e esperamos se submeta, de boa von­tade, ao tratamento de reajuste que lhe será dis­pensado, em breve. Melhorada a situação dela, creio que o problema terá imediata e construtiva solução.

Ia perguntar algo de novo, mas atingíramos a praia e Clarêncio determinou nos puséssemos a observar.


5

Valiosos apontamentos

Alcançáramos a orla do mar, em plena noite.

A movimentação da vida espiritual era aí mui­to intensa.

Desencarnados de várias procedências reencon­travam amigos que ainda se demoravam na Terra, momentâneamente desligados do corpo pela anes­tesia do sono. Dentre esses, porém, salientava-se grande número de enfermos.

Anciães, mulheres e crianças, em muitos as­pectos diferentes, compareciam ali, sustentados pelos braços de entidades numerosas que os assistiam.

Conversações edificantes e lamentos doloridos chegavam até nós.

Serviços magnéticos de socorro urgente eram improvisados aqui e além... E o ar, efetivamente, confrontado ao que respirávamos na área da cida­de, era muito diverso.

Brisas refrescantes sopravam de longe, car­reando princípios regeneradores e insuflando em nós delicioso bem estar.

— O oceano é miraculoso reservatório de for­ças — elucidou Clarêncio, de maneira expressiva —; até aqui, muitos companheiros de nosso plano tra­zem os irmãos doentes, ainda ligados ao corpo da Terra, de modo a receberem refazimento e repouso. Enfermeiros e amigos desencarnados desvelam-se na reconstituição das energias de seus tutelados. Qual acontece na montanha arborizada, a atmos­fera marinha permanece impregnada por infinitos recursos de vitalidade da Natureza. O oxigênio sem mácula, casado às emanações do planeta, Con­verte-se em precioso alimento de nossa organização espiritual, principalmente quando ainda nos acha­mos direta ou indiretamente associados aos fluidos da matéria mais densa.

Passávamos agora na vizinhança de uma dama extremamente abatida, quase em decúbito dorsal à frente das águas, recolhendo o auxílio magnético de um benfeitor que se iluminava no serviço e na oração.

Clarêncio deixou-nos por momentos, conversou algo com um amigo, a pequena distância, e regres­sou, informando:

— Trata-se de irmã do nosso círculo pessoal, assediada pelo câncer. Foi retirada do veículo fí­sico, através da hipnose, a fim de obter a assis­tência que lhe é necessária.

— Mas — objetei, curioso — esse tipo de tra­tamento pode sustar o desequilíbrio das células orgânicas? a doente conseguirá curar-se, de modo positivo?

O Ministro sorriu e aclarou:

— Realmente, na obra assistencial dos espí­ritos amigos, que interferem nos tecidos sutis da alma, é possível, quando a criatura se desprende parcialmente da carne, a realização de maravilhas.

Atuando nos centros do perispírito, por vezes efe­tuamos alterações profundas na saúde dos pacien­tes, alterações essas que se fixam no corpo somá­tico, de maneira gradativa. Grandes males são assim corrigidos, enormes renovações são assim realizadas. Mormente quando encontramos o ser­viço da prece na mente enriquecida pela fé trans-formadora, facilitando-nos a intervenção pela pas­sividade construtiva do campo em que devemos operar, a tarefa de socorro concretiza verdadeiros milagres. O corpo físico é mantido pelo corpo es­piritual a cujos moldes se ajusta e, desse modo, a influência sobre o organismo sutil é decisiva para o envoltório de carne, em que a mente se manifesta.

Nesse ponto das explicações, porém, o Minis­tro abanou a cabeça e ajuntou:

— Nossa ação, contudo, está subordinada àlei que nos rege. No problema de nossa irmã, o concurso de nosso plano conseguirá tão somente angariar-lhe reconforto. A moléstia, em razão das provas que lhe assinalam o roteiro pessoal, atingiu insopitável extensão.

— Quer dizer que ela, agora, apenas se habi­lita à morte calma? — indagou Hilário, atencioso.

— Justamente — confirmou o orientador. —Com a cooperação em curso, despertará no corpo desfalecente mais serena e mais confortada. Repe­tindo as excursões até aqui, noite a noite, habi­tuar-se-á, com entendimento superior, à idéia da partida, transmitindo aos familiares resignação e coragem para o transe da separação; aprenderá a contribuir com o seu esforço, no sentido de aliviar-lhes as aflições pela humildade que edificará, dentro de si mesma... pouco a pouco; desligar-se-á da carne enfermiça, acentuando a luz inte­rior da própria consciência, a fim de separar-se do ambiente que lhe é caro, como quem encontra na morte física valiosa liberação para serviço mais enobrecido. E, assim, em algumas semanas, mos­trar-se-á admiràvelmente preparada ante o novo caminho...

Clarêncio silenciara.

O assunto requisitava-me a novas observações.

— Nesse caso — comecei a falar, hesitante.

O Ministro, porém, sorriu compreensivo e ata­lhou, esclarecendo:

— Já sei a tua conclusão. É isso mesmo. A enfermidade longa é uma bênção desconhecida en­tre os homens, constitui precioso curso preparató­rio da alma para a grande libertação. Sem a mo­léstia dilatada, é muito difícil o êxito rápido no trabalho da morte.

Nesse instante, contudo, Zulmira e Odila che­gavam à praia, em sítio não longe de nós.

Clarêncio recomendou-nos atenção.

Rodeamo-las, prestamente, qual se fossem ir­mão enfermas, sob a nossa guarda.

Nem uma nem outra nos identificavam a pre­sença. Tão pouco pareciam interessadas pelo movi­mento no logradouro.

A primeira esposa de Amaro centralizava o olhar sobre a presa, enquanto que a vítima revelava na expressão facial o intraduzível terror dos que se abeiram do extremo desequilíbrio.

Zulmira ensaiava o gesto de quem se propunha a regressar precipitadamente a casa, mas, contida pela companheira, avançava, entre a aflição e o pavor.

E, repetindo as mesmas acusações que já ou­víramos, Odila martelava o cérebro da outra, reiterando, desapiedada:

— Recorda o crime, infeliz! lembra-te da hor­rível manhã em que te fizeste assassina! onde colocaste meu filho? porque afogaste um inocente?

— Não, não! — gritava a pobrezinha demen­tada — não fui eu! juro que não fui eu! Júlio foi tragado pelas ondas...

— E porque não velaste pela criança que meu marido levianamente confiou às tuas mãos infiéis? acaso, não te acusa a própria consciência? onde situas o senso de mulher? Pagar-me-ás alto preço pelo relaxamento delituoso... Não permitirei que Amaro te ame, alimentarei a antipatia dele contra ti, atormentarei as pessoas que te desejarem so­correr, destruirei a própria casa de que te apos­saste e me pertence!... Impostora! impostora!...

— Sim, sim... — concordava Zulmira, terrifi­cada —, não matei, mas não fiz o que me competia para salvá-lo! Perdoa-me! perdoa-me! prometo em­penhar-me no refazimento da paz de todos... Serei uma escrava de teu marido e restitui-lo-ei aos teus braços; converter-me-ei em serva de tua filhinha, cujos passos orientarei para o bem, mas, por pie­dade, deixa-me viver! Liberta-me! Compadece-te de mim!...

— Nunca! nunca! — bradava a interlocutora, friamente — tua falta é imperdoável. Mataste!

Deves confessar o delito perpetrado, à frente da polícia!... Dobrar-te-ei a cerviz! Serás recolhida à penitenciária, para que te mistures às delinqüentes de tua laia!...

— Não! não! — suplicava Zulmira, com sinais comoventes de angústia.

— Se não aniquilaste meu filho — bradava a outra, cruel —, devolve-o aos meus braços!

Devol­ve-o! devolve-o!

Nesse momento, ambas se achavam à frente de determinada nesga da praia.

Os olhos da pobre obsidiada adquiriram estra­nho fulgor.

— Foi aqui! — rugiu a perseguidora, rudemente — aqui consumaste o sinistro plano de extinção da nossa felicidade...

Qual se fora tangida de secretos impulsos, a segunda mulher de Amaro desprendeu-se dos braços que a constringiam e, penetrando as águas, cla­mava, aflita:

— Júlio! Júlio!...

Odila, no entanto, perturbada e ensandecida, pôs-se-lhe no encalço.

Sentindo-lhe a aproximação, Zulmira rodou so­bre os calcanhares e disparou de volta ao lar.

Acompanhamos as duas, na competição a que se entregavam, sem perdê-las de vista.

Varando a casa, incontinenti, dando a idéia de que o corpo adormecido era poderoso magneto a atraí-la, Zulmira despertou, alagada de suor, con­servando no cérebro de carne a impressão de que vagueara em terrível pesadelo.

Tentou gritar, mas não conseguiu.

Faleciam-lhe as forças em colapso nervoso, insopitável. A dispneia castigava-a com violência, enquanto as coronárias se mostravam intumescidas.

Clarêncio aproximou-se e aplicou-lhe fluidos salutares e repousantes.

Acalmou-se-lhe o coração, vagarosamente, o campo circulatório tornou à feição normal. Foi en­tão que a desventurada senhora conseguiu gemer, clamando por socorro.


6

Num lar cristão

Propúnhamo-nos seguir o caso de Zulmira, não só para cooperar, a favor de suas melhoras, mas também para registrar os ensinamentos possíveis, e, solicitando o concurso de Clarêncio, dele ouvimos judiciosas ponderações.

— Sim — disse —, para auxiliar em processos dessa natureza, é preciso marchar para a frente, mas, para compreender o serviço que nos compete e avançar com segurança, é necessário voltar à retaguarda, armando-nos de lições que nos escla­reçam.

Não sabíamos como interpretar-lhe a palavra, entretanto, ele mesmo nos socorreu, explicando, de­pois de ligeira pausa:

— Para realizarmos um estudo geral da situa­ção, convém o contacto Com outras personagens do drama que se desenrola. Ser-nos-á interessante, para isso, uma visita ao pequeno Júlio, no domi­cílio espiritual em que estagia.

— Oh! será um prazer! — clamei, contente.

— Poderíamos seguir agora? — perguntou Hi­lário, encantado.

O Ministro refletiu por segundos e observou:

— Nas responsabilidades que esposamos, não é aconselhável indagar por indagar. Procuremos o objetivo, a utilidade e a colaboração no bem. Não nos achamos em férias e sim em trabalho ativo.

Pensou, pensou... e aduziu:

— Sei que amanhã, à noite, Eulália deve acom­panhar duas de nossas irmãs encarnadas à visita­ção dos filhinhos que as precederam na grande viagem da morte e que se encontram no mesmo sítio em que Júlio se demora asilado. Poderemos substituir nossa cooperadora no serviço a fazer. Seguiremos em lugar dela. Prestaremos assistên­cia às nossas amigas e examinaremos a situação da criança.

Anotando a preciosa lição de trabalho que aquelas expressões encerravam, aguardamos a noi­te próxima, com ansiedade real.

Na hora aprazada, descemos à matéria densa, em busca das irmãs que seguiriam conosco.

Deixou-nos o Ministro numa casinha singela de remota região suburbana, depois de informar-nos:

— Aqui reside nossa irmã Antonina, com três dos quatro filhos que o Senhor lhe confiou.

Inca­paz de vencer as tentações da própria natureza, o marido abandonou-a, há quatro anos, para com­prometer-se em delituosas aventuras. A dona da casa, porém, não desanimou. Trabalha com diligên­cia numa fábrica de tecidos e educa os rebentos do lar com acendrado amor ao Evangelho de Nosso Senhor Jesus. Tem sabido resgatar com valor as dívidas que trouxe do pretérito próximo. Perdeu, há meses, o pequeno Marcos, de oito anos, atacado de fulminante pneumonia, e com ele se encontrará, depois da prece que proferirá com os pequeninos. Trarei comigo a outra companheira de nossa via­gem. Quanto a vocês, auxiliem nas orações e nos estudos de Antonina, até que eu volte, de modo a seguirmos todos juntos.

Hilário e eu penetramos a sala desataviada e estreita.

Uma senhora ainda jovem, mas extremamente abatida, achava-se de pé, junto de três lindas crian­ças, dois rapazinhos entre onze e doze anos e uma loura pequerrucha, certamente a caçula da família, que pousava na mãezinha os belos olhos azuis.

Num recanto do compartimento humilde, tris­te velhinho desencarnado como que se colocava à escuta.

Dona Antonina colocou sobre a toalha muito alva dois copos com água pura, tomou um exem­plar do Novo Testamento e sentou-se.

Logo após, falou carinhosamente:

— Se não me falha a memória, creio que a prece de hoje deve ser feita por Lisbela.

A pequenita levou as minúsculas mãos ao ros­to, apoiou graciosamente os cotovelos sobre a mesa e, cerrando os olhos, recitou:

— Pai Nosso que estais no Céu, santificado seja o vosso nome, venha a nós o vosso Reino, seja feita a vossa vontade assim na Terra como nos Céus, o pão nosso de cada dia dai-nos hoje, perdoai as nossas dívidas, assim como perdoamos aos nos­sos devedores, não nos deixeis cair em tentação e livrai-nos de todo mal, porque vosso é o Reino, o poder e a glória para sempre. Assim seja.

Lisbela abriu os olhos, de novo, e procurou silenciosamente a aprovação maternal.

Dona Antonína sorriu, satisfeita, e exclamou:

— Você orou muito bem, minha filha.

E dividindo agora a atenção com os dois me­ninos, entregou o Evangelho a um deles, convidando:

— Abra, Henrique. Vejamos a mensagem cris­tã para os nossos estudos da noite.

O rapazinho escolheu o texto, ao acaso, res­tituindo o livro às mãos maternais.

A genitora, emocionada, leu os versículos 21 e 22 do capítulo 18º das ano­tações do apóstolo Mateus:

— “Então Pedro, aproximando-se dele, disse:

— Senhor, até quantas vezes pecará meu irmão contra mim e eu lhe perdoarei? Até sete? Jesus lhe disse: — Não te digo que até sete, mas até seten­ta vezes sete.”

Calou-se dona Antonina, como quem aguarda­va a manifestação de curiosidade dos jovens apren­dizes.

O pequeno Henrique, iniciando a conversação, perguntou, com simplicidade:

— Mãezinha, porque Jesus recomendava um perdão, assim tão grande?

Demonstrando vasto treinamento evangélico, a senhora replicou:

— Somos levados a crer, meus filhos, que o Divino Mestre, em nos ensinando a desculpar todas as faltas do próximo, inclinava-nos ao melhor pro­cesso de viver em paz. Quem não sabe desvenci­lhar-se dos dissabores da vida, não pode separar-se do mal. Uma pessoa que esteja parada em lem­branças desagradáveis caminha sempre com a irri­tação permanente. Imaginemos vocês na escola. Se não conseguirem esquecer os pequeninos abor­recimentos nos estudos, não poderão aproveitar as lições. Hoje é um colega menos amigo a preparar lamentável brincadeira, amanhã é uma incorreção do guarda enfadado em razão de algum equívoco. Se vocês imobilizarem o pensamento na impaciên­cia ou na revolta, poderão fazer coisa pior, afligin­do a professora, desmoralizando a escola e preju­dicando o próprio nome e a saúde. Uma pessoa que não sabe desculpar vive comumente isolada. Nin­guém estima a companhia daqueles que somente derramam de si mesmos o vinagre da queixa ou da censura.

Nessa altura do ensinamento, dona Antonina fitou o primogênito e perguntou:

— Você, Haroldo, quando tem sede preferiria beber a água escura de um cântaro recheado de lodo?

— Ah! isso não — replicou o mocinho muito sério —, escolherei água pura, cristalina...

— Assim somos também, em se tratando de nossas necessidades espirituais. A alma que não perdoa, retendo o mal consigo, assemelha-se ao vaso cheio de lama e fel. Não é coração que possa re­confortar o nosso. Não é alguém capaz de ajudar-nos a vencer nas dificuldades da vida.

Se apre­sentamos nossa mágoa a um companheiro dessa espécie, quase sempre nossa mágoa fica maior. Por isso mesmo, Jesus aconselhava-nos a perdoar in­finitamente, para que o amor, em nosso espírito, seja como o Sol brilhando em casa limpa.

Expressivo intervalo fêz-se notar.

O jovem Haroldo, de semblante apoquentado, interferiu, indagando:

— Mas a senhora crê, mãezinha, que devemos perdoar sempre?

— Como não, meu filho?

— Ainda mesmo quando a ofensa seja a pior de todas?

— Ainda assim

E, observando-o, inquieta, dona Antonina acen­tuou:

— Porque tratas deste assunto com tamanha preocupação?

— Refiro-me ao papai — disse o menino algo triste —, papai abandonou-nos quando mais preci­sávamos dele. Seria justo esquecer o mal que nos fêz?

— Oh! meu filho! — comentou a nobre mu­lher — não te detenhas nesse problema. Porque alimentar rancor contra o homem que te deu a vida? como condená-lo se não sabemos tudo o que lhe aconteceu? Seria realmente melhor para o nos­so bem estar se ele estivesse conosco, mas, se de­vemos suportar a ausência dele, que os nossos me­lhores pensamentos o acompanhem. Teu pai, meu filho, com a permissão do Céu, deu-te o corpo em que aprendes a servir a Deus. Por esse motivo, é credor de teu maior carinho. Há serviços que não podemos pagar senão com amor.

Nossa dívida para com os pais é dessa natureza...

Recordando talvez que a família se achava num curso de formação cristã, a dona da casa acres­centou:

— Um dia, quando Moisés, o grande profeta, foi ao monte receber a revelação divina, uma das mais importantes determinações por ele ouvidas do Céu foi aquela em que a Eterna Bondade nos recomenda: — “Honrarás teu pai e tua mãe”. A Lei enviada ao mundo não estabelece que devamos analisar a espécie de nossos pais, mas sim que nos cabe a obrigação de honrá-los com o nosso amo­roso respeito, sejam eles quais forem.

A reduzida assembléia recolhia as explicações, de olhos felizes e iluminados.

Haroldo mostrou-se conformado, todavia, ain­da ponderou:

— Compreendo, mãezinha, o que a senhora quer dizer. Entretanto, se papai estivesse junto de nós, talvez que Marcos não tivesse morrido. Te­ríamos o dinheiro suficiente para tratá-lo.

Dona Antonina enxugou, apressada, as lágri­mas que lhe caíram, espontâneas, ante a evocação do filhinho, e continuou:

— Seria um erro permitir a queda de nossa confiança no Pai Celestial. Marcos partiu ao encontro de Jesus, porque Jesus o chamava. Nada lhe faltou. Rogo a vocês não darmos curso a qual­quer idéia triste, em torno da memória do anjo que nos precedeu. Nossos pensamentos acompanham no Além aqueles que amamos.

Nesse ponto da conversação, Lisbela inquiriu, graciosa:

— Mãezinha, Marcos nos vê?

— Sim, minha filha — esclareceu dona Anto­nina, emocionada —, ele nos ajuda em espírito, pe­dindo a Jesus forças e bênçãos para nós. Por nossa vez, devemos auxiliá-lo com as nossas preces e com as nossas melhores recordações.

Dona Antonina, porém, pareceu asfixiada por enormes saudades. Enquanto os meninos comentavam com interesse os ensinamentos da noite, de­morava-se absorta, mentalizando a imagem do pe­quenino...

Quando o relógio assinalou o fim do culto, solícitou a Henrique fizesse a oração de encerramento.

O petiz repetiu a prece dominical, rogando ao Senhor abençoasse a mãezinha, e o trabalho terminou.

A dona da casa repartiu com os pequenos al­guns cálices da água cristalina que Hilário e eu magnetizáramos e, logo após, pensativa e saudosa, retirou-se com os filhinhos para a câmara em que se recolheriam todos juntos.


7

Consciência em desequilíbrio

Consoante as recomendações que havíamos recebido, aguardámos dona Antonina, no estreito recinto em que se processara o culto familiar.

Agora, conseguíamos reparar o ancião desen­carnado com mais atenção. Conservando integrais remanescentes da vida física, abatido e trêmulo, parecia inquieto, dementado...

Tentámos debalde uma aproximação.

Não nos via.

Lembrei ao meu companheiro que poderíamos densificar o nosso veículo, pela concentração da vontade, e apressámo-nos na providência.

Em momentos breves, fornecendo a impressão de recém-chegados, atraímos-lhe o interesse.

O velhinho precipitou-se para nós, exclamando:

— São oficiais ou praças? Estão pró ou con­tra?

Aquele olhar esgazeado era efetivamente o de um louco.

Hilário e eu trocámos impressões de curiosi­dade e espanto.

E antes que nos pronunciássemos, começou a chorar, convulsivamente, acentuando:

— Quem trouxe aqui a idéia de perdoar? em que ponto me situaria na questão? devo perdoar ou ser perdoado? Não entendo a necessidade de discussão em torno de um assunto como esse entre fraca mulher e três crianças... Comentários dessa natureza devem ser reservados para pessoas afli­tas como eu, que trazem um vulcão no centro do crãnio...

Assim dizendo, alteraram-se-lhe as feições fi­sionômicas.

Afigurou-se-nos mais distante da realidade, mais inconsciente.

Gritando quase, continuou:

— Tudo teria sido modificado se me houves­sem facultado o encontro com o novo Generalíssi­mo... Sua Alteza compreender-me-ia a situação. Era propósito do Marechal requisitar-me para seu serviço exclusivo, entretanto, por influência do meu miserável perseguidor, sofri transferência injusta...

Nosso inesperado amigo vasculhou com os olhos os recantos da sala, qual se temesse a presença de alguma testemunha invisível, e prosseguiu:

— Ouçam, porém, o que lhes digo! Ele não somente pretendia afastar-me dos favores do Ma­rechal doente, mas planejava furtar-me a mulher... Lola Ibarruri! como não haveria de querê-la com a paixão que me inspirou? Porque teria eu de se­guir para Fecho dos Morros? O intento de me prejudicarem era evidente. Sem dúvida, fui cons­trangido a sair, mas não fui além de Tacuaral. O General Polidoro não me abandonaria... Devia re­gressar a Luque e regressei. .. O infame Esteves, contudo, agira sem descansar... Além de assaltar-me os direitos de enfermeiro no Quartel General, desviara a atenção de Lola... A formosa Ibarruri não mais me pertencia. Entregara-se ao amigo desleal... Nossa pequena chácara de laranjeiras e nosso jardim estavam esquecidos... Quem disse que não me sacrifiquei na aquisição da encantadora casinha, por mim confiada à pérfida mulher?

Du­rante um mês longo e terrível, suspirei pelo re­torno aos carinhos dela... Quando tornei ao lar, naquela estrelada noite de maio, encontrei-a nos braços do traidor... Lola tentou desculpar-se, mas surpreendi-os juntos... Quis vingar-me, de imedia­to, espetando-o com meu punhal, todavia, as tropas deixariam a cidade, daí a três dias, e o meu ini­migo, que se esgueirara na sombra, ante a minha aproximação deu-se pressa em viajar, a serviço, no rumo de Itauguá... O ódio passou a dominar­-me, enceguecendo-me... Encontrá-lo-ia em algu­ma parte, abraçá-lo-ia com a mesma cordialidade fingida com que me abraçara pela primeira vez e arrancar-lhe-ia a vida... Assim fiz... Aparentei ignorar a realidade e busquei-o, sorrindo... e, sor­rindo, envenenei-o... Creiam, contudo, que somen­te me abalancei a semelhante ato, porque ele era impudente, libertino, cruel... Assassinar-me-ia, se eu não tivesse o arrojo de liquidá-lo...

Fêz breve pausa e, em seguida, ajoelhando dian­te de nós, passou a clamar, de novo, em alta voz:

— Oh!... para mim, estou certo de que pra­tiquei a justiça, mas este homem realmente não me abandona! Lutei tanto!... Casei-me e organizei grande família!... Devotei-me à religião, desfrutei os benefícios dos santos sacramentos e admiti que tudo estivesse amplamente solucionado, entretanto, depois de retirar-me do corpo físico sob a imposi­ção da velhice e da enfermidade, longe de encontrar o céu que parece cada vez mais distante de mim, reconheço que este homem continua a per­seguir-me por dentro!... Faz muitos anos que me despedi dos ossos fatigados e perambulo, aflito e infeliz, carregando o inferno, dentro de mim!... A princípio, procurei o sepulcro, na esperança de soerguer meus restos e, escondendo-me neles, es­quecer... esquecer... Compreendendo, porém, que meu desejo era de todo frustrado, fugi para sem­pre do lugar que me asila os despojos e devoro ruas e praças, buscando autoridades que me so­corram...

Depois de passar as mãos pelo rosto, enxu­gando as lágrimas, continuou:

— Ó senhores, por quem são!... ainda mes­mo que o meu erro fosse tão clamoroso assim, tanto tempo de convívio com este monstro a fi­tar-me, imperturbável, não bastaria à expiação que me compete ao resgate? Se eu confessasse o crime e me demorasse por menos tempo no cárcere, não estaria redimido, diante dos tribunais?

Sentindo que algo nos caberia dizer à guisa de consolo, afaguei-lhe a cabeça branca e falei,

tentando ser gentil:

— Acalme-se, meu irmão! quem de nós não terá desacertado no caminho da vida? sua dor não é única... Também nós trazemos o espírito pejado de aflitivas recordações. As lágrimas de desespe­ração desajudam a alma...

Pelas citações que ouvíramos, percebi que o nosso interlocutor se reportava ao tempo da Guer­ra do Paraguai e, buscando penetrar o labirinto de suas palavras que estabeleciam ligação do pas­sado com o presente, indaguei:

— A que novo Generalíssimo se refere?

— Ah! ignoram?

E dando-nos a idéia de quem vivia profunda­mente arraigado a particularidades do pretérito, aduziu:

— Recordo-me com precisão... Sim, a procla­mação dele era de 16 de abril... O Príncipe D. Gastão de Orleães era o novo comandante em che­fe, mas muito me pesava o afastamento do Marechal...

— Qual deles? — perguntei, reavivando-lhe a memória.

— O Marechal Guilherme Xavier de Souza. Era meu amigo, meu protetor... Doente, cansado, precisava de mim... contudo, afastaram-me dele... Esteves, o cão infiel...

Nesse instante, porém, a voz extinguiu-se-lhe na garganta. Esbugalharam-se-lhe, os olhos e, como se estivesse atenazado no íntimo por forças terrí­veis, insondáveis à nossa observação, começou a queixar-se, desesperado:

— Ah! não posso continuar!... Ele, novamen­te ele, a crescer dentro de mim! Observa-me com asco e ainda lhe ouço as últimas palavras no es­tertor da morte... Não! Não! — bradava ele, ago­ra, com evidentes sinais de angústia — hei-de li­bertar-me! hei-de libertar-me! Tenho fé!.

Comovidamente, acerquei-me do pobrezinho e considerei:

- Sim, meu amigo, a fé representa o mila­groso salva-vidas de todos os náufragos. Você tem orado? tem pedido a Jesus amparo e assistência?

— Sim, sim..

- E ainda não lhe chegou qualquer sinal de socorro celeste?

O infortunado centralizou em mim o olhar in­quieto e informou:

— Há alguns dias, fui à Igreja do Rosário, recordando como sempre a visita que fiz até lá, na véspera de minha partida para a guerra, e tanto rezei que tive a felicidade de ver o Marechal, que me apareceu, de súbito... Estava mais moço e in­compreensivelmente refeito... Roguei-lhe proteção ao que me respondeu, informando que o meu caso seria tomado em apreço, que eu descansasse, pois ainda que os nossos erros sejam grandes, maior éa compaixão de Deus que nunca nos desampara...

E, exibindo um gesto de profundo abatimento, acrescentou:

— Mas, até agora, não tive o menor sinal de renovação do caminho...

Acariciei-lhe a nevada cabeça e considerei, co­movidamente:

— Esteja convencido, porém, de que a bon­dade de Jesus não nos faltará.

— Prometa ajudar-me! compadeça-sedemim!

gritou o infeliz.

De coração, íntimamente tocado por semelhan­te apelo, hipotequei-lhe a decisão de colaborar em sua paz e soerguimento.

Quando o infortunado ancião procurava abra­çar-me, Clarêncio chegou, guiando a outra pupila que nos acompanharia na excursão.

Simpática e humilde, após cumprimentar-nos, manteve-se a distância, O mentor, num átimo, com­preendeu o que se passava. Vimo-lo concentrar-se por momentos, densificando-se para auxiliar com mais presteza.

Saudado pelo velhinho, afagou-lhe a fronte e avisou-nos:

— Permanece dementado. A mente dele fi­xou-se em recordações que o obcecam.

Mais experiente que nós outros, guardou-o nos braços com paternal carinho, conquistando-lhe a confiança e inquiriu:

— Que procura, meu irmão?

— Venho suplicar o socorro de Antonina, mi­nha neta. É a única pessoa que se lembra de mim com amor... Dentre os numerosos membros de mi­nha família, só ela me oferece asilo na oração...

E, porque reiniciasse as referências lamurio­sas, o Ministro colocou a destra sobre a cabeça de nosso interlocutor, como a sondar-lhe o íntimo em minuciosa perquirição e, em seguida, informou:

— Temos aqui nosso irmão Leonardo Pires, desencarnado há cerca de vinte anos... Quando jovem, foi empregado do Marechal Guilherme Xa­vier de Souza e hoje conserva a mente detida num crime de envenenamento em que se envolveu, quan­do integrava as forças brasileiras acampadas em Piraju, no Paraguai. Podemos conhecer o delito, em suas particularidades, na tela das recordações que o atormentam... É um domingo de festa em campanha... 11 de julho de 1869... A missa écelebrada em pleno campo por um frade capuchi­nho... O Conde d’Eu, com a luzida oficialidade do seu Quartel General, está presente... Nosso ami­go, muito moço ainda, aparece no corpo da infan­taria. Não se mostra, porém, interessado nas graves advertências do sacerdote, no ato religioso, nem no apelo ardente e patriótico do Generalíssimo, que pronuncia brilhante e inspirada alocução para os convidados... Fita com impertinência um com­panheiro recém-chegado de Itauguâ, enfermeiro em serviços especiais... E’ José Esteves, irrequieto brasileiro de olhos escuros e inteligentes, de gar­boso porte, com os seus trinta anos bem feitos...

Partilha com o nosso amigo o afeto de linda mu­lher desquitada, que abandonou o marido e um filho pelo prazer da aventura... Pires, o irmão que observamos, inconformado com os favores da criatura amada para com o patrício que ele odeia, finge ignorar-lhe a situação e insinua-se maneiroso e gentil... Terminada a festa, convida Esteves para refeição mais íntima... E, juntos, comentam entusiásticos as noitadas do Rio, ansiosos pelo re­torno às seduções da retaguarda... Esteves entro­sa-se com as impressões de Leonardo, confia nele e conversa, loquaz, até que o vingativo colega, na taverna improvisada, lhe oferece um copo de vi­nho com o veneno fatal... O companheiro bebe, experimenta estranhas vertigens e morre prague­jando... O acontecimento é recebido com admira­ção... Um médico argentino é chamado a opinar e verifica o envenenamento, contudo, as autoridades julgam o silêncio mais acertado... As tropas de­veriam seguir rumo a Paraguarí e o caso é encer­rado sem maior investigação... Leonardo acompa­nha o Exército para a vanguarda e tenta esquecer o ocorrido... Convive ainda com a requestada mu­lher, por mais algum tempo, mas, de regresso à terra natal, desinteressa-se dela e casa-se no Bra­sil, deixando vários descendentes... Desencarna, valetudinário; todavia, no leito de morte, reconhece que a lembrança do crime lhe castiga o mundo in­terior... Olvida quase todos os demais episódios da existência para centralizar-se apenas nesse... José Esteves já reencarnou, demorando-se agora em outros setores de luta, mas Leonardo Pires vive com a imagem do assassinado que se revitaliza, cada dia, na memória dele, ao influxo das suges­tões da própria consciência que se considera culpa­da... Como vemos, é a Lei de causa e efeito a cumprir-se, natural...

Nesse instante, porém, Antonina, em seu veícu­lo sutil, surgiu à porta da câmara em que o seu corpo dormia, vindo ao nosso encontro.


8

Deliciosa excursão

O velhinho desencarnado demonstrava absoluta indiferença, ante a descrição do nosso orientador, mas, como se a presença da nobre senhora lhe despertasse novo interesse, fitou-a, de olhos súbi­tamente iluminados, e bradou:

— Antonina! Antonina!... Socorre-me. Tenho medo! muito medo!...

A interpelada, que fora do corpo denso se mos­trava muito mais delicada e mais bela, fixou-o, triste, e inquiriu com amargurado semblante:

— Vovô, que fazes?

O ancião curvou-se e implorou:

— Ajuda-me! Todos na família me esquece­ram, com exceção de ti. Não me abandones!... Ele, o meu ferrenho inimigo, me tortura por den­tro. Assemelha-se a um demônio, morando em mi­nha consciência...

Tentava agora enlaçá-la, aflito, mas Clarêncio interferiu, indicando-nos:

— Ouça, amigo! Nossos irmãos prometeram ampará-lo e, decerto, cumprirão a palavra. Nossa abnegada Antonina, no momento, precisa ausen­tar-se, em nossa companhia, por algumas horas.

E abraçando-o, paternal, recomendou:

— Você pode igualmente auxiliá-la. Guarde-lhe a casa, enquanto os meninos repousam. Amanhã, receberá, por sua vez, o socorro de que necessita.

O velho sorriu conformado e aquietou-se.

Deixando-o a sós, na sala estreita, saímos para a noite.

Entrelaçando as mãos e conservando nossas irmãs no circuito fechado de nossas forças, empreendemos a formosa romagem.

Quem na Terra poderá imaginar as deliciosas sensações da alma livre?

Viajando com a rapidez do pensamento, avan­çámos à frente da sombra noturna, largando para trás o deslumbramento da aurora, em colorido e cantante dilúculo...

Atingindo formosa paisagem, banhada de sua­ve luz, em que um parque imponente e acolhedor se distendia, fixei o semblante de nossas compa­nheiras, que se mostravam extáticas e felizes.

Dona Antonina, amparando-se em Clarêncio qual se fora uma filha apoiada nos braços pater­nos, inquiriu, maravilhada:

— Porque não transformar esta excursão em transferência definitiva? Pesa o corpo, à maneira de insuportável cruz de carne, quando conseguimos sentir a Terra, de longe...

— É verdade — concordou a outra irmã, que se sustentava em nós —, porque não nos é dado permanecer, olvidando os pesares e os dissabores do mundo?

— Compreendemos — ajuntou o Ministro, ge­neroso —, compreendemos quanta inquietação pun­ge o espírito reencarnado, mormente quando des­perto para a beleza da vida superior, entretanto, é indispensável saibamos louvar a oportunidade de servir, sem jamais desmerecê-la.

Achamo-nos ainda distantes da redenção total e todos nós, com alternativas mais ou menos longas, devemos abra­çar a luta na carne, de modo a solver com digni­dade nossos velhos compromissos. Somos viajores nos milênios incessantes. Ontem fomos auxiliados, hoje nos cabe auxiliar.

Á medida que avançávamos, ondas de perfume acentuavam-se, em torno de nós, revigorando-nos as energias e induzindo-nos a respirar a longos sorvos.

Flores de contextura delicada pendiam abun­dantemente de árvores vigorosas, embalsamando as leves virações que sussurravam encantadoras me­lodias...

Como se trouxesse agora todo o busto engri­naldado de luz, Clarêncio sorria, bondoso.

Emudecera-se-lhe a palavra.

Sentiamo-nos todos magnetizados e enterne­cidos ante a beleza do quadro que nos prendia a admiração.

Antonina, porém, como se estivesse irradiando insopitável curiosidade, mesclada de alegria, voltou a exclamar:

— Ah! se morrêssemos hoje!... se a carne não nos pesasse mais!...

O Ministro, contudo, imprimindo mais grave entonação à voz, mas sem perder a brandura que lhe era peculiar, considerou, de imediato:

— Se hoje abandonassem o veículo de maté­ria densa, quem diz que seriam felizes? Quem de nós obterá a suprema ventura, sem a perfeita su­blimação pessoal?

E, fitando Antonina com bondade misturada de compaixão, observou:

— Agora, vocês visitarão filhinhos abençoados que a morte lhes arrebatou temporàriamente ao convívio terrestre. Vocês se sentem como que num palácio dourado, em pleno paraíso de amor, mas, e os filhinhos que ficam? Haverá Céu sem a pre­sença daqueles que amamos? Teremos paz sem alegria para os que moram em nosso coração? Imaginemos que as algemas do cárcere físico se partissem agora... O atormentado lar humano cres­ceria de vulto na saudade que as tomaria de as­salto... A lembrança dos filhos aprisionados no Planeta acorrentá-las-ia ao mundo carnal, à maneira de forte raiz retendo a árvore no solo escuro. Os rogos e os gemidos, as lutas e as provas dos rebentos menos felizes da existência lhes falariam ao espírito mais imperiosamente que os cânticos de bem-aventurança dos filhos afortunados e, na­turalmente, desceriam do Céu para a Terra, pre­ferindo a posição de angustiadas servas invisíveis, trocando a resplendente glória da liberdade pelos dolorosos padecimentos da prisão, de vez que a ventura maior de quem ama reside em dar de si mesmo, a favor das criaturas amadas...

As duas mulheres ouviram as sensatas ponde­rações sem dizer palavra.

Finda a pausa ligeira, o instrutor continuou:

— Somos devedores uns dos outros!... Laços mil nos jungem os corações. Por enquanto, não há paraíso perfeito para quem volta da Terra, tanto quanto não existe purgatório integral para quem regressa ao humano sorvedouro! O amor é a for­ça divina, alimentando-nos em todos os setores da vida e o nosso melhor patrimônio é o trabalho com que nos compete ajudar-nos mutuamente.

Na paisagem banhada de luz, experimentei mais alta veneração pela Natureza, que, em todas as es­feras, é sempre um livro revelador da Eterna Sa­bedoria...

Nossas irmãs, tocadas por júbilo inexprimível, afiguravam-se-me formosas madonas de sonho, re­pentinamente vivificadas, diante de nós.

É pelo trabalho — prosseguiu o orienta­dor — que nos despojamos, pouco a pouco, de nossas imperfeições. A Terra, em sua velha ex­pressão física, não é senão energia condensada em época imemorial, agitada e transformada pelo tra­balho incessante, e nós, as criaturas de Deus, nos mais diversos degraus da escada evolutiva, apri­moramos faculdades e crescemos em conhecimento e sublimação, através do serviço... O verme, ar­rastando-se, trabalha em benefício, do solo e de si mesmo; o vegetal, respirando e frutescendo, ajuda a atmosfera e auxilia-se. O animal, em luta perene, é útil à gleba em que se desenvolve, adqui­rindo experiências que lhe são valiosas, e nossa alma, em constantes peregrinações, através de for­mas variadas, conquista os valores indispensáveis à sublime ascensão... Somos filhos da eternidade, em movimentação para a glória da verdadeira vida e só pelo trabalho, ajustado à Lei Divina, alcan­çaremos o real objetivo de nossa marcha!

Antonina, que parecia mais acordada que a sua companheira, para a contemplação do excelso quadro que nos circundava, perguntou, com enlevo:

- Porque não guardamos a viva recordação de nossas existências anteriores? não seria bendita felicidade o reencontro consciente com aqueles que mais amamos?...

— Sim, sim... — confirmava Clarêncio, en­quanto nossa deliciosa excursão prosseguia, céle­re — mas, na condição espiritual em que ainda nos situamos, não sabemos orientar os nossos de­sejos para o melhor. Nosso amor ainda é insigni­ficante migalha de luz, sepultada nas trevas do nosso egoísmo, qual ouro que se acolhe no chão, em porções infinitesimais, no corpo gigantesco da escória. Assim como as fibras do cérebro são as últimas a se consolidarem no veículo físico em que encarnamos na Terra, a memória perfeita éo derradeiro altar que instalamos, em definitivo, no templo de nossa alma, que, no Planeta, ainda se encontra em fases iniciais de desenvolvimento. É por isso que nossas recordações são fragmentá­rias... Todavia, de existência a existência, de ascensão em ascensão, nossa memória gradativamente converte-se em visão imperecível, a serviço de nos­so espírito imortal...

— Mas se pudéssemos reconhecer no mundo os nossos antigos afetos, se pudéssemos rever os semblantes amigos de outras eras, identificando­-os... — aventurou Antonína, reverente.

— Retomar o contacto com os melhores, seria recuperar igualmente os piores — atalhou Clarêncio, bondoso — e, indiscutivelmente, não possuimos até agora o amor equilibrado e puro, que se con­sagra aos desígnios superiores, sem paixão. Ainda não sabemos querer sem desprezar, amparar sem desservir. Nossa afetividade, por enquanto, padece deploráveis inclinações. Sem o esquecimento tran­sitório, não saberíamos receber no coração o adver­sário de ontem para regenerar-nos, regenerando-o. A Lei é sábia. De qualquer modo, porém, não olvi­demos que nosso espírito assinala todos os passos da jornada que lhe é própria, arquivando em si mesmo todos os lances da vida, para formar com eles o mapa do destino, de acordo com os princípios de causa e efeito que nos governam a estrada, mas somente mais tarde, quando o amor e a sabedoria sublimarem a química dos nossos pensamentos, éque conquistaremos a soberana serenidade, capaz de abranger o pretérito em sua feição total...

O Ministro fêz ligeiro intervalo, sorriu pater­nalmente para nós e rematou:

— A Lei, contudo, é invariàvelmente a Lei. Viveremos em qualquer parte, com os resultados de nossas ações, assim como a árvore, em qualquer trato do solo, produzirá conforme a espécie a que se subordina.

O firmamento parecia responder às sugestões da palestra admirável.

Bandos de aves mansas pousavam na ramaria que brilhava não longe de nós.

O Sol apresentava perceptíveis raios diferen­tes, até agora desconhecidos à apreciação comum na Terra, provocando indefiníveis combinações de cor e luz.

Por abençoada e colorida colmeia de amor, har­monioso casario surgiu ao nosso olhar.

Centenas de gárrulas crianças brincavam entre fontes e flores de maravilhoso jardim.


9

No Lar da Bênção

Clarêncio movimentou a destra, indicando-nos o quadro sublime a desdobrar-se sob a nossa vista.

Doce melodia que enorme conjunto de meninos acompanhava, cantando um hino delicado de exal­tação do amor materno, vibrava no ar.

Aqui e ali, sob tufos de vegetação verde-clara, muitas senhoras sustentavam lindas crianças nos braços.

— É o Lar da Bênção — informou o instru­tor, satisfeito. — Nesta hora, muitas irmãs da Terra chegam em visita a filhinhos desencarnados. Temos aqui importante colônia educativa, misto de escola de mães e domicílio dos pequeninos que re­gressam da esfera carnal.

O Ministro, porém, interrompeu-se, de impro­viso.

Nossas companheiras pareciam agora tomadas de jubilosa aflição.

Vimo-las desgarrar, de inopino, qual se fossem atraidas por forças irresistíveis, precipitando-se para os anjinhos que cantarolavam alegremente. Enquanto a que nos era menos conhecida enlaçava louro petiz, com infinito contentamento a expres­sar-se em lágrimas, dona Antonina abraçou um pe­queno de formoso semblante, gritando, feliz:

— Marcos! Marcos!...

— Mãezinha! Mãezinha!... — respondeu a criança, colando-se-lhe ao peito.

Clarêncio fêz sinal para as irmãs vigilantes, que se responsabilizavam pelos entretenimentos no parque, como a solicitar-lhes proteção e carinho para as nossas associadãs de excursão, e disse-nos, em seguida:

— O pequeno Júlio não se encontra no grupo. Ainda sofre anormalidades que lhe não permitem o convívio com as crianças felizes. Acha-se no lar da irmã Blandina. Rumemos para lá.

Em poucos minutos, chegávamos diante de pe­quenino castelo muito alvo, em que se destacavam as ogivas azuis, coroadas de trepadeiras em flor.

Atravessamos extenso jardim, embalsamado de aroma.

Rosas opalinas, ignoradas na Terra, de mistura com outras flores, desabrochavam profusamente.

A irmã Blandina recebeu-nos sorridente, apre­sentando-nos uma senhora simpática que lhe fora avozinha no mundo.

Mariana, nossa nova amiga, cumprimentou-nos, bondosa.

Findas as saudações usuais, Clarêncio tocou, direto, no assunto.

Desejávamos avistar o pequeno Júlio, que ha­via desencarnado por afogamento.

Blandina, que em plena juvenilidade trazia nos olhos os característicos de sublime madureza de espírito, respondeu gentilmente:

— Ah! com muito prazer!

E, encaminhando-nos a iluminada peça, orna­mentada de róseos enfeites, onde um menino repou­sava num leito muito branco, explicou, sem afe­tação:

— Nosso Júlio, até hoje, ainda não se refez completamente. Ainda grita sob pesadelos inquietantes, como se estivesse a sofrer sob as águas. Chama pelo pai constantemente, apesar de parecer mais receptivo ao nosso carinho. Insiste pela vol­ta a casa, todos os dias.

Acercamo-nos do berço largo em que des­cansava.

O menino lançou-nos um olhar de atormentada desconfiança, mas, contido pela ternura da irmã que o assistia, permaneceu mudo e impassível.

— Ainda não se mostrou em condições de par­tilhar os estudos com os outros? — perguntou o Ministro, interessado.

— Não — informou a interpelada, solícita —, aliás, os nossos benfeitores Augusto e Cornélio, que nos amparam frequentemente, são de parecer que ele não conseguirá adquirir aqui qualquer melhora real, antes da reencarnação que o aguarda. Traz a mente desorganizada por longa indisciplina.

Bem humorada, acrescentou:

— É um paciente difícil. Felizmente, dispo­mos da cooperação de nossa devotada Mariana, que o adotou por filho espiritual, até que retorne ao lar terrestre. Foi preciso segregá-lo neste quarto, tamanha é a gritaria a que se entrega por vezes.

— Mas não tem recebido o tratamento mag­nético aconselhável? — indagou Clarêncio, atencioso.

— Diariamente recebe o auxílio necessário —esclareceu Blandina, com humildade —, eu mesma sou a enfermeira. Passes e remédios não faltam.

— E a irmã conhece o caso em suas particu­laridades?

— Sim, conheço. Eulália tem vindo até nós. Lastimo que a mãezinha de nosso doente não esteja em condições de ampará-lo. Creio que o concurso dela poderia insuflar-lhe novas forças.

Entretanto, com exceção da irmãzinha que se lembra dele nas orações, ninguém mais da família o ajuda.

— Mãezinha! Mãezinha L.. — clamou o pe­queno, em voz rouca, erguendo-se e enlaçando Blan­dina, pálido e inquieto.

— Que te incomoda, meu filho?

— Dói-me a garganta... — lamentou-se o rapazinho.

A jovem benfeitora abraçou-o, osculando-lhe os cabelos, e recomendou:

— Não te aflijas. Como é que um moço de teu valor pode chorar, assim por nada? Imagina!

Temos três médicos em casa. E’ impossível que a dor não fuja apressada.

Logo após, sentou-o numa poltrona e solícitou a colaboração de Clarêncio.

O Ministro, cuidadoso, pediu-lhe abrisse a boca e, surpreendidos, notámos que a fenda glótica, prin­cipalmente na região das cartilagens aritenóides, apresentava extensa chaga.

O orientador aplicou-lhe recursos magnéticos especiais e, em poucos instantes, Júlio voltou à tranqüilidade.

— Então? — falou Blandina, amparando-o, afetuosa — onde está agora a garganta dolorida?

E, visivelmente satisfeita, acrescentou:

— Já agradeceste ao nosso benfeitor, meu filho?

O menino, hesitante, caminhou para o Minis­tro, beijou-lhe a destra com respeitoso carinho e balbuciou:

— Muito agradecido.

Blandina ia dizer algo, mas Júlio correu para o seu regaço, choramingando:

— Mãezinha, tenho sono...

A abnegada jovem acolheu-o, com ternura, re­conduzindo-o ao repouso.

Quando tornou à sala, Clarêncio informou que doara ao enfermo energias anestesiantes.

Notara-o fatigado, resolvendo, por isso, induzi-lo ao descanso.

E, talvez porque nos percebesse o cérebro es­fogueado de indagações, quanto àquela minúscula garganta ferida, depois da morte do corpo, o Mi­nistro explicou:

— É pena. Júlio envolveu-se em compromis­sos graves. Desentendendo-se com alguns laços afe­tivos do caminho, no século passado, confiou-se a extrema revolta, aniquilando o veículo físico que lhe fora emprestado por valiosa bênção. Renden­do-se à paixão, sorveu grande quantidade de cor­rosivo. Salvo, a tempo, sobreviveu à intoxicação. mas perdeu a voz, em razão das úlceras que se lhe abriram na fenda glótica. Ainda aí, não se confor­mando com o auxílio dos colegas que o puseram fora de perigo, alimentou a idéia de suicídio, sem recuar. Foi assim que, não obstante enfermo, bur­lou a vigilância dos companheiros que o guarda­vam e arrojou-se a funda corrente de um rio, nela encontrando o afogamento que o separou do en­voltório carnal. Na vida espiritual, sofreu muito, carregando consigo as moléstias que ele mesmo infligira à própria garganta e os pesadelos da asfi­xia, até que reencarnou, junto das almas com as quais se mantém associado para a regeneração do pretérito. Infelizmente, porém, encontra dificulda­des naturais para recuperar-se.

Lutará muito, an­tes de incorporar-se a novo patrimônio físico.

Registrávamos aqueles apontamentos com dolo­rosa admiração. Uma criança doente é sempre um espetáculo comovedor.

Não nos atreviamos a manifestar nossos pen­samentos de estranheza, todavia, o prestimoso ami­go, assinalando-nos decerto as dúvidas, acentuou:

— Há poucos instantes, comentávamos a su­blimidade da Lei. Ninguém pode trair-lhe os princípios. A Bondade Divina nos assiste, de múltiplas maneiras, amparando-nos o reajustamento, mas em todos os lugares viveremos jungidos às consequên­cias dos próprios atos, de vez que somos herdeiros de nossas próprias obras.

O assunto constituía preciosa sugestão para interessantes estudos, mas, antes de enunciar qual­quer pergunta, busquei aspirar, a longos haustos, as baforadas frescas de vento, que carreavam para o recinto vagas sucessivas de agradável perfume.


10

Preciosa conversação

Blandina, que parecia bastante versada nas questões da infância, associando-se à conversação que Clarêncio desenvolvia, considerou, com inte­resse:

— Efetivamente, a Lei é invariável, contudo, a criança desencarnada muitas vezes é problema aflitivo. Quase sempre dispõe de afeiçoados que a seguem, de perto, amparando-lhe o destino, entre­tanto tenho observado milhares de meninos que, pela natureza das provações em que se envolveram, sofrem muitíssimo, à espera de oportunidades fa­voráveis para a aquisição dos valores de que ne­cessitam.

E sorrindo, bondosa, acrescentou:

— O caso de Júlio não é para mim dos mais dolorosos. Tenho visitado departamentos de reajus­te em que se demoram irmãos nossos, arrancados à carne, violentamente, como frutos verdes da ár­vore em que se desenvolvem... Processos de mente enfermiça que só abençoadas estações regenerati­vas na carne conseguem curar...

Poderíamos receber de sua experiência al­guns exemplos objetivos? — indagou Hilário, curioso.

— Ah! são muitos!... — ponderou a nossa interlocutora, gentil — temos para demonstração mais prática os absurdos da megalomania intelec­tual. Há pessoas, na Terra, que não se acautelam contra os desvarios da inteligência e fazem da astúcia e da vaidade o clima em que respiram. Insis­tem na inércia do coração, abominam o sentimento elevado que interpretam por pieguismo e transfor­mam a cabeça num laboratório de perversão dos valores da vida. Não cuidam senão dos próprios interesses, não amam senão a si mesmos. Não per­cebem, contudo, que se ressecam interiormente e nem imaginam os resultados cruéis da cerebração para o mal.

Frequentemente, na luta mundana, avultam na condição de dominadores poderosos, com vastissimo potencial de influência sobre ami­gos e adversários, conhecidos e desconhecidos. Mas, esse êxito é ilusório. Caem sob o guante da morte com grande alívio dos contemporâneos e passam a receber-lhes as vibrações de repulsa. Semelhan­tes criaturas naturalmente são vítimas de si mes­mas e sofrem os mais complicados desequilíbrios mentais. Depois de períodos mais ou menos longos de purgação, após a transição da morte, voltam à carne, necessitados de silêncio e solidão para se desvencilharem dos envoltórios inferiores em que se enredaram, assim como a semente precisa do isolamento na cova escura para desintegrar os ele­mentos pesados que a constringem, para novo de­sabrochar.

A moça esboçou inteligente sorriso e conti­nuou:

— Imaginemos que a terra se recusasse a auxiliar as sementes que esperam reviver, O solo expulsá-las-ia, e, em vez dos germens libertados para a vitória da plantação, teríamos tão somente pevides secas, em aflitiva inquietude, desorientan­do a lavoura. Em verdade, a maioria das mães é constituída por sublime falange de almas nas mais belas experiências de amor e sacrifício, carinho e renúncia, dispostas a sofrer e a morrer pelo bem-estar dos rebentos que a Providência Divina lhes confiou às mãos ternas e devotadas, contudo, há mulheres cujo coração ainda se encontra em plena sombra. Mais fêmeas que mães, jazem obcecadas pela idéia do prazer e da posse e, despreocupando-se dos filhinhos, lhes favorecem a morte, O in­fanticídio inconsciente e indireto é largamente pra­ticado no mundo. E como o débito reclama resgate, as delongas na solução dos compromissos assumi­dos acarretam enormes padecimentos nas criaturas que se submetem aos choques biológicos da reen­carnação e vêem prejudicadas as suas esperanças de quitação com a Lei.

Ante a pausa que se fizera natural, Inquiri:

— Mas a Lei não traçará princípios inamo­víveis? Pretenderá a irmã dizer que uma criança pode desencarnar, fora do dia indicado para a sua libertação?

— Sim, sem dúvida — atalhou o Ministro, que nos escutava —, há um programa estruturado na Espiritualidade para as nossas tarefas humanas, entretanto, pertence-nos a condução dos próprios impulsos dentro delas. Em regra geral, multidões de criaturas cedo se afastam do veículo carnal, atendendo a serviços de socorro e sublimação, mas, em numerosas circunstâncias a negligência e a ir­reflexão dos pais são responsáveis pelo fracasso dos filhinhos.

— Aqui — explicou Blandina, delicada —, re­cebemos muitas solicitações de assistência, a bene­fício de pequeninos ameaçados de frustração. Te­mos irmãs que por nutrirem pensamentos infelizes envenenam o leite materno, comprometendo a es­tabilidade orgânica dos recém-natos’ vemos casais que, através de rixas incessantes, projetam raios magnéticos de natureza mortal sobre os filhinhos tenros, arruinando-lhes a saúde, e encontramos mu­lheres invigilantes que confiam o lar a pessoas ainda animalizadas, que, à cata de satisfações doen­tias, não se envergonham de ministrar hipnóticos a entezinhos frágeis, que reclamam desvelado ca­rinho... Em algumas ocasiões, conseguimos res­tabelecer a harmonia, com a recuperação desejável, no entanto, muitas vezes somos constrangidas a assistir ao malogro de nossos melhores propósitos.

— Nesses casos... — interferi, buscando maio­res esclarecimentos.

Blandina, porém, percebendo-me a indagação íntima, adiantou:

— Nesses casos, ainda e sempre, a Lei é inva­riável. As provas e tarefas sofrem dilação no tem­po, mas serão cumpridas, afinal. Aquilo que não se realiza num século, pode efetuar-se em outro. Nossa boa vontade e nossa aplicação aos Desígnios Divinos podem abreviar qualquer espécie de servi­ço. Quem persiste na direção do bem, mais cedo atinge a vitória.

E com o formoso sorriso que lhe bailava no semblante juvenil, acrescentou:

- Não vale fugir às responsabilidades, por­que o tempo é inflexível e porque o trabalho que nos compete não será transferido a ninguém.

Hilário, que acompanhava a conversação com extremo interesse, considerou:

— Antigamente, na Terra, conforme a teolo­gia clássica, supúnhamos que os inocentes, depois da morte, permaneciam recolhidos ao descanso do limbo, sem a glória do Céu e sem o tormento do inferno, e, nos últimos tempos, com as novas con­cepções do Espiritualismo, acreditávamos que o me­nino desencarnado retomasse, de imediato, a sua personalidade de adulto...

Em muitas situações, é o que acontece —esclareceu Blandina, afetuosa —; quando o Espíri­to já alcançou elevada classe evolutiva, assumindo o comando mental de si mesmo, adquire o poder de fàcilmente desprender-se das imposições da forma, superando as dificuldades da desencarnação prema­tura. Conhecemos grandes almas que renasceram na Terra por brevíssimo prazo, simplesmente com o objetivo de acordar corações queridos para a aquisição de valores morais, recobrando, logo após o serviço levado a efeito, a respectiva apresen­tação que lhes era costumeira Contudo, para a grande maioria das crianças que desencarnam, o caminho não é o mesmo. Almas ainda encarcera­das no automatismo inconsciente, acham-se relati­vamente longe do auto-governo. Jazem conduzidas pela Natureza, à maneira das Criancinhas no colo maternal. Não sabem desatar os laços que as aprisionam aos rígidos princípios que orientam o mun­do das formas e, por isso, exigem tempo para se renovarem no justo desenvolvimento. É por esse motivo que não podemos prescindir dos períodos de recuperação para quem se afasta do veículo fí­sico, na fase infantil, de vez que, depois do con­flito biológico da reencarnação ou da desencarnação, para quantos se acham nos Primeiros degraus da conquista de poder mental, o tempo deve fun­cionar como elemento indispensável de restauração. E a variação desse tempo dependerá da aplicação pessoal do aprendiz à aquisição de luz interior, através do próprio aperfeiçoamento moral.

Encantávamos as exposições claras e simples de nossa interlocutora, cuja palavra tangia com tanta felicidade graves problemas da vida.

Em suas fórmulas verbais singelas e acessí­veis, penetrávamos inquietantes enigmas da puericultura.

Blandina sabia associar a compreensão e a graça, instruindo-nos com discernimento.

Comovido, diante das anotações que lhe defi­niam a valiosa Posição cultural, Ponderei:

— Usando semelhantes apontamentos, podemos entender com mais segurança, os processos dolo­rosos das enfermidades congênitas e das moléstias insidiosas que assaltam a meninice no mundo. Sem­pre fui Possuído de aflitivo assombro, à frente do mongolismo e da epilepsia, da encefalite letárgica e da meningite, da lepra e do câncer, na tenra organização infantil.

— E que dizer dos desastres irremediáveis —considerou Hilário, com emoção —, dos desastres que arrebatam adoráveis flores do lar, deixando inconsoláveis pais e mães? Por vezes numerosas, procurei resposta às terríveis inquirições que nos atormentam, perante corpinhos dilacerados, nos hos­pitais de sangue, sem conseguir ausentar-me do es­curo labirinto.

— Sim — esclareceu a enfermeira, bondosa -, as reparações nos martirizam na carne, mas, sem elas, não atingiríamos o próprio reajustamento.

— Cada qual de nós renasce na Terra — apre­ciou o Ministro — a exprimir na matéria densa o patrimônio de bens ou males que incorporamos aos tecidos sutis da alma. A patogenia, na essência, envolve estudos que remontam ao corpo espi­ritual, para que não seja um quadro de conclusões falhas ou de todo irreais. Voltando à Terra, atraí­mos os acontecimentos agradáveis ou desagradá­veis, segundo os títulos de trabalho que já con­quistámos ou conforme as nossas necessidades de redenção.

Bem humorado, acentuou:

— A carne, de certo modo, em muitas circuns­tâncias não é apenas um vaso divino para o cres­cimento de nossas potencialidades, mas também uma espécie de carvão milagroso, absorvendo-nos os tóxicos e resíduos de sombra que trazemos no corpo substancial.

Reparei, então, com mais insistência, a figura suave de Blandina. Porque se dedicara ela, assim, a trabalhos tão complexos? Não seria mais justo ouvir aquela conversação dos lábios da simpática Mariana, que ali se achava, junto de nós, em sua posição de matrona respeitável?

Externei os meus pensamentos, perguntando, com discrição, à jovem o porquê da grave tarefa de que se incumbia.

Blandina apagou a luz do sorriso que lhe ador­nava o semblante, como flor aberta que se fechas­se, de súbito.

Pesado silêncio pairou no recinto.

Mas, generosa e simples, adoçou a expressão fisionômica e falou, quase conselheiral:

- Fui casada em minha última existência e somente há três anos terrestres me vejo, de novo, na vida espiritual. Não pude acariciar um filhinho, em meus sonhos recentes de mulher, mas hoje sei que preciso reeducar-me no amor de mãe, consoan­te os débitos que contraí no passado. Realmente, sinto grande afeição pelas crianças, Contudo, tenho igualmente enormes dívidas morais para com elas...

O assunto descambava para um círculo parti­cular, que devia ser sagrado aos noSsos olhos.

Por isso mesmo, Clarêncio fêz mudo sinal para mim e a conversação foi canalizada para outro rumo.


11

Novos apontamentos

Hilário, aderindo à renovação da palestra, in­dagou da irmã Blandina se ela era a dirigente do parque em que nos achávamos, ao que ela infor­mou, com humildade:

— Não me atribua tamanho crédito. Tenho tarefas variadas aqui e alhures, entretanto, sou mera servidora. O nosso educandário guarda mais de duas mil crianças, mas, sob os meus cuidados, permanecem apenas doze. Somos um grande con­junto de lares, nos quais muitas almas femininas se reajustam para a venerável missão da mater­nidade e conosco multidões de meninos encontram abrigo para o desenvolvimento que lhes é neces­sário, salientando-se que quase todos se destinam ao retorno à Terra para a reintegração no apren­dizado que lhes compete.

— E a direção central? — inquiriu meu co­lega, esmiuçador.

— Não reside aqui. O parque é uma das vá­rias dependências de vasto estabelecimento de as­sistência e educação, do qual somos hoje tutelados. No fundo, nossa casa é uma larga escola, dotada com todos os recursos indispensáveis ao nosso apro­veitamento. Os melhores processos de habilitação espiritual funcionam conosco, em benefício dos que vão renascer na carne e dos que se dirigirão, mais tarde, às Esferas Superiores.

- Mas possuem aqui até mesmo os cursos primários de alfabetização?

— Não estranhem. Partilho com Blandina o estudo das leis divinas para renovar-me em espírito, com vistas ao grande futuro, mas o amor que ainda trago por velhos companheiros de luta hu­mana constrange-me a larga demora, em serviço de cooperação, na antiga casa de fé religiosa a que me afeiçoei.

— Aliás — ponderou o Ministro, sensato o auxílio divino é como o Sol, irradiando-se para todos. As instituições e as almas que se voltam para o Pai Celestial recebem o suprimento de re­cursos de que necessitam, segundo as possibilida­des de recepção que demonstrem.

Interessado, porém, nos apontamentos que sur­giam, cada vez mais valiosos, Hilário indagou:

— Em que base se formará o processo de au­xílio nas igrejas? Com o impedimento de nossa comunicação direta, como será possível cooperar em favor dos nossos irmãos católicos romanos?

— Muito simplesmente — esclareceu Mariana, prestimosa —, o culto da oração é o meio mais seguro para a nossa influência. A mente que se coloca em prece estabelece um fio de intercâmbio natural conosco...

— Mas não de maneira ostensiva — alegou o nosso companheiro, estudioso.

— Pelo pensamento — explicou a interlocuto­ra, respeitável. — A intuição beneficia em toda parte, e, quanto mais alto é o teor de qualidades nobres na criatura, mais ampla é a zona lúcida de que se serve para registrar o socorro espiritual. O culto público, indiscutivelmente, qual vem sendo levado a efeito, nos tempos modernos, não favo­rece o contacto das forças superiores com a mente popular. Os interesses rasteiros, conduzidos à igre­ja, constituem sólido entrave contra o auxílio celeste. E a preocupação de riqueza e pompa, quase sempre mantida pelo sacerdócio nos ofícios, inuti­liza por vezes os nossos melhores esforços, por­que, enquanto a atenção da alma se prende a exterioridades, as forças contrárias ao bem e à luz encontram facilidades positivas para a cultura do fanatismo e da discórdia. Ainda assim, supe­rando tais obstáculos, é sempre possível algo fazer em benefício do próximo.

— Durante a missa, por exemplo prosse­guiu Hilário, observador —, é viável o seu trabalho de cooperação?

Mariana fixou uma expressão facial de bom humor e aduziu:

— Somos grandes falanges de aprendizes da fraternidade em ação. Por mais desagradáveis se nos mostrem os quadros de luta, a nossa obrigação é servir.

Finda ligeira pausa, continuou:

- Quando a missa obedece a pura convenção social, funcionando como exibição de vaidade ou poder, a nossa colaboração resulta invariàvelmente nula.

E, sorrindo:

- Que teríamos a fazer num ato bajulatórío, em que os devotos da fortuna material ou da perversidade incensam a desregrada conduta de pes­soas inescrupulosas? Há missas solenes de consa­gração a políticos astuciosos e a magnatas do ouro que, em verdade, são reais sacrilégios, em nome do Cristo. Por outro lado, há missas de almas que constituem escárnio à dor dos que foram recolhi­dos pela morte, quais as que são mandadas cele­brar por parentes ambiciosos que, por vezes, até mesmo se alegram com a ausência do morto, ávi­dos que se mostram de lhes pilharem os despojos, na corrida a testamentos e cartórios. Essas mis­sas fortemente adubadas a dinheiro estão para eles tão frias, como os túmulos em que se lhes asilou a carne desfigurada. Mas, se o ato religioso é simples, partilhado por mentes e corações since­ros, inclinados à caridade evangélica e centraliza­dos na luz da oração, com os melhores sentimentos que Possuem, o culto se reveste de grande valor, pelas vibrações de paz e carinho que arremessa na direção daquele a quem é endereçado. Frequen­temente, as missas humildes, realizadas aos pri­meiros cânticos da manhã, são as mais favoráveis ao nosso concurso. Podemos, com mais segurança, articular as possibilidades ao nosso alcance e am­bientá-las a benefício daqueles que esperam de nós o amparo necessário.

Hilário pensou alguns instantes, valendo-se do intervalo que surgira na conversação e obtemperou:

— Possuimos nas igrejas a questão do patro­cínio. Imaginemos que determinado templo foi er­guido à memória de Gerardo Majela. Isso expressa uma obrigação para o grande místico europeu?

— Certamente não se trata de uma obrigação escravizante, mas de um serviço que lhe honra o nome e que merecerá dele certo reconhecimento mesclado de responsabilidade. Devemos reconhe­cer, contudo, que o trabalho do bem, qualquer que ele seja, permanece ligado a Jesus. No entanto, se algum servo do Senhor está ligado a obra por fazer, tanto quanto lhe seja possível desdobrar-se-á para enriquecê-la de bênçãos.

— Mas... e na hipótese de algum santuário surgir, dedicado a suposto herói da virtude? Figuremos alguém da Terra sendo conduzido ao altar por imposição da autoridade humana, sem mérito bastante, à frente do Senhor... Os crentes encar­nados atribuir-lhe-iam poder de que não consegui­ria dispor... Em que situação estaria o templo que lhe fosse consagrado?

Mariana registrou a pergunta, cortesmente, e explicou:

— Numa contingência dessas, mensageiros de Jesus responsabilizar-se-iam pela instituição, dis­tribuindo aí os benefícios adequados aos mereci­mentos e necessidades de cada um.

— E o tipo de assistência? é de renovação espiritual ou de mero socorro aos crentes encarnados?

— Ah! — comentou Mariana, sincera — o trabalho é complexo e divide-se em múltiplos setores. Não está limitado à esfera da experiência física. Inumeráveis são as almas que, desligadas do corpo, recorrem aos altares, implorando escla­recimento... Outras, depois da morte, confiam-se a desequilibradas e moções, invocando a proteção dos Espíritos santificados... E’ preciso corrigir aqui e ajudar além... Agora, devemos injetar um pensamento reconstrutivo nessa ou naquela men­te extraviada, depois, é imprescindível harmonizar circunstâncias, em favor desse ou daquele necessitado... A maioria das pessoas aceita a religião, mas não se preocupa em praticá-la. Daí nasce o terrível aumento das aflições e dos enigmas.

A lógica de Mariana encantava-nos.

Hilário, porém, prosseguiu indagando, perscru­tador.

— Mas, apesar de consciente da verdade que a separação do veículo físico nos impõe, acredita a irmã que a organização católica é suficiente para conduzir o mundo moderno?

Ela sorriu com tristeza e redargüiu:

— Meu amigo, entre cooperar e aprovar, há sensível diferença. A sociedade ajuda a criança sem infantilizar-se. As igrejas nascidas do Cristia­nismo caminham para grande renovação. O progresso assim exige. As idéias de céu e inferno e os excessos de natureza política, na hierarquia eclesiástica, estabeleceram grandes perturbações para a alma popular. Entretanto, cabe-nos considerar as religiões que envelhecem como frutos fortemente amadurecidos. A polpa alterada pelo tempo deve ser colocada à margem, contudo, as sementes são indispensáveis à produção do futuro. Auxiliemos as igrejas antigas, em vez de acusá­-las. Todos somos filhos do Pai Celestial e onde houver o mínimo gérmen de Cristianismo aí surgirão recursos de recuperação do homem e da co­letividade para o Cristo, Nosso Senhor.

A conversaçãO era fascinante e as perguntaS pareciam brilhar ainda, nos olhos de Hilário, maravilhado tanto quanto nós, ante as elucidações que recebia, mas a hora esgotara-Se.

Um sinal de Clarêncio fêz-nos sentir que ha­víamos alcançado o momento da volta.


12

Estudando sempre

Às despedidas, retomámos as excursionistas sob a nossa guarda e, em pouco tempo, achávamo­-nos, de novo, no caminho terrestre.

Da faixa de luz solar, tornámos à imersão na sombra noturna, mas o espetáculo do céu não diminuíra em beleza, porque as primeiras cores da alvorada tingiam o distanciado horizonte.

Clarêncio restituiu a companheira de Antonina ao lar, depois de afetuoso adeus. E, sem maiores delongas, demandámos o ninho doméstico de nossa amiga.

Antonina mostrava-se calada, tristonha...

Dir-se-ia teimava em permanecer, para sempre, junto do pequenino que a precedera na longa via­gem da morte. Todavia, em penetrando o estrei­to santuário familiar, dirigiu-se apressadamente ao quarto, de coração novamente atraído para os ou­tros filhinhos.

O Ministro, paternal, fê-la deitar-se e aplicou-lhe recursos magnéticos sobre os centros corticais. A mãezinha de Marcos demonstrou experimen­tar leve e doce vertigem...

Atendendo ao orientador, demorámo-nos em observação, notando que a Antonina de nossa ma­ravilhosa viagem aderira ao corpo denso, qual se fora por ele sugada, à maneira de formosa mu­lher, de forma sutil e semilúcida, repentinamente engulida por bainha de sombra. Em se justapondo ao cérebro físico, perdera a acuidade mental com que se caracterizava junto de nós. Com a fisiono­mia calma e feliz, despertou no veículo pesado...

Contudo, Antonina não mais nos viu.

Era agora simplesmente a mulher humana, nas cobertas agasalhantes do leito, acomodada à escuridão do recinto.

Lembrava-se, sim, do passeio ao Lar da Bên­ção, mas através de impressões a se esfumarem, rápidas.

Só a imagem do filhinho, tema central do seu amor, lhe persistia clara e movimentada na me­mória...

Nossa presença e todas as demais particula­ridades do vôo sublime lhe acudiara à lembrança por acessórios fantásticos a se lhe perderem nos obscuros escaninhos da imaginação.

Como quem seleciona preciosidades, a conso­lada mãezinha procurava, ansiosa, nos arquivos da própria mente, todas as palavras que ouvira do filho abençoado, buscando retê-las no escrínio do coração. Por isso, das valiosas observações de Cla­rêncio, em poucos minutos não lhe restava na alma qualquer reminiscência.

Antonina movimentou-se, fêz luz e ouvimo-la pensar, vibrante: — Oh! meu Deus, que alegria! pude vê-lo perfeitamente! quero guardar a recor­dação deste sonho divino!... Marcos, Marcos, que saudades, meu filho!...

O Ministro abeirou-se dela, acariciou-lhe a ca­beça, como se a envolvesse em fluidos calmantes e a simpática senhora restabeleceu a sombra no recinto.

Abraçando a caçula que repousava ao seu lado, novamente dormiu.

— Nossa amiga não poderá guardar positivas recordações — informou Clarêncio com atenção.

— Mas, porquê? — indagou Hilário, admirado.

— Raros Espíritos estão habilitados a viver na Terra, com as visões da vida eterna. A penumbra interior é o clima que lhes é necessário. A exata lembrança para ela redundaria em saudade morta!. Como isso é lamentável! — alegou o meu companheiro, penalizado

O Ministro todavia, explicou paciente:

— Cada estágio na vida se caracteriza por finalidades especiais. O mel é saboroso néctar para a criança, mas não deve ser ministrado indis­criminadamente. Reclama dosagem para não vir a ser importuno laxativo. O contacto com o reino espiritual, enquanto nos demoramos no envoltório terrestre, não pode ser dilatado em toda a exten­são, para que nossa alma não afrouxe o interesse de lutar dignamente até o fim do corpo. Antonina lembrarse-á de nossa excursão mas de modo vago, como quem traz no campo vivo da alma um belo quadro de esbatidos Contornos. Recordarse-á po­rém, do filhinho mais vivamente, o bastante para sentir-se reconfortada e Convicta de que Marcos a espera na Vida maior. Semelhante certeza ser-lhe-á doce alimento ao coração.

O silêncio passou a dominar o recinto mas Clarêncio quebrou-o, quase de imediato convidando-nos a socorrer o velhinho que nos aguardava.

Dormitava o ancião numa velha cadeira.

— Será sono? — perguntou Hilário, mais novo que eu na vida do Além.

- Sim — Confirmou o instrutor, benevolente -, na fase em que se encontra, Leonardo subordi­na-se a todos os fenômenos da existência vulgar. Não prescinde, assim, do repouso para refazerse.

Examinamo-lo mais detidamente.

Sem dúvida, o ancião trazia um veículo seme­lhante ao fosso, segundo os princípios organogênios que presidem à constituição do corpo espiri­tual, contudo mostrava-se tão pesado e tão denso como se ainda envergasse a túnica de carne.

Deixei a Hilário os pruridos de curiosidade que em Outro tempo, me assaltavam de imopino.

Após lhe observar o aspecto desagradável, meu colega inquiriu sobre as razões de tal obscureci­mento.

O Ministro não se fêz rogado e explicou:

— O psicossoma (*) ou o perispírito da defini­ção espírita não é idêntico de maneira absoluta em todos nós, assim como, na realidade, não existem dois corpos físicos totalmente iguais. Cada cria­tura vive num carro celular diferente, apesar das peças semelhantes, impostas pela lei das formas. No círculo de matéria densa, sofre a alma encar­nada os efeitos da herança recolhida dos pais, en­tretanto, na essência, a lei da herança funciona invariavelmente do indivíduo para ele mesmo. De­temos tão sõmente o que seja exclusivamente nosso ou aquilo que buscamos.

Renascemos na Terra, junto daqueles que se afinam com o nosso modo de ser, O dipsômano não adquire o hábito desre­grado dos pais, mas sim, quase sempre, ele mesmo já se confiava ao vício do álcool, antes de renas­cer. E há beberrões. desencarnados que se aderem àqueles que se fazem instrumentos deles próprios.

E, imprimindo grave entono à voz, ponderou:

— A hereditariedade é dirigida por princípios de natureza espiritual. Se os filhos encontram os pais de que precisam, os pais recebem da vida os filhos que procuram.

Lembrei-me repentinamente de alguns dos grandes gênios da Humanidade, que produziram filhos monstruosos ou medíocres. Mas, vindo ao en­contro do meu pensamento, o orientador observou:

— No campo das grandes virtudes, os pais usam, por vezes, a compaixão reedificante, empe­nhando-se em tarefas de sacrifício. Temos no mundo mulheres e homens admiráveis que, consolidando qualidades superiores na própria alma, se dispõem

(*) Do grego: psyké, alma, espírito, e soma, corpo. — (Nota da Editora.)

a buscar afetos que permanecem a distância, no passado em tentativas heróicas de auxílio e rea­justamento

E, sorrindo, acrescentou:

- Na família consangüínea ou na família hu­mana, obtemos o que buscamos Quem já acertou as próprias contas com a justiça, pode confiar-se aos sublimes rasgos do amor.

Em seguida, Clarêncio deteve-se na contem­plação do velhinho que repousava e continuou co­mentando, mais particularmente com Hilário:

— Conforme a vida de nossa mente, assim vive nosso corpo espiritual. Nosso amigo entregou-se, demasiado às criações interiores do tédio, ódio, de­sencanto, aflição e condensou semelhantes forças em si mesmo, coagulando-as desse modo, no veícu­lo que lhe serve às manifestações. Daí, esse as­pecto escuro e pastoso que apresenta. Nossas obras ficam conosco. Somos herdeiros de nós mesmos.

— Mas... e se nosso Irmão trabalhasse? se depois da morte procurasse conjugar o verbo ser­vir? — inquiriu meu colega, preocupado

Ah! indiscutivelmente o trabalho renova qualquer Posição mental. Gerando novos motivos de elevação e novos fatores de auxílio, o serviço estabelece caminhos outros que realmente funcio­nam como recursos de libertação. Por isso mesmo, o constante apelo do Senhor à ação e à fraternidade se estende, junto de nós, diàriamente através de mil modos... Todavia, quando não nos devo­tamos ao trabalho, enquanto nos demoramos na vestimenta terrestre, mais difícil se faz para nós a superação dos obstáculos mentais, porque a in­dolência trazida do mundo é tóxico cristalizante de nossas idéias, fixando-as, por vezes, durante tempo indefinível. Se pretendemos Possuir um psicosso­ma sutilizado capaz de reter a luz dos nossos me­lhores ideais, é imprescindível descondensá-lo pela sublimação incessante de nossa mente, que precisará, então, centralizar-se no esforço infatigável do bem. É para esse fim que o Pai Celestial nos concede a dor e a luta, a provação e o sofrimen­to, únicos elementos reparadores, suscetíveis de produzir em nós o reajuste necessário, quando nos pomos em desacordo com a Lei.

Lá fora, porém, as aves matutinas anunciavam o novo dia...

A tênue claridade da manhã penetrava o re­cinto.

Clarêncio lembrou que para socorrer o ancião ensandecido não dispensaríamos algum trabalho de análise da mente, e, porque semelhante servi­ço demandaria talvez a cooperação de companhei­ros encarnados, que não deviam ser incomodados na paisagem diurna, o Ministro convocou-nos à retirada.

O prosseguimento da tarefa assistencial, desse modo, foi marcado para a noite seguinte.


13

Análise mental

O relógio terrestre assinalava meia-noite e três quartos, quando tornámos ao singelo domicílio de Antonina.

A casinha dormia, calma.

Acocorado a um canto, o velho Leonardo man­tinha-se na sala, pensando... pensando...

Adensámo-nos, ante a visão dele, e, reconhe­cendo-nos, ergueu-se e começou a gritar:

— Ajudai-me, por amor de Deus! Estou pre­so! preso!...

Clarêncio, bondoso, convidou-o a acomodar-se na poltrona simples e induziu-o à prece.

O velhinho, contudo, alegou total esquecimento das orações que formulara no mundo, crendo que apenas lhe serviriam as palavras decoradas, mas o orientador, elevando a voz, com o intuito evi­dente de sossegá-lo na confiança íntima, pronun­ciou comovente súplica à Divina Providência, im­plorando-lhe proteção e segurança para quem se mostrava tão desarvorado e tão infeliz.

Emocionados com aquela petição que nos re­novava igualmente as disposições interiores, obser­vámos que o avô de Antonina se aquietara, re­signado.

Clarêncio, logo após a oração, começou a apli­car-lhe forças magnéticas no campo cerebral.

O paciente revelou-se mais intensamente abatido. A cabeça pendeu-lhe sobre o peito, desgover­nada e sonolenta.

Fitando-nos de modo significativo, o Ministro ponderou:

— A corrente de força devidamente dinami­zada no passe magnético arrancá-Lo-á da sombra anestesiante da amnésia. Poderemos, então, son­dar-lhe o íntimo com mais segurança. Assistido por nossos recursos, a memória dele regredirá no tem­po, informando-nos quanto à causa que o retém junto da neta, aclarando-nos, ainda, sobre prová­veis ligações que nos conduzirão à chave do socor­ro, a benefício dele mesmo.

— Mas o retrocesso das recordações poderá verificar-se de improviso? — indagou Hilário, per­plexo.

— Sem dúvida — respondeu o instrutor —, a memória pode ser comparada a placa sensível que, ao influxo da luz, guarda para sempre as imagens recolhidas pelo espírito, no curso de seus inume­ráveis aprendizados, dentro da vida. Cada existên­cia de nossa alma, em determinada expressão da forma, é uma adição de experiência, conservada em prodigioso arquivo de imagens que, em se su­perpondo umas às outras, jamais se confundem. Em obras de assistência, qual a que desejamos mo­vimentar, é preciso recorrer aos arquivos mentais, de modo a produzir certos tipos de vibração, não só para atrair a presença de companheiros ligados ao irmão sofredor que nos propomos socorrer, como também para descerrar os escaninhos da mente, nas fibras recônditas em que ela detém as suas aflições e feridas invisíveis.

— Quer dizer então que...

A frase de Hilário, porém, se lhe apagou nos lábios, porque o Ministro atalhou, completando-lhe a conceituação:

— A mente, tanto quanto o corpo físico, pode e deve sofrer intervenções para reequilibrar-se.

Mais tarde, a ciência humana evolverá em cirurgia psi­quica, tanto quanto hoje vai avançando em técnica operatória, com vistas às necessidades do veiculo de matéria carnal. No grande futuro, o médico ter­restre desentranhará um labirinto mental, com a mesma facilidade com que atualmente extrai um apêndice condenado.

Hilário arregalou os olhos, espantado feliz. E exclamou, em voz quase gritante:

— Ah! Freud, como viste a verdade!.., como detinhas a razão!...

O orientador fixou-o, paternalmente e aduziu:

— Freud Vislumbrou a verdade, mas toda ver­dade sem amor é como luz estéril e fria. Não bastará conhecer e interpretar. É indispensável sublimar e servir. O grande cientista observou as­pectos de nossa luta espiritual na senda evolutiva e catalogou os problemas da alma, ainda encarcerada nas teias da vida inferior. Assinalou a pre­sença das chagas dolorosas do ser humano, mas não lhes estendeu eficiente bálsamo curativo. Fêz muito, mas não o bastante, O médico do porvir, para sanar as desarmonias do espírito, precisará mobilizar o remédio salutar da compreensão e do amor, retirando-o do próprio coração. Sem mão que ajude, a palavra erudita morre no ar.

O Ministro, contudo, calou-se, dando-nos a en­tender que o momento não comportava digressões filosóficas

Acariciou, ainda por alguns instantes, a cabeça do ancião e, em seguida, chamou-o, de manso:

— Leonardo, recorda! Volta ao Paraguai, onde adquiriste o remorso que hoje te retalha o cora­ção! A dor, quase sempre, é culpa sepultada dentro de nós... Retrocedamos ao ponto inicial de teu sofrimento!... Recorda! Recorda!...

O velhinho, diante de nosso intraduzível as­sombro, acordou de olhos transtornados.

Ergueu a fronte, mas seu rosto alterara-se de maneira sensível.

Sustentava iniludivelmente os traços funda­mentais, mas fizera-se mais jovem.

Registrando a surpreendente transfiguração, Hilário interferiu, perguntando:

— Oh! que força mágica será esta?

Nosso orientador fitou-o, sereno, e esclareceu:

— Não nos esqueçamos de que temos diante de nós o veículo espiritual, por excelência vibrátil. O corpo da alma modifica-se, profundamente, se­gundo o tipo de emoção que lhe flui do âmago. Isso, aliás, não é novidade. Na própria Terra, a máscara física altera-se na alegria ou no sofrimen­to, na simpatia ou na aversão. Em nosso plano, semelhantes transformações são mais rápidas e exteriorizam aspectos íntimos do ser, com facilida­de e segurança, porque as moléculas do perispírito giram em mais alto padrão vibratório, com movi­mentos mais intensivos que as moléculas do corpo carnal. A consciência, por fulcro anímico, expres­sa-se, desse modo, na matéria sutil com poderes plásticos mais avançados.

Clarêncio relanceou o olhar pelo recinto e acres­centou:

— Entretanto, não nos descuidemos do serviço a fazer.

Nesse ínterim, Leonardo soerguera-se.

Parecia animado de estranha energia.

O corpo, não obstante continuar obscuro e pas­toso, revelava-se desempenado.

Repentinamente refeito, vigoroso e móbil, cla­mou:

— Lola! Lola! estás aqui? Sinto-te a presen­ça... Onde te ocultas? Ouve-me! ouve-me!

Com inexprimível espanto, vimos dona Anto­nina escapar do aposento, no corpo espiritual com que a divisáramos na véspera.

Avançou ao nosso encontro, extremamente sur­preendida, e, avistando o avô transfigurado, como se fosse tangida no imo da personalidade por mis­teriosa influência, estampou súbita alteração facial, renovando-se igualmente aos nossos olhos.

As linhas do semblante modificaram-se, de ino­pino, e vimo-la realmente mais bela, todavia, me­nos serena e menos espiritualmente.

Favorecendo-nos o máximo proveito nas obser­vações, o Ministro falou em voz baixa:

— Nossa irmã exige tão somente leve auxílio magnético para lembrar-se. Basta-lhe a emotividade anormal do reencontro para cair na Posição vibra­tória do Passado, de vez que ainda não se encontra quitada com a Lei.

Aterrada, Antonína rojou-se de joelhos aos pés do ancião que se rejuvenecera ao influxo dos pas­ses de Clarêncio e gritou:

— Leonardo! Leonardo!

Ele, porém, irradiando no olhar ódio e pade­cimento intraduzíveis bradou:

- Enfim!... Enfim!

E prorrompeu em pranto Convulso

Estupefatos Ouvimos Clarêncío que nos infor­mava, generoso:

- Repararam? Antonina é Lola Ibarruri reen­carnada. Leonardo está vinculado a ela por laços de imenso amor. Ambos procedem de lutas enor­mes, na teia infinita do tempo. A mulher irresponsável de ontem, hoje é mãe amorosa e digna, à pro­Cura da própria regeneração. Tendo abandonado outrora o marido, foi induzida a desposar um ho­mem animalizado, com quem se encontra igualmente enleada por laços do pretérito e que, em não a entendendo agora, relegou-a ao esquecimento. Rece­beu, contudo, antigos associados de destino por fi­lhos do coração, que conduz para o bem. Em contra-posição às facilidades delituosas do passado, atra­vessa atualmente aflitivos obstáculos para viver.

Simpatia incoercível inclinounos para aquela mulher em provas tão ríspidas.

O ensinamento que a vida ali nos ofertava era efetivamente sublime.

A voz do orientador, no entanto, era clara e segura a recomendar:

— Ajudemos. O momento determina auxiliar.


14

Entendimento

Antonina, modificada, esfregava os olhos como quem não desejava acreditar no que via, mas, re­signando-se à evidência, continuou:

— Compadece-te de mim! compadece-te!...

— Lola, donde vens? — perguntou o infeliz.

— Não me induzas a lembrar!...

Não lembrar? Que condenado no tormento da expiação será capaz de esquecer? A culpa é um fogo a consumir-nos por dentro...

— Não me reconduzas ao passado!...

— Para mim é como se o tempo fosse o mes­mo. O inferno não tem horas diferentes... A dor paralisa a vida dentro de nós...

— É preciso olvidar...

— Nunca! O remorso é um monstro invisível que alimenta as labaredas da culpa... A consciên­cia não dorme...

— Não me rebentes o coração!

— E acaso o meu não vive estraçalhado?

O diálogo prosseguia comovente e Antonina, genuflexa, explodindo em angustiosa crise de lágri­mas, implorou com mais força:

— Não golpeies minhas feridas mal cicatriza­das! Não se rouba ao devedor o ensejo de pagar!

— Entretanto, por ti — gemeu o interlocu­tor —, enredei-me no crime.. Amei-te e perdi-me. Trazias nos olhos a traição disfarçada... Oh! Lola, porquê, porquê?...

E, ante o doloroso acento com que essas pala­vras eram pronunciadas, a pobre mulher suplicou, mais triste:

— Leonardo, perdoa-me!... Sofri muito... Enlouqueceste, é verdade! Mas, a perturbação que me atacou era mais lastimável, mais amargosa!... Sabes o que seja o caminho da mulher aviltada, entre o arrependimento e a aflição? Meditaste, al­gum dia, no martírio do coração feminino, relegado à penúria e ao abandono? Refletiste, alguma vez, na desilusão e na fome da meretriz desprezada e doente? Acaso, poderás perceber o que seja a fla­gelação de quem espera a morte, sob o sarcasmo de todos, entre a sede e o suor? Tudo isso co­nheci!.

— Matei, porém, por tua causa... — tarta­mudeou o mísero, infundindo compaixão.

— Naquele tempo — alegou a infortunada —, fiz pior. Exterminei minha alma... Esposa, troquei o altar doméstico pelo mentiroso tablado do gozo fácil; mãe, envileci o mandato que Deus me concedera, crestando todas as flores de minha fe­licidade!...

— Pudeste, no entanto, realizar o reerguimen­to que ainda não consegui... Foste, em suma, feliz!...

— Feliz? — bradou Antonina, semidesespe­rada — acusas-me de infiel, quando, como tantos outros, te cansaste de mim, procurando outras no­vidades e outros rumos !... Vi-me sôzinha, enferma, aniquilada... Debalde busquei afogar no vinho do prazer a horrível impressão do abismo em que me precipitara, porque, quando o desencanto e a en­fermidade me relegaram à margem da vida, acor­dou-se-me a consciência, inculpando-me, desapieda­da... A morte recolheu-me na vala da miséria, como um carro de higiene pública reclama o lixo da sarjeta... Estarás habilitado a compreender-me o sofrimento em toda a extensão?... Por muitos anos, vagueei aflita, como ave sem ninho, refu­giada no espinheiro de dor que cultivara em mim mesma... Esmolei proteção, junto daqueles que me haviam sido afetos estimulantes da juventude... Ninguém se recordava de mim...

Não me cabia recolher uma gratidão que eu não semeara... Até que um dia...

Antonina passou a destra pela fronte pálida, como se evocasse velhas recordações fortemente trancadas na memória. Seu olhar adquirira a as­sustadiça expressão dos enfermos que a febre torna dementados.

Findos alguns instantes, exibiu no rosto a sur­presa de quem se banha num relâmpago de luz.

Parecendo haver encontrado a imagem que an­siosamente procurara, continuou:

— ... até que um dia, senti que me chamavas com pensamentos de carinho e de paz...

Rememo­ravas alguns traços elogiáveis de nossa vida, re­compondo na lembrança as festas que organizáva­mos em favor dos combatentes mutilados... As tuas divagações, arrancando ao pretérito as raras reminiscências felizes que poderíamos identificar, caíram sobre mim como bálsamo refrigerante... Chorei aliviada e adormeci em tua casa, no acon­chego da família que tiveste a ventura de cons­tituir...

Interrompeu-se Antonina, figurando-se-nos in­capaz de prosseguir recordando. Via-se que esbar­rara com insuperáveis impedimentos íntimos.

Emudecera, torturada pela incapacidade mne­mônica que a assaltara de improviso, contudo, o nosso orientador acercou-se dela e afagou-lhe a cabeça, deixando perceber que a auxiliava magnêticamente na recuperação das próprias forças.

— Não posso saber — gritava Leonardo não posso saber! Desde que meu espírito foi ocupa­do por «ele», não consigo coordenar as idéias que me são próprias... Sim, certamente sou culpado... Tens razão... Podias ter recebido meu concurso... Não me cabia pensar em ti como se fosses tão somente mulher.

Mais calma, a pobre interlocutora SUplicou, triste:

— Agora, que te capacitas de minhas dificul­dades, perdoa-me. Não me move outro desejo senão o de renovarme! Sofri muito, aprendi dura-mente!.. Peço a proteção da Divina Bondade para todos aqueles que me não Compreenderam e pro­curo sinceramente olvidar as ofensas que outros me assacaram, como desejo sejam esquecidas as ofensas que pratiquei contra os outros!..

Não me reconduzas, pois, ao passado!... Compadeceste de mim!...

Reparávamos com assombro, que Leonardo e Antonina sob o controle paternal de Clarêncío, se mantinham detidos na Posição vibratória em que haviam sübitamente caído.

Porque não se recordavam os dois do paren­tesco que os reunia?

Nosso instrutor, assinalando-nos a indagação socorreu-nos, esclarecendo:

- Encontram-se ambos imobilizados em certo momento do pretérito, num encontro provocado por influência magnética. Em tais recursos utilizados por nosso plano, no tratamento salutar das molés­tias da alma, determinados centros da memória se reavivam, ao passo que outros empalidecem. As sensações do presente dão lugar às sensações do Passado, para efeito de reajustamento perante o futuro. O fenômeno, porém, é momentâneo. A bre­ves minutos regressarão à Consciência normal, melhorados para a boa luta.

A explicação não podia ser mais satisfatória nem mais Simples.

O Ministro continuava Prestando assistência à nossa amiga, qual se Antonina não devesse avançar na faixa de lembranças.

Aceitando-lhe os apelos, Leonardo como que arrefecera o ímpeto inicial de desesperação.

Fitava-a, agora, quase que piedosamente, mas, longe de albergar qualquer sentimento positivo de ordem superior, arrancou do próprio íntimo nova onda de cólera, que lhe tingiu a máscara fisionô­mica.

Cerrando os punhos, bradou, desvairado:

— Sim, sim, entendo-te... Foste suficientemen­te infeliz... Mas, porque trago comigo o fantasma dele? Ter-se-á convertido num demônio intangível para arrasar-me a existência?

Estaremos no in­ferno, sem saber, agarrados um ao outro? Viverei dentro dele, quanto ele vive dentro de mim? Por­que me não permite o verdadeiro repouso? se pro­curo dormir, desperta-me, cruel; se tento olvidar, agiganta-se-me no pensamento!...

Desequilibrado, Pires ergueu para o teto os punhos retesos, ensaiou alguns passos no recinto estreito e passou a clamar:

- Esteves, homem ou diabo, onde estiveres, em mim ou fora de mim, corporifica-te e vem!... Estou pronto! acertemos a diferença!... Vitima ou carrasco, aparece! que meu pensamento te encon­tre e te traga!... Que as forças do nosso destino nos reúnam, enfim, corpo a corpo!...

Alguns instantes decorreram, quando fomos surpreendidos pela entrada de nova personagem na sala.

Era um homem de seus trinta e cinco anos presumíveis, que se abeirava de nós, igualmente fora do vaso físico.

Passeou no recinto esgazeado olhar, dando-nos a impressão de que não nos percebia a presença e, ofegante e contrariado, qual se estivesse ingres­sando ali, constrangidamente, deteve-se apenas na contemplação de Leonardo e Antonina, reconhecen­do-os, estarrecido e agoniado.

Clarêncío, junto de nós, informou prestimoso:

- Sob a Positiva invocação de Leonardo Es­teves, parcialmente libertado pelo Sono, comparece ao desafio. O repouso noturno favorece tais enten­dimentos, pela atração magnética mais intensivamente facilitada, quando o envoltório de matéria densa exige recuperação.

Notamos que os três protagonistas da cena que Se improvisara jaziam repentinamente hipnotizados por vibrações de assombro e desespero.

Leonardo, porém, dando um salto à retaguar da, bradou:

- Agora! agora, sim !... Vieste mesmo! Vejo-te, fora de minha cabeça, vejo-te como és!... Liquidemos nossa conta... Risca-me dentre os vivos ou eu te riscarei!

- Piedade! Piedade!... - suplicava Antonina, lacrimosa.

Pires, no entanto parecia não ouvi-la, sob o olhar de Esteves que o observava com visível repugnância.

Semi-apavorado e Pondo-se em guarda sacudi­do pelas próprias reminiscências o recém-chegado respondeu, agressivo:

- Conheço-te e odeio-te!... Assassino, assas­sino!...

Engalfinhar-se-iam sem dúvida, como animais, enfurecidos, mas o nosso orientador interferiu, de imediato, imobilizando-os prontamente.

Tocado pelo Ministro Esteves enxergou-nos e, surpreendido aquietou-se.

Clarêncio confiou-o à nossa vigilância e, diri­gindo-se a Leonardo em Voz segura, concitou:

— Meu amigo, extirpa da mente a idéia do crime. Achas-te Cansado, enfermo. Receberás a medicação de que necessita.

Num átimo, ausentou-se e regressou trazendo ao recinto dois amigos de nosso plano, os quais transportaram Leonardo, semi-inconsciente para um santuário de reajuste, em que mais tarde nos receberia a assistência.

Em seguida, nosso instrutor acomodou Esteves na poltrona singela, recomendando-lhe esperar-nos.

O novo companheiro, amedrontado, obedeceu automàticamente.

Logo após, amparando Antonina, procurámos restitui-la ao quarto particular.

Considerámos, então, que se grande fora a ven­tura da pobre senhora na véspera, naquela noite assemelhava-se, desditosa, a um trapo de sofri­mento.

Encontrámos grande dificuldade para recompô-la em espírito e para relígá-la à vestimenta carnal, quase inerte.

Revelava-se imensamente confrangida.

Por mais de duas horas mereceu-nos especial atenção. Somente depois de considerável esforço de Clarêncio, conseguiu refazer-se. Vimo-la acor­dar, exausta e entontecida.

Algo aliviada, Antonina acreditou-se liberta de estranho pesadelo. Ainda assim, sem saber explicar a razão, torturada e apreensiva, continuava soluçando...


15

Além do sonho

Tornando a Esteves, Clarêncio ofereceu-lhe o braço amigo, mas o moço prorrompeu em súplica:

— Não me prendam! não me prendam! Sou a vítima!...

O Ministro absteve-se de continuar em sua afe­tiva manifestação.

No passo vagaroso de quem carrega um fardo de aflição, o inimigo de Leonardo retirou-se para a via pública, regressando ao aconchego doméstico.

Seguimo-lo a pequena distância.

Renovava-se o dia.

Pedestres marchavam diligentes, na direção do trabalho.

Bondes rangiam, sonolentos, e os autos, aqui e ali, começavam a transitar pelas ruas.

Em breve tempo, o rapaz, seguido de nosso grupo, estacionou à frente de vasto conjunto residencial.

Grande relógio próximo exibia o mostrador.

Cinco horas e trinta minutos.

Embatucado, o moço voltou-se para nós, e, em seguida, desapareceu no interior.

Entrámos.

Em momentos rápidos, achávamo-nos diante dele, que se esforçava por reaver o corpo físico.

O Ministro, sem molestá-lo, amparou-o afetuo­samente, e Esteves, pouco a pouco, recuperou a calma natural.

Mantinha-se em suave modorra, quando o des­pertador tilintou, faltando quinze minutos para seis.

O rapaz esfregou os olhos, de carantonha amar­rada, guardando a impressão de mau sonho.

Vestindo-se, apressado, notámos que minúsculo cartão de visita lhe caiu do bolso, ensejando-nos a leitura de um nome: — «Mário Silva, Enfer­meiro».

E o nosso instrutor reafirmou:

— Nosso amigo, ontem Esteves, hoje é Mário Silva, prosseguindo em sua vocação para a enfer­magem. Ouçamo-lo por alguns momentos.

O moço atendeu às obrigações da higiene e, logo após, foi recebido em pequena sala do aparta­mento por simpática velhinha, em cujo olhar adi­vinhamos a ternura de mãe.

Depois de saudação carinhosa, a senhora in­dagou bem humorada:

— Onde esteve esta noite, meu filho? Seu sem­blante carregado não me engana.

— Um sonho horrível, mamãe.

E fixando gestos expressivos, entre os goles do café notificou:

— Sonhei que alguém me chamava, a distân­cia, em voz alta, e, acreditando tratar-se de algum doente em estado grave, não vacilei. Corri ao ape­lo, mas, ao invés de topar um quarto de enfer­mo, vi-me, de imediato, numa cela mal iluminada e úmida...

E, com os recursos de imaginação de que dis­punha para corresponder às requisições da mente, o rapaz continuou:

- Era um perfeito cubículo de prisão, onde me surpreendi encarcerado, de repente, junto de um criminoso de mau aspecto e de infortunada mu­lher em pranto... Senti tanta simpatia pela moça desventurada, quanta aversão pelo réu de medonha catadura. Tive, porém, a impressão nítida de que nos conhecíamos. Um misto de ódio e sofrimen­to me tomou de assalto, junto deles, principalmen­te ao lado do infeliz, CUJO olhar se me afígurava cruel... Perguntava, a mim mesmo, Porque me não retirava de tão detestável presença, mas, enquanto o homem me repelía a mulher me provocava o maior enternecimento... Por mais estranho que pareça, experimentava o desejo de agredi-lo e de acariciá-la, ao mesmo tempo. Achava-me em expec­tativa, quando o criminoso avançou para mim, com o propósito evidente de liquidar-me, ao passo que a pobrezinha procurava defender-me. Estava atô­nito, ignorando se o condenado pretendia assassí nar-me ali mesmo quando tentei uma reação à altura! Cego de incompreensível rancor, ia preci­pitar-me sobre ele, quando, rápido, apareceu um delegado Policial, seguido de dois guardas que en­traram na Contenda, impedindo-nos o mau impulso. O chefe, segundo percebi, de um só golpe conte­ve o meu agressor, obrigando-o a sentar-se, vencido, conquistando-me um respeito tão grande que, real­mente, apesar do desejo de ouvir a mulher ajoe­lhada, em Soluços não arredei pé do lugar em que me apoiava. Depois de palavras enérgicas e rápi­das, o delegado trouxe, então, à cela outros aju­dantes que arrastaram meu adversário para fora... Logo após, acomodando-me numa velha cadeira, reconduziu a jovem para o interior do cárcere...

Estampou na fisionomia a expressão de quem se propunha inütilmente lembrar-se e, decorridos longos instantes de reticência, rematou:

— Depois... depois, não consigo precisar as recordações .. Sei apenas que me pus a correr, em fuga para nossa casa, de Vez que os policiais se mostravam igualmente dispostos a recolherme Temendo o xadrez, acordei estremunhado e abatido...

A velhinha que escutava atenciosa, comentou calma:

— Há Sonhos que valem por terríveis pesa­delos...

— É o que senti — concordou Mário, preo­cupado.

A mãezinha contemplou-o, bondosa, e acres­centou:

— Meu filho, o sonho terá alguma relação com a nossa Zulmira? A mulher com quem simpatizou não seria, acaso, nossa velha amiga, e o homem que lhe inspirou tanta repugnância não poderia ser interpretado como sendo o esposo dela?

O rapaz cobriu-se de leve palidez, mostrou-se mais taciturno e falou, triste:

— Quem sabe?

— Você nunca mais teve notícia de nossa an­tiga companheira?

— Não. Tenho apenas a informação de que mora aqui mesmo, onde o marido é ferroviário de importância.

— Nunca pude entender-lhe a atitude. Tantos anos de convivência, tantos projetos de felicidade!... Trocar tudo, assim, por um viúvo, acompanhado de dois filhos!...

O moço fixou um gesto de amargura e ob­servou:

— Ora, mamãe, evitemos recordações sem pro­veito. Zulmira não deve reaparecer em minha me­mória e esse Amaro que ela desposou é um ponto negro em meu coração. Creio que o melhor senti­mento para eles dois em minha vida íntima é o ódio com que os reúno em minha lembrança.

Não desejo revê-los e, francamente, se eu soubesse que residiam aqui, em nossa vizinhança, decidiria nos­sa transferência para outro rumo...

E, transcorridos alguns instantes, ajuntou:

— Meu sonho foi um simples pesadelo. Algu­ma preocupação imprecisa ou alguma intoxicação alimentar...

A senhora sorriu, desapontada, e aduziu:

— Cá por mim, estou certa de que, à noite, reencontramos as pessoas que amamos ou detesta­mos. Nosso Espírito, no sono, procura os afetos ou os desafetos do caminho para acertar as próprias contas. Disso, não tenho qualquer dúvida.

O filho, indiscutivelmente enfadado, reergueu-se, abraçou a genitora, osculou-lhe a cabeça bran­ca e concluiu:

O relógio é inflexível. O sonho passou e, agora, é a realidade que me espera. Devo cooperar no serviço operatório de duas crianças, às oito em ponto. Não me posso demorar. O hospital não cogita de pesadelos.

Mostrou um sorriso forçado e despediu-se.

A mãezinha acompanhou-o carinhosamente até à porta, retomando os serviços caseiros, pensativa...

Preparando-nos para a retirada, trazia o meu cérebro castigado por obsidiantes interrogações.

Encontráramos um novo capítulo na história da oração de Evelina?

Amaro e Zuhnira, mencionados pelo enfermei­ro, seriam as mesmas personagens que havíamos visitado anteriormente?

Dispunha-me à inquirição, quando o olhar de Clarêncio cruzou com o meu. Registrando-me a es­tranheza, informou:

— Já sei o teor de tuas interrogações. Real­mente, o nosso novo amigo foi noivo de Zulmira, a senhora obsidiada que conhecemos. Pretendia desposá-la, mas foi preterido no coração dela por Amaro, que lhe deve assistência e carinho. O pas­sado fala no presente. Acham-se enredados numa teia de compromissos que lhes reclamam resgate.

— E reencontrar-se-ão para o desdobramento das lutas redentoras em que se envolvem? — per­guntou Hilário, admirado.

— Inevitàvelmente — acentuou o instrutor com voz segura.

A dona da casa, mãe devotada e sensível, me­ditando no sonho do filho, embora movimentando automàticamente a vassoura, orava por ele, rogan­do a Jesus o abençoasse.

Anotávamos-lhe as reflexões na mente preo­cupada. Sabia quanto custara ao moço renunciar

à mulher escolhida. Conhecia-lhe o temperamento enigmático e receava tornar a vê-lo atormentado

e vencido...

O pensamento em prece escapava-lhe da ca­beça, como tênue esguicho de luz.

Clarêncio abeirou-se dela e transmitiu-lhe for­ças calmantes, que lhe sossegaram o coração.

Em seguida, o orientador no-la apresentou, generoso:

— Nossa irmã Minervina é velha conhecida. Recebeu nos braços meia dúzia de filhos que tem sabido conduzir, admiràvelmente. Coração abnega­do, alma rica de fé.

Abraçamo-la, carinhosamente, às despedidas. De regresso, reparando que estávamos desejosos de seguir Mário Silva para obter maiores in­formes, no desenvolvimento de nossa história que começava a ser fascinante, o Ministro recomendou:

— Não convém incomodar nossos amigos no curso das obrigações diuturnas, provocando eluci­dações que seriam desagradáveis e fora de ocasião. Aguardemos a noite, porque enquanto o corpo fí­sico se refaz a alma invariavelmente procura o lu­gar ou o objeto a que imanta o coração.

Ouvimos o orientador e aquietámo-nos.

Cabia-nos aguardar a noite, quando se esten­deriam as nossas experiências.


16

Novas experiências

Noite fechada e alta, tornámos ao domicílio do enfermeiro, seguidos de Clarêncio, que funcionava, como sempre, junto de nós, por mentor diligente e amigo.

Mário Silva, estirado nos lençóis, debalde pro­curava dormir.

O sonho da véspera castigava-lhe o pensamento.

Ruminando as impressões da manhã, refletia de si para consigo: — «seria realmente Amaro, o rival, quem lhe surgira na forma de um criminoso? e aquela mulher chorosa e acabrunhada seria, por­ventura, Zulmira, a companheira de infância, que ainda lhe feria as recordações? onde o motivo de semelhante reencontro? Teimava em afastar para longe as reminiscências da mocidade... por isso mesmo, não acreditava estivesse nele próprio a cau­sa do estranho pesadelo... Permanecia convicto de que alguém o chamara, nitidamente, pronunciando palavras que o constrangiam a atender... Estaria Zulmira em apuros? E esta, acaso se recordaria dele? E se as suas conjecturas expressassem a ver­dade, teria o direito de reaproximar-se? Não ima­ginava isso possível... A chaga do brio retalhado ainda lhe sangrava no coração. Não seria justo acudi-la, nem mesmo a pretexto de socorrer. Co­nhecia-lhe o esposo de relance, mas o suficiente para detestá-lo, com todas as reservas de ódio de que se sentia capaz. Ainda mesmo que a mulher, outrora querida, lhe suplicasse assistência, cabia-lhe ser surdo aos seus rogos... »

Hipóteses inquietantes e perguntas sem respos­ta lhe assediavam o cérebro toldado de apreensão e rancor.

A antiga aversão pelo rival preponderava, do­minando-o.

Porque não voltar ao sonho da noite anterior, de modo a tentar uma solução?

A figura de Amaro crescia-lhe no campo mental.

«Se as almas podiam efetivamente reencon­trar-se, fora do corpo — prosseguia divagando —, decerto conseguiria rever o adversário e revidar... Se fora invocado em sonho, era lícito invocar quem quisesse... Chamaria o renegado esposo de Zul­mira a explicar-se. Concentraria nele o poder do pensamento. Buscá-lo-ia onde estivesse. »

O Ministro contemplava-o, compadecido.

Valendo-se dos minutos para ensinar-nos algo proveitoso, observou:

— A paixão cega sempre. Nossa vida mental é a nossa vida verdadeira e, por isso, quando a pai­xão nos ocupa a fortaleza íntima, nada vemos e nada registramos senão a própria perturbação.

Em seguida, aplicou passes balsamizantes so­bre o rapaz, que se virava, desajustado, no leito -

Mário, qual se houvera sorvido brando anes­tésico, relaxou os nervos e descansou o comboio físico, mas, ressurgindo em nosso plano, começou a extravasar os sentimentos que lhe senhoreavam o espírito.

Não nos assinalava a presença, continuando, porém, sob a nossa observação, em seus mínimos movimentos.

Espantadiço e tateante, vagueou pelos ângulos do quarto no veículo perispirítico, extremamente condensado.

Todavia, pouco a pouco, esgazearam-se-lhe os olhos, dando-nos a idéia de quem se detinha em aflitivos quadros íntimos.

Anotando-nos o assombro silencioso, o instru­tor socorreu-nos, explicando:

— Qual acontece ao nosso amigo Leonardo, o novo companheiro padece angustioso complexo de fixação. Embora tenha o seu caso particular, algo suavizado pelas lutas da carne, que, por vezes, cons­tituem abençoado entretenimento, não consegue di­luir a obcecante recordação do inimigo. A mágoa é-lhe inquietante ferida mental. Enquanto se dis­trai nas tarefas comuns, alheia-se, de alguma sor­te, ao tormento oculto que transporta consigo, mas, em se vendo espiritualmente a sós, dá curso ao ódio coagulado, desde muito, no coração. Obser­vemo-lo!

Mário desceu para a rua, à maneira de louco, e, inalando o ar refrescante da noite, forneceu a impressão de quem se revigorava, de súbito, pas­sando a gritar, com voz estridente:

- Amaro, ladrão! Amaro, usurpador! apare­ce! Se tens dignidade, afronta-me a vingança!... Não tremerei!... Onde ocultaste a mulher que eu amo? Responde, responde!...

Silva caminhava semi-ébrio, sem direção, con­tudo, arremessava as palavras no ar, com veemên­cia e segurança.

Havíamos dobrado esquinas diversas e eis que, quando menos esperávamos, surge alguém ao en­contro dele, em plena via pública.

Copiando o impulso do ferro atraído pelo ímã, o esposo de Zulmira, em seu corpo sutil, corres­pondia ao chamado estranho do inimigo, desligado parcialmente da carne.

Defrontaram-se, a princípio, altivamente, en­tretanto, logo após, com as maneiras do homem mais educado, Amaro esboçou delicado recuo, re­velando-se preocupado em evitar conflitos e abor­recimentos.

O enfermeiro, porém, de ânimo revel, bradou, desconcertante:

— Não te acovardes, bandido! Não fujas!... Temos contas a ajustar!...

O ferroviário, contudo, afastava-se, rápido.

O adversário, no entanto, sem arrefecer no ímpeto, seguia-o, inflexível, longe de renunciar ao escuro propósito de agressão.

Acompanhávamos ambos, quarteirão a quar­teirão, até que esbarrámos à entrada do abrigo doméstico que já conhecíamos, onde Amaro dispôs-se ao ajuste pacífico.

Demonstrando-se interessado em defender a tranquilidade familiar, o dono da casa estacou àporta, aguardando o provocador.

— Então — bradou Silva, exasperado —, éaqui o ninho das serpentes?

Levantando os punhos contra o rival humil­de, prosseguiu, rixento:

— Pagar-me-ás muito caro a intromissão! In­fame enganador, onde puseste a mulher que era minha felicidade e minha vida? Quebraste-me os sonhos, aniquilaste-me os ideais!... Homem terrí­vel, que fizeste de mim? Sou apenas máquina de trabalho, sem fé e sem esperança!...

— Eu não sabia, não sabia!... — alegou Ama­ro, desapontado — nunca tive a intenção de ofen­der-te!

— Maldito! como sabes dissimular! onde está Zulmira? devo exterminar-te para restituir-me a independência?

E afrontado pela serenidade do outro, o enfer­meiro acentuou:

— Não me reconheces, acaso?

— Sim, reconheço-te — falou o interlocutor num suspiro —, és Mário Silva, pessoa a quem devoto consideração e respeito.

— Consideração e respeito? que deslavado fin­gimento! onde a prova de apreço, se me arrancaste a noiva, engodando-a com mentirosas promessas?

— Somente soube de tua velha afeição por ela quando meus compromissos no matrimônio não admitiam qualquer recuo. Se alguém, todavia, me houvesse comunicado lealmente quanto se desen­rolava, em torno de minha preferência, teria renun­ciado em teu favor. Desejaria realmente servir-te, entretanto, agora...

— Hipócrita! — tornou Mário, enfurecido —não creio em tua palavra de lobo disfarçado. Rou­baste-me a única felicidade que eu esperava do mundo! a única felicidade que era minha!...

Amaro fixou triste sorriso e obtemperou:

— E acreditas que eu seja feliz? Admites no casamento apenas a exaltação dos sentidos inferio­res? Crês que o homem consorciado deva encon­trar na mulher simplesmente uma escrava?

Anuo em Zulmira a companheira e a irmã que me cabe proteger. Nem ela e nem eu encontrámos na expe­riência conjugal a ventura das afeições cor-de-rosa, em que o desejo contentado é como a flor que mor­re num dia... Temos padecido muito, Mário. Não ignoras que me casei em segundas núpcias. Zul­mira, por isso mesmo, não terá recolhido em mim a perfeita alegria que lhe seria lícito esperar. Nos­sa aproximação começou por uma série de desajus­tes, que culminaram com a morte do meu caçula, num terrível desastre... Desde então, nossa casa é um espinheiro de sofrimento... Minha esposa adoeceu gravemente e eu mesmo, até agora, con­tinuó agoniado e desfalecente... Saberias, porven­tura, o que seja a desdita de um pai que chora sem lágrimas, mortalmente ferido? Se dívidas pos­suo para com a Divina Providência, podes acredi­tar que não tenho amargado pouco, a fim de ressarci-las... A morte para mim não passaria de bênção libertadora. Como podes observar, não me vejo em condições de aceitar-te o desafio! Estou dilacerado e, mais que dilacerado, vencido...

Com enternecedora inflexão de súplica, acen­tuou:

— Se ainda consagras amor à criatura que desposei, ajuda-nos com a tua compreensão!... Se te fiz algum mal, inconscientemente, perdoa-me! Perdoa-me pelas angústias da minha existência de condenado a horríveis provas morais!...

Mário Silva, com espanto nosso, retribuiu com escandalosa gargalhada.

— Desculpar? Nunca! — exclamou jactancio­so. — Pelo tom da conversa, concluo que a justiça começou a expressar-se, devidamente, mas abreviá­-la-ei com as minhas próprias mãos... Meu des­forço é certo, meu ódio é inexorável!...

Amaro não mais respondeu.

Vimo-lo curvar a cabeça em oração fervorosa. Suaves irradiações de esmeraldina luz escapavam-lhe da fronte. As palavras inarticuladas de que se servia, para implorar socorro, alcançavam-nos o espírito, qual se fossem ondas caloríferas e harmo­niosas de humildade e confiança.

Silva, incapaz de sensibilizar-se, ante a rendi­ção comovente, prosseguia gritando:

— Porque silencias, covarde? Fala, fala! Ex­plica-te!... Reage! Dominaste Zulmira, mas não me dobrarás um milímetro!... Criminosos de tua laia não merecem compaixão!...

Nessa altura do diálogo, Clarêncio convocou-nos, paternal:

— Respondamos à prece de Amaro, com o auxílio fraterno.

Arrastados pela simpatia e pela emoção, acom­panhámos o nosso orientador, sem hesitar.


17

Recuando no tempo

Depois do nosso esforço de autocondensação, para o necessário ajuste vibratório, Clarêncio abei­rou-se dos dois amigos, com o amoroso poder que lhe era característico e, em nos reconhecendo, Má­rio associou-nos a presença ao pesadelo da véspera e passou a clamar:

— Meu caso não é com a polícia!... não pre­cisamos de qualquer delegado aqui!...

— Acalma-te, amigo! — respondeu o Ministro, atencioso. — Não somos quem julgas. Estamos aqui para que te lembres... É indispensável te recordes.

E, situando a destra na fronte do enfermeiro, reparámos que Mário Silva aquietava-se, de repente.

O semblante dele acusou estranha metamor­fose.

Afigurou-se-nos mais elegante, mais jovem.

Abriu desmesuradamente os olhos, depois de alguns momentos, e exclamou, semi-aterrado:

— Ah! agora!... agora me lembro!... Meu agressor de ontem é Leonardo Pires... Como po­deria esquecê-lo assim tão infantilmente? como não rememorar? Disputávamos a mesma mulher... Achávamo-nos em Luque, quando conheci a can­tora e bailarina admirável... Lola Ibarruri! Quem senão ela poderia oferecer-me o bálsamo do esque­cimento? Realmente fiz tudo para separá-los...

Ele não era o tipo de homem capaz de fazê-la feliz! Lola trazia consigo a beleza, a juventude e a arte reunidas e eu carregava no peito o esquife dos sonhos mortos... Deu-me o repouso de que minhalma necessitava... restaurou-me. Mas... que domingo terrível aquele da praça embandeirada, em Piraju!... Deslocavam-se as forças para a caça ao inimigo... Imaginava, porém, a melhor maneira de reencontrar a mulher querida e, naquela manhã de terrível memória, consegui a simpatia de Frei Fidélis, antes da missa... O caridoso capuchinho auxiliar-me-ia, advogando-me a causa... Lola não deveria movimentar-se, entretanto, poderia, por mi­nha vez, tornar à retaguarda!... Os maiorais eram meus amigos!... Obteria, por isso, o favor do Príncipe!... Arquitetava meus planos, quando en­contrei Leonardo... Não supunha conhecesse ele a deserção da companheira e procurei agradá-lo, aceitando-lhe a companhia... O suculento repasto exigia algum trago de vinho e Pires não hesitou, ministrando-me o veneno que trazia às ocultas!... Ah! bandido! bandido!...

Mário levou as mãos à garganta, como se a! registrasse enorme sofrimento e caiu, desamparado, gemendo de dor.

O Ministro, paciente, aplicou-lhe recursos mag­néticos balsamizantes e o rapaz levantou-se, atur­dido.

Amaro, que se mostrava igualmente transtor­nado, acompanhava a cena com manifesta aflição.

Clarêncio ajudou o enfermeiro a firmar-se de novo sobre os pés e perguntou, concitando-o a re­lembrar:

— Por que razão te afeiçoaste à cantora, com tamanho desvario? porque não atendeste aos avi­sos da consciência, que, decerto, te rogava não despertasses o ódio naquele que te aniquilaria o corpo físico?

Apresentando a expressão de um louco, Mário desferiu desconcertante gargalhada e bradou:

— Porque amei Lola Ibarruri? porque não tive escrúpulos em arrebatá-la ao companheiro que a retinha nos braços?

Nosso instrutor afagava-lhe a cabeça com o evidente intuito de reavivar-lhe a memória.

— Ah! sim!... — prosseguiu Mário Silva, alar­mado — ausentei-me de Assunção com o espírito irremediàvelmente desiludido...

De olhar vagueante, como se surpreendesse o passado ao longe, nos recôncavos da noite, conti­nuou:

— Nos arredores da formosa capital para­guaia, construíra minha casa e era feliz!... Lina era o tesouro de meu coração... Minha amiga e minha esposa, minha esperança e minha razão de ser...

Descendente de uma das famílias de Mato Grosso aprisionadas pelo inimigo, na invasão de dezembro de 1864, encontrei-a sem parentes, asi­lada por respeitável família, que a adotara por fi­lha estremecida!... Ah! quando lhe fitava os olhos claros e doces, sentia-me transportado a céus imen­sos... Era tudo o que a mocidade ideara de mais lindo para o meu coração... Nela encontrava a divina novidade de cada dia e, apesar das vicissitudes da guerra, mergulhávamo-nos ambos na rósea corrente dos mais belos sonhos... O próprio Marquês de Caxias conheceu-a e animou-nos a união... Foi assim que, em janeiro de 1869, quan­do a trégua nos atingira, um sacerdote consagrou-nos o casamento... O Conselheiro Paranhos pro­meteu ajudar-nos, tão logo regressássemos ao Bra­sil, para que o nosso consórcio fosse devidamente festejado... Vivíamos tranquilos, como duas aves entrelaçadas no mesmo ninho, quando tive a des­graça de levar ao nosso templo doméstico dois companheiros de trabalho e de ideal... Armando e Júlio... Sim, seriam eles amigos ou abutres?

Sei apenas que Lina e eles se fizeram íntimos em pouco tempo... Com a desculpa de aliviarem os sofrimentos da campanha, os dois passaram a gastar, em nosso pequeno santuário de ventura, todo o tempo que lhes era disponível. Descansava mi­nhalma na confiança sincera, até que um dia...

O semblante do narrador alterou-se, de súbito.

Esgares de amargura modificaram-lhe a feição.

Imprimindo à voz lúgubre acento, continuou, atormentado:

— Até que, um dia, encontrei Lina e Júlio abraçados um ao outro, como se o tálamo conju­gal lhes pertencesse.

Cravou em nós o olhar agora coruscante e terrível e acrescentou:

— Compreenderão, acaso, a dor do homem que se vê irremissivelmente atraiçoado pela mulher em que se apóia para viver? Entenderão o incêndio que lavra no espírito flagelado de quem, num mi­nuto, vê destruidas as esperanças da vida intei­ra?... Tudo é treva para quem carrega consigo mesmo o carvão dos enganos mortos! Não quis acreditar no que via e interpelei a mulher ama­da... Lina, porém, atirou-me em rosto o mais frio desprezo... Afirmou, rudemente, que não podia amar-me, senão como irmã que se compadece de um companheiro necessitado, que me desposara simplesmente para fugir às humilhações que expe­rimentava numa terra estrangeira e que eu, efetivamente, deveria desaparecer... Envergonhado, in­voquei a proteção de superiores amigos e fugi de Assunção... Eu era, contudo, um homem diferen­te... A segurança de caráter que cultivava, brioso, fora abalada nos alicerces... Viciei-me... Confiei-me ao álcool e ao jogo... Do militar responsável, desci à condição de aventureiro infeliz... Foi as­sim que encontrei Lola e Leonardo e não hesitei em exterminar-lhes a felicidade... É muito difícil albergar respeito aos outros, quando fomos pelos outros desrespeitado.

Valendo-se da pausa que se evidenciava, es­pontânea, Clarêncio indagou:

— E nunca recebeste notícias da esposa?

Mário Silva, reconduzido à personalidade de Esteves pela influência magnética, exibiu sarcástico sorriso e informou:

— Lina, que passei a odiar, era demasiado cruel. Achava-me não longe de Assunção, depois de três meses sobre a mágoa terrível que me fora assacada, quando vim a saber que Júlio fora igual­mente escarnecido por ela. Certo dia, de volta ao lar, encontrou-a nos braços de Armando, o outro amigo que parecia consagrar-nos estima fraternal. Menos forte que eu mesmo, Júlio esqueceu-se do revés com que me dilacerara, semanas antes, e, cego de absorvente afeição, ingeriu grande dose de corrosivo... Socorrido a tempo, na caserna, con­seguiu sobreviver, mas, incapaz de suportar os ma­les corpóreos decorrentes da intoxicação, depois de alguns dias embebedou-se deliberadamente e arro­jou-se às águas do Paraguai, aniquilando-se, en­fim... Depois disso, nada mais soube. A morte aguardava-me em Piraju... O destino marcara-me, impiedoso...

Mário fixou desagradável carantonha e acen­tuou:

— Sou um poço de fel. Não posso modificar-me... Haverá paz sem justiça e haverá justiça sem vingança?

Nosso orientador ergueu a voz calmante e con­siderou, generoso:

— É necessário esquecer o mal, meu amigo. Sem aquela atitude de perdão, recomendada pelo Cristo, seremos viajores perdidos no cipoal das tre­vas de nós mesmos. Sem amor no coração, não teremos olhos para a luz.

Silva dispunha-se a responder, entretanto, Ama­ro fizera ligeiro movimento e mostrou-se-nos singu­larmente renovado. Seu veículo espiritual parecia haver regredido no tempo. Revelava-se mais leve e mais ágil e sua face impressionava pelos traços juvenis.

Buscou aproximar-se do enfermeiro num gesto natural de cordialidade, todavia, em lhe observando o rosto metamorfoseado, o antagonista bradou en­tre o ódio e a angústia:

— Armando! Armando! ... Pois és tu? O Ama­ro que hoje detesto é o mesmo Armando de ontem? onde me encontro? enlouqueci, porventura?...

Instruindo-nos, cuidadoso, Clarêncio falou, rápido:

— Não precisei despender grande esforço para que a memória de Amaro tornasse ao pretérito. O sofrimento reparador conferiu-lhe à mente e àsensibilidade recursos novos. Bastou-me tocá-lo de leve, para que aproveitasse a digressão do antigo companheiro, recuperando as recordações da época em estudo...

O esposo de Zulmira procurava estender braços amigos ao adversário que o contemplava, galvani­zado de assombro, contudo, recuando, de repente, como animal ferido, Mário gritou em desespero:

— Não, não! não te acerques de mim! não me provoques, não me provoques!...

O Ministro, no entanto, situando-se entre os dois, pediu, comovidamente:

— Tenhamos calma! Respeitemo-nos uns aos outros!

E, dirigindo-se particularmente ao enfermeiro, determinou, sem afetação:

— Agora, é o momento de nosso amigo. Co­mentaste o pretérito à vontade. É indispensável que Amaro fale por sua vez. A justiça, em qual­quer solução, deve apreciar todas as partes inte­ressadas.

Contido pela força moral da advertência, Má­rio calou-se e, voltados então para o ferroviário, que se fizera mais simpático pela serenidade de que se investira, continuamos à escuta.


18

Confissão

Amaro, cujo semblante exibia os sinais de re­novação a que nos reportámos, começou a dizer, comovido:

— Sim, recordo-me perfeitamente... A madru­gada do Ano Bom de 1869 ficou marcada para sempre em nossa memória... Abordaríamos As­sunção, procedendo de Santo Antônio, em angustio­sa expectativa... A curiosidade abafava a exaustão... Lembro-me de que, antecedendo-se ao desembar­que, Esteves procurou-nos, solicitando-nos o con­curso fraterno para a solução de um problema que reputava importante para o futuro que o aguar­dava... Éramos três amigos inseparáveis na ca­serna e achávamo-nos os três juntos... Ele, Júlio e eu... Na incerteza das ocorrências que nos espe­ravam, pedia-nos, na hipótese de perecer em com­bate, notificar sua morte à jovem Lina Flores, que conhecera, dias antes, em Villeta... Referiu-se, en­tusiástico, ao amor que os ligava e aos projetos que formavam, considerando o porvir... Preocu­pados com a aflição do companheiro, reconfortá­mo-lo com palavras de compreensão e esperança, colocando-nos em guarda... A capital paraguaia, porém, revelava-se fatigada e desprevenida... Ja­mais olvidarei a gritaria dos nossos, triunfantes, em se vendo seguros sobre a presa, criando afliti­vos problemas para as autoridades... Revejo ainda a fisionomia risonha de Esteves, quando se reconheceu são e salvo... Em breve, comunicava-nos o consórcio. Ninguém realmente podia casar-se em campanha, mas o enlace efetuou-se às ocultas, sob a bênção de um sacerdote e com a tolerância dos dirigentes da ocupação, atendendo-se à circunstân­cia de que a noiva era uma pobre menina brasileira, desde muito aprisionada...

Amaro fêz pequena pausa, recobrando energias e continuou:

— Recordo-me de que Júlio e eu fomos em visita ao lar de Esteves, pela primeira vez, em fevereiro do mesmo ano, contudo, colocados à frente de Lina, ambos nos sentimos incompreensivelmente ligados àquela jovem bela e simples, cuja presença exerceu, de imediato, sobre nós, intraduzível atra­ção... Guardei comigo a surpresa que me possuía, mas Júlio, impulsivo e irrequieto, veio a mim ex­travasando o coração... A esposa de Esteves do­minara-lhe a mente, de súbito... Se pudesse ha­ver chegado, antes do companheiro — acentuava enamorado —, não lhe cederia o lugar... Susten­tava a impressão de que Lina já lhe havia surgido em sonhos... E, desse modo, várias vezes repetiu confidências que me tocavam as fibras mais ínti­mas. Anotando-lhe o estado dalma e reconhecendo o direito de Esteves sobre a mulher que despo­sara, tentei retrair-me... Calquei o sentimento e procurei o olvido necessário... A paixão de Júlio era demasiado forte para resignar-se. Insinuou-se junto à recém-casada, cobriu-a de gentilezas e, pro­vàvelmente, quem sabe? nas vicissitudes da guerra e quase criança para guardar-se, como era preciso, nas responsabilidades do casamento, Lina envol­veu-se nas atenções do rapaz, fazendo-lhe concessões... Recordo-me do dia em que Esteves me pro­curou, desolado, comentando o golpe que recebera... Chorou debruçado nos meus ombros. Desejava de­saparecer, aniquilar-se... Fiz-lhe observar, porém, a inoportunidade de qualquer violência... Enfer­meiro bem conceituado e protegido do Conselheiro Silva Paranhos, nosso embaixador em missão extraordinária, junto às Repúblicas do Prata, não lhe seria difícil a retirada de Assunção... Assim aconteceu. Esteves afastou-se, primeiramente rio abaixo, na direção de Villeta, de onde havia tra­zido a esposa e onde se achavam, retardados, al­guns camaradas enfermos, aos quais prestaria as­sistência... Nada mais soube dele, a não ser que havia morrido misteriosamente em Piraju...

Evidenciando enorme padecimento moral, dian­te daquelas evocações, Silva estremeceu e, apro­veitando o intervalo que se fizera, bradou, ago­niado:

— E a tua participação no infortúnio de minha casa? quem me convencerá de que também não te achavas de parceria com Júlio, na destruição de minha felicidade? Infames!..

Clarêncio, afetuoso, acomodou o enfermeiro irritado, recomendando-lhe esperar a narração, até o fim.

Amaro não perdera a calma.

Assinalou a objurgatória do adversário, fixan­do triste sorriso, e continuou:

— Sim, minha confissão deve ser exata e com­pleta... Entendendo que Lina e Júlio se haviam ajustado para a vida comum, tentei distanciar-me... Temia por mim mesmo. Lina, no entanto, como que me registrava a inclinação imanifesta... Dei­tava-me olhares que me acordavam, simultâneamente, para a alegria e para a dor. Queria aproximar-me e fugir dela, ao mesmo tempo... A princípio, tentei evitá-la; contudo, o afastamento do Mar­quês de Caxias deixava as tropas com larga pro­visão de tempo para diversões... Instado talvez pela companheira, Júlio constrangia-me a frequen­tar-lhe a casa. O jogo alegre e o chá saboroso reuniam-nos os três, noite a noite... Amedron­tado, ante o sentimento que a moça despertava em meu coração, não somente porque não devia perturbar-lhe a harmonia doméstica, mas também porque possuia uma noiva no Brasil, busquei isolar-me, de novo... Reparando, todavia, o assédio de Lina, resolvi asilar-me no trabalho mais intenso e consegui a designação para servir na vigilância noturna do Palacete Resquin, onde a ocupação concentrava todos os assuntos e documentos de interesse do nosso País... Ela, entretanto, não desistiu do propósito de que se animava. Certa noite, procurou-me, disfarçada em mulher do povo... A sós comigo, confessou-se... Declarava-se ator­mentada, aflita... Sentira-se amada por Esteves e via-se ardentemente querida por Júlio, mas não pudera interessar-se pela felicidade junto deles, odiando-os por fim...

Amaro confiou-se a longa pausa e continuou:

— Quem poderá explicar os enigmas do cora­ção humano? quem possuirá bastante visão para surpreender os caminhos da alma? Incapaz de do­minar-me, cometi a falta de assumir um compro­misso espiritual que não me competia... Lina agar­rou-se ao meu afeto com o vigor da hera numa construção sem defesa... E foi assim que, em cer­ta manhã de maio, meu companheiro encontrou-nos juntos... Desesperado, Júlio ingeriu grande quan­tidade de corrosivo, mas, amparado suficientemen­te, foi salvo... Debalde, porém, submeteu-se ao tratamento na caserna. Adquiriu estranhos pade­cimentos da garganta e do esôfago e, não sabendo como suportar as provações físicas e morais, ar­rastou-se, um dia, até às águas do Paraguai, su­pondo encontrar na morte a paz que procurava... Experimentando pesados remorsos, por minha vez perdi a afeição que me algemava à mulher que nos atraira e infelicitara e fugi dela, fugi incorporan­do-me às tropas que combateriam os derradeiros remanescentes de Solano López, na Cordilheira... Prometi-lhe a volta, todavia, terminada a luta, tor­nei à pátria por outros caminhos, decidido a ja­mais reencontrá-la...

Amaro, mais comovido, passou a destra pelo rosto e prosseguiu, depois de breve pausa:

— Dez anos correram, apressados... Nova­mente no Rio, casei-me e fui feliz... Numa noite de chuva forte, minha esposa e eu tornávamos do teatro, quando os cavalos em disparada colheram pobre mulher embriagada na via pública... O co­cheiro sofreou os animais e desci a socorrê-la... E enquanto minha companheira continuava o tra­jeto para a casa, procurei internar a mísera cria­tura para a assistência imediata... Guardas e populares auxiliaram-me a empresa, mas com ines­quecível assombro, quando a mulher foi recolhida ao leito, de ventre rasgado a esvair-se em sangue, nela identifiquei Lina Flores... Por dois dias lutou contra a morte... A infeliz reconheceu-me, rela­cionou as desditas que atravessara, desde que se viu sôzinha no Paraguai, esclareceu que viera ao Rio à minha procura e emocionou-me com a nar­ração do drama angustioso em que vivia, tentando a recuperação da felicidade que perdera para sem­pre... Morreu revoltada e sofredora, amaldiçoan­do o mundo e as criaturas...

Amaro interrompeu-se, titubeante.

Mário Silva, estupefato, fixava-o, entre o de­sespero e o pavor.

Notava-se que o ferroviário esforçava-se, em vão, para reaver novas faixas da memória.

Nosso instrutor, contudo, afagou-lhe a fronte, envolvendo-o em renovadas forças magnéticas, e perguntou:

— Onde voltaste a vê-la?

O interpelado esboçou o sorriso de quem reco­lhera a resposta em si mesmo e informou:

— Ah! sim... reencontrei-a na vida espiritual. Achava-se unida a Júlio em aflitivas condições de sofrimento depurador... Compreendi a extensão de meu débito e prometi ressarci-lo... Ampará­-los-ia... Auxiliaria os dois na senda terrestre... Lutaríamos, lado a lado, para conquistar a coroa de redenção... Sim, sim, o destino!... E’ preciso solver os compromissos do passado, conquistando o futuro!...

Calou-se o esposo de Zulmira, visivelmente fa­tigado, mas o enfermeiro, não obstante contido pela força paternal de Clarêncio, começou a chamar por Júlio emitindo brados terríveis.


19

Dor e surpresa

— Júlio! Júlio! comparece, covarde! ... — bra­mia o enfermeiro, possesso.

E percebendo talvez a simpatia que Amaro nos conquistara, à face da serenidade com que supor­tava a situação, prosseguiu, invocando, revel:

— Comparece para desmascarar o patife que procura comover-nos! Júlio, odeio-te! Mas é necessário apareças! Acusa teu desalmado assassino!...

O Ministro procurava contê-Lo, bondoso, mas Silva, como potro indomesticado, gesticulava a es­mo e continuava, conclamando:

— Júlio!... Júlio!...

Sim, Júlio não respondeu à chamada, entre­tanto, alguém surgiu, surpreendendo-nos a atenção.

A irmã Blandina, em pessoa, qual se fora no­minalmente íntimada, estacou junto de nós.

Envolvidos na doce luz que nos banhou, de improviso, aquietámo-nos, perplexos, à exceção de Clarêncio que se mantinha calmo, como se aguar­dasse semelhante visita.

Depois de saudar-nos, Blandina rogou, hu­milde:

— Irmãos, por amor a Jesus, atendei !... Temos Júlio, sob a nossa guarda. Acha-se doente, aflito... Vossos apelos individuais alteram-lhe o modo de ser... Poderia colocar-se mentalmente ao vosso en­contro, contudo, atravessa agora difíceis provas de reajuste... Venho implorar-vos caridade!... Com­padecei-vos de quem hoje se esforça por olvidar o que foi ontem para regenerar-se amanhã, com eficiência!.

Havia tanta aflição e tanta ternura naquela rogativa que a vibração do ambiente modificou-se, de súbito.

Comecei a entender com mais clareza a trama obscura do romance vivo que abordávamos.

Júlio, o menino doente, era o companheiro que voltava na condição de filho do amigo com quem outrora se desaviera...

Não pude, porém, alongar divagações, porque Silva, provàvelmente revoltado contra a emoção que nos senhoreava o espírito, passou a reclamar, de novo:

— Anjo ou mulher, não lutarei contra o sor­tilégio! Não lutarei! mas preciso arrojar este bandido ao despenhadeiro que merece por suas desla­vadas mentiras!... Que Júlio permaneça no céu ou no inferno, sob a custódia dos arcanjos ou dos demônios, todavia, exijo que a verdade surja, in­teira!... Recorro ao testemunho de Lina! que Lina compareça! que ela deponha! Se nos achamos aqui, convocados pelo destino que nos algema uns aos outros, que a pérfida mulher seja ouvida igual­mente...

Nosso instrutor, assumindo a chefia espiritual do grupo, convidou com energia e brandura:

— Lina encontra-se não longe de nós. En­tremos.

A determinação foi obedecida.

Na penumbra do quarto que já conhecíamos, a segunda esposa de Amaro jazia subjugada pela outra.

Enquanto Odila se nos afigurava mais ranco­rosa e mais dura, Zulmira revelava-se mais abatida.

Clarêncio enlaçou Mário, como um pai que re­colhe um filho, carinhosamente, e, apontando a enferma, esclareceu, generoso:

Amigo, acalma-te! Lina Flores, atualmente, padece na forja da luta e do sacrifício, a fim de recuperar-se. Apaga a labareda de ódio que te requeima o coração! Deixa que nova compreensão te beneficie a alma ulcerada!... Não nos cabe pre­judicar o caminho de quem procura a regeneração que lhe é necessária!.

Ante o olhar de Mário, espantadiço e agoniado, o Ministro considerou:

— Lina, hoje, com imensas dificuldades, tenta alcançar a altura do casamento digno e, superando tremendos obstáculos, constrói os alicerces da mis­são de maternidade para a qual se encaminha... Ajudemo-la com as nossas vibrações de compreen­são e carinho. Quando amamos realmente, antes de tudo é a felicidade da criatura amada que nos interessa...

Nosso grupo avançou algo mais.

Junto de nós, Blandina mantinha-se em prece.

O orientador abeirou-se da doente, com atenção respeitosa, e mostrou-lhe o rosto ossudo e triste ao enfermeiro que, ao reconhecê-la, bradou, ater­rado:

— Zulmira! Zulmira, então, é Lina que volta?

O Ministro acariciou-lhe a cabeça e informou, conciso:

— Sim, regressou em companhia de Armando, em dolorosas reparações, O consórcio para eles não foi o castelo de flores de laranjeira, mas sim uma associação de interesses espirituais para o trabalho regenerativo. Armando, em luta no plano da vida real para reerguer-se, aceitou o compromisso de reconduzi-la à dignidade feminina, amparando-lhe as angústias silenciosas...

Estupefato, Silva exclamou, cambaleante:

— Quer dizer então que Zulmira me traiu duas vezes?

— Não te refiras à traição — corrigiu Cla­rêncio, sem alterar-se —, é imprescindível compreender! Armando, ontem, escutou apelos inferiores, incompatíveis com as responsabilidades de que se via depositário. Hoje, é compelido a responder, embora constrangido, a requisições de natureza edi­ficante, às quais, em verdade, não lhe será lícito fugir. Lina Flores reclama alguém que a recambie ao serviço renovador, a fim de que se habilite a auxiliar Júlio, devidamente. Todos somos devedo­res uns dos outros. As almas aprimoram-se, grupo a grupo, à maneira de pequenas constelações, gra­vitando em torno do Sol Magno, Jesus-Cristo!... Como um astro que se distancia do núcleo em que se integra, abandonaste a órbita de velhos compa­nheiros de evolução, caindo, pelas vibrações de afe­tividade e ódio, no centro de forças em que Leo­nardo Pires e Lola Ibarruri aguardam-te a precisa cooperação, de modo a se liberarem perante a Lei. Amaro, noutro tempo, separou Zulmira e Júlio, es­tabelecendo espinheiros dilacerantes entre os dois... Agora, cabe-lhe reuni-los no carinho familiar, para que na posição de mãe e filho se reajustem na afei­ção santificadora... Antigamente, isolaste Leonar­do da afetuosa assistência de Lola, criando emba­raços asfixiantes à própria marcha... Prepara-te na fé para congregá-los, de novo, no templo do­méstico, igualmente na condição de filho e mãe, de maneira a se redimirem para a bênção do amor puro...

Nossas ações são pesadas na Justiça Di­vina... Não podemos enganar o Supremo Senhor.

Nossos débitos, por isso mesmo, devem ser resga­tados, ceitil a ceitil.

A ligeira preleção trouxera-nos enorme pro­veito.

Amaro dobrara a cerviz, revelando-se disposto a obedecer aos ditames de natureza superior, fossem como fossem.

Silva, no entanto, não parecia desperto para as verdades que Clarêncio pronunciara.

Hipnotizado na contemplação da mulher que­rida, demonstrava-se indiferente.

Depois de fitá-la, absorto, entre o carinho e a aversão, quebrou a quietude que envolvera o recinto, rugindo, desesperado:

— Não posso modificar-me, desgraçado de mim!... Odiarei! odiarei a infame que voltou!...

Somente a vingança me convém, não quero per­doar! não quero perdoar!...

Novamente enraivecido e inquieto, como fera solta, erguia os punhos cerrados contra a desditosa mulher que jazia no leito, em lastimável prostra­ção. Seu veículo espiritual rodeava-se agora de um halo cinzento-escuro, que despedia raios desagra­dáveis e perturbantes.

Nosso orientador libertou-o da influência mag­nética com que lhe tolhia as energias.

Tão logo se reconheceu sem o controle que lhe sofreava os movimentos, Silva retrocedeu, excla­mando:

— Não suporto mais! não suporto mais!...

E correu para o seio da noite.

Clarêncio recomendou-nos seguir-lhe o passo, enquanto prestaria assistência ao ferroviário e à esposa, em colaboração com Blandina. O enfermei­ro, decerto — informou o Ministro prestimoso —, retomaria o corpo denso em aflitivas condições de saúde. Passes anestesiantes deviam favorecê-lo. Não podia lembrar a experiência grave daquela hora. A aventura provocada pela insistência men­tal dele mesmo era suscetível de perigosas conse­qüências.

Num átimo, Hilário e eu achamo-nos ao lado de Silva, que aderia ao envoltório de carne com o au­tomatismo da molécula de ferro, atraida pelo imã.

Examinámo-lo, atentamente.

O peito arfava-lhe, sibilante.

O coração acusava-se desgovernado, sob o im­pério de insopitável arritmia.

De imediato, entrámos em ação, sossegando-lhe o campo mental, quanto possível, através de sedativos magnéticos.

Ainda assim, apesar dos passes, pelos quais foi completamente envolvido de energias revigorado­ras, o moço acordou agoniado, hesitante e trêmulo, como se estivesse fugindo de medonhas tempesta­des no mundo Íntimo.

Semi-inconsciente, despendeu vários minutos para identificar-se.

O pensamento surgia-lhe atormentado, nebu­loso...

Tentou locomover-se, mas não conseguiu. Sen­tia-se chumbado à cama, quase na situação de um cadáver repentinamente desperto.

Buscou alinhar recordações, contudo, não pôde. Sabia tão somente que atravessara grande pe­sadelo cujas dimensões lhe não cabiam na memória.

Suarento, aflito, sentia-se morrer...

Instintivamente orou, suplicando a Proteção Divina.

Bastou essa atitude dalma para ligar-se, com mais facilidade, aos fluidos restauradores que lhe administrávamos.

Pouco a pouco, readquiriu os movimentos li­vres e levantou-se, ingerindo uma pílula calmante.

Amedrontado, sentou-se no leito e, mergulhan­do a cabeça nas mãos, falou, sem palavras, de si para consigo: — «Estou evidentemente conturbado. Amanhã, consultarei um psiquiatra. É a minha única solução».

Sim — concordei comigo mesmo —, o ódio gera a loucura. Quem se debate contra o bem, cai nas garras da perturbação e da morte.

Com semelhante raciocínio, afastei-me.

Clarêncio aguardava-nos.

Era preciso continuar na lição.


20

Conflitos da alma

Voltando à residência de Amaro, ainda conse­guimos observá-lo, fora do veículo denso, em con­versação com Odila, sob o amparo direto de nosso orientador.

A primeira esposa do ferroviário, identificando o marido, provàvelmente com o auxílio de Clarên­cio, abandonara Zulmira por instantes e ajoelhara-se-lhe aos pés, rogando, súplice:

— Amaro, expulsa! Corre com esta mulher de nossa casa! Ela furtou a nossa paz... Matou nosso filho, prejudica Evelina e transtorna-te!...

Apontando a enferma com terrível olhar, acen­tuava:

— Porque reténs semelhante intrusa?

O interpelado, muito triste, esforçava-se por dirigir a atenção no rumo de nosso instrutor, mas talvez torturado pelo reencontro com a primei­ra mulher, mal-humorada e enfurecida, perdera a serenidade que lhe caracterizava habitualmente o semblante.

Enquanto junto de nós, versando os problemas de ordem moral que lhe absorviam a mente, sus­tentara calma invejável, com aristocrática pene­tração nos problemas da vida, ali, perante a mu­lher que lhe dominava os sentimentos, revelava-se mais acessível ao desequilíbrio e à conturbação.

Mostrava-se interessado em responder às objur­gatórias que ouvia, entretanto, extrema palidez fi­sionômica denunciava-lhe agora a inibidora emoção.

Situado entre Odila e Zulmira, parecia dividir-se entre o amor e a piedade.

A genitora de Evelina prosseguia gritando, com inflexão enternecedora, no entanto, imóvel, o marido assemelhava-se a uma estátua viva, de dú­vida e sofrimento.

Esperava que o nosso orientador, qual aconte­cera minutos antes com o ferroviário, reconduzisse a mente de Odila às impressões do pretérito, a fim de acalmar-lhe o coração, e cheguei a falar-lhe, nesse sentido, mas Clarêncio informou, bondoso:

— Não, não convém. Nossa história cresceria demasiado por espraiar-se excessivamente no tem­po. É aconselhável nossa sustentação no fio de trabalho nascido na prece de Evelina.

Reparando que o ferroviário manifestava es­tranha aflição, o Ministro acercou-se dele e paternalmente afastou-o de Odila, transportando-o para o leito em que o seu carro físico repousava.

A pobre desencarnada tentava agarrar-se a ele, clamando em desconsolo:

— Amaro! Amaro! não me abandones assim!

O relógio-carrilhão da família assinalava três da manhã.

O dono da casa acordou, abatido.

Esfregou os olhos, sonolento, guardando a idéia de ainda estar ouvindo o apelo que vibra­va no ar:

— Amaro! Amaro!

O abalo do reencontro fora nele muito forte. Na tela mnemônica permanecia tão somente a fase última de sua incursão espiritual — a imagem de Odila, que se lhe afigurava implorando socorro...

Da palestra que alimentara conosco não res­tava traço algum.

Deixando-o entregue à lembrança fragmentária que lhe assomava à consciência como simples so­nho, partimos.

A irmã Blandina solicitava-nos concurso imediato, em favor do pequeno Júlio, que confiara aos cuidados de Mariana, enquanto nos buscava a com­panhia.

Valendo-me da excursão para o Lar da Bênção, indaguei do Ministro quanto a certo enigma que me feria a imaginação.

Esteves, ao tempo da guerra do Paraguai, so­frera tanto quanto Júlio o suplício do veneno. Porque surgiam em ambos efeitos tão díspares? O menino ainda trazia a garganta doente, ao passo que o enfermeiro, vitimado por Leonardo, não pa­recia haver conhecido qualquer consequência mais grave...

Clarêncio, sorrindo, explicou afetuoso:

— Não tomaste em consideração o exame das causas. Esteves foi envenenado, enquanto Júlio se envenenou. Há muita diferença. O suicídio acar­reta vasto complexo de culpa. A fixação mental do remorso opera inapreciáveis desequilíbrios no corpo espiritual. O mal como que se instala nos re­cessos da consciência que o arquiteta e concretiza. Vimos Leonardo Pires com a imagem de Esteves atormentando-lhe a imaginação e observámos Jú­lio, enfermo até agora, em consequência de erros deliberados aos quais se entregou há quase oi­tenta anos, O pensamento que desencadeia o mal encarcera-se nos resultados dele, porque sofre fa­talmente os choques de retorno, no veículo em que se manifesta.

E, à frente das silenciosas reflexões que me absorviam, acrescentou:

— É natural que assim seja.

Atingíramos a graciosa residência de Blandina.

Entrámos.

O choro de Júlio infundia compaixão.

Após saudarmos a devotada Mariana, que o assistia com desvelo maternal, o Ministro examinou-o e notificou à irmã Blandina, algo inquieta:

— Estejamos tranquilos. Espero conduzi-lo à reencarnação em breves dias.

— Sim, essa providência não deve tardar —considerou nossa amiga, atenciosa.

Assinalando-nos decerto a curiosidade, de vez que também percebia Hilário interessado em ad­quirir informações e conhecimentos em torno dos problemas que anotávamos de perto, o instrutor convidou-nos a observar a infortunada criança, co­municando:

— Como não desconhecem, o nosso corpo de matéria rarefeita está íntimamente regido por sete centros de força, que se conjugam nas ramificações dos plexos e que, vibrando em sintonia uns com os outros, ao influxo do poder diretriz da mente, estabelecem, para nosso uso, um veículo de células elétricas, que podemos definir como sendo um cam­po electromagnético, no qual o pensamento vibra em circuito fechado. Nossa posição mental deter­mina o peso específico do nosso envoltório espiri­tual e, consequentemente, o «habitat» que lhe com­pete. Mero problema de padrão vibratório. Cada qual de nós respira em determinado tipo de onda. Quanto mais primitiva se revela a condição da mente, mais fraco é o influxo vibratório do pen­samento, induzindo a compulsória aglutinação do ser às regiões da consciência embrionária ou tor­turada, onde se reúnem as vidas inferiores que lhe são afins, O crescimento do influxo mental, no veículo electromagnético em que nos movemos, após abandonar o corpo terrestre, está na medida da experiência adquirida e arquivada em nosso pró­prio espírito. Atentos a semelhante realidade, éfácil compreender que sublimamos ou desequilibra­mos o delicado agente de nossas manifestações, conforme o tipo de pensamento que nos flui da vida íntima. Quanto mais nos avizinhamos da es­fera animal, maior é a condensação obscurecente de nossa organização, e quanto mais nos elevamos, ao preço de esforço próprio, no rumo das gloriosas construções do espírito, maior é a sutileza de nos­so envoltório, que passa a combinar-se facilmente com a beleza, com a harmonia e com a luz reinan­tes na Criação Divina.

Ouvíamos as preciosas explicações, enlevados, mas Clarêncio, reparando que não nos cabia fugir do quadro ambiente, voltou-se para a garganta enferma de Júlio e continuou:

— Não nos afastemos das observações práti­cas, para estudar com clareza os conflitos da alma. Tal seja a viciação do pensamento, tal será a de­sarmonia no centro de força, que reage em nosso corpo a essa ou àquela classe de influxos mentais. Apliquemos à nossa aula rápida, tanto quanto nos seja possível, a terminologia trazida do mundo, para que vocês consigam fixar com mais segurança os nossos apontamentos. Analisando a fisiologia do perispírito, classifiquemos os seus centros de força, aproveitando a lembrança das regiões mais importantes do corpo terrestre.

Temos, assim, por expressão máxima do veículo que nos serve pre­sentemente, o «centro coronário» que, na Terra, éconsiderado pela filosofia hindu como sendo o lótus de mil pétalas, por ser o mais significativo em razão do seu alto potencial de radiações, de vez que nele assenta a ligação com a mente, fulgurante sede da consciência. Esse centro recebe em primei­ro lugar os estimulos do espírito, comandando os demais, vibrando todavia com eles em justo regime de interdependência. Considerando em nossa expo­sição os fenômenos do corpo físico, e satisfazendo aos impositivos de simplicidade em nossas defini­ções, devemos dizer que dele emanam as energias de sustentação do sistema nervoso e suas subdi­visões, sendo o responsável pela alimentação das células do pensamento e o provedor de todos os recursos electromagnéticos indispensáveis à estabi­lidade orgânica. Ë, por isso, o grande assimilador das energias solares e dos raios da Espiritualidade Superior capazes de favorecer a sublimação da alma. Logo após, anotamos o “centro cerebral”, contíguo ao “centro coronário”, que ordena as percepções de variada espécie, percepções essas que, na vestimenta carnal, constituem a visão, a audi­ção, o tato e a vasta rede de processos da inteli­gência que dizem respeito à Palavra, à Cultura, à Arte, ao Saber. É no «centro cerebral» que possuímos o comando do núcleo endocrínico, refe­rente aos poderes psíquicos. Em seguida, temos o «centro laríngeo», que preside aos fenômenos vo­cais, inclusive às atividades do timo, da tireóide e das paratireóides. Logo após, identificamos o «centro cardíaco», que sustenta os serviços da emoção e do equilíbrio geral. Prosseguindo em nossas obser­vações, assinalamos o «centro esplênico» que, no corpo denso, está sediado no baço, regulando a distribuição e a circulação adequada dos recursos vitais em todos os escaninhos do veículo de que nos servimos. Continuando, identificamos o «cen­tro gástrico», que se responsabiliza pela penetração de alimentos e fluidos em nossa organização e, por fim, temos o «centro genésico», em que se localiza o santuário do sexo, como templo modelador de formas e estímulos.

O instrutor fêz pequena pausa de repouso e prosseguiu:

— Não podemos olvidar, porém, que o nosso veículo sutil, tanto quanto o corpo de carne, é cria­ção mental no caminho evolutivo, tecido com re­cursos tomados transitoriamente por nós mesmos aos celeiros do Universo, vaso de que nos utilizamos para ambientar em nossa individualidade eterna a divina luz da sublimação, com que nos cabe de­mandar as esferas do Espírito Puro. Tudo é tra­balho da mente no espaço e no tempo, a valer-se de milhares de formas, a fim de purificar-se e san­tificar-se para a Glória Divina.

Clarêncio afagou a garganta doente do me­nino, dando-nos a idéia de que nela fixava o objeto de nossas lições, e aduziu:

Quando a nossa mente, por atos contrários à Lei Divina, prejudica a harmonia de qualquer um desses fulcros de força de nossa alma, natu­ralmente se escraviza aos efeitos da ação desequi­librante, obrigando-se ao trabalho de reajuste. No caso de Júlio, observamo-lo como autor da pertur­bação no «centro laríngeo», alteração que se ex­pressa por enfermidade ou desequilíbrio a acompa­nhá-lo fatalmente à reencarnação.

— E como sanará ele semelhante deficiência? — perguntei, edificado com os esclarecimentos ou­vidos.

Com a serenidade invejável de sempre, o Mi­nistro ponderou:

— Nosso Júlio, de atenção encadeada à dor da garganta, constrangido a pensar nela e padecendo-a, recuperar-se-á mentalmente para retificar o tônus vibratório do «centro laríngeo, restabele­cendo-lhe a normalidade em seu próprio favor.

E decerto para gravar, com mais segurança, a elucidação, concluiu:

— Júlio renascerá num equipamento fisiológi­co deficitário que, de algum modo, lhe retratará a região lesada a que nos reportamos. Sofrerá in­tensamente do órgão vocal que, sem dúvida, se caracterizará por fraca resistência aos assaltos mi­crobianos, e, em virtude de o nosso amigo haver menosprezado a bênção do corpo físico, será defron­tado por lutas terríveis, nas quais aprenderá a valorizá-lo.

Em seguida, porém, o instrutor desdobrou vá­rias operações magnéticas, a benefício do pequeno enfermo, que se mantinha calmo, e, com os agra­decimentos das duas solícitas irmãs que nos ou­viam, atentamente, despedimo-nos de retorno ao nosso domicílio espiritual.


21

Conversação edificante

Enquanto regressávamos ao nosso círculo de trabalho e de estudo, para articular novas provi­dências de auxílio, em favor dos protagonistas da história que a vida estava escrevendo, concluí que não me cabia perder a oportunidade de mais amplo entendimento com o nosso orientador, com alusão aos esclarecimentos que nos fornecera, acerca do perispírito.

Assim como o homem comum mal conhece o veículo em que se movimenta, ignorando a maior parte dos processos vitais de que se beneficia e usando o corpo de carne à maneira de um inquilino estranho à casa em que reside, também nós, os desencarnados, somos compelidos a meticulosas me­ditações para analisar a vestimenta de que nos ser­vimos, de modo a conhecer-lhe a intimidade.

Efetivamente, em novas condições na vida es­piritual, passamos a apreciar, com mais segurança, o corpo abandonado à Terra, penetrando os segre­dos de sua formação e desenvolvimento, sustenta­ção e desintegração, mas somos desafiados pelos enigmas do novo instrumento que passamos a uti­lizar. Lidamos, na Vida Maior, com o carro sutil da mente, pelo menos na esfera em que nos situa­mos, acentuando, pouco a pouco, os nossos conhe­cimentos, quanto às peculiaridades que lhe dizem respeito.

Reparei que Hilário, pela expressão dos olhos, demonstrava não menor anseio de saber. E, enco­rajado pela atitude do companheiro, desfechei a primeira questão, considerando:

— Inegavelmente, será difícil alcançar o gran­de equilíbrio que nos outorgará o trânsito definitivo para as eminências do Espírito Puro.

— Ah! sim — concordou o Ministro, com gra­ve entono —, para que tivéssemos na Crosta Pla­netária um vaso tão aprimorado e tão belo, quanto o corpo humano, a Sabedoria Divina despendeu mi­lênios de séculos, usando os multiformes recursos da Natureza, no campo imensurável das formas... Para que venhamos a possuir o sublime instrumen­to da mente em planos mais elevados, não podemos esquecer que o Supremo Pai se vale do tempo infinito para aperfeiçoar e sublimar a beleza e a precisão do corpo espiritual que nos conferirá os valores imprescindíveis à nossa adaptação à Vida Superior.

— Compete-nos, então — observou Hilário, atencioso —, atribuir importante papel às enfermidades na esfera humana. Quase todas estarão no mundo, desempenhando expressivo papel na re­generação das almas.

— Exatamente.

— Cada “centro de força” — ponderei — exi­girá absoluta harmonia, perante as Leis Divinas que nos regem, a fim de que possamos ascender no rumo do Perfeito Equilíbrio...

— Sim — confirmou Clarêncio —, nossos des­lizes de ordem moral estabelecem a condensação de fluidos inferiores de natureza gravitante, no campo electromagnético de nossa organização, compelin­do-nos a natural cativeiro em derredor das vidas começantes às quais nos hnantamos.

Hilário, conduzindo mais longe as próprias divagações, perguntou:

— Imaginemos, contudo, um homem puramen­te selvagem, a situar-se em plena ignorância dos Desígnios Superiores, que se confia a delitos índis­criminados... Terá nos tecidos sutis da alma as lesões cabíveis a um europeu super-civilizado, que se entrega à indústria do crime?

Clarêncio sorriu, compreensivo, e acentuou:

— Sigamos devagar. Comentávamos, ainda há pouco, o problema da evolução. Assim como o aperfeiçoado veículo do homem nasceu das formas primárias da Natureza, o corpo espiritual foi ini­ciado também nos princípios rudimentares da in­teligência. É necessário não confundir a semente com a árvore ou a criança com o adulto, embora surjam na mesma paisagem de vida, O instrumento perispirítico do selvagem deve ser classificado como protoforma humana, extremamente condensa­do pela sua integração com a matéria mais densa. Está para o organismo aprimorado dos Espíritos algo enobrecidos, como um macaco antropomorfo está para o homem bem-posto das cidades moder­nas. Em criaturas dessa espécie, a vida moral está começando a aparecer e o perispírito nelas ainda se encontra enormemente pastoso. Por esse mo­tivo, permanecerão muito tempo na escola da expe­riência, como o bloco de pedra rude sob marteladas, antes de oferecer de si mesmo a obra-prima... Despenderão séculos e séculos para se rarefazerem, usando múltiplas formas, de modo a conquistarem as qualidades superiores que, em lhes sutilizando a organização, lhes conferirão novas possibilidades de crescimento consciencial. O instinto e a inteli­gência pouco a pouco se transformam em conhe­cimento e responsabilidade e semelhante renovação outorga ao ser mais avançados equipamentos de manifestação... O prodigioso corpo do homem na Crosta Terrestre foi erigido pacientemente, no cur­so dos séculos, e o delicado veículo do Espírito, nos planos mais elevados, vem sendo construído, célula a célula, na esteira dos milênios incessantes...

E, com um olhar significativo, Clarêncio concluiu:

- ... ­até que nos transfiramos de residência, aptos a deixar, em definitivo, o caminho das formas, colocando-nos na direção das esferas do Espírito Puro, onde nos aguardam os inconcebíveis, os inimagináveis recursos da suprema sublimação.

Calara-se o instrutor, mas o assunto era por demais importante para que eu me desinteressasse dele apressadamente.

Recordei os inúmeros casos de moléstias obs­curas de meu trato pessoal e aduzi:

— Decerto a Medicina escreveria gloriosos ca­pítulos na Terra, sondando com mais segurança os problemas e as angústias da alma...

— Grava-los-á mais tarde — confirmou Cla­rêncio, seguro de si. — Um dia, o homem ensinará ao homem, consoante as instruções do Divino Mé­dico, que a cura de todos os males reside nele próprio. A percentagem quase total das enfermi­dades humanas guarda origem no psiquismo.

Sorridente, acrescentou:

— Orgulho, vaidade, tirania, egoísmo, pregui­ça e crueldade são vícios da mente, gerando perturbações e doenças em seus instrumentos de ex­pressão.

No objetivo de aprender, observei:

— É por isso que temos os vales purgatoriais, depois do túmulo... a morte não é redenção...

— Nunca foi — esclareceu o Ministro, bon­doso. — O pássaro doente não se retira da condição de enfermo, tão só porque se lhe arrebente a gaiola. O inferno é uma criação de almas dese­quilibradas que se ajuntam, assim como o charco é uma coleção de núcleos lodacentos, que se con­gregam uns aos outros. Quando de consciência inclinada para o bem ou para o mal perpetramos esse ou aquele delito no mundo, realmente pode­mos ferir ou prejudicar a alguém, mas, antes de tudo, ferimos e prejudicamos a nós mesmos. Se eliminamos a existência do próximo, nossa vítima receberá dos outros tanta simpatia que, em breve, se restabelecerá, nas leis de equilíbrio que nos go­vernam, vindo, muita vez, em nosso auxílio, muito antes que possamos recompor os fios dilacerados de nossa consciência. Quando ofendemos a essa ou àquela criatura, lesamos primeiramente a nos­sa própria alma, de vez que rebaixamos a nossa dignidade de espíritos eternos, retardando em nós sagradas oportunidades de crescimento.

— Sim — concordei —, tenho visto aqui afli­tivas paisagens de provação que me constrangem a meditar...

— A enfermidade, como desarmonia espiritual atalhou o instrutor —, sobrevive no perispírito.

As moléstias conhecidas no mundo e outras que ainda escapam ao diagnóstico humano, por muito tempo persistirão nas esferas torturadas da alma, conduzindo-nos ao reajuste. A dor é o grande e abençoado remédio. Reeduca-nos a atividade men­tal, reestruturando as peças de nossa instrumen­tação e polindo os fulcros anímicos de que se vale a nossa inteligência para desenvolver-se na jorna­da para a vida eterna. Depois do poder de Deus, é a única força capaz de alterar o rumo de nossos pensamentos, compelindo-nos a indispensáveis mo­dificações, com vistas ao Plano Divino, a nosso respeito, e de cuja execução não poderemos fugir sem graves prejuízos para nós mesmos.

Nosso domicílio, porém, estava agora à vista. Os raios dourados da manhã varriam o horizonte longínquo.

Despediu-se o Ministro, paternal.

Aquele era um dos momentos em que, desde muito, se devotava ele à oração.


22

Irmã Clara

Na noite imediata às experiências que descre­vemos, o Ministro convidou-nos a visitar a Irmã Clara, a quem pediria socorro em favor do escla­recimento de Odila.

Eu me sentia cada vez mais atraído para o romance vivo daquele grupo de almas que o destino enleara em suas teias.

Se me fosse permitido, voltaria de imediato para junto de Mário Silva rebelado, ou para junto de Amaro paciente, a fim de observar o desdobra­mento da história, cujos capítulos jaziam gravados nas páginas vivas de seus corações.

Todavia, era necessário esperar.

Enquanto buscávamos a intimidade de Clara, descia o luar em prateados jorros sobre a paisagem que se tapizava de flores.

Com o cérebro preso às preocupações resul­tantes do trabalho que nos exigia a atenção, algo indaguei de Clarêncio quanto à cooperação que pre­tendíamos solicitar.

Por que motivo rogaria ele o concurso de ou­trem, quando se dirigira com tanto êxito à mente de Esteves e Armando, reencarnados? não lhes favorecera o retrocesso da memória, até os recuados dias da luta no Paraguai? porque não conse­guiria doutrinar também a desditosa irmã enferma?

O Ministro ouviu-me, tolerante, e redargüiu:

— Iludes-te. Nem sempre doutrinar será trans­formar. Efetivamente, guardo alguma força magnética suficientemente desenvolvida, capaz de ope­rar sobre a mente de nossos companheiros em recuperação; no entanto, ainda não disponho de sentimento sublimado, suscetível de garantir a re­novação da alma. Sem dúvida, dentro de minhas limitações, estou habilitado a falar à inteligência, mas não me sinto à altura de redimir corações. Para esse fim, para decifrar os complicados labirintos do sofrimento moral, é imprescindível haver atingido mais elevados degraus na humana com­preensão.

Dispunha-me a desfechar novo interrogatório, contudo, nosso orientador indicou-nos bela edifica­ção próxima.

Cercada de arvoredo, que servia de enfeite a espaçosos canteiros de flores, a residência de Clara figurou-se-nos pequeno colégio ou gracioso inter­nato para moças.

Até certo ponto, não nos enganáramos.

A nossa anfitriã não morava num estabeleci­mento de ensino, entretanto, mantinha em casa um verdadeiro educandário, tão grandes e luzidas eram as assembleias instrutivas que sabia orga­nizar.

Recebeu-nos em extenso salão, onde era aten­ciosamente ouvida por quatro dezenas de alunos de variadas condições, que se instalavam à vontade, em grupos diversos, sem qualquer idéia de escola assinalando o ambiente em sua feição exterior.

De olhos rasgados e lúcidos a lhe marcarem magnificamente o semblante com os traços aristo­cráticos do rosto emoldurados pela basta cabeleira, Clara parecia uma jovem madona, detida entre os melhores dons da mocidade e da madureza. Es­tendeu-nos as mãos pequenas e finas, responden­do-nos às saudações com alegria sincera.

Nosso orientador rogou excusas, pela nossa interferência no trabalho.

— Não se incomodem — acentuou a interlo­cutora, encantadoramente natural —, achamo-nos num curso rápido, acerca da importância da voz a serviço da palavra. Podem partilhá-lo conosco. Nossa aula é uma simples conversação...

Fitando bondosamente o Ministro, rematou:

— Sentem-se. Sou eu quem pede perdão por fazê-los esperar mais um pouco. Em breves instantes, todavia, entraremos em nosso entendimento mais íntimo.

E, voltando à poltrona que nada tinha de cá­tedra, sem qualquer atitude professoral, tao gran­de era o doce ambiente de maternidade que sabia irradiar de si, começou a dizer para os aprendizes:

— Conforme estudamos na noite de hoje, a palavra, qualquer que ela seja, surge invariàvelmente dotada de energias elétricas específicas, li­bertando raios de natureza dinâmica. A mente, como não ignoramos, é o incessante gerador de força, através dos fios positivos e negativos do sentimento e do pensamento, produzindo o verbo que é sempre uma descarga electromagnética, regu­lada pela voz. Por isso mesmo, em todos os nossos campos de atividade, a voz nos tonaliza a exterio­rização, reclamando apuro de vida interior, de vez que a palavra, depois do impulso mental, vive na base da criação; é por ela que os homens se apro­ximam e se ajustam para o serviço que lhes com­pete e, pela voz, o trabalho pode ser favorecido ou retardado, no espaço e no tempo.

Dentro da pausa ligeira que se fizera espon­tânea, simpática senhora interrogou:

— Mas, para que tenhamos a solução do pro­blema, é indispensável jamais nos encolerizarmos?

— Sim — elucidou a instrutora, calma —, indiscutivelmente, a cólera não aproveita a ninguém, não passa de perigoso curto-circuito de nos­sas forças mentais, por defeito na instalação de nosso mundo emotivo, arremessando raios destrui­dores, ao redor de nossos passos...

Sorrindo bem humorada, acrescentou:

— Em tais ocasiões, se não encontramOS, jun­to de nós, alguém com o material isolante da ora­ção ou da paciência, o súbito desequilíbrio de nossas energias estabelece os mais altos prejuízos à nos­sa vida, porque os pensamentos desvairados, em se interiorizando, provocam a temporária cegueira de nossa mente, arrojando-a em sensações de remoto pretérito, nas quais como que descemos quase sem perceber a infelizes experiências da animalidade in­ferior. A cólera, segundo reconhecemos, não pode e nem deve comparecer em nossas observações, re­lativas à voz. A criatura enfurecida é um dínamo em descontrole, cujo contacto pode gerar as mais estranhas perturbações.

Um moço, com evidente interesse nas lições, argumentou:

— E se substituíssemos o termo «cólera» pelo termo «indignação»?

Irmã Clara pensou alguns instantes e redar­guiu:

— Efetivamente, não poderíamos completar os nossos apontamentos, sem analisar a indignação como estado dalma, por vezes necessário. Natural­mente é imprescindível fugir aos excessos. Contra­riar-se alguém a propósito de bagatelas e a todos os instantes do dia será baratear os dons da vida, desperdiçando-os, de modo inconsequente, sem o mínimo proveito para si mesmo ou para os outros. Imaginemos a indignação por subida de tensão na usina de nossos recursos orgânicos, criando efeitos especiais à eficiência de nossas tarefas. Nos casos de exceção, em que semelhante diferença de poten­cial ocorre em nossa vida íntima, não podemos es­quecer o controle da inflexão vocal. Assim como a administração da energia elétrica reclama aten­ção para a voltagem, precisamos vigiar a nossa indignação principalmente quando seja imperioso vertê-la através da palavra, carregando a nossa voz tão somente com a força suscetível de ser apro­veitada por aqueles a quem endereçamos a carga de nossos sentimentos. É indispensável modular a expressão da frase, como se gradua a emissão elétrica...

E, ante a assembléia que lhe registrava os en­sinamentos com justificável respeito, prosseguiu, depois de ligeiro intervalo:

— Nossa vida pode ser comparada a grande curso educativo, em cujas classes inumeráveis da­mos e recebemos, ajudamos e somos ajudados. A serenidade, em todas as circunstâncias, será sempre a nossa melhor conselheira, mas, em alguns aspec­tos de nossa luta, a indignação é necessária para marcar a nossa repulsa contra os atos deliberados de rebelião ante as Leis do Senhor. Essa elevada tensão de espírito, porém, nunca deve arrojar-se à violência e jamais deve perder a dignidade de que fomos investidos, recebendo da Divina Confiança a graça do conhecimento superior. Basta, dentro dela, a nossa abstenção dos atos que íntimamente reprovamos, porque a nossa atitude é uma corrente de indução magnética. Em torno de nós, quem simpatiza conosco geralmente faz aquilo que nos vê fazer. Nosso exemplo, em razão disso, é um fulcro de atração. Precisamos, assim, de muita cau­tela com a palavra, nos momentos de tensão alta do nosso mundo emotivo, a fim de que a nossa voz não se desmande em gritos selvagens ou em considerações cruéis que não passam de choques mortíferos que infligimos aos outros, semeando espinheiros de antipatia e revolta que nos prejudi­carão a própria tarefa.

Um amigo que acompanhava os ensinamentos, com interesse invulgar, perguntou, respeitoso:

— Irmã Clara, como devemos interpretar as perturbações da voz, como, por exemplo, a gaguez e a diplofonia?

— Sem dúvida — informou a instrutora, solí­cita —, os órgãos vocais experimentam igualmente lutas e provações quando reclamam reajuste. Por intermédio da voz, praticamos vários delitos de ti­rania mental e, através dela, nos cabe reparar os débitos contraídos. As enfermidades dessa ordem compelem-nos ao trabalho de recuperação no si­lêncio, de vez que, sofrendo a alheia observação, aprendemos pouco a pouco a governar os próprios impulsos, afeiçoando-os ao bem.

A orientadora, que falava com absoluta sim­plicidade e à maneira de um anjo maternal dirigindo-se aos filhinhos, comentou, ainda por alguns minutos, o tema singular com surpreendente pri­mor de definição.

Depois, finda a aula, permaneceram no belo domicílio tão somente algumas jovens que encontravam em nossa anfitriã desvelada benfeitora.

Clara convidou-nos a pequena peça contígua e o Ministro deu-lhe a conhecer o objetivo de nossa visitação. Alguém na Terra precisava ouvi-la, a fim de modificar-se. A interlocutora perguntou, com carinho, quanto às particularidades do serviço que pretendíamos realizar.

Clarêncio resumiu o drama que nos empolgava a atenção.

Quando se inteirou de que amargurada mulher devia renunciar ao companheiro que permanecia na Terra, vimos imensa compaixão se lhe estampar no rosto. Seus olhos enevoaram-se de lágrimas que não chegaram a cair...

Compreendi que a nobre instrutora, aureolada de soberanos valores morais, trazia consigo profun­das mágoas imanifestas. Certamente, buscávamos reconforto para um coração infeliz num coração que talvez estivesse padecendo ainda mais...

— Pobre criatura! — disse a orientadora, co­movida.

E, afirmando-se com tempo bastante para au­sentar-se, acolheu-nos o apelo e dispôs-se a seguir-nos generosamente.


23

Apelo maternal

A paisagem doméstica, na residência de Amaro, não mostrava qualquer alteração.

Zulmira, atormentada por Odila, que realmen­te lhe vampirizava as forças, jazia no leito, apática e desolada, como estátua viva de angústia e medo escutando o vento que zunia, lá fora...

Mais magra e mais abatida, exibia comovedo­ramente a própria exaustão.

Irmã Clara, depois de expressivo entendimento com o nosso orientador, Solícitou que nos manti­véssemos a pequena distância, e, abeirando-se da genitora de Evelina, que tanto quanto a enferma não nos percebia a presença, alongou os braços em prece.

Sob forte emoção, acompanhei o formoso qua­dro que se desdobrou, divino, ao nosso olhar.

Gradativamente, o recinto foi invadido por vas­to círculo de luz, do qual se fizera a instrutora o núcleo irradiante. Assemelhava-se nossa amiga a uma estrela repentinamente trazida à Terra, com os dois braços distendidos em forma de asas, pres­tes a desferir excelso vôo...

Cercava-a enorme halo de dourado esplendor, como se ouro eterizado e luminescente lhe emol­durasse a forma leve e sublime... Dos revérberos dessa natureza, passavam as irradiaçôes a tona­lidades diferentes, em círculos fechados sobre si mesmos, caminhando dos reflexos de ouro e opala ao róseo vivo, do róseo vivo ao azul celeste, do azul celeste ao verde claro e do verde claro ao vio­leta suave, que se transfundia em outros aspectos a me escaparem da apreciação...

Tive a idéia de que a irmã Clara se convertera no centro de milagroso arco-íris, cuja existência nunca pudera vislumbrar.

Fizera-se a casa excessivamente estreita para aquela abençoada fonte de raios balsamizantes e indefiníveis.

Reparei que a própria Odila se aquietara como que dominada por branda coação.

Extático, mal consegui articular alguns monos­sílabos, procurando esclarecimento em nosso instrutor.

— Irmã Clara — informou o Ministro, igual­mente enlevado — já atingiu o total equilíbrio dos centros de força que irradiam ondulações lu­minosas e distintas. Em oração, ao influxo da mente enaltecida, emite as vibrações do seu sentimento purificado, que constituem projeções de harmonia e beleza a lhe fluírem do ser. Se parti­lhássemos com ela a mesma posição evolutiva, entraríamos agora em relação imediata com o ele­vado plano de consciência em que se exterioriza e, então, em vez de somente observarmos este deslumbramento de luz e cor, perceberíamos a men­sagem glorificada que lhe nasce do coração, de vez que as irradiações sob nossos olhos são música e linguagem, sabedoria e amor do pensamento a ex­pressar-se maravilhoso e vivo... A sintonia espi­ritual perfeita, porém, só é possível entre aqueles que se confundem na afinidade completa...

A mensageira transfigurada parecia mais bela.

Avançou para a primeira esposa de Amaro e cobriu-lhe os olhos com a destra lirial.

— Reparem — disse Clarêncio, feliz —: ela guarda o poder de ampliar a visão. Odila identi­ficar-lhe-á a presença, assim como a vemos.

Com efeito, vimos que a genitora de Evelina, tocada por aqueles dedos celestes, proferiu um gri­to de encantamento selvagem e caiu de joelhos.

Naturalmente ofuscada pelo brilho de que se envolvia a visitante inesperada, começou a chorar, suplicando:

— Anjo de Deus, socorre-me! socorre-me!...

— Odila, que fazes? — interrogou a emissária com inesquecível inflexão de ternura.

— Estou aqui, vingando-me por amor...

— Haverá, porém, algum ponto de contacto entre amor e vingança?

Indicando timidamente a triste companheira que jazia acorrentada ao leito, Odila tentou conservar a atitude que lhe era característica, excla­mando, cruel:

— Devo alijar a intrusa que me assaltou a casa! Esta miserável mulher tomou-me o marido e assassinou-me o filhinho!... Quem ama faz jus­tiça pelas próprias mãos!...

— Pobre filha! — revidou Clara, abraçando-a. Quem ama semeia a vida e a alegria, combatendo o sofrimento e a morte... Quando nosso culto afetivo se converte em flagelação para os que seguem ao nosso lado, não abrigamos outro senti­mento que não seja aquele do desvairado apego a nós mesmos, na centralização do egoísmo aviltante. Achamo-nos à frente de infortunada irmã, arro­jada a dolorosa prova. Não te dói vê-la derrotada e infeliz?

— Ela desposou o homem que amo!... — so­luçou Odila, mais dominada pela influência magné­tica da mensageira que impressionada por suas belas palavras.

— Não seria mais justo — ponderou Clara sem afetação — considerar que ele a desposou?

E, acariciando-lhe a cabeça agora trêmula, a instrutora aduziu:

— Odila, o ciúme que não destruímos, enquan­to dispomos da oportunidade de trabalhar no corpo denso, transforma-se em aflitiva fogueira a calci­nar-nos o coração, depois da morte.

Acalma-te! A mulher de carne, que eras, precisa agora oferecer lugar à mulher de luz que deves ser. A porta do lar terrestre, onde te supunhas rainha de pequeno império sem fira, cerrou-se com os teus olhos ma­teriais! A passagem na Terra é um dia na escola... Todos os bens que desfrutávamos no mundo de onde viemos constituíam recursos do Senhor que no-los concedia a título precário. Por lá, raramen­te nos lembramos de que o tesouro do carinho doméstico é algo semelhante a sementeira precio­sa, cujos valores devemos estender...

Começamos a obra de amor no lar, mas énecessário desenvolvê-la no rumo da Humanidade inteira. Temos um só Pai que é o Senhor da Bon­dade Infinita, que nos centraliza as esperanças...

Somos, assim, todos irmãos, partes integrantes de uma família só... Já te imaginaste no lugar de Zulmira, experimentando-lhe as dificuldades e afli­ções? Já te colocaste na condição do esposo que asseveras amar? Se te visses no mundo, sem a companhia dele, com os filhinhos necessitados de consolo e sustentação, não sentirias reconhecimen­to por alguém que te auxiliasse a protegê-los?

Con­sideras somente os teus problemas... Entretanto, o homem amado permanece no cárcere de escuros padecimentos íntimos a debater-se com enigmas in­quietantes, sem que te disponhas a socorrê-lo...

— Não me fales assim! — imprecou a inter­pelada, com evidentes sinais de angústia — odeio a infame que nos roubou a felicidade...

— Odila, reflete! Esqueces-te de que a mulher sempre é mãe? O túmulo não te restituirá o corpo que a Terra consumiu, e, se desejas recuperar a ternura e a confiança do companheiro que deixaste na retaguarda, é preciso saber amá-lo com o es­pírito. Modifica os impulsos do coração!

Não suponhas Amaro capaz de querer-te, transtornada qual te encontras, entre as farpas envenenadas do despeito, caso chegasse, de repente, até nós...

— Ela, porém, matou meu filho!...

— Como podes provar semelhante acusação?

— A intrusa invejava-lhe a posição no carinho de Amaro.

— Sim — concordou Clara, afetuosa —, admi­to que Zulmira assim se conduzisse. É inexperiente ainda e a ignorância enquanto nos demoramos na Terra pode impedir-nos a visão, mas não seria justo, tão somente por isso, atribuir-lhe a morte do pequenino... Medita! A verdadeira fraternidade ajudar-te-á a sentir naquela que te sucedeu no lar uma filha suscetível de recolher-te o afeto e a orientação... Em lugar de forjares uma inimiga na sinistra bigorna da crueldade, edificarás uma dedicação nobre e leal para enriquecer-te a vida. Retirando a luz do teu amor das chamas combu­rentes do inferno de ciúme em que padeces pela própria vontade, serás realmente para o homem querido e para a filha que clama por tua assistên­cia uma inspiração e uma bênção!...

Talvez porque Odila, quase vencida, simples­mente chorasse, a mensageira afagava-lhe os ca­belos, acrescentando:

— Sei que sofres igualmente como mãe ator­mentada... Recorda, contudo, que nossos filhos per­tencem a Deus... E se a morte colheu a criança que estremeces, separando-a dos braços paternais, é que a Vontade Divina determinou o afastamento...

A mensageira amimava-lhe a fronte, dando-nos a impressão de que a submetia a suaves operações magnéticas.

Depois de alguns instantes em que apenas ou­víamos os soluços de Odila transformada, a vene­rável amiga acentuou:

— Porque não te dispões a clarear o próprio caminho, a fim de reencontrares o teu anjo e embalá-lo, de novo, em teus braços, ao invés de te consagrares inutilmente à vingança que te cega os olhos e enregela o coração?

Clara, certo, alcançara o ponto sensível daque­la alma atribulada, porque a infortunada genitora de Evelina, qual se arrojasse para fora de si mes­ma todos os pesares que lhe senhoreavam os sen­timentos, gritou, como fera jugulada pela dor:

— Meu filho!... Meu filho!...

E seu pranto convulsivo se fêz mais angustia­do, mais comovente.

A emissária do bem abraçou-a com maternal carícia e falou-lhe aos ouvidos:

— Rejubila-te, irmã querida! Grande é a tua felicidade! Podes ajudar e isso representa a ventura maior! Nada te impede auxiliar o companheiro da humana experiência, ao alcance de tuas mãos, e basta uma prece de amor puro, com o testemu­nho de tua compreensão e de tua piedade, para que venças a reduzida distância entre o teu sofri­mento e o filhinho idolatrado!... Há vinte e dois séculos espero por um minuto igual a este para o meu saudoso e agoniado coração, de vez que os meus amados ainda não se inclinaram para mim!

A voz de Clara parecia mesclada de lágrimas que não chegavam a surgir.

Dominada pelas vibrações da mensageira ce­leste, Odila agarrou-se a ela, prosseguindo em cho­ro convulso, enquanto a instrutora repetia com desvelos de mãe:

— Vamos, filha! Vamos à procura de nossa renovação com Jesus!...

Amparando-a, Clara conduziu-a para fora, co­lada ao próprio peito.

Junto de nós, Clarêncio informou:

— Agora, Zulmira poderá recuperar-se. A ad­versária retirou-se sem a violência que lhe prejudi­caria o campo mental.

E, acompanhando o nosso orientador, afastámo­-nos por nossa vez, embora conservando a atenção presa à continuação de nossa edificante aventura.


24

Carinho reparador

Odila, sob o patrocínio da irmã Clara, foi in­ternada numa instituição de tratamento, por alguns dias, e, durante sete noites consecutivas, visitámos Zulmira, em companhia de nosso orientador, a fim de auxiliar o soerguimento dela.

A segunda esposa de Amaro mostrava-se me­lhor. Mais silenciosa. Mais calma.

Não saíra, porém, da inércia a que se reco­lhera.

Alijara a excitação de que se via objeto, mas prosseguia entregue a extrema prostração.

Subnutrida, apática, sustentava-se no mais ab­soluto desânimo.

Atendendo-nos à inquirição habitual, Clarên­cio observou, prestimoso:

— Acha-se agora liberta, contudo, reclama es­tímulo para subtrair-se à exaustão. Falta-lhe a vontade de lutar e viver. Confiemos, no entanto. A própria Odila favorecer-lhe-á a recuperação. A medida que se lhe restaure a visão espiritual, a primeira esposa de Amaro aceitará o imperativo de renúncia e fraternidade para construir o futuro que lhe interessa.

Zulmira, com efeito, continuava livre e tran­quila.

As peças do corpo funcionavam com irrepreen­sível harmonia, mas, efetivamente, algo prosseguia faltando...

A máquina mostrava-se reequilibrada, entre­tanto, mantinha-se preguiçosa, exigindo adequadas providências.

Transcorrida uma semana, Irmã Clara convi­dou-nos a breve entendimento.

Comunicou-nos que Odila revelava grande transformação.

Submetida à assistência magnética, a fim de sondar o passado, reconhecera o impositivo de sua colaboração com o marido para alcançarem ambos a vitória real nos planos do espírito.

Suspirava pelo reencontro com o filhinho, dis­punha-se a tudo fazer para ser útil ao esposo e à filhinha...

E, para tanto, combateria a repulsa espontâ­nea que experimentava por Zulmira, a quem auxiliaria como irmã, reajustando-se devidamente para fortalecê-la e ampará-la.

A benfeitora mostrava-se satisfeita.

Recomendava-nos trouxéssemos Amaro, tão logo pudesse ele ausentar-se do veículo físico, na noite próxima, até à casa espiritual de refazimento em que Odila se encontrava.

Do entendimento entre ambos, resultariam de­certo os melhores efeitos.

A mãezinha de Evelina estava reformada e daria provas do reajuste, efetuando o primeiro esforço para a reconciliação.

A solicitação de Clara foi alegremente aten­dida.

Depois de meia-noite, quando o ferroviário se rendeu à branda influência do sono, guiamo-lo ao sítio indicado.

No aposento claro e florido do santuário de recuperação em que Odila se localizava, aguardava-nos a instrutora junto dela.

O pai de Júlio, que seguia menos consciente ao nosso lado, em reconhecendo a presença da mu­lher que amava, ajoelhou-se, cobrou a lucidez que lhe era possível em tais circunstâncias, e excla­mou, enlevado:

— Odila!... Odila!...

— Amaro! — respondeu a antiga companhei­ra, então completamente transfigurada — sou eu! sou eu quem te pede coragem e fé, serenidade e valor na tarefa a realizar!...

— Estou farto, farto... — clamou ele, agora em lágrimas a lhe verterem, copiosas.

Odila, sustentada pela venerável amiga, levan­tou-se com alguma dificuldade e, alisando-lhe os cabelos, perguntou, em voz comovida:

— Farto de quê?

— Sinto-me entediado da vida... Casei-me, de novo, como deves saber, acreditando garantir a se­gurança de nossos filhos para o futuro, entretanto, a mulher que desposei nem de longe chega a teus pés... Fui ludibriado! Em lugar da felicidade, en­contrei o desapontamento que não sei disfarçar!...

E, fitando-a com enternecedora expressão, co­mentou, triste:

— Nosso Júlio morreu num desastre, quando encerrava para mim as melhores aspirações, nossa filha se estiola num quarto sem alegria e a ma­drasta que lhes impus apodrece num leito!...

Ah! Odila, poderás compreender o que sofro? Tenho rogado a morte ao Céu para que nos reunamos na eternidade, mas a morte não vem...

A esposa, compreensivelmente mais bela pelos pensamentos redentores que agora lhe manavam do ser, com os olhos enevoados de pranto, falou-lhe com inflexão inesquecível:

— Sim, Amaro, compreendo! Também eu pa­deci muito, no entanto, hoje reconheço que a nossa dor é agravada por nós mesmos... Porque have­mos de converter a distância em rebelião e a sau­dade em venenoso fel? porque não reconhecer a Majestade Suprema de Deus, na orientação de nos­sos destinos? não temos sabido cultivar o amor que é sacrifício na Terra para a edificação de nosso paraíso espiritual... Temos exigido quando deve­mos dar, dilacerado quando nos cabe recompor!... Amaro, é preciso acalmar o coração para que a vida nos auxilie a entendê-la, é indispensável ceder de nós, a fim de receber dos outros o concurso de que necessitamos... Na aspereza de meus sen­timentos deseducados, vinha eu adubando o espi­nheiro do ciúme, atormentando-te o pensamento e perturbando a nossa casa! Mas, em alguns dias rápidos, adquiri mais ampla penetração em nossos problemas, usando a chave da boa vontade!... Quero melhorar-me, progredir, reviver...

O ferroviário contemplou-a, carinhoso e reve­rente, e acentuou, desalentado:

— Isso não impede a terrível realidade. Acha­mo-nos em dois mundos diferentes... Infortunado que sou! sinto-me desarvorado e infeliz!...

— Achava-me igualmente assim, contudo, pro­curei no silêncio e na oração o roteiro renovador.

— Que fazer de Zulmira, colocada entre nós como empecilho à nossa verdadeira união?

— Não raciocines desse modo! ela não perma­neceria em tua estrada sem motivo justo.

Nesse instante, Clarêncio abeirou-se do ferroviário e, tocando-lhe a fronte com a destra, ofere­ceu-lhe ao campo mental o retorno imediato às recordações das dívidas por ele contraídas no Pa­raguai.

Amaro estremeceu e continuou escutando.

— Se Zulmira foi situada no templo de nosso amor — prosseguiu Odila, admiràvelménte inspirada —, é que nosso amor lhe deve a bênção da felicidade de que nos sentimos possuídos...

— Sim... sim... — aprovava agora o inter­locutor, de posse das reminiscências fragmentárias que lhe assomavam do coração.

— Interpretemo-la por nossa filha, por irmã de Evelina, cujos passos nos compete encaminhar para o bem. O lar não é apenas o domicílio dos corpos... É o ninho das almas, em cujo doce aconchego desenvolvemos as asas que nos trans­portarão aos cumes da glória eterna. Aceitemos a provação e a dor, como abençoadas instrutoras de nossa romagem para Deus...

— Todavia — ponderou o moço, triste —, sa­bes quanto te amo!...

— Não ignoras, por tua vez, que o teu coração constitui para mim o tesouro maior da vida, en­tretanto, hoje vejo o horizonte mais largo... Va­leria realmente o brilho dos oásis fechados? Serviria a construção de um palácio, em pleno deserto, onde estaríamos humilhando com a nossa saciedade os viajores que passassem por nós, mortificados de sede e fome? como categorizar o carinho que se pervertesse no isolamento, a pretexto de con­servar a ventura só para si?

Renovemo-nos, Ama­ro! Nunca é tarde para recomeçar o bem!... Tra­balhemos, valorizando o tempo e a vida!...

Tocado talvez nas fibras mais Íntimas, o pai de Evelina chorava convulsivamente, infundindo piedade...

Odila enlaçou-o com mais ternura e Clara con­vidou-nos a excursão através do grande jardim próximo.

A breves instantes, achávamo-nos em plena contemplação do céu...

Os dois cônjuges instalaram-se em perfumado recanto para a conversação a sós.

Notámos que a orientadora se preocupava em deixá-los entregues um ao outro, para mais seguro ajuste espiritual. E, enquanto ambos se recolhiam a confortadoras confidências, distanciamo-nos, de algum modo, admirando a beleza da noite.

Maravilhoso, o firmamento cintilava.

Longínquas constelações como que nos acena­vam, indicando glorioso futuro...

Virações suaves deslizavam, de leve, quais se fossem cariciosas e intangíveis mãos do vento, animando-nos a cabeça.

Flores de rara beleza vertiam do cálice raios de claridade diurna, como pequeninos e graciosos reservatórios do esplendor solar.

Irmã Clara fascinava-nos com a sua palavra brilhante. Com simplicidade encantadora, comentava suas viagens a outras esferas de trabalho e realização, exaltando em cada narrativa o amor e a sabedoria do Pai Celestial.

Por largo tempo, embevecidos, permutámos im­pressões acerca da excelsitude da vida que se nos revela sempre mais surpreendente e mais bela, em cada plano da Criação.

Avizinhava-se o novo dia...

Tornámos à presença do casal para devolver o companheiro ao lar terrestre. Ambos, ao término do grande entendimento, apresentavam o rosto pacificado e radiante.

Irmã Clara guardou a pupila nos braços e as duas seguiram-nos a romagem de volta.

Em casa, Amaro despediu-se de nós, risonho e calmo.

Dispúnhamo-nos à retirada, quando a instru­tora nos advertiu:

— Esperemos. Odila retomará hoje a tarefa.

O relógio marcava seis da manhã.

À maneira de colegial em dia de prova, a trans­figurada mãezinha de Júlio fitava-nos com extrema expectação...

Amaro recuperou o corpo físico, descerrando os olhos com excelentes disposições.

Não conseguira relacionar os aspectos parti­culares da excursão, mas conservava no cérebro a indefinível certeza de que estivera com a primei­ra esposa em “algum lugar” e que a vira reani­mada e feliz.

Distendeu os braços com a deliciosa tranqui­lidade de quem encontra o fim de longa e aflitiva tensão nervosa.

Levantou-se, reparando que o dia começava alegre e lindo, sem dar conta de que a alegria e a beleza haviam renascido nele próprio.

Sentia vontade de rir e cantar...

E, depois de ausentar-se do banheiro, onde cantarolou baixinho uma canção que lhe recordava o tempo em que se consorciara pela primeira vez, tornou, sorridente, ao quarto de dormir.

Foi então que Odila o enlaçou carinhosamente e exclamou:

— Vamos, querido! Estendamos a nossa feli­cidade! Zulmira espera por nosso amor...


25

Reconciliação

Amaro não registrou o convite da companheira desencarnada, em forma de palavras ouvidas, mas recebeu-o como silencioso apelo à vida mental.

Dirigiu-se a pequenina copa, pensando em Zul­mira, com o insopitável desejo de comunicar-lhe o estranho contentamento de que se via possuído.

Não seria justo envolver a esposa doente na onda de alegria em que se banhava?

Vimos que Odila tremeu um instante, ao lhe observar a súbita felicidade com a perspectiva de restauração do carinho para com a segunda mulher. Compreendi o esforço que a iniciativa lhe recla­mava ao coração feminino e, mais uma vez, reco­nheci que a morte do corpo não exonera o Espírito da obrigação de renovar-se. No fundo, não podia sentir, de imediato, plena isenção de ciúme, entre­tanto, aceitava o ideal de sublimação que se lhe implantara no sentimento e não parecia disposta a perder a oportunidade de reajuste.

Anotando-lhe a queda de forças, Clara abei­rou-se dela e falou, maternal:

— Prossigamos firmes. Todo bem que fizeres a Zulmira redundará em favor de ti mesma. Não esmoreças. Ajuda-te. A vontade, à procura do bem, realiza milagres em nós mesmos, O sacrifício é o preço da verdadeira felicidade.

O abraço afetuoso da benfeitora infundiu-lhe energias novas.

Os olhos dela brilharam outra vez.

Enlaçada ao marido, impeliu-o docemente ao leito em que a pobre doente repousava.

A enferma, por certo, desde muito perdera o contacto com qualquer manifestação afetiva por parte do companheiro, e, assim, ao lhe ver o sem­blante carinhoso e feliz, exibiu larga nota de espanto.

— Zulmira! — perguntou ele, inclinando-se para o seu rosto ossudo e desconsolado — estás realmente melhor?

— Sim... sim... — suspirou a interpelada, hesitante.

— Escuta! Hoje, amanheci pensando em nós, em nossa felicidade... Não julgas seja tempo de reagirmos contra o sofrimento que nos cerca? preo­cupo-me por ti, acamada e abatida, desde a morte de Júlio...

Notei que do tórax de Amaro emanava largo fluxo de energia radiante, assim como um jato de raios de luz verde-prateada que envolveram o bus­to de Zulmira, despertando-lhe emotividade incoer­cível.

A desventurada senhora começou a chorar, dando-nos a impressão de que os fluidos arremes­sados sobre ela lhe lavavam o coração.

Clarêncio, calmo, informou:

— Como vemos, a sinceridade dispõe de recur­sos característicos. Emite forças que não deixam margem a enganos. O sentimento puro com que Amaro se dirige agora à esposa é fator decisivo para que ela se reerga e se cure.

O ferroviário, auxiliado por Odila, enxugou as lágrimas que corriam copiosas daqueles olhos ma­cerados e tristes e continuou:

— Peço confies em mim! afinal de contas, so­mos companheiros um do outro... como poderei ser feliz sem o teu concurso? não nos casamos para chorar...

— Amaro! — exclamou a interlocutora ago­niada, conservando ainda os últimos resíduos mentais do complexo de culpa em que se torturava — como te agradeço a alegria desta hora!...

En­tretanto, a imagem de Júlio não me sai da lem­brança... Sinto que o remorso me persegue. Não fiz tudo o que eu devia para salvar o filhinho que me confiaste!...

— Esqueçamos o passado — asseverou o es­poso, decidido —, todos pertencemos a Deus e acre­dito que a Divina Vontade vive conosco, em toda parte. Indiscutivelmente, Júlio nos faz muita fal­ta, mas não podemos renunciar à vida que o Céu nos concedeu. É imprescindível lutar, procurando a vitória.

Ligado à mente da primeira esposa, que tudo fazia por ajudá-lo, prosseguiu com enternecedora inflexão de voz:

— Não olvides que pertencemos aos compro­missos morais que assumimos... O carinho do meu caçula significava muitíssimo para o meu coração, contudo, não pode ser mais importante que o nos­so amor!... Refaze-te! Vivamos nossa vida!... Temos Evelina e a nossa felicidade!...

A doente sentou-se, de olhos reanimados e di­ferentes.

E, enquanto o esposo acomodava-se ao lado dela, vimos Odila, de fisionomia satisfeita, dirigir-se ao quarto da filha.

Instintivamente acompanhámo-la, de modo a assisti-la em qualquer dificuldade. Ela, porém, com inefável surpresa para nós, colocou a destra sobre a fronte da menina, solicitando-lhe a presença.

Findos alguns instantes, Evelina, em Espírito, voltou ao aposento em que seu corpo repousava.

Vendo a mãezinha, correu a abraçá-la.

Fundiram-se ambas num amplexo longo e co­movedor, misturando-se as lágrimas.

— Enfim! enfim!... — clamou a jovem ma­ravilhada.

— Minha filha! minha filha!

E, em seguida, a genitora descansou nela os olhos inflamados de esperança, pedindo súplice:

— Evelina, ajuda-nos! Se não nos unirmos sob a luz da compreensão e do trabalho, nossa casa desaparecerá... Teu pai e eu não podemos dispen­sar-te o concurso. Da saúde e da paz de Zulmi­ra depende a feliz continuação de nossa tarefa... Deus não nos reúne para a indiferença ou para o egoísmo e sim para o serviço salutar de uns pelos outros!...

— Mãezinha — explicou a jovem extática —, tenho orado, tenho pedido ao seu coração nos au­xilie...

— Sim, Evelina, sei que em tua abnegação não te descuidas da prece. Jesus terá recebido teus rogos... Achava-me surda, vitimada pelo ruído destruidor de minha própria incompreensão. Sinto, porém, que minhalma desperta hoje... e vejo que nos compete algo fazer para restaurar o valor de teu pai e a alegria de nossa casa...

— Continuarei orando...

— Não olvides a prece, querida, mas a súplica que não age pode ser uma flor sem perfume.

Pe­çamos o socorro do Senhor, algo realizando para contribuir em seu apostolado divino... Comecemos por refundir a confiança em tua nova mãe. Faze­-te melhor para ela... Procura-a, desdobra-te no trabalho de preservação da tranquilidade domés­tica, a fim de que Zulmira se veja segura de teu afeto e de teu entendimento filial... Uma rosa sobre a mesa, uma vassoura diligente, uma peça de roupa cuidadosamente guardada, uma escova no lugar que lhe compete, são serviços de Jesus, no santuário da família, com os quais devemos valo­rizar o pensamento religioso... Não te detenhas tão somente nas boas intenções. Movimenta-te no trabalho encorajador da harmonia. Sê o anjo do serviço em nossa casinha singela! Zulmira necessi­ta de uma irmã, de uma filha!...

Aproveita a oportunidade e faze o melhor!...

Evelina, com indefinível contentamento a ilu­minar-lhe o rosto, enlaçou a mãezinha com extre­mada ternura e beijou-a, muitas vezes.

Logo após, passando a obedecer à mensageira, retomou o corpo carnal e acordou deslumbrada.

Tão grande se lhe afigurava a própria ventura que detinha a impressão de estar descendo da es­fera celestial.

A imagem de Odila, carinhosa e bela, ocupa­va-lhe, agora, todo o espelho da mente.

Estendeu as mãos em torno como se ainda pudesse tocar a genitora com os dedos de carne, conservando perfeita lembrança da inolvidável en­trevista.

Intensamente feliz, ergueu-se de um salto e vestiu-se.

Finda a higiene rápida, vimos Odila recolhê-la nos braços, conduzindo-a igualmente até Zulmira.

Induzida pela influência materna, passou pela copa e chegou junto da madrasta, oferecendo-lhe pequena bandeja com a leve refeição da manhã.

Amaro e a companheira receberam-na, encan­tados

- Meu Deus — disse a doente, sorrindo —, tenho a impressão de que um anjo penetrou nossa casa. Tudo hoje amanheceu contentamento e bom ânimo!...

Evelina alcançou o leito, reuniu os dois côn­juges num só abraço e falou, jubilosa:

— Sonhei com Mãezinha! Vi-a tão nítida, como se ainda estivesse conosco. Afirmou que necessita­mos de amor e recomendou seja eu para Zulmira a filha que ela não tem!... Ah! que felicidade!... Mamãe ouviu minhas preces!

O ferroviário anotou, satisfeito, a informação, guardando, porém, consigo mesmo as recordações da noite para não ferir as suscetibilidades da com­panheira, e Zulmira, a seu turno, embora lembrasse os repetidos pesadelos que atravessara, sentindo-se atormentada pelos ciúmes de Odila, abafou as próprias reminiscências, para aderir com toda a alma ao otimismo daquele abençoado momento de paz e renovação.

Fixando a madrasta, com embevecimento, a menina acrescentou:

— Quero ser melhor, mais diligente e mais amiga!... Papai, você e eu seremos doravante mais felizes.

A pobre senhora suspirou reconfortada e aduziu:

— Sem dúvida alguma, Odila deve ser o nos­so gênio protetor... E’ muita alegria nesta manhã para que a nossa ventura seja simples sonho ou mera coincidência!

Aquele testemunho de gratidão, partido com a melhor espontaneidade da mulher considerada, até então, por inimiga, tocou as recônditas fibras da primeira esposa de Amaro que, incapaz de suportar a emoção, começou a chorar entre o reco­nhecimento e o regozijo.

Irmã Clara abraçou-a e falou, humilde:

— Chora, minha filha! Chora de júbilo! Em verdade, quando o amor sublime penetra em nosso coração, a luz do Senhor passa a reger os passos de nossa vida.


26

Mãe e filho

A alegria plena coroara o trio doméstico.

Mostrando a expectativa de uma colegial preo­cupada em receber a aprovação dos mentores, Odila ergueu os olhos lacrimosos para Irmã Clara, per­guntando:

— Terei agido corretamente?

Lia-se-lhe no rosto a necessidade de uma frase estimulante.

A venerável amiga conchegou-a de encontro ao coração.

— Venceste, valorosa — disse, terna —; com­preendeste o santo dever do amor. Abençoarás para sempre este maravilhoso dia de renúncia e doação de ti mesma.

Vimos Odila colar-se a ela, à maneira de uma criança nos braços maternais, chorando copiosa­mente.

— Não te comovas tanto assim! — apelou a benfeitora, osculando-lhe os cabelos.

Sensibilizando-nos igualmente, a primeira es­posa de Amaro respondeu com dificuldade:

— Meu pranto não é de sofrimento... Sinto-me agora leve e feliz... como não compreendia eu assim, antes!...

— Sim — elucidou Clara, de modo significa­tivo —, perdeste peso espiritual, habilitando-te à elevação de nível. Nossas paixões inferiores íman­tam-nos à Terra, como o visco prende o pássaro a distância das alturas...

E, afagando-a, acentuou, bondosa:

— Vamos! Deste agora o amor puro e, por isso, o amor puro não te faltará. De ora em diante, serás aqui bem-aventurada mensageira, de vez que o teu coração permanecerá em serviço dos anjos guardiães de nossos destinos, que velam por nós abnegadamente, esperando-nos na Vida Mais Alta. Cedendo o carinho de teu companheiro à outra mu­lher, de cuja colaboração necessita ele para redi­mir-se, conquistaste nele novo patrimônio de afe­tividade, e, aproximando a filhinha daquela a quem devemos querer como irmã, adquiriste o mereci­mento indispensável para recuperar o filhinho, cujo futuro poderás orientar... Hoje mesmo, estarás ao lado de teu Júlio...

Odila, transfigurada, estampou no semblante a luz da felicidade que lhe fluía do mundo interior.

O Sol inundava a Terra de raios vivificantes, quando a reconduzimos ao hospital, com a promes­sa de buscá-la, mais tarde, para a viagem ao Lar da Bênção.

Com efeito, transcorridas algumas horas, quan­do a pausa dos nossos compromissos de trabalho nos ofereceu a oportunidade precisa, convocámo-la ao reencontro.

Sustentada nos braços de Clara, a mãezinha de Júlio revelava inexcedível contentamento.

Era a primeira vez, depois da morte física, que se confiava a romagem tão linda, prorrompendo em exclamações admirativas, ante os surpreenden­tes jogos da luz.

Nas vizinhanças do sítio para o qual nos diri­gíamos, inalava o ar tonificante a longos haustos, deslumbrando-se na visão da Natureza saturada de perfumes e adornada de flores.

Extasiou-se na contemplação das centenas de pequeninos, que brincavam festivamente. Muito pá­lida, de atenção presa à multidão infantil, na pro­cura ansiosa do filho, achava-se mentalmente muito distanciada de nosso grupo. Por isso mesmo, deixava-se conduzir qual se fôra um autômato.

Acompanhando Clarêncio, atingimos a residên­cia de Blandina, que nos acolheu com a gentileza habitual.

Entrámos.

Não houve necessidade de muitas palavras.

Atraida pelo grande berço que se levantava à nossa vista, Odila precipitou-se sobre o menino enfermo, bradando, alarmada:

— Meu filho! Júlio! Meu filho!... Indubitàvelmente, a Sabedoria Universal colo­cou imperscrutáveis segredos no carinho materno. Algo de milagroso e divino existe nos laços que unem mães e filhos que, por enquanto, não pode­mos apreender.

A criança doente transformou-se, de súbito.

Indefinível expressão de felicidade cobriu-lhe o semblante.

— Mãe! Mãe!... — gritou, respondendo.

E alongou os braços, agarrando-se-lhe ao busto.

Em lágrimas, Odila retirou-o instintivamente do leito, beijando-o enternecida.

Quando se lhe asserenou a desbordante emoti­vidade, sentou-se ao nosso lado, trazendo o filho ao colo.

Júlio, completamente modificado, contava-lhe quanto lhe doía a garganta, mostrando-lhe a glote extensamente ferida.

E terminada que foi a hora comovente que nos empolgara a todos, Blandina abriu a conversação geral, acentuando, contente:

— Sabíamos que a Divina Bondade não dei­xaria o nosso doentinho sem a ternura maternal.

Júlio agora terá junto dele a insubstituível dedicação.

Odila, que se mostrava compreensivelmente conturbada, ante a posição orgânica do menino, nada respondeu; contudo, Clara considerou, afe­tuosa:

— Esperamos localizar nossa amiga no Par­que, por algum tempo, e, certo, sentirá prazer em encarregar-se do pequenino.

— Sim, a Escola das Mães apresenta vastas disponibilidades — informou Blandina, prestimosa.

— Odila poderá entregar-se com segurança à ta­refa assistencial que Júlio exige. Receberá todos os recursos...

— Aflige-me encontrá-lo assim — alegou a genitora preocupada, indicando o pequeno enfermo —, não posso atinar com a razão de uma úlcera tão grande, sem o corpo de carne... não tenho bases para entender de uma só vez tudo quanto vejo, mesmo porque também eu andava louca, in­capaz de raciocinar...

Reparei que o Ministro e a Irmã Clara se en­treolharam, de modo expressivo, dando-me a idéia de que conversavam, através do pensamento.

Assinalando as doloridas referências maternas, a instrutora designou com a destra o nosso orien­tador, ajuntando bem humorada:

— Clarêncio tem a palavra elucidativa.

— Sim — ponderou o Ministro, cauteloso —, nossa irmã, como é natural, encontrará pela frente variados problemas ligados ao caminho de elevação que lhe é próprio. Achamo-nos todos infinitamente longe do Céu que fantasiávamos na Terra e cada qual de nós detém consigo deficiências que será preciso superar. O passado reflete-se no presente.

Sorrindo, acrescentou:

— Nosso destino é assim como o rio. Por mais diferenciado se encontre, à distância da nascente que lhe dá origem, está sempre ligado a ela pela corrente em ação contínua...

— Procurarei compreender — disse Odila mais segura de si —, sou mãe e não posso desvencilhar­-me da obrigação de amparar meu filhinho. Dis­pensar-lhe-ei todos os cuidados imprescindíveis ao seu bem-estar. Sinto que a felicidade pode ser conquistada no mundo a que fomos trazidos pela renovação... Trabalharei quanto estiver ao meu alcance para ver Júlio integralmente refeito. Hoje, novos ideais me banham o coração. É imperioso esforçar-me. Todos os que amamos virão ter co­nosco, mais cedo ou mais tarde... Esperanças di­ferentes me animam o espírito. Amanhã, no por-vir talvez próximo, terei meus familiares aqui, de novo, e não posso olvidar a necessidade de algo fa­zer para conseguir o abrigo de que necessitamos...

Passeou o olhar vago e cismarento pelo recinto como se estivesse contemplando remotos horizon­tes e concluiu:

— Um lar... a felicidade restaurada... a bên­ção do reencontro...

Por largo tempo, o comentário edificante bri­lhou na sala, aquecendo a chama da amizade e da confiança em nossos corações.

Blandina e Mariana prometeram cooperar, in­sistindo para que Odila se demorasse junto delas, até situar-se, em definitivo, no educandário a que se destinava.

A renovada senhora aceitou, reconhecidamente.

Despedimo-nos, felizes.

Após nos separarmos de Clara, retomando o caminho de volta ao nosso domicílio espiritual, jul­guei conveniente interpelar o instrutor, acerca dos problemas que me esfervilhavam no cérebro.

Porque não esclarecer Odila, com respeito ao pretérito de Júlio? Seria aconselhável deixá-la en­tregue a informações deficientes, quando lhe co­nhecíamos extensamente os enigmas da organização familiar? porque não lhe explanar francamente o impositivo da reencarnação do menino?

Clarêncio, como de outras vezes, ouviu sereno e generoso.

Quando acabei o interrogatório, replicou sem alterar-se:

— À primeira vista, seria efetivamente esse o caminho a seguir, entretanto as recordações do pretérito não devem ser totalmente despertadas, para que ansiedades inúteis não nos dilacerem o presente. A verdade para a alma é como o pão para o corpo que não pode exorbitar da quota necessária a cada dia. Toda precipitação gera de­sastres. Além do mais, não nos cabe a vaidade de qualquer antecipação a providências que serão agradáveis e construtivas ao amor de nossa irmã.

Sentindo-se ainda plenamente integrada no carinho materno, ela própria assumirá a responsabilidade do trabalho alusivo à reencarnação do pequeno. Advogando ela mesma essa medida e destinando-se a criança ao seu antigo lar, encontrará no assunto abençoado serviço de fraternidade, ao mesmo tem­po que se reconhecerá mais responsável. Se mo­vêssemos as decisões, Odila observar-se-ia anulada em sua capacidade de agir, ao passo que, confiando a ela as deliberações que o caso reclama, adquirirá novo interesse para auxiliar Zulmira, de vez que a segunda esposa de Amaro substitui-la-á na con­dição de mãe, oferecendo novo corpo ao filhinho...

Admirado com os apontamentos ouvidos, vi-me satisfeito na inquirição.

Clarêncio, todavia, com o sorriso natural que lhe marcava habitualmente o semblante, aduziu, calmo:

— A vida é uma escola e cada criatura, dentro dela, deve dar a própria lição. Esperemos agora alguns dias. Interessada em socorrer o filhinho doente, a própria Odila virá até nós, lembrando para ele a felicidade da volta à Terra.


27

Preparando a volta

Quatro semanas correram céleres, quando fo­mos realmente procurados por Odila, no Templo do Socorro, para um entendimento particular.

Clarêncio, Hilário e eu recebemo-la quase sem surpresa.

Vinha algo triste e preocupada.

Com respeitosa delicadeza, contou-nos a expe­riência inquietante que atravessava.

Júlio prosseguia apresentando na fenda glótica a mesma ferida. Instalara-se com ele em aposentos adequados na Escola das Mães e ao filhinho dis­pensava todo o cuidado suscetível de reerguer-lhe as energias, entretanto, a luta continuava... Re­cursos medicamentosos e passes magnéticos não faltavam, contudo, não surtiam efeito.

Daria tudo para vê-lo forte e feliz.

Esperava a descoberta de algum milagre, capaz de atender-lhe o anseio de mãe, no entanto, vi­sitara em companhia de Blandina outros setores de assistência à infância torturada; vira inúmeras crianças infelizes, portadoras de problemas talvez mais dolorosos que aqueles do filhinho bem-amado.

Apavorara-se.

Jamais supusera a existência de tantas enfer­midades depois da morte.

Tentara obter os bons ofícios de vários ami­gos, para esclarecer-se convenientemente, e todos, à uma, repetiam sempre que os compromissos mo­rais adquiridos conscientemente na carne somente na carne deveriam ser resolvidos, e que, por isso mesmo, a reencarnação para Júlio era o único ca­minho a seguir.

O corpo físico funcionaria como abafador da moléstia da alma, sanando-a, pouco a pouco...

Que fizera o menino no pretérito para receber semelhante punição?

A pobre senhora enxugava as lágrimas que lhe caíam espontâneas.

Clarêncio, profundo conhecedor do sofrimento humano, falou como sacerdote:

— Odila, o passado agora não é o remédio próprio. Atendamos à hora que passa. Temos Júlio extremamente necessitado à nossa frente e o alívio dele é o nosso objetivo mais imediato.

A mãezinha resignada concordou num gesto silencioso.

— Também creio — prosseguiu o nosso ins­trutor, imperturbável — que a reencarnação do pequeno é urgente medida se desejamos observá-lo no caminho da própria recuperação.

— Irmã Clara recomendou-me viesse rogar-lhe o concurso. Ajude-me, abnegado amigo!...

— Somos todos irmãos — ajuntou Clarêncio generoso — e achamo-nos uns à frente dos outros para a prestação do serviço mútuo. Nosso Júlio não é uma criatura comum e, por esse motivo, não seria justo renascer no mundo a esmo, como plan­ta inculta germinando à toa, no mato da vida in­ferior. Assim sendo, analisemos o quadro de tuas relações afetivas...

Depois de ligeira pausa, acrescentou:

— Tens grande plantio de amizades puras na Terra? Em questões de auxílio, não podemos perder os nossos sentimentos de vista. Tanto para entrar no reino do espírito, como para entrar no reino da carne, em melhores condições, não podemos pres­cindir da cooperação de amigos sinceros que nos conheçam e nos amem.

— Ah! sim, compreendo... — exclamou a in­terlocutora com algum desapontamento.

— Sempre ocupada com a nossa casa e com a nossa família, nunca pude efetivamente cultivar tantas afeições, como seria de desejar. Amaro, porem...

— Perfeitamente — atalhou o Ministro, com­pletando-lhe a frase —, estou certo de que Amaro continuará sendo para o menino um admirável companheiro, entretanto, não podemos dispensar no cometimento o concurso de Zulmira. Precisamos dela no trabalho maternal. Para isso, é impres­cindível te faças mais devotada, mais amiga... Um esforço pede outro. Sem o lubrificante da coope­ração, a máquina da vida não funciona.

Os olhos de Odila faiscaram de esperança.

— Tudo farei por ajudá-la, auxiliando a mim mesma — disse, comovida —, entendo mesmo nesse imperativo de fraternidade a doce determinação do Senhor, constrangendo-me a operosa boa vontade para com ela. Realmente — acentuou, sorrindo —, reparo quão sublime é a Infinita Bondade do Céu. A princípio lutei contra Zulmira, desejando ser ama­da de meu esposo, agora devo lutar em favor de nossa irmã por amar o meu filho. Muito erramos, disputando o amor dos outros, entretanto, corri­gimo-nos e acertamos o passo, quando procuramos.

— Sem dúvida, as tuas conclusões são lumi­noso ensinamento — concordou o Ministro, bem humorado —; em tudo vemos a Eterna Sabedoria.

— Devo buscar alguma regra específica?

— Creio — ponderou o nosso orientador —que as tuas visitas afetuosas ao antigo lar, consolidando-lhe a harmonia, são a providência básica para que Júlio encontre um clima de confiança. Admito que o nosso pequeno reclama especiais atenções, considerando-se-lhe a posição de enfer­mo, para quem a reencarnação apresenta obstácu­los justos.

O entendimento alongou-se por mais tempo, entre os conselhos paternais do Ministro e a sincera humildade da visitante.

Quando Odila se despediu, desfechámos sobre o instrutor algumas perguntas que nos fustigavam a cabeça.

A reencarnação como lei exigia o concurso da amizade para cumprir-se? os desafetos da vida in­fluiam em nosso futuro? o trabalho reencarnatório não seria uma imposição natural?

Clarêncio ouviu, atencioso, as indagações e res­pondeu, satisfeito:

— A lei é sempre a lei. Cabe-nos tão somente respeitá-la e cumpri-la. Nossa atitude, porém, pode favorecer-lhe ou contrariar-lhe o curso, em favor ou em prejuízo de nós mesmos, O renascimento na carne funciona em condições idênticas para todos, contudo, à medida que se nos desenvolvem o co­nhecimento e o amor, conseguimos colaborar em todos os serviços do aperfeiçoamento moral em nos­sas recapitulações. A alma, como a planta, pode ressurgir em qualquer trato de solo, mas não se­ria justo relegar sementes selecionadas a terrenos incultos. A reencarnação, por si, tanto quanto ocor­re nos reinos inferiores à evolução humana, obe­dece a princípios embriogênicos automáticos, com bases na sintonia magnética; contudo, em se tra­tando de criaturas com alguns passos à frente da multidão comum, é possível ajustar providências que favoreçam a execução da tarefa a cumprir. Nesses casos, a plantação de simpatia é fator de­cisivo na obtenção dos recursos de que necessita­mos... Quem cultiva a amizade somente na famí­lia consangüínea, dificilmente encontra meios para desempenhar certas missões fora dela. Quanto mais extenso o nosso raio de trabalho e de amor, mais ampla se faz a colaboração alheia em nosso benefício.

— E quando, desprevenidos, deixamos que a antipatia cresça em derredor de nós? — inquiriu Hilário, com interesse.

— Toda antipatia conservada é perda de tem­po, em muitas ocasiões acrescida de lamentáveis compromissos. O espinheiro da aversão exige longos trabalhos de reajuste. Em várias circunstâncias, para curar as chagas de um desafeto, gastamos muitos anos, perdendo o contacto com admiráveis companheiros de nossa jornada espiritual para a Grande Luz.

A palavra de Clarêncio impunha-nos graves reflexões e talvez por isso a quietação baixou sobre nós.

Soubemos, mais tarde, que a genitora de Eve­lina passou a dispensar envolvente carinho ao ferroviário e à companheira doente, que, à custa de muito esforço dela, restabeleceu afinal a saúde orgânica.

Preparando o retorno do filhinho, Odila asso­ciou-se, de coração, à tarefa de restaurar-lhes a harmonia conjugal e o contentamento de viver.

Foi assim que, transcorridas algumas semanas, recebemos um convite da Irmã Clara para uma vi­sita ao Lar da Bênção.

Em noite próxima, Odila conduziria a segunda esposa de Amaro ao encontro de Júlio, como der­radeira preliminar do trabalho reencarnatório.

No momento aprazado, achávamo-nos a postos. Blandina, Mariana, Clarêncio, Hilário e eu, pa­lestrando animadamente em aposentos reservados na Escola das Mães, cercávamos o alvo berço em que o doentinho gemia de quando em quando.

Assistida por irmã Clara, Odila demandara o antigo ninho doméstico, no propósito de acompa­nhar Zulmira até nós.

Decorrido algum tempo de expectação, as três chegaram, envolvidas em luminosa onda de paz.

Enlaçada pelos braços das duas protetoras, a ex-obsidiada parecia feliz, não obstante a impres­são de medo e insegurança que lhe transparecia do olhar.

Respondeu-nos as saudações com a estranheza de quase todos os encarnados que alcançam as esferas superiores da vida espiritual, antes da morte física, e, logo após, sustentada pelas companheiras, aproximou-se do pequeno enfermo, identificando-o, espantada.

— Será Júlio, meu Deus?

— É verdadeiramente Júlio! — confirmou Odi­la, fraternal — para ele te rogamos socorro! nosso pequeno precisa renascer, Zulmira! poderás auxi­liá-lo, oferecendo-lhe o regaço de mãe?

Vimos a interpelada em lágrimas de alegria.

Inclinou-se sobre o menino, afagando-o com intraduzível ternura, e falou em voz quase sufocada pela comoção:

— Estou pronta! Devo a Júlio cuidados que lhe neguei... Louvo reconhecidamente a Deus por esta graça! Sinto que assim nunca mais serei as­saltada pelo remorso de não haver feito por ele quanto me competia!... Será meu filho, sim!... Conchegá-lo-ei de encontro ao peito! Ó Senhor, ampara-me!...

Abraçou o menino enfermo e afigurou-se-nos, desde então, incapaz de qualquer sintonia conosco.

Talvez religada, de súbito, a inquietantes re­cordações da fixação mental que atravessara, pare­ceu-nos cega e surda, sob o império de inesperada introversão.

O Ministro, atendendo ao apelo de Clara, abei­rou-se dela e amparou-a, recomendando:

— Convém seja nossa irmã restituida ao lar terrestre O choque repetido será prejuízo grave. Amanhã, reconduziremos nosso pequeno ao santuá­rio doméstico de onde veio, confiando-o, enfim, à tarefa do recomeço.

A sugestão foi obedecida.

E enquanto Zulmira voltava ao templo fami­liar, arquivávamos nossa expectação, à espera do dia seguinte.


28

Retorno

Preocupados com o caso de Júlio, no dia ime­diato indagámos do orientador sobre a planificação do serviço reencarnatório, ao que Clarêncio infor­mou, conciso:

— O problema é doloroso, mas é simples. Tra­ta-se tão somente de ligeira prova necessária. Júlio sofrerá o aflitivo desejo de permanecer na Terra, com o empréstimo do corpo físico a prazo longo, entretanto, suicida que foi, com duas tentativas de auto-aniquilamento, por duas vezes deverá experi­mentar a frustração para valorizar com mais se­gurança a bênção da vida terrestre.

Depois de estagiar por muitos anos nas regiões inferiores de nosso plano, confiando-se inutilmente à revol­ta e à inércia, já passou pelo afogamento e agora enfrentará a intoxicação. Tudo isso é lastimável, no entanto...

E mostrando significativa expressão fisionômica, ajuntou:

— Quem aprenderá sem a cooperação do so­frimento?

— Penso, contudo, no martírio dos pais... — considerou Hilário, hesitante.

— Meus amigos — falou o Ministro, genero­so —, a justiça é inalienável. Não podemos iludi-la. Com o desequilíbrio emocional de Amaro e Zulmi­ra, no pretérito, Júlio arrojou-se a escuro despe­nhadeiro de compromissos morais e, na atualidade, reabilitar-se-á com a cooperação deles.

Ontem, o casal, por esquecê-lo, inclinou-o à queda, hoje, por amá-lo, garantir-lhe-á o soerguimento.

A palestra esmoreceu, talvez porque o assunto nos compelisse a severa meditação.

Hilário e eu, refletindo na absoluta harmonia da Lei, calámo-nos cismarentos, à espera da noite, quando integraríamos a caravana da amizade que restituiria a criança enferma ao ninho antigo.

Com efeito, avizinhava-se a madrugada, quan­do alcançámos a residência do ferroviário, envol­vida em sombra.

Odila trazia nos braços o filho irrequieto e gemente, enquanto o Ministro, Irmã Clara, Blan­dina, Mariana, Hilário e eu rodeávamos ambos, em silêncio.

Penetrámos a sala humilde.

Qual se houvera sorvido invisível anestésico, o menino emudeceu.

Junto de nós, o orientador, solícito, explicou:

— O doentinho encontra grande alívio em con­tacto com os fluidos domésticos, O reequilíbrio da alma no ambiente que lhe é familiar no mundo constitui base firme para o êxito da reencarnação.

Não prosseguiu, contudo.

Irmã Clara fêz-lhe expressivo aceno e o nosso instrutor penetrou, sôzinho, a câmara conjugal, sem dúvida para certificar-se quanto à conveniência de confiarmos o pequenino à sua futura mãe.

Transcorridos alguns minutos, Clarêncio veio ao nosso encontro, convidando-nos a entrar.

Enternecedor espetáculo desdobrou-se à nossa vista.

Zulmira em Espírito estendeu-nos braços fra­ternos. Estava bela, radiante de alegria... E, quando recebeu Júlio, conchegando-o ao próprio peito, pareceu-me sublimada madona, aureolada por ma­ternidade vitoriosa.

Odila chorava.

Clarêncio ergueu os olhos para o Alto e orou, em voz comovedora:

— Senhor, abençoa-nos!... De almas entre­laçadas na esperança em teu infinito amor e no júbilo que nasce da obediência aos teus desígnios, aqui nos achamos, acompanhando um amigo que volta à recapitulação! Dá-lhe forças para subme­ter-se resignado à cruz que lhe será a salvação!... Ó Pai, sustenta-nos na grande estrada redentora em que o obstáculo e a dor devem ser nossos guias, fortalece-nos o bom ânimo e a serenidade e mode­ra-nos o coração para que saibamos servir-te em qualquer circunstância!... Sobretudo, Senhor, ro­gamos-te auxilies a nossa irmã que investe sagra­das aspirações femininas no apostolado maternal! Santifica-lhe os anseios, multiplica-lhe as energias para que ela se honre contigo na divina tarefa de criar!...

A palavra do Ministro, saturada de paternal amor, desse amor que nos atinge o espírito até à fonte oculta das lágrimas, levara-nos à comoção.

Zulmira, todavia, sensibilizou-nos ainda mais. Afraída pelo poder magnético da oração, avançou com o menino colado ao regaço até junto de nosso orientador, e ajoelhou-se.

Aquela humildade ingênua lembrava-me a nar­ração evangélica da viúva de Naim com o filho morto aos pés do Cristo e não pude conter o pranto que me vertia do coração.

Igualmente tocado por aquele gesto espontâ­neo de confiança e fé, o Ministro voltou-se para ela e afagou-lhe a cabeça, transfigurado.

Algo de sublime devia ter acontecido na alma daquele missionário da abnegação que me habitua­ra a querer com extremado carinho.

Jorro estelar descia da Altura, inflamando-lhe a fronte e da destra que acariciava a irmã genuflexa, projetavam-se raios de safirina luz...

Maravilhosos instantes de expectação correram sobre nós.

Em seguida, sustentando-a nos braços, Clarên­cio reergueu-a, conduzindo-a ao leito com a criança.

Zulmira, desde então, afigurou-se-nos integral­mente concentrada no filhinho, que se enlaçou a

ela, instintivamente, à maneira de um molusco a acomodar-se na própria concha.

Júlio dormira plàcidamente, enfim.

Abraçado ao colo materno, parecia fundir-se nele.

De outras vezes, acompanhara trabalhos pre­paratórios de reencarnação, que exigiam concurso ativo de técnicos do assunto e de benfeitores da vida superior, mas ali o fenômeno era demasiado simples. O corpo sutil do menino como que se jus­tapunha aos delicados tecidos do perispírito maternal, adelgaçando-se gradativamente aos nossos olhos.

Irmã Clara e as companheiras oscularam a futura mãezinha, que tentava recuperar o corpo denso, conduzindo consigo o pequeno confortado e desfalecente e retirámo-nos, tomados da alegria que nasce, pura, da obrigação bem cumprida.

Odila encarregou-se da assistência a Zulmira, e Clarêncio prometeu seguir, de perto, os serviços naturais daquela gravidez incipiente.

Quando nos vimos, de novo, a sós, as indaga­ções surgiram, imperiosas.

O Ministro, com a paciência admirável de to­dos os dias, tomou a palavra e esclareceu:

— A reencarnação no caso de Júlio não re­clama de nossa esfera cuidados especiais. É uma descida experimental ao campo da matéria densa, com interesse tão somente para ele mesmo e para os familiares que o cercam. Todavia, se a exis­tência do filho de Amaro estivesse destinada, no momento, a influenciar a comunidade, se ele fosse detentor de méritos indiscutíveis, com responsabi­lidades justas nos caminhos alheios, o problema seria efetivamente outro. Forças de ordem supe­rior seriam fatalmente mobilizadas para a inter­ferência nos cromossomos, garantindo-se o embrião do veículo físico de maneira adequada à missão que lhe coubesse...

— E se o reencarnante fosse um homem de larga intelectualidade? — inquiriu Hilário, estudioso.

— Merecer-nos-ia cautelosa atenção na estru­tura cerebral, para que lhe não faltasse um instru­mento à altura de seus deveres na materialização do pensamento.

— E se fosse um médico? um grande cirur­gião por exemplo? — perguntei por minha vez.

— Receberia assistência aprimorada na forma­ção do sistema nervoso, assegurando-se-lhe pleno domínio das emoções.

Porque não mais indagássemos especificamen­te, o instrutor continuou:

— Contudo, em milhares de renascimentos, na Terra, os princípios embriogênicos funcionam, au­tomáticos, cada dia. A lei de causa e efeito exe­cuta-se sem necessidade de fiscalização da nossa parte. Na reencarnação, basta o magnetismo dos pais, aliado ao forte desejo daquele que regressa ao campo das formas físicas. De retorno ao corpo físico, estamos invariàvelmente animados de um propósito firme... seja o anseio de alijar a dor que nos atormenta, a aspiração de conquistas es­pirituais que nos facilitem o acesso à Vida Supe­rior, o voto de recapitular serviços mal feitos ou o ideal de realizar grandes tarefas de amor en­tre aqueles a quem nos afeiçoamos no mundo. De modo geral, a maioria das almas que reencarnam satisfazem à fome inquietante de recomeço.

Quem não atendeu com exatidão ao trabalho que a vida lhe delegou, depressa se rende ao impositivo de repetição da experiência e o ressurgimento na luta física aparece por bênção salvadora. Milhões de destinos se reestruturam dessa forma, qual se re­faz uma grande floresta. A sementeira cresce, estimulada pelo magnetismo do solo; a existência corpórea germina de novo, incentivada pelo mag­netismo da carne...

Ante a pausa ligeira do Ministro, Hilário per­guntou, respeitoso:

— O seio maternal, desse modo...

Nosso mentor completou-lhe a definição, res­pondendo:

— É um vaso anímico de elevado poder mag­nético ou um molde vivo destinado à fundição e refundição das formas, ao sopro criador da Bon­dade Divina, que, em toda a parte, nos oferece recursos ao desenvolvimento para a Sabedoria e para o Amor. Esse vaso atrai a alma sequiosa de renascimento e que lhe é afim, reproduzindo-lhe o corpo denso, no tempo e no espaço, como a terra engole a semente para doar-lhe nova germinação, consoante os princípios que encerra.

Maternidade é sagrado serviço espiritual em que a alma se de­mora séculos, na maioria das vezes aperfeiçoando qualidades do sentimento.

A palestra prosseguia valiosa, mas o tempo nos convocava a outros misteres e, em razão disso, fomos constrangidos a interromper o nosso enten­dimento, em torno do que havíamos visto.


29

Ante a reencarnação

Na noite imediata, atendendo-nos a solicitação, Clarêncio conduziu-nos ao domicílio do ferroviário, para observações.

Penetrámos respeitosamente o quarto em que Odila nos recebeu, contente e gentil.

Tudo lhe parecia desdobrar-se com segurança.

Júlio dormia.

Não mais acordara, informou a guardiã, feliz. Tinha a impressão de que o reencarnante desapa­recia pouco a pouco, na constituição orgânica de Zulmira, como se a futura mãezinha fosse um fil­tro miraculoso a absorvê-lo.

A genitora desencarnada mostrava-se satisfei­ta e esperançosa. Preferia ver o filhinho confiado ao sono profundo. As aflições e os gemidos dele lhe haviam dilacerado o coração.

O renascimento, por esse motivo, representava uma bênção para as inquietantes responsabilidades maternais de que se via detentora.

Observámos que Júlio se caracterizava por enorme diferença.

O corpo sutil do menino denotava espantosa transformação. Adelgaçara-se de maneira surpre­endente.

Tive a idéia de que ele e Zulmira, alma com alma, se fundiam um -no outro. A moça ganhara em plenitude física e vivacidade espiritual quanto perdia o menino na apresentação exterior. Julio adormecera aliviado, ao passo que a jovem senhora demonstrava admirável despertamento para a vida. A segunda esposa de Amaro modificara-se de modo sensível. Como as pessoas felicitadas por novos títulos de confiança no trabalho, revelava-se mais alegre e mais cônscia das obrigações que lhe competiam.

A transfusão fluídica era ali evidente.

O organismo materno assemelhava-se a um alambique destinado a sutilizar as energias do reencarnante para restituí-las, decerto, a ele mesmo, na formação do novo envoltório.

Registrando-nos o assombro, o instrutor expli­cou com a sua habitual gentileza:

— A reencarnação, tanto quanto a desencar­nação, é um choque biológico dos mais apreciáveis. Unido à matriz geradora do santuário materno, em busca de nova forma, o perispírito sofre a in­fluência de fortes correntes electromagnéticas, que lhe impõem a redução automática.

Constituído àbase de princípios químicos semelhantes, em suas propriedades, ao hidrogênio, a se expressarem atra­vés de moléculas significativamente distanciadas umas das outras, quando ligado ao centro genésico feminino experimenta expressiva contração, à ma­neira do indumento de carne sob carga elétrica de elevado poder. Observa-se, então, a redução volumétrica do veículo sutil pela diminuição dos espaços inter-moleculares. Toda matéria que não serve ao trabalho fundamental de refundição da forma é devolvida ao plano etereal, oferecendo-nos o perispírito esse aspecto de desgaste ou de maior fluidez.

— Quer dizer então... — aventurou Hílário, em sua curiosidade construtiva.

— Quero dizer que os princípios organogêni­cos essenciais do perispírito de Júlio já se encontram reduzidos na intimidade do altar materno, e, à maneira de um ímã, vão aglutinando sobre si os recursos de formação do novo vestuário de car­ne que lhe será o vaso próximo de manifestação.

— E a forma a rarefazer-se sob nossos olhos? — inquiriu meu colega, espantado.

— Está em ativo processo de dissolução.

E, com a bela serenidade que lhe assinala o espírito, continuou elucidando:

— Também o corpo físico parece dormir na desencarnação, quando, na realidade, começa a res­tituir as unidades químicas que o compõem à Na­tureza que lhos emprestou a titulo precário, ape­nas com a diferença de que a alma desencarnada, ainda mesmo quando em deploráveis condições de sofrimento e inferioridade, avança para a liberta­ção relativa, ao passo que, em nos reencarnando, sofremos o processo de volta às teias da matéria densa, não obstante orientados por nobres objeti­vos de evolução. É por isso que, conduzidos à reconstituição orgânica, revivemos, nos primeiros tempos da organização fetal, embora apressada­mente, todo o nosso pretérito biológico.

Cada ser que retoma o envoltório físico revive, automàtica­mente, na reconstrução da forma em que se ex­primirá na Terra, todo o passado que lhe diz respeito, estacionando na mais alta configuração típica que já conquistou, para o trabalho que lhe compete, de acordo com o degrau evolutivo em que se encontra.

A maneira simples pela qual Clarêncio esflora­va problemas tão complexos, induzia-nos a sublimados pensamentos, quanto à magnitude das Leis Universais.

Ali, diante de um caso comum de reencarna­ção, auxiliado apenas pelas nossas preces no culto à fraternidade, obtínhamos vastas elucidações so­bre o plano geral da existência.

Inspirado talvez na mesma faixa de reflexões que me preocupavam o espírito, Hilário inquiriu:

— Os princípios que analisamos funcionam em igualdade de circunstâncias para os animais?

— Como não? — replicou o nosso orientador, paciente — todos nos achamos na grande marcha de crescimento para a imortalidade. Nas linhas infinitas do instinto, da inteligência, da razão e da sublimação, permanecemos todos vinculados à lei do renascimento como inalienável condição de pro­gresso. Atacamos experiências múltiplas e reca­pitulamo-las, tantas vezes quantas se fizerem ne­cessárias, na grande jornada para Deus. Crisálidas de inteligência nos setores mais obscuros da Na­tureza evolvem para o plano das inteligências frag­mentárias, onde se localizam os animais de ordem superior que, por sua vez, se dirigem para o reino da consciência humana, tanto quanto os homens, pouco a pouco, se encaminham para as gloriosas esferas dos anjos.

O instrutor, entretanto, voltou-se para o leito em que mãe e filho jaziam, íntimamente associa­dos, e sentenciou:

— Preocupemo-nos, porém, com o serviço da hora presente. Estudemos o caso sob nossa obser­vação para que o nosso dever de solidariedade seja bem cumprido.

O apontamento reajustou-nos.

Hilário que, tanto quanto eu, se mostrava in­teressado em aproveitar a lição, fixando o quadro sob nossos olhos, pediu uma explicação tão simples quanto possível acerca da comunhão fisiopsíquica de Zulmira e Júlio naquele instante, ao que Cla­rêncio respondeu, após refletir alguns momentos:

— Imaginemos um pêssego amadurecido, lan­çado à cova escura, a fim de renascer. Decomposto em sua estrutura, restituirá aos reservatórios da Natureza todos os elementos da polpa e dos de­mais envoltórios que lhe revestem os princípios vitais, reduzindo-se no imo do solo ao embrião mi­núsculo que se transformará, no espaço e no tem­po, em novo pessegueiro.

O ensinamento não podia ser mais lógico, mais preciso.

— Então, por isso — acrescentou Hilário, estu­dioso — é que as crianças desencarnadas recla­mam período de tempo mais ou menos longo para demonstrarem crescimento mental, como ocorre na existência comum...

— Isso acontece com a maioria — informou o Ministro —, de vez que há exceções na regra.

Em muitas circunstâncias, semelhante imposição não existe. Quando a mente já desenvolveu certas qualidades, aprimorando-se em mais altos degraus de sublimação espiritual, pode arrojar de si mes­ma os elementos indispensáveis à composição dos veículos de exteriorização de que necessite em pla­nos que lhe sejam inferiores. Nesses casos, o Es­pírito já domina plenamente as leis de aglutinação da matéria, no campo de luta que nos é conhecido e, por esse motivo, governa o fenômeno da própria reencarnação sem subordinar-se a ele.

Fitávamos o semblante calmo de Zulmira, que respirava serena, feliz.

— O problema de Júlio, no entanto — consi­derei —, afigura-se-nos bastante doloroso...

— Doloroso mas educativo, quanto o de mi­lhares de criaturas, cada dia, na Terra — ponderou Clarêncio, imperturbável. — Nosso companhei­ro vencido e enfermo, em razão de compromissos adquiridos na carne, na carne encontrará caminho ao próprio reajuste.

— E a questão da hereditariedade? — indagou meu companheiro, reverente. — Júlio, perdendo o corpo sutil em que chorava atormentado, ressur­girá na existência física sem a moléstia que o apoquentava, por herdar fatalmente os caracterís­ticos biológicos dos pais?

O orientador sorriu, de maneira expressiva, e asseverou:

— A hereditariedade, qual é aceita nos conhe­cimentos científicos do mundo, tem os seus limites. Filhos e pais, indubitàvelmente, ainda mesmo quando se cataloguem distantes uns dos outros, sob o ponto de vista moral, guardam sempre afinidade magnética entre si; desse modo, os progeni­tores fornecem determinados recursos ao Espírito reencarnante, mas esses recursos estão condiciona­dos às necessidades da alma que lhes aproveita a cooperação, porque, no fundo, somos herdeiros de nós mesmos. Assimilamos as energias de nossos pais terrestres, na medida de nossas qualidades boas ou más, para o destino enobrecido ou tortu­rado a que fazemos jus, pelas nossas conquistas ou débitos que voltam à Terra conosco, emergindo de nossas anteriores experiências.

— Somos então levados a crer que Júlio trans­portará consigo a enfermidade que sofria em nosso plano, à maneira de alguém que, em se mudando de domicílio, não modifica o quadro orgânico... — observou Hilário, com sensatez.

— Isso mesmo — elucidou o Ministro, satis­feito —, o problema é de natureza espiritual. Durante a gravidez de Zulmira, a mente de Júlio per­manecerá associada à mente materna, influencian­do, como é justo, à formação do embrião. Todo o cosmo celular do novo organismo estará impregna­do pelas forças do pensamento enfermiço de nosso irmão que regressa ao mundo.

Assim sendo, Júlio renascerá com as deficiências de que ainda é por­tador, embora favorecido pelo material genético que recolherá dos pais, nos limites da lei de he­rança, para a constituição do novo envoltório.

Depois de breve pausa, concluiu:

— Como vemos, na mente reside o comando. A consciência traça o destino, o corpo reflete a alma. Toda agregação de matéria obedece a im­pulsos do espírito. Nossos pensamentos fabricam as formas de que nos utilizamos na vida.

Calou-se o instrutor.

Odila tomou a palavra comentando as suas esperanças para o futuro.

Conversámos de novo, animadamente.

E, logo após, uma prece do Ministro encerrava para nós a deliciosa reunião.


30

Luta por renascer

Um mês correra célere sobre os acontecimentos que vimos de narrar, quando Odila nos procurou, suplicando ajuda.

Vinha triste, atormentada.

Zulmira, incompreensivelmente para ela, havia contraído perigosa amidalite.

Sofria muito.

Por seis dias consecutivos, informou nossa ami­ga inquieta, achava-se no trabalho de vigilância.

Esforçara-se, quanto lhe era possível, por li­berá-la de semelhante aborrecimento físico, entretanto, via baldadas todas as providências.

Desolada, induzira Amaro a trazer um médico, no que foi obedecida, mas o facultativo não atinava com a causa íntima da enfermidade e, ignorando a verdadeira posição da cliente, poderia ameaçar-lhe a tarefa maternal com a aplicação de recursos impróprios.

Rogava-nos, por isso, socorro imediato.

Clarêncio não se delongou na assistência pre­cisa.

Era noite, quando demandámos o ninho do­méstico que já se nos fizera familiar.

Zulmira, no leito, demorava-se em aflitiva pros­tração. Cabelos em desalinho, olheiras arroxeadas e faces rubras de febre, parecia aguardar a che­gada de alguém que a auxiliasse na debelação da crise.

A supuração das amídalas poluíra-lhe o há­lito e lhe impunha dores lancinantes.

A pobre senhora apenas gemia, semi-sufocada, exausta...

O esposo e a filha desdobravam-se em carinho, procurando reanimá-la, mas Zulmira, que deixára­mos, trinta dias antes, corada e bem disposta, re­velava-se agora profundamente abatida.

Drogas variadas alinhavam-se em prateleira próxima.

Nosso instrutor examinou-as, cuidadosamente, e, percebendo-nos a admiração, disse comovido:

— Zulmira reclama nosso concurso diligente. Precisamos garantir-lhe o êxito na missão esposada.

Carinhosamente, aplicou-lhe recursos magnéti­cos, detendo-se de modo particular na região do cérebro e na fenda glótica.

A doente acusou melhoras imediatas.

Reabilitou-se o movimento circulatório.

A febre decresceu, propiciando-lhe repouso, e o sono reparador surgiu por fim, favorecendo-lhe a recuperação.

Hilário indagou sobre a causa da moléstia in­sidiosa, que tão violenta se apresentara, ao que Clarêncio respondeu, seguro:

— A questão é sutil. A mulher grávida, além da prestação de serviço orgânico à entidade que se reencarna, é igualmente constrangida a suportar-lhe o contacto espiritual, que sempre constitui um sacrifício quando se trata de alguém com escuros débitos de consciência. A organização feminina, durante a gestação, sofre verdadeira enxertia men­tal. Os pensamentos do ser que se acolhe ao santuário íntimo, envolvem-na totalmente, determi­nando significativas alterações em seu cosmo bio­lógico. Se o filho é senhor de larga evolução e dono de elogiáveis qualidades morais, consegue au­xiliar o campo materno, prodigalizando-lhe subli­madas emoções e convertendo a maternidade, ha­bitualmente dolorosa, em estação de esperanças e alegrias intraduzíveis, mas no processo de Júlio observamos duas almas que se ajustam nas mes­mas dívidas e na mesma posição evolutiva. influenciam-se, mütuamente.

O Ministro fêz longa pausa, tornando aos pas­ses, a benefício da enferma.

Odila acompanhava-o, atenciosa.

De todos nós, parecia ela a mais preocupada com as lições ouvidas. Identificava-se-lhe o interesse de tudo aprender para tornar-se alí mais útil.

Findos alguns instantes, Clarêncio continuou:

— Se Zulmira atua, de maneira decisiva, na formação do novo veículo do menino, o menino atua vigorosamente nela, estabelecendo fenômenos perturbadores em sua constituição de mulher. A permuta de impressões entre ambos é inevitável e os padecimentos que Júlio trazia na garganta foram impressos na mente maternal, que os re­produz no corpo em que se manifesta. A corrente de troca entre mãe e filho não se circunscreve àalimentação de natureza material; estende-se ao intercâmbio constante das sensações diversas. Os pensamentos de Zulmira guardam imensa força sobre Júlio, tanto quanto os de Júlio revelam ex­pressivo poder sobre a nova mãezinha. As mentes de um e de outro como que se justapõem, man­tendo-se em permanente comunhão, até que a Natureza complete o serviço que lhe cabe no tempo. De semelhante associação, procedem os chamados «sinais de nascença». Certos estados íntimos da mulher alcançam, de algum modo, o princípio fe­tal, marcando-o para a existência inteira. É que o trabalho da maternidade assemelha-se a delica­do processo de modelagem, requisitando, por isso, muita cautela e harmonia para que a tarefa seja perfeita.

Em seguida, o Ministro, com devoção paternal, levou a efeito diversas operações magnéticas de auxílio à cavidade pélvica, afirmando a necessi­dade de socorro ao útero, em vista do complicado e difícil desenvolvimento de Júlio reencarnante.

Meu colega, avançando mais longe, talvez ten­tando converter aquela hora de fraternidade tanto quanto possível em hora de estudo, recordou algumas de suas experiências médicas, acrescen­tando:

— É comum a verificação de exagerada sen­sibilidade na mulher que engravida. A transformação do sistema nervoso, nessas circunstâncias, é indiscutível. Muitas vezes, a gestante revela de­créscimo de vivacidade mental e, não raro, enuncia propósitos da mais rematada extravagância. Há mulheres que adquirem antipatias súbitas, outras se recolhem a fantasias tão inesperadas quanto injustificáveis. Em muitas ocasiões na Terra, per­guntei a mim mesmo se a gravidez, na maioria dos casos, não acarreta temporária loucura...

O orientador sorriu e obtemperou:

— A explicação é muito clara. A gestante éuma criatura hipnotizada a longo prazo. Tem o campo psíquico invadido pelas impressões e vibra­ções do Espírito que lhe ocupa as possibilidades para o serviço de reincorporação no mundo. Quan­do o futuro filho não se encontra suficientemente equilibrado diante da Lei, e isso acontece quase sempre, a mente maternal é suscetível de registrar os mais estranhos desequilíbrios, porque, à manei­ra de um médium, estará transmitindo opiniões e sensações da entidade que a empolga.

— Afligia-me observar — lembrou Hilário, com interesse — a inopinada aversão de muitas gestantes contra os próprios maridos...

— Sim, isso ocorre sempre que um inimigo do pretérito volta à carne, a fim de resgatar débitos contraídos para com aquele que lhe servirá de pai.

— Temos, contudo, os casos — ponderei, curio­so — em que na ribalta do mundo vemos filhas que foram evidentemente fortes desafetos das mães em passado remoto ou próximo, tal a animosidade que lhes caracteriza as relações. Reparamos que, em tais ocorrências, as filhas são muito mais afins com os pais, vivendo psiquicaxnente em harmoniosa associação com eles e distanciadas espiritualmente das mãezinhas que, por vezes, tudo fazem debalde para quebrar as barreiras de separação. Em liga­ções dessa natureza, surgirão obstáculos à reen­carnação?

Clarêncio fitou-me de maneira significativa e respondeu:

— De modo algum. A esposa, por devotamen­to ao companheiro, cede fàcilmente à necessidade da alma que volta ao reduto doméstico para fins regeneradores e, em se tratando de alguém com intensa afinidade junto ao chefe do lar, vê-se o marido docemente impulsionado a oferecer maior coeficiente afetivo à companheira, de vez que se sente envolvido por forças duplas de atração. Sob dobrada carga de simpatia, dá muito mais de si mesmo em atenção e carinho, facilitando a tarefa maternal da mulher.

A elucidação clara e lógica satisfez-nos ple­namente.

Palestrámos ainda por alguns minutos, nos quais o nosso orientador ministrou variadas instruções a Odila, habilitando-a para socorros de emergência.

Regressámos, edificados, ao nosso círculo de trabalho comum, no entanto, depois de alguns dias, a primeira esposa do ferroviário tornou até nós, solicitando nova intervenção.

Zulmira, informou aflita, atravessava estarre­cedora crise orgânica.

Vômitos incoercíveis perturbavam-na, cruelmente.

Não tolerava a mais leve alimentação.

O sistema digestivo apresentava alterações profundas.

O médico agia baldadamente, visto que o estômago da enferma zombava de todos os recursos.

Não nos delongamos para a execução do tra­balho assistencial.

Revelava-se a gestante, efetivamente, em con­dições ameaçadoras.

As náuseas repetidas provocavam a gradativa incursão da anemia.

Clarêncio, porém, submeteu-a a passes mag­néticos de longo curso, prometendo que a medida se faria seguir das melhoras necessárias.

Deveres diversos convocavam-nos a presença, em outros setores.

Ainda assim, depois das despedidas, Hilário perguntou pelo motivo de semelhante fenômeno, que, declarou ele, em toda a sua experiência mé­dica na Terra não conseguira explicar.

— Estamos certos de que a ciência do porvir ajudará a mulher na defesa contra essa espécie de aborrecimento orgânico — asseverou o Ministro, com segurança —, encontrando definições de or­dem fisiológica para tais conflitos, mas, no fundo, o desequilíbrio é de essência espiritual. O organismo materno, absorvendo as emanações da en­tidade reencarnante, funciona como um exaustor de fluidos em desintegração, fluidos esses que nem sempre são aprazíveis ou fàcilmente suportáveis pela sensibilidade feminina. Daí, a razão dos en­gulhos frequentes, de tratamento até agora mui­to difícil.

Semelhante nota oferecia-nos valioso material de meditação.

O tempo desdobrou-se semana após semana.

Insistimos na visitação à residência de Amaro, de quando em quando, convocados ou não para o trabalho, até que, certa manhã, Odila veio até nós com o júbilo de uma criança feliz, anunciando que o menino tornara à luz terrestre.

De conformidade com a aprovação da pequena família, chamar-se-ia novamente Júlio.

Comungámos da sua profunda alegria e, com a solidariedade dos amigos sinceros, voltámos a abraçá-lo.


31

Nova luta

O pequeno Júlio desenvolvia-se como flor de esperança no jardim do lar, todavia, sempre mirrado, enfermiço.

Desvelavam-se os pais por assisti-lo conve­nientemente, contudo, por mais adequados se cate­gorizassem os tratamentos recalcificantes, trazia doloroso estigma na garganta.

Extensa ferida na glote dificultava-lhe a nutrição.

Farinhas suculentas concorriam com o leite materno para robustecê-lo, mas em vão.

Entretanto, apesar dos cuidados que exigia, era uma bênção de felicidade para os genitores e para a irmãzinha, que sentiam em seu rostinho tenro um ponto vivo de entrelaçamento espiritual.

Muitas vezes, conchegámo-lo ao coração, re­memorando os trabalhos que lhe haviam precedido o regresso ao mundo, assinalando a ternura oti­mista com que Odila, transformada em generosa protetora da família, lhe acompanhava o desa­brochar.

O pequerrucho já começava a falar por mo­nossílabos, em vésperas do primeiro ano de renascimento, quando nova luta surgiu.

O inverno chegara rigoroso e vasto, surto de gripe espalhara-se ameaçador.

A tosse e a influenza compareciam pertinazes, em todos os recantos, quando, num dia de grande trabalho para nós, eis que a genitora de Evelina veio, novamente, ao nosso encontro.

Dantes, procurava assistência para Zulmira, agora demandava auxílio para Júlio.

O menino, assaltado por teimosa amidalite, jazia prostrado, febril.

Dirigimo-nos incontinenti para o lar do ferro­viário.

Com efeito, o vento soprava, úmido, sobre o largo espelho da Guanabara. As ruas, pela vestimenta pesada dos transeuntes, davam ao Rio o aspecto de uma cidade fria.

Alcançamos, sem detença, o domicílio de Amaro.

O quadro, à nossa vista, era indubitàvelmente constrangedor.

Penetramos o aposento em que a criança ge­mia semi-asfixiada, no instante preciso em que o médico da família efetuava meticuloso exame.

Clarêncio passou a reparar-lhe todos os movi­mentos.

A garganta minúscula apresentava extensa placa branquicenta e a respiração se fazia angustiada, sibilante.

O instrutor meneou a cabeça, como se fora de­frontado por insolúvel enigma, e colocou a destra na fronte do facultativo, compelindo-o a refletir com a maior atenção.

Zulmira e Evelina, sem perceber-nos a presen­ça, fitavam o médico, preocupadas.

Após longo silêncio, o clínico voltou-se para a dona da casa, afirmando:

— Creio devamos procurar um colega ime­diatamente. Enquanto a senhora telefona para o marido, chamando-o da oficina, trarei comigo um pediatra.

A torturada mãezinha conteve a custo as lá­grimas que lhe borbulhavam dos olhos.

O médico tornou, cismarento, à via pública, e, enquanto Evelina, rápida, corria até o armazém próximo para dar ciência ao genitor de quanto ocorria, Zulmira, presumindo-se a sós, abraçou-se ao doentinho e, chorando livremente, ciciou:

— Ó meu Deus, com tanto amor recebi o filho que me enviaste!... Não me deixes agora sem ele, Senhor!...

O pranto que lhe corria na face queimava-me o coração.

Nada pude indagar, em vista da emotividade que me tomara o espírito, mas o nosso orientador, sereno como sempre, exclamou, compadecido:

— A difteria está perfeitamente caracterizada. A deficiência congenial da glote favoreceu a implantação dos bacilos. É imprescindível o socorro urgente.

O instrutor começou a mobilizar recursos as­sistenciais de maior expressão, quando o ferroviário, desolado, ingressou no aposento.

Conversando com a mulher, tentava reanimá­-la, quando o pediatra, conduzido pelo colega, deu entrada na humilde residência.

Ambos os médicos submeteram o petiz a pro­longado exame, permutando impressões em voz baixa.

O especialista, apreensivo, após manifestar a suspeita de crupe, reclamou a análise de laboratório, decidindo transportar consigo mesmo o ma­terial necessário à inspecção.

Ao sair, prometeu opinar, dentro de algumas horas. Notificou ao pai agoniado que tudo lhe fazia crer tratar-se de garrotilho. Entretanto, re­servava o diagnóstico definitivo para depois. Se a hipótese se confirmasse, enviaria um enfermeiro de confiança para a aplicação do soro adequado.

Mantendo vigilância junto ao doentinho, o Mi­nistro recomendou-nos, a Hilário e a mim, acompanhar o pediatra, de modo a prestar-lhe a cola­boração possível ao nosso alcance.

Seguimo-lo sem hesitar.

O crepúsculo, encharcado de uma garoa fina, caía rápido.

Em minutos breves, atravessávamos o pórtico de vasto hospital, onde o nosso amigo procurou a sala em que certamente se recolhia para os tra­balhos que lhe diziam respeito.

Chegados a estreito recinto, fomos defronta­dos por uma surpresa que nos impunha verdadeira estupefação.

Mário Silva, em seu traje branco, palestrava com dona Antonina que acomodava ao colo a pe­quena Lisbela, pálida e ofegante.

A jovem senhora, que não mais víramos, aguar­dava o especialista, trazendo a filhinha à consulta.

Amparadas por Silva, francamente atraído para a simpática visitante, ambas tiveram acesso a gabinete particular, onde o facultativo diagnos­ticou uma pneumonia.

Antonina foi aconselhada a voltar, de imedia­to, ao ambiente doméstico, para a medicação da filha.

A penicilina devia ser administrada sem qual­quer dilação.

Mário, demonstrando imenso carinho pela crian­ça, prontificou-se a assisti-la.

Traria um automóvel e atenderia ao caso pes­soalmente.

O chefe passeou o olhar pelo mostrador do relógio e aquiesceu, ressalvando:

— Bem, você pode cooperar com as nossas clientes, mas preciso de seu concurso em bairro distante, às vinte e duas horas.

O rapaz assumiu o compromisso de regressar a tempo e um táxi recolheu o trio, rolando na direção da casinha que visitáramos, certa vez.

Ante o inesperado daquele encontro, sentimos necessidade de um entendimento seguro com o nos­so orientador.

Tornando ao quarto, onde o pequeno Júlio pio­rava sempre, fizemos breve relato do acontecido.

Clarêncio escutou com interesse e ponderou, preocupado:

— Não podemos perder tempo. Dirijamo-nos à casa de Antonina. A lei está reaproximando os nossos amigos uns dos outros e Mário precisa for­talecer-se para exercitar o perdão. Os raios de ódio da parte dele podem apressar aqui o serviço inevitável da morte.

Corremos ao domicílio da valorosa mulher.

Com efeito, depois de haver iniciado o tra­tamento providencial da menina, agora acamada, Silva fixava a dona da casa, perguntando a si mes­mo onde vira aquele torturado perfil de madona... Guardava a nítida impressão de haver conhecido Antonina em algum lugar...

Agradàvelmente surpreendido, sentia-se ali como se fora em sua própria casa.

E a simpatia não se patenteava tão somente no coração dele. A senhora e os filhos cercavam-no de atenções.

Inthmamente deslumbrado, o enfermeiro decla­rava de viva voz estar experimentando uma paz que há muito não conhecia, com o que Antonina se regozijava, sorrindo.

Percebendo que Haroldo e Henrique se mos­travam apaixonados pelas disputas esportivas, deu curso a animada conversação em torno do futebol, conquistando-lhes o carinho.

A mãezinha, preparando o café, ingressava no alegre entendimento, de quando em quando, a fim de podar o entusiasmo dos meninos, quando a palavra deles se evidenciava menos construtiva.

Somente no decurso da afetuosa palestra, vie­mos a saber que nossa amiga se enviuvara. O esposo, segundo notícias recebidas de metrópole dis­tante, havia falecido num desastre, vitimado pela própria imprudência.

Lemos no olhar de Silva o contentamento com que obtinha semelhante informe.

Começava a registrar insopitável interesse pela vida naquele ninho agasalhante que se lhe afigurava pertencer-lhe.

Às oito em ponto, Antonina, sem afetação, convidou com simplicidade:

— Sr. Mário, hoje temos nosso culto evangé­lico. Quer ter a bondade de partilhá-lo?

Incompreensivelmente feliz, o rapaz concordou, de pronto.

A reunião, nessa noite, foi efetuada ao redor do leito de Lisbela, que não desejava perder o be­nefício das orações.

Um copo de água pura foi colocado junto àcabeceira da pequenina.

E, de Novo Testamento em punho, acomodados os companheiros, Antonina recomendou a Henrique fizesse a rogativa inicial.

O menino recitou o «Pai Nosso» e, em seguida, pediu a Jesus a saúde da irmãzinha doente, com enternecedora súplica.

Vimos o nosso orientador acercar-se do re­cipiente de água cristalina, magnetizando-a, em favor da enferma que parecia expressivamente con­fortada, ante a oração ouvida, e, logo após, abei­rar-se de Silva, que lhe recebeu as irradiações.

— Quem abrirá hoje o Livro? — perguntou Haroldo, com graciosa malícia, fitando o hóspede inesperado.

— Certamente nosso amigo nos fará essa hon­ra — disse a genitora, indicando o enfermeiro.

Mário, ignorando como expressar a felicidade que lhe fluía do coração, acolheu o pequeno volu­me, sob a atenção de Clarêncio, que lhe tocava o busto e as mãos, influenciando-o para a descoberta do texto adequado.

O moço, algo trêmulo na participação de um serviço espiritual inteiramente novo para ele, sem perceber o amparo que o envolvia, abriu em de­terminada passagem, qual se agisse a esmo, passando o livro a Antonina, que leu em voz pausada o versículo vinte e cinco do capítulo 5º das ano­tações do Apóstolo Mateus: — «Concilia-te depres­sa com o teu adversário, enquanto te encontras a caminho com ele, para que não aconteça que o adversário te entregue ao juiz e o juiz te entregue ao oficial para que sejas encerrado na prisão.

A dirigente do culto, que, naquela noite, se revelava mais retraida, pediu a interpretação dos meninos que, de modo ingênuo, se reportaram às experiências da escola, afirmando que sempre ad­quiriam a paz, buscando desculpar as faltas dos companheiros. Haroldo asseverava que a profes­sora sempre sorria contente, quando lhe via a boa vontade e Henrique salientou haver aprendido no culto do lar que era muito mais agradável o es­forço de viver em harmonia com todos.

A palestra parecia ameaçada de esmorecimen­to, mas o nosso orientador aproximou-se de Anto­nina e, impondo-lhe a destra sobre a fronte, como que a impelia ao comentário justo.

— Haroldo — indagou a genitora, de olhos brilhantes —, como devemos interpretar um ini­migo em nossa vida?

O menino replicou, sem pestanejar:

— Mãezinha, a senhora nos ensinou que con­servar um inimigo em nosso caminho é o mesmo que manter uma ferida perigosa em nosso corpo.

— A definição foi bem lembrada — falou a viúva com espontaneidade encantadora —; sem a compreensão fraterna que nos garante o culto da gentileza, sem o perdão que olvida todo mal, a existência na Terra seria uma aventura intolerável. Além disso, quando Jesus nos ditou a lição que recordamos hoje, indubitàvelmente considerava que a razão nunca vive inteira ao nosso lado. Se fo­mos ofendidos, em verdade também ofendemos por nossa vez. Precisamos desculpar os outros para que os outros nos desculpem. Quando abraçamos o ideal do bem, compete-nos tentar, por todos os meios ao nosso alcance, a justa conciliação com todos os que se encontrem conosco em desarmonia, prestando-lhes serviço para que renovem a concei­tuação a nosso respeito. Mais vale para nós o acor­do pacífico que a demanda mais preciosa, porque a vida não termina neste mundo e é possível que, buscando a justiça em nosso favor, estejamos cris­talizando a cegueira do egoísmo em nosso próprio coração, caminhando para a morte com aflitivos problemas. Coração que conserva rancor e cora­ção doente. Alimentar ódio ou despeito é esten­der inomináveis padecimentos morais no próprio espírito.

Silva estava pálido.

Aquelas conclusões feriam-lhe, fundo, o modo de ser.

Tão desajustado se revelou escutando aqueles apontamentos que Antonina, em lhe registrando a estranheza, ponderou, sorrindo:

— O senhor decerto nunca teve inimigos... Um enfermeiro diligente será, sem qualquer dúvi­da, o irmão de todos...

— Sim... sim, não tenho adversários... gaguejou o moço, constrangido.

Mas, na tela mental, sem que ele pudesse con­trolar a eclosão das próprias reminiscências, apareceram Amaro e Zulmira, como os desafetos que ele, no âmago do espírito, não conseguia desculpar.

Odiava-os, sim, odiava-os — pensou de si para consigo —, jamais suportaria um acordo com se­melhantes adversários. Entretanto, a sinceridade da interlocutora encantava-o. Aquela viúva jovem, cercada de três filhinhos, superando talvez obstácu­los dos mais inquietantes para viver, constituía um exemplo de quanto podia edificar o espírito de sacrifício. Em nenhum ambiente encontrara antes aquele calor de fé pura necessário às grandes cons­truções de ordem moral. Além de tudo, laços de vigorosa afinidade impeliam-no para aquela mulher, com quem se simpatizara à primeira vista. Por mais vasculhasse as próprias lembranças, não con­seguia recordar onde, como e quando a conhecera. Sentia, porém, que a palavra dela lhe impunha indefinível bem-estar...

Fitando-a, com enternecimento, perguntou:

— A senhora julga que devemos procurar a conciliação com qualquer espécie de inimigos?

— Sim — respondeu a interpelada sem hesitar.

— E quando os adversários são de tal modo inconvenientes que a simples aproximação deles nos causa angústia?

Antonina compreendeu que algo doloroso vi­nha à tona daquela consciência que lhe ouvira a dissertação, ocultando-se, e obtemperou:

— Entendo que há sofrimentos morais quase intoleráveis, entretanto, a oração é o remédio eficaz de nossas moléstias íntimas. Se temos a in­felicidade de possuir inimigos, cuja presença nos perturba, é importante recorrer à prece, rogando a Deus nos conceda forças para que o desequilíbrio desapareça, porque então um caminho de reajuste surgirá para nossa alma. Todos necessitamos da alheia tolerância em determinados aspectos de nos­sa vida.

Os olhos de Mário cintilaram.

— E quando o ódio nos avassala, ainda mes­mo quando não desejemos? — inquiriu, preocupado.

— Não há ódio que resista aos dissolventes da compreensão e da boa vontade. Quem procura conhecer a si mesmo, desculpa fàcilmente...

Silva empalidecera.

Antonina percebeu que o tema lhe fustigava o coração e, amparada por nosso instrutor que a enlaçava, paternal, rematou considerando:

— Um homem, porém, na sua tarefa, é um missionário do amor fraterno. Quem socorre os doentes, penetra a natureza humana e entra na posse da grande compaixão. As mãos que curam não podem ferir...

Em seguida, o primogênito da casa fêz a prece de encerramento.

A viúva serviu o café reconfortante, acompa­nhado de um bolo humilde.

A conversação prosseguia animada, todavia, o hóspede consultou o relógio e reparou que o tempo lhe exigia a retirada.

Deu instruções a Antonina, quanto à medica­ção da doentinha, e pediu, respeitoso, para voltar no dia imediato, não somente para rever Lisbela, mas também para palestrar com os amigos.

A senhora e as crianças aquiesceram, felizes, afirmando-lhe que seria sempre benvindo, e Mário, com um sentimento novo a lhe brilhar nos olhos, seguiu dentro da noite, como quem caminhava tan­gido por abençoada esperança, ao encontro de novo destino.


32

Recapitulação

De volta ao hospital, o enfermeiro não en­controu pessoalmente o chefe, que se ausentara, constrangido por serviço urgente, mas recebeu das mãos de velha auxiliar a papeleta de instruções.

O rapaz leu a ficha, atenciosamente.

Um menino, perfeitamente caracterizado nas indicações, atacado de crupe, exigia socorro imediato.

De posse do endereço e munindo-se do mate­rial imprescindível ao tratamento, Silva rodou num ônibus para a casa de Amaro.

Acolhido cortesmente pelo dono da casa, não ocultou a perplexidade que o possuiu, de assalto.

Identificado pelo ferroviário que lhe exprimia gentileza e contentamento na saudação, tartamudeava alguns monossílabos, desapontado, espanta­diço...

Revelava-se-lhe a decepção na extrema palidez do rosto.

Então — refletia, acabrunhado — era aquela casa que lhe cabia atender? Se soubesse de ante­mão, teria solicitado um substituto. Não pretendia reaproximar-se dos desafetos dos quais se havia distanciado... Abominava o homem que lhe fur­tara a noiva e não podia lembrar-se de Zulmira sem observar-se tocado de insólita aversão... Mui­ta vez, rememorando o passado, calculava quanto ao melhor meio de aniquilar-lhe a existência... Porque lhe competia revê-la? porque salvar-lhe o filho, se experimentava ímpetos de incendiar-lhe a casa?

Entretanto, algo interferia em suas reflexões. Antonina e os filhinhos, no culto do Evangelho, tomavam-lhe a tela mental. Parecia-lhe ouvir, de novo, a palavra meiga e sincera daquela mulher valorosa, repetindo-lhe ao coração:

“As mãos que curam não podem ferir...”

«Um enfermeiro diligente será, sem dúvida, o irmão de todos...»

«A vida não termina neste mundo...»

«Precisamos desculpar os outros para que os outros nos desculpem...»

Anotando-lhe a hesitação e propondo-se colo­cá-lo à vontade, Amaro solícitou em voz súplice:

— Entre, Mário! conforta-me reconhecer que receberemos o concurso de um amigo...

E, indicando o quarto próximo, acrescentou:

— Zulmira está lá dentro com o nosso filhi­nho. Já me entendi com o médico pelo telefone e sei que o crupe foi positivado.

O enfermeiro, impassível, obedeceu maquinalmente.

Varou a câmara, perturbado, lívido.

Quando viu a mulher que amara apaixonada­mente, trazendo o pequenino ao colo, registrou súbita vertigem de revolta.

Incapaz de controlar-se, sentiu que estranha aflição lhe oprimia o peito.

A volúpia da vingança enceguecia-o...

Zulmira pagar-lhe-ia, caro, a deserção — pen­sava de olhos fixos na maternidade dolorosa que ali se exteriorizava em mortificante padecimento.

Contemplou a criancinha que a dispneia agi­tava, e deu curso a incontida animosidade. Tinha a impressão de odiá-la, de longa data. Ele próprio se surpreendia, sobressaltado... Como podia detestar, assim, um inocente com tanta veemência? Mas, acreditando justificar a terrível disposição de espírito com a circunstância de achar-se, ali, o fruto de uma ligação que lhe era insuportável, não procurou analisar-se. A idéia de que Amaro e a esposa sofreriam irreparàvelmente, com a morte do petiz, acalentou-lhe o duro propósito de desforço. A felicidade daquele templo doméstico dependia, naquela hora, de sua atuação. E se cooperasse com a morte, auxiliando aquele rebento enfermiço a de­saparecer? A pergunta criminosa traspassou-lhe o pensamento como um estilete de treva.

Contudo, a lembrança do culto de oração, no lar de Antonina, voltava-lhe à cabeça.

As consoladoras afirmações da mãezinha de Lisbela regressavam-lhe aos ouvidos:

«Vale sempre mais o acordo pacífico...»

«Não devemos nutrir qualquer espécie de aversão... »

«Quem ajuda é ajudado... »

«Ninguém se eleva aos mais altos níveis da vida com o endurecimento espiritual...

«Nunca sabemos realmente até que ponto so­mos ofendidos ou ofensores...

«O perdão é vitória da luz...

Os retalhos da palestra edificante afiguravam-se-lhe rédeas intangíveis a lhe sofrearem a expan­são dos malignos desejos.

Os conflitos sentimentais desenrolavam-se-lhe na consciência em breve minuto...

Quase cambaleante, acercou-se da ex-noiva tor­turada, que o reconheceu de pronto, tentando cum­primentá-lo.

Correspondeu à saudação, cerimonioso, dispon­do-se ao serviço.

— Mário! — implorou a pobre senhora, ago­niada — compadeça-se de nós! ajude-nos! Esperei meu filhinho, suportando os maiores sacrifícios... Será crível deva agora vê-lo morrer?

Lágrimas copiosas seguiam-lhe os soluços que lhe emudeceram a garganta.

Noutro tempo, qualquer pedido daquela boca lhe impunha inquietação, mas naquele instante so­berana indiferença enrijecia-lhe o espírito. Que lhe importava a dor da mulher que o abandonara? Zulmira rira-se dele, anos antes... não lhe cabia rir-se agora?

De semblante rude, recomendou fosse a crian­ça restituida ao leito e, logo após, tateou-lhe a sensibilidade.

De pensamento martelado pelas idéias recolhi­das no estudo evangélico da noite e contido pela suave lembrança de Antonina, buscava refazer-se.

Ainda assim, como se carregasse um génio in­fernal na própria mente, assinalou as criminosas sugestões que lhe atravessavam o cérebro esfo­gueado.

A ministração de medicamento impróprio, de­certo, favoreceria a rápida extinção do enfermo. Júlio encontrava-se à beira da sepultura... apenas o impeliria a precipitar-se nela sem mais delonga...

Todavia, o semblante de Antonina dominava-lhe a memória, exaltando o perdão.

Se viesse àquela casa na véspera — considerou consigo mesmo —, teria exterminado o petiz sem piedade... Recorreria à eutanásia para justificar-se íntimamente.

Naquela hora, porém, os princípios evangélicos da fraternidade e da conciliação, como pensamentos intrusos, atenazavam-lhe a consciência.

Esperou, silencioso, a reação do menino ofe­gante e embora assinalasse graves complicações que, certo, deveriam induzi-lo a comunicar-se com o médico responsável, fêz a aplicação do soro anti­diftérico, desejoso, porém, de vê-lo transformar-se em veneno destruidor.

Reparamos que as mãos de Mário expeliam escura substância, mas Clarêncio, pousando a des­tra sobre o pequenino, mantinha-o isolado de se­melhantes forças.

Ante o assombro com que observávamos a exteriorização daquele visco enegrecido, nosso ins­trutor elucidou de boa vontade:

— São fluidos deletérios do ódio com que Sil­va, inconscientemente, procura envolver a infeliz criança, contudo, as nossas defesas estão funcio­nando.

Odila, que chamara Blandina e Mariana até nós, acompanhava a medicação, ansiosamente.

— Abnegado amigo — dirigiu-se, inquieta, ao nosso orientador —, acredita que Júlio possa recu­perar-se?

Clarêncio, que estabelecera extensa faixa mag­nética em torno do doentinho, preservando-o contra a influência do visitante, meneou a cabeça e falou, paternal:

— Odila, é tempo de penetrares a verdade.

O menino deixará o corpo talvez em breves horas.

O futuro dele exige a frustração do presente. For­talece-te, contudo... A Vontade Divina, expressa na Lei que nos rege, faz sempre o melhor. E talvez porque nossa irmã decepcionada ensaiasse nova perquirição, o devotado condutor pe­diu-lhe, calmo:

— Não indagues agora. Saberás mais tarde. Júlio reclama assistência, vigilância, carinho.

A interlocutora recompôs a expressão fisio­nômica, denunciando humildade e disciplina.

O enfermeiro fitava o pequeno, qual se esti­vesse a hipnotizá-lo para a morte, observando-lhe as contrações faciais.

Os genitores fixavam igualmente a criança, em tremenda expectativa.

Em dado instante, Júlio estremeceu, empali­decendo.

Descontrolara-se-lhe o coração.

Examinando-lhe o pulso, Silva, agora aterrado, procurou os olhos de Amaro, aflito, e solícitou em voz menos dura:

- Convém a presença imediata do nosso fa­cultativo. Receio um choque anafilático de conseqüências fatais.

Zulmira deixou escapar um grito rouco, sendo socorrida pela carinhosa Evelina, enquanto o fer­roviário se despejava porta a fora, em busca do pediatra.

Minutos longos de espera foram vividos no quarto estreito.

Uma hora escoou, vagarosa e terrível...

Preocupado, o médico auscultou a criança e, logo após, convidou o pai desolado a entendimento mais íntimo, anunciando:

— Surgiu o colapso irremediável. Infelizmente é o fim. Se o senhor tem fé religiosa, confiemos o caso a Deus. Agora, somente a concessão divina...

Amaro, consternado, baixou a cabeça e nada respondeu.

O pediatra trocou idéias com Silva, que se fizera muito pálido, e deu-lhe instruções, recomen­dando-lhe, ao despedir-se, permanecesse com o pe­quenino, por mais algumas horas.

Um sedativo administrado em Zulmira compe­liu-a ao repouso.

Júlio, em coma, respirava dificilmente.

Enquanto isso, a noite avançava... A madru­gada, agora lavada pelo vento leve, permitia ver o céu povoado de cintilantes constelações.

Reparando que a mulher e a filha descansa­vam, Amaro encaminhou-se para a janela próxima, como quem procurava consolo, no seio agasalhante da noite, e começou a chorar em silêncio.

Ao lado da criancinha agonizante, o enfermei­ro observava-lhe a atitude sofredora e humilde, reconhecendo-se tocado no imo dalma.

Porque lutara contra semelhante inimigo? —pensava, ensimesmado. — Amaro assemelhava-se a uma estátua de martírio silencioso. Estava ali, cabisbaixo e vencido, no lar modesto em que era um homem de bem, devotado à retidão. Decerto, já havia amargado muito, O rosto, sulcado de rugas precoces, que lhe detinham o pranto, falava da cruz de experiências difíceis que lhe pesava nos ombros. Quantos problemas inquietantes teria defrontado no mundo aquele homem dobrado pelo rigor da sorte? Como pudera ele, Mário Silva, ser ali tão cruel? Rememorou as passagens da hora de estudo e prece, entendendo, enfim, que o Evan­gelho estribava-se nas melhores razões.

Mais valia conciliar-se depressa com o adversário que enter­rar um espinho de remorso no próprio peito, e ele notava, triste, que o remorso como lâmina acera­da lhe retalhava o coração...

Amaro e a esposa, indiscutivelmente, poderiam ter manifestado des­confiança ao revê-lo, recusando-lhe o concurso, en­tretanto, acolheram-no, fraternalmente, de braços abertos... Se o haviam ferido, noutro tempo, não se achavam agora sob o guante de terrível flage­lação? Rendia graças a Deus por não haver inje­tado substâncias tóxicas no doentinho agora mo­ribundo, mas não teria, acaso, concorrido para abreviar-lhe a morte? Experimentava o desejo de abeirar-se do pai desditoso, tentando confortá-lo, mas sentia vergonha de si mesmo...

Durante quase duas horas permaneceram ali, os dois, calados e impassíveis.

A aurora começava a refletir-se no firmamen­to em largas riscas rubras, quando o ferroviário abandonou a meditação, aproximando-se do filhi­nho quase morto.

Num gesto comovente de fé, retirou da parede velho crucifixo de madeira e colocou-o à cabeceira do agonizante. Em seguida, sentou-se no leito e acomodou o menino ao colo com especial ternura. Amparado espiritualmente por Odila, que o enla­çava, demorou o olhar sobre a imagem do Cristo Crucificado e orou em alta voz:

— Divino Jesus, compadece-te de nossas fra­quezas !... Tenho meu espírito frágil para lidar com a morte! Dá-nos força e compreensão... Nossos filhos te pertencem, mas como nos dói restitui-los, quando a tua vontade no-los reclama de volta!...

O pranto embargava-lhe a voz, mas o pai so­fredor, demonstrando a sua imperiosa necessidade de oração, prosseguiu:

— Se é de teu desígnio que o nosso filhinho parta, Senhor, recebe-o em teus braços de amor e luz! Concede-nos, porém, a precisa coragem para suportar, valorosamente, a nossa cruz de saudade e dor!... Dá-nos resignação, fé, esperança!... Au­xilia-nos a entender-te os propósitos e que a tua vontade se cumpra hoje e sempre!...

Jatos de safirina claridade escapavam-lhe do peito, envolvendo a criança, que, pouco a pouco, adormeceu.

Júlio afastou-se do corpo de carne, abrigan­do-se nos braços de Odila, à maneira de um árfâo que busca tépido ninho de carícias.

Tocado nas fibras mais recônditas do ser e percebendo que a morte ali estendera as suas gran­des asas, Silva experimentou violenta comoção a constringir-lhe a alma. Convulsivo choro agitou-lhe o peito, enquanto uma voz inarticulada, que parecia nascer nos recessos dele mesmo, gritava-lhe na consciência:

— Assassino! Assassino!...

Desorientado e inseguro, o moço correu para a via pública, achando-se, atormentado, no seio da sombra fria, soluçando...


33

Aprendizado

Amaro e a família, coadjuvados por alguns vizinhos, amortalhavam a forma hirta do menino, quando rumámos de volta ao Lar da Bênção.

Notei que Júlio, asilado nos braços de Odila, se mostrava aliviado e tranquilo, como nunca o vira até então.

Enquanto as nossas irmãs permutavam idéias, com respeito ao futuro, indaguei do orientador, acerca da serenidade que felicitava agora o pe­quenino.

Clarêncio informou, prestimoso:

— Júlio reajustou-se para a continuação regu­lar da luta evolutiva que lhe compete. O renasci­mento malogrado não teve para ele tão somente a significação expiatória, necessária ao Espírito que deserta do aprendizado, mas também o efeito de um remédio curativo. A permanência no campo físico funcionou como recurso de eliminação da fe­rida que trazia nos delicados tecidos da alma. A carne, em muitos casos, é assim como um filtro que retém as impurezas do corpo perispiritual, li­berando-o de certos males nela adquiridos.

— Isso quer dizer...

O Ministro, porém, cortou-me a palavra, acen­tuando:

— Isso quer dizer que Júlio doravante poderá exteriorizar-se num corpo sadio, conquistando merecimento para obter uma reencarnação devidamen­te planejada, com elevados objetivos de serviço. Terá, por alguns meses conosco, desenvolvimento natural, regressando à Terra, em elogiáveis con­dições de harmonia consigo mesmo.

— Mas voltará, assim, em tão pouco tempo? - perguntei, admirado.

— Esperamos que assim seja. Deve atender ao crescimento de qualidades nobres para a vida eterna que somente o retorno à escola da carne poderá facilitar. Além disso, precisa conviver com Amaro, Zulmira e Silva, de maneira a confrater­nizar-se realmente com eles, segundo o amor puro que o Cristo nos ensinou.

— Essas anotações — ponderei — lançam nova claridade em nosso estudo da vida.

Compreende­mos, assim, que as moléstias complicadas e longas guardam função específica.

Os aleijões de nascen­ça, o mongolismo, a paralisia...

— Sim — confirmou o orientador —, por ve­zes é tão grande a incursão da alma nas regiões de desequilíbrio, que mais extensa se faz para ela a viagem de volta à normalidade.

Sorrindo, acrescentou:

— O tempo de inferno restaurador correspon­de ao tempo de culpa deliberada. Em muitas fases de nossa evolução, somos imantados às teias da carne, que sempre nos reflete a individualidade in­trínseca, assim como a argila é conduzida ao calor da cerâmica ou como o metal impuro é arrojado ao cadinho fervente. A depuração exige esforço, sacrifício, paciência.

Ante nosso olhar deslumbrado, tingira-se o ho­rizonte de cores variegadas, anunciando o Sol que parecia nascer num mar de luz e ouro.

Muito longe, esmaeciam as estrelas, e, perto de nós, nuvens leves caminhavam apressadas, tan­gidas pelo vento.

Contemplando a imensidão, Clarêncio consi­derou:

— Quando nosso espírito apreende alguma nes­ga da glória universal, desperta para as mais su­blimes esperanças. Sonha com o acesso às esferas divinas, suspira pelo reencontro com amores san­tificados que o esperam em vanguardas distantes, aceitando, então, duros trabalhos de reajuste. Que representam, em verdade, para nós, alguns decê­nios de renunciação na Terra, em confronto com a excelsitude dos séculos de felicidade em mundos de sabedoria e trabalho enaltecedor!...

— Ah! se os homens percebessem !... — obtem­perei, lembrando a rebelião que tantas vezes nos prejudica no mundo

— Entenderão algum dia — objetou Clarên­cio, otimista —; todos os seres progridem e avan­çam para Deus, O homem terrestre crescerá para o grande entendimento e louvará, feliz, o concurso da dor, O embrião do jequitibá, com os anos, se converte em tronco vetusto, rico de beleza e uti­lidade, e o espírito, com os milênios, transforma-se em gênio soberano, coroado de amor e sabedoria.

Depois de um minuto de silenciosa adoração à Natureza, o instrutor continuou:

— Volvendo ao caso de Júlio, não podemos olvidar que milhares de Inteligências, entre o berço e o túmulo, estão procurando a própria recu­peração. A medida que se nos aclara a consciência e se nos engrandece a noção de responsabilidade, reconhecemos que a nossa dignificação espiritual é serviço intransferível. Devemos a nós mesmos quanto nos sucede em matéria de bem ou de mal.

— Importante observar — disse Hilário, pen­sativo — como a vida reclama, no refazimento da paz, a conjugação daqueles que entraram em guerra uns com os outros... No passado, Júlio arrojou-se ao despenhadeiro do suicídio sob a in­fluência de Amaro, e Zulmira, após indispor-se com Silva...

— E, agora — completou Clarêncio —, reabi­lita-se com o auxílio de Zulmira e Amaro, de modo a rearmonizar-se com o enfermeiro. É natural seja assim.

— Mas Júlio, antes de tornar ao mundo, atra­vés do nosso amigo ferroviário — indaguei —, onde estaria?

— Depois de haver eliminado o próprio corpo, satisfazendo a simples capricho pessoal, sofreu por muitos anos as tristes consequências do ato deli­berado, amargando nos círculos vizinhos da Terra as torturas do envenenamento a se lhe repetirem no campo mental. A morte prematura, quando tra­duz indisciplina diante das leis infinitamente com­passivas que nos governam, constrange o Espírito que a provoca a dilatada purgação na paisagem espiritual. Não podemos trair o tempo, e a exis­tência planificada subordina-se a determinada quo­ta de tempo, que nos compete esgotar em trabalho justo. Quando esses recursos não são suficiente­mente aproveitados, arcamos com tremendos dese­quilíbrios na organização que nos é própria.

— Sofreria, porém, a sós?

— Nem sempre — informou o instrutor —; quando não se achava em martirizada solidão, via-se, como é lógico, onde se lhe mantinha preso o pensamento.

Ante a nossa curiosidade indagadora, acrescentou:

— Os pensamentos dele se alimentavam na atmosfera psíquica de Zulmira, Amaro e Silva, que lhe serviam de pontos básicos ao ódio. Ensinava Jesus que o homem terá o seu tesouro onde guarde o coração e, efetivamente, todos nos imantamos, em espírito, às pessoas, lugares e objetos, aos quais se liguem os nossos sentimentos.

— Mas Júlio estava em contacto com eles nas esferas espirituais ou nas experiências do mundo físico?

— Partilhava-lhes a vida simplesmente, e a vida, em qualquer setor de luta, é invariável. En­tretanto, por detestar Amaro mais profundamente, pesava com mais intensidade sobre ele. O ferroviá­rio, na existência do Espaço, conheceu-lhe a per­seguição acérrima, ouvindo-lhe as acusações e as queixas, nas regiões purgatoriais e, ao se reencar­nar, na atual condição, foi seguido de perto por Júlio, que lhe afligia a mente, dele exigindo o ne­cessário concurso à formação do novo corpo. Em razão da leviandade de Amaro, quando na perso­nalidade de Armando, caminhara para o suicídio. Por isso mesmo, a Lei permitia-lhe a união com o amigo transformado em desafeto, companheiro esse do qual reclamava a renovação da oportuni­dade perdida.

Clarêncio fitou-nos, de modo especial, e aduziu:

— Entre o credor e o devedor há sempre o fio espiritual do compromisso.

— Amaro teria tido, dessa forma, uma juven­tude algo conturbada — ponderei com objetivo de estudo.

— Sim, como acontece à maioria dos moços de ambos os sexos, na luta vulgar, muito cedo acordou para o ideal da paternidade. Em sonhos, fora do corpo denso, encontrava-se com o adversário que lhe pedia o retorno ao mundo e, ansioso de recon­ciliação, pensava no casamento com extremado de­sassossego, desejoso de saldar a conta que reco­nhecia dever. Muito jovem ainda, encontrou Odila que o aguardava, consoante o acordo por ambos levado a efeito, na vida espiritual; no entanto, as vibrações de Júlio eram efetivamente tão incômo­das que a primeira esposa do nosso amigo não con­seguiu acolhê-lo, de imediato, recebendo Evelina, em primeiro lugar, de vez que a ligação do casal com ela se baseia em doces afinidades. Somente depois da primogênita é que se ambientou para a incorporação do suicida em sofrimento...

— Este ponto de nossa conversação — lem­brei, respeitoso — faz-me recordar os conflitos in­teriores de muitos rapazes e de muitas moças na Terra. Às vezes se arrojam ao casamento com absoluta inaptidão para as grandes responsabilida­des, qual se estivessem impulsionadas por molas invisíveis, sem qualquer consideração para com os impositivos da prudência. Como se fossem ataca­dos por subitânea loucura, desatendem a todos os conselhos do lar ou dos amigos, para despertarem, depois, com problemas de enorme gravidade, quan­do não acordam sob a neblina de imensas desilu­sões. Agora compreendo... Na base dos sonhos juvenis, quase sempre moram dívidas angustiosas a que não se pode fugir...

— Sim — confirmou o Ministro —, grande número de paixões afetivas no mundo correspondem a autênticas obsessões ou psicoses, que só a realidade consegue tratar com êxito.

Em muitas ocasiões, por trás do anseio de união conjugal, vibra o passado, através de requisições dos amigos ou inimigos desencarnados, aos quais devemos co­laboração efetiva para a reconquista do veículo carnal. A inquietação afetiva pode expressar es­curos labirintos da retaguarda...

Refletindo nas lutas da alma, atirada às ex­periências da vida com tantos enigmas a solver, acudiu-me à lembrança antiga questão que habi­tualmente me vinha à cabeça.

— E os anjos de guarda? — inquiri.

Diante da surpresa que assomou ao semblante do nosso orientador, acentuei, reverente:

— Perdoe-me, mas ainda sou estudante inci­piente da vida espiritual. Os anjos de guarda estão em nossa esfera?

Clarêncio encarou-me, admirado, e sentenciou:

— Os Espíritos tutelares encontram-se em to­das as esferas, contudo é indispensável tecer algu­mas considerações sobre o assunto, Os anjos da sublime vigilância, analisados em sua excelsitude divina, seguem-nos a longa estrada evolutiva. Des­velam-se por nós, dentro das Leis que nos regem, todavia, não podemos esquecer que nos movimen­tamos todos em círculos multidimensionais. A cadeia de ascensão do espírito vai da intimidade do abismo à suprema glória celeste.

Ligeira pausa trouxe paternal sorriso aos lá­bios do instrutor, que prosseguiu:

— Será justo lembrar que estamos plasmando nossa individualidade imperecível no espaço e no tempo, ao preço de continuadas e difíceis experiên­cias. A idéia de um ente divinizado e perfeito, invariàvelmente ao nosso lado, ao dispor de nossos caprichos ou ao sabor de nossas dívidas, não con­corda com a justiça. Que governo terrestre desta­caria um de seus ministros mais sábios e especia­lizados na garantia do bem de todos para colar-se, indefinidamente, ao destino de um só homem, qua­se sempre renitente cultor de complicados enigmas e necessitado, por isso mesmo, das mais severas lições da vida? porque haveria de obrigar-se um arcanjo a descer da Luz Eterna para seguir, passo a passo, um homem deliberadamente egoísta ou preguiçoso? Tudo exige lógica, bom-senso.

— Com semelhante apontamento quer dizer que os anjos de guarda não vivem conosco?

— Não digo isso — asseverou o benfeitor.

E, com graça, aduziu:

— O Sol está com o verme, amparando-o na furna, a milhões e milhões de quilômetros, sem que o verme esteja com o Sol.

As irmãs que seguiam conosco, lado a lado, embevecidas na contemplação do céu, comentavam carinhosamente o porvir de Júlio, psiquicamente distanciadas de nossa conversação.

O apontamento de nosso orientador impunha-nos graves reflexões e, talvez por esse motivo, o silêncio tentou apossar-se do grupo, mas Clarêncio, reconhecendo que o assunto demandava elucidação mais ampla, continuou:

— Anjo, segundo a acepção justa do termo, é mensageiro. Ora, há mensageiros de todas as condições e de todas as procedências e, por isso, a antigüidade sempre admitiu a existência de anjos bons e anjos maus. Anjo de guarda, desde as con­cepções religiosas mais antigas, é uma expressão que define o Espírito celeste que vigia a criatura em nome de Deus ou pessoa que se devota infini­tamente a outra, ajudando-a e defendendo-a. Em qualquer região, convivem conosco os Espíritos fa­miliares de nossa vida e de nossa luta. Dos seres mais embrutecidos aos mais sublimados, temos a corrente de amor, cujos elos podemos simbolizar nas almas que se querem ou que se afinam umas com as outras, dentro da infinita gradação do pro­gresso. A família espiritual é uma constelação de Inteligências, cujos membros estão na Terra e nos Céus. Aquele que já pode ver mais um pouco au­xilia a visão daquele que ainda se encontra em luta por desvencilhar-se da própria cegueira. Todos nós, por mais baixo nos revelemos na escala da evolução, possuímos, não longe de nós, alguém que nos ama a impelir-nos para a elevação. Isso pode­mos verificar nos círculos da matéria mais densa. Temos constantemente corações que nos devotam estima e se consagram ao nosso bem. De todas as afeições terrestres, salientemos, para exemplificar, a devoção das mães. O espírito maternal é uma espécie de anjo ou mensageiro, embora muita vez circunscrito ao cárcere de férreo egoísmo, na custó­dia dos filhos. Além das mães, cujo amor padece muitas deficiências, quando confrontado com os princípios essenciais da fraternidade e da justiça, temos afetos e simpatias dos mais envolventes, capazes dos mais altos sacrifícios por nós, não obstante condicionados a objetivos por vezes egoís­ticos. Não podemos olvidar, porém, que o admi­rável altruísmo de amanhã começa na afetividade estreita de hoje, como a árvore parte do embrião. Todas as criaturas, individualmente, contam com louváveis devotamentos de entidades afins que se lhes afeiçoam. A orfandade real não existe. Em nome do Amor, todas as almas recebem assistên­cia onde quer que se encontrem. Irmãos mais ve­lhos ajudam os mais novos.

Mestres inspiram dis­cípulos. Pais socorrem os filhos. Amigos ligam-se a amigos.

Companheiros auxiliam companheiros. Isso ocorre em todos os planos da Natureza e, fatalmente, na Terra, entre os que ainda vivem na carne e os que já atravessaram o escuro passadiço da morte. Os gregos sabiam disso e recorriam aos seus gênios invisíveis. Os romanos compreendiam essa verdade e cultuavam os numes domésticos. O gênio guardião será sempre um Espírito benfazejo para o protegido, mas é imperioso anotar que os laços afetivos, em torno de nós, ainda se encon­tram em marcha ascendente para mais altos níveis da vida. Com toda a veneração que lhes devemos, importa reconhecer, nos Espíritos familiares que nos protegem, grandes e respeitáveis heróis do bem, mas ainda singularmente distanciados da an­gelitude eterna.

Naturalmente, avançam em linhas enobrecidas, em planos elevados, todavia, ainda sen­tem inclinações e paixões particulares, no rumo da universalização de sentimentos. Por esse mo­tivo, com muita propriedade, nas diversas escolas religiosas, escutamos a intuição popular asseve­rando: — «nossos anjos de guarda não combinam entre si», ou, ainda, «façamos uma oração aos an­jos de guarda», reconhecendo-se, instintivamente, que os gênios familiares de nossa intimidade ainda se encontram no campo de afinidades específicas, e precisam, por vezes, de apelos à natureza superior para atenderem a esse ou àquele gênero de serviço.

Chegávamos ao Lar da Bênção e os esclareci­mentos do instrutor represavam-se em nossa alma, por inesquecível preleção, compelindo-nos a grande silêncio.

Blandina, porém, veio até nós e perguntou ao orientador, sensibilizada:

— Generoso amigo, podemos estar realmente convictos de que Júlio devia desencarnar, agora?

— Perfeitamente. A Lei funcionou, exata. Não há lugar para qualquer dúvida.

— E aqueles jatos de pensamento escuro que partiram do enfermeiro, como que envenenando o nosso doentinho?

— Se não estivéssemos junto dele — disse o Ministro —, teriam efetivamente abreviado a mor­te da criança e, ainda assim, a Lei ter-se-ia cum­prido; entretanto, aqueles pensamentos escuros de Mário voltaram para ele mesmo. Emitiu-os, com o evidente propósito de matar e, em razão disso, experimenta o remorso de um autêntico assassino.

A graciosa residência de Blandina, para onde nos encaminhávamos, estava agora à nossa vista.

Clarêncio afagou-a, bondoso, e concluiu:

— Permaneçamos convencidos, minha filha, de que, em qualquer lugar e em qualquer tempo, re­ceberemos da vida, de acordo com as nossas pró­prias obras.


34

Em tarefa de socorro

Na noite do dia seguinte, fomos inesperada­mente visitados por Odila, que nos pedia socorro.

A preocupada amiga, agora ciente do drama escuro que se desenrolara no passado próximo para melhor entender as inquietudes do presente, com­preendia as necessidades de Amaro e Júlio, aos quais amava por esposo e filho do coração, e ro­gava assistência para Zulmira, novamente acamada.

Atendendo a apelos de Evelina, tornara ao ambiente doméstico para soerguer o bom ânimo daquela que a sucedera na direção do lar, e vol­tara, aflita.

Arrojara-se Zuhnira a profundo abatimento.

Recusava remédio e alimentação.

Enfraquecia assustadoramente.

Sabia agora que a permanência dela no mundo e na carne se revestia de excepcional importância para o seu grupo familiar e, atenta a isso, conti­nuava intercedendo.

A rápida informação da mensageira impres­sionava e comovia pelo tom de amorosa aflição em que era vazada.

Não nos delongámos na resposta.

Era mais de meia-noite, na cidade, quando atra­vessámos a porta acolhedora da casa do ferroviário que, desde muito, constituía para nós valioso ponto de ação.

A dona da casa, de pensamento fixo nas der­radeiras cenas da morte do pequenino, jazia no leito em prostração deplorável.

Emagrecera de modo alarmante.

Fundas olheiras roxas contrastavam com a acentuada palidez do rosto desfigurado.

Recaíra na introversão em que a conhecêra­mos. Rememorava o afogamento do pequeno en­teado e, longe de saber que o retivera nos braços como filho abençoado de sua ternura, sentia-se na condição de ré infortunada no banco da justiça.

Decerto — pensava, agoniada —, sofria a pu­nição divina. Aquela morte do pequeno, quando tudo fazia crer que ele cresceria para a ventura do lar, correspondendo-lhe à expectativa, era dolorosa pena imposta ao seu maternal coração. Ah! devia ter sido pronunciada perante os juizes da Sabedoria Celeste. No mundo, ninguém lhe conhe­cia o remorso de guardiã invigilante e cruel, mas fora sem dúvida identificada pelos tribunais de mil olhos do Direito Incorruptível. Não amparara convenientemente o filhinho de Odila, relegando-o a intencional abandono... Agora, perdia inexplicavelmente o rebento que lhe definia a esperança no grande futuro. Valeria erguer-se e disputar aquilo que para ela representava a dor de viver? Reconhecia-se esmagada. O complexo de culpa re­tomara-lhe o cérebro e enfermara-lhe o coração.

Reparámos que diversos medicamentos se ali­nhavam à cabeceira, mas nosso instrutor examinou-os, auscultou a doente e informou:

— O remédio de Zulmira é daqueles que a farmácia não possui. Virá dela mesma. Precisamos refazer-lhe a esperança e o gosto de viver. Des­controlou-se-lhe, de novo, a mente. Desinteressou­-se da luta e a abstenção de alimentos acarreta-lhe a inanição progressiva.

— E o reencontro com o filhinho? — pergun­tou Hilário — não seria o melhor processo dê restaurar-lhe o bom ânimo?

— É o que esperamos — concordou o Mi­nistro —‘ todavia, Júlio, na fase que atravessa, requisita, pelo menos, uma semana de absoluto re­pouso e, até lá, é indispensável entreter-lhe as energias.

Em seguida, Clarêncio entrou em ação, aplican­do-lhe recursos magnéticos, com o nosso humilde concurso.

A tensão nervosa de Zulmira, porém, atingira o apogeu e apenas conseguimos sossegá-la, de al­guma sorte, sem conduzi-la ao sono reparador que seria de desejar.

Odila, fortalecida, tomava-a aos seus cuida­dos, quando fomos defrontados por imprevisto fenômeno.

Mário Silva, desligado do corpo denso, com a rapidez de um relâmpago, penetrou o quarto, de olhos esgazeados, à maneira de louco, contemplou a doente por alguns instantes e afastou-se.

Volvemos nossa indagadora atenção para o Ministro, que esclareceu, sem detença:

— É sabido que o criminoso habitualmente volta ao local do crime. O remorso é uma força que nos algema à retaguarda.

E porque nos inclinássemos à procura do vi­sitante inesperado, o instrutor aquietou-nos, reco­mendando:

— Aguardemos. Mário voltará.

Com efeito, Silva, depois de alguns minutos, regressou ao aposento. Com a mesma expressão de dementado, fixou a pobre enferma e, dessa vez, rojou-se de joelhos, exclamando:

— Perdão! perdão!... sou um assassino! um assassino!...

Levantámo-nos, instintivamente, com o propó­sito de socorrê-lo, mas tocado de longe pela nossa influência magnética, qual se fora alcançado por um raio, o enfermeiro projetou-se para fora.

— Infortunado amigo! — falou o Ministro, contristado. — Sofre muito. Ajudemo-lo a soerguer-se.

Num átimo, ganhámos o domicílio de Mário. encontrando-o em pesadelo aflitivo, contido no lei­to à custa de poderosos anestésicos.

Com surpresa para nós, uma freira desencar­nada rezava, junto dele.

Interrompeu as preces, a fim de saudar-nos, acolhendo-nos com simpatia.

— Estava certa — disse delicada e confiante — de que Nosso Senhor nos enviaria o socorro justo. Desde algumas horas, ocupo aqui o serviço de vigilância. A posição do nosso amigo — e in­dicou Mário estendido na cama — é francamente anormal e temo a intromissão de Espíritos dia­bólicos.

Clarêncio assumiu o aspecto de simples visi­tante, vulgarizando-se ao olhar da religiosa, que se sentia evidentemente encorajada com a nossa presença.

— É enfermeira? — perguntou nosso instru­tor, cortês.

— Não sou prôpriamente do serviço de saúde replicou a interpelada —, mas colaboro no hos­pital onde Silva trabalha.

Fitou o moço semi-adormecido e aduziu, pie­dosa:

— É um cooperador devotado às crianças doentes e a cuja assiduidade e carinho muito passámos a dever.

E, numa linguagem genuinamente católica ro­mana, rematou:

— Muitas almas benditas têm descido do Céu para testemunhar-lhe agradecimento. Isso tem acon­tecido tantas vezes que, com alguns médicos e as­sistentes, fêz-se credor das melhores atenções de nossa Irmandade.

Usando o tato que lhe era característico , nosso orientador indagou:

— Como soube a irmã que o nosso amigo se achava assim tão conturbado?

— Não recebemos qualquer notificação direta, contudo, ele não compareceu hoje às tarefas ha­bituais e isso foi suficiente para indicar-nos que algo de grave estava acontecendo. Nossa superio­ra designou-me para verificar o que havia. Desde então, estou presa, de vez que não supunha a exis­tência de tantos Espíritos das trevas na vizinhança.

A palavra da freira saturava-se de tanta bon­dade espontânea e evidenciava uma fé pura tão encantadoramente ingênua, que a curiosidade me espicaçou o íntimo. A tentação de pesquisar o fascinante problema daquele caridoso esforço assis­tencial me constrangia a interferir no assunto, mas um olhar de Clarêncio bastou para que Hilário e eu nos mantivéssemos em respeitoso silêncio.

— É comovente pensar na sublimidade de sua missão, depois de ausentar-se do corpo terrestre — falou o Ministro, bondoso, talvez provocando al­guma elucidação direta, capaz de satisfazer-nos.

— Sim, trabalhamos sob a direção de Madre Paula — informou a interlocutora, sincera —‘ que nos explica ser a enfermagem nas casas públicas de tratamento uma forma de purgatório benigno, até que possamos merecer novas bênçãos de Deus.

— Mas, irmã, vê-se de pronto que o seu cora­ção está comungando a paz do Senhor.

Ela baixou humildemente os olhos e ponderou:

— Não penso assim. Sou uma pobre religiosa, em trabalho para resgatar os próprios pecados.

No leito, Mário gemia inquieto.

O Ministro pareceu despreocupar-se da pales­tra de ordem pessoal e passou a afagar a fronte do enfermo, dando-nos a idéia de que só ele devia atrair-nos o interesse.

A freira acercou-se respeitosamente de nosso instrutor e disse, calma:

— Irmão, Madre Paula costuma dizer-nos que os ouvidos de Deus vivem no coração das grandes almas. Estou certa de que escutastes minhas ro­gativas. Tenho-vos por emissários da Corte Celeste. Acredito que, desse modo, me compete a obri­gação de confiar-vos nosso doente.

Clarêncio agradeceu o carinho que transparecia daquelas palavras e expôs que a nossa passagem por ali era rápida, o bastante para ministrar o socorro preciso.

A interlocutora encareceu a necessidade de co­municar-se com o hospital, quanto ao cooperador em agitada prostração, e, prometendo voltar em breves minutos, ausentou-se à pressa.

A sós conosco, o orientador, embora de aten­ção ligada ao enfermeiro, explicou, atenciosamente:

— Nossa irmã pertence à organização espiri­tual de servidores católicos, dedicados à caridade evangélica. Temos diversas instituições dessa na­tureza, em cujos quadros de serviço inúmeras entidades se preparam gradualmente para o conheci­mento superior.

— Sob a direção de autoridades ainda ligadas à Igreja Católica? — perguntou Hilário, admirado.

— Como não? todas as escolas religiosas dis­põem de grandes valores na vida espiritual.

Como acontece à personalidade humana, as crenças pos­suem uma região clara e luminosa e uma outra ainda obscura. Em nossa alma, a zona lúcida vive alimentada pelos nossos melhores sentimentos, en­quanto que, no mundo sombrio de nossas experiên­cias inferiores, habitam as inclinações e os impul­sos que ainda nos encadeiam à animalidade. Nas religiões, o campo da sublimação está povoado pelos espíritos generosos e liberais, conscientes de nossa suprema destinação para o bem, ao passo que, nas linhas escuras da ignorância, ainda enxaxneiam as almas pesadas de ódio e egoísmo.

E, sorrindo, o Ministro acentuou:

— Achamo-nos em evolução e cada um de nós respira no degrau em que se colocou.

— Ela, porém, terá penetrado a verdade com que fomos surpreendidos, depois da morte? — per­guntei, intrigado.

— Cada Inteligência — respondeu o orienta­dor, enigmático — só recebe da verdade a porção que pode reter.

Silva, no leito, dava inequívocos sinais de enor­me angústia.

Não ignorava que o meu dever de assisti-lo era trabalho inadiável, todavia, o encanto espiritual da religiosa singularmente arraigada aos hábitos terrestres me excitava de tal maneira a curiosidade que não pude conter a indagação espontânea.

— Mas essa freira sabe que deixou o mundo, sabe que desencarnou e prossegue, assim mesmo, como se via antes?

— Sim — confirmou o instrutor imperturbável.

— E estará informada de que a vida se es­tende a outras esferas, a outros domínios e a ou­tros mundos? perceberá que o céu ou o inferno começam de nós mesmos?

O orientador meneou a cabeça, dando mostras de negativa e acrescentou:

— Isso não. Ela não oferece a impressão de quem se libertou do círculo das próprias idéias para caminhar ao encontro das surpresas de que o Uni­verso transborda. Mentalmente, revela-se adstrita às concepções que elegeu na Terra, como sendo as mais convenientes à própria felicidade.

— E ninguém a incomoda aqui por viver as­sim distante do conhecimento real do caminho?

O orientador assumiu feição mais carinhosa­mente paternal para comigo e ajuntou:

— Antes de tudo, deve nossa irmã merecer-nos a maior veneração pelo bem que pratica e, quanto ao modo de interpretar a vida, não podemos es­quecer que Deus é Nosso Pai. Com a mesma tole­rância, dentro da qual Ele tem esperado por nossa mais elevada compreensão, aguardará um melhor entendimento de nossa amiga. Cada Espírito tem uma senda diversa a percorrer, assim como cada mundo tem a rota que lhe é peculiar.

E, fixando-me com particular atenção, ob­servou:

— A maior lição aqui, André, é a da semen­teira que produz, inevitável. Mário Silva, na posição de enfermeiro, não obstante a ruinosa impulsivi­dade em que se caracteriza, tem sido prestimoso e humano, tornando-se credor do carinho alheio. Segundo vemos, não é um homem devotado às lides religiosas. É irritável e agressivo. De ontem para hoje, chega a sentir-se criminoso... Entretanto, é correto cumpridor dos deveres que abraçou na vida e sabe ser paciente e caridoso, no desempe­nho das próprias obrigações. Com isso, granjeou a simpatia de muitos e encontramo-lo fraternal­mente guardado por uma freira reconhecida...

O ensinamento era efetivamente comovedor. Dispunha-me a prosseguir no comentário, contudo, Silva começou a gemer e o Ministro, incli­nando-se para ele, demorou-se longo tempo a aus­cultá-lo.

Em seguida, Clarêncio reergueu-se e falou:

— Pobre amigo! permanece impressionado com a morte de Júlio, conservando aflitivo complexo de culpa. Tem o pensamento ligado ao pequenino mor­to, à maneira de imagem fixada na chapa fotográ­fica. Passou o dia acamado, sob extrema pertur­bação. Observo que não foi a casa de Antonina, conforme previa. Sentiu-se vencido, envergonha­do... Entretanto, somente nossa irmã possui para ele o remédio indispensável...

Depois de pausa ligeira, indagámos se não nos seria possível socorrê-lo, de modo mais positivo, através de passes, ao que Clarêncio respondeu, se­guro de si:

— O auxílio dessa natureza ampara-lhe as for­ças, mas não resolve o problema. Silva deve ser atingido na mente, a fim de melhorar-se. Requisita idéias renovadoras e, no momento, Antonina é a única pessoa capaz de reerguê-lo com mais segu­rança.

Recordei instintivamente o drama que se de­senrolara ao tempo da Guerra do Paraguai, pa­recendo-me ouvir, de novo, a narração do velho Leonardo Pires.

Assinalando-me o pensamento, o Ministro pon­derou:

— Tudo na vida tem a sua razão de ser. Noutra época, Silva, na personalidade de Esteves, aliou-se a Antonina, então na experiência de Lola Ibarruri, para se afogarem no prazer pecaminoso. com esquecimento das melhores obrigações da vida. Atualmente, estarão reunidos na recuperação jus­ta. Os que se associam na leviandade, à frente da Lei, acabam esposando enormes compromissos para o reajustamento necessário. Ninguém confunde os princípios que regem a existência.

Decidia-me a desfechar novas interrogações, mas Clarêncio, pousando afetuosamente o indica­dor sobre os meus lábios, recomendou:

— Cessa a curiosidade, André! Quando pas­samos a explanar sobre a Lei, nossa conversação adquire o sabor de eternidade, e a imposição de serviço nos condiciona ao minuto que passa.

E, indicando o enfermeiro excitado, anunciou:

— Na tarde de amanhã, voltaremos para con­duzi-lo à residência de nossa irmã. Por intermédio de Antonina, habilitar-se-á para o indispensável reerguimento. Por agora, não podemos fazer mais.

Decorridos alguns instantes, a freira regressou à nossa presença, assistida por outra irmã, que nos cumprimentou com atenciosa reserva.

Ambas haviam sido designadas para a tarefa de auxílio ao cooperador doente. A congregação encarregar-se-ia de todos os trabalhos de vigilân­cia e enfermagem espiritual, enquanto Silva assim permanecesse.

Depois de breve diálogo, saudámo-las com res­peitosa cordialidade e nos retirámos, com a pro­messa de voltar no dia seguinte.


35

Reerguimento moral

Consoante o programa traçado, regressámos, no dia imediato, estagiando primeiramente no lar de Zulmira, cuja posição orgânica era mais aflitiva.

A pobre senhora mostrava-se mais pálida, mais abatida.

O médico cercara-a de drogas valiosas, entre­tanto, a infortunada criatura demorava-se em pro­funda exaustão.

Amaro e Evelina desvelavam-se, preocupados, todavia, a torturada mãezinha deixava-se morrer.

Diante da nossa apreensão manifesta, o Mi­nistro apenas afirmou:

—. Aguardemos. Numa equipe, quase sempre a melhora de um companheiro pode auxiliar a me­lhora de outro. A recuperação de Silva, ao que me parece, influenciará nossa amiga, na defesa contra a morte.

Não se delongou por muito tempo na inter­venção magnética.

Sem detença, procurámos o domicilio do en­fermeiro, encontrando-o superexcitado quanto na véspera, mas abnegadamente assistido pelas freiras que persistiam, dedicadas, na oração.

As religiosas desencarnadas acolheram-nos com carinho, comunicando que o doente prosseguia em desespero.

Clarêncio, contudo, assegurou-lhes otimista que Mário passaria conosco e, após entreter-se, vol­taria melhor.

Em seguida, abeirou-se do enfermo e, tocan­do-lhe a fronte com a destra, orou sem alarde.

Qual se recebesse preciosa transfusão de for­ças fluídicas, Silva aquietou-se como por encanto.

Revelou-se mais calmo, não obstante entris­tecido.

A expressão facial que lhe denunciava a su­blevação interior transformou-se-lhe no semblante em dolorosa serenidade.

Nosso orientador desenvolveu alguns passes de auxílio e notificou:

— Silva experimenta enorme necessidade de ouvir a palavra de Antonina, contudo, está hesitante. Afirma-se íntimamente envergonhado. Crê-se responsável pela morte da criança e teme o contacto com a nobreza espiritual de nossa irmã, apesar de sentir-se arrastado para ela - Buscaremos, porém, auxiliar-lhes a reaproximação.

Acariciou a fronte do moço atormentado e acentuou:

— O desabafo descarregar-lhe-á a atmosfera mental, favorecendo-lhe o alívio e a recepção de elementos renovadores.

Em seguida, o instrutor abraçou-o, envolven­do-o em amorosa solicitude - Aquele amplexo afe­tuoso e longo figurou-se-nos um apelo às energias recônditas do rapaz que, de imediato, levantou-se e vestiu-se.

Ignorando como explicar a si mesmo a súbita resolução que o movia, desceu para a rua, segui­do de perto por nosso cuidado, e tomou o carro que o transportaria até à residência da simpática família que o acolhera carinhosamente na ante­véspera.

Antonina e os filhos abriram-lhe os braços, alegremente.

A pequena Lisbela, encantada, dependurou-se-lhe ao pescoço, depois de um beijo comovente.

Achava-se ainda acamada, mas refeita e feliz.

Qual se convivesse com Mário, de longo tempo, a dona da casa fitou-o, apreensiva.

Preocupada, anotou-lhe o abatimento, enquan­to o hóspede parecia esmolar-lhe, em silêncio, aju­da e compreensão.

Percebendo-lhe a angústia oculta, a jovem viú­va induziu-o à conversação particular, em singelo recanto da sala, onde atendia com os filhinhos ao culto da oração.

O enfermeiro pediu-lhe desculpas por tratar de assunto pessoal e, começando por justificar a sua ausência na véspera, de frase a frase entrou na faixa dolorosa do próprio coração, desabafando...

Lembrou que ali, junto dela, recebera ensina­mentos da mais elevada significação para ele e, por esse motivo, não vacilava em descerrar-lhe o espírito desolado, implorando compaixão e socorro.

Tentando confortá-lo, a interlocutora escutou-lhe a narrativa até ao fim.

Mário reportou-se à juventude, comentou os problemas psíquicos de que se via rodeado, desde a infância, descreveu-lhe o amor que nutrira pela moça que o abandonara em pleno sonho, relacionou as provas que lhe haviam castigado o brio de ra­paz, salientou o esforço que despendera para re­cuperar-se e, por fim, extremamente conturbado, explanou sobre o reencontro com a ex-noiva e com o ex-rival, junto do pequenino agonizante... Refe­riu-se ao ódio inexplicável que sentira pelo anjinho moribundo, encareceu os benefícios do culto evan­gélico em sua alma incendiada de revolta e amar­gura, expondo-lhe a convicção de haver contribuído para à morte da criancinha que detestara, à pri­meira vista..

Guardava a impressão de haver descido a tor­mentoso inferno moral.

Antonina sentiu por ele a piedade amorosa com que as mães se dispõem ao soerguimento espiritual dos filhos sofredores e rogou-lhe serenidade.

Silva, contudo, em pranto convulsivo, era um doente que reclamava mais ampla intervenção.

Atraída irresistivelmente para ele, a nobre amiga­ deixou de sublinhar o tratamento com a palavra “senhor” e, fazendo-se mais Íntima, obtemperou, carinhosa:

— Mário, quando caímos é preciso que nos levantemos, a fim de que o carro da vida, em seu movimento incessante, não nos esmague. Conhece­mo-nos há dois dias, no entanto, sinto que profun­dos laços de fraternidade nos reúnem. Não acre­dito estejamos aqui juntos, obedecendo a simples acaso. Decerto, as forças que nos dirigem a exis­tência impelem-nos aos testemunhos afetivos desta hora. Enxugue as lágrimas para que possamos ver o caminho... Compreendo o seu drama de homem rudemente provado na forja da vida, entretanto, se posso pedir-lhe alguma coisa, rogar-lhe-ia bom ânimo.

Fixando-o com mais doçura no olhar, prosse­guiu, depois de leve pausa:

— Também eu tenho lutado muito. Lutado e sofrido. Casei-me por amor e vi-me espoliada em minhas melhores esperanças. Meu marido, antes de encontrar a morte, relegou-nos a dolorosa pe­núria. Quando mais intensa era a nossa agonia doméstica, vi um filhinho morrer ao toque das aflitivas provações que nos flagelavam a casa... Gra­ças a Deus, todavia, reconheço que seríamos tão somente ignorância e miséria sem o auxílio da dor. O sofrimento é uma espécie de fogo invisível, plasmando-nos o caráter. Não se deixe abater, assim. Você está moço e as suas realizações no mundo podem ser as mais elevadas...

— Mas estou certo de que sou um assassi­no!... — soluçou o rapaz, desacoroçoado.

— Quem poderia confirmá-lo? — exclamou An­tonina, com mais ternura na voz. — É indispen­sável recordemos que, atento à profissão, atendeu você a um menino completamente entregue ao domínio do crupe. O pequenino Júlio, à sua chegada, já estaria ofegante, sob as asas da morte.

— Mas, e a impressão? e o remorso? Sinto-me derrotado, aflito... Tenho medo de mim mesmo...

A nobre senhora fitou o hóspede com a ad­mirável segurança que lhe era peculiar e falou, firme:

— Mário, você acredita na reencarnação da alma?

E porque o interlocutor a contemplasse, com estranheza, continuou sem ouvir-lhe a resposta:

— Todos somos viajores no grande caminho da eternidade, O corpo de carne é uma oficina em que nossa alma trabalha, tecendo os fios do pró­prio destino. Estamos chegando de longe, a revi­vescer dos séculos mortos, como as plantas a re­nascerem do solo profundo... Naturalmente, você, Amaro, Zulmira e Júlio estão recapitulando algu­ma tragédia que ficou distanciada no espaço e no tempo, mas viva nos corações. E, mediante o ca­rinho de sua confissão espontânea, não duvido de minha participação em algum lance da luta que motivou os acontecimentos da atualidade.

Amor e ódio não se improvisam. Resultam de nossas cons­truções espirituais nos milênios.

Provàvelmente, alguma responsabilidade me compete nos serviços em cuja execução você se comprometeu. Nossa con­fiança imediata, nossa associação neste assunto sem qualquer base prévia, essa simpatia fraternal com que você vem a mim e o interesse com que lhe ouço a exposição me autorizam a admitir que o presente está refletindo o passado. E, em razão disso, ofereço-me para cooperar com o seu esforço de algum modo...

— Colaborar? — atalhou o moço, quase alu­cinado — é impossível... O menIno está morto...

Envolta nas irradiações de Clarêncio, Antoni­na alegou com sensatez:

— E quem nos diz que Júlio não possa voltar à Terra? quem nos pronunciará incapazes de algo fazer a beneficio da criancinha que partiu?

— Como? como? — indagou, atônito, o infeliz.

— Escute, Mário. O egoísmo não se revela feroz tão somente em nossas alegrias. Muitas vezes, comparece também, asfixiante e terrível, em nossas dores. Isso se verifica, quando em nossa mágoa pensamos apenas em nós. Você se decla­ra delinqüente, amargurado, vencido, qual se fosse um herói repentinamente arrojado do altar da admiração pública à poeira da desconsideração.

Admito que concentrar demasiada atenção em cul­pas imaginárias é mera vaidade a encarcerar-nos na angústia vazia. Enquanto lastimamos a nossa imperfeição, perdemos a hora que seria justo uti­lizar em nossa própria melhoria.

E, modificando a inflexão de voz, que se fêz algo mais firme, acrescentou:

— Você já meditou no padecimento dos pais feridos pela separação? já refletiu nos sonhos ma­ternos, despedaçados? porque não estender frater­nos braços aos progenitores na sombra do infortú­nio? Creio na imortalidade da alma e na redenção dos nossos erros, penso que a renovação do dia é um símbolo da graça do Senhor sempre repetida em nosso caminho, para que lhe aproveitemos o tesouro de bênçãos no crescimento ou no reajuste... Porque não visitar você o lar de nossos desven­turados amigos, nesta hora em que naturalmente precisam de carinho e solidariedade? É possível que a Divina Bondade esteja reservando ali algum serviço para o seu propósito de elevação. Quem sabe? A volta de Júlio pode efetuar-se. Para isso, porém, será necessário reerguer o ânimo materno...

Passando da energia de conselheira à ternura de irmã, aduziu, carinhosa:

— Deixaria você a outrem o privilégio de se­melhante serviço?

— Não tenho coragem! — lamentou o rapaz, chorando.

— Não, Mário! Em ocasiões dessas, não é a coragem que nos falha e sim a humildade.

Nosso orgulho neste mundo, apesar de inconsequente e vão, é por demais envolvente e excessivo. Não sa­bemos liberar a personalidade segregada no visco de nosso exagerado amor próprio. Em suma, apri­sionamos o coração na escura fortaleza da vaidade e não sabemos ceder...

Apegando-se ao socorro moral que lhe era lançado, o enfermeiro suplicou, pesaroso:

— Antonina, creio em sua amizade e na ele­vada compreensão que flui de suas palavras. Ajude-me! não vim aqui senão rogar auxílio e discer­nimento. Exponha você mesma o que devo fazer. Dê-me um plano. Perdoe-me a intimidade, tenho sido um homem sem fé... Não tenho autoridades ou amigos para quem apelar... Não nos conhece­mos senão há dias, mas encontrei em seu coração e em sua casa algo novo para meu pobre espírito... Suporte-me e ampare-me por amor de Deus, em cuja providência você crê com tanta sinceridade !...

A jovem viúva, sentindo-se verdadeiramente irmã dele, acariciou-lhe as mãos quais se fossem velhos conhecidos, e agora, igualmente em lágri­mas de emotividade e reconhecimento, convidou-o a visitarem juntos o casal sofredor, na noite se­guinte.

Confiaria Henrique e Lisbela aos cuidados de uma parenta e seguiriam para a residência de Ama­ro. em companhia de Haroldo. Desejava auxiliá-lo, a ele, Mário, na justa recuperação, e, para esse fim, estimaria acompanhá-lo, de maneira a ser mais útil.

O moço aceitou a gentileza, exultante.

Estava convencido de que, ao lado de Anto­nina, encontraria uma solução.

Um sorriso de reconforto assomou-lhe aos lá­bios e foi assim que deixámos o enfermeiro atormentado, sob a eclosão de nova e abençoada es­perança.


36

Corações renovados

Três dias haviam corrido sobre a libertação de Júlio.

De novo, ao lado de Zulmira, nas primeiras ho­ras da noite, reparávamos-lhe a profunda exaustão...

O enfraquecimento progressivo impusera-lhe perigosa situação orgânica.

O próprio Clarêncio, depois de auscultá-la, ano­tou, apreensivo:

— Nossa irmã reclama socorro mais seguro. O esgotamento é quase completo.

A enferma recebia-lhe a assistência magnética, quando Mário, Antonina e Haroldo deram entrada em sala próxima.

Deixámos nosso instrutor com a doente e de-mandámos a peça em que se efetuaria o encontro familiar.

O ferroviário e a filha faziam as honras da casa.

Amaro, acolhedor, dava mostras de grande alí­vio. O sorriso, embora triste, era largo e espon­tâneo, demonstrando o contentamento interior de quem via terminar velha e desagradável desavença.

Mário, porém, surgia constrangido e desajei­tado, enquanto Antonina irradiava simpatia e bon­dade, cativando, de improviso, a amizade dos an­fitriões.

O enfermeiro apresentou a jovem senhora e o filhinho por amigos particulares e depois, eviden­temente instruído pela companheira, iniciou a pa­lestra, comentando a penosa impressão que lhe causara o falecimento do pequenino e pedia escu­sas por não haver reaparecido, como reconhecia de seu dever.

A ocorrência desnorteara-o.

Caíra de cama, impressionado com o aconte­cimento que lhe não cabia esperar.

Falava realmente comovido, porque, lembrando os derradeiros minutos da criança, represavam-se-lhe os olhos de lágrimas que não chegavam a cair. Aquela emotividade manifesta, aliada à humil­dade sincera que Silva deixava transparecer, to­cava o coração de Amaro, que se descerrou mais amplamente.

— Percebi — disse o dono da casa — a dor que o envolveu no momento justo em que nosso anjinho era arrebatado pela morte. Sua aflição me comoveu muito, não só pelo devotamento do pro­fissional que nos assistia, mas também pela afe­tividade pura do amigo que, há tanto tempo, se distanciara de nossos olhos.

A generosidade do ex-rival, por sua vez, in­fluenciava o enfermeiro de modo decisivo.

As vibrações de afabilidade e carinho que se desprendiam do apontamento afetuoso modificavam-lhe o íntimo.

Mário passou a sentir balsamizante desafogo.

E, enquanto Evelina se afastava para atender à madrasta doente, reportou-se à tortura moral que o assaltara, assim que viu Júlio inerte, deten­do-se na breve descrição do complexo de culpa que o acometera. Teria seguido com segurança a indicação do especialista? Enganar-se-ia, porventura, na dosagem da medicação?

Na ligeira pausa que surgiu, natural, Amaro tornou à palavra, acrescentando, bondoso:

— Não havia motivo para tamanha preocupa­ção. Desde a primeira visita médica, compreendi que o nosso filhinho estava condenado. O soro foi o último recurso.

E, com dolorida resignação, acentuou:

— Não é a primeira vez que atravesso uma provação dessa ordem. Há tempos, sofri a perda do caçula de meu primeiro matrimônio, estranha-mente afogado numa de nossas raras excursões até à praia. Confesso que só me faltou enlouquecer. Entretanto, apeguei-me à religião para não soço­brar e hoje compreendo que somente nos compete acatar os desígnios de Deus. Não passamos de criaturas necessitadas de socorro divino, a cada instante de nossa experiência humana.

— Sem dúvida — interferiu Antonina, otimis­ta —, sem apoio espiritual, não avançaríamos um passo no terreno da verdadeira harmonia íntima. A morte do corpo nem sempre é o pior que nos possa acontecer. Quantas vezes os pais são cons­trangidos a acompanhar a morte moral dos filhos, no crime ou na viciação que não conseguem inter­romper? Também perdi um dos rebentos que Deus me confiou, mas procurei acomodar-me à saudade sem revolta, porque a Sabedoria do Senhor não deve ser menosprezada.

— Que prazer ouvi-la! — disse o ferroviário, com discreta satisfação — após afeiçoar-me, com mais empenho, ao Catolicismo, na leitura de Santo Agostinho, observo que abençoada renovação se fêz em mim.

E fitando a interlocutora, com mais atenção, aduziu:

— A senhora é também católica?

Antonina sorriu, delicada, e informou:

— Não, senhor Amaro, em matéria de fé, acei­to a interpretação evangélica do Espiritismo, en­tretanto, isso não impede que estejamos procurando o mesmo Mestre.

— Ah! sim, Jesus é o nosso porto — acentuou o anfitrião, liberal —, não entendo a religião por elemento separatista. A senhora, na condição de espírita, e eu, na posição de católico, possuímos uma só linguagem na fé que nos identifica. Creio que a Providência Divina, como o Sol, brilha para todos.

— É muita alegria sentir-lhe a nobreza dalma — comentou Antonina, entusiástica —; na essência, desejamos ser cristãos sinceros e a sua ge­nerosidade me permite entrever a beleza do Cristo nas vidas nobres.

Amaro não conseguiu responder.

Um táxi parou à porta e, de imediato, o mé­dico da família entrou para a inspeção.

Depois das saudações usuais, passou ao quarto da enferma e, porque o dono da casa se propusesse segui-lo, recomendou-lhe permanecesse na sala com as visitas, de vez que tencionava submeter a doen­te a meticuloso exame, pretendendo ouvi-la a sós.

Evelina veio ter conosco e, acompanhando o facultativo com o nosso olhar. vimo-lo carinhosa­mente recebido por Clarêncio e Odila, que se nos mostraram à porta.

A conversação passou a desdobrar-se em torno de Zulmira.

O chefe da família, preocupado, discorria so­bre a esposa acamada, encarecendo a delicadeza da situação.

Zulmira, que adoecera com a enfermidade do fi­lhinho, desde a morte dele, não mais se alimentara.

Não obstante todos os conselhos médicos e todos os apelos afetivos, demonstrava-se alheia, no mais amplo desinteresse pela vida.

Enfraquecia, de modo alarmante.

Como se quisesse dar notícias de seu círculo particular ao atento enfermeiro, relacionou os desajustes psíquicos da companheira, antes da vinda do filhinho que a morte lhes arrebatara ao con­vívio.

Zulmira, com a maternidade triunfante, como que se renovara.

Revelara-se mais alegre, mais viva.

Readquirira a saúde plena.

Com a desencarnação da criança, nova crise de contratempos invadira-lhe a casa.

A moléstia asilara-se, ali, de novo, entre as quatro paredes.

Mário, a permutar significativos olhares com Antonina, de quando em quando se situava entre a perplexidade e o desencanto.

A confissão de Amaro constituía um testemu­nho de humildade pura.

Em muitas ocasiões, fantasiara-o, na própria imaginação, qual se fora um poço de orgulho e arrogância e, por muitas vezes, surpreendera-se em acalorados solilóquios, rixando com ele em pensa­mento.

Agora, reparava que o antagonista era um homem comum, tanto quanto ele necessitado de paz e compreensão.

O entendimento prosseguia mais afetuoso, quando o clínico tornou à sala.

De semblante torturado, dirigiu-se ao ferroviário, notificando:

— Amaro, a providência é quase impossível quando a previdência não funciona. A posição de Zulmira piorou muitíssimo nas últimas horas. O soro aplicado desde ontem não trouxe o resultado preciso. O abatimento é enorme. Creio indispen­sável uma transfusão de sangue ainda esta noite. para que não sejamos amanhã surpreendidos por obstáculos insuperáveis.

Amaro empalideceu.

Antonina voltou-se em silêncio para Silva, como a dizer-lhe, de coração para coração: — Não he­site. É a sua hora de ajudar. Aproveite a opor­tunidade.

Mário, acanhado, levantou-se maquinalmente e, antes que Amaro fizesse qualquer referência ao assunto, apresentou-se ao médico, explicando:

— Doutor, se a minha cooperação for aceita, sentirei prazer nisso. Sou doador de sangue no hospital em que trabalho. Um telefonema seu ao pediatra amigo, a quem o senhor recorreu no caso de Júlio, pode confirmar as minhas palavras.

E, erguendo os olhos para o ex-rival, disse, em voz quase suplicante:

— Amaro, permita-me! quero auxiliar a doen­te de algum modo!... Afinal de contas, somos todos, agora, bons irmãos.

O chefe da casa, comovido, abraçou-o reco­nhecidamente.

— Obrigado, Silva!

Nada mais conseguiu dizer.

De olhos angustiados, dirigiu-se para o apo­sento da mulher, envolvendo-a em manifestações de carinho.

Antonina, colocando Haroldo junto a uma pilha de revistas velhas, pôs-se à disposição de Evelina para qualquer atividade caseira, enquanto Mário e o médico partiam, velozes, em busca do material necessário.

Transcorrida uma hora, a cãmara da enferma se iluminava mais intensamente para o serviço a fazer.

Zulmira, admirada, reconheceu Mário, todavia era enorme a prostração para que pudesse demons­trar interesse ou desprazer. Apresentada a Anto­nina, limitou-se a endereçar-lhe alguns monossíla­bos, com um breve sorriso de reconhecimento.

Assumindo a direção da enfermagem, a jovem viúva parecia uma figura providencial.

Amparou a doente com carinho, auxíliou o clínico nas tarefas do momento e, cativando a gratidão dos novos amigos, colaborou com Evelina para que todas as medidas alusivas à higiene se efe­tuassem harmoniosas.

Realizada a transfusão, a enferma entrou na reação característica, contudo, Silva, fosse porque estivesse de si mesmo enfraquecido ou porque a quantidade de sangue tivesse sido demasiada, pas­sou a acusar profundo abatimento.

Em seus olhos, porém, brilhava uma luz di­ferente.

Afigurava-se-lhe haver perdido as inquietações que o martirizavam. Adquirira a noção de que se reabilitara, perante a própria consciência. Trou­xera aos ex-adversários o próprio coração em for­ma de visita fraterna. E as suas próprias forças insufladas no campo orgânico da mulher que lhe fora a bem-amada, como que lhe favoreciam a au­sência dos velhos pensamentos de mágoa que, por tanto tempo, lhe haviam flagelado a vida íntima.

Registrando-lhe a queda de energias, o médico ministrou-lhe, de imediato, os recursos aconselhá­veis, permanecendo Mário, desse modo, cômodamen­te instalado em larga poltrona, junto dos amigos.

Despediu-se o facultativo, mais animado.

Antonina, sem afetação, ajudou no preparo do café, que foi saboreado por todos, enquanto a con­versação era reatada com alegria.

Foi então que a viúva se ofereceu para voltar. Era industriária e, na posição de mãe, res­ponsabilizava-se por três crianças, entretanto, po­deria dispor de dois dias.

Amaro salientou a dificuldade para encontrar uma enfermeira ou governanta para horas difíceis e aceitou a gentileza.

Antonina, contente, prometeu regressar, tra­zendo Lisbela, na manhã seguinte. Estava convencida de que a menina conseguiria entreter Zulmira, com as suas infantilidades, mitigando-lhe o coração saudoso de mãe.

Evelina abraçou-a, encantada. Simpatizara-se com Antonina, como se fossem duas irmãs.

Algo reanimado e positivamente feliz, Mário dispôs-se à retirada e um táxi foi trazido.

Num ambiente de construtiva cordialidade, de­senvolveu-se a reconfortante despedida.

E Silva, fitando a companheira de excursão com reconhecimento e carinho, sentiu-se reconciliado consigo mesmo, irradiando a alegria silenciosa de quem retorna à felicidade.


37

Reajuste

Quando os amigos se afastaram, Clarêncio cer­cou Zulmira de cuidados especiais, aplicando-lhe passes de reconforto.

A injeção de sangue renovador lhe fizera gran­de bem.

Pouco a pouco, acomodaram-se-lhe os centros de força.

Desde a desencarnação do filhinho, a pobre criatura não desfrutava tão acentuado repouso, quanto naquela hora.

Nosso instrutor recomendou a Odila prepa­rasse o pequeno Júlio para o reencontro com a mãezinha.

Zulmira vê-lo-ia, buscando energias novas.

E enquanto nossa irmã se distanciava para o desempenho da missão que lhe fora cometida, o orientador falou, otimista:

— Um sonho reconfortante é uma bênção de saúde e alegria para os nossos irmãos encarnados.

Íamos responder, mas a doente, à semelhança das pessoas na hipnose profunda, levantou-se em Espírito, contemplando-nos, surpresa.

O olhar dela, admiràvelmente lúcido, falava-nos de sua ansiedade maternal.

Clarêncio afagou-a, como se o fizesse a uma filha, rogando-lhe calma e fé.

Desdobrava-se-lhe a preleção carinhosa, quando partimos.

Amparada em nossos braços, Zulmira volltou sem perceber.

Observei que o espetáculo magnificente da Na­tureza não lhe feria a atenção. Introvertida, ape­nas a imagem da criancinha morta lhe ocupava a tela mental.

O Lar da Bênção mostrava-se maravilhoso.

Flores de rara beleza coloriam a estrada e embalsamavam-na de suave perfume.

Aqui e ali, doces melodias vibravam no ar. A glória fulgurante do céu induzia-nos à oração de reverência e louvor ao Pai Celestial, mas a pobre mulher que seguia conosco parecia insen­sível à excelsitude do ambiente, à face da tortura interior de que se via possuída, obrigando-me a reconhecer, mais uma vez, que o paraíso da alma, em verdade, reside onde se lhe situa o amor.

Reparei que para a devoção afetuosa de Zul­mira não importava o rumo. Qualquer indaga­ção, perante aquela ternura atormentada, resulta­ria inútil.

Creio que, se, ao invés da refulgente luz do Lar da Bênção, apenas víssemos trevas, para aquele espírito agoniado de mãe o quadro seria de verda­deiro paraíso, desde que pudesse reter nos braços o filhinho inesquecível.

Quem poderá definir com exatidão os indevas­sáveis segredos que Deus colocou nos corações que amam?

Quando penetrámos o berçário, onde o menino repousava, sob a abnegada vigilância de Odila e Blandina, a sofredora mãezinha tentou arrojar-se sobre a criança sonolenta, sendo delicadamente ad­vertida por nosso orientador, que a sustentou, pa­ternal, asseverando:

— Zulmira, não perturbes o pequenino se o amas.

— É meu filho! — bradou, semidesvairada.

— Não ignoramos que Júlio se asilou na Terra em teu regaço e, por isso, fomos teus companhei­ros na presente viagem para que amenizes a tua dor. Entretanto, não admitas que o egoísmo te ensombre a alma!... Certamente, o carinho ma­terno é um tesouro inapreciável, contudo não de­vemos olvidar que todos somos filhos de Deus, nosso Eterno Pai! Acalma-te!

Pede ao Senhor os recursos necessários para que o teu devotamento seja um auxílio positivo ao pequenino necessitado!

Tocada por essas palavras, Zulmira desfez-se em pranto.

Enlaçada afetuosamente por Odila, que ten­tava soerguer-lhe o ânimo, reconheceu a primeira esposa de Amaro e recordou a luta que haviam atravessado, quando do afogamento do pequeno irmão de Evelina.

O remorso voltou a refletir-se-lhe na mente e, atribulada, exclamou:

— Odila! perdoa-me, perdoa-me!... agora vejo o inferno que te impus, despreocupando-me de teu filhinho... Hoje, pago com lágrimas minha deplo­rável displicência! Ajuda-me, querida irmã!...

Sê para o meu Júlio a guardiã que não fui para o teu!

A interpelada acariciou-a, compadecidamente, e ajuntou:

— Tem paciência! a aflição é um incêndio que nos consome... Paguemos à vida o tributo da con­formação na dor, para que sejamos efetivamente dignas do socorro celestial...

E, beijando-a nos olhos, aduziu:

— Enxuga as lágrimas que te fustigam inutilmente. A serenidade é o nosso caminho de rees­truturação espiritual. Não te reportes ao passado... Vivamos o presente, fazendo o melhor ao nosso alcance.

— Agora, porém, que sofro as agruras de mi­nha prova — acentuou Zulmira, em tom amargo —, penso em teu anjinho...

Odila, conchegando-a de encontro ao peito, conduziu-a para mais perto do menino adormecido e, indicando-o, aclarou, satisfeita:

— Ouve! meu filhinho é também o teu. Júlio de hoje é o nosso Júlio de ontem. Pesados compromissos com o pretérito obrigaram-no a aceitar as dificuldades do momento... Em nosso apren­dizado de agora, teve a existência frustrada por duas vezes, a fim de valorizar, com segurança, a bênção da escola terrestre.

Ante a companheira perplexa, acrescentou, con­vincente:

— O corpo de carne é uma veste que o nos­so Júlio usou de dois modos diferentes, por nosso intermédio.

E sorrindo:

— Como vemos, somos duas mães, partilhando o mesmo amor.

Notávamos que Zulmira, admirada, estimaria algo perguntar, mas o choque da revelação como que lhe imobilizara a garganta.

No imo dalma, decerto algo lhe alterara o campo emotivo.

Secaram-se-lhe as lágrimas, ao passo que o olhar se lhe fazia mais brilhante.

Afigurava-se-nos uma estátua viva de intra­duzível expectação.

Sem resistência, deixou-se conduzir pelos bra­ços de Odila até um leito próximo, para ajustar-se ao repouso preciso.

Agora sim — pensava, surpreendida —, co­meçava a compreender... Júlio prematuramente expulso da experiência material pelo afogamento, ao mundo tornara em nova tentativa que redundara em frustração...

Porquê? porquê?

O pensamento dolorido intentava penetrar os segredos do tempo, arrastando-a ao passado remo­to, mas o cérebro doía-lhe, dilacerado... Realmen­te, não lhe seria possível naquelas circunstâncias qualquer incursão no domínio das reminiscências, mas percebia, enfim, a Bondade Eterna que reúne as almas nos mesmos laços de trabalho e espe­rança do caminho redentor...

Lembrou a animo­sidade fria que experimentara por Júlio. logo após seus esponsais, e o imanifesto ciúme que nutria, diante das atenções que Amaro lhe dispensava, e reconheceu que a Providência Divina, ligando-o ao seu coração de mãe, lhe sublimara os sentimentos...

Agora sentia por ele inexpressável carinho e iluminado amor...

De espírito assim transformado, via em Odila não mais a rival, mas a benfeitora que, sem dú­vida, lhe seguira de perto a transfiguração.

Enlaçou-se a ela, em pranto silencioso, qual se lhe fora filha a ocultar-se nos braços maternais.

A primeira esposa de Amaro, imensamente co­movida, correspondia-lhe as manifestações afetivas, afagando-lhe os cabelos.

— Convém-lhe o repouso — afirmou Clarên­cio, amigo —, qualquer recordação agora lhe agra­varia o conflito mental.

Odila desembaraçou-se da companheira, dei­xando-a a sós no descanso justo, e seguiu-nos.

Despedindo-nos, o instrutor aconselhou fosse Zulmira mantida no berçário mais algumas horas.

Desse modo, o corpo denso seria mais amplamente beneficiado pelo sono reparador.

Voltaríamos para reconduzi-la à residência ter­restre, de maneira a garantir-lhe, tanto quanto possível, as melhoras gerais.

Afastámo-nos, assim, para regressar em breve.

Com efeito, transcorrido o tempo que o nosso instrutor julgou indispensável, tornemos ao Lar da Bênção para restituir nossa amiga ao ninho distante.

O relógio marcava nove da manhã, quando a enferma, sob a nossa vigilância, despertou no cor­po físico.

Zulmira, retomando o equipamento cerebral mais denso, não conseguiu articular a lembrança da excursão que se lhe afigurou, então, delicioso sonho.

Guardava a impressão nítida de que revira o filhinho em alguma parte e semelhante certeza lhe restaurara a calma e a confiança.

Sentia-se mais leve, quase feliz.

Evelina, atendendo-lhe o chamado, identificou-lhe as melhoras, rendendo graças a Deus.

A jovem, contente, trouxe Antonina e Lisbela ao quarto. A viúva chegara cedo com a filhinha, com o melhor desejo de cooperar.

A doente saudou-as, satisfeita. Recordava-se, de modo impreciso, da noite anterior e agradeceu o cuidado de que se via objeto. Aceitou o café substancioso que lhe foi trazido e tão reanimada se sentia que, sem qualquer cerimônia, confiou a Antonina as impressões renovadoras de que se via dominada.

Permanecia convicta de que vira Júlio e abra­çara-o... Onde e como? não saberia dizer.

Mas o contentamento que a felicitava era bem o teste­munho de que recolhera naquela noite benefícios reais.

— Felizmente, a transfusão de sangue foi co­roada de pleno êxito! — exclamou Evelina, encantada.

— Sim — disse Antonina, concordando —, a providência terá sido das mais proveitosas, no entanto, estou certa de que dona Zulmira terá re­encontrado o filhinho no plano espiritual, readqui­rindo novo ânimo para a luta.

Aquela asserção confiante foi registrada pela enferma com sincera alegria.

— A senhora julga então possível? — inda­gou a dona da casa, de olhos faiscantes.

— Como não? — aduziu Antonina, confortada — a morte não existe como a entendemos. Do Além, nossos amados que partiram estendem-nos os braços. Tenho igualmente um filho na Vida Maior que vem sendo para mim precioso susten­táculo.

A enferma demonstrou invulgar interesse na conversação.

Há momentos na vida em que somos castiga­dos pela fome de fé e Antonina era uma fonte irradiante de otimismo e firmeza moral.

Evelina e Lisbela retiraram-se para o interior da casa, atentas à limpeza doméstica e as duas amigas passaram a mais íntimo entendimento.

A colaboração de Antonina fora realmente pro­videncial, porque, ao deixarmos o domicilio do fer­roviário, reparámos que Zulmira, de alma restau­rada, ao toque de novas esperanças, mostrava no rosto a tranquilidade segura de abençoada conva­lescença.


38

Casamento feliz

A tempestade de sentimentos, no grupo de almas sob nossa observação, amainou, pouco a pouco...

Júlio, na vida espiritual, aguardava sem so­frimento a ocasião oportuna de regresso ao campo físico, e Zulmira, sob a influência benéfica de An­tonina, renovara-se para a alegria de viver.

Mário Silva, transformado pela orientação da jovem viúva, afeiçoara-se a ela profundamente, ha­bituando-se-lhe ao convívio.

Sólida amizade fizera-se entre as personagens de nossa história.

Semanalmente se visitavam, com intraduzível contentamento para Evelina, que se convertera em pupila de Antonina, tão grande a afinidade que lhes caracterizava as predileções e tendências.

O templo doméstico de Amaro transfigurara-se.

O otimismo infiltrara-se, ali, consolidando mo­radia nos corações.

Passeios domingueiros começavam a surgir, e Silva, agora unido a todos, parecia voltar à juventude nascente.

A camaradagem social modificara-lhe a feição.

Perdera a taciturnidade em que se mergulha a maioria dos solteirões.

Lisbela apegara-se a ele com extremado cari­nho e os irmãos Haroldo e Henrique dele fizeram o confidente de todas as realizações infantis.

Várias vezes Amaro e a esposa acompanharam com amoroso respeito o culto evangélico na resi­dência de Antonina, retirando-se, edificados e fe­lizes. Aquela moça, viúva e digna, cada vez crescia mais na admiração deles e, dentro de suas limi­tadas possibilidades, o ferroviário começou a fazer pela educação inicial dos meninos quanto lhe era possível, associando o enfermeiro em todos os seus empreendimentos em semelhante direção.

Certa manhã de claro domingo, achávamo-nos de passagem no domicílio de Amaro, ainda em ser­viço da saúde de Zulmira, quando Silva veio ao encontro do amigo para aguardar a chegada de Antonina com as crianças. Todo o grupo familiar combinara um almoço, ao ar livre, em parque pró­ximo.

O Ministro, manifestando um olhar de satis­fação, comentou:

— Graças a Jesus, vemos nosso enfermeiro efetivamente modificado. Mais alegre, acessível, bem disposto...

— Dir-se-ia que uma revolução explodiu den­tro dele — asseverei, concordando.

— O amor é assim — acentuou nosso instru­tor, imperturbável —, uma força que transforma o destino.

Talvez porque Hilário ensaiasse malicioso sor­riso, o orientador acrescentou:

— Pude consultar o programa traçado para a reencarnação de Antonina, quando em nossas atividades de socorro ao irmão Leonardo Pires, e sei que ela se comprometeu a colaborar, maternalmente, para que ele obtenha novo corpo na Terra. Na condição de Lola Ibarruri, foi a causa do enve­nenamento que lhe exterminou a paz íntima, falta essa que nossa irmã, na atualidade, espera ressar­cir. Acariciará por filho do coração quem lhe foi outrora companheiro de aventuras, encaminhando-lhe a educação de ordem superior...

O apontamento nos comovia.

Admirado, Hilário obtemperou:

— Silva, desse modo...

Clarêncio, contudo, interrompeu-lhe a frase, completando:

— Silva e Leonardo enlaçaram-se em compli­cadas dívidas um para com o outro. Desde muito tempo, cultivam o espinheiro da aversão recíproca. Induzidos agora às teias da consangüinidade, espe­ramos se reeduquem. Da Lei ninguém foge...

Como se a mente do ferroviário nos sorvesse a conversação, ligando-se a nós pelos fios invisíveis do pensamento, vimos Amaro bater, de leve, nos ombros do companheiro, dizendo-lhe, conselheiral:

— Escuta, Mário. Não me assiste o direito de qualquer interferência em tua vida, entretanto, sen­tindo-te por meu irmão, venho refletindo acerca do futuro... Não te parece que Antonina seja a mu­lher digna do teu ideal de homem de bem?

O interpelado corou, encabulando-se, e porque nada respondesse, o amigo prosseguiu:

— Desde o teu regresso à nossa amizade, ob­servo com respeito crescente a distinção dessa mu­lher, cuja aproximação tem sido uma bênção em nossa casa. Moça ainda, pode fazer a felicidade de um lar que seria um santuário para as tuas expe­riências. Comove-me anotar-lhe os sacrifícios de mãe jovem, quando, com a tua aliança, preservaria a própria saúde, indiscutivelmente tão preciosa a tanta gente. Já me inteirei da posição dela na fá­brica em que trabalha. É querida de todos. Para muitas colegas, tem sido a enfermeira e a irmã abnegada de sempre. Seus chefes veneram-lhe a conduta irrepreensível. Isso é admirável numa viú­va de apenas trinta e dois anos.

Além disso, repa­ro-lhe os filhinhos unidos ao teu coração, como se te pertencessem. Não te dõi vê-la enfrentar sôzi­nllia a batalha em que se consome?

O enfermeiro, algo refeito da estupefação que lhe assomara do Íntimo, replicou, humilde:

— Compreendo... Tenho examinado essa pos­sibilidade, no entanto, não sou mais uma criança...

— Por isso mesmo — revidou o amigo, enco­rajado —‘ a hora presente exige método, reconforto, proteção... Um pouso doméstico é investi­mento dos mais preciosos para o futuro.

— No entanto, considero que o coração no meu peito assemelha-se a um pássaro entorpecido. Sin­to-me francamente incapaz de uma paixão...

— Que tolice! — ajuntou o interlocutor, bem humorado — a felicidade é quase impraticável nas afeições impulsivas que estouram do sentimento àmaneira de champanha ilusória...

E, sorrindo, acentuou:

— O amor dos namorados, com noventa graus à sombra, por vezes é simples fogo de palha, dei­xando apenas cinza. À medida que se me alonga a experiência no tempo, reconheço que o matrimô­nio, acima de tudo, é união de alma com alma. Falo com o discernimento do homem que se con­sorciou por duas vezes. A paixão, meu caro, é res­ponsável por todas as casas de boneca que ofere­cem por aí espetáculos dos mais tristes. A amizade pura é a verdadeira garantia da ventura conjugal. Sem os alicerces da comunhão fraterna e do res­peito mútuo, o casamento cedo se transforma em pesada algema de forçados do cárcere social.

Mário ouvia as reflexões do companheiro, entre enlevado e surpreso.

Sim, pensava, desde que se aproximara de An­tonina, pela primeira vez, nela sentira a mulher ideal, capaz de entender-lhe o coração.

Devotara-se a ela e aos três pequeninos com imenso carinho e inexcedível confiança.

Aquele lar generoso e singelo incorporara-se-lhe à existência.

Se fosse compelido à separação, por qualquer circunstância, indubitAvelmente se sentiria lesado em suas mais caras alegrias...

Enquanto Amaro se confiava às considera­ções do minuto rápido, Silva ia memorando, memorando...

A figura de Antonina penetrava-lhe agora os recessos do coração. O valor e a humildade com que a nobre criatura afrontava os mais difíceis pro­blemas tocavam-lhe as fibras recônditas do ser.

O sacrifício permanente pelos filhos, realizado com sincera alegria, o desprendimento natural das futi­lidades que costumam cegar o sentimento feminino, a solidariedade humana com que sabia pautar as relações com o próximo e, sobretudo, o caráter cristalino de que dava provas em todos os lances da vida comum, apareciam, naquele instante, em sua imaginação, de modo diferente...

Absorto, parecia contemplar as roseiras lá fora, indiferente ao mundo exterior.

Longos momentos passou, assim, revivendo e meditando o passado.

Em seguida, como se despertasse de longa fuga mental, encarou o amigo frente a frente e con­cordou:

— Amaro, tens razão. Não posso desobedecer ao comando da vida.

Não puderam, contudo, prosseguir.

A viúva e os filhinhos chegaram, felizes, pro­vocando a presença de Zulmira e Evelina que vieram à recepção, alegremente.

Deixámos nossos amigos na doce algazarra da intimidade doméstica e voltámos ao nosso templo de serviço.

Muitas indagações assaltavam-nos o pensamen­to, todavia, Clarêncio limitou-se a dizer:

— O tempo é como a onda. Flui e reflui. Da nossa sementeira havemos de colher.

Transcorridos alguns dias, amigos espirituais de Antonina trouxeram-nos as boas novas do con­trato promissor.

Mário e a jovem viúva esperavam efetuar o matrimônio em breves dias.

Visitamos o futuro casal, diversas vezes, antes do enlace, que todos nós aguardávamos, contentes.

Amaro e Zulmira, reconhecidos aos gestos de amizade e carinho que recebiam constantemente dos noivos, ofereceram o lar para a cerimônia que, no dia marcado, se realizou com o ato civil, na mais acentuada simplicidade.

Muitos companheiros de nosso plano acorreram à residência do ferroviário, inclusive as freiras de­sencarnadas que consagravam ao enfermeiro par­ticular estima.

A casa de Zulmira, enfeitada de rosas, regor­gitava de gente amiga.

A felicidade transparecia de todos os sem­blantes.

À noite, na casinha singela de Antonina, reu­niram-se quase todos os convidados, novamente.

Os recém-casados queriam orar, em companhia dos laços afetivos, agradecendo ao Senhor a ven­tura daquele dia inolvidável.

O telheiro humilde jazia repleto de entidades afetuosas e iluminadas, inspirando entusiasmo e esperança, júbilo e paz.

Quem pudesse ver o pequeno lar, em toda a sua expressão de espiritualidade superior, afirmaria estar contemplando um risonho pombal de ale­gria e de luz.

Na salinha estreita e lotada, um velho tio da noiva levantou-se e dispôs-se à oração.

Clarêncio abeirou-se dele e afagou-lhe a cabe­ça que os anos haviam encanecido, e seus engelha­dos lábios, no abençoado calor da inspiração com que o nosso orientador lhe envolvia a alma, pro­nunciaram comovente rogativa a Jesus, suplican­do-lhe que os auxiliasse a todos na obediência aos seus divinos desígnios.

Lágrimas serenas velavam-nos o olhar.

Terminada a prece, Haroldo, Henrique e Lis-bela, vestidos de branco, distribuiram licores e gu­loseimas.

Emocionados, acercámo-nos dos nubentes para as despedidas.

Abraçando-os, vimos junto deles que Eveli­na, no fulgor de sua primavera juvenil, aceitava a proteção carinhosa de um rapaz que a fitava, enamorado.

O Ministro sorriu e explicou-nos:

— Este é Lucas, irmão de Antonina, atual­mente futuroso gráfico na capital paulista, cuja bela formação espiritual associar-se-á, em breve, com a primogênita de Amaro, para a execução das tarefas que a esperam no mundo.

Cortando-nos a possibilidade de excessivas in­quirições, o instrutor acrescentou:

— Tudo é amor no caminho da vida. Apren­damos a usá-lo na glorificação do bem, com o nos­so próprio trabalho, e tudo será bênção.

Retirámo-nos, satisfeitos.

E porque o dever nos convocava a distância, seguimos à frente, tentando assimilar com o nosso abnegado orientador a preciosa conjugação do ver­bo servir.


39

Ponderações

Decorrido um mês sobre os esponsais de Silva, certa noite, por solicitação de Odila, fomos em busca de Zulmira e Antonina para uma reunião íntima, no Lar da Bênção.

Ambas, alegres, revelavam-se enlevadas fora do corpo denso.

Enlaçadas e felizes, contemplavam a Terra e o Céu, tocadas de sublime esperança.

Reduzida assembleia de amigos aguardava-nos no domicílio de Blandina, em meio de cativantes manifestações de carinho e de apreço.

Dentre todas as afeições presentes, sobreleva­va-se Irmã Clara, que viera igualmente ter conosco.

As duas excursionistas, ao contacto daquele ambiente de genuína fraternidade, rendiam-se ao êxtase da paz e da alegria.

Afigurava-se-lhes haver encontrado o paraíso, tão pura se lhes desenhava no semblante a exal­tação interior.

No recinto amplo que Blandina adornara de flores, permutavam-se frases amigas e consolado­ras impressões.

Multiplicadas notas de beleza enriqueciam a conversação, quando Antonina, mais lúcida que a companheira, indagou pela razão do favor de que se viam aquinhoadas.

O reconhecimento transbordava-lhes do cora­ção, à maneira do perfume a evadir-se do frasco.

Clara afagou-a, de leve, e explicou, maternalmente:

— Filhas, em nossa romagem na vida, atra­vessamos épocas de sementeira e fases de colheita.

Na missão da mulher, até agora, vocês receberam do tempo os choques e os enigmas plantados a dis­tância. Com a humildade e a fé, com o bom âni­mo e o valor moral, venceram árduos conflitos que lhes fustigavam as melhores aspirações. Foram dias obscuros do pretérito refletidos no presente, contu­do, agora, asserenou-se-lhes a estrada. A paciên­cia a que se devotaram evitou a formação de nuvens da revolta e o céu se fêz, de novo, claro e alen­tador. É como se o dia renascesse, resplendente de luz, O campo da existência exige mais trabalho e o tempo de semear ressurge alvissareiro.

A palestra em torno cessara de repente.

Os circunstantes buscavam ouvir a benfeitora, significando, com o silêncio, que nela se encarnava para nós a sabedoria.

Depois de ligeiro intervalo, nossa amiga con­tinuou:

— Agora, que a oportunidade favorece a re­novação, é preciso saber reconstruir o destino.

Não olvidemos. A vida reduz-se a triste montão de tre­vas, quando não se faz plena de trabalho. Fujamos à velha feira da lamentação onde a inércia vende os seus frutos amargosos! Para levantar, porém, a escada de nossa ascensão, é imprescindível ba­nhar o espírito, cada dia, na fonte viva do amor, do amor que recompensa a si mesmo com a ale­gria de dar! O Pai Celeste é onipresente, através do amor de que satura o Universo. O sentimento divino é a corrente invisível em que se equilibram os mundos e os seres. Do Trono Excelso nasce o eterno manancial que sustenta o anjo na altura e alimenta o verme no abismo. A mulher é uma taça em que o Todo-Sábio deita a água milagrosa do amor com mais intensidade, para que a vida se engrandeça. Irmãs, sejamos fiéis ao mandato recebido. Em muitas ocasiões, quando nos prende­mos à lama do egoísmo ou ao visco do ódio, po­luímos o líquido sagrado, transformando-o em ve­neno destruidor.

Guardemos cautela, O preço da verdadeira paz reside no sacrifício de nossas exis­tências. Não há sublimação sem renúncia no caste­lo da alma, como não há purificação no cadinho, sem o concurso do fogo que acrisola os metais!...

Clara fitou Antonina, de modo particular, e aduziu:

— Filha, nossa Zulmira compreende hoje, sem necessidade de maior incursão no passado, o santo dever de asilar o pequeno Júlio no santuário ma­terno. -.

Percebemos que a instrutora, registrando o im­perativo do descanso mental para a segunda esposa do ferroviário, que vinha de terminar longas re­fregas na preservação da própria saúde, buscava poupar-lhe exercícios mnemônicos.

— Nossa amiga — prosseguiu, indicando Zul­mira com o olhar — está consciente de que a ma­ternidade a espera de novo, em tempo breve... E você?

Com a irradiante bondade que habitualmente lhe marcava a expressão fisionômica, acentuou:

— Recorda-se das experiências antigas e per­manece atenta às razões que lhe inspiraram o segundo matrimônio?

Ante a surpresa que se estampou no semblante da interpelada, a orientadora, num gesto que nos era conhecido, nas operações magnéticas de Cla­rêncio, acariciou-lhe a fronte, de leve, e repetiu:

— Lembre-se! lembre-se!...

Bafejada pelo poder de Irmã Clara, em deter­minados centros da memória, Antonina fêz-se pá­lida e exclamou, controlando a própria emoção:

— Sim, sou eu a cantora! Revejo, dentro de mim, os quadros que se foram!... Os conflitos no Paraguai!... Uma chácara em Luque!... a família ao abandono!... José Esteves, hoje Mário... Sim, percebo o sentido de minhas segundas núpcias!...

Denotando aflição no olhar, acrescentou:

— E Leonardo? onde está Leonardo, o infeliz?

— Não precisa dilatar reminiscências — disse Clara, bondosa —; não nos achamos num gabinete de experimentos e sim numa reunião fraternal.

Fitando-a significativamente, ajuntou:

— Basta que você se recorde.

Em seguida, repartindo a atenção entre as duas, prosseguiu:

— Brevemente, vocês serão chamadas a novo esforço, no apostolado materno. Zulmira recolherá o nosso Júlio na concha do coração e você, Antonina, restituirá a Leonardo Pires, seu avô e asso­ciado de destino, o tesouro do corpo terrestre. No santuário doméstico, as afeições transviadas se re­compõem, a fim de que possamos demandar o futuro, ao clarão da felicidade.

Filhas, ninguém avança sem saldar as próprias contas com o pas­sado. Paguemos, desse modo, os débitos que nos aprisionam aos círculos inferiores da vida, aprovei­tando o tempo de detenção no resgate, em maior aprimoramento de nós mesmas. Amemos, aperfei­çoando-nos!

Identifiquemos no lar humano o cami­nho de nossa regeneração! A família consanguínea na Terra é o microcosmo de obrigações salvadoras em que nos habilitamos para o serviço à família maior que se constitui da Humanidade inteira, O parente necessitado de tolerância e carinho representa o ponto difícil que nos cabe vencer, valen­do-nos dele para melhorar-nos em humildade e compreensão. Um pai incompreensivo, um esposo áspero ou um filho de condução inquietante, sim­bolizam linhas de luta benéfica, em que podemos exercitar a paciência, a doçura e o devotamento até ao sacrifício!... Especialmente, no tocante aos filhos, não nos esqueçamos de que pertencem a Deus e à vida, acima de tudo!... Na esfera carnal, a Providência Divina nos sela a memória, no favor do renascimento, envolvendo-nos com o sopro re­novador de abençoada esperança! Por isso mesmo, não nos cabe olvidar que os filhos são sempre la­ços preciosos da existência, requisitando-nos equi­líbrio e discernimento em todas as decisões... Para desobrigar-nos da grande tarefa que a maternidade nos impõe, é imprescindível entender-lhes o psi­quismo diferente do nosso, a exigir, muitas vezes um tipo de felicidade que não se harmoniza com o nosso modo de ser. Saibamos, assim, prepará-los, sem egoísmo, para o destino que lhes compete! O carinho escravizante assemelha-se a um mel en­venenado, enredando-nos na sombra. Conservemos nosso espírito arejado pela justiça, para que a nos­sa afetividade seja uma bênção com a possibilidade de educar os que nos cercam, na escola do trabalho salutar!...

Na pausa que surgiu, espontânea, Zulmira in­dagou com simplicidade:

— Abnegada benfeitora, como agir para solu­cionar os problemas com segurança?

— Vocês superaram dias alarmantes de crise espiritual — informou a orientadora, prestimosa

— e conquistaram o ensejo de reestruturação do próprio destino. Agora, repitamos, é tempo de se­mear. Valorizemos a oportunidade de reaproxima­ção. São vocês dois núcleos de força, suscetíveis de operar valiosas transformações nos grupos do­mésticos a que se ajustam. Façamos da amizade o entendimento fraterno que tudo compreende e tolera, movimenta e ajuda, na extensão do Sumo Bem. A vizinhança e a convivência, no fundo, são dons que o Senhor nos concede a benefício de nosso próprio reajuste.

Porque Zulmira e Antonina ensaiassem per­guntas novas, Clara acentuou:

— Não temam. A prece é o fio invisível de nossa comunhão com o Plano Divino e, à luz da oração, viveremos todos juntos. Em todas as dú­vidas, prefiramos para nós a renunciação construtivo. Situar a responsabilidade de nosso lado é facilitar a solução dos problemas.

Sorridente, rematou:

— Não nos esqueçamos do privilégio de servir. Logo após, o pequeno Júlio foi trazido ao recinto por vasto cortejo de gárrulas crianças.

Risos e lágrimas se misturaram no louvor àBondade Divina.

Depois de algumas horas consagradas ao re­conforto, escoltámos, de novo, as duas mães, recon­duzindo-as ao campo físico para o sublime labor no lar terrestre.


40

Em prece

Um ano depois do casamento de Antonina, dirigimo-nos todos juntos à residência do ferroviário, na qual tantas vezes nos reuníramos entre a prece e a expectação.

A vida marchara como sempre...

Júlio e Leonardo haviam renascido em paz, quase que ao mesmo tempo, trazendo ao mundo elevados programas de serviço. Recém-chegados àTerra, sorriam ingênuamente para nós, conchega-dos ao colo materno.

Amaro e Zulmira, Silva e Antonina, cônscios das obrigações que haviam assumido, prosseguiam juntos, entrelaçados na mesma compreensão fra­ternal.

O singelo domicílio mostrava-se magnificamen­te florido, superlotado de amigos sorridentes.

Lucas e Evelina celebravam os esponsais.

Nos dois planos, entre encarnados e desencar­nados, tudo era esperança e alegria, paz e amor.

Os noivos fitavam-se venturosos e Odila, na função de sacerdotisa do lar, ia e vinha, pondo e dispondo na direção do acontecimento.

Entardecia, quando o juiz, com a felicidade de todos, lido o contrato de matrimônio, pronunciou o clássico «declaro-vos casados em nome da Lei.

Oscularam-se os nubentes com inexcedível afe­to e vimos espantados que Odila, em muda oração, se transfigurava, coroando-se de luz. Desvelou os olhos que se nos afiguraram mais lúcidos e con­templou a filha, embevecidamente.

Obedecendo, porém, a secreto impulso, ao in­vés de caminhar na direção de Evelina, dirigiu-se para Zulmira, enlaçando-a em lágrimas.

Havia naquele gesto tanto carinho natural e tanto reconhecimento espontâneo, que intensa emo­tividade nos tomou de assalto. Transfundiam-se ali dois corações maternos, na mesma vibração de paz, haurida na vitória interior pelo dever bem cumprido.

Envolta na faixa de ternura em que se via mergulhada, a segunda esposa de Amaro começou a chorar, possuida de inexprimível contentamento, como se inarticulada melodia do Céu lhe invadisse, por inteiro, o coração.

Ali mesmo, homem tocado de fé viva, o dono da casa rogou a Antonina pronunciasse o agrade­cimento a Jesus.

A esposa de Silva não vacilou.

Cerrando as pálpebras, parecia procurar-nos em espirito, qual antena vibrátil, atraindo a onda sonora.

Clarêncio abeirou-se dela e, tocando-lhe a fron­te com a destra, entrou em meditação.

Suavemente impulsionada pelo Ministro, nossa amiga orou com sentida inflexão de voz:

Amado Jesus, abençoa a nossa hora fes­tiva que te oferecemos em sinal de carinho e gratidão.

Ajuda aos nossos companheiros que hoje se consorciam, convertendo-Lhes a esperança em doce realidade.

Ensina-nos, Senhor, a receber no lar a cartilha de luz que nos deste no mundo —generosa escola de nossos corações para a vida imortal.

Faze-nos compreender, no campo em que lutamos, a rica sementeira de renovação e fra­ternidade em que a todos nos cabe aprender e servir.

Que possamos, enfim, ser mais irmãos uns dos outros, no cultivo da paz, pelo esforço no bem.

Tu que consagraste a ventura doméstica, nas bodas de Caná, transforma a água viva de nossos sentimentos em dons inefáveis de trabalho e alegria.

Reflete o teu amor na simplicidade de nossa existência, como o Sol se retrata no fio dágua humilde.

Guia-nos, Mestre, para o teu coração que anelamos eterno e soberano sobre os nossos destinos, e que a tua bondade comande a nos­sa vida é o nosso voto ardente, agora e para sempre. Assim seja.

Calara-se Antonina.

Doce exaltação emotiva pairava em todos os semblantes.

Odila, sensibilizada, reunia Amaro e Zulmira nos braços, quais se lhe fossem filhos do coração.

Fitei a esposa de Silva, de quem o Ministro se afastara, e lembrei a noite em que lhe visitei o domicílio pela primeira vez.

Nunca me esqueci da excursão em que fomos designados para acompanhá-la em visitação ao fi­lhinho, quando ignorávamos totalmente a importân­cia de sua participação no drama que iríamos viver.

Dirigi-me ao instrutor e indaguei se ele, Cla­rêncio, conhecia a posição de nossa amiga, ao tempo de nosso primeiro contacto.

— Sim, sim... — respondeu, gentil —, mas não lhes dei a conhecer antecipadamente a significação dela no romance vivo que estamos acompa­nhando, porque todos nós, meu amigo, precisamos reconhecer que o trabalho é a nossa lição. Mova­mos a mente no serviço que nos compete e adqui­riremos a chave de todos os enigmas.

O apontamento era dos mais expressivos, mas não pude delongar a conversação, de vez que Irmã Clara, agora abraçada a Odila, convidava-nos ao regresso.

Entre adeuses cariciosos, Lucas e Evelina ha­viam tomado o auto que os conduziria a experiências novas na capital bandeirante.

A festa alcançara o fim...

Ao lado de nosso orientador, perguntei, reve­rente:

— Nossa história terminará, assim, com um casamento risonho, à moda de um filme bem acabado?

Clarêncio estampou o sorriso de sua velha sa­bedoria e falou:

— Não, André. A história não acabou, O que passou foi a crise que nos ofereceu motivo a tantas lições. Nossos amigos, pelo esforço admirável com que se dedicaram ao reajuste, dispôem agora de alguns anos de paz relativa, nos quais poderão re­plantar o campo do destino. Entretanto, mais tar­de, voltarão por aqui a dor e a prova, a enfermi­dade e a morte, conferindo o aproveitamento de cada um. É a luta aperfeiçoando a vida, até que a nossa vida se harmonize, sem luta, com os Desíg­nios do Senhor.

O Ministro não logrou prosseguir.

Nossa caravana, constituída por dezenas de companheiros, iniciara a volta.

A viagem, diante do firmamento que acendia flamejantes lumes, não podia ser mais bela...

Chegados, porém, ao Lar da Bênção, notámos que Odila chorava copiosamente.

Aquela alma varonil de mulher vencera a ba­talha consigo mesma, no entanto, não parecia satisfeita com o próprio triunfo. Clara conseguira-lhe brilhante posição de trabalho nas esferas mais altas, contudo, nossa heroína revelava-se em penosa Consternação.

Penetrando o santuário de Blandina, onde tan­tas vezes nos reuníramos para examinar os proble­mas que nos afligiam de perto, o Ministro abraçou-a e recomendou, paternal:

— Odila, enquanto celebramos tua vitória, dize que céu procuras!

Ela caminhou para Irmã Clara e osculou-lhe a destra, num gesto mudo de reconhecimento e, depois, voltando-se para o nosso instrutor, respon­deu com humildade:

— Devotado benfeitor, meu lar terrestre é o meu paraíso...

— Mas não ignoras que o domicílio do mundo não te pertence mais.

— Sim — concordou a interlocutora, respei­tosa —, sei disso, entretanto, desejo servir a ele, sem que ele seja meu... Amo meu esposo por ines­quecível companheiro da vida eterna, abençoando a admirável mulher a quem ele agora pertence e que passei a querer por filha de minha ternura... Amo meus filhos, apesar de saber que não podem presentemente sentir o calor de meu coração... Deus sabe que hoje amo sem o propósito de ser amada, que me proponho oferecer-me sem retri­buição, a fim de aprender com Jesus a dar sem receber...

A emoção embargou-lhe a voz.

De nosso lado, tínhamos nossos olhos mareja­dos de pranto.

Visivelmente comovido, Clarêncio levantou-lhe a fronte submissa, afagou-lhe os cabelos e, colo­cando-lhe uma flor de luz sobre o peito, exclamou:

— Onde permanece o nosso amor, aí fulgura o céu que sonhamos. Mereces o paraíso que pro­curas. Retorna, Odila, ao teu lar quando quiseres. Sê para o teu esposo e para as almas que o seguem o astro de cada noite e a bênção de cada dia! O amor puro outorga-te esse direito. Volta e ama... E, quando te ergueres do vale humano, teu coração será como faixa de sol, trazendo ao Cristo os co­rações que pastorearás no campo imenso da vida!

Odila ajoelhou-se e beijou-lhe as mãos vene­ráveis.

Nesse instante, funda saudade assomou-me àalma opressa.

Experimentei a estranha sensação do pai que busca inutilmente os filhos arrebatados ao seu carinho. Ave distante da paisagem que a vira nascer, vi-me atormentado pelo anseio de recuperar, de imediato, o meu ninho...

Lágrimas quentes derramavam-se de meu co­ração pela concha dos olhos e, temendo perturbar a harmonia reinante, demandei o jardim próximo e, sôzinho, fitei o firmamento, pintalgado de es­trelas...

O vento que soprava célere parecia dizer-me:

— «Confia!...» O perfume das flores, de passa­gem por mim, apelava em silêncio: — “Não te detenhas!” E as constelações faiscantes, pendendo da Altura, davam-me a impressão de acenos da luz eterna, concitando-me sem palavras: — «Luta e aperfeiçoa-te! A plenitude do teu amor brilhará também um dia!... »

Então, numa prece de agradecimento ao Pai Celestial, percebi que meu espírito pacificado sorria, de novo, ao toque inefável de sublime espe­rança.

Fim