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sábado, 29 de janeiro de 2011

Libertação-Francisco Cândido Xavier

LIBERTAÇÃO

FRANCISCO CÂNDIDO XAVIER

DITADO PELO ESPÍRITO ANDRÉ LUIZ

(7) .


Série André Luiz

1 - Nosso Lar

2 - Os Mensageiros

3 - Missionários da Luz

4 - Obreiros da Vida Eterna

5 - No Mundo Maior

6 - Agenda Cristã

7 - Libertação

8 - Entre a Terra e o Céu

9 - Nos Domínios da Mediunidade

10 - Ação e Reação

11 - Evolução em Dois Mundos

12 - Mecanismos da Mediunidade

13 - Conduta Espírita

14 - Sexo e Destino

15 - Desobsessão

16 - E a Vida Continua...


 


Ante as portas livres

Ante as portas livres de acesso ao trabalho cristão e ao conhecimento salutar que André Luiz vai desvelando, recordamos prazerosamente a an­tiga lenda egípcia do peixinho vermelho.

No centro de formoso jardim, havia grande lago, adornado de ladrilhos azul-turquesa.

Alimentado por diminuto canal de pedra, es­coava suas águas, do outro lado, através de grade muito estreita.

Nesse reduto acolhedor, vivia toda uma comu­nidade de peixes, a se refestelarem, nédios e satis­feitos, em complicadas locas, frescas e sombrias. Elegeram um dos concidadãos de barbatanas para os encargos de rei, e ali viviam, plenamente des­preocupados, entre a gula e a preguiça.

Junto deles, porém, havia um peixinho verme­lho, menosprezado de todos.

Não conseguia pescar a mais leve larva, nem refugiar-se nos nichos barrentos.

Os outros, vorazes e gordalhudos, arrebatavam para si todas as formas larvárias e ocupavam, dis­plicentes, todos os lugares consagrados ao descanso.

O peixinho vermelho que nadasse e sofresse. Por isso mesmo era visto, em correria constante, perseguido pela canícula ou atormentado de fome.

Não encontrando pouso no vastíssimo domi­cilio, o pobrezinho não dispunha de tempo para muito lazer e começou a estudar com bastante interesse.

Fêz o inventário de todos os ladrilhos que enfeitavam as bordas do poço, arrolou todos os buracos nele existentes e sabia, com precisão, onde se reuniria maior massa de lama por ocasião de aguaceiros.

Depois de muito tempo, à custa de longas perquirições, encontrou a grade do escoadouro.

A frente da imprevista oportunidade de aven­tura benéfica, refletiu consigo:

— “Não será melhor pesquisar a vida e co­nhecer outros rumos?”

Optou pela mudança.

Apesar de macérrimo pela abstenção completa de qualquer conforto, perdeu várias escamas, com grande sofrimento, a fim de atravessar a passagem estreitíssima.

Pronunciando votos renovadores, avançou, oti­mista, pelo rego d’água, encantado com as novas paisagens, ricas de flores e sol que o defrontavam, e seguiu, embriagado de esperança ...

Em breve, alcançou grande rio e fêz inúmeros conhecimentos.

Encontrou peixes de muitas famílias diferen­tes, que com ele simpatizaram, Instruindo-o quanto aos percalços da marcha e descortinando-lhe mais fácil roteiro.

Embevecido, contemplou nas margens homens e animais, embarcações e pontes, palácios e veículos, cabanas e arvoredo.

Habituado com o pouco, vivia com extrema simplicidade, jamais perdendo a leveza e a agilidade naturais.

Conseguiu, desse modo, atingir o oceano, ébrio de novidade e sedento de estudo.

De Inicio, porém, fascinado pela paixão de observar, aproximou-se de uma baleia para quem toda a água do lago em que vivera não seria mais que diminuta ração; impressionado com o espetáculo, abeirou-se dela mais que devia e foi tragado com os elementos que lhe constituíam a primeira refeição diária.

Em apuros, o peixinho aflito orou ao Deus dos Peixes, rogando proteção no bojo do monstro e, não obstante as trevas em que pedia salvamento, sua prece foi ouvida, porque o valente cetáceo começou a soluçar e vomitou, restituindo-o às correntes ma­rinhas.

O pequeno viajante, agradecido e feliz, pro­curou companhias sim páticas e aprendeu a evitar os perigos e tentações.

Plenamente transformado em suas concepções do mundo, passou a reparar as infinitas riquezas da vida. Encontrou plantas luminosas, animais es­tranhos, estrelas móveis e flores diferentes no seio das águas. Sobretudo, descobriu a existência de muitos peixinhos, estudiosos e delgados tanto quan­to ele, junto dos quais se sentia maravilhosamente feliz.

Vivia, agora, sorridente e calmo, no Palácio de Coral que elegera, com centenas de amigos, para residência ditosa, quando, ao se referir ao seu co­meço laborioso, veio a saber que sômente no mar as criaturas aquáticas dispunham de mais sólida garantia, de vez que, quando o estio se fizesse mais arrasador, as águas de outra altitude conti­nuariam a correr para o oceano.

O peixinho pensou, pensou... e sentindo imen­sa compaixão daqueles com quem convivera na in­fância, deliberou consagrar-se à obra do progresso e salvação deles.

Não seria justo regressar e anunciar-lhes a verdade? não seria nobre ampará-los, prestando-lhes a tempo valiosas informações? Não hesitou.

Fortalecido pela generosidade de irmãos ben­feitores que com ele viviam no Palácio de Coral, empreendeu comprida viagem de volta.

Tornou ao rio, do rio dirigiu-se aos regatos e dos regatos se encaminhou para os canaizinhos que o conduziram ao primitivo lar.

Esbelto e satisfeito como sempre, pela vida de estudo e serviço a que se devotava, varou a grade e procurou, ansiosamente, os velhos companheiros.

Estimulado pela proeza de amor que efetuava, supôs que o seu regresso causasse surpresa e entu­siasmo gerais. Certo, a coletividade inteira lhe cele­braria o feito, mas depressa verificou que ninguém se mexia.

Todos os peixes continuavam pesados e ociosos, repimpados nos mesmos ninhos lodacentos, prote­gidos por flores de lótus, de onde saiam apenas para disputar larvas, moscas ou minhocas desprezíveis.

Gritou que voltara a casa, mas não houve quem lhe prestasse atenção, porqüanto ninguém, ali, ha­via dado pela ausência dele.

Ridicullzado, procurou, então, o rei de guelras enormes e comunicou-lhe a reveladora aventura.

O soberano, algo entorpecido pela mania de grandeza, reuniu o povo e permitiu que o mensageiro se explicasse.

O benfeitor desprezado, valendo-se do ensejo, esclareceu, com ênfase, que havia outro mundo liquido, glorioso e sem fim. Aquele poço era uma Insignificância que podia desaparecer, de momento para outro. Além do escoadouro próximo desdobra­vam-se outra vida e outra experiência. Lá fora, corriam regatos ornados de flores, rios caudalosos repletos de seres diferentes e, por fim, o mar, onde a vida aparece cada vez mais rica e mais surpreen­dente.

Descreveu o serviço de tainhas e salmões, de trutas e esqüalos. Deu notícias do peixe-lua, do peixe-coelho e do galo-do-mar. Contou que vira o céu repleto de astros sublimes e que descobrira árvores gigantescas, barcos imensos, cidades praiei­ras, monstros temíveis, jardins submersos, estrelas do oceano e ofereceu-se para conduzi-los ao Palácio de Coral, onde viveriam todos, prósperos e tran­quilos. Finalmente os informou de que semelhante felicidade, porém, tinha igualmente seu preço. De­veriam todos emagrecer, convenientemente, absten­do-se de devorar tanta larva e tanto verme nas locas escuras e aprendendo a trabalhar e estudar tanto quanto era necessário à venturosa jornada.

Assim que terminou, gargalhadas estridentes coroaram-lhe a preleção.

Ninguém acreditou nele.

Alguns oradores tomaram a palavra e afirma­ram, solenes, que o peixinho vermelho delirava, que outra vida além do poço era francamente impossí­vel, que aquela história de riachos, rios e oceanos era mera fantasia de cérebro demente e alguns chegaram a declarar que falavam em nome do Deus dos Peixes, que trazia os olhos voltados para eles ünicamente.

O soberano da comunidade, para melhor iro­nizar o peixinho, dirigiu-se em companhia dele até à grade de escoamento e, tentando, de longe, a tra­vessia, exclamou, borbulhante:

— “Não vês que não cabe aqui nem uma só de minhas barbatanas? Grande tolo! vai-te daqui! não nos perturbes o bem-estar... Nosso lago é o centro do Universo... Ninguém possui vida igual à nossa! ..

Expulso a golpes de sarcasmo, o peixinho rea­lizou a viagem de retorno e instalou-se, em definitivo, no Palácio de Coral, aguardando o tempo.

Depois de alguns anos, apareceu pavorosa e devas tadora seca.

As águas desceram de nivel. E o poço onde vi­viam os peixes pachorrentos e vaidosos esvaziou-se, compelindo a comunidade inteira a perecer, atolada na lama...

O esforço de André Luis, buscando acender luz nas trevas, é semelhante à missão do peixinho vermelho.

Encantado com as descobertas do caminho in­finito, realizadas depois de muitos conflitos no so­frimento, volve aos recôncavos da Crosta Terrestre, anunciando aos antigos companheiros que, além dos cubículos em que se movimentam, resplandece outra vida, mais intensa e mais bela, exigindo, porém, acurado aprimoramento individual para a traves­sia da estreita passagem de acesso às claridades da sublimação.

Fala, informa, prepara, esclarece ...

Há, contudo, muitos peixes humanos que sor­riem e passam, entre a mordacidade e a Indiferença, procurando locas passageiras ou pleiteando larvas temporárias.

Esperam um paraíso gratuito com milagrosos deslumbramentos depois da morte do corpo.

Mas, sem André Luiz e sem nós, humildes ser­vidores de boa vontade, para todos os caminheiros da vida humana pronunciou o Pastor Divino as in­deléveis palavras: — “A cada um será dado de acordo com as suas obras.”

EMMANUEL

Pedro Leopoldo, 22 de fevereiro de 1949.


1

Ouvindo elucidações

No vasto salão do educandário que nos reunia, o Ministro Flácus, fixando em nós o olhar saturado de doce magnetismo, convidava-nos a preciosas me­ditações.

Congregamo-nos, ali, sômente algumas dezenas de companheiros, de modo a registrar-lhe as instru­ções edificantes. E, sem dúvida, a preleção reves­tia-se de profundo interesse.

Podíamos perguntar à vontade, dentro do as­sunto, e guardar todas as informações compatíveis com o novo trabalho que nos cumpria desempenhar.

Até então, ouvira comentários alusivos a colô­nias purgatoriais, perfeitamente organizadas para o trabalho expiatório a que se destinam, arreba­nhando milhares de criaturas arraigadas no mal; entretanto, agora, o Instrutor Gúbio, que se man­tinha silencioso, em nossa companhia, concedera-nos permissão de acompanhá-lo a enorme centro dessa espécie.

Interessados na palavra fluente e primorosa do orador, seguíamos o curso das elucidações com justificável expectação de aluno que não deseja perder um til do ensinamento, observando que a serenidade e a atenção transpareciam no rosto de todos os aprendizes, considerando-se que todos, no recinto, éramos candidatos ao serviço de socorro aos irmãos ignorantes, atormentados nas sombras...

Senhoreando-nos o espírito, o Ministro pros­seguia, satisfeito:

— Os superiores que se disponham a traba lhar em benefício dos inferiores, em ação persistente e substancial, não lhes podem utilizar as armas, sob pena de se precipitarem no baixo nível deles. A severidade pertencerá ao que instrui, mas o amor é o companheiro daquele que serve.

Sabemos que a educação, na maioria das vezes, parte da periferia para o centro; contudo, a reno­vação, traduzindo aperfeiçoamento real, movimen­ta-se em sentido inverso. Ambos os impulsos, to­davia, são alimentados e controlados pelos poderes quase desconhecidos da mente.

O espírito humano lida com a força mental, tanto quanto maneja a eletricidade, com a diferença, porém, de que se já aprende a gastar a segunda, no transformismo incessante da Terra, mal conhece a existência da primeira, que nos preside a todos os atos da vida.

A rigor, portanto, não temos círculos infer­nais, de acordo com os figurinos da antiga teologia, onde se mostram indefinidamente gênios satânicos de todas as épocas e, sim, esferas obscuras em que se agregam consciências embotadas na ignorância, cristalizadas no ócio reprovável ou confundidas no eclipse temporário da razão. Desesperadas e in­submissas, criam zonas de tormentos reparadores. Semelhantes criaturas, no entanto, não se rege­neram à força de palavras.

Necessitam de amparo eficiente que lhes modifique o tom vibratório, ele­vando-lhes o modo de sentir e pensar.

Eminentes pensadores do mundo traçam dire­trizes à salvação das almas; mas somos de parecer que possuímos suficiente número de roteiros nesse sentido, em todos os setores do conhecimento ter­restre. Reclamamos, na atualidade, quem ajude o pensamento do homem na direção do Alto. Em­preender o tentame, incentivando-se tão somente os valores culturais, seria consagrar a tecnocracia, que procura a simples mecanização da vida, destruin­do-lhe as sementes gloriosas de improvisação, de infinito e de eternidade.

Grandes políticos e veneráveis condutores nun­ca se ausentaram do mundo.

Passam pela multidão, sacudindo-a ou arregi­mentando-a. É forçoso reconhecer, porém, que a organização humana, por si só, não atende às exi­gências do ser imperecível.

Péricles, o estadista que legou seu nome a um século, realiza edificante trabalho educativo, junto dos gregos; entretanto, não lhes atenua a belico­sidade e os pruridos de hegemonia, sucumbindo ao assédio de aflitivo desgosto.

Alexandre, o conquistador, organiza vastíssi­mo império, estabelecendo uma civilização respeitável; no entanto, não impede que os seus generais prossigam em conflitos sanguinolentos, difundindo o saque e a morte.

Augusto, o Divino, unifica o Império Romano em sólidos alicerces, concretizando avançado pro­grama político em benefício de todos os povos, mas não consegue banir de Roma o desvario pela dominação a qualquer preço.

Constantino, o Grande, advogado dos cristãos indefesos, oferece novo padrão de vida ao Planeta; contudo, não modifica as disposições detestáveis de quantos guerreavam em nome de Deus.

Napoleão, o ditador, impõe novos métodos de progresso material, em toda a Terra; mas não se furta, ele próprio, às garras da tirania, pela sim­ples ganância da posse.

Pasteur, o cientista, defende a saúde do corpo humano, devotando-se, abnegado, ao combate silen­cioso contra a selva microbiana; todavia, não pode evitar que seus contemporâneos se destruam reci­procamente em disputas incompreensíveis e cruéis.

Permanecemos diante de um mundo civilizado na superfície, que reclama não só a presença daqueles que ensinam o bem, mas principalmente da­queles que o praticam.

Sobre os mananciais da cultura, nos vales da Terra, é imprescindível que desçam as torrentes da compaixão do Céu, através dos montes do amor e da renúncia.

Cristo não brilha apenas pelo ensino subli­mado. Resplandece na demonstração. Em compa­nhia d’Ele, é indispensável mantenhamos a coragem de amparar e salvar, descendo aos recessos do abismo.

Não longe de nossa paz relativa, em círculos escuros de desencanto e desesperação, misturam-se milhões de seres, conclamando comiseração... Por­que não acender piedosa luz, dentro da noite em que se mergulham, desorientados? porque não se­mear esperança entre corações que abdicaram da fé em si mesmos?

A frente, pois, de imensas coletividades em dolorosa petição de reajustamento, faz-se inadiável o auxílio restaurador.

Somos entidades ainda infinitamente humildes e imperfeitas para nos candidatarmos, de pronto, à condição dos anjos.

Comparada à grandeza, inabordável para nós, de milhões de sóis que obedecem a leis soberanas e divinas, em pleno Universo, a nossa Terra, com todas as esferas de substância ultrafísica que a circundam, pode ser considerada qual laranja mi­núscula, perante o Himalaia, e nós outros, confron­tados com a excelsitude dos Espíritos Superiores, que dominam na sabedoria e na santidade, não passamos, por enquanto, de bactérias, controladas pelo impulso da fome e pelo magnetismo do amor. Entretanto, guindados a singelas culminânciaS da inteligência, somos micróbios que sonham com o crescimento próprio para a eternidade.

Enquanto o homem, nosso irmão, desintegra assombrado as formações atômicas, nós outros, dis­tanciados do corpo denso, estudamos essa mesma energia através de aspectos que a ciência terrestre, por agora, mal conseguiria imaginar. Caminheiros, porém, que somos do progresso infinito, principia­mos apenas, ele e nós, a sondar a força mental, que nos condiciona as manifestações nos mais variados planos da natureza.

Encarcerados ainda na lei de retorno, temos efetuado multisseculares recapitulações, por milênios consecutivos.

Expressando-nos coletivamente, sabemos hoje que o espírito humano lida com a razão há, pre­cisamente, quarenta mil anos... Todavia, com o mesmo furioso ímpeto com que o homem de Nean­dertal aniquilava o companheiro, a golpes de sílex, o homem da atualidade, classificada de gloriosa era das grandes potências, extermina o próprio irmão a tiros de fuzil.

Os investigadores do raciocínio, ligeiramente tisnados de princípios religiosos, identificam tão somente, nessa anomalia sinistra, a renitência da imperfeição e da fragilidade da carne, como se a carne fôsse permanente índividuação diabólica, es­quecidos de que a matéria mais densa não é senão o conjunto das vidas inferiores incontáveis, em processo de aprimoramento, crescimento e liber­tação.

Nos campos da Crosta Planetária, queda-se a inteligência, qual se fora anestesiada por perigo-soa narcóticos da ilusão; no entanto, auxiliá-la-emos a sentir e reconhecer que o espírito permanece vi­brando em todos os ângulos da existência.

Cada espécie de seres, do cristal até o homem, e do homem até o anjo, abrange inumeráveis famí­lias de criaturas, operando em determinada fre­quência do Universo. E o amor divino alcança-nos a todos, à maneira do Sol que abraça os sábios e os vermes.

Todavia, quem avança demora-se em ligação com quem se localiza na esfera próxima.

O domínio vegetal vale-se do império mineral para sustentar-se e evoluir. Os animais aproveitam os vegetais na obra de aprimoramento. Os ho­mens se socorrem de uns e outros para crescerem mentalmente e prosseguir adiante...

Atritam os reinos da vida, conhecidos na Ter­ra, entre si.

Torturam-se e entredevoram-Se, através de ru­des experiências, a fim de que os valores espirituais se desenvolvam e resplandeçam, refletindo a divi­na luz...

Nesse ponto, o esclarecido Ministro fêz longa pausa, fitou-nos, bondoso, e continuou:

— Mas... além do principado humano, para lá das fronteiras sensoriais que guardam ciosamente a alma encarnada, amparando-a com limi­tada visão e benéfico esquecimento, começa vasto império espiritual, vizinho dos homens. Ai se agi­tam milhões de Espíritos imperfeitos que partilham, com as criaturas terrenas, as condições de habita­bilidade da Crosta do Mundo. Seres humanos, si­tuados noutra faixa vibratória, apóiam-se na mente encarnada, através de falanges incontáveis, tão se­miconscientes na responsabilidade e tão incompletas na virtude, quanto os próprios homens.

A matéria, congregando milhões de vidas em­brionárias, é também a condensação da energia, atendendo aos imperativos do “eu” que lhe presi­de à destinação.

Do hidrogênio às mais complexas unidades atômicas, é o poder do espírito eterno a alavanca diretora de prótons, nêutrons e eléctrons, na es­trada infinita da vida. Demora-se a inteligência corporificada no círculo humano em transitória região, adaptada às suas exigências de progresso e aperfeiçoamento, dentro da qual o protoplasma lhe faculta instrumentos de trabalho, crescimento e expansão. Entretanto, nesse mesmo espaço, alon­ga-se a matéria noutros estados, e, nesses outros estados, a mente desencarnada, em viagem para o conhecimento e para a virtude, radica-se na esfera física, buscando dominá-la e absorvê-la, estabele­cendo gigantesca luta de pensamento que ao homem comum não é dado calcular.

Frustrados em suas aspirações de vaidoso do­mínio no domicílio celestial, homens e mulheres de todos os climas e de todas as civilizações, depois da morte, esbarram nessa região em que se prolon­gam as atividades terrenas e elegem o instinto de soberania sobre a Terra por única felicidade digna do impulso de conquistar. Rebelados filhos da Providência, tentam desacreditar a grandeza divina, estimulando o poder autocrático da inteligência in­submissa e orgulhosa e buscam preservar os círcu­los terrestres para a dilatação indefinida do ódio e da revolta, da vaidade e da criminalidade, como se o Planeta, em sua expressão inferior, lhes fôsse paraíso único, ainda não integralmente submetido a seus caprichos, em vista da permanente discórdia reinante entre eles mesmos. É que, confinados ao berço escabroso da ignorância em que o medo e a maldade, com inquietudes e perseguições recíprocas, lhes consomem as forças e lhes inutilizam o tempo, não se apercebem da situação dolorosa em que se acham.

Fora do amor verdadeiro, toda união é tempo­rária e a guerra será sempre o estado natural daqueles que perseveram na posição de indisciplina.

Um reino espiritual, dividido e atormentado, cerca a experiência humana, em todas as direções, intentando dilatar o domínio permanente da tirania e da força.

Sabemos que o Sol opera por meio de radia­ções, nutrindo, maternalmente, a vida a milhões de quilômetros. Sem nos referirmos às condições da matéria em que nos movimentamos, lembremo-nos de que, em nosso sistema, as existências mais rudi­mentares, desde os cumes iluminados aos recônca­vos das trevas, estão sujeitas à sua influenciação.

Como acontece aos corpos gigantescos do Cos­mos, também nós outros, espiritualmente, cami­nhamos para o zênite evolutivo, experimentando as radiações uns dos outros. Nesse processo multifor­me de intercâmbio, atração, imantação e repulsão, aperfeiçoam-se mundos e almas, na comunidade universal.

Dentro de semelhante realidade, toda a nossa atividade terrestre se desdobra num campo de influências que nem mesmo nós, os aprendizes huma­nos em círculos mais altos, poderíamos, por en­quanto, determinar.

Incapacitados de prosseguir além do túmulo, a caminho do Céu que não souberam conquistar, os filhos do desespero organizam-se em vastas colônias de ódio e miséria moral, disputando, entre si, a do­minação da Terra. Conservam, igualmente, quanto ocorre a nós mesmos, largos e valiosos patrimônios intelectuais e, anjos decaídos da Ciência, buscam, acima de tudo, a perversão dos processos divinos que orientam a evolução planetária.

Mentes cristalizadas na rebeldia, tentam sola-par, em vão, a Sabedoria Eterna, criando quistos de vida inferior, na organização terrestre, entrin­cheiradas nas paixões escuras que lhes vergastam as consciências. Conhecem inumeráveis recursos de perturbar e ferir, obscurecer e aniquilar. Escravizam o serviço benéfico da reencarnação em grandes setores expiatórios e dispõem de agentes da dis­córdia contra todas as manifestações dos sublimes propósitos que o Senhor nos traçou às ações.

Os homens terrenos que, semi-libertos do cor­po, lhes conseguiram identificar, de algum modo, a existência, recuaram, tímidos e espavoridos, espa­lhando entre os contemporâneos as noções de um inferno punitivo e infindável, encravado em tene­brosas regiões além da morte.

A mente infantil da Terra, embalada pela ter­nura paternal da providência, através da teolo­gia comum, nunca pôde apreender, mais intensivamente, a realidade espiritual que nos governa os destinos.

Raros compreendem na morte simples modifi­cação de envoltório, e escasso número de pessoas, ainda mesmo em se tratando dos religiosos mais avançados, guardaram a prudência de viver, no vaso físico, de conformidade com os princípios su­periores que esposaram. Somos defrontados, agora, pela necessidade da proclamação de verdades ve­lhas para os velhos ouvidos e novas para os ouvidos novos da inteligência juvenil situada no mundo.

O homem, herdeiro presuntivo da Coroa Ce­leste, é o condutor do próprio homem, dentro de enormes extensões do caminho evolutivo. Entre aquele que já se acerca do anjo e o selvagem que ainda se limita com o irracional, existem milhares de posições, ocupadas pelo raciocínio e pelo sentimento dos mais variados matizes. E, se há uma corrente, brilhante e maravilhosa, de criaturas en­carnadas e desencarnadas que se dirigem para o monte da sublimação, desferindo glorioso cântico de trabalho, imortalidade, beleza e esperança, exal­tando a vida, outra corrente existe, escura e infeliz, nas mesmas condições, interessada em descer aos recôncavos das trevas, lançando perturbação, de­sânimo, desordem e sombra, consagrando a morte, Espíritos incompletos que somos ainda, aderimos aos movimentos que lhes dizem respeito e colhemos os benefícios da ascensão e da vitória ou os pre­juízos da descida e da derrota, controlados pelas inteligências mais vigorosas que a nossa e que seguem conosco, lado a lado, na zona progressiva ou deprimente, em que nos colocamos.

O inferno, por isto mesmo, é um problema de direção espiritual.

Satã é a inteligência perversa -

O mal é o desperdício do tempo ou o emprego da energia em sentido contrário aos propósitos do Senhor.

O sofrimento é reparação ou ensinamento re­novador.

As almas decaídas, contudo, quaisquer que se­jam, não constituem uma raça espiritual sentenciada irremediàvelmente ao satanismo, integrando, tão sômente, a coletividade das criaturas humanas desencarnadas, em posição de absoluta insensatez. Misturam-se à multidão terrestre, exercem atuação singular sobre inúmeros lares e administrações e o interesse fundamental das mais poderoSaS inte­ligências, dentre elas, é a conservação do mundo ofuscado e distraído, à força da ignorância defen­dida e do egoísmo recalcado, adiando-Se o Reino de Deus, entre os homens, indefinidamente...

De milênios a milênios, a região em que res­piram padece extremas alteraçõeS, qual acontece ao campo provisoriamente ocupado pelos povos co­nhecidos. A matéria que lhes estrutura a residência sofre tremendas modificações e precioso trabalho seletivo se opera na transformação natural, dentro dos moldes do Infinito Bem. Entretanto, embora de fileiras compactas incessantemente substituidas, persistem por séculos sucessivos, acompanhando o curso das civilizações e seguindo-lhes os esplen­dores e experiências, aflições e derrotas.

Fazendo-Se nova pausa do Ministro, que me pareceu oportuna e intencional, um companheiro interferiu, indagando:

— Grande benfeitor, reconhecemos a veraci­dade de vossas afirmativas; todavia, porque não suprime o Senhor Compassivo e Sábio tão pavo­roso quadro?

O esclarecido mentor fixou um gesto de con­descendência e respondeu:

— Não será o mesmo que interrogar pela tar­dança de nossa própria adesão ao Reino Divino?

Sente-se o meu amigo suficientemente iluminado para negar o lado sombrio da própria individualidade? Libertou-se de todas as tentações que fluem dos escaninhos misteriosos da luta interna? Não admite que o orbe possua os seus círculos de luz e trevas, qual acontece a nós mesmos nos recessos do coração? E assim como duelamos em formidáveis conflitos por dentro, a vida planetária é compelida igualmente a combater nos recônditos ângulos de si mesma. Quanto à intervenção do Senhor, recor­demo-nos de que os estudos desta hora não se prendem aos aspectos da compaixão e, sim, aos problemas da justiça.

Nós outros e a humanidade militante na carne não representamos senão diminuta parcela da fa­mília universal, confinados à faixa vibratória que nos é peculiar.

Somos simplesmente alguns bilhões de seres perante a Eternidade. E estejamos convencidos de que se o diamante é lapidado pelo diamante, o mau só pode ser corrigido pelo mau. Funciona a justiça, através da injustiça aparente, até que o amor nasça e redima os que se condenaram a longas e dolorosas sentenças diante da Boa Lei.

Homens perversos, calculistas, delituosos e inconseqüentes são vigiados por gênios da mesma natureza, que se afinam com as tendências de que são portadores.

Realmente, nunca faltou proteção do Céu con­tra os tormentos que as almas endurecidas e ingratas semearam na Terra e os numes guardiães não se despreocupam dos tutelados; no entanto, se­ria ilógico e absurdo designar um anjo para custo­diar criminosos.

Os homens encarnados, de maneira geral, per­manecem cercados pelas escuras e degradantes irra­diações de entidades imperfeitas e indecisas, quanto eles próprios, criaturas que lhes são invisíveis ao olhar, mas que lhes partilham a residência.

Em razão disso, o Planeta, por enquanto, ainda não passa de vasto crivo de aprimoramento, ao qual somente os individuos excepcionalmente aper­feiçoados pelo próprio esforço conseguem escapar, na direção das esferas sublimes.

Considerando semelhante situação, o Mestre Divino exclamou perante o juiz, em Jerusalém:

“Por agora, o meu Reino não é daqui” e, pela mesma razão, Paulo de Tarso, depois de lutas an­gustiosas, escreve aos Efésios que “não temos de lutar contra a carne e o sangue, mas, sim, contra os principados, contra as potestades, contra os príncipes das trevas e contra as hostes espirituais da maldade, nas próprias regiões celestes.”

Além, pois, do reino humano, o império imenso das inteligências desencarnadas participa de con­tínuo no julgamento da Humanidade.

E entendendo a nossa condição de trabalhado­res incompletos, detentores de velhas dificuldades e terríveis inibições, na ordem do aprimoramento iluminativo, cabe-nos preparar recursos de auxilio, reconhecendo que a obra redentora é trabalho edu­cativo por excelência.

O sacrifício do Mestre representou o fermento divino, levedando toda a massa. É por isto que Jesus, acima de tudo, é o Doador da Sublimação para a vida imperecível. Absteve-se de manejar as paixões da turba, visto reconhecer que a verda­deira obra salvacionista permanece radicada ao co­ração, e distanciou-se dos decretos políticos, não obstante reverenciá-los com inequívoco respeito à autoridade constituída, por não ignorar que o ser­viço do Reino Celeste não depende de compromissos exteriores, mas do individualismo afeiçoado à boa vontade e ao espírito de renúncia em benefício dos semelhantes.

Sem nosso esforço pessoal no bem, a obra regenerativa será adiada indefinidamente, compreendendo-se por precioso e indispensável nosso con­curso fraterno para que irmãos nossos, provisoriamente impermeáveis no mal, se convertam aos Designios Divinos, aprendendo a utilizar os poderes da luz potencial de que são detentores. Somente o amor sentido, crido e vivido por nós provocará a eclosão dos raios de amor em nossos semelhantes. Sem polarizar as energias da alma na direção divina, ajustando-lhes o magnetismo ao Centro do Universo, todo programa de redenção é um con­junto de palavras, pecando pela improbabilidade flagrante.

O Ministro sorriu para nós, expressivamente, e concluiu:

— Terei sido bastante claro?

Transbordava de todos os rostos o desejo de ouvi-lo por mais tempo; no entanto, Flácus, aureo­lado de luz, desceu da tribuna e pôs-se a conversar familiarmente conosco.

A preleção fora encerrada.

As considerações ouvidas despertavam em mim o máximo interesse. No entanto, era preciso aguar­dar nova oportunidade para mais amplos escla­recimentos.


2

A palestra do Instrutor

Ao nos retirarmos do educandário, o Instrutor Gúbio, pousando sobre Elói, o nosso companheiro, e sobre mim, os olhos lúcidos, acentuou:

— Para muitas criaturas, é difícil compreen­der a arregimentação inteligente dos espíritos per­versos. Entretanto, é lógica e natural. Se ainda nos situamos distantes da santidade, não obstante os propósitos superiores que já nos orientam, que dizer dos irmãos infelizes que se deixaram prender, sem resistência, às teias da ignorância e da mal­dade? Não conhecem região mais elevada que a esfera carnal, a que ainda se ajustam por laços vigorosos. Enleados em forças de baixo padrão vi­bratório, não apreendem a beleza da vida superior e, enquanto mentalidades frágeis e enfermiças se dobram humilhadas, os gênios da impiedade lhes traçam diretrizes, enfileirando-as em comunidades extensas e dirigindo-as em bases escuras de ódio aviltante e desespero silencioso. Organizam, assim, verdadeiras cidades, em que se refugiam falanges compactas de almas que fogem, envergonhadas de si mesmas, ante quaisquer manifestações da divina luz. Filhos da revolta e da treva aí se aglomeram, buscando preservar-se e escorando-se, aos milhares, uns nos outros...

Auscultando-nos a surpresa manifesta, o Ins­trutor prosseguiu, respondendo-nos às argüições

ín­timas:

— Tais colônias perturbadoras devem ter co­meçado com as primeiras inteligências terrestres entregues à insubmissão e à indisciplina, ante os ditames da Paternidade Celestial. A alma caída em vibrações desarmônicas, pelo abuso da liberdade que lhe foi confiada, precisa tecer os fios do reajus­tamento próprio e milhões de irmãos nossos se re­cusam a semelhante esforço, ociosos e impeniten­tes, alongando o labirinto em que muitas vezes se perdem por séculos. Inabilitados para a jornada imediata, rumo ao Céu, em virtude das paixões de­vastadoras que os magnetizam, arrebanham-se de conformidade com as tendências inferiores em que se afinam, ao redor da Crosta Terrestre, de cujas emanações e vidas inferiores ainda se nutrem, qual ocorre aos próprios homens encarnados. O obje­tivo essencial de tais exércitos sombrios é a con­servação do primitivismo mental da criatura hu­mana, a fim de que o Planeta permaneça, tanto quanto possível, sob seu jugo tirânico.

As observações de Gúbio escaldavam-me o cé­rebro.

Eu também havia passado pelos baixos cír­culos da vida, depois do transe corporal; entretan­to, não identificara a existência dessas condensa­ções organizadas de entidades malignas do campo espiritual, embora ouvisse, em muitas ocasiões, im­pressionantes comentários em torno delas.

Efetivamente, não conseguia, por ruim mesmo, exumar todas as recordações do angustiado período que a porta do túmulo me oferecera.

Vira-me perseguido, através de longos pânta­nos... Errara, aflitivamente, dias e noites que me pareceram sem fim, atormentado e desditoso; toda­via, custava-me crer que as atividades maléficas gozassem de organismo diretor. Por isto mesmo, de mente agora centralizada nos propósitos do bem, aventurei uma indagação.

— Com que fim — perguntei — essas legiões retardadas se mancomunam, além da morte, se des­pidas da vestimenta grosseira de carne devem sa­ber, mais que nunca, que se empenham em combates inúteis? Não se sentem, porventura, transportadas ao plano do esclarecimento puro, quanto à posição que lhes diz respeito? Não se cercam presentemente de mais sublimes revelações da Natureza? Não lhes quadrariam, mais justos, o trabalho edificante e o estudo nobre, na elevada aspiração de galgar a sa­bedoria santificante, estrada acima? Por que mo­tivo se aglomeram, assim, através de ajuntamentos desprezíveis e diabólicos? Fácil de entender-se a jornada evolutiva do homem, depois do sepulcro, mas o estacionamento deliberado, na crueldade e no ódio, além da morte, dá para confundir a mente de qualquer...

O orientador sorriu, maneiroso, e considerou:

— Reportamo-nos a Espíritos perfeitamente humanos, não obstante desencarnados, e tais per­guntas, André, poderiam ser formuladas, mesmo na Crosta da Terra. Por que razão, nós mesmos, antes de acordar a consciência para a revelação divina, nos precipitávamos nas linhas inferiores, todos os dias, contrariando espetacularmente a Lei? A fren­te dos olhos, contávamos com bendito dilúvio de claridade solar, jorrando incessante do Espaço Infi­nito... sabíamos que a existência do corpo correria rápida, que seríamos defrontados pela morte comum a todos, que regressaríamos do mundo carnal pela mesma porta misteriosa, através da qual pene­tráramos nele; no entanto, quantas vezes teremos menoscabado a Sabedoria Excelsa, com atitudes de criminosa indiferença? Ante as sugestões do Plano Divino que te povoam, agora, o pensamento, lem­bras-te de algum tempo passado em que tivesses cogitado sinceramente da própria sublimação? Se desenterrarmos o pretérito, meu caro, encontrare­mos lamentáveis reminiscências... Não nos compete parar ou desanimar - A maneira do tronco frágil, é imperioso crescer, subir, por alcançar o oxigênio de cima, e, apesar de algemados ao que fomos, à semelhança da árvore humilde presa aos resíduos do complicado envoltório que lhe encer­rava a semente, reclamamos ascensão, ar puro e largueza de condições para produzirmos o bem que o Senhor espera de nós.

A argumentação de Gúbio era bela e suges­tiva; entretanto, eu sentia dificuldades para acei­tar a idéia de purgatórios e infernos dirigidos.

— Concordo com as elucidações — exclamei reverente —, mas é quase incrível tanta ignorân cia, além do corpo que nos conserva em ilusão... a sepultura abre-nos a todos um caminho novo. É razoável que a mente perturbada sofra amar­guras de reajustamento até que se restaure; toda­via, apropriar-se um espírito desencarnado de certos setores do caminho, como se fora deles senhor abso­luto para perpetuar sua tirania, é observação que me escapava...

— Sim — tornou o orientador, convincente —, para quem refletiu sobre o assunto, durante muito tempo, em sentido contrário à realidade, o apon­tamento surpreende bastante; todavia, não vejo obstáculos à apreensão do ensinamento. Reconhe­çamos, por exemplo, que o homem comum já atra­vessou, desde milênios, a estação evolutiva em que se demora o irracional e, em várias ocasiões, revela comportamento de nível inferior ao dele.

Imprimindo grave entono à voz agradável e fraternal, acrescentou:

— Notemos que nós mesmos, os desencarna­dos, nos movemos num campo de matéria que se caracteriza por densidade específica, embora rare­feita, quando confrontada com as antigas formas físicas, e nossa mente, em qualquer parte, na Crosta ou aqui onde nos achamos, é um centro psíquico de atração e repulsão. O espírito encarnado res­pira numa zona de vibrações mais lentas, enfaixado num veículo constituído de trilhões de células que são outras tantas vidas microscópicas inferiores. Cada vida, porém, por mais insignificante, possui expressão magnética especial. A vontade, não obs­tante condicionada por leis cósmicas e morais, inclinará a comunidade dos corpúsculos vivos que permanecem a seu serviço por tempo limitado, àmaneira do eletricista que liga as forças da usina para atividades num charco ou para serviços numa torre. Sendo cada um de nós uma força inteligente, detendo faculdades criadoras e atuando no Uni­verso, estaremos sempre engendrando agentes psi­cológicos, através da energia mental, exteriorizando o pensamento e com ele improvisando causas possíveis, cujos efeitos podem ser próximos ou remotos sobre o ponto de origem. Abstendo-nos de mobilizar a vontade, seremos invariáveis joguetes das cir­cunstâncias predominantes, no ambiente que nos rodeia; contudo, tão logo deliberemos manobrá-la, é indispensável resolvamos o problema de direção, porqüanto nossos estados pessoais nos refletirão a escolha íntima. Existem princípios, forças e leis no universo minúsculo, tanto quanto no universo macrocósmico. Dirija um homem a sua vontade para a ideia de doença e a moléstia lhe responderá ao apelo, com todas as características dos moldes estruturados pelo pensamento enfermiço, porque a sugestão mental positiva determina a sintonia e receptividade da região orgânica, em conexão com o impulso havido, e as entidades microbianas, que vivem e se reproduzem no campo mental das mi­lhões de pessoas que as entretêm, acorrerão em massa, absorvidas pelas células que as atraem, em obediência às ordens interiores, reiteradamente re­cebidas, formando no corpo a enfermidade ideali­zada. Claro que nesse capítulo temos a questão das provas necessárias, nos casos em que determinada personalidade renasce, atendendo a impositivos das lições expiatórias, mas, mesmo aí, o problema de ligação mental é infinitamente importante, por­qüanto o doente que se compras na aceitação e no elogio da própria decadência acaba na posição de excelente incubador de bactérias e sintomas mórbidos, enquanto que o espírito em reajustamento, quando reage, valoroso, contra o mal, ainda mes­mo que benéfico e merecido, encontra imensos re­cursos de concentrar-se no bem, integrando-se na corrente de vida vitoriosa

Registrava as explicações, profundamente edi­ficado, e, não obstante a longa pausa que se fêz espontâneamente, não ousei interromper o curso da argumentação a fim de não quebrar a linha do pensamento.

Prestimoso e digno, Gúbio continuou:

— Nossa mente é uma entidade colocada en­tre forças inferiores e superiores, com objetivos de aperfeiçoamento. Nosso organismo perispiritual, fruto sublime da evolução, quanto ocorre ao corpo físico na esfera da Crosta, pode ser comparado aos pólos de um aparelho magneto-elétrico.

O espírito encarnado sofre a influenciação inferior, através das regiões em que se situam o sexo e o estômago, e recebe os estímulos superiores, ainda mesmo pro­cedentes de almas não sublimadas, através do cora­ção e do cérebro. Quando a criatura busca manejar a própria vontade, escolhe a companhia que prefere e lança-se ao caminho que deseja. Se não escas­seiam milhões de influxos primitivistas, constran­gendo-nos, mesmo aquém das formas terrestres a entreter emoções e desejos, em baixos círculos, e armando-nos quedas momentâneas em abismos do sentimento destrutivo, pelos quais já peregrinamos há muitos séculos, não nos faltam milhões de apelos santificantes, convidando-nos à ascensão para a gloriosa imortalidade.

O Instrutor, fitando em nós o olhar percuciente e calmo, ponderou:

— Entenderam, agora, como é compreensível a opção de certos espíritos pela casa escura do crime, depois do túmulo, qual ocorre a milhões de entidades encarnadas que, em plena harmonia com a natureza terrestre, estimam viver no domicílio da enfermidade? Atitudes mentais enraizadas não se modificam facilmente. O rei que governa milhares, o condutor que se acostumou a traçar fér­reas diretrizes, o homem que se habituou a dobrar caracteres alheios, quando não dispõem de prin­cípios santificantes, no terreno idealístico, para se alimentarem intimamente na tarefa a que se con­sagram, não se transformam em servidores humil­des de um momento para outro, só porque se desfizeram da carga de células materiais.

Quando não se recomendam aos precipícios da loucura, no eclipse total da razão por tempo indeterminável, em vista dos desvarios na intelectualidade e no poder, são conservados e respeitados na obra evo­lutiva do mundo, pelas qualidades apreciáveis e dignas que já conquistaram, embora as paixões vio­lentas que lhes assinalam a vida íntima, e são utili­zados então por gênios superiores, nos serviços de aprimoramento planetário, em que vigiam e reajus­tam os mais fracos, sendo vigiados e reajustados pelos mais fortes, convertendo-Se, gradual e imperceptivelmente, ao Supremo Bem, aceitando o Plano Divino em cuja execução passam a colaborar com fidelidade e valor. Em tal posição, auxiliam e são auxiliados, dão e recebem, impulsionam o progresso e progridem a seu turno...

Impôs ligeira pausa às elucidações e, em se­guida, prosseguiu noutro rumo:

— Semelhante realidade obriga-nos a meditar na extensão do serviço espiritual em todos os ân­gulos evolutivos. Educação para a eternidade não se circunscreve à ilustração superficial de que um homem comum se reveste, sentando-se, por alguns anos, num banco de universidade — é obra de pa­ciência nos séculos. Se árvores existem assinaladas por centenas de anos, dentro das finalidades a que se destinam, que dizer dos milênios reclamados por uma individualidade, no capítulo da própria su­blimação?

Não podemos olvidar, desse modo, o amor que - devemos aos ignorantes, aos fracos, aos infelizes. Imprescindível se torna caminhar nos passos da­queles que igualmente, um dia, nos estenderam compassivas mãos.

O argumento era demasiado edificante para que interferíssemos com indagações novas.

O orientador percebeu a oportunidade do es­clarecimento e continuou:

— Os átomos que integram a hóstia dum tem­plo, são, no fundo, iguais àqueles que formam o pão pobre de uma penitenciária. Assim, toda ma­téria em si mesma. Passiva e plástica, é análoga nas mãos das entidades sábias ou ignorantes, amo­rosas ou brutalizadas, no estado de condensação conhecido na Crosta Planetária, e além dele. Em razão disso, são compreensíveis as transitórias construções levantadas em nosso plano por cria­turas desviadas do bem. Para quem anestesiou as faculdades no prazer fugitivo, a separação da carne geralmente constitui acesso a doloroso estágio na incompreensão. E considerando que a maioria das criaturas humanas persegue as sensações do corpo físico, qual se as atrações genésicas e o desvairado apego aos bens provisórios dos círculos mais baixos encerrassem toda a felicidade do mundo, a colheita de personalidades desequilibradas é sempre inquie­tante, conservando quase inalteradas as fileiras escuras dos insensatos cultivadores da satisfação egoística a qualquer preço. Loucos perigosos, por voluntários, dirigidos por inteligências soberanas, especializadas em dominação, constituem hordas terríveis que, a bem dizer, vigiam as saídas das esferas inferiores em todas as direções.

— E porque permite Deus semelhante irregu­laridade? — inquiriu Elói, sob visível consternação — não bastaria ligeira ordem do Eterno para sanar a desarmonia?

Gúbio, prestativo, não se fêz esperado na res­posta.

Sorrindo, franco, aduziu com interesse:

— Não será o mesmo que perguntar o motivo pelo qual o Senhor nos esperou até ontem? acre­ditaremos em paraísos miraculosos? não sabemos, porventura, que cada homem se sentará no trono que levantou ou se projetará ao fundo do abismo que preferiu? Além disto, é necessário reconhecer que se o lapidário aprimora a pedra, usando lima resistente, o Senhor do Universo aperfeiçoa o ca­ráter dos filhos transviados de Sua Casa, usando corações endurecidos, temporariamente afastados de Sua Obra. Nem sempre o melhor juiz pode ser o homem mais doce.

Qualidades morais e virtudes excelsas não são meras fórmulas verbalistas. São forças vivas.

Sem a posse delas, é impraticável a ascensão do espírito humano. Personalidades vulgares apegam-se à sal­vaguarda de recursos exteriores e neles centralizam os sentimentos mais nobres, prendendo-se a fantasias inúteis... Encarcera-se-lhes, então, a mente na insegurança, na fragilidade, no pavor. O choque da morte imprime-lhes tremendos conflitos à orga­nização perispirítica, veículo destinado às suas pró­prias manifestações no circulo novo de matéria dife­rente a que foram arrebatadas, e, após perderem abençoados anos no campo didático da esfera car­nal, enredadas em conflitos deploráveis, erram afli­tas, exânimes e revoltadas, ajustando-se ao primei­ro grupo de entidades viciosas que lhes garantam continuidade de aventura em fictícios prazeres. Formam associações enormes e compactas, com base nas emanações da Crosta do Mundo, onde mi­lhões de homens e mulheres lhes sustentam as exigências mais baixas; fazem vida coletiva provi­sória à força de sugarem as energias da residência dos irmãos encarnados, qual se fôssem extensa co­lônia de criminosos, vivendo a expensas de generoso rebanho bovino. Importa ponderar, contudo, que o homem explora a vaca, menos consciente e incapaz de ser julgada por delito de conivência, ao passo que, na esfera humana, o quadro apresenta outro aspecto. A criatura racional não se eximirá à res­ponsabilidade. Se o perseguidor invisível aos olhos terrestres erige agrupamentos para culto sistemá­tico à revolta e ao egoísmo, o homem encarnado, senhor de valiosos patrimônios de conhecimento santificante, garante-lhe a obra nefasta pela fuga constante às obrigações divinas de cooperador de Deus, no plano de serviço em que se localiza, ali­mentando ruinosa aliança. Um e outro, por isto, partilhando os resultados da indiferença destru­tiva ou da ação condenável, atritam e se vascolejam reciprocamente, tais quais feras que se entrede­voram na floresta da vida. Obsidiam-se, mútua-mente, quando nos atilhos educativos da carne ou na ausência deles. Atravessam séculos, assim, jun­gidos um ao outro, presos a lamentáveis ilusões e propósitos sinistros, com extremas perturbações para si mesmos, já que a herança celestial se faz naturalmente vedada a todos aqueles que menos­prezam em si próprios as sementes divinas. Há milhões de almas humanas que se não afastaram, ainda, da Crosta Terrestre, há mais de dez mil anos. Morrem no corpo denso e renascem nele, qual acontece às árvores que brotam sempre, profunda­mente arraigadas no solo. Recapitulam, individual e coletivamente, lições multimilenárias, sem atina­rem com os dons celestiais de que são herdeiras, afastadas deliberadamente do santuário de si mes­mas, no terreno movediço da egolatria inconse­quente, agitando-se, de quando em quando, em guerras arrasadoras que atingem os dois planos, no impulso mal dirigido de libertação, através de crises inomináveis de fúria e sofrimento. Destroem, então, o que construíram laboriosamente e modifi­cam processos de vida exterior, transferindo-se de civilização.

O Instrutor, sentindo a profunda atenção com que lhe seguíamos a palavra, acentuou, depois de leve pausa:

— Todavia, no fluir e refluir das eras nu­merosas, os filhos do Planeta que se conservam atentos às determinações divinas, livres da antiga escravidão à miséria moral, tornam ao ambiente escuro do cativeiro que já abandonaram, a fim de ampararem os irmãos ignorantes e desvairados, em sublime trabalho de compaixão. Formam as van­guardas do Cristo. nos mais diversos pontos do Globo, e, aos milhões, sob o patrocínio d’Ele, ope­ram no amor e na renúncia, avançando, dificilmente embora, humanidade a dentro, enfrentando a ofen­siva incendiária e exterminadora, com as bênçãos da Luz Celeste...

A exposição não podia ser mais clara. Elói, contudo, observou, assombrado:

— Quem diria, na Terra, nosso velho domi­cilio, que a vida infinita se estenderia, assim, es­tranha e ameaçadora?

— Sim — concordou o orientador —, porém a ortodoxia no mundo costuma ser o cadáver da reve­lação. Argumentos teológicos de milênios obstruem os canais da inteligência humana, quanto às reali­dades divinas. Mas a criatura prosseguirá na ta­refa de autodescobrimento. A força mental, na luta comum, permanece restrita ao círculo acanhado da personalidade egoística, copiando o molusco al­gemado à concha, e sabemos que semelhante ener­gia, patrimônio eterno com que nos sublimamos ou viciamos, emite raios criadores sobre a matéria pas­siva que nos cerca, dependendo de nós a direção que venha a tomar. Se milhões de raios luminosos formam um astro brilhante, é natural que milhões de pequeninos desesperos integrem um inferno per­feito. Herdeiros do Poder Criador, geraremos for­ças afins conosco, onde estivermos. Não será tudo isto perfeitamente inteligível? É por esta razão que o Senhor mandou constar no Livro Divino o seu aviso celestial: — “eis que estou à porta e bato”. Se alguém abre a porta viva da alma, haverá realmente o colóquio redentor, entre o Mestre e o Discípulo, O coração é tabernáculo e a sublimação das potências que o integram é a única via de acesso às esferas superiores.

O devotado orientador fixou o gesto de quem dava término oportuno às explicações, sorriu, bené­volo, e interrogou:

— Qual de nós cometeria o absurdo de exigir voo ao balão cativo? A mente humana, enraizada nos interesses mais fortes da Terra, não detém outro símbolo.

Calamo-nos, atendidos em nossa fome de elu­cidações. Colhêramos ali, na conversação de alguns minutos, precioso material de observação para lon­go tempo.

Prosseguíamos, agora, em silêncio, extáticos ante a beleza imponente da noite, maravilhosamente constelada.

Vento brando sussurrava cânticos sem pala­vras na folhagem leve e grupos de amigos, que nos defrontavam de instante a instante, mostravam no olhar a mesma doce felicidade que transbordava do arvoredo florido.

E assim, banhados em comoções inesquecíveis, buscamos o santuário em que receberíamos instru­ções para serviço próximo, inundados de confiança e alegria, na posição de trabalhadores jubilosos que caminhassem contentes para a luta, como se avan­çassem, felizes, para uma festa de luz.


3

Entendimento

O zimbório estrelado, aos raios liriais da Lua, espalhava em torno vibrações de beleza inexprimí­vel, semeando esperança, alegria e consolo.

Informado quanto aos objetivos que nos con­duziriam à Crosta, com escalas por uma colônia purgatorial de vasta expressão, vali-me da hora amena para aproveitar a convivência com o Instrutor, tentando arrancar-lhe observações que vi­nham sempre revestidas de preciosos ensinamentos.

— É admirável pensar — aventurei respeito­samente — que se formam verdadeiras expedições em nossa esfera para atender a simples caso de obsessão...

— Os homens encarnados — redarguiu o orien­tador com certa vacuidade no olhar, qual se trou­xesse a alma presa a imagens fugidias do preté­rito — não suspeitam a extensão dos cuidados que despertam em nossos círculos de ação. Somos todos, eles e nós, corações imantados uns aos outros, na forja de benditas experiências. No romance evolu­tivo e redentor da Humanidade, cada espírito possui capitulo especial. Ternos e ríspidos laços de amor e ódio, simpatia e repulsão, acorrentam-nos reci­procamente. As almas corporificadas na Crosta guardam-se em passageiro sono, com esquecimento temporário quanto às atividades pregressas. Ba­nham-se no Estige dos antigos, cujas águas lhes facultam, durante certo tempo, valiosa segurança para retorno a oportunidades de elevação. Toda­via, enquanto se mergulham em olvido benéfico, demoramo-nos por nossa vez, em abençoada vi­gília. Os perigos que nos ameaçam os entes ama­dos de agora ou de épocas que o tempo consumiu, desde muito, não nos deixam impassíveis. Os ho­mens não se acham sozinhos na estreita senda de provas salutares em que se confinam. A respon­sabilidade pelo aperfeiçoamento do mundo compe­te-nos a todos.

— Esclarecido, com respeito à jovem senhora que nos cabia socorrer, aduzi, reverente:

— A enferma, a cuja assistência fomos admi­tidos, está por exemplo em vosso passado espiritual...

— Sim — confirmou Gúbio, humilde —, alias não fui designado para servir no caso de Marga­rida, a doente que nos compele à breve expedição do momento, apenas porque houvesse sido minha filha em eras recuadas. Em cada problema de Socorro, é imprescindível Considerar as várias par­tes em jogo. Em virtude do enigma de obsessão que nos propomos resolver, somos levados a bus­car todas as personalidades que compõem o quadro de serviço. Perseguidores e perseguidos entrela­çam-se, em cada processo de auxílio, em grande expressão numérica. Cada espírito é um elo im­portante em extensa região da corrente humana. Quanto mais crescemos em conhecimentos e apti­dões, amor e autoridade, maior é o âmbito de nos­sas ligações na esfera geral.

Almas existem que se vêem sob o interesse de milhões de outras al­mas. Enquanto os movimentos da vida se esten­dem, harmoniosos, sob os ascendentes do bem, as dificuldades não chegam a surgir; contudo, quando a Perturbação se estabelece, não é fácil desfazer obstáculos porque, em tais circunstâncias é indis­pensável procedamos com absoluta imparcialidade dando a cada um quanto lhe caiba. O homem ter­restre, mormente nos dias tormentosos, costuma ver somente o “seu lado”, mas, acima da justiça comum, prôpriamente considerada, outros tribunais mais altos funcionam... Em razão disso, todos os casos de desarmonia espiritual na Terra movem aqui extensa rede de servidores que passam a tra­tá-los, sem inclinações pessoais, em bases do amor que Jesus exemplificou e, nessas ocasiões, prepa­ramo-nos a satisfazer todos os imperativos de trabalho salvacionista que a tarefa nos imponha ou proporcione, dentro das atividades que lhe são conexas.

A essa altura da instrutiva conversação, che­gamos a gracioso templo.

Nesse doce recanto consagrado à materializa­ção de entidades sublimes, a luz suave da noite calma como que se fazia mais bela.

As vibrações constantes das preces, aí emitidas por vários séculos, tinham criado em torno da edificação prodigioso clima de encantamento.

Melodia celeste derramava-se à surdina e as flores delicadas do átrio pareciam corresponder aos sons cristalinos, variando no brilho e na cor, quase que imperceptivelmente.

Eu trazia o coração opresso, como se a feli­cidade das últimas horas, em que ouvira tão confortadoras e tão graves reflexões atinentes à ex­tensão do mundo e da vida, me aproximasse a insignificância pessoal da grandeza divina, e lágri­mas tranquilas inundaram-me o rosto.

O Instrutor tomou-nos a frente e, juntos, pe­netramos o jardim que circundava o aprazível santuário.

Alguns irmãos adiantaram-se, acolhedores.

Um deles, o Instrutor Gama, que se encarre­gava dos serviços da casa, abraçou-nos e disse com bondade:

— Chegam no momento preciso. Os doadores de fluidos sublimados encontram-se a postos e a outra comissão já veio.

Entramos sem detença.

Soube, de imediato, que outro grupo, consti­tuído, aliás, por duas irmãs, ali se achava com o objetivo de receber instruções de serviço para esferas mais baixas.

Cariciosa claridade azul-brilhante banhava o largo recinto, adornado de flores níveas, semelhan­tes aos lírios que conhecemos na Terra.

Não houve tempo para conversações prévias.

Em seguida a saudações ligeiras e cordiais, foi composto o conjunto de oração.

Os doadores de energia radiante, médiuns de materialização em nosso plano, se alinhavam, não longe, em número de vinte.

Comovedora partitura soou, argentina e leve, em aposento próximo, predispondo-nos à medita­ção de ordem superior.

E logo após a prece, formosa e espontânea, pronunciada pelo responsável mais altamente cate­gorizado na instituição, eis que a tribuna domés­tica se ilumina. Esbranquiçada nuvem de substân­cia leitosa-brilhante adensa-se em derredor e, pouco a pouco, desse bloco de neve translúcida, emerge a figura viva e respeitável de veneranda mulher. Indizível serenidade caracteriza-lhe o olhar sim­pático e o porte de madona antiga, repentinamente trazida à nossa frente.

Cumprimenta-nos com um gesto de bênção, como que nos endereçando, a todos, os raios da luz esmeraldina que em forma de auréola lhe exornam a cabeça.

As duas moças que formavam a comissão de serviços, estranha à nossa, avançaram com lágrimas discretas e rojaram-se, genuflexas.

— Mãe querida — clamou uma delas, com tal inflexão de voz que nos cortava as fibras mais íntimas —, ajuda-me a falar-te! A saudade lon­gamente reprimida é um fogo que consome o coração. Auxilia-me! não me deixes perder este doce e divino minuto!

Apesar dos soluços de emoção que lhe vibra­vam no peito, continuou:

— Abençoa-nos para a grande jornada!... Há muito tempo aguardamos esta hora breve de reen­contro contigo... Perdoa-nos, Mãezinha, se insisti­mos tanto na rogativa... Contudo, sem tua prote­ção amorosa, como vencer nos turbilhões do abismo?

Desejando talvez justificar-se, ante os olhos maternos, acrescentava em pranto:

— De conformidade com as tuas amadas re­comendações, além de nossas tarefas habituais na zona de serviço em que a tua bondade nos situou, temos velado pelo Paizinho, mergulhado nas som­bras: todavia, há seis anos buscamo-lo embalde... Escapa-nos à influência renovadora e se compraz na companhia de entidades que, por onde passam, vampirizam as criaturas. Não nos recebe a atua­ção carinhosa, senão em forma de pensamentos vagos, de que se desvencilha facilmente, e, se mul­tiplicamos providências salvacionistas, procede como louco... Gesticula a esmo, colérico e irritado, grita blasfêmias e solicita o concurso de seres viciados, a cujas radiações escuras se entrelaça, impelindo-nos as sugestões e a presença... Prefere o contacto de entidades ignorantes e infelizes, detestando-nos a ternura...

Nesse ponto, crise mais intensa de emotivi­dade impediu-lhe continuar.

A nobre senhora que descera da tribuna, er­guendo as filhas e acolhendo-as nos braços, exclamou com acento consolador na voz sem lágrimas, não obstante a visível melancolia:

— Filhas amadas, o Sol combate a treva todos os dias. Batalhemos contra o mal, incessantemente, até à vitória. Não se suponham sozinhas no con­flito doloroso. Desculpemos o Papai, infinitamente, e colaboremos por restitui-lo à terra firme da luz. Se o Cristo trabalha por nós, desde o principio dos séculos, sem que lhe possamos compreender a am­plitude dos sacrifícios, que dizer das nossas obri­gações de amparo e tolerância, uns para com os outros? Cláudio se fêz para sempre credor da nossa estima e gratidão, apesar do pavoroso crime Oculto que no-lo arrebatou às profundezas .. Envenenou um parente para COnseguir a riqueza material que nos ofereceu educação e conforto na esfera carnal. Por extrema dedicação a nós três, não hesitou diante da tentação que o constrangeu a infernal compromisso. Dono de afeição inquieta, não Soube esperar a bênção do tempo e lançou mão de incon­fessável processo para localizar-nos em um oásis de Superioridade mentirosa... Para que ele nos sentisse garantídos e felizes, viveu durante qua­renta anos consecutivos entre o remorso e o so­frimento, psiquicamente sintonizado com espíritos maliciosos e vingativos das sombras, mas, na rea­lidade, sobre as aflições dele nos foi possível atravessar abençoada existência de progresso e con­forto, numa casa ditosa e farta, sem sabermos que em nossos alicerces espirituais vivia um ato escuro de assassínio e violência!

A essa altura, a entidade materializada cho­rou, Comovedoramente

Abraçadas as três, num quadro emocionante e mudo, a Mãezinha encontrou recursos a fim de prosseguir:

— Tornaremos, contudo, ao campo de luta regenerador e benfazeja... Que vale para nós a paisagem celestial sem a libertação daqueles que amamos? O coração amoroso, atormentado abdicará do ingresso numa estrela para persistir ao lado de um ente querido, em duelo com as serpentes de um charco... Poderiamos gozar, porventura, o espetáculo augusto das esferas resplandecentes, ou­vindo-lhes a harmonia indefinível, numa situação de destaque adquirida à custa daqueles que gemem e desfalecem nas trevas? Abandonar quem nos serviu de degrau em plena ascensão divina é das mais horrendas formas de ingratidão, O Senhor não pode abençoar uma ventura colhida ao preço de angústias para aqueles que no-las deram. Estou Convencida de que há mais grandeza no anjo que desce ao inferno para salvar os filhos de Deus, transviados e sofredores, do que no mensageiro espiritual que se dá pressa em comparecer ante o Trono do Eterno para louvá-Lo, com esquecimento dos próprios benfeitores...

À venerável matrona enxugou o pranto co­pioso e prosseguiu:

— Olvidemos, pois, minhas filhas, o que hoje somos, para socorrer os que, com o propósito de nos servirem, resvalaram a despenhadeiro sinistro e tormentoso. Saldemos nossas dividas secretas com abnegação e devotamento. Mais tarde, rece­berei Antônio, o sobrinho envenenado, em meus braços maternos, reaproximando-o de Cláudio, atra­vés da cordialidade e do respeito vividos em comum. Ensinar-lhe-ei com alegre ternura a pronunciar o nome de Deus e a desfazer as pesadas nuvens de revolta que lhe empanam a vida íntima. A fim de incliná-lo à compreensão e à piedade, com mais eficiência, comprometi-me a acolher também no ta­bernáculo materno as seis criaturas desviadas do bem, às quais se apegou, desvairado, nas regiões inferiores, em face da culpa de quem nos foi des­velado amigo. Meu afeto reinará dificilmente num lar repleto de corações menos afins com o meu, onde Jesus me ensinará a soletrar, venturosa, a doce lição do sacrifício silencioso... Muitas vezes, lidarei com a discórdia e a tentação; todavia, não podemos acreditar em felicidades de improviso. Conquistaremos em cooperação abençoada aquela paz que Cláudio sonhou para nós e que ele próprio não desfrutou...

Para que eu parta, porém, no rumo da reen­carnação, é necessário que o Papai renasça primeiro. Sem esse marco inicial, não posso atacar o nosso processo redentor em nova fase.

Ajude­mo-nos, assim, reciprocamente. Enquanto procuro transformar Antônio, reajustando-lhe as fibras afe­tivas, inclinem ambas o espírito paterno à espe­rança e à meditação reconstrutivas...

As jovens derramavam pranto comovedor, em que se misturavam angústia e alegria, e a matrona iluminada, revelando-se em despedida, acrescentou:

— Não desanimem, O tempo é das mais pre­ciosas dádivas do Senhor e o tempo nos auxiliará. O porvir reunir-nos-á de novo, em abençoado re­fúgio terrestre. Eu e Cláudio, então renovado, receberemos muitos filhinhos, e vocês duas estarão entre eles, reconfortando-nos os corações. Terei sobre o peito algumas pedras preciosas por lapidar, no esforço de cada dia e, dentro dalma, duas flores, em ambas, cujo perfume celeste me sustentará as energias necessárias à Perseverança até ao fim... Compensar-me-ão vocês duas de todas as cansei­ras... Juntas pelo amor imperecível trabalharemos sustentadas pela recordação, embora imprecisa, da gloriosa vida espiritual que, um dia, nos acolherá, felizes e triunfantes. Lembremo-nos de Jesus e avancemos...

Silenciou a emissária, e as moças, provàvelmente avisadas de que o tempo permanecia esgotado, abraçaram-na de encontro ao coração. seden­tas de carinho A Mãezinha beijou-as, enternecida, e, após saudar-nos cordialmente, tornou à tribuna, em cujo topo desapareceu ao nosso olhar, numa onda de neblina evanescente

Entreolhamo-nos em lágrimas, como quem ti­vera permissão de repousar a mente em branda melodia

As irmãs retomaram o lugar que ocupavam e música balsâmica se fez ouvir, renovando-nos o ambiente, obedecendo certo, ao intuito de modi­ficar-nos o campo vibracional

Ponderando na incomensurável bondade do Pai, recordei os laços afetivos que me ligavam ao pre­térito e observei, mais uma vez, que todas as me­didas do bem são planejadas e pacientemente exe­cutadas pelos que se angelizam nas Virtudes do Céu, lastimando Intimamente, as oportunidades perdidas noutro tempo, quando o verdadeiro enten­dimento da vida me não felicitava o espírito.

Ainda não voltara a mim mesmo da salutar divagação, quando outro lençol de alva substância, coroada de tons dourados, se fêz visível no alto. Em breves instantes, revestida de luz, outra mensageira surgia na tribuna.

Dos olhos irradiava doce magnetismo santificante.

Trajava um peplo estruturado em fina gaze azul-radiosa e desceu, erecta e digna, fitando-nos suavemente, à procura de alguém, com interesse particular.

O Instrutor ergueu-se, reverente, e caminhou na direção dela, qual discípulo submisso.

A recém-chegada pronunciou frases de paz, sem afetação, e endereçou-lhe a palavra, em tom de infinita ternura:

— Irmão Gúbio, agradeço-te o concurso da­divoso. Creio haver chegado, efetivamente, o instante de aceitar-te a ajuda fraterna, em favor da libertação de meu infortunado Gregório. Espero, há séculos, pela renovação e penitência dele. Im­pressionado pelos imensos recursos do poder, no passado distante, cometeu hediondos crimes da in­teligência. Internado em perigosa organização de transviados morais, especializou-se, depois da mor­te, em oprimir ignorantes e infelizes. Pelo endurecimento do coração, conquistou a confiança de gênios cruéis, desempenhando presentemente a de­testável função de grande sacerdote em mistérios escuros. Chefia condenável falange de centenas de outros espíritos desditosos, cristalizados no mal, e que lhe obedecem com deplorável cegueira e quase absoluta fidelidade. Agravou o passivo de suas dívidas clamorosas, trazidas da insânia terrestre, e vem sendo instrumento infeliz nas mãos de ini­migos do bem, poderosos e ingratos... Há cin­quenta anos, porém, já consigo aproximar-me dele, mentalmente.

Recalcitrante e duro, a princípio, Gregório agora experimenta algum tédio, o que constituí uma bênção nos corações infiéis ao Se­nhor. Já lhe surpreendo no espírito rudimentos de necessária transformação.

Ainda não chora sob o guante do arrependimento benéfico e parece-me lon­ge do remorso salvador; entretanto, já duvida da vitoria do mal e abriga interrogações na mente envilecida. Não é tão severo no comando dos espí­ritos desventurados que lhe seguem as determina­ções e o colapso de sua resistência não me parece remoto.

Nesse instante, notei que a venerável matrona derramava lágrimas discretas, que lhe deslizavam na face como sementes de luz.

Parou por alguns momentos, controlada pelas reminiscências dolorosas, e continuou:

— Irmão Gúbio, perdoa-me o pranto que não significa mágoa ou esmorecimento... Na pauta do julgamento humano comum, meu filho espiritual será talvez um monstro... Para mim, Contudo, é a jóia primorosa do coração ansioso e enternecido. Penso nele qual se houvera perdido a pérola mais linda num mar de lama e tremo de alegria ao considerar que vou reencontrálo. Não é paixão doentia que vibra em minhas palavras. É o amor que o Senhor acendeu em nós, desde o princípio. Estamos presos, diante de Deus, pelo magnetismo divino, tanto quanto as estrelas que se imantam umas às outras, no império universal. Não encon­trarei o Céu, sem que os sentimentos de Gregório se voltem igualmente para a Eterna Sabedoria. Alimentamo-nos na Criação com os raios de vida imperecível que emitimos uns para com os Outros. Como surpreender a perfeita ventura se recebo do filho amado tão sômente raios de forças em des­vario?

O nosso orientador contemplou-a, de olhos úmi­dos, e rogou:

— Nobre Matilde! estamos prontos. Dita or­dens! Por mais que fizéssemos por tua alegria, nosso esforço seria pobre e pequenino, diante dos sacrifícios em que te empenhas por nós todos.

Num sorriso triste, prosseguiu a respeitável senhora:

— Descerei, dentro em breves anos, para o torvelinho de lutas carnais, a fim de esperar Gregório em existência de resgate difícil e doloroso. Educá-lo-ei sob os princípios superiores que regem a vida. Crescerá sob minha inspiração imediata e receberá a prova perigosa e aflitiva da riqueza material. É de nosso plano que ele acolha, no curso do tempo, em labor gradativo, a extensa legião de servidores viciados que hoje o seguem e a ele obedecem, a fim de encaminhá-los, tanto os possivelmente encarnados quanto os desencar­nados, através do carreiro de santificação pela disciplina benéfica em construtivo suor. Padecerá calúnias e vilipêndios. Será muita vez humilhado à face dos homens. Triunfará nos bens efêmeros e nas honrarias mentirosas. Receberá, no desdo­bramento da tarefa salvadora, tentações de toda espécie que lhe serão desfechadas pela colônia de ignorância, perversidade e delinquência a que atual­mente se filia, e conhecerá, depois de experiências inquietantes, a deserção dos falsos amigos, o aban­dono, a miséria, a enfermidade, a velhice e a soli­dão. Apegar-se-á profundamente ao meu carinho, na infância, na mocidade e na madureza; entre­tanto, na colheita de provações mais duras, tê-lo-ei precedido na viagem do túmulo... nessa época, porém, que pressinto de tão longe, meu coração materno, embora na esfera espiritual, encoraja-lo-á, passo a passo, na direção do esperado triunfo... Nas amarguras e desilusões que o ajudarão a rees­truturar e aperfeiçoar os poderes da mente, minha voz de amor eterno será por ele registrada com mais precisão... Até lá, porém, Gúbio, compete-me tra­balhar muito e sem desânimo, com incessante apro­veitamento das horas. Moverei as cordas da intercessão sublime, mobilizarei meus amigos, rogarei a Jesus fortaleza e serenidade. Iniciaremos a libera­ção com o teu abnegado concurso na zona abismal.

A veneranda mensageira fêz ligeiro intervalo e, concentrando o olhar sobre o nosso Instrutor, aduziu com nova inflexão de voz:

— Atenderás Margarida que te foi filha aman­tíssima e que a Gregório ainda se encontra imantada por teias escuras do passado e colaborarás com o meu devotamento materno para que na alma dele se converta a sublevação em humildade e a frieza, em calor. Encontrando-o, veste a capa do servo prestimoso e fala-lhe em meu nome. Sob o gelo que lhe cristaliza os sentimentos, descansa, inapagada, a chama do amor que nos une para sempre. Disponho, agora, da permissão de fazer-me sentir e acredito que, à face de tua amorosa tarefa, mover-se-lhe-á o espírito endurecido.

Sei quanto te custa a incursão nos domínios da dor, porque só aquele que sabe amar e suportar consegue triunfo nas consciências que se degradaram no mal; entretanto, meu amigo, os dons divinos descem sobre nós, dentro de justas condicionais, O Senhor nos enriquece para que enriqueçamos a ou­trem, dá-nos alguma coisa para ensaiarmos a distri­buição de benefícios que Lhe pertencem, ajuda-nos a fim de que auxiliemos, por nossa vez, os mais necessitados. Mais recolhe quem mais semeia...

Diante daqueles olhos divinos, agora velados de lágrimas que não chegavam a cair, Gúbio valeu-se do intervalo e considerou, reverencioso:

— Abnegada Matilde, sou pequenino em ex­cesso para merecer-te as palavras. Onde existe a alegria, o sofrimento não se detém. Socorreste-me com a tua intercessão, amparando-me o zelo afetivo, perante as necessidades de Margarida. Um coração paternal é sempre venturoso, em se humilhando pelos filhos que ama. Sou simplesmente teu deve­dor, e, se Gregório me flagelasse nos círculos em que domina, semelhante aflição se converteria igual­mente em júbilo, dentro de mim. De qualquer modo, ele me recordará tua bondade e teu devotamento apoiando-me os propósitos de descer para servir. As dores que me acarretasse seriam abençoados es­pinhos nas rosas que me ofereceste. Em teu nome, salvarei minha filha, cuja experiência atual no corpo denso nos é sumamente importante às reencarna­ções porvindouras... Trabalharei reconhecido ao ensejo que me deste, lutarei, encorajado e feliz...

Mostrando intenso júbilo e grande esperança na expressão fisionômica, a senhora agradeceu com palavras generosas e concluiu:

— Ao terminares a fase essencial de tua mis­são, nos dias próximos, sobre o que serei notificada por nossos mensageiros, irei ao teu encontro nos “campos de saida” (1). Então, quem sabe? é pro­vável se verifique o encontro pessoal que almejo há muito tempo, porqüanto Gregório virá possivel­mente em tua companhia, até a um ponto em que de alguma sorte a manifestação da luz será possi­bilitada ante as trevas.

A emissária acentuou a expressão brilhante do rosto, exteriorizando a doce expectativa que lhe povoava a alma, e considerou:

— A hora é chegada... O Senhor estará co­nosco. Há tempo de plantar e tempo de colher. Gregório e eu semearemos de novo. Seremos mãe e filho, outra vez!

Detendo-se particularmente sobre nosso Ins­trutor, falou, extática:

— Possam minhas lágrimas de alegria orva­lhar-te o espírito laborioso. Seguir-te-ei a ação e aproximar-me-ei no instante oportuno. Creio na vitória do amor, logo resplandeça o minuto do reencontro. Nesse dia abençoado, Gregório e os companheiros que mais se afinarem com ele serão trazidos por nós a círculos regeneradores e, dessas

(1) A expressão «campos de saída” define lugares-limites, entre as esferas inferiores e superiores. — Nota do autor espiritual.

esferas de reajustamento, conto reorganizar ele­mentos ante o futuro promissor, sonhando em companhia dele as realizações que nos competem al­cançar.

Gúbio pronunciou algumas frases de compro­misso fraterno.

Trabalharíamos sem descanso.

Desvelar-nos-íamos pela execução das ordens afetuosas.

A singular entrevista terminou entre preces de gratidão ao Eterno Pai.

Findo aquele culto vivo de amor imortal, des­pedimo-nos da família cristã que ali se congregava.

Cá fora, a noite se fizera mais bela.

A Lua reinava num trono de azul macio, cons­telado de estrelas luzentes.

Flores inúmeras saudavam-nos com perfume inebriante.

Ergui para o Instrutor olhos repletos de inda­gações, mas Gúbio, afagando-me os ombros, delicadamente murmurou:

— Repousa a mente e não perguntes por agora. Amanhã, seguiremos na direção da tarefa nova, que nos exigirá muita prudência e compreen­são fraternal, e convence-te de que o serviço nos esclarecerá com a sua linguagem viva.


4

Numa cidade estranha

No dia imediato, pusemo-nos em marcha.

Respondendo-nos às argüições afetuosas, o Ins­trutor informou-nos de que teríamos apenas alguns dias de ausência.

Além dos serviços referentes ao encargo par­ticular que nos mobilizava, entraríamos em algumas atividades secundárias de auxílio. Técnico em missões dessa natureza, afirmou que nos admitira, num trabalho que ele poderia desenvolver sôzinho, não só pela confiança que em nós depositava, mas também pela necessidade da formação de novos cooperadores, especializados no ministério de so­corro às trevas.

Após a travessia de várias regiões, “em des­cida”, com escalas por diversos postos e instituições socorristas, penetramos vasto domínio de sombras.

A claridade solar jazia diferençada.

Fumo cinzento cobria o céu em toda a sua extensão.

A volitação fácil se fizera impossível.

A vegetação exibia aspecto sinistro e angus­tiado. As árvores não se vestiam de folhagem farta e os galhos, quase secos, davam a ideia de braços erguidos em súplicas dolorosas.

Aves agoureiras, de grande tamanho, de uma espécie que poderá ser situada entre os corvideos. crocitavam em surdina, semelhando-Se a pequenos monstros alados espiando presas ocultas.

O que mais contristava, porém, não era o qua­dro desolador, mais ou menos semelhante a outros de meu conhecimento, e, sim, os apelos cortantes que provinham dos charcos. Gemidos tipicamente humanos eram pronunciados em todos os tons.

Acredito, teríamos examinado individualmente os sofredores que aí se localizavam, se nos entre­gássemos a detida apreciação; todavia, Gúbio, àmaneira de outros instrutores, não se detinha para atender a curiosidade improfícua.

Lembrando a “selva escura” a que Alighieri se reporta no imortal poema, eu trazia o coração premido de interrogativas inquietantes.

Aquelas árvores estranhas, de frondes resse­cadas, mas vivas, seriam almas convertidas em silenciosas sentinelas de dor, qual a mulher de Lot, transformada simbôlicamente em estátua de sal?

E aquelas grandes corujas diferentes, cujos olhos brilhavam desagradàvelmente nas sombras, seriam homens desencarnados sob tremendo castigo da forma? Quem chorava nos vales extensos de lama? criaturas que houvessem vivido na Terra que re­cordávamos, ou duendes desconhecidos para nós?

De quando em quando, grupos hostis de enti­dades espirituais em desequilíbrio nos defrontavam, seguindo adiante, indiferentes, incapazes de registrar-nos a presença. Falavam em alta voz, em português degradado, mas inteligível, evidenciando, pelas gargalhadas, deploráveis condições de igno­rância. Apresentavam-se em trajes bisonhos e con­duziam apetrechos de lutar e ferir.

Avançamos mais profundamente, mas o am­biente passou a sufocar-nos. Repousamos, de algum modo, vencidos de fadiga singular, e Gúbio, depois de alguns momentos, nos esclareceu:

— Nossas organizações perispiríticas, à ma­neira de escafandro estruturado em material absor­vente, por ato deliberado de nossa vontade, não devem reagir contra as baixas vibrações deste plano. Estamos na posição de homens que, por amor, descessem a operar num imenso lago de lodo; para socorrer eficientemente os que se adap­taram a ele, são compelidos a cobrir-se com as substâncias do charco, sofrendo-lhes, com paciência e coragem, a influenciação deprimente.

Atraves­samos importantes limites vibratórios e cabe-nos entregar a forma exterior ao meio que nos recebe, a fim de sermos realmente úteis aos que nos pro­pomos auxiliar. Finda a nossa transformação tran­sitória, seremos vistos por qualquer dos habitan­tes desta região menos feliz. A oração, de agora em diante, deve ser nosso único fio de comunicação com o Alto, até que eu possa verificar, quando na Crosta, qual o minuto mais adequado de nosso retorno aos dons luminescentes. Não estamos em cavernas infernais, mas atingimos grande império de inteligências perversas e atrasadas, anexo aos círculos da Crosta, onde os homens terrestres lhes sofrem permanente influenciação. Chegou para nós o momento de pequeno testemunho. Muita capa­cidade de renúncia é indispensável, a fim de alcan­çarmos nossos fins. Podemos perder por falta de paciência ou por escassez de vocação para o sacri­fício. Para a malta de irmãos retardados que nos envolverá, seremos simples desencarnados, ignoran­tes do próprio destino.

Passamos a inalar as substâncias espessas que pairavam em derredor, como se o ar fosse consti­tuído de fluidos viscosos.

Elói estirou-se, ofegante, e não obstante expe­rimentar, por minha vez, asfixiante opressão, busquei padronizar atitudes pela conduta do Instrutor, que tolerava a metamorfose, silencioso e palidís­simo.

Reparei, confundido, que a voluntária integra­ção com os elementos inferiores do plano nos des­figurava enormemente. Pouco a pouco, sentimo-nos pesados e tive a ideia de que fora, de improviso, religado, de novo, ao corpo de carne, porque, em­bora me sentisse dono da própria individualidade, me via revestido de matéria densa, como se fôsse obrigado a envergar inesperada armadura.

Decorridos longos minutos, o orientador ape­lou, diligente:

— Prossigamos! Doravante, seremos auxilia­res anônimos. Não nos convém, por enquanto, a identificação pessoal.

— Mas, não será isto mentir? clamou Elói, quase refeito.

Gúbio dividiu conosco um olhar de benevo­lência e explicou, bondoso:

— Não te recordas do texto evangélico que recomenda não saiba a mão esquerda o que dá a direita? Este é o momento de ajudarmos sem alar­de. O Senhor não é mentiroso quando nos estende invisíveis recursos de salvação, sem que lhe veja­mos a presença. Nesta cidade sombria, trabalham inúmeros companheiros do bem nas condições em que nos achamos. Se erguermos bandeira provo­cante, nestes campos, nos quais noventa e cinco por cento das inteligências se encontram devotadas ao mal e à desarmonia, nosso programa será es­traçalhado em alguns instantes. Centenas de mi­lhares de criaturas aqui padecem amargos choques de retorno à realidade, sob a vigilância de tribos cruéis, formadas de espíritos egoístas, invejosos e brutalizados Para a sensibilidade medianamente desenvolvida, o sofrimento aqui é inapreciável.

— E ha governo estabelecido num reino estra­nho e sinistro quanto este? — indaguei.

— Como não? — respondeu Gúbio, atenciosamente. — Qual ocorre na esfera carnal, a direção, neste domínio, é concedida pelos Poderes Superio­res, a título precário. Na atualidade, este grande empório de padecimentos regeneratívos permanece dirigido por um sátrapa de inqualificável impie­dade, que aliciou para si próprio o pomposo título de Grande Juiz, assistido por assessores políticos e religiosos tão frios e perversos quanto ele mesmo. Grande aristocracia de gênios implacáveis aqui se alinha, senhoreando milhares de mentes preguiçosas, delinqüentes e enfermiças...

— E porque permite Deus semelhante absurdo?

Dessa vez, era o meu colega que perguntava, de novo, semi-apavorado, agora, ante os compro­missos que assumíramos.

Longe de perturbar-se, Gúbio replicou:

— Pelas mesmas razões educativas através das quais não aniquila uma nação humana quando, des­vairada pela sede de dominação, desencadeia guer­ras cruentas e destruidoras, mas a entrega à ex­piação dos próprios crimes e ao infortúnio de si mesma, para que aprenda a integrar-se na ordem eterna que preside à vida universal. De período a período, contado cada um por vários séculos, a matéria utilizada por semelhantes inteligências é revolvida e reestruturada, qual acontece nos cír­culos terrenos; mas se o Senhor visita os homens pelos homens que se santificam, corrige igualmente as criaturas por intermédio das criaturas que se endurecem ou bestializam.

— Significa então que os gênios malditos, os demônios de todos os tempos... — exclamei, reti­cencioso...

— Somos nós mesmos — completou o Instru­tor, paciente — quando nos desviamos, impeniten­tes, da Lei. Já perambulamos por estes sítios som­brios e inquietantes, mas os choques biológicos do renascimento e da desencarnação, mais ou menos recentes, não te permitem, nem a Elói, o desa­brocho de reminiscências completas do passado. Comigo, porém, a situação é diversa.

A extensão de meu tempo, na vida livre, já me confere recor­dações mais dilatadas e, de antemão, conheço as lições que constituam novidade. Muitos de nossos companheiros, guindados à altura, não mais identificam nestas paragens senão motivos de cansaço, repugnância e pavor; todavia, é forçoso observar que o pântano, invariàvelmente, é uma zona da natureza pedindo o socorro dos servos mais fortes e generosos.

Música exótica fazia-se ouvir não distante e Gúbio rogou-nos prudência e humildade em favor do êxito no trabalho a desdobrar-se.

Reerguemo-nos e avançamos.

Fizera-se-nos tardio o passo e nossa movi­mentação difícil.

Em voz baixa, o orientador reiterou a reco­mendação:

— Em qualquer constrangimento íntimo, não nos esqueçamos da prece. É, de ora em diante, o único recurso de que dispomos a fim de mobilizar nossas reservas mentais superiores, em nossas ne­cessidades de reabastecimento psíquico. Qualquer precipitação pode arrojar-nos a estados primitivis­tas, lançando-nos em nivel inferior, análogo ao dos espíritos infelizes que desejamos auxiliar. Tenha­mos calma e energia, doçura e resistência, de ânimo voltado para o Cristo.

Lembremo-nos de que acei­tamos o encargo desta hora, não para justiçar e sim para educar e servir.

Adiantamo-nos, caminho a fora, como se fazia possível.

Em minutos breves, penetramos vastissima aglomeração de vielas, reunindo casario decadente e sórdido.

Rostos horrendos contemplavam-nos furtiva­mente, a princípio, mas, à medida que varávamos o terreno, éramos observados, com atitude agres­siva, por transeuntes de miserável aspecto.

Alguns quilômetros de via pública, repletos de quadros deploráveis, desfilaram a nossos olhos.

Mutilados às centenas, aleijados de todos os matizes, entidades visceralmente desequilibradas, ofereciam-nos paisagens de arrepiar.

Impressionado com a multidão de criaturas de­formadas que se enfileiravam sob nosso raio visual, perfeitamente arrebanhadas ali em experiência co­letiva, enderecei algumas interrogações ao Instru­tor, em tom discreto.

Porque tão extensa comunidade de sofredores? Que causas impunham tão flagrante decadência da forma?

Paciente, o orientador não se fêz demorado na resposta.

— Milhões de pessoas — informou, calmo —, depois da morte, encontram perigosos inimigos no medo e na vergonha de si mesmas. Nada se perde, André, no círculo de nossas ações, palavras e pen­samentos. O registro de nossa vida opera-se em duas fases distintas, perseverando no exterior, atra­vés dos efeitos de nossa atuação em criaturas, si­tuações e coisas, e persistindo em nós mesmos, nos arquivos da própria consciência, que recolhe mate­màticamente todos os resultados de nosso esforço, no bem ou no mal, ao interior dela própria, O espírito, em qualquer parte, move-se no centro das criações que desenvolveu. Defeitos escuros e qua­lidades louváveis envolvem-no, onde se encontre. A criatura na Terra, por onde peregrinamos, ouve argumentos alusivos ao Céu e ao Inferno e acre­dita vagamente na vida espiritual que a espera, além-túmulo.

Mais cedo que possa imaginar, perde o veículo de carne e compreende que não se pode ocultar por mais tempo, desfeita a máscara do corpo sob a qual se escondia à maneira da tarta­ruga dentro da carapaça. Sente-se tal qual é e receia a presença dos filhos da luz, cujos dons de penetração lhe identificariam, de pronto, as mazelas indesejáveis. O perispírito, para a mente, é uma cápsula mais delicada, mais suscetível de refletir-lhe a glória ou a viciação, em virtude dos tecidos rarefeitos de que se constitui. Em razão disso, as almas decaídas, num impulso de revolta contra os deveres que nos competem a cada um, nos ser­viços de sublimação, aliam-se umas às outras atra­vés de organizações em que exteriorizam, tanto quanto possível, os lamentáveis pendores que lhes são peculiares, não obstante ferretoadas pelo agui­lhão das inteligências vigorosas e cruéis.

— Mas — interferi — não há recurSos de soerguer semelhantes comunidades?

— A mesma lei de esforço próprio funciona igualmente aqui. Não faltam apelos santificantes de Cima; contudo, com a ausência da íntima adesão dos interessados ao ideal da melhoria própria, é impraticável qualquer iniciativa legítima, em ma­téria de reajustamento geral. Sem que o espírito, senhor da razão e dos valores eternos que lhe são consequentes, delibere mobilizar o patrimônio que lhe é próprio, no sentido de elevar o seu campo vibratório, não é justo seja arrebatado, por impo­sição, a regiões superiores que ele mesmo, por enquanto, não sabe desejar. E até que resolva atirar-se ao empreendimento da própria ascenSãO, vai sendo aproveitado pelas leis universais no que possa ser útil à Obra Divina. A minhoca, enquanto é minhoca, é compelida a trabalhar o solo; o peixe, enquanto é peixe, não viverá fora d’água...

Sorrindo, ante a própria argumentação, con­cluiu bem humorado:

— É natural, pois, que o homem, dono de vastaS teorias de virtude salvadora, enquanto se demora no comboio da inferioridade seja empre­gado em atividades inferiores. A Lei estima infi­nitamente a Lógica.

Calou-se Gübio, evidentemente constrangido pe­la necessidade de não acordarmoS demasiada aten­ção em torno de nós.

Tocado, no entanto, pela miséria que ali emol­durava tanta dor, perdi-me num mar de indagações íntimas.

Que empório extravagante era aquele? algum país onde vicejassem tipos sub-humanos? Eu sabia que semelhantes criaturas não envergavam corpos carnais e que se congregavam num reino purgatorial, em beneficio próprio; entretanto, vestiam-Se de roupagens de matéria francamente imunda. Lom­broso e Freud encontrariam aí extenso material de observação. Incontáveis tipos que interessariam, de perto, à criminologia e à psicanálise. Vagueavam absortos, sem rumo. Exemplares inúmeros de pig­meus, cuja natureza em si ainda não posso precisar, passavam por nós, aos magotes. Plantas exóticas, desagradáveis ao nosso olhar, ali proliferam, e ani­mais em cópia abundante, embora monstruosos, se movimentavam a esmo, dando-me a ideia de seres acabrunhados que pesada mão transformara em duendes. Becos e despenhadeiros escuros se multiplicavam em derredor, acentuando-nos o angus­tioso assombro.

Após a travessia de vastíssima área, não sopi­tei as interrogações que me escapavam do cérebro.

O Instrutor, todavia, esclareceu, discreto:

— Guarda as perguntas intempestivas no mo­mento. Estamos numa colônia purgatorial de vasta expressão. Quem não cumpre aqui dolorosa peni­tência regenerativa, pode ser considerado inteligên­cia sub-humana. Milhares de criaturas, utilizadas nos serviços mais rudes da natureza, movimen­tam-se nestes sítios em posição infraterrestre. A ignorância, por ora, não lhes confere a glória da responsabilidade. Em desenvolvimento de tendên­cias dignas, candidatam-se à humanidade que co­nhecemos na Crosta. Situam-se entre o raciocínio fragmentário do macacóide e a idéia simples do homem primitivo na floresta. Afeiçoam-se a per­sonalidades encarnadas ou obedecem, cegamente, aos espíritos prepotentes que dominam em paisa­gens como esta. Guardam, enfim, a ingenuidade do selvagem e a fidelidade do cão. O contacto com certos indivíduos inclina-os ao bem ou ao mal e somos responsabilizados pelas Forças Superiores que nos governam, quanto ao tipo de influência que exercermos sobre a mente infantil de seme­lhantes criaturas. Com respeito aos Espíritos que se mostram nestas ruas Sinistras, exibindo formas quase animalescas, neles reparamos várias demons­trações da anormalidade a que somos conduzidos pela desarmonia interna. Nossa atividade mental nos marca o perispírito. Podemos reconhecer a propriedade do asserto, quando ainda no mundo. O glutão começa a adquirir aspecto deprimente no corpo em que habita. Os viciados no abuso do álcool passam a viver de borco, arrojados ao solo, à maneira de grandes vermes. A mulher que se habituou a mercadejar com o vaso físico, olvi­dando as sagradas finalidades da vida, apresenta máscara triste, sem sair da carne. Aqui, porém, André, o fogo devorador das paixões aviltantes revela suas vítimas com mais hedionda crueldade.

Certo, porque eu refletisse no problema de assistência, o orientador aduziu:

— É impraticável a enfermagem individual e sistemática numa cidade em que se amontoam mi­lhares de alienados e doentes. Um médico do mundo surpreenderia aqui, às centenas, casos de amnésia, de psicastenia, de loucura, através de neuroses complexas, alcançando a conclusão de que toda a patogenia permanece radicada aos ascendentes de ordem mental. Quem cura nestes lugares há de ser o tempo com a piedade celeste ou a piedade celeste por intermédio de embaixadores da renún­cia, em serviços de intercessão para os espíritos arrependidos que se refugiem na obediência aos imperativos da Lei, inspirados pela boa vontade.

Alguns transeuntes repulsivos ombrearam co­nosco e Gúbio considerou prudente silenciar.

Notei a existência de algumas organizações de serviços que nos pareceriam, na esfera carnal, in­gênuas e infantis, reconhecendo que a ociosidade era, ali, a nota dominante. E porque não visse crianças, exceção feita das raças de anões, cuja existência percebia sem distinguir os pais dos filhos, arrisquei, de novo, uma indagação, em voz baixa.

Respondeu o Instrutor, atencioso:

— Para os homens da Terra, prôpriamente considerados, este plano é quase infernal. Se a compaixão humana separa as crianças dos crimi­nosos definidos, que dizer do carinho com que a compaixão celestial vela pelos infantes?

— E porque em geral tanta ociosidade neste plano? — indaguei ainda.

— Quase todas as almas humanas, situadas nestas furnas, sugam as energias dos encarnados e lhes vampirizam a vida, qual se fôssem lampreias insaciáveis no oceano do oxigênio terrestre. Suspiram pelo retorno ao corpo físico, de vez que não aperfeiçoaram a mente para a ascensão, e perse­guem as emoções do campo carnal com o desvario dos sedentos no deserto. Quais fetos adiantados absorvendo as energias do seio materno, consomem altas reservas de força dos seres encarnados que as acalentam, desprevenidos de conhecimento su­perior. Daí, esse desespero com que defendem no mundo os poderes da inércia e essa aversão com que interpretam qualquer progresso espiritual ou qualquer avanço do homem na montanha de santi­ficação. No fundo, as bases econômicas de toda essa gente residem, ainda, na esfera dos homens comuns e, por isto, preservam, apaixonadamente, o sistema de furto psíquico, dentro do qual se sustentam, junto às comunidades da Terra.

A essa altura, defrontamos acidentes no solo, que o Instrutor nos levou a atravessar.

Subimos, dificilmente, a rua íngreme e, em pequeno planalto, que se nos descortinou aos olhos espantadiços, a paisagem alterou-se.

Palácios estranhos surgiam imponentes, reves­tidos de claridade abraseada, semelhante à auréola do aço incandescente.

Praças bem cuidadas, cheias de povo, osten­tavam carros soberbos, puxados por escravos e animais.

O aspecto devia, a nosso ver, identificar-se com o das grandes cidades do Oriente, de duzentos anos atrás.

Liteiras e carruagens transportavam persona­lidades humanas, trajadas de modo surpreendente, em que o escarlate exercia domínio, acentuando a dureza dos rostos que emergiam dos singulares indumentos.

Respeitável edifício destacava-se diante de uma fortaleza, com todos os característicos de um tem­plo, e o orientador confirmou-me as impressões, asseverando que a casa se destinava a espetaculoso culto externo.

Enquanto nos movimentávamos, admirando o suntuoso casario em contraste chocante com o vas­to reino de miséria que atravessáramos, alguém nos interpelou, descortês:

— Que fazem?

Era um homem alto, de nariz adunco e olhos felinos, com todas as maneiras do policial desrespeitoso, a identificar-nos.

— Procuramos o sacerdote Gregório, a quem estamos recomendados — esclareceu Gúbio, hu­milde.

O estranho pôs-se à frente, determinou lhe acompanhássemos as passadas, em silêncio, e guiou-nos a um casarão de feio aspecto.

— É aqui! — disse em tom seco e, após apre­sentar-nos a um homem maduro, envolvido em lon­ga e complicada túnica, retirou-se.

Gregório não nos recebeu hospitaleiramente. Fitou em Gúbio os olhos desconfiados de fera sur­preendida e interrogou:

— Vieram da Crosta, há muito tempo?

— Sim — respondeu nosso Instrutor —, e te­mos necessidade de auxilio.

— Já foram examinados?

— Não.

— E quem os enviou? — inquiriu o sacer­dote, sob visível perturbação.

— Certa mensageira de nome Matilde.

O anfitrião estremeceu, mas observou, impla­cável:

— Não sei quem seja. Todavia, podem entrar. Tenho serviços nos mistérios e não posso ouvi-los agora. Amanhã, porém, ao anoitecer, serão leva­dos aos setores de seleção, antes de admitidos ao meu serviço.

Nem mais uma palavra.

Entregues a um servidor de fisionomia desa­gradável, demandamos porão escuro, e confesso que acompanhei Gúbio e Elói, de alma conturbada por receio absorvente e indefinível.


5

Operações seletivas

Transcorridas longas horas em compartimento escuro, aproveitadas em meditações e preces, sem entendimentos verbais, fomos conduzidos, na noite imediata, a um edifício de grandes e curiosas pro­porções.

O esquisito palácio guardava a forma de enor­me hexágono, alongando-se para cima em torres pardacentas, e reunia muitos salões consagrados a estranhos serviços. fluminado externa e interior-mente pela claridade de volumosos tocheiros, apre­sentava o aspecto desagradável de uma casa incendiada.

Sob a custódia de quatro guardas da residên­cia de Gregório, que nos comunicaram a necessi• dade de exame antes de qualquer contacto direto com o aludido sacerdote, penetramos o recinto de largas dimensões, no qual se congregavam algu­mas dezenas de entidades em deploráveis condições.

Moços e velhos, homens e mulheres, aí se mis­turavam em relativo silêncio.

Alguns gemiam e choravam.

Reparei que a multidão se constituía, em sua quase totalidade, de almas doentes. Muitos pade­ciam desequilíbrios mentais visíveis.

Observei-lhes, impressionado, o aspecto enfer­miço.

O perispírito de todos os que aí se enclausura­vam, pacientes e expectadores, mostrava a mesma opacidade do corpo físico. Os estigmas da velhice, da moléstia e do desencanto, que perseguem a ex­periência humana, ali triunfavam, perfeitos...

O medo controlava os mais desesperados, por­que o silêncio caía, abafante, embora a inquietação que transparecia de todos os rostos.

Alguns servidores da casa, em trajes caracte­risticos, separavam, por grupos vários, as pessoas desencarnadas que entrariam, naquele momento, em seleção para julgamento oportuno.

Discretamente, o Instrutor elucidou-nos:

— Presenciamos uma cerimônia semanal dos juizes implacáveis que vivem sediados aqui. A ope­ração seletiva realiza-se com base nas irradiações de cada um. Os guardas que vemos em trabalho de escolha, compondo grupos diversos, são técni­cos especializados na identificação de males nume­rosos, através das cores que caracterizam o halo dos Espíritos Ignorantes, perversos e desequilibra­dos. A divisão para facilitar o serviço judiciário é, por isto mesmo, das mais completas.

A essa altura, o pessoal de Gregório nos dera tréguas, afastando-se de nós, de algum modo, não obstante vigiar-nos das galerias repletas de gente.

Respeitado o nosso trio pelos selecionadores que não nos alteraram a união, situávamo-nos, agora, no campo das vítimas.

Atento à explicação ouvida, indaguei, curioso:

— Todas estas entidades vieram constrangi­das, conforme sucedeu conosco? Há espíritos satâ­nicos, recordando as oleografias religiosas da Cros­ta, disputando as almas no leito de morte?

O orientador obtemperou, muito calmo:

— Sim. André, cada mente vive na companhia que elege. Semelhante princípio prevalece para quem respira no corpo denso ou fora dele. É im­perioso reconhecer, porém, que a maioria das almas asiladas neste sítio vieram ter aqui, obedecendo a forças de atração. Incapazes de perceber a pre­sença dos benfeitores espirituais que militam entre os homens encarnados, em tarefas de renunciação e benevolência, em vista do baixo teor vibratório em que se precipitaram, através de delitos reiterados, da ociosidade inipenitente ou da deliberada cristalização no erro, não encontraram senão o manto de sombras em que se envolveram e, des­vairadas, sozinhas, procuraram as criaturas desen­carnadas que com elas se afinam, agregando-se naturalmente a este imenso cortiço, com toda a bagagem de paixões destruidoras que lhes marcam a estrada.

Aportando aqui, sofrem, porém, a vigi­lância de inteligências poderosas e endurecidas que Imperam ditatorialmente nestas regiões, onde os frutos amargos da maldade e da indiferença enchem o celeiro dos corações desprevenidos e maliciosos.

— Oh! — exclamei em voz sussurrante — por que motivo confere o Senhor atribuições de julga­dores a Espíritos despóticos? porque estará a jus­tiça, nesta cidade estranha, em mãos de príncipes diabólicos?

Gúbio estampou na fisionomia significativa ex­pressão e ajuntou:

— Quem se atreveria a nomear um anjo de amor para exercer o papel de carrasco? Ao demais, como acontece na Crosta Planetária, cada posição, além da morte, é ocupada por aquele que a deseja e procura.

Vagueei o olhar, em derredor, e confrangeu­-se-me toda a alma. Na comunidade das vitimas, arrebanhadas aos magotes, como se fôssem animais raros para uma festa, predominavam a humildade e a aflição; mas, entre as sentinelas que nos no­deavam, a peçonha da ironia transbordava.

Palavrões eram desferidos, desrespeitosamente, a esmo.

A frente de vasta tribuna vazia e sob as ga­lerias laterais abarrotadas de povo, compacta multidão se amontoava, irreverente.

Alguns minutos decorreram, desagradáveis e pesados, quando absorvente vozento se fêz ouvido:

— Os magistrados! os magistrados! Lugar! lugar para os sacerdotes da justiça!

Procurei a paisagem exterior, curiosamente, tanto quanto me era possível, e vi que funcionários rigorosamente trajados à moda dos lictores da Roma antiga, carregando a simbólica machadinha (fasces) ao ombro, avançavam, ladeados por ser­vidores que sobraçavam grandes tochas a lhes clarearem o caminho. Penetraram o átrio em passos rítmicos e, depois deles, sete andores, susten­tados por dignitários diversos daquela corte brutali­zada, traziam os juizes, esquisitamente ataviados.

Que solenidade religiosa era aquela? As pol­tronas suspensas eram, em tudo, idênticas à “sédia gestatória” das cerimônias papalinas.

Varando, agora, o recinto, os lictores passaram o instrumento simbólico às mãos e alinharam-se, corretos, perante a tribuna espaçosa, sobre a qual resplandecia alarmante facho de luz.

Os julgadores, por sua vez, desceram, pompo­sos, dos tronos içados e tomaram assento numa espécie de nicho a salientar-se de cima, inspirando silêncio e temor, porque a turba inconsciente, em redor, calou-se de súbito.

Tambores variados rufaram, como se estivés­semos numa parada militar em grande estilo, e uma composição musical semi-selvagem acompa­nhou-lhes o ritmo, torturando-nos a sensibilidade.

Terminado aquele ruído, um dos julgadores se levantou e dirigiu-se à massa, aproximadamente nestes termos:

— “Nem lágrimas, nem lamentos.

Nem sentença condenatória, nem absolvição gratuita.

Esta casa não pune, nem recompensa.

A morte é caminho para a justiça.

Escusado qualquer recurso à compaixão, entre criminosos.

Não somos distribuidores de sofrimento, e, sim, mordomos do Governo do Mundo.

Nossa função é a de selecionar delinqüentes, a fim de que as penas lavradas pela vontade de cada um sejam devidamente aplicadas em lugar e tempo justos.

Quem abriu a boca para vilipendiar e ferir, prepare-se a receber, de retorno, as forças tremen­das que desencadeou através da palavra envene­nada.

Quem abrigou a calúnia, suportará os gênios infelizes aos quais confiou os ouvidos.

Quem desviou a visão para o ódio e para a desordem, descubra novas energias para contemplar os resultados do desequilíbrio a que se consagrou, espontaneamente.

Quem utilizou as mãos em sementeiras de ma­lícia, discórdia, inveja, ciúme e perturbação deliberada, organize resistência para a colheita de es­pinhos.

Quem centralizou os sentidos no abuso de fa­culdades sagradas espere, doravante, necessidades enlouquecedoras, porque as paixões envilecentes, mantidas pela alma no corpo físico, explodem aqui, dolorosas e arrasadoras. A represa por longo tem­po guarda micróbios e monstros, segregados a dis­tância do curso tranquilo das águas; todavia, chega um momento em que a tempestade ou a decadência surpreendem a obra vigorosa de alvenaria e as for­mas repelentes, libertadas, se espalhem e crescem em toda a extensão da corrente.

Seguidores do vício e do crime, tremei!

Condenados por vós mesmos, conservais a men­te prisioneira das mais baixas forças da vida, à maneira do batráquio encarcerado no visco do pân­tano, ao qual se habituou no transcurso dos sé­culos!. .

Nesse ponto, o orador fêz pausa e reparei os circunstantes.

Olhos esgazeados pelo pavor jaziam abertos em todas as máscaras fisionômicas.

O juiz, por sua vez, não parecia respeitar o menor resquício de misericórdia. Mostrava-se inte­ressado em criar ambiente negativo a qualquer es­pécie de soerguimento moral, estabelecendo nos ouvintes angustioso temor.

Prolongando-se o intervalo, enderecei com o olhar silenciosa interrogação ao nosso orientador, que me falou quase em segredo:

— O julgador conhece à saciedade as leis mag­néticas, nas esferas inferiores, e procura hipnotizar as vítimas em sentido destrutivo, não obstante usar, como vemos, a verdade contundente.

— Não vale acusar a edilidade desta colônia — prosseguiu a voz trovejante —, porque ninguém escapará aos resultados das próprias obras, quanto o fruto não foge às propriedades da árvore que o produziu.

Amaldiçoados sejam pelo Governo do Mundo quem nos desrespeite as deliberações, baseadas, aliás, nos arquivos mentais de cada um.

Assinalando, intuitivamente, a queixa mental dos ouvintes, bradou, terrificante:

— Quem nos acusa de crueldade? Não será benfeitor do espírito coletivo o homem que se con­sagra à vigilância de uma penitenciária? e quem sois vós, senão rebotalho humano? Não viestes, até aqui, conduzidos pelos próprios ídolos que ado­rastes?

Nesse momento, convulsivo choro invadiu a muitos.

Gritos atormentados, rogativas de compaixão se fizeram ouvir. Muitos se prosternaram de joelhos.

Imensa dor generalizara-se.

Gúbio trazia a destra sobre o peito, como se contivesse o coração, mas, vendo por minha vez aquele grande grupo de espíritos rebelados e hu­milhados, orgulhosos e vencidos, lastimando amargamente as oportunidades perdidas, recordei meus velhos caminhos de ilusão e — porque não dizer? — ajoelhei-me também, compungido, implorando pie­dade em silêncio.

Exasperado, o julgador bradou, colérico:

— Perdão? Quando desculpastes sinceramente os companheiros da estrada? onde está o juiz reto que possa exercer, impune, a misericórdia?

E incidindo toda a força magnética que lhe era peculiar, através das mãos, sobre uma pobre mulher que o fixava, estarrecida, ordenou-lhe com voz soturna:

— Venha! venha!

Com expressão de sonâmbula, a infeliz obe­deceu à ordem, destacando-se da multidão e colocando-se, em baixo, sob os raios positivos da aten­ção dele.

— Confesse! confesse! — determinou o desa­piedado julgador, conhecendo a organização frágil e passiva a que se dirigia.

A desventurada senhora bateu no peito, dan­do-nos a impressão de que rezava o “confiteor” e gritou, lacrimosa:

— Perdoai-me! perdoai-me, ó Deus meu!

E como se estivesse sob a ação de droga mis­teriosa que a obrigasse a desnudar o íntimo, diante de nós, falou, em voz alta e pausada:

— Matei quatro filhinhos inocentes e ten­ros... e combinei o assassínio de meu intolerável esposo... O crime, porém, é um monstro vivo. Perseguiu-me, enquanto me demorei no corpo...

Tentei fugir-lhe através de todos os recursos, em vão... e por mais buscasse afogar o infortúnio em “bebidas de prazer”, mais me chafurdei no charco de mim mesma...

De repente, parecendo sofrer a interferência de lembranças menos dignas, clamou:

— Quero vinho! vinho! prazer!...

Em vigorosa demonstração de poder, afirmou, triunfante, o magistrado:

— Como libertar semelhante fera humana ao preço de rogativas e lágrimas?

Em seguida, fixando sobre ela as irradiações que lhe emanavam do temível olhar, asseverou, peremptório:

— A sentença foi lavrada por si mesma! não passa de uma loba, de uma loba...

A medida que repetia a afirmação, qual se procurasse persuadi-la a sentir-se na condição do irracional mencionado, notei que a mulher, pro­fundamente influenciável, modificava a expressão fisionômica. Entortou-se-lhe a boca, a cerviz cur­vou-se, espontânea, para a frente, os olhos alteraram-se, dentro das órbitas. Simiesca expressão revestiu-lhe o rosto.

Via-se, patente, naquela exibição de poder, o efeito do hipnotismo sobre o corpo perispirítico.

Em voz baixa, procurei recolher o ensinamento de Gúbio, que me esclareceu num cicio:

— O remorso é uma bênção, sem dúvida, por levar-nos à corrigenda, mas também é uma bre­cha, através da qual o credor se insinua, cobrando pagamento. A dureza coagula-nos a sensibilidade durante certo tempo; todavia, sempre chega um minuto em que o remorso nos descerra a vida men­tal aos choques de retorno das nossas próprias emissões.

E acentuando, de modo singular, a voz quase imperceptível, acrescentou:

— Temos aqui a gênese dos fenômenos de li­cantropia, inextricáveis, ainda, para a investigação dos médicos encarnados. Lembras-te de Nabuco­donosor, o rei poderoso, a que se refere a Bíblia? Conta-nos o Livro Sagrado que ele viveu, sentin­do-se animal, durante sete anos. O hipnotismo étão velho quanto o mundo e é recurso empregado pelos bons e pelos maus, tomando-se por base, acima de tudo, os elementos plásticos do peris­pírito.

Notando, porém, que a mulher infeliz prosse­guia guardando estranhos caracteres no semblante perguntei:

— Esta irmã infortunada permanecerá dora­vante em tal aviltamento da forma?

Finda longa pausa, o Instrutor informou, com tristeza:

— Ela não passaria por esta humilhação se não a merecesse. Além disso, se se adaptou às energias positivas do juiz cruel, em cujas mãos veio a cair, pode também esforçar-se intimamente, renovar a vida mental para o bem supremo e afei­çoar-se à influenciação de benfeitores que nunca escasseiam na senda redentora. Tudo, André, em casos como este, se resume a problema de sintonia. Onde colocamos o pensamento, aí se nos desenvol­verá a própria vida.

O orientador não conseguiu continuar.

Ao redor de nós, as lamentações se fizeram estridentes.

Interjeições de espanto e dor eram proferidas sem rumo.

O magistrado, que detinha a palavra, deter­minou silêncio e exprobrou, asperamente, a atitude dos queixosos. Logo após, notificou que os Espí­ritos Seletores se materializariam, em breves minutos, e que os interessados poderiam solicitar deles as explicações que desejassem.

Concomitantemente, ergueu as mãos em mímica reverencial e, fazendo-nos sentir que presidia ao estranho cenáculo, fêz uma invocação em alta voz, denunciando, nos ges­tos, a condição de respeitável hierofante, em grande solenidade.

Terminada que foi a alocução, vasto lençol nebuloso, semelhante a uma nuvem móvel, apareceu na tribuna que se mantinha, até então, des­povoada.

E pouco a pouco, diante de nossos olhos as­sombrados, três entidades tomaram forma perfeitamente humana, apresentando uma delas, a que no porte guardava maior autoridade hierárquica, pequeno instrumento cristalino nas mãos.

Trajavam túnicas de curiosa e indefinível subs­tância em amarelo vivo e revestiam-se de halo afogueado, não brilhante. Essa auréola, mais acen­tuadamente viva em volta da fronte, desferia radia­ções perturbadoras, que recordavam a esbraseada expressão do ferro incandescido.

Ambos os acólitos da personalidade central do trio tomaram folhas de apontamento num cofre vizinho e, ladeando-a, desceram até nós, em si­lencio.

Inesperada quietação tomou a turba, dantes agitada.

Ainda não sei de que recôndita organização provinham tais funcionários espirituais; no entan­to, reparei que o chefe da expedição tríplice mos­trava infinita melancolia na tela fisionômica.

Alçou ele o instrumento cristalino, à frente do primeiro grupo, formado de catorze homens e mulheres de vários tipos. Efetuou observações que não pude acompanhar e disse algo aos companhei­ros que se dispuseram à anotação imediata. Antes, porém, que se retirasse, dois membros do conjunto avançaram implorando socorro:

— Justiça! justiça! — suplicou o primeiro — estou punido sem culpa... Fui homem de pensamento e de letras, entre as criaturas encarnadas... Porque deverei suportar a companhia dos ava­rentos?

Fitando o seletor, angustiadamente, reclamou:

— Se escolheis com eqüidade, livrai-me do la­birinto em que me vejo!

Não terminara, e o segundo interferiu, ajun­tando:

— Magistrado venerável, por quem sois!... não pertenço à classe dos sovinas. Imantaram-me a seres sórdidos e desprezíveis! Minha vida trans­correu entre livros, não entre moedas.. - A Ciência fascinou-me, os estudos eram meu tema predi­leto... Pode, assim, o intelectual equiparar-se ao usurário?

O dirigente da seleção mostrou reservada pie­dade no semblante calmo e elucidou, firme:

— Clamais debalde, porque desagradável vi­bração de egoísmo cristalizante vos caracteriza a todos. Que fizestes do tesouro cultural recebido? Vosso “tom vibratório” demonstra avareza sarcástica. O homem que ajunta letras e livros, teorias e valores científicos, sem distribuí-los a benefício dos outros, é irmão infortunado daquele que amon­toa moedas e apólices, títulos e objetos preciosos, sem ajudar a ninguém. O mesmo prato lhes serve na balança da vida.

— Por amor de Deus! — suplicou um dos cir­cunstantes, comovedoramente.

— Esta casa é de justiça, em nome do Governo do Mundo! — afiançou o explicador sem alterar-se.

E impassível, embora visivelmente amargura­do, pôs-se em marcha.

Auscultava uma formação de oito pessoas; todavia, enquanto se comunicava com os assessores, acerca das observações recolhidas, um cava­lheiro de faces macilentas salientóu-se e exclamou, estadeando enorme fúria:

— Que ocorre neste recinto misterioso? estou entre caluniadores confessos, quando desempenhei o papel de homem honrado... Criei numerosa fa­mília, nunca trai as obrigações sociais, fui cor­reto e digno e, não obstante aposentado desde cedo, cumpri todos os deveres que o mundo me assi­nalou...

Com acento colérico, aduzia, aflito:

— Quem me acusa?... quem me acusa?...

O selecionador elucidou, sereno:

— A condenação transparece de vós mesmo. Caluniastes vosso próprio corpo, inventando para ele impedimentos e enfermidades que só existiam em vossa imaginação, interessada na fuga ao tra­balho benéfico e salvador. Debitastes aos órgãos robustos deficiências e moléstias deploráveis, tão somente no propósito de conquistardes repouso prematuro. Conseguistes quanto pretendi eis.

Empe­nhastes amigos, subornastes consciências delituosas e obtivestes o descanso remunerado, durante qua­renta anos de experiência terrestre em que outra ação não desenvolvestes senão dormir e conversar sem proveito. Agora, é razoável que o vosso círculo vital se identifique ao de quantos se mergulharam no pântano da calúnia criminosa.

O infeliz não teve forças para a tréplica. Sub­meteu-se, em lágrimas, à argumentação ouvida e retomou o lugar que lhe competia.

Alcançando o terceiro grupo, constituído de mulheres diversas, mal havia aplicado o singular instrumento ao campo vibratório que lhes dizia respeito, foi o mensageiro abordado por uma senhora, pavorosamente desfigurada, que lhe lançou em rosto atrozes queixas.

— Porque tamanha humilhação? — inquiriu em pranto copioso — fui dona de uma casa que me encheu de trabalho, voltei para cá rodeada de especiais considerações, naturalmente devidas ao meu estado social e arrebanham-me entre mulheres sem pudor? que autoridades são estas que impõem a mim, dama de nobre procedência, o convívio de meretrizes?

Forte crise de soluços embargou-lhe a voz.

O selecionador, no entanto, dentro de uma calma que mais se avizinhava da frieza, declarou sem rebuços:

— Estamos numa esfera onde o equívoco se faz mais difícil. Consultai a própria consciência.

Teríeis sido, realmente, a padroeira de um lar respeitável, como julgais? O teor vibratório asse­vera que as vossas energias santificantes de mu­lher, em maior parte, foram desprezadas.

Vossos arquivos mentais se reportam a desregramentos emotivos em cuja extinção gastareis longo tempo. Ao que parece, o altar doméstico não foi bem o vosso lugar.

A senhora gritou, gesticulou, protestou, mas os selecionadores prosseguiram na tarefa a que se impunham.

Ao nosso lado, aplicou o instrumento, em que se salientavam pequeninos espelhos e falou para os auxiliares, definindo-nos a posição:

— Entidades neutras.

Fixou-nos com penetrante fulguração de olhar, como se nos surpreendesse, mudo, as intenções mais profundas e passou adiante.

Instado por mim, Gúbio esclareceu:

— Não fomos acusados. Ser-nos-á possível o engajamento no serviço desejado.

— Que aparelho vem a ser esse? — indagou Elói, antecipando-me a curiosidade.

O orientador não se fêz rogado e elucidou:

— Trata-se de um captador de ondas men­tais. A seleção individual exigiria longas horas. As autoridades que dominam nestas regiões pre­ferem a apreciação em grupo, o que se faz pos­sível pelas cores e vibrações do círculo vital que nos rodeia a cada um.

— Porque nos considerou neutros? — inter­roguei por minha vez.

— O instrumento não é suscetível de marcar a posição das mentes que já se transferiram para

a nossa esfera. É recurso para a identificação de perispíritos desequilibrados e não atinge a zona

superior.

— Mas — perguntei, ainda —, porque se fala nesta casa em nome do Governo do Mundo?

O Instrutor endereçou-me expressivo gesto e ajuntou:

— André, não te esqueças de que nos encon­tramos num plano de matéria algum tanto densa e não nos círculos de gloriosa santidade. Não olvides a palavra “evolução” e recorda que os maiores crimes das civilizações terrestres foram cometidos em nome da Divindade. Quanta vez, no corpo físico, notamos sentenças cruéis, emitidas por espíritos ignorantes, em nome de Deus?

Pouco a pouco, a cerimônia terminou com a mesma imponência de culto externo em que se havia iniciado e, sob a vigilância das sentinelas, tornamos ao ponto de origem, guardando inesperadas meditações e profundos pensamentos.


6

Observações e novidades

De volta ao domicilio de Gregório, fomos trans­feridos da cela trevosa para um aposento de janelas gradeadas, onde tudo desagradava à vista. Certo, devíamos a mudança ao resultado encorajador que alcançáramos nas operações seletivas, mas, em ver­dade, ainda aí, nos achávamos em autêntico par­dieiro. De qualquer modo, era para nós imenso consolo contemplar algumas estrelas, através do nevoeiro que assaltava a paisagem noturna.

O Instrutor, versado em expedições idênticas à nossa, recomendou-úos não tocar os varões de metal que nos impediam a retirada, esclarecendo se acha­vam imantados por forças elétricas de vigilância e acentuando que a nossa condição ainda era de simples prisioneiros.

Aproximamo-nos, porém, das janelas que nos comunicavam com o exterior e reparei que o espe­táculo era digno de estudo.

Grande movimento na via pública, congre­gando vários grupos de criaturas, em conversação não longe de nós.

Os diálogos e entendimentos surpreendiam. Quase todos se referiam à esfera carnal.

Questões minuciosas e pequeninas da vida par­ticular eram analisadas com inequívoco interesse; contudo, as notas dominantes caíam no desequilí­brio sentimental e nas emoções primárias da expe­riência física.

Percebi diferentes expressões nos “halos vi­bratórios” que revestiam a personalidade dos con­versadores, através das cores de variação típica.

Dirigi-me a Gúbio, buscando-lhe oportuno es­clarecimento.

— Não mediste, ainda — respondeu, presti­moso —‘ a extensão do intercâmbio entre encarna­dos e desencarnados. A determinadas horas da noite, três quartas partes da população de cada um dos hemisférios da Crosta Terrestre se acham nas zonas de contacto conosco e a maior percentagem desses semi-libertos do corpo, pela influência na­tural do sono, permanecem detidos nos círculos de baixa vibração qual este em que nos movimenta­mos provisoriamente. Por aqui, muitas vezes se forjam dolorosos dramas que se desenrolam nos campos da carne. Grandes crimes têm nestes sítios as respectivas nascentes e, não fôsse o trabalho ativo e constante dos Espíritos protetores que se desvelam pelos homens no labor sacrificial da cari­dade oculta e da educação perseverante, sob a égide do Cristo, acontecimentos mais trágicos estar­receriam as criaturas.

De alma voltada para as noções da vida imensa que o ambiente sugeria, rememorei o curso inces­sante das civilizações. Pensamentos mais altos cla­rearam-me os raciocínios. A Bondade do Senhor não violenta o coração. O Reino Divino nascerá dentro dele e, à maneira da semente de mostarda que se liberta dos envoltórios inferiores, medrará e crescerá gradativamente, sob os impulsos constru­tivos do próprio homem.

Que temerária concepção a de um paraíso fácil!

Gúbio percebeu-me a posição mental e falou em socorro de minhas pobres reflexões intimas:

— Sim, André, a coroa da sabedoria e do amor é conquistada por evolução, por esforço, por asso­ciação da criatura aos propósitos do Criador. A marcha da Civilização é lenta e dolorosa.

Formi­dandos atritos se fazem indispensáveis para que o espírito consiga desenvolver a luz que lhe é própria. O homem encarnado vive simultaneamente em três planos diversos. Assim como ocorre à árvore que se radica no solo, guarda ele raizes transitórias na vida física; estende os galhos dos sentimentos e desejos nos círculos de matéria mais leve, quanto o vegetal se alonga no ar; e é sustentado pelos princípios sutis da mente, tanto quanto a árvore é garantida pela própria seiva. Na árvore, temos raiz, copa e seiva por três processos diferentes de manutenção para a mesma vida e. no homem, vemos corpo denso de carne, organização perispirítica em tipo de matéria mais rarefeita e mente, represen­tando três expressões distintas de base vital, com vistas aos mesmos fins.

Segundo observamos, o homem exige para sustentar-se, no quadro evolu­cionário, segurança relativa no campo biológico, alimento das emoções que lhe são próprias nas esferas de vida psíquica que se afinam com ele e base mental no mundo íntimo. A vida é patrimônio de todos, mas a direção pertence a cada um. A inteligência caída precipita-se, despenhadeiro abai­xo, encontrando sempre, nos círculos inferiores que elege por moradia, milhões de vidas inferiores, jun­to às quais é aproveitada pela Sabedoria Celestial para maior glorificação da obra divina. Na eco­nomia do Senhor, coisa alguma se perde e todos os recursos são utilizados na química do Infinito Bem. Aqui mesmo, nesta cidade, tínhamos, a princípio, autêntico império de vidas primitivas que, pouco a pouco, se fêz ocupado por extensas coletividades de almas vaidosas e cruéis.

Entrincheiraram-se nestes sítios, guardando o louco propósito de hos­tilizar a Bondade Excelsa, e exercem funções úteis junto a enorme agrupamento de criaturas, ainda sub-humanas, não obstante atenderem a serviço que para nós outros seria presentemente insupor­tável. Usam a violência em largas doses, todavia, no curso dos anos, a influenciação intelectual delas trará grandes benefícios aos oprimidos de agora e estejamos convictos de que, apesar de blasonarem inteligência e poder, permanecerão nos postos que ocupam apenas enquanto perdurar o consentimento da Divina Direção, atento ao princípio que deter­mina tenha cada assembleia o governo que merece.

O Instrutor confiou-Se a pausa mais longa e concentrei minha atenção numa dupla feminina que conversava, rente à grade.

Certa mulher já desencarnada dizia para a companheira, ainda presa à experiência física, parcialmente liberta nas asas do sono:

— Notamos que você, ültimamente, anda mais fraca, mais serviçal... Estará desencantada, quan­to aos compromissos assumidos?

A interpelada explicou um tanto confundida:

— Acontece que João se filiou a um círculo de preces, o que, de alguma sorte, nos vem alterando a vida.

A outra deu um salto à retaguarda, ao modo de um animal surpreendido e gritou:

— Orações? você está cega quanto ao perigo que isso significa? Quem reza cai na mansidão.

É necessário espezinhá-lo, torturá-lo, feri-lo, a fim de que a revolta o mantenha em nosso círculo. Se ganhar piedade, estragar-nos-á o plano, deixando de ser nosso instrumento na fábrica.

A interlocutora, no entanto, observou, ingênua:

— Ele se diz mais calmo, mais confiante...

— Marina — obtemperou a outra, intempes­tiva —, você sabe que não podemos fazer milagres e não é justo aceitar regras e intrujices de espíri­tos acovardados que, a pretexto de fé religiosa, se arvoram em ditadores de salvação. Precisamos de seu marido e de muitas outras pessoas que a ele se agregam em serviço e em nosso nível, O projeto é enorme e interessante para nós. Já esqueceu quanto sofremos? Eu, de mim mesma, tenho duras lições por retribuir.

E batendo-lhe esquisitamente nos ombros, acen­tuava:

- Não admita encantamentos espirituais. A realidade é nossa e cabe-nos aproveitar o ensejo, integralmente. Volte para o corpo e não ceda um milímetro. Corra com os apóstulos improvisados.

Fazem-nos mal. Prenda João, controlando-lhe O tempo. Desenvolva serviço eficiente e não o liberte. Fira-o devagarinho. O desespero dele chegará, por fim, e, com as forças da insubmissão que forem exteriorizadas em nosso favor, alcançaremos os fins a que nos propomos. Nada de transigência. Não se atemorize com promessas de inferno ou céu depois da morte. Em toda parte a vida é aquilo que faze­mos dela.

Boquiaberto com o que me era dado perceber, reparei que a entidade astuta e vingativa envolvia a interlocutora em fluidos sombrios, à maneira dos hipnotizadOreS comunS.

Enderecei olhar interrogativo ao nosso orien­tador que, após haver atenciosamente acompanhado a cena, informou, prestimoso:

— A obsessão desse teor apresenta milhões de casos. De manhãzinha, na Esfera da Crosta, essa pobre mulher, vacilante na fé, incapaz de apreciar a felicidade que o Senhor lhe concedeu num casa­mento digno e tranquilo, despertará no corpo, de alma desconfiada e abatida. Oscilando entre o “crer” e o “não crer” não saberá polarizar a mente na confiança com que deve enfrentar as dificuldades do caminho e aguardar as manifestações santifican­tes do Alto e, em face da incerteza intima, em que se lhe caracterizam as atitudes, demorar-se-á iman­tada a essa irmã ignorante e infeliz, que a perse­gue e subjuga para conseguir deplorável vingança. Converter-se-á, por isso, em objeto de acentuada aflição para o esposo e suas conquistas incipientes periclitarão.

— Como se libertaria de semelhante inimiga? — perguntou Elói, interessado.

— Mantendo-Se num padrão de firmeza supe­rior, com suficiente disposição para o bem.

Com esse esforço, nobre e contínuo, melhoraria inten­sivamente os seus princípios mentais, afeiçoando-os ás fontes sublimes da vida e, ao invés de conver­ter-se em material absorvente das irradiações en­fermiças e depressivas, passaria a emitir raios transformadores e construtivos, em beneficio de si mesma e das entidades que se lhe aproximam do caminho. Em todos os quadros do Universo, somos satélites uns dos outros, Os mais fortes arrastam os mais fracos, entendendo-se, porém, que o mais frágil de hoje pode ser a potência mais alta de amanhã, conforme nosso aproveitamento individual. Expedimos raios magnéticos e recebemo-los ao mes­mo tempo. É imperioso reconhecer, todavia, que aqueles que se acham sob o controle de energias cegas, acomodando-se aos golpes e sugestões da força tirânica, emitidos pelas inteligências per­versas que os assediam, demoram-se, longo tempo, na condição de aparelhos receptores da desordem psíquica. Muito difícil reajustar alguém que não deseja reajustar-se. A ignorância e a rebeldia são efetivamente a matriz de sufocantes males.

Ante o intervalo espontâneo, reparei, não longe de nós, como que ligadas às personalidades sob nosso exame, certas formas indecisas, obscuras. Semelhavam-se a pequenas esferas ovóides, cada uma das quais pouco maior que um crânio humano. Variavam profusamente nas particularidades. Al­gumas denunciavam movimento próprio, ao jeito de grandes amebas, respirando naquele clima espi­ritual; outras, contudo, pareciam em repouso, apa­rentemente inertes, ligadas ao halo vital das per­sonalidades em movimento.

Fixei, demoradamente, o quadro, com a per­quirição do laboratorista diante de formas desco­nhecidas.

Grande número de entidades, em desfile nas vizinhanças da grade, transportavam essas esferas vivas, como que imantadas às irradiações que lhes eram próprias.

Nunca havia observado, antes, tal fenômeno.

Em nossa colônia de residência, ainda mesmo em se tratando de criaturas perturbadas e sofredoras, o campo de emanações era sempre normal. E quando em serviço, ao lado de almas em desequi­líbrio, na Esfera da Crosta, nunca vira aquela irregularidade, pelo menos quanto me fora, até ali, permitido observar.

Inquieto, recorri ao Instrutor, rogando-lhe ajuda.

— André — respondeu ele, circunspecto, evi­denciando a gravidade do assunto —, compreendo-te o espanto. Vê-se, de pronto, que és novo em serviços de auxílio. Já ouviste falar, de certo, numa “se­gunda morte”

— Sim — acentuei —, tenho acompanhado vá­rios amigos à tarefa reencarnacionista, quando, atraídos por imperativos de evolução e redenção, tornam ao corpo de carne. De outras vezes, raras aliás, tive notícias de amigos que perderam o veí­culo perispiritual (1), conquistando planos mais altos. A esses missionários, distinguidos por eleva­dos títulos na vida superior, não me foi possível seguir de perto.

Gúbio sorriu e considerou:

— Sabes, assim, que o vaso perispirítico étambém transformável e perecível, embora estruturado em tipo de matéria mais rarefeita.

— Sim... — acrescentei, reticencioso, em mi­nha sede de saber.

— Viste companheiros — prosseguiu o orien­tador —, que se desfizeram dele, rumo a esferas sublimes, cuja grandeza por enquanto não nos é dado sondar, e observaste irmãos que se submeteram a operações redutivas e desintegradoras dos elementos perispiríticos para renascerem na carne

(1) O perispírito, mais tarde, será objeto de mais amplos estudos das escolas espiritistas cristãs. — Nota do Autor espiritual.

terrestre. Os primeiros são servidores enobrecidos e gloriosos, no dever bem cumprido, enquanto que os segundos são colegas nossos, que já merecem a reencarnação trabalhada por valores intercessores, mas, tanto quanto ocorre aos companheiros respei­táveis desses dois tipos, os ignorantes e os maus, os transviados e os criminosos também perdem, um dia, a forma perispiritual.

Pela densidade da mente, saturada de impulsos inferiores, não con­seguem elevar-se e gravitam em derredor das pai­xões absorventes que por muitos anos elegeram em centro de interesses fundamentais. Grande número, nessas circunstâncias, mormente os participantes de condenáveis delitos, imantam-se aos que se lhes associaram nos crimes. Se o discípulo de Jesus se mantém ligado a Ele, através de imponderáveis fios de amor, inspiração e reconhecimento, os pu­pilos do ódio e da perversidade se demoram unidos, sob a orientação das inteligências que os entrela­çam na rede do mal. Enriquecer a mente de co­nhecimentos novos, aperfeiçoar-lhe as faculdades de expressão, purificá-la nas correntes iluminativas do bem e engrandecê-la com a incorporação definitiva de princípios nobres é desenvolver nosso corpo glorioso, na expressão do apóstolo Paulo, es­truturando-o em matéria sublimada e divina. Essa matéria, André, é o tipo de veículo a que aspiramos, ao nos referirmos à vida que nos é superior. Esta­mos ainda presos às aglutinações celulares dos ele­mentos físio-perispiríticos, tanto quanto a tartaru­ga permanece algemada à carapaça. Imergimo-nos dentro dos fluidos carnais e deles nos libertamos, em vicioso vaivém, através de existências nume­rosas, até que acordemos a vida mental para ex­pressões santificadoras.

Somos quais arbustos do solo planetário. Nossas raízes emocionais se mer­gulham mais ou menos profundamente nos círculos da animalidade primitiva. Vem a foice da morte e sega-nos os ramos dos desejos terrenos; todavia, nossos vínculos guardam extrema vitalidade nas camadas inferiores e renascemos entre aqueles mes­mos que se converteram em nossos associados de longas eras, através de lutas vividas em comum, e aos quais nos agrilhoamos pela comunhão de in­teresses da linha evolutiva em que nos encontramos.

As elucidações eram belas e novas aos meus ouvidos, e, em razão disso, calei as interrogações que me vagueavam no íntimo, para atenciosamente registrar as considerações do Instrutor, que pros­seguiu:

— A vida física é puro estágio educativo, den­tro da eternidade, e a ela ninguém é chamado a fim de candidatar-se a paraísos de favor e, sim, àmoldagem viva do céu no santuário do Espírito, pelo máximo aproveitamento das oportunidades re­cebidas no aprimoramento de nossos valores men­tais, com o desabrochar e evolver das sementes di­vinas que trazemos conosco. O trabalho incessante para o bem, a elevação de motivos na experiência transitória, a disciplina dos impulsos pessoais, com amplo curso às manifestações mais nobres do sen­timento, o esforço perseverante no infinito bem, constituem as vias de crescimento mental, com aquisição de luz para a vida imperecível. Cada criatura nasce na Crosta da Terra para enrique­cer-se através do serviço à coletividade. Sacrifi­car-se é superar-se, conquistando a vida maior. Por isto mesmo, o Cristo asseverou que o maior no Reino Celeste é aquele que se converter em servo de todos. Um homem poderá ser temido e respeitado no Planeta pelos títulos que adquiriu à convenção humana, mas se não progrediu no domínio das idéias, melhorando-se e aperfeiçoando-se, guarda consigo mente estreita e enfermiça. Em suma, ir à matéria física e dela regressar ao campo de trabalho em que nos achamos presentemente, é sub­metermo-nos a profundos choques biológicos, des­tinados à expansão dos elementos divinos que nos integrarão, um dia, a forma gloriosa.

E porque me visse na atitude do aprendiz que interroga em silêncio, Gúbio asseverou:

— Para fazer-me mais claro, voltemos ao sím­bolo da árvore, O vaso físico é o vegetal, limitado no espaço e no tempo, o corpo perispirítico é o fruto que consubstancia o resultado das variadas operações da árvore, depois de certo período de maturação, e a matéria mental é a semente que representa o substrato da árvore e do fruto, con­densando-lhes as experiências. A criatura para ad­quirir sabedoria e amor renasce inúmeras vezes, no campo fisiológico, à maneira da semente que re­gressa ao chão. E quantos se complicam, delibera­damente, afastando-se do caminho reto na direção de zonas irregulares em que recolhem experimentos doentios, atrasam, como é natural, a própria mar­cha, perdendo longo tempo para se afastarem do terreno resvaladiço a que se relegaram, ligados a grupos infelizes de companheiros que, em compa­nhia deles, se extraviaram através de graves com­promissos com a leviandade ou com o desequilíbrio.

Compreendeste, agora?

Apesar da gentileza do orientador, que fazia o possível por clarear o seu pensamento, ousei indagar:

— E se consultarmos esses esferóides vivos? ouvir-nos-ão? possuem capacidade de sintonia?

Gúbio atendeu, solícito:

— Perfeitamente, compreendendo-se, porém, que a maioria das criaturas, em semelhante posição nos sítios inferiores quanto este, dormitam em es­tranhos pesadelos. Registram-nos os apelos, mas respondem-nos, de modo vago, dentro da nova for­ma em que se segregam, incapazes que são, provi­soriamente, de se exteriorizarem de maneira com­pleta, sem os veículos mais densos que perderam, com agravo de responsabilidade, na inércia ou na prática do mal. Em verdade, agora se categorizam em conta de fetos ou amebas mentais, mobilizáveis, contudo, por entidades perversas ou rebeladas. O caminho de semelhantes companheiros é a reencar­nação na Crosta da Terra ou em setores outros de vida congênere, qual ocorre à semente destinada à cova escura para trabalhos de produção, seleção e aprimoramento. Claro que os Espíritos em evo­lução natural não assinalam fenômenos dolorosos em qualquer período de transição, como o que examinamos. A ovelha que prossegue, firme, na senda justa, contará sempre com os benefícios de­correntes das diretrizes do pastor; no entanto, as que se desviam, fugindo à jornada razoável, pelo simples gosto de se entregarem à aventura, nem sempre encontrarão surpresas agradáveis ou cons­trutivas.

O orientador silenciou por momentos e per­guntou, em seguida:

— Entendeste a importância de uma existên­cia terrestre?

Sim, entendia, por experiência própria, o valor da vida corporal na Crosta Planetária; contudo, ali, diante dos esferóides vivos, tristes mentes humanas sem apetrechos de manifestação, meu respeito ao veículo de carne cresceu de modo espantoso. Al­cancei, então, com mais propriedade, o sublime conteúdo das palavras do Cristo: “andai, enquanto tendes luz”. O assunto era fascinante e tentei Gúbio a examiná-lo, mais detidamente; todavia, o orientador, sem trair a cortesia que lhe é carac­terística, recomendou-me esperasse o dia seguinte.


7

Quadro doloroso

De manhã, um emissário do sacerdote Gre­gório, com semblante mal humorado, veio notifi­car-nos, em nome dele, que dispúnhamos de liber­dade até as primeiras horas da tarde, quando nos receberia para entendimento particular.

Ausentamo-nos do cubículo, sinceramente desa­fogados.

A noite fora simplesmente aflitiva, pelo menos para mim que não conseguira qualquer quietação no repouso. Não sômente o ruido exterior se fizera contínuo e desagradável, mas também a atmosfera pesava, asfixiante. As alucinadoras conversações no ambiente me perturbavam e feriam.

Convidou-nos Gúbio a pequena excursão edu­cativa, asseverando-me, bondoso:

— Vejamos, André, se poderemos aproveitar alguns minutos, estudando os “ovóides”.

Elói e eu acompanhamo-lo, satisfeitos.

Coalhava-se a rua de tipos característicos da anormalidade deprimente.

Aleijados de todos os matizes, idiotas de más­caras variadas, homens e mulheres de fisionomia torturada, iam e vinham. Ofereciam a perfeita im­pressão de alienados mentais. Exceção de alguns que nos fixavam de olhar suspeitoso e cruel, com manifesta expressão de maldade, a maior parte, a meu ver, situava-se entre a ignorância e o primiti­vismo, entre a amnésia e o desespero. Muitos demonstravam-se irritadiços ante a calma de que lhes dávamos testemunho. Perante os desmantelos e detritos a transparecerem de toda parte, conclui que o esforço coletivo se mantinha ausente de qual­quer serviço metódico, junto à matéria do plano. A conversação ociosa era, ali, o traço dominante.

O Instrutor informou-nos, então, com muito acerto, de que as mentes extraviadas, de modo geral, lutam com idéias fixas, implacáveis e obce­cantes, gastando longo tempo a fim de se reajus­tarem. Rebaixadas pelas próprias ações, perdem a noção do bom-gosto, do conforto construtivo, da beleza santificante e se entregam a lastimável re­laxamento.

Com efeito, a paisagem, sob o ponto de vista de ordem, deixava muito a desejar. As edificações, excetuados os palácios da praça governativa, onde se notava a movimentação de grande massa de escravos, desapontavam pelo aspecto e condições em que se mantinham. As paredes, revestidas de substância semelhante ao lodo, mostravam-Se re­pelentes não só à visão, mas também ao olfato, pelas exalações desagradáveis.

A vegetação, em todos os ângulos, era escassa e mirrada.

Gritos humanos, filhos da dor e da inconsciên­cia, eram frequentes, provocando-nos sincera pie­dade.

Fôssem poucos os transeuntes infelizes e po­der-se-ia pensar num serviço metódico de assistên­cia individual; mas, que dizer de uma cidade cons­tituída por milhares de loucos declarados?

Dentro de colmeia dessa natureza, o homem sadio que tentasse impor socorro ao espírito geral não seria efetivamente o alienado mental, aos olhos alheios? Impraticável, por isso, qualquer organização benefi­cente visível, a não ser através de serviço arriscado qual aquele de que o nosso Instrutor se incumbira, tocado pela renúncia, na obra de santificação com o Cristo.

Além das perturbações reinantes, capazes de estabelecer a guerra de nervos nas criaturas mais equilibradas da Crosta do Mundo, pairava na atmos­fera sufocante nevoeiro que mal nos deixava entrever o horizonte distanciado.

O Sol, através de espessa cortina de fumo, cuja procedência me não foi possível determinar, era visto por nós, à semelhança de uma bola de sangue afogueado.

Elói, forçando o bom humor, perguntou, a pro­pósito, se o inferno era um hospício de proporções assim tão vastas, ao que o nosso orientador res­pondeu aquiescendo e informando que o homem comum não possui senão vaga ideia da importância das criações mentais na própria vida.

A mente estuda, arquiteta, determina e mate­rializa os desejos que lhe são peculiares na matéria que a circunda, esclareceu Gúbio, atencioso, e essa matéria que lhe plasma os impulsos é sempre for­mada por vidas inferiores inumeráveis, em processo evolutivo, nos quadros do Universo sem fim.

Marcháramos, atravessando compridos labirin­tos e achamo-nos diante de extensa edificação que, com boa vontade, nomearemos por asilo de Espí­ritos desamparados.

Enquanto encarnado, ser-me-ia extremamente difícil acreditar numa cena igual à que se nos des­dobrou à visão inquieta. Nenhum sofrimento, de­pois da morte do corpo, me tocara tão fundo o coração.

A gritaria, em torno, era de espantar.

Varamos lodosa muralha e, depois de avançar­mos alguns passos, o pavoroso quadro se abriu dilatadamente. Largo e profundo vale se estendia, habitado por toda a espécie de padecimentos ima­gináveis.

Sentíamo-nos, agora, na extremidade de um planalto que se quebrava em abrupto despenhadeiro.

A frente, numa distância de dezenas de quilô­metros, sucediam-se furnas e abismos, qual se nos situássemos perante imensa cratera de vulcão vivo, alimentado pela dor humana, porque, lá dentro, turbilhões de vozes explodiam, ininterruptos, pare­cendo estranha mistura de lamentos de homens e animais.

Tremeram-me as fibras mais íntimas, e, não só em mim, mas igualmente no espírito de Elói, o movimento era de recuo instintivo.

O orientador, no entanto, estava firme.

Longe de endossar-nos a fraqueza, ignorou-a, deliberadamente, e asseverou, calmo:

— Amontoam-se aqui, como se fôssem lenhos secos, milhares de criaturas que abusaram de sa­grados dons da vida. São réus da própria consciên­cia, personalidades que alcançaram a sobrevivência sobre as ruínas do próprio “eu”, confinados em escuro setor de alienação mental. Esgotam resí­duos envenenados que acumularam na esfera ínti­ma, através de longos anos vazios de trabalho edificante, no mundo físico, entregando-se, presen­temente, a infindáveis dias de tortura redentora.

E, talvez porque nosso espanto crescesse àvista da tela aflitiva e tenebrosa, acrescentou, se­reno:

— Não estamos contemplando senão a super­fície de trevosos cárceres a se confundirem com os precipícios subcrostais.

— Mas não haverá recurso a tanto desam­paro? — indagou Elói, compungidamente.

Gúbio refletiu alguns momentos rápidos e adu­ziu em tom grave:

— Quando encontramos um morto de cada vez, é fácil conceder-lhe sepultura condigna, mas, se os cadáveres são contados por multidões, nada nos resta senão adotar a vala comum. Todos os Espíritos renascem nos círculos carnais para des­truírem os ídolos da mentira e da sombra e entronizarem, dentro de si mesmos, os princípios da sublimação vitoriosa para a eternidade, quando não se encontram em simples estrada evolutiva; con­tudo, nas demonstrações de ordem superior que lhes cabem, preferem, na maioria das ocasiões, adorar a morte na ociosidade, na ignorância agressiva ou no crime disfarçado, olvidando a gloriosa imorta­lidade que lhes compete atingir. Ao invés de estru­turarem destino santificante, com vistas ao porvir Infinito, menosprezam oportunidades de crescimen­to, fogem ao aprendizado salutar e contraem débi­tos clamorosos, retardando a obra de elevação pró­pria. E se eles mesmos, senhores de preciosos dons de inteligência, com todo o acervo de revelações religiosas de que dispõem para solucionar os problemas da alma, se confiam voluntàriamente a se­melhante atraso, que nos resta fazer senão seguir nas linhas de paciência por onde se regula a in­fluenciação dos nossos benfeitores? Sem dúvida, esta paisagem é inquietante e angustiosa, mas com­preensível e necessária.

Perguntei-lhe se naqueles sítios purgatoriais não havia companheiros amigos, detentores da mis­são de consolar, ao que o nosso Instrutor respondeu afirmativamente.

— Sim — disse —, esta imensa coletividade dentro da qual preponderam individualidades que pelo sofrimento contínuo se caracterizam pelo com­portamento sub-humano, não está esquecida. A re­núncia opera com Jesus, em toda parte. Agora, todavia, não dispomos de ensejos para a identifi­cação de missionários e servidores do bem. Vamos ao estudo que nos interessa de mais perto.

Descemos alguns metros e encontramos esquá­lida mulher estendida no solo.

Gúbio nela fixou os olhos muito lúcidos e, de­pois de alguns momentos, recomendou-nos seguir-lhe a observação acurada.

— Vês, realmente, André? — inquiriu, pa­ternal.

Percebi que a infeliz se cercava de três for­mas ovóides, diferençadas entre si nas disposições e nas cores, que me seriam, porém, imperceptíveis aos olhos, caso não desenvolvesse, ali, todo o meu potencial de atenção.

— Reparo, sim — expliquei, curioso —, a exis­tência de três figuras vivas, que se lhe justapõem ao perispírito, apesar de se expressarem por inter­médio de matéria que me parece leve gelatina, fluida e amorfa.

Elucidou Gúbio, sem detença:

— São entidades infortunadas, entregues aos propósitos de vingança e que perderam grandes patrimônios de tempo, em virtude da revolta que lhes atormenta o ser. Gastaram o perispírito, sob inenarráveis tormentas de desesperação, e iman­tam-se, naturalmente, à mulher que odeiam, irmã esta que, por sua vez, ainda não descobriu que a ciência de amar é a ciência de libertar, iluminar e redimir.

Auscultamos, de mais perto, a desventurada criatura.

Assumiu Gúbio a atitude do médico ante a paciente e os aprendizes.

A mulher sofredora, envolvida num halo de “força cinzento-escura”, registrou-nos a presença e gritou, entre a aflição e a idiotia:

— Joaquim! onde está Joaquim? digam-me, por piedade! para onde o levaram? ajudem-me! ajudem-me!

O nosso orientador tranquilizou-a com algumas palavras e, não lhe conferindo maior atenção, além daquela que o psiquiatra dispensa ao enfermo em crise grave, observou-nos:

— Examinem os ovóides! sondem-nos, mag­nêticamente, com as mãos.

Operei, expedito.

Toquei o primeiro e notei que reagia, positi­vamente.

Liguei, num ato de vontade, minha capacidade de ouvir ao campo íntimo da forma e, assombrado, ouvi gemidos e frases, como que longínquos, pelo fio do pensamento:

— Vingança! vingança! Não descansarei até ao fim... Esta mulher infame me pagará...

Repeti a experiência com os dois outros e os resultados foram idênticos.

As exclamações “assassina! assassina!...” transbordavam de cada um.

Após afagar a doente com fraternal carinho, analisando-a, atencioso, o Instrutor dirigiu-nos a palavra, esclarecendo:

— Joaquim será naturalmente o companheiro que a precedeu nas lides da reencarnação. Certo, já regressou à Terra mais densa, a fim de prepa­rar-lhe lugar. A pobrezinha está esperando ensejo de retorno à luta benéfica. Vejo-lhe o drama cruel. Foi tirânica senhora de escravos no século que findou. Percebo-lhe as recordações da fazenda prós­pera e feliz, nos arquivos mentais. Foi jovem e bela, mas desposou, consoante o programa de pro­vas salvadoras, um cavalheiro de idade madura, que, a seu turno, já assumira compromissos sen­timentais com humilde filha do cativeiro. Embora a mudança natural de vida, à face do casamento, não abandonou ele o débito contraído. Em razão disso, a pobre mãe e escrava, ainda moça, peni­tente e desditosa, prosseguiu agregada à proprie­dade rural com os rebentos de seu amor menos feliz. Com a passagem do tempo, a esposa reqües­tada e fascinante conheceu toda a extensão do assunto e revelou a irascibilidade que lhe povoava a alma. Dirigiu-se ao marido, colérica e violenta, dobrando-o aos caprichos que lhe exacerbavam a mente. A escrava sofredora foi separada de ambos os filhos que possuía e vendida para uma região palustre onde em breve encontrou a morte pela febre maligna. Os dois rapazes, metidos no tronco, padeceram vexames e flagelações em frente da sen­zala. Acusados de ladrões, pelo capataz, a instân­cias da senhora dominada de egoísmo terrificante, passaram a exibir pesada corrente no pescoço fe­rido. Viveram, no passado. sob humilhações in­cessantes. No curso de reduzidoS meses, caíram sem remissão, minados pela tuberculose que nin­guém socorreu. Desencarnados, reuniram-Se à ge­nitora revoltada, formando um trio perturbador na organização ruralista que os expulsara, susten­tando sinistros propósitos de desforço. Não obstan­te convidados à tolerância e ao perdão por amigos espirituais que os visitavam freqüentemente, nun­ca cederam um til nos planos sombrios em que penhoraram o coração. Atacaram, desapiedadOs, a mulher que os tratara com dureza, impondo-lhe destrutivo remorso ao espírito vacilante e fraco. Dominando-lhe a vida psíquica, transformaram-se para ela em perigOsos carrascos invisíveis, utili­zando todos os processos de Luta suscetíveis de acentuar-lhe as perturbações. Adoeceu ela, por isso, gravemente, desafiando conselhos e medidas de cura.

Embora socorrida por médicos e padres di­versos, não mais recobrou o equilíbrio orgânico. Arrasou-se-lhe o corpo fisico, a pouco e pouco, incapaz de expandir-se mentalmente, no idealismo superior, que corrige desvarios íntimos e facUlta a cooperação vibratória das almas que respiram em esferas mais elevadas, a desditOsa fazendeira so­freu, insulada no orgulho destrutivo que lhe assi­nalava o caminho, dez anos de mágoas constantes e indefiníveis. Claro que possuia, por sua vez, amigos prontos a lhe estenderem generosas mãos por ocasião da morte do corpo que se tornou ine­vitável; contudo, quando nos enceguecemos no mal, inabilitamo-nos, por nós mesmos, à recepção de qualquer recurso do bem.

O Instrutor fêz ligeira pausa na narrativa e continuou

— Exonerada dos liames carnaiS, viu-se per­seguida pelas vitimas de outrO tempo, anulando-se-lhe a capacidade de iniciativa em virtude das emissões vibratórias do próprio medo perturbador.

Padeceu muitíssimo, não obstante contemplada pela compaixão de benfeitores do Alto que sempre ten­taram conduzi-la à humildade e à renovação pelo amor, mas o ódio permutado é uma fornalha ar­dente, mantenedora de cegueira e sublevação. De­sencarnado o esposo, veio semilouco encontrá-la no mesmo invencível abatimento, incapaz de so­corrê-la em vista das próprias dores que o cons­trangiam a difíceis retificações. Os impiedosos adversários prosseguiram na obra deplorável e, ainda mesmo depois de perderem a organização perispirítica, aderiram a ela, com os princípios de matéria mental em que se revestem. A revolta e o pavor do desconhecido, com absoluta ausência de perdão, ligam-nos uns aos outros, quais algemas de bronze. A infeliz perseguida, na posição em que se encontra, não os vê, não os apalpa, mas sente-lhes a presença e ouve-lhes as vozes, através da inconfundível acústica da consciência. Vive ator­mentada, sem direção. Tem o comportamento de um ser quase irresponsável.

A infortunada criatura não parecia registrar as informações, ditas ali em voz alta, e que lhe diziam respeito. Clamava amedrontada, pelo au­xílio do companheiro.

Vali-me ainda do ensejo para algumas inda­gações.

— Diante deste quadro comovedor, como en­carar a solução? — desfechei a pergunta direta.

Gúbio, todavia, observou, muito calmo:

— Gastaremos tempo. A perturbação vem de inesperado, instala-se à pressa; entretanto, retira-se muito devagar. Aguardemos a obra paciente dos dias.

Após uma pausa expressiva, acentuou:

— Tudo me faz crer que os missionários da caridade já lhe reconduziram o esposo às correntes da reencarnação e é de supor que esta irmã se ache em vias de seguir-lhe as pegadas, a breve tempo. Naturalmente, renascerá em círculos de vida torturada, enfrentando obstáculos imensos para re­encontrar o ex-esposo e partilhar-lhe as experiên­cias futuras. Então...

— Os inimigos ser-lhe-ão filhos? — indaguei, ansioso, quebrando-lhe as reticências.

— Como não? Certamente, o caso já se en­contra sob a jurisdição superior. Esta mulher retornará à carne, seguida pelas mentes dos adver­sários que aguardarão, junto dela, o tempo de imersão nos fluidos terrestres.

— Oh! — exclamei, profundamente espanta­do — não se separará dos perseguidores, nem mesmo para o regresso? Tenho acompanhado re­encarnações que invariavelmente se fazem seguidas de cautelas especiais...

— Sim, André — concordou o Instrutor —, reparaste nos processos em que funcionaram ele­mentos intercessores de vulto, atendendo-se à no­bilitante missão dos interessados no futuro e, com o auxílio divino, semelhantes casos contam-se por milhões. Contudo, existem, ainda, nos setores da luta humana, milhões de renascimentos de almas criminosas que tornam ao mergulho da carne pre­midas pela compulsória do Plano Superior, de modo a expiarem delitos graves. Em ocorrências dessa ordem, a individualidade responsável pela desar­monia reinante converte-se em centro de gravitação das consciências desequilibradas por sua culpa e assume o comando dos trabalhos de reajustamento, sempre longos e complicados, de acordo com os ditames da Lei.

Compreendendo meu assombro, Gúbio consi­derou:

— Porque a estranheza? Os princípios de atra­ção governam o Universo inteiro. Nos sistemas planetários e nos sistemas atômicos vemos o nú­cleo e os satélites. Na vida espiritual, os ascendentes essenciais não diferem. Se os bons representam centros de atenção dos Espíritos que se lhes afinam pelos ideais e tendências, os grandes delinqüentes se transformam em núcleos magnéticos das mentes que se extraviaram da senda reta, em obediência a eles. Elevamo-nos com aqueles que amamos e redimimos ou rebaixamo-nos com aqueles que per­seguimos e odiamos.

As afirmativas inspiravam-me profundos pen­samentos, quanto à grandeza das leis que regem a vida e, atento à meditação daquele instante, evitei novas perguntas.

O Instrutor acariciou a fronte da criatura des­venturada, envolvendo-a, intencionalmente, numa bênção de fluidos divinos e acrescentou:

— Pobre irmã! que o Céu a fortaleça na jor­nada por empreender! Seguida de perto pela influência dos seres que com ela se projetaram no abismo mental do ódio, terá infância dolorosa e sombria pelos pesares desconhecidos que se lhe acumularão, incompreensivelmente, na alma opres­sa. Conhecerá enfermidades de diagnose impossível, por enquanto, no quadro dos conhecimentos hu­manos, por se originarem da persistente e invisível atuação dos inimigos de outra época... Terá moci­dade torturada por sonhos de maternidade e não repousará, intimamente, enquanto não oscular, no próprio colo, os três adversários convertidos, então, em filhinhos tenros de sua ternura sedenta de paz... Transportará consigo três centros vitais desarmônicos e, até que os reajuste na forja do sacrifício, recambiando-os à estrada certa, será, na condição de mãe, um ímã atormentado ou a sede obscura e triste de uma constelação de dor.

O estudo era, sem dúvida, absorvente e fascinante, mas a hora controlava-nos o serviço e era imperioso regressar.


8

Inesperada intercessão

A sala em que fomos recebidos pelo sacerdote Gregório semelhava-se a estranho santuário, cuja luz interior se alimentava de tochas ardentes.

Sentado em pequeno trono que lhe singulari­zava a figura no desagradável ambiente, a exótica personagem rodeava-se de mais de cem entidades em atitude adorativa. Dois áulicos, extravagantemente vestidos, manejavam grandes turíbulos, em cujo bojo se consumiam substâncias perfumadas, de violentas emanações.

Trajava ele uma túnica escarlate e nimbava-Se de halo pardo-escuro, cujos raios, inquietantes e contundentes, nos feriam a retina.

Fixou em nós o olhar percuciente e inquiridor e estendeu-nos a destra, dando-nos a entender que podíamos aproximar.

Fortemente empolgado, acompanhei Gúbio.

Quem seria Gregório naquele recinto? Um che­fe tirânico ou um ídolo vivo, saturado de misterioso poder?

Doze criaturas, ladeando-lhe o dourado assento, ajoelhavam-se, humildes, atentas às ordens que lhe emanassem da boca.

Com um simples gesto determinou regime sigi­loso para a conversação que entabolaria conosco, porque, em alguns segundos, o recinto se esvaziou de quantos dentro dele se achavam, estranhos à nossa presença.

Compreendi que cogitaríamos de grave assunto e fitei nosso orientador para copiar-lhe os movi­mentos.

Gúbio, seguido por Elói e por mim, a reduzida distância, acercou-se do anfitrião que o contem­plava de fisionomia rude, passando, de minha parte, a espreitar o esforço de nosso Instrutor para con­tornar os obstáculos do momento, de modo a não classificar-se por mentiroso, à face da própria cons­ciência.

Cumprimentou-o Gregório, exibindo fingida complacência, e falou:

— Lembra-te de que sou juiz, mandatário do governo forte aqui estabelecido. Não deves, pois, faltar à verdade.

Decorrida pequena pausa, acrescentou:

— Em nosso primeiro encontro, enunciaste um nome...

— Sim — respondeu Gúbio, sereno —, o de uma benfeitora.

— Repete-o! — ordenou o sacerdote, impe­rativo.

— Matilde.

O semblante de Gregório fêz-se sombrio e an­gustiado. Dir-se-ia recebera naquele instante tre­menda punhalada invisível. Dissimulou, no entanto, dura impassibilidade e, com a firmeza de um admi­nistrador orgulhoso e torturado, inquiriu:

— Que tem de comum comigo semelhante criatura?

Nosso orientador redargüiu, sem afetação:

— Asseverou-nos querer-te com desvelado amor materno.

— Evidente engano! — aduziu Gregório, fe­rino — minha mãe separou-se de mim, há alguns séculos. Ao demais, ainda que me interessasse tal reencontro, estamos fundamentalmente divorciados um do outro. Ela serve ao Cordeiro, eu sirvo aos Dragões (1).

Aquela particularidade da palestra bastava para que minha curiosidade explodisse, indômita.

Quem seriam os dragões a que se reportava? gênios satânicos da lenda de todos os tempos? Espíritos caídos no caminho evolucionário, de inte­ligência voltada contra os princípios salutares e redentores do Cristo, que todos veneramos na con­dição do Cordeiro de Deus? Sem dúvida, não me equivocava; no entanto, Gúbio lançou-me signifi­cativo olhar, certamente depois de sondar-me, em silêncio, a perquirição Intima, convidando-me, sem palavras, a selar os lábios entreabertos de as­sombro.

Indiscutivelmente, aquele instante não com­portava a conversação dum aprendiz e devia destinar-se às manifestações conscientes e seguras de um mestre.

— Respeitável sacerdote — obtemperou o nos­so orientador, com grande surpresa para mim —, não te posso discutir os motivos pessoais. Sei que há uma ordem absoluta na Criação e não ignoro que cada Espírito é um mundo diferente e que cada consciência tem a sua rota.

— Criticas, porventura, os Dragões, que se in­cumbem da Justiça? — perguntou Gregório, duramente.

— Quem sou para julgar? — comentou Gúbio, com simplicidade — não passo dum servidor na escola da vida.

— Sem eles — prosseguiu o hierofanta, algo colérico —, que seria da conservação da Terra?

(1) Espíritos caídos no mal, desde eras primevas da Criação Planetária, e que operam em zonas inferiores da vida, personificando líderes de rebelião, ódio, vaidade e egoísmo; não são, todavia, demônios eternos, porque indi­vidualmente se transformam para o bem, no curso dos séculos, qual acontece aos próprios homens. — Nota do autor espiritual.

como poderia operar o amor que salva, sem a jus­tiça que corrige? Os Grandes Juizes são temidos e condenados; entretanto, suportam os resíduos hu­manos, convivem com as nojentas chagas do Pla­neta, lidam com os crimes do mundo, convertem-se em carcereiros dos perversos e dos vis.

E à maneira da pessoa culpada, que estima longas justificações, continuou, irritadiço:

— Os filhos do Cordeiro poderão ajudar e resgatar a muitos. No entanto, milhões de criaturas (1), como sucede a mim mesmo, não pedem auxílio nem liberação. Afirma-se que não passamos de transviados morais - Seja - Seremos, então, cri­minosos, vigiando-nos uns aos outros.

A Terra per­tence-nos, porque, dentro dela, a animalidade do­mina, oferecendo-nos clima ideal

Não tenho, por minha vez, qualquer noção de Céu. Acredito seja uma corte de eleitos, mas o mundo visível para nós constitui extenso reino de condenados - No corpo físico, caímos na rede de circunstâncias fatais; con­tudo, a teia que os planos inferiores nos prepararam servirá a milhões - Se é nosso destino joeirar o trigo do mundo, nossa peneira não se fará compla­cente. Experimentados que somos na queda, pro­varemos todos os que nos surgirem no caminho.

Ordenam os Grandes Juizes que guardemos as por­tas - Temos, por isso, servidores, em todas as dire­ções. Subordinam-se-nos todos os homens e mu­lheres afastados da evolução regular, e é forçoso reconhecer que semelhantes individualidades se con­tam por milhões - Além disso, os tribunais terres­tres são insuficientes para a identificação de todos os delitos que se processam entre as criaturas. Nós, sim, é que somos os olhos da sombra, para

(1) Não devemos esquecer que a argumentação pro­cede de um Espírito poderoso nos raciocínios e que ainda não aceitou a iluminação do Cristo, idêntico, pois, a muitos homens representativos do mundo, obcecados pelos desvarios da inteligência. — Nota do autor espiritual.

os quais os menores dramas ocultos não passam despercebidos.

Ante o intervalo que se fizera, contemplei o rosto de Gúbio, que não apresentava qualquer alteração.

Fitando Gregório, com humildade, considerou:

— Grande sacerdote, eu sei que o Senhor Su­premo nos aproveita em sua obra divina, segundo as nossas tendências e possibilidades de satisfa­zer-lhe os desígnios. Os fagócitos no corpo humano são utilizados na eliminação da impureza, do mes­mo modo que a faísca elétrica irrompe, insofreável, a fim de sanar os desequilíbrios atmosféricos. Respeito, assim, o teu poder, porque se a Sabedoria Celeste conhece a existência das folhas tenras das arvores, sabe também a razão de teu extenso do­mínio; entretanto, não concordas em que a nossa interferência prevalece sobre a fatalidade, círculo fechado de circunstâncias que nós mesmos criamos? Não estou habilitado a apreciar o trabalho dos Juizes que administram estes pousos de sofrimento reparador... Conheço, contudo, os quadros pavo­rosos que se desdobram ao teu olhar. Observo, de perto, os criminosos que se imantam uns aos ou­tros; sondo, de quando em vez, os dramas sombrios daqueles que jazem nas furnas de dor, magnetiza­dos ao mal que praticaram, e não ignoro que a Justiça deve reinar, consoante as determinações so­beranas. Todavia, respeitável Gregório, não admi­tes que o amor, instalado nos corações, redimiria todos os pecados? não aceitas, porventura, a vi­tória final da bondade, através do serviço fraterno que nos eleva e conduz ao Pai Supremo? Se gas­tássemos nos cometimentos divinos do Cordeiro as mesmas energias que se despendem a serviço dos Dragões, não alcançaríamos, mais apressadamente. os objetivos do supremo triunfo?

O sacerdote ouviu, contrariado, e clamou com desagradável inflexão de voz:

— Como pude escutar-te, calado, tanto tempo? somos aqui julgadores na morte de todos aqueles que malbarataram os tesouros da vida. Como ino­cular amor em corações enregelados?

Não disse o Cordeiro, certa vez, que não se deve lançar pérolas aos porcos? Para cada pastor de rebanho na Terra, há mil porcos ostentando as insígnias da carne. E se o teu Mestre reclama pegureiros ao seu apos­tolado, que fazer, de nossa parte, senão constituir equipes de inteligências vigorosas, especializadas em corrigir as criaturas delinqüentes que se colo­cam sob nossa vara diretiva? Os Dragões são os gênios conservadores do mundo físico e se esmeram em preservar a aglutinação dos elementos plane­tários. Coerentes com a lógica, não entendem o paraíso de imposição. Se o amor conquistasse a Terra, de um dia para outro, desintegrando-lhe os abismos escuros a fim de que a luz sublime aí bri­lhasse para sempre, fácil e instantânea, como acomodar nesse clima celestial as consciências de lobos e leões, panteras e tigres (pela extrema analogia que ainda guardam com essas feras), almas essas que habitam formas humanas aos milhares de mi­lhares? Que seria dos Céus se não vigiássemos os infernos?

Gargalhada sarcástica e estrepitosa seguiu-lhe as palavras.

Gúbio, porém, não se perturbou.

Com simplicidade, tornou a considerar:

— Ouso lembrar, todavia, que, se nos lançás­semos todos a socorrer os miseráveis, a miséria se extinguiria; se educássemos os ignorantes, a treva não teria razão de ser; se amparássemos os delinqüentes, oferecendo-lhes estímulos à luta regene­rativa, o crime seria varrido da face da Terra.

O sacerdote fêz vibrar uma campainha, que me pareceu destinada a expandir-lhe as expressões de ira e gritou, rouquenho:

— Cala-te! insolente! sabes que te posso punir!...

— Sim — concordou o nosso orientador, im­perturbável —, suponho conhecer a extensão de tuas possibilidades. Eu e meus companheiros, àleve ordem de tua boca, podemos receber prisão e tortura e, se esta representa a vontade de teu coração, estamos prontos a recebê-las.

Conhecíamos, de antemão, as probabilidades contra nós, nesta aventura; entretanto, o amor nos inspira e con­fiamos no mesmo Poder Soberano que te permite aplicar a justiça.

Gregório fitou Gúbio, assombrado, à vista de tamanha coragem e, decerto, aproveitando este a transformação psicológica do momento, enunciou com firmeza serena:

— Declarou-nos Matilde, a nossa benfeitora, que a tua nobreza não se esvaiu e que as tuas ele­vadas qualidades de caráter permanecem inviola­das, não obstante a direção diferente que imprimiste aos passos; por isto mesmo, identificando-te o valor pessoal, chamo-te de “respeitável” nos apelos que te dirijo.

A cólera do sacerdote pareceu amainar-se.

— Não acredito em tuas informações — acen­tuou, contrariado —, mas sê claro nas rogativas. Não disponho de tempo para falas inúteis.

— Venerável Gregório — pediu nosso Instru­tor, humilde —, serei breve. Ouve-me com tolerãncia e bondade. Não ignoras que tua mãe espiritual jamais se esqueceria de Margarida, ameaçada atual­mente de loucura e morte, sem razão de ser...

Escutando o informe, o hierofante modificou-se visivelmente, expressando na fisionomia inquieta­ção indisfarçável. A estranha auréola que lhe re­vestia a fronte revelou tonalidades mais escuras. Dureza singúlar transpareceu-lhe nos olhos felinos e os lábios se lhe contraíram num neto de infinita amargura.

Tive a idéia de que ele nos fulminaria se pu­desse, mas conteve-se, imóvel, apesar da expressão agressiva e rude.

— Não desconheces que Matilde possui na tua companheira de outras eras uma pupila muito amada ao coração. As preces dessa torturada filha espiritual atingem-lhe a alma abnegada e luminosa. Gregório: Margarida empenha-se em viver no corpo, faminta de redenção. Aspirações reno­vadoras banharam-lhe a meninice e, agora, que o casamento, em plena juventude, lhe revigoriza as esperanças, deseja demorar-se no campo de luta benéfica, de modo a ressarcir o passado culposo. Certamente, fortes razões te obrigam a constran­gê-la ao retorno, porque lhe armaste caprichoso caminho de morte. Não te reprovo, nem te acuso, pois nada sou. E ainda que o Senhor me confe­risse algum alto encargo representativo, não me competiria julgar-te, senão depois de haver vivido a tua própria tragédia, experimentando as tuas próprias dores. Sei, porém, que pelo amor e pelo ódio do pretérito ela permanece intensamente ligada aos raios de tua mente e todos sabemos que os credores e os devedores se encontrarão, uns com os outros, tarde ou cedo, face a face... Entre­tanto, a atual existência dela envolve largo ser­viço salvador. Desposou antigo associado de luta evolutiva que te não é estranho ao coração e rei­nará, maternalmente, num lar em que devotados benfeitores organizarão formoso ministério de tra­balho iluminativo. Espíritos amigos da verdade e do bem se preparam a receber-lhe a ternura ma­terna, quais flores abençoadas pelo orvalho celeste, em caminho de preciosa frutificação. Venho ro­gar-te, pois, seja suavizada a vindita cruel. Nossa alma, por mais impassível, modifica-se com as horas, O tempo tudo devasta e nos subtrai todos os patrimônios da inferioridade para que a obra de aperfeiçoamento permaneça. A matéria que nos serve às manifestações modifica-se com os dias. E, por mais invencíveis que fôssem os poderosos Juizes aos quais obedeces, não ultrapassariam eles, de nenhum modo, a autoridade soberana do Todo-Mise­ricordioso que lhes permite agir em nome da corri­genda, afeiçoando-lhes a tarefa ao bem comum.

Pesados minutos de expectação e silêncio caí­ram sobre nós.

Nosso Instrutor, no entanto, longe de desani­mar, retomou a palavra, em voz súplice:

— Se ainda não consegues ouvir os recursos interpostos pela Lei do Cordeiro Divino que nos recomenda o amor recíproco e santificante, não te ensurdeças aos apelos do coração materno. Ajuda-nos a liberar Margarida, salvando-a da destru­tiva perseguição. Não se faz imperioso o teu con­curso pessoal. Bastar-nos-á tua indiferença, a fim de que nos orientemos com a precisa liberdade.

O hierofante riu-se, contrafeito, e acrescentou:

— Observo que conheces a justiça.

— Sim — concordou Gúbio, melancólico.

O anfitrião, contudo, falou sem rebuços:

— Quem lavra sentenças, despreza a renúncia. Entre os que defendem a ordem, o perdão é des­conhecido. Determinavam os legisladores da Bíblia que os arestos se baseassem no princípio da troca: “olho por olho e dente por dente”. E já que te mostras tão bem informado acerca de Margarida, poderás, em sã consciência, suprimir as razões que me compelem a decretar-lhe a morte?

— Não discuto os motivos que te conduzem —exclamou nosso orientador, entre aflito e entris­tecido —, todavia, ouso insistir na súplica fraterna. Auxilia-nos a conservar aquela existência valiosa e frutífera. Ajudando-nos, quem sabe? Talvez, pelos braços carinhosos da vitima de hoje poderias, tu mesmo, voltar ao banho lustral da experiência hu­mana, renovando caminhos para glorioso futuro.

— Qualquer idéia de volta à carne me é into­lerável! — gritou Gregório, contrafeito.

— Sabemos, grande sacerdote — continuou Gúbio, muito calmo —, que sem a tua permissão, em vista dos laços que Margarida criou com a tua mente, poderosa e ativa, ser-nos-ia difícil qualquer atividade libertadora. Promete-nos independência de ação! Não te pedimos sustar a sentença, nem pretendemos inocentar Margarida. Quem assume compromissos diante das Leis Eternas é obrigado a encará-los, de frente, agora ou mais tarde, para resgate justo. Rogar-te-íamos, contudo, adiamento na execução de teus propósitos. Concede à tua devedora um intervalo benéfico, em homenagem aos desvelos de tua mãe e, possivelmente, os dias se encarregarão de modificar este processo dolo­roso.

Demonstrando expressão de surpresa, em face da imprevista solicitação de adiamento, quando, nós mesmos, esperávamos que o orientador se impu­sesse, reclamando revogação definitiva, Gregório considerou, menos contundente:

— Tenho necessidade do alimento psíquico que só a mente de Margarida me pode proporcionar.

Perguntou Gúbio, mais encorajado:

— E se reencontrasses o doce reconforto da ternura materna, sustentando-te a alma, até que Margarida te pudesse fornecer, redimida e feliz, o sublimado pão do espírito?

O sacerdote levantou-se pela primeira vez e clamou:

— Não creio...

— E se propuséssemos semelhante bênção em troca de tua neutralidade ante o nosso esforço de salvação? Permitir-nos-ias agir concomitantemente com os servidores que te obedecem às ordens? Não os inclinarias contra nós e deixar-nos-ias ombrear com eles, tentando a restauração?

O tempo, dessa forma, daria o último retoque em tuas decisões...

Gregório refletiu alguns instantes e redargüiu:

— É muito tarde.

— Porquê? — indagou nosso Instrutor, in­quieto.

— O caso de Margarida — esclareceu o hiero­fante em tom significativo — está definitivamente entregue a uma falange de sessenta servidores de meu serviço, sob a chefia de duro perseguidor que lhe odeia a família. A solução cabal poderia ter sido alcançada em poucas horas, mas não desejo que ela me volte às mãos, com a revolta de vítima, em cuja fonte interior só me fôsse possível reco­lher as águas turvas do desespero e do fel. Será torturada como me torturou em outra época; pade­cerá humilhações sem nome e desejará a morte como valioso bem. Atingida a rendição pelo sofrimento dilacerante, a mente dela me receberá por benfei­tor, amoroso e providencial, envolvendo-me nas emissões de carinho que, há muitos anos, venho esperando...

Seria infrutífera qualquer tentativa liberatória. Os raciocínios dela vão sendo contur­bados, pouco a pouco, e o trabalho de imantação para a morte estão quase terminados.

O nosso dirigente, no entanto, não se deu por vencido e insistiu:

— E se nos confundíssemos com a tua falan­ge, tentando o serviço a que nos propomos?

Com­pareceríamos, junto à enferma, como amigos teus e, sem te desrespeitarmos a autoridade, procura­ríamos a execução do programa que nos trouxe até aqui, testemunhando a humildade e o amor que o Cordeiro nos ensina.

Gregório pensava, maduramente, em silêncio, mas Gúbio prosseguia com simplicidade e firmeza:

— Concede!... concede!... Dá-nos tua pala­vra de sacerdote! lembra-te de que, um dia, ainda que não creias, enfrentarás, de novo, o olhar de tua mãe!

O interpelado, após longos minutos de refle­xão, ergueu os braços e asseverou:

— Não creio nas possibilidades do tentame; todavia, concordo com a providência a que recorres. Não interferirei.

Em seguida, tilintando a campainha de modo particular, determinou que os auxiliares se reapro­ximassem. Como que semivencido na batalha em que se empenhara com a própria consciência, in­vocou a presença de um certo Timão, que nos surgiu pela frente surpreendendo-nos com seu sem­blante de carrasco. Dirigiu-lhe a palavra, inda­gando pelo andamento do “caso-Margarida”, ao que o preposto informou estar o processo de alienação mental quase pronto.

Questão de poucos dias para a segregação em casa de saúde.

Indicando-nos, algo constrangido, determinou Gregório que o auxiliar de sinistro aspecto nos si­tuasse junto da falange que operava, ativa, na exe­cução gradual do seu decreto de morte.


9

Perseguidores invisíveis

No dia imediato, pela manhã, em companhia de entidades ignorantes e transviadas, dirigimo­-nos para confortável residência, onde espetáculo inesperado nos surpreenderia.

O edifício de enormes dimensões denunciava a condição aristocrática dos moradores, não só pela grandeza das linhas, mas também pelos admi­ráveis jardins que o rodeavam. Paramos junto à ala esquerda, notando-a ocupada por muitas per­sonalidades espirituais de aspecto deprimente.

Rostos patibulares, carantonhas sinistras.

Indiscutivelmente, aquela construção residen­cial permanecia vigiada por carcereiros frios e impassíveis, a julgar pelas sombras que os cercavam.

Transpus o limiar, de alma opressa.

O ar jazia saturado de elementos intoxicantes. Dissimulei, a custo, o mal-estar, recolhendo impres­sões aflitivas e dolorosas.

Entidades inferiores, em grande cópia, aflui­ram à sala de entrada, sondando-nos as intenções.

De posse, porém, das instruções do nosso orientador, tudo fazíamos para nos assemelharmos a delinqüentes vulgares. Reparei que o próprio Gúbio se fizera tão escuro, tão opaco na organização perispirítica, que de modo algum se faria reconhe­cível, à exceção de nós que o seguíamos, atentos, desde a primeira hora.

Instado por Sérgio, um gaiato rapaz que nos Introduziu com maneiras menos dignas, Saldanha, o diretor da falange operante, veio receber-nos.

Pôs-se a fazer gestos hostis, mas, ante a senha com que Gregório nos favorecera, admitiu-nos na condição de companheiros importantes.

— O chefe deliberou apertar o cerco? — per­guntou ao nosso Instrutor, confidencialmente.

— Sim — informou Gúbio, de modo vago —, desejaríamos examinar as condições gerais do as­sunto e auscultar a doente.

— A jovem senhora vai cedendo, devagari­nho — esclareceu a singular personagem, indicando-nos vasto corredor atulhado de substâncias fluídicas detestáveis.

Acompanhou-nos, um tanto solícito, mas des­confiado, e, em seguida a breve pausa, deixou-nos livre a entrada da grande câmara de casal.

A manhã resplandecia, lá fora, e o sol visitava o quarto, através da vidraça cristalina.

Mulher ainda moça, mostrando extrema pali­dez nas linhas nobres do semblante digno, entregava-se a tormentosa meditação.

Compreendi que atingíramos a intimidade de Margarida, a obsidiada que o nosso orientador se propunha socorrer.

Dois desencarnados, de horrível aspecto fisio­nômico, inclinavam-se, confiantes e dominadores, sobre o busto da enferma, submetendo-a a compli­cada operação magnética. Essa particularidade do quadro ambiente dava para espantar. No entanto, meu assombro foi muito mais longe, quando con­centrei todo o meu potencial de atenção na cabeça da jovem singularmente abatida. Interpenetrando a matéria espessa da cabeceira em que descansava, surgiam algumas dezenas de “corpos ovóides”, de vários tamanhos e de cor plúmbea, assemelhando-se a grandes sementes vivas, atadas ao cérebro da paciente através de fios sutilíssimos, cuidadosa­mente dispostos na medula alongada.

A obra dos perseguidores desencarnados era meticulosa, cruel.

Margarida, pelo corpo perispirítico, jazia abso­lutamente presa, não só aos truculentos perturbadores que a assediavam, mas também à vasta fa­lange de entidades inconscientes, que se caracteri­zavam pelo veículo mental, a se lhe apropriarem das forças, vampirizando-a em processo intensivo.

Em verdade, já observara, por mim, grande quantidade de casos violentos de obsessão, mas sem­pre dirigidos por paixões fulminatórias. Entretan­to, ali verificava o cerco tecnicamente organizado.

Evidentemente, as “formas ovóides” haviam sido trazidas pelos hipnotizadores que senhoreavam o quadro.

Com a devida permissão, analisei a zona física hostilizada. Reparei que todos os centros metabó­licos da doente apareciam controlados. A própria pressão sanguínea demorava-se sob o comando dos perseguidores. A região torácica apresentava apre­ciáveis feridas na pele e, examinando-as, cuidadoso, vi que a enferma inalava substâncias escuras que não somente lhe pesavam nos pulmões, mas se refletiam, sobremodo, nas células e fibras conjun­tivas, formando ulcerações na epiderme.

A vampirização era incessante. As energias usuais do corpo pareciam transportadas às “formas ovóides”, que se alimentavam delas, automàtica­mente, num movimento indefinível de sucção.

Lastimei a impossibilidade de consulta ime­diata ao Instrutor, porqüanto Gúbio, naturalmente, se estivesse livre, nos forneceria esclarecimentos amplos, mas concluí que a infortunada senhora de­via ter sido colhida através do sistema nervoso central, de vez que os propósitos sinistros dos per­seguidores se faziam patentes quanto à vagarosa destruição das fibras e células nervosas.

Margarida demonstrava-se exausta e amargu­rada.

Dominadas as vias do equilíbrio no cerebelo e envolvidos os nervos óticos pela influência dos hipnotizadores, seus olhos espantados davam idéia dos fenômenos alucinatórios que lhe acometiam a mente, deixando perceber o baixo teor das visões e audições interiores a que se via submetida.

Interrompi, no entanto, as observações acura­das, a fim de verificar a atitude psicológica do nosso orientador, que se arriscara à aventura para socorrer aquela senhora doente a quem amava por filha muito querida ao coração.

Esforçava-se Gúbio por não trair a imensa piedade que o senhoreava, diante da enferma conduzida para a morte.

Dentro de minha condição de humanidade, re­conheci que, se a doente me fôsse assim tão cara, não teria vacilado um momento. Movimentaria pas­ses de libertação, ao longo do bulbo, retirar-lhe-ia aquela carga pesada e inútil de mentes enfermiças e, em seguida, lutaria contra os perseguidores, um a um.

Nosso Instrutor, porém, assim não procedeu. Fixou a paisagem aflitiva com inequívoca tristeza, mas, logo após, demorou o olhar bondoso em Saldanha, como a pedir-lhe impressões mais profundas.

Secretamente tocado pelo impulso positivo do nosso dirigente, o chefe da tortura se sentiu na obrigação de prestar-lhe informações espontâneas.

— Estamos em serviço mais ativo, há dez dias precisamente — elucidou, resoluto. — A presa foi colhida em cheio e, felizmente, não contamos com qualquer resistência. Se vieram colaborar conosco, saibam que, segundo acredito, não temos maior trabalho a fazer. Mais alguns dias e a solu­ção não se fará esperar.

A meu ver, Gúbio conhecia todas as particula­ridades do assunto, mas, no propósito evidente de captar simpatia, Interrogou:

— E o marido?

— Ora — esclareceu Saldanha com escarninho sorriso —, o infeliz não tem a menor noção de vida moral. Não é mau homem; todavia, no casamento foi apenas transferido de “gozador da vida” a “ho­mem sério”. A paternidade constituir-lhe-ia um trambolho e filhinhos, se os recebesse, não passa­riam para ele de curiosos brinquedos. Hoje, con­duzirá a esposa à igreja.

E, reforçando a inflexão sarcástiCa, acentuou:

— Vão à missa, na esperança de melhoras.

Mal acabara a informação, tristonho e simpá­tico cavalheiro, em cuja expressão carinhosa iden­tifiquei, de pronto, o esposo da vitima, entrou no aposento, com ela permutando palavras amorosas e confortantes.

Amparou-a, prestimoso, e ajudou-a a vestir-Se com esmero.

Decorridos algunS minutos, notei, apalermado, que os cônjuges, acompanhados por extensa súcia de perseguidores, tomavam um táxi na direção dum templo católico.

Seguimo-nos sem detença.

O veículo, a meu ver, transformara-se como que num carro de festa carnavalesCa. Entidades diversas aboletavam-se dentro e em torno dele, des­de os pára-lamas até o teto luzente.

Minha curiosidade era enorme.

Descendo à porta de elegante santuário, obser­vei estranho espetáculo. A turba de desencarnados, em posição de desequilíbriO, era talvez cinco vezes maior que a assembleia de crentes em carne e osso. Compreendi, logo, que em maior parte ali se acha­vam com o propósito deliberado de perturbar e iludir.

Saldanha encontrava-se excessivamente preo­cupado com as vítimas, para dispensar-nos maior atenção e, intencionalmente, Gúbio afastou-Se um tanto, em nossa companhia, a fim de confiar-nos alguns esclarecimentos.

Penetramos o templo onde se comprimiam nada menos de sete a oito centenas de pessoas.

A algazarra dos desencarnados ignorantes e perturbadores era de ensurdecer. A atmosfera pesava.

A respiração fizera-se-me difícil pela con­densação dos fluidos semicarnais ali reinantes; todavia, ao fixar os altares, confortante surpresa aliviou-me o coração. Dos adornos e objetos do culto emanava doce luz que se espraiava pelos ci­mos da nave visitada de sol; fazia-se perceptível a nítida linha divisória entre as energias da parte inferior do recinto e as do plano superior. Divi­diam-se os fluidos, à maneira de água cristalina e azeite impuro, num grande recipiente.

Contemplando a formosa claridade dos nichos, perguntei ao nosso Instrutor:

— Que vemos? não reza o segundo manda­mento, trazido por Moisés, que o homem não deve fazer imagens de escultura para representar a Pa­ternidade Celeste?

— Sim — concordou o orientador —, e deter­mina o Testamento que ninguém se deve curvar diante delas. Efetivamente, pois, André, é um erro criar ídolos de barro ou de pedra para simbolizar a grandeza do Senhor, quando nossa obrigação pri­mordial é a de render-lhe culto na própria cons­ciência; entretanto, a Bondade Divina é infinita e aqui nos achamos perante apreciável quantidade de mentes infantis.

E sorrindo, acrescentou:

— Quantas vezes, meu amigo, a criança aca­lenta bibelôs, a fim de preparar-se convenientemente para as responsabilidades da vida madura. Ainda existem na Terra tribos primitivas que ado­ram o Pai na voz do trovão e coletividades vizi­nhas da taba que fazem de vários animais objeto de idolatria. Nem por isso o Senhor as abandona. Vale-se dos impulsos elevados que elas lhe oferecem e socorre-lhes as necessidades educativas. Nesta casa de oração, os altares recebem as projeções de matéria mental sublimada dos crentes. Há quase um século, as preces fervorosas de milhares deles aqui envolvem os nichos e apetrechos do culto. É natural que resplandeçam. Através de semelhante material, os mensageiros celestes distribuem dá­divas espirituais com todos quantos sintonizem com o plano superior. A luz que oferecemos ao Céu serve sempre de base às manifestações do Céu para a Terra.

Ante ligeira pausa, alonguei o olhar pela mul­tidão bem vestida.

Quase todas as pessoas, ainda aquelas que ostentavam nas mãos delicados objetos de culto, revelavam-se mentalmente muito distantes da ver­dadeira adoração à Divindade, O halo vital de que se cercavam definia pelas cores o baixo padrão vibratório a que se acolhiam. Em grande parte, dominavam o pardo-escuro e o cinzento-carregado. Em algumas, os raios rubro-negros denunciavam cólera vingativa que, a nossos olhos, não conse­guiriam disfarçar. Entidades desencarnadas, em deplorável situação, espalhavam-se em todos os re­cantos, nas mesmas características.

Reconheci que os crentes elegantes, ainda mes­mo que desejassem orar com sinceridade, precisa­riam despender imenso esforço.

A liturgia anunciou o inicio da cerimônia, mas, com grande assombro para mim, o sacerdote e os acólitos, não obstante se dirigirem para o campo de luz do altar-mor, envergando soberba vesti­menta, jaziam em sombras, sucedendo o mesmo aos assistentes. Entretanto, procedendo de mais alto, três entidades de sublime posição hierárquica se fizeram visíveis à santa mesa, com o evidente pro­pósito de ali semearem os benefícios divinos. Mag­netizaram as águas expostas, saturando-as de prin­cípios salutares e vitalizantes, como acontece nas sessões de Espiritismo Cristão, e, em seguida, pas­saram a fluidificar as hóstias, transmitindo-lhes energias sagradas à fina contextura.

Admirado, voltei a observar a plateia religio­sa, mas os irmãos ignorantes que operavam no templo, sem corpo físico, tanto quanto ocorria aos encarnados, nem de longe registravam a presença dos nobres emissários espirituais que agiam em nome do Infinito Bem.

Reparei, através do halo de muita gente, que determinado número de frequentadores se esforçava por melhorar a atitude mental na oração. Reflexos arroxeados, tendendo a vacilante brilho, apareciam aqui e acolá; contudo, os malfeitores desencarnados propositadamente se postavam ao pé dos que se candidatavam à fé renovadora e reverente, buscan­do conturbá-los.

Não longe, fixei a atenção numa senhora que acompanhava o sacerdote com o mani­festo desejo de receber a bênção celestial; os olhos úmidos e os tênues raios de luz, que se lhe projetavam da mente, diziam da sincera aspiração àvida superior que, naquele instante, lhe banhava o pensamento devoto; entretanto, dois transviados da esfera inferior, percebendo-lhe a esperança cons­trutiva, tentavam anular-lhe a atenção e, segundo o que me foi permitido verificar, lhe sugeriam reminiscências de baixo teor, inutilizando-lhe a ten­tativa.

Voltei-me para o orientador, que prestimosa-mente explicou:

— A história de gênios satânicos, atacando os devotos de variados matizes, é, no fundo, absolutamente verdadeira. As inteligências pervertidas, in­capazes de receber as vantagens celestes, transfor­mam-se em instrumentos passivos das inteligências rebeladas, que se interessam pela ignorância das massas, com lastimável menosprezo pela espiritua­lidade superior que nos governa os destinos. A aquisição de fé, por isto mesmo, demanda trabalho individual dos mais persistentes. A confiança no bem e o entusiasmo de viver que a luz religiosa nos infunde modificam-nos a tonalidade vibratória. Lucramos infinitamente com a imersão das forças interiores no sublimado idealismo da crença santi­ficante, a que nos afeiçoamos; todavia, o serviço real que nos cabe não se resume só a palavras. A profissão de fé não é tudo. A experiência da alma no corpo denso destina-se, de maneira fun­damental, ao aprimoramento do indivíduo. É nos atritos da marcha que o ser se desenvolve, se apura e ilumina. Não obstante, a tendência dos crentes, em geral, é a de fugir aos conflitos da senda. Pessoas existem que depois de servirem ao ideal religioso, durante dois anos, pretendem o repouso de vinte séculos. Em todas as casas de fé, os mensageiros do Senhor distribuem favores e bênçãos compatíveis com as necessidades de cada um; entretanto, é imprescindível que se prepare o coração nas linhas do mérito, a fim de recolhê-los. Entre emissão e recepção, prevalece o imperativo da sintonia. Sem esforço preparatório, é impossí­vel ambientar o benefício. Embalde imporíamos, de imediato, ao homem selvagem a vida num pa­lácio erguido pela cultura moderna. Aos acordes de nossa música, preferiria ele os ruidos da ven­tania, e um cabaz de flechas lhe pareceria mais valioso que um dos nossos mais perfeitos parques industriais. Portanto, para que alguém se coloque a caminho das eminências sociais, é indispensável seja educado, de boa vontade, aceitando as suges­tões de melhoria e serviço.

Gúbio espraiou o olhar através da multidão que presenciava a cerimônia, aparentemente contrita, e acentuou:

— Em verdade, a missa é um ato religioso tão venerável quanto qualquer outro em que os corações procuram identificar-se com a Proteção Divina; no entanto, raros são aqueles que trazem até aqui o espírito efetivamente inclinado à assi­milação do auxilio celestial. E para a formação de semelhante clima interior, cada crente, além do serviço de purificação dos sentimentos, necessitará também combater a influência dispersiva e pertur­badora que procede dos companheiros desencarna­dos que lhe buscam arrefecer o fervor.

Continuou Gúbio a prestar-nos valiosos escla­recimentos alusivos à solenidade, enquanto a missa se encaminhava para a fase final.

As vozes do coro como que projetavam vi­brações harmoniosas e lúcidas ao longo da nave radiosa, e vi, num deslumbramento, que muitos Espíritos sublimes penetraram o recinto, de semblante glorificado, rumando para o altar, onde o celebrante elevava o cálice, depois de abençoar a sagrada partícula.

Intensa luminosidade fluía do sacrário, envol­vendo todo o material do culto, mas, surpreendido, reparei que o sacerdote, ao erguer a oferta sublime, apagou a luz que a revestia com os raios cinzento-escuros que ele próprio expedia em todas as dire­ções. Logo após, quando se preparou a distribuir o alimento eucarístico entre os onze comungantes que se prosternavam, humildes, à mesa adornada de alvo linho, notei que as hóstias, no prateado recipiente que as custodiava, eram autênticas flo­res de farinha, coroadas de doce esplendor. Irra­diavam luz com tanta força que o magnetismo obscuro das mãos do ministro não conseguia inu­tilizá-las. Todavia, à frente da boca que se dis­punha a receber o pão simbólico, enegreciam como por encanto. Sômente uma senhora, ainda jovem, cuja contrição era irrepreensível, recolheu a flor divina com a pureza desejável. vi a hóstia, qual foco de fluidos luminescentes, atravessar a faringe, alojando-se-lhe a claridade em pleno coração.

Intrigado, procurei ouvir o Instrutor que, mui­to ponderado, elucidou sem delonga:

— Apreendeste a lição? O celebrante, apesar de consagrado para o culto, é ateu e gozador dos sentidos, sem esforço interior de sublimação pró­pria. A mente dele paira longe do altar. Acha-se sumamente interessado em terminar a cerimônia com brevidade, de modo a não perder uma alegre excursão em perspectiva. Quanto aos que compa­rtilharam à mesa da eucaristia, cheios de sentimentos rasteiros e sombrios, eles mesmos se incumbem de anular as dádivas celestes, antes que lhes tragam benefícios imerecidos. Temos aqui grande quanti­dade de crentes titulares, mas muito poucos amigos do Cristo e servidores do bem.

O “ite, missa est” dispersou os fiéis que, ao fim da reunião, mais se assemelhavam a barulhento bando de passarinhos de bela plumagem.

Absorto em fundas reflexões, ante o que me fora dado observar, acompanhei o nosso orientador e Elói, para junto da enferma e do esposo, que se retiraram, de regresso ao lar, cercados pelo mesmo séquito de entidades infelizes, sem a menor alteração.


10

Em aprendizado

De retorno a casa, com indisfarçável estra­nheza reparei que o nosso Instrutor não empreendia qualquer ataque em defesa da doente querida.

A jovem senhora, novamente metida no leito, semi-aniquilada, punha os olhos no ar vazio, absor­vida de indefinível pavor.

Um dos insensíveis magnetizadores presentes, à Insinuação de Saldanha, começou a aplicar ener­gias perturbadoras, ao longo dos olhos, torturando as fibras de sustentação. Não sômente o cristalino, em ambos os órgãos visuais, denunciava fenômenos alucinatórios, mas também as artérias oculares re­velavam-se sob fortes modificações.

Percebi a facilidade com que os seres perver­sos das sombras hipnotizam as suas vítimas, impondo-lhes os tormentos psíquicos que desejam.

Grossas lágrimas banhavam o rosto da enfer­ma, traduzindo-lhe as agitações interiores.

Dilacerada, a mente aflita e sofredora tira­nizava o coração que batia, precipite, imprimindo graves alterações em todo o cosmos orgânico.

Das complicadas operações sobre os olhos, o magnetizador passou a interessar-se pelas vias do equilíbrio e pelas células auditivas, carregando-as de substância escura, qual se estivesse doando com­bustível a um motor.

Margarida, ainda que o desejasse, agora não conseguiria erguer-se. Compacta emissão de fluidos tóxicos misturava-se à linfa dos canais semi­circulares.

Terminada a esquisita intervenção, Saldanha dispensou os terríveis colaboradores, à exceção da dupla que se incumbia do hipnotismo, alegando que havia serviço em outra parte da cidade.

Outros casos aguardavam a legião de Gregório, e Marga­rida, no parecer do chefe de tortura, já recebera suficiente material de prostração para trinta horas consecutivas.

Pouco a pouco, esvaziou-se a casa, semelhante agora a desprezada colmeia de maribondos vorazes. Contudo, aí permaneciam Saldanha, os dois magne­tizadores, nós três e a coleção de mentes, em “for­mas ovóides», ligadas ao cérebro da senhora fla­gelada.

A sós com o temível obsessor, Gúbío procurou sondar-lhe o íntimo, discretamente.

— Sem dúvida que a sua fidelidade aos com­promissos assumidos — declarou o nosso orienta­dor, atencioso — é bastante significativa.

E enquanto Saldanha sorria, envaidecidamente, continuou, de olhar penetrante e doce:

— Que razões teriam conduzido Gregório a conferir-lhe tão delicada missão?

— O ódio, meu amigo, o ódio! — explicou o interpelado decidido.

— À senhora? — aduziu Gúbio, indicando a doente.

— Não propriamente a ela, mas ao pai, juiz sem alma que me devastou o lar. Faz onze anos, precisamente, que a sentença cruel de um magis­trado caiu sobre os meus descendentes, exterminando-os...

E, diante da expressão de real interesse que o nosso Instrutor deixava perceber, o infeliz con­tinuou:

— Tão logo abandonei o corpo físico, premido por uma tuberculose galopante, revoltado com a pobreza que me lançara à extrema penúria, não pude afastar-me do ambiente doméstico. Minha infortunada Iracema herdou-me um filho querido, a quem não pude legar qualquer recurso apreciável. Jorge e sua genitora passaram, desse modo, a en­frentar dificuldades e aflições que não posso re­lembrar sem imensa angústia. Operário em rude serviço braçal, meu filho não conseguia sustentar dignamente a casa, definhando-se-lhe a mãezinha em padecimentos continuados e sofridos em silên­cio. Ainda assim, Jorge contraiu núpcias, muito cedo, com uma colega de trabalho, que, a seu turno, lhe deu uma filhinha atormentada e sofredora. A vida corria desesperadamente para o lar subali­mentado e desprotegido, quando certo crime, cons­tituído de roubo e assassínio, sobreveio na organi­zação em que meu desventurado rapaz trabalhava, e toda a culpa, em face de circunstâncias inextri­cáveis, recaiu sobre ele. Acompanhei-lhe a prisão imerecida e, sem qualquer recurso para ampará-lo, segui os interrogatórios infernais a que foi subme­tido, como se fora homicida vulgar. Ora, eu que me anexara aos parentes, desde o instante horrível, para mim, da transição corporal, jamais me senti disposto à submissão. A experiência humana não me proporcionou tempo a estudos religiosos ou filosóficos. Habituei-me muito cedo à rebelião con­tra aqueles que gozam os benefícios do mundo em detrimento dos desfavorecidos da sorte e, reconhecendo que o túmulo não me revelara qualquer milagroso domínio, preferi a continuidade da vida em meu escuro pardieiro, onde a convivência de Iracema, através de profundos laços magnéticos, de algum modo me reconfortava... Assisti, por isto, com indescritível terror, aos detestáveis acon­tecimentos. Humilhado, na minha condição de ho­mem invisível para os encarnados, visitei chefias e repartições, autoridades e guardas, tentando en­contrar alguém que me auxiliasse a salvar Jorge, inocente. Identifiquei o verdadeiro criminoso que, ainda agora, desfruta posição social invejável e tudo fiz, sem resultado, por clarear o processo oprobrioso. Meu filho sofreu todo o gênero de atrocidades morais e físicas, castigado por um delito que não cometeu. Desanimado, por minha vez, de algo recolher de útil, junto aos carrascos policiais que chegaram a improvisar fantásticas confissões da vítima, procurei o juiz da causa, na esperança de interferir benêficamente.

O magis­trado, porém, longe de aceitar-me a inspiração, que o convidava à justiça e à piedade, preferiu ouvir pareceres de amigos influentes na política domi­nante, que vivamente se interessavam pela indé­bita condenação, na ânsia de exculpar o verdadeiro criminoso.

Saldanha fêz pequeno intervalo, acentuando a expressão de profundo rancor, e prosseguiu:

— Descrever-lhe o que foi minha dor é alguma coisa de impraticável à capacidade verbal.

Jorge recebeu dolorosa pena, quando seu corpo vacilava sob maus tratos, e Irene, minha nora, conturba­da pela necessidade e pelo infortúnio, esqueceu as obrigações de mãe, suicidando-se para imantar-se ao espírito de meu pobre filho, já de si mesmo tão infeliz. Torturada pelos sucessos aflitivos, minha esposa desencarnou num catre de indigência, reu­nindo-se, por sua vez, ao angustiado casal. Minha neta, hoje menina e moça, mas ameaçada por incerto porvir, atende a serviço doméstico, aqui mesmo nesta casa, onde tresloucado irmão de Mar­garida procura arrastá-la sutilmente a grave des­vio moral. O juiz, que aqui preside à assembleia familiar, recebendo-me em sonho as promessas de vingança, buscou colocá-la junto aos próprios pa­rentes, empenhado em reparar de algum modo o seu crime; no entanto, apesar disso, meu desforço não se fará menos enérgico.

Surpreendido, notei que o nosso orientador não ensaiava qualquer doutrinação. Pousando olhos cheios de simpatia no interlocutor, murmurou apenas:

— Realmente, a sementeira de dor é das que mais nos afligem...

Encorajado pelo tom amigo daquela frase, Sal­danha prosseguiu:

— Muita gente convida-me à transformação espiritual, concitando-me ao perdão estéril. Não aceito, porem, qualquer alvitre desse jaez. Meu desventurado Jorge, sob a pressão mental de Irene, dilacerada, e de Iracema, oprimida, não resistiu e perturbou-se. Enlouquecendo no cárcere, foi trans­ferido da cela úmida para misérrimo hospício, onde mais se assemelha a um animal encurralado. Acredita possa meu cérebro dispor de recursos para meditar em compaixão que não recebi de pessoa alguma? Enquanto esses quadros permanecerem sob meus olhos, não abrirei minhalma às sugestões religiosas. Estou simplesmente diante da vida. A sepultura apenas derruba o muro da carne, por­qüanto nossas dores continuam tão vivas e tão contundentes quanto em outra época, quando su­portávamos a caixa dos ossos. Foi nesse estado que o sacerdote Gregório me encontrou e agra­dou-se de minhas disposições Intimas. Necessitava de alguém, de alma suficientemente endurecida, para presidir à retirada técnica desta moça que ele deseja arrebatar, devagarinho, à existência ter­restre, e louvou-me o ânimo firme. Quase sempre dispomos de servidores em massa para os cometi­mentos retificadores. Mas não é fácil encontrar um companheiro decidido a perseverar na vingança até ao fim, com o mesmo ódio do princípio.

Obser­vou que eu lhe atendia a exigência e confiou-me a tarefa.

Passeando colérico olhar pelos ângulos da câ­mara de repouso, acentuou:

— Todos aqui pagarão. Todos...

Admirado, fitei Gúbio que se mantinha Imperturbável, silencioso.

Fora eu e talvez me desbordasse em comentá­rios extensos e tirânicos, com referência à lei do amor que nos governa os destinos; reclamaria, com ênfase, a atenção do perseguidor para os ensina­mentos de Jesus e, se possível, dobrar-lhe-ia a lín­gua indisciplinada e insolente.

O Instrutor, contudo, assim não procedeu.

Sorriu, mudo, buscando disfarçar a própria tristeza.

Dois ou três minutos rolaram, longos, en­tre nós.

Mostrava o relógio um quarto para meio-dia, quando alguns passos se fizeram ouvidos.

— É o médico — elucidou Saldanha, com ma­nifesta expressão de sarcasmo —; debalde, porém, procurará lesões e micróbios...

Quase no mesmo instante, um cavalheiro de idade madura penetrou o recinto, em companhia de Gabriel, o esposo da vitima.

Abeirou-se da enferma, afagou-a gentil e pro­nunciou algumas palavras de encorajamento.

Margarida, em vão, buscou sorrir. Faltavam-lhe forças para tanto.

A conversação ia a meio, quando uma entida­de, evidentemente bem intencionada, compareceu. Viu-nos e demonstrou compreender-nos a posição, porque fixou em nós cauteloso olhar sem dizer pa­lavra, acercando-se do médico, solicitamente, qual se lhe fora dedicado enfermeiro.

O especialista não parecia profundamente in­teressado no caso, mas, ao auscultar Margarida, entregue a torpor inquietante, conversou com o marido da vítima de maneira superficial. Declarou que a jovem senhora, em sua opinião, certamente se mantinha sob o império da epilepsia secundária e que, em última análise, se socorreria da cola­boração de colegas eminentes para submetê-la a exame particularizado da lesão cérebro-meníngea, seguido, possivelmente, de intervenção cirúrgica aconselhável.

Em seguida, porém, observei que a entidade espiritual recém-chegada e que o assistia, com des­velo, pousou a destra em sua fronte, como se dese­jasse transmitir-lhe algum alvitre providencial.

O médico relutou bastante, mas ao cabo de alguns minutos, constrangido por sugestão exterior que não saberia compreender exatamente, convidou Gabriel a um dos ângulos do quarto e lembrou:

— Porque não tenta o Espiritismo? Conheço ultimamente alguns casos intrincados que vão sen­do resolvidos, com êxito, pela psicoterapia...

E para não dar ideia de uma capitulação cien­tífica, ante o idealismo religioso, acrescentava:

— Segundo sabemos hoje, à saciedade, a su­gestão é uma força misteriosa, quase desconhecida.

O esposo da enferma recebeu o conselho, com simpatia, e perguntou:

— Poderá orientar-me suficientemente?

O psiquiatra recuou, de algum modo, e obtem­perou:

— Bem, não disponho de maior trato com os expoentes do assunto, todavia, segundo acredito, não terá dificuldades para experimentar.

Logo após, deixou ali algumas indicações es­critas, relacionando drogas e injeções, e dispôs-se a sair, sob o riso escarninho de Saldanha, que dominava amplamente a situação.

Gúbio conversou qualquer coisa com o inqui­sidor desencarnado e, em seguida, dirigiu-se a mim, esclarecendo:

— André, combinamos que, para observações, deves seguir o médico. Dentro de algumas horas, porém, volta ao nosso posto.

Compreendi que o nosso orientador me pro­porcionava a recolha de novos ensinamentos e acom­panhei o especialista em moléstias nervosas, caute­loso e contente.

Distanciado agora do lugar em que nosso ins­trutor travava batalha singular, acerquei-me da personalidade que assistia o médico de perto e en­tabulamos amistoso diálogo.

O novo amigo atendia pelo nome de Maurício, fora enfermeiro do esculápio que protegia e rece­bera, com satisfação, a tarefa de ampará-lo nos empreendimentos profissionais.

— Todos os médicos — asseverou-me, convic­to —, ainda mesmo quando materialistas de mente impermeável à fé religiosa, contam com amigos espirituais que os auxiliam. A saúde humana é dos mais preciosos dons divinos. Quando a criatura, por relaxamento ou indisciplina, delibera menos­prezá-la, faz-se difícil o socorro aos seus centros de equilíbrio, porque, em todos os lugares, o pior surdo é aquele que não quer ouvir. Todavia, por parte de quantos ajudam a marcha humana, da esfera espiritual, há sempre medidas de proteção à harmonia orgânica, para que a saúde das criatu­ras não seja prejudicada. Claro que há erros tre­mendos em medicina e que não podemos evitar. Nossa colaboração não pode ultrapassar o campo receptivo daquele que se interessa pela cura alheia ou pelo próprio reajustamento. Entretanto, reali­zamos sempre em favor da saúde geral quanto nos é possível.

E, numa expressão profundamente significa­tiva, acentuou:

— Ah! se os médicos orassem!

Nesse instante, alcançamos o ponto de destino, antecipando-nos, de algum modo, ao amigo encar­nado sob minha observação.

A residência, confortável, não obstante o for­moso jardim que a circundava, permanecia transbordante de fluidos desagradáveis.

O clima doméstico era perturbador.

Maurício elucidou, sem preâmbulos:

— Estamos sumamente interessados em que o nosso amigo se enfronhe no trato com as magnas questões da alma, a fim de aperfeiçoar-se na tarefa junto à mente enferma, por isso encaminhamos até aqui, por vias indiretas, livros e publicações acerca do assunto; entretanto, contra o nosso desejo, não somente preponderam os preconceitos da classe mó­dica, mas também a influência perniciosa que a segunda esposa exerce sobre ele. Homem inteli­gente, mas muitíssimo arraigado à remuneração dos sentidos, o nosso amigo não suportou a viuvez e desposou, há cinco anos, uma jovem que lhe exige pesado tributo à maturidade respeitável. Acontece, também, que a esse problema acresce questão muito grave: a primeira esposa desencarnada deixou dois rapazes e permanece ligada à organização domés­tica, que considera sua propriedade exclusiva. Por mais que o nosso trabalho se acentue, ainda não conseguimos retirá-la, com proveito, da casa, por­que o pensamento dos filhos, em conflito com o pai e com a madrasta, lhe invoca a atuação, de minuto a minuto. O duelo mental nesta casa éenorme. Ninguém cede, ninguém desculpa e o com­bate espiritual permanente transforma o recinto numa arena de trevas.

Calou-se o informante, enquanto entravamos, e pude notar que, efetivamente, a ex-dona da casa, sem o corpo físico, em singular posição de revolta ali se achava, abraçada a um dos filhos, moço de seus dezoito anos presumíveis, que fumava nervo­samente numa espreguiçadeira. Via-se-lhe perfei­tamente a condição de vaso receptivo da sublevada mente materna.

Idéias inquietantes e delituosas povoavam-lhe a cabeça.

Fios tenuíssimos de força magnética ligavam-no à mãezinha infeliz.

Tinha as mãos crispadas e o olhar absorto, maquinando planos diabólicos e, por mais que o envolvesse o socorro de Maurício, nem ele, nem aquela que lhe fora ciumenta genitora, se mostravam suscetíveis de receber-nos a influenciação res­tauradora.

— Tenho trabalhado tanto quanto me é possí­vel — explicou o novo companheiro — a fim de ambientar aqui o espiritualismo de ordem superior. Achamo-nos, entretanto, num campo imensamente refratário.

Nesse instante, o médico transpôs o limiar e Maurício colocou sobre a fronte dele a destra gene­rosa, buscando fornecer-lhe intuições exatas, refe­rentes ao caso de Margarida. O especialista, num átimo, começou a articular o aparelhamento men­tal para exame do assunto que lhe era sugerido, lembrando certa publicação técnica, única maneira através da qual conseguia registrar os pensamentos do companheiro espiritual. Mesmo assim, o esforço não logrou êxito.

O filho atacou o genitor com recriminações acerbas, em vista de se haver demorado excessiva­mente para o almoço.

O esculápio depressa desligou a mente de nos­sos fios invisíveis, precipitando-a no torvelinho das vibrações antagônicas.

A esposa desencarnada veio igualmente sobre ele, furiosamente. Reparei que o dono da casa não lhe assinalou os punhos ativos no rosto, mas o sangue concentrou-se-lhe na região das têmporas, tingindo-se-lhe a máscara fisionômica de cólera in­disfarçável. Resmungou algumas palavras, satura­das de indignação, e perdeu, de todo, o contacto espiritual conosco.

Maurício indicou-o com insofreâvel tristeza e acentuou:

— É sempre assim. Muito difícil aproximar­mo-nos, na esfera física, daqueles a quem nos propomos auxiliar. Surgem ensejos valiosos de reali­zação espiritual, como presentemente nos ocorre, diante do problema de Margarida. No entanto, nossas tentativas redundam em rematada frustra­ção. Um homem, intelectualizado pela responsabili­dade acadêmica, por si mesmo deveria sentir santa curiosidade perante a vida, abstendo-se de certo comércio mais intenso com a satisfação egoística da experiência no corpo. Porém, a criatura costuma persegui-la até o desgaste completo da forma carnal de que se serve. Por mais que a convoquemos à preciosa viagem da periferia para o centro, a fim de que ela se amolde aos imperativos da vida que a espera, além do sepulcro, nosso esforço é quase sempre considerado adiável e inútil.

Sorriu, enigmático, e. ajuntou:

— E observemos que nos achamos à frente de um homem chamado pelo campo social ao minis­tério da cura.

Nesse ínterim, a pequena família se reuniu, ao redor da mesa posta, e a segunda esposa do médico me impressionou pelo apuro da apresentação. A pintura do rosto, sem dúvida, era admirável. O traje elegante e sóbrio, as jóias discretas e o penteado harmonioso realçavam-lhe a profundez do olhar, mas rodeava-se ela de substância fluidica de­primente. Halo plúmbeo denunciava-lhe a posição de inferioridade. Socialmente, aquela dama devia ser das de mais fino trato; contudo, terminado o repasto, deixou positivamente evidenciada sua de­plorável condição psíquica. Depois de uma dis­cussão menos feliz com o marido, a jovem mulher buscou o sono da sesta, num divã largo e macio.

Intencionalmente, Maurício convidou-me a es­preitar-lhe o repouso e, com enorme surpresa, atur­dido mesmo, não lhe vi os mesmos traços fisionô­micos na organização perispiritual que abandonava a estrutura carnal, entregue ao descanso. Alguma semelhança era de notar-se, mas, afinal de contas, a senhora tornara-se irreconhecível. Estampava no semblante os sinais das bruxas dos velhos contos infantis. A boca, os olhos, o nariz e os ouvidos revelavam algo de monstruoso.

A própria esposa desencarnada, ali presente em clamorosa revolta, não se animou a enfrentá-la. Recuou semi-espavorida, tentando ocultar-se junto do filho.

Lembrei-me, então, do livro em que Oscar Wilde nos conta a história do retrato de Dorian Gray, que adquiria horrenda expressão à medida que o dono se alterava, intimamente, na prática do mal e, endereçando a Maurício olhar indagador, dele recebi sensata elucidação:

— Sim, meu amigo — disse, tolerante —, a imaginação de Wilde não fantasiou, O homem e a mulher, com os seus pensamentos, atitudes, pala­vras e atos criam, no intimo, a verdadeira forma espiritual a que se acolhem. Cada crime, cada que­da, deixam aleijões e sulcos horrendos no campo da alma, tanto quanto cada ação generosa e cada pensamento superior acrescentam beleza e perfei­ção à forma perispirítica, dentro da qual a indi­vidualidade real se manifesta, mormente depois da morte do corpo denso. Há criaturas belas e admi­ráveis na carne e que, no fundo, são verdadeiros monstros mentais, do mesmo modo que há corpos torturados e detestados, no mundo, escondendo Es­píritos angélicos, de celestial formosura.

E designando a infeliz que se ausentava de casa, semi-liberta do veículo material, acentuou:

— Esta irmã desventurada permanece sob o império de Espíritos gozadores e animalizados que, por muito tempo, a reterão em lastimáveis desequilíbrios. Acreditamos que ela, sem fé renovadora, sem ideais santificantes e sem conduta digna, não se precatará tão cedo dos perigos que corre e somente se lembrará de chorar, aprender e trans­formar-se para o bem, quando se afastar, em defi­nitivo, do vaso de carne, na condição de autêntica bruxa.

O assunto era realmente fascinante e a llção era imensa. Entretanto, meu tempo disponível esgotara.

O minuto exigia pronto regresso.


11

Valiosa experiência

Atento à sugestão do médico amigo, no dia imediato pela manhã dispôs-se Gabriel a conduzir a esposa ao exame de afamado professor em ciên­cias psíquicas, no intuito de conseguir-lhe cooperação benfazeja.

Pude reparar, então, que a liberdade dos ho­mens, no terreno da consulta, é quase irrestrita, porqüanto, de nosso lado, Gúbio demonstrou pro­fundo desagrado, asseverando-me, discreto, que tudo faria por impedir a providência que sômente seria profícua e aconselhável, a seu parecer, através de autoridade diferente no assunto.

O professor indicado era, segundo a opinião do nosso desvelado orientador, admirável expoente de fenômenos, portador de dons medianímicos no­táveis, mas não oferecia proveito substancial aos que se acercassem dele, por guardar a mente muito presa aos interesses vulgares da experiência ter­restre.

— Fazer psiquismo — falou-me o Instrutor, em voz quase imperceptível — é atividade comum, tão comum quanto qualquer outra, O essencial édesenvolver trabalho santificante. Visitar media­neiros de reconhecida competência no trato entre os dois mundos, senhores de faculdades magníficas no setor informativo, é o mesmo que entrar em con­tacto com os donos de soberba fortuna. Se o deten­tor de tão grandes bens não se acha interessado em gastar os recursos de que dispõe, a favor da felicidade dos semelhantes, o conhecimento e o di­nheiro apenas lhe agravarão os compromissos no egoísmo praticado, na distração inoperante ou na perda lamentável de tempo.

Apesar da oportuna observação, notamos que o esposo da obsidiada não oferecia receptividade mental que nos favorecesse a modificação desejável.

Todo o nosso esforço sutil para colocá-lo nou­tro caminho redundou em fracasso. Gabriel não sabia cultivar a meditação.

Embora visivelmente preocupado, comentou o orientador:

— De qualquer modo, aqui nos achamos para ajudar e servir. Acompanharemos o casal nessa nova aventura.

Em breve tempo, entraríamos em contacto com o psiquista lembrado.

Com muito interesse, como quem sabia, de an­temão, os sucessos que se desdobrariam, Saldanha acompanhou as mínimas providências, sem desagarrar-se da jovem senhora.

Alguns minutos antes das onze do dia, encon­trávamo-nos todos em vasto salão de espera, aguar­dando a chamada.

Mais três grupos de pessoas ali se congrega­vam em ansiosa espera.

Demorava-se o professor em gabinete isolado, atendendo a enfermo mental que se revelava, de longe, pelas frases desconexas que proferia em alta voz.

Reparei que os presentes se faziam seguidos de grande número de desencarnados. Para definir corretamente, a casa inteira mais se assemelhava a larga colmeia de trabalhadores sem corpo físico.

Entidades de reduzida expressão evolutiva iam e vinham, prestando pouca atenção à nossa pre­sença.

Em vista da férrea disposição de Saldanha, no sentido de manter Margarida sob severa custódia pessoal, o nosso Instrutor, alegando interesse na sondagem do ambiente, afastou-se um tanto, em nossa companhia, detendo-se no exame acurado dos consulentes.

Acercamo-nos de acolhedora poltrona, em que um cavalheiro de idade madura, dando mostras de evidente moléstia nervosa, permanecia ladeado por dois rapazes. Suor frio lhe banhava a fronte e ex­trema palidez, com traços de terror, lhe exteriori­zava a lipotimia. Revelava-se torturado por visões pavorosas no campo íntimo, somente acessíveis a ele mesmo. Registrei-lhe as perturbações cerebrais e vi, sob forte assombro, as várias formas ovóides, escuras e diferençadas entre si, aderindo-lhe à or­ganização perispirítica. Achava-me interessado em que o nosso Instrutor se pronunciasse. Gúbio obser­vava-o meticulosamente, decerto nos preparando va­liosos ensinamentos. Transcorridos alguns instan­tes, falou-nos em voz sumida:

— Vejamos a que calamidades fisiológicas po­dem os distúrbios da mente conduzir um homem. Temos sob nosso olhar um investigador da polícia em graves perturbações. Não soube deter o bastão da responsabilidade. Dele abusou para humilhar e ferir. Durante alguns anos, conseguiu manter o remorso a distância; todavia, cada pensamento de Indignação das vítimas passou a circular-lhe na atmosfera psíquica, esperando ensejo de fazer-se sentir. Com a maneira cruel de proceder atraiu, não só a ira de muita gente, mas também a convi­vência constante de entidades de péssimo compor­tamento que mais lhe arruinaram o teor de vida mental. Chegado o tempo de meditar sobre os ca­minhos percorridos, na intimidade dos primeiros sintomas de senectude corporal, o remorso abriu-lhe grande brecha na fortaleza em que se entrinchei­rava. As forças acumuladas dos pensamentos des­trutivos que provocou para si mesmo, através da conduta irrefletida a que se entregou levianamente, libertadas de súbito pela aflição e pelo medo, quebraram-lhe a fantasiosa resistência orgânica, quais tempestades que se sucedem furiosas, esbarron­dando a represa frágil com que se acredita conter o impulso crescente das águas.

Sobrevindo a crise, energias desequilibradas da mente em desvario ver­gastaram-lhe os delicados órgãos do corpo físico. Os mais vulneráveis sofreram consequências terrí­veis. Não apenas o sistema nervoso padece tortura incrível: o fígado traumatizado inclina-se para a cirrose fatal.

Sentindo-nos as interrogações silenciosas do olhar, quanto à solução possível naquele enigma doloroso, o orientador acentuou:

— Este amigo, no fundo, está perseguido por si mesmo, atormentado pelo que fêz e pelo que tem sido. Só a extrema modificação mental para o bem poderá conservá-lo no vaso físico; uma fé renova­dora, com esforço de reforma persistente e digna da vida moral mais nobre, conferir-lhe-á diretrizes superiores, dotando-o de forças imprescindíveis àauto-restauração. Permanece dominado pelos qua­dros malignos que improvisou em gabinetes isola­dos e escuros, pelo simples gosto de espancar infelizes, a pretexto de salvaguardar a harmonia social. A memória é um disco vivo e milagroso. Fotografa as imagens de nossas ações e recolhe o som de quanto falamos e ouvimos... Por in­termédio dela, somos condenados ou absolvidos, dentro de nós mesmos.

O assunto era sedutor, mas, talvez para não acordar demasiada atenção em Saldanha e em outros Espíritos menos educados que nos contem­plavam curiosamente, Gúbio passou a reparar conosco outro caso.

Abeiramo-nos de um divã, em que respeitável senhora se sentava ao lado de jovem clorótica, parecendo-me avó e neta. Dois Espíritos de as­pecto sinistro rodeavam a menina, qual se devesse estar custodiada por guardas tirânicos.

A matrona aflitivamente aguardava o instante da consulta. A jovem, que proferia disparates, não falava por si. Fios tênues de energia magnética ligavam-lhe o cérebro à cabeça do irmão infeliz que se lhe mantinha à esquerda. Achava-se absoluta­mente controlada pelos pensamentos dele, à maneira de magnetizado e magnetizador. A doente ria sem propósito e conversava a esmo, reportan­do-se a projetos de vingança, com todas as caracte­rísticas de idiotia e inconsciência.

Gúbio examinou-a com a atenção habitual e in­formou:

— Encontramos aqui doloroso drama do pas­sado. A vida não pode ser considerada na conta estreita de uma existência carnal. Abrange a eter­nidade. É infinita nos séculos infinitos. Esta me­nina comprometeu-se gravemente no pretérito. Des­posou um homem e desviou-lhe o irmão para vicioso caminho. O primeiro suicidou-se e o segundo asi­lou-se no fundo vale da loucura. Ei-los, presentemente, ao lado dela para deplorável vindha. Na atualidade, a avôzinha preparou-lhe um casamento nobre, receando deixá-la no mundo entregue a si própria; entretanto, em vésperas de concretização do plano benéfico, ambas as vítimas de outro tempo, mentalmente cristalizadas no propósito de desforra, buscam impedir-lhe a união esponsalicia. O ex-ma­rido ultrajado, em fase primária de evolução, ainda não conseguiu esquecer-lhe a falta e ocupa-lhe os centros da fala e do equilíbrio. Enche-lhe a mente de ideias dele, subjuga-a e requisita-lhe a presença na esfera em que se encontra. Permanece a pobre­zinha saturada de fluidos que lhe não pertencem. Certamente já peregrinou por diversos consultórios de psiquiatria, sem resultado, e vem até aqui pro­curando socorro.

— Encontrará remédio adequado? — interro­gou Elói, sob forte impressão.

— Não me parece muito bem encaminhada — elucidou o nosso dirigente, sem presunção. Exige renovação interior e, ao que acredito, não obterá nesta casa senão ligeiro paliativo. Em casos de obsessão como este, em que a paciente ainda pode reagir com segurança, faz-se indispensável o curso pessoal de resistência. Não adianta retirar a sucata que perturba um imã, quando o próprio ímã con­tinua atraindo a sucata.

Efetivamente, seríamos singularmente favore­cidos por ensinanlentoS novos se persistíssemos no estudo em foco; todavia, Saldanha, de longe, nos endereçava olhar indagador e era preciso seguir adiante.

Buscamos o recanto mais escuro do salão, onde dois homens, em idade madura, se mantinham em silêncio. De imediato, reconhecemos que um deles guardava indiscutível desequilíbrio orgânico. Mui­to pálido e abatido, demonstrava sinais de profunda inquietação.

Junto deles se encontrava uma entidade de­sencarnada, de humilde aspecto. Tomei-a por parte integrante da vasta coleção de Espíritos perturba­dos que ali funcionava; entretanto, com agradável surpresa para mim, dirigiu-se a Gúbio, exclamando de maneira discreta:

— Já lhes identifiquei, pelo tom vibratório, a posição de amigos do bem.

Indicando o enfermo, acentuou:

— Venho aqui na defesa deste amigo. Segundo estarão informados, dispomos no recinto de vigo­roso operador mediúnico, sem iluminação interior de maior vulto. Assalariou ele algumas dezenas de Espíritos desencarnados, de educação incipiente, que lhe absorvem az emanações e trabalham cega­mente sob suas ordens, tanto para o bem quanto para o mal.

Sorrindo, acrescentou:

— Nesta casa, o enfermo não é amparado pelo socorrista de que se vem valer e, sim, pela assis­tência espiritual edificante de que possa desfrutar.

E porque eu indagasse, com respeito ao doente, explicou, gentil:

— Este companheiro é austero administrador de serviços públicos. Na condição de mordomo e disciplinador, incapaz de usar o algodão da ter­nura em feridas alheias, adquiriu ódios gratuitos e silenciosas perseguições que lhe vergastam a mente, sem cessar, desde muitos anos, com perigosos reflexos no sistema circulatório, zona menos resis­tente do seu cosmos físico. Lutando, desassombrado, por reajustar a concepção de funcionários relapsos, mas sem armas de amor na própria de­fensiva, apresenta consideráveis prejuízos nas veias coronárias. Semelhantes ataques de forças impon­deráveis visaram-lhe igualmente o fígado e o baço, que se revelam em lamentáveis condições. Acon­tece, porém, que a grande corrente de perseguido­res, despertados por sua ação enérgica e educativa, conseguiu insinuar nos médicos, que o assistem, a necessidade de uma intervenção na vesícula biliar, preparando-se-lhe, com isso, um choque operatório, que lhe imporá a morte inesperada do corpo. O plano foi admiravelmente bem delineado. Entre­tanto, pelo bem que existe no fundo da severidade com que o nosso companheiro tem agido, busca­remos socorrê-lo através do médium que deliberou visitar. Recebi instruções, no sentido de obstar a operação cirúrgica e confio na vitória de minha tarefa.

Francamente, eu gostaria de levar a efeito um exame no paciente, para verificar até que ponto havia sofrido os golpes mentais em serviço, mas o olhar de Gúbio se fizera imperativo.

Cabia-nos a execução de deveres importantes e precisávamos retornar ao Saldanha. O problema de Margarida era complexo e competia-nos enfrentar-lhe a solução, de ânimo firme.

O obsessor da infortunada senhora, sentindo-nos o concurso espontâneo, acolheu-nos sem des­confiança.

Assumindo ares de pessoa superinteligente, comunicou ao nosso Instrutor que resolvera solicitar a neutralidade dos servos espirituais do pro­fessor operante. Com fina sagacidade asseverou que era necessário evitar a piedade do médium e confundir-lhe as observações, através de todos os recursos possíveis.

Em seguida à elucidação que me surpreendeu, rogou a presença de um dos colaboradores mais in­fluentes e apareceu diante de nós a esquisita figura de um anão de semblante enigmático e expressivo.

Expedito, Saldanha pediu-lhe cooperação sem rebuços, esclarecendo que o operador da casa não deveria penetrar o problema de Margarida, na inti­midade. Prometia-lhe, em troca do favor, não só a ele, mas também a outros auxiliares no assunto excelente remuneraçãO em colônia não distante. E descreveu-lhe, com largas promessaS1 quanto lhe poderia proporcionar em regalo e prazeres no cor­tiço de entidades perturbadas e ignorantes, onde conhecêramos Gregório.

O serviçal manifestou indisfarçado contenta­mento e assegurou que o médium não perceberia patavinas.

Com justificada curiosidade, acompanhei o de­senrolar dos acontecimentos.

Logo à entrada do gabinete, percebi que a oficina não inspirava segura confiança.

O professor pôs-se imediatamente a combinar o preço do trabalho de que se encarregaria, exigindo adiantadamente de Gabriel significativo pagamento. O intercâmbio ali, entre as duas esferas, se resumia a negócio tão comum quanto outro qualquer.

Sem detença, reconheci que o médium, se podia controlar, de algum modo, os Espíritos que se ali­mentavam de seu esforço, era também facilmente controlado por eles.

O recinto jazia repleto de entidades em fase primária de evolução.

Saldanha, excessivamente atarefado, anunciou-nos que presidiria, de perto, aos trâmites da ação mediúnica, notificando-nos, prazeroso, que lhe fora hipotecada plena ajuda das entidades ali domi­nantes.

Em razão disso, podíamos analisar os fatos, em companhia de Gúbio, recolhendo preciosa lição.

Depois de visivelmente satisfeito no acordo financeiro estabelecido, colocou-se o vidente em profunda concentração e notei o fluxo de energias a emanarem dele, através de todos os poros, mas muito particularmente da boca, das narinas, dos ouvidos e do peito. Aquela força, semelhante a vapor fino e sutil, como que povoava o ambiente acanhado e reparei que as individualidades de or­dem primária ou retardadas, que coadjuvavam o médium em suas incursões em nosso plano, sorviam-na a longos haustos, sustentando-se dela, quanto se nutre o homem comum de proteína, car­boidratos e vitaminas.

Examinando a paisagem, Gúbio esclareceu-nos em voz imperceptível aos demais:

— Esta força não é patrimônio de privilegia­dos. É propriedade vulgar de todas as criaturas, mas entendem-na e utilizam-na sômente aqueles que a exercitam através de acuradas meditações.

É o “spiritus subtilissimus” de Newton, o “fluido magnético” de Mesmer e a “emanação ódica” de Rei chenbach. No fundo, é a energia plástica da mente que a acumula em si mesma, tomando-a ao fluido universal em que todas as correntes da vida se banham e se refazem, nos mais diversos reinos da natureza, dentro do Universo. Cada ser vivo éum transformador dessa força, segundo o poten­cial receptivo e irradiante que lhe diz respeito. Nasce o homem e renasce, centenas de vezes, para aprender a usá-la, desenvolvê-la, enriquecê-la, subli­má-la, engrandecê-la e divinizá-la.

Entretanto, na maioria das vezes, a criatura foge à luta que inter­preta por sofrimento e aflição, quando é inestimá­vel recurso de auto-aprimoramento, adiando a pró­pria santificação, caminho único de nossa aproxi­mação do Criador.

Vendo a cena que se desenrolava, ponderei:

— É forçoso convir, porém, que este vidente é vigoroso na instrumentalidade. Permanece em

perfeito contacto com os Espíritos que o assistem e que encontram nele sólido sustentáculo.

— Sim — confirmou o orientador, sereno —, mas não vemos aqui qualquer sinal de sublimação na ordem moral, O professor de relações com a nossa esfera, inabordável, por enquanto, ao homem comum, sintoniza-se com as emissões vibratórias das entidades que o acompanham em posição pri­mitivista, pode ouvir-lhes os pareceres e registrar-lhes as considerações. Entretanto, isto não basta. Desfazer-se alguém do veículo de carne não é ini­ciar-se na divindade. Há bilhões de Espíritos em evolução que rodeiam os homens encarnados, em todos os círculos de luta, muito inferiores, em alguns casos, a eles mesmos e que, fàcilmente, se convertem em instrumentos passivos dos seus de­sejos e paixões. Daí, o imperativo de muita capacidade de sublimação para quantos se consagram ao intercâmbio entre os dois mundos, porque, se a virtude é transmissível, os males são epidêmicos.

Nesse ínterim, reparamos que o médium, des­ligado do corpo físico, se punha a ouvir, atencioso, justamente a argumentação do assalariado mais inteligente, cuja cooperação Saldanha requisitara.

— Volte, meu amigo — asseverava, jactan­cioso, ao médium desdobrado —, e diga ao esposo de nossa irmã doente que o caso orgânico é sim­ples. Bastar-lhe-á o socorro médico.

— Não é uma obsidiada vulgar? — inquiriu o médium, algo hesitante.

— Não, não, isto não! Esclareça o problema. O enigma é de medicina comum. Sistema nervoso em frangalhos. Esta senhora é candidata aos cho­ques da casa de saúde. Nada mais.

— Não seria lícito algo tentar em favor dela? — tornou o psiquista, sensibilizado.

O interpelado riu-se numa tranquilidade de pasmar e rematou:

— Ora, ora, você deve saber que, individual­mente, cada criatura tem o seu próprio destino. Se nosso concurso fôsse eficiente, não teria gosto para tergiversações. Não há tempo a perder.

A essa altura, Saldanha endereçava-lhe um sorriso de satisfação, aprovando o alvitre e fazendo-nos sentir como é possível enganar a muitos, quando o homem apenas confia na estreiteza da sua própria observação.

Perante o quadro que nos era dado apreciar, ousei dirigir-me discretamente a Gúbio, indagando:

— Não nos achamos diante de autêntica ma­nif estação espiritista?

— Sim — confirmou em tom grave —, àfrente de legítimo fenômeno dentro do qual uma individualidade encarnada recebe os pareceres de outra, ausente do envoltório carnal. Entretanto, André, os companheiros de ideal cristão, corporifi­cados na Crosta da Terra, vão compreendendo agora que o fenômeno em si é tão rebelde quanto o rio encachoeirado que rola a esmo, sem compor­tas, sem disciplina. Jamais endossaremos um Espi­ritismo dogmático e intolerante. É imprescindível, porém, que o clima da prece, da renúncia edifi­cante, do espírito de serviço e fé renovadora, atra­vés de padrões morais nobilitantes, constitua a nota fundamental de nossas atividades no psiquismo transformador, a fim de que nos encontremos, real­mente, num serviço de elevação para o Supremo Pai. Temos aqui um médium de possibilidades ricas e extensas, que, pelo simples comércio vulgar a que reduziu a movimentação de suas faculdades, não acorda impressões construtivas naqueles que o buscam. Pode ser um cooperador valioso em cer­tas circunstâncias, mas não é o trabalhador ideal, suscetível de provocar o interesse dos grandes ben­feitores da Vida Superior. Estes não se animariam a comprometer grandes instruções por intermédio de servidores, bem intencionados embora, que não vacilam em vender as essências divinas em troca de recursos amoedados da luta comum. O caminho da oração e do sacrifício é, portanto, indispensável ainda a quantos se propõem dignificar a vida. A prece sentida aumenta o potencial radiante da men­te, dilatando-lhe as energias e enobrecendo-as, en­quanto a renúncia e a bondade educam a todos os que se lhes acercam da fonte, enraizada no Sumo Bem. Não basta, dessa maneira, exteriorizar a força mental de que todos somos dotados e mo­bilizá-la. É indispensável, acima de tudo, impri­mir-lhe direção divina. É por esta razão que pugnamos pelo Espiritismo com Jesus, única fór­mula de não nos perdermos em ruinosa aventura.

Compreendi os preciosos argumentos do Ins­trutor, pronunciados à meia voz, e, extremamente impressionado, guardei respeitoso silêncio.

O vidente retomou a gaiola física, finalizando a operação simplesmente técnico-mecânica de con­tacto com a nossa esfera, sem qualquer resultado no capítulo de elevação espiritual que lhe melho­rasse o ambiente. Abriu os olhos, reajustou-se na cadeira e informou a Gabriel que o problema seria solucionado com a colaboração da psiquiatria. Co­mentou a situação precária dos nervos da doente e chegou a indicar um especialista de seu conheci­mento para que novo método de cura fôsse tentado.

O casal agradeceu, comovidamente, e, enquanto se articulavam as despedidas, o professor reco­mendou à enferma resistência e cautela, ante OS estados mentais depressivos.

A jovem senhora recebeu as observações com o desencanto e a dor de quem se sente alvejado pelo sarcasmo, e partiu.

Saldanha, à nossa vista, abraçou os coopera­dores, que tão bem haviam desempenhado a deplo­rável tarefa, combinou ocasião de encontro amis­toso, a fim de comemorarem o que se lhes figurava significativo triunfo e, em seguida, notificou-nos em voz firme:

— Vamos, amigos! quem começa a vingança deve marchar seguro até ao fim.

Endereçou-lhe Gúbio triste sorriso, com que disfarçava a aflição extrema, e acompanhou-o, hu­mildemente.


12

Missão de amor

Voltando a casa, algumas horas transcorreram tocadas para nós de singular expectativa; entretanto, à noitinha, Saldanha manifestou o propósito de visitar o filho hospitalizado.

Com espanto, reparei que o nosso Instrutor lhe pedia permissão para que o acompanhássemos.

O perseguidor de Margarida, algo surpreso, acedeu, indagando, porém, quanto ao móvel de se­melhante solicitação:

— Quem sabe se poderemos ser úteis? — res­pondeu Gúbio, otimista.

Não houve relutância.

Guardadas rigorosas precauções por parte de Saldanha, que se fêz substituir, junto à doente, por Leôncio, um dos dois implacáveis hipnotizadores, rumamos para o hospício.

Entre variadas vítimas da demência, relegadas a reajuste cruel, a posição de Jorge era de lamen­tar. Encontramo-lo de bruços, no cimento gelado de cela primitiva. Mostrava as mãos feridas, cola­das ao rosto imóvel.

O genitor, que até ali se nos afigurara imper­meável e endurecido, contemplou o filho com visível angústia nos olhos velados de pranto e elucidou com infinita amargura na voz:

— Está, certamente, repousando depois de cri­se forte.

Não era, contudo, o rapaz tresloucado e aba­tido quem mais inspirava compaixão. Agarradas a ele, ligadas ao circulo vital que lhe era próprio,

a mãezinha e a esposa desencarnadas absorviam-lhe

os recursos orgânicos. Jaziam igualmente estira­das no chão, letárgicas quase, como se houvessem

atravessado violento acesso de dor.

Irene, a suicida, trazia a destra jungida à gar­ganta, apresentando o quadro perfeito de quem vivia sob dolorosa aflição de envenenamento, ao passo que a genitora enlaçava o enfermo, de olhos parados nele, exibindo ambas sinais iniludíveis de atormentada introversão. Fluidos semelhantes a massa viscosa cobriam-lhes todo o cérebro, desde a extremidade da medula espinhal até os lobos frontais, acentuando-se nas zonas motoras e sen­sitivas.

Concentradas nas forças do infeliz, como se a personalidade de Jorge representasse a única ponte de que dispunham para a comunicação com a forma de existência que vinham de abandonar, revela­vam-se integralmente subjugadas pelos interesses primários da vida física.

— Estão loucas — informou Saldanha, na intenção evidente de ser agradável —, não me com­preendem, nem me reconhecem, embora me fixem. Guardam o comportamento de crianças, quando fus­tigadas pela dor. Corações de porcelana, quebra­dos fàcilmente.

E franzindo o sobrecenho, transtornado agora por insofreável rancor, acrescentou:

— Raras mulheres sabem conservar a forta­leza nas guerras de revide. Em geral, sucumbem ràpidamente, vencidas pela ternura inoperante.

Nosso orientador, desejando anular as vibra­ções de cólera no companheiro, cortou-lhe o rumo das impressões destrutivas, confirmando, pesaroso:

— Demoram-se, efetivamente, em profunda hip­nose. Nossas irmãs não conseguiram, por enquanto, ultrapassar o pesadelo do sofrimento, no transe da morte, qual acontece ao viajante que inicia a tra­vessia de vasta corrente de águas turvas, sem re­cursos para alcançar a outra margem. Ligadas ao filho e esposo, objeto que lhes centralizou, nas horas finais do corpo denso, todas as preocupações afetivas, combinaram as próprias energias com as forças torturadas dele e aquietam-se, aflitivamente, no centro dos fluidos que lhes constituem criação individual, como acontece ao “Bombyx mori” imo­bilizado e dormente sob os fios, tecidos por ele mesmo.

O obsessor de Margarida registrou as observa­ções, demonstrando indisfarçável surpresa no olhar e acentuou, mais calmo:

— Por mais que eu me procure insinuar, gri­tando-lhes meu nome aos ouvidos, não conseguem entender-me. Em verdade, movem-se e se lastimam, através de longas frases desconexas, mas a me­mória e a atenção parecem mortas. Se insisto, car­regando-as, a custo, ansioso por Infundir-lhes vida nova com que me possam auxiliar na vingança, vejo baldado todo esforço, porqüanto regressam Imediatamente para Jorge, logo que as suponho livres, num impulso análogo ao das agulhas que um Imã recolhe a distância.

— Sim — corroborou o nosso diretor —, mos­tram-se temporariamente esmagadas de pavor, de­sânimo e sofrimento. Pela ausência de trabalho mental contínuo e bem coordenado, não expeliram as “forças coagulantes” do desalento, que elas mes­mas produziram, inconformadas, ante os imperati­vos da luta normal na Terra e entregaram-se, com indiferença, a deplorável torpor, dentro do qual se alimentam das energias do enfermo. Drenado in­cessantemente nas reservas psíquicas, o doente, hipnotizado por ambas, vive entre alucinações e de­sesperos, naturalmente incompreensíveis para quan­tos o rodeiam.

Com sincera disposição de servir, Gúbio sen­tou-se no piso cimentado e, num gesto de extrema bondade, acomodou no regaço paternal as cabeças das três personagens daquela cena comovente de dor, e, endereçando olhar amigo ao algoz da mulher que pretendia salvar, que o observava espantadiço, indagou:

— Saldanha, permite-me algo fazer em bene­fício dos nossos?

A fisionomia do perseguidor modificou-se.

Aquele gesto espontâneo do nosso orientador desarmava-lhe o coração, emocionando-o nas fibras mais íntimas, a julgar pelo sorriso que lhe inundou o semblante até então desagradável e sombrio.

— Como não? — falou quase gentil... — É o que procuro realizar inutilmente.

Impressionado com a lição que recebíamos, contemplei a paisagem ao redor, cotejando-a com a da câmara em que Margarida experimentava aflição e tortura. Os impedimentos aqui eram muito mais difíceis de vencer. O cubículo transbordava imun­dície. Nas celas contíguas, entidades de repugnante aspecto se arrastavam a esmo. Mostravam algu­mas características animalescas, de pasmar. A atmosfera para nós se fizera sufocante, saturada de nuvens de substâncias escuras, formadas pelos pensamentos em desequilíbrio de encarnados e de­sencarnados que perambulavam no local, em deplo­rável posição.

Confrontando as situações, monologava men­talmente: por que motivo singular não operara nosso orientador no quarto da simpática senhora, que amava por filha espiritual, para entregar-se, ali, sem reservas, ao trabalho de assistência cristã? Vendo-lhe, porém, a solicitude na solução do pro­blema afetivo que atormentava o adversário, en­tendi, pouco a pouco, através da ação do mentor magnânimo, a beleza emocionante e sublime do ensinamento evangélico: “Ama o teu inimigo, ora por aqueles que te perseguem e caluniam, perdoa setenta vezes sete”.

Gúbio, sob nosso olhar comovido, afagava a fronte das três entidades sofredoras, parecendo liberar cada uma dos fluidos pesados que as entor­peciam, em profundo abatimento. Decorrida meia hora na evidente operação magnética de estimulo, endereçou novo olhar ao verdugo de Margarida, que lhe analisava os mínimos gestos com dobrada atenção, e interrogou:

— Saldanha, não te agastarias se eu orasse em voz alta?

A pergunta obteve os efeitos de um choque.

— Oh! oh!... — fêz o interpelado, surpreen­dido —, acreditas em semelhante panaceia?

Mas, sentindo-nos, de pronto, a infinita boa vontade, aduziu, confundido:

— Sim... sim... se querem...

Nosso Instrutor valeu-se daquele minuto de simpatia e, alçando o pensamento ao Alto, deprecou, humilde:

— Senhor Jesus! Nosso Divino Amigo...

Há sempre quem peça pelos perseguidos, mas raros se lembram de auxiliar os perseguidores!

Em toda parte, ouvimos rogativas em beneficio dos que obedecem, entretanto, é dificil surpreendermos uma súplica em favor dos que administram.

Há muitos que rogam pelos fracos para que sejam, a tempo, socorridos; no entanto, raríssimos corações Imploram concurso divino para os fortes, a fim de que sejam bem conduzidos.

Senhor, tua justiça não falha.

Conheces aquele que fere e aquele que é ferido.

Não julgas pelo padrão de nossos desejos caprichosos, porque o teu amor é perfeito e infinito...

Nunca te inclinaste tão somente para os cegos, doentes e desalentados da sorte, porque amparas, na hora justa, os que causam a cegueira, a enfermidade e o desâ­nimo...

Se salvas, em verdade, as vítimas do mal, buscas, igualmente, os pecadores, os infieis e os injustos.

Não menoscabaste a jactância dos doutores e conversaste amorosamente com ele. no templo de Jerusalém.

Não condenaste os afortunados e, sim, abençoaste-lhes as obras úteis.

Em casa de Simão, o fariseu orgulhoso, não desprezaste a mulher transviada, ajudaste-a com fraternas mãos.

Não desamparaste os malfeitores, aceitaste a companhia de dois ladrões, no dia da cruz.

Se Tu, Mestre, o Mensageiro Imaculado, assim procedeste na Terra, quem somos nós, Espíritos endividados, para amaldiçoarmo-nos, uns aos outros?

Acende em nós a claridade dum entendimento novo! Auxilia-nos a interpretar as dores do próximo por nossas próprias dores.

Quando atormentados, faze-nos sentir as dificuldades daqueles que nos ator­mentam para que saibamos vencer os obstáculos em teu nome.

Misericordioso amigo, não nos deixe, sem rumo, relegados à limitação dos nossos próprios sentimentos...

Acrescenta-nos a fé vacilante, descortina-nos as raízes comuns da vida, a fim de compreendermos, finalmente, que somos irmãos uns dos outros.

Ensina-nos que não existe outra lei, fora do sacrifício, que nos possa facultar o anelado crescimento para os mundos divinos.

Impele-nos à compreensão do drama redentor a que nos achamos vinculados.

Ajuda-nos a converter o ódio em amor, porque não sabemos, em nossa condição de inferioridade, senão transformar o amor em ódio, quando os teus desígnios se modificam, a nosso respeito.

Temos o coração chagado e os pés feridos na longa marcha, através das incompreensões que nos são próprias, e nossa mente, por Isto, aspira ao clima da verdadeira paz, com a mesma aflição por que o viajor extenuado no deserto anseia por água pura.

Senhor, infunde-nos o dom de nos ampararmos mutuamente. Beneficiaste os que não creram em TI, protegeste os que te não compreenderam, ressurgiste para os discípulos que te fugiram, legaste o tesouro do conhecimento divino aos que te crucificaram e esqueceram...

Por que razão, nós outros, míseros vermes do lodo ante uma estrela celeste, quando comparados contigo, recearíamos estender dadivosas mãos aos que nos não entendem ainda?...

O Instrutor imprimira tocante inflexão aos úl­timos lances da rogativa.

Elói e eu tínhamos os olhos turvos de lágri­mas, tanto quanto Saldanha que recuara, aterrado, para um dos ângulos escuros da cela triste.

Gúbio transformara-se, gradualmente. As vi­brações vigorosas daquela súplica, que arrancara ao próprio coração, expulsaram as partículas obscuras de que se havia tocado, quando penetrávamos a colônia penal em que conhecêramos Gregório, e sublimada luz brilhava-lhe agora no semblante que o pranto de amor e compunção irisava com intra­duzível beleza. Parecia ocultar desconhecido alam­padário no peito e na fronte, que despediam raios luminosos de intenso azul, ao mesmo tempo que formoso fio de claridade incompreensível o ligava com o Alto, perante nosso aturdido olhar.

Findo o intervalo, fêz incidir toda a lumino­sidade que o envolvia sobre as três criaturas que asilava no regaço e exorou:

— É para eles, Senhor, para os que repousam aqui em densas sombras, que te suplicamos a bênção!

Desata-os, Mestre da caridade e da compaixão, liberta-os para que se equilibrem e se reconheçam...

Ajuda-os a se aprimorarem nas emoções do amor santificante, olvidando as paixões inferiores para sempre.

Possam eles sentir-te o desvelado carinho, porque também te amam e te buscam, inconscientemente, embora permaneçam supliciados no vale fundo de sentimentos escuros e degradantes.

Nesse ponto, o orientador interrompeu-se. tensos jorros de luz projetavam-se em torno dele, atirados por mãos invisíveis aos nossos olhos. Com perceptível emotividade, Gúbio aplicou passes mag­néticos em cada um dos três infelizes e, em seguida, falou ao rapaz encarnado:

— Jorge, levanta-te! Estás livre para o ne­cessário reajustamento.

O interpelado arregalou os órgãos visuais, pa­recendo acordar de pesadelo angustioso.

Inquieta­ção e tristeza desapareceram-lhe do rosto, cêlere­mente. Num impulso maquinal, obedeceu à ordem recebida, erguendo-se com absoluto controle do ra­ciocinio.

A interferência do benfeitor quebrara os elos que o prendiam às parentas desencarnadas, liberando-lhe a economia psíquica.

Presenciando o acontecimento, Saldanha gri­tou, em lágrimas:

— Meu filho! meu filho!...

O doente não registrou as exclamações nascidas do entusiasmo paterno, mas procurou o leito sin­gelo onde se aquietou com inesperada serenidade.

Vencido nos melhores sentimentos de que era detentor, o algoz de Margarida aproximou-se do nosso dirigente, com as maneiras de uma criança humilhada que reconhece a superioridade do mes­tre, mas antes que pudesse tomar-lhe as mãos, para osculá-las talvez, pediu-lhe Gúbio, sem afetação:

— Saldanha, acalma-te. Nossas amigas des­pertarão agora.

Afagou a cabeça de Iracema e a infortunada mãe de Jorge voltou a si, gemendo:

— Onde estou?...

Reparando, no entanto, a presença do marido, ao lado, nomeou-o por apelido carinhoso de família e bradou, desvairada de emoção:

— Socorre-me! onde está nosso filho? nosso filho?

Passou, logo após, para a fraseologia parti­cular de quem reencontra um ser amado, depois de ausência longa.

O obsessor da doente que nos interessava de mais perto, tangido nas fibras recônditas do ser, derramava agora abundantes lágrimas e buscava o olhar de Gúbio, instintivamente, rogando-lhe, sem palavras, medidas salvacionistas.

— Em que mau sonho me demorei? — inda­gava a desventurada irmã, chorando convulsivamente — que cela imunda é esta? Será verdade que já atravessamos o túmulo?

E, em crise de desespero, acrescentava:

— Temo o demônio! temo o demônio! Ó Deus meu! salva-me, salva-me!...

Nosso Instrutor dirigiu-lhe palavras encoraja­doras e indicou-lhe o filho que descansava, bem ao nosso lado.

Recompondo-se, gradualmente, ela perguntou a Saldanha porque emudecera, faltando à palavra amorosa e confiante de outro tempo, ao que o ver­dugo de Margarida respondeu, significativamente:

— Iracema, eu ainda não aprendi a ser útil... Não sei confortar ninguém.

A essa altura, a sofredora mãe, então des­perta, passou a interessar-se pela companheira de infortúnio, que fazia a mão direita movimentar-se sobre a garganta. Crendo a custo tratar-se da nora, que se lhe fizera irreconhecível, apelou aflita:

— Irene! Irene!

Interveio Gúbio, com o poder de despertamento que lhe era peculiar, distribuindo vigorosas energias aos centros cerebrais da criatura que continuava abatida.

Transcorridos alguns instantes, a nora de Sal­danha ergueu-se, num grito terrível.

Sentia dificuldade em articular a voz. Sufo­cava-se, ruidosamente, presa de angústia infinita.

Nosso orientador, vigilante, segurou-lhe ambas as mãos com a destra e com a mão esquerda mi­nistrou-lhe recursos magnético-balsâmicos sobre a glote e, sobretudo, ao longo das papilas gustativas, acalmando-a, de alguma sorte.

Embora despertada, a suicida não mostrava a relativa consciência de si mesma. Não guardava a menor idéia de que seu corpo físico se desfizera no túmulo. Era o tipo da sonâmbula perfeita, acor­dando de súbito.

Adiantou-se na direção do esposo, reintegrado nas próprias faculdades e exclamou, estentórica:

— Jorge, Jorge! ainda bem que o veneno nao me matou! Perdoa-me o gesto impensado... Curar-me-ei para vingar-te! Assassinarei o juiz que te condenou a tão cruéis padecimentos!

Observando, ao contrário do que esperava, que o esposo não reagia, implorou:

— Ouve! atende-me! onde dormi tanto tempo? Nossa filha! onde está?

O interpelado, todavia, que se lhe desligara da influência direta nos centros perispirituais, pros­seguiu na mesma atitude fleumática e impassível de quem ajuizava com dificuldade a própria situação.

Foi ainda Gúbio quem se abeirou de Irene, elu­cidando:

— Aquieta-te, minha filha!

— Sossegar-me? eu? — protestou a infortu­nada — não posso! Quero tornar a casa... Esta grade me asfixia... Cavalheiro, por quem é! re­conduza-me ao lar. Meu esposo permanece encarcerado injustamente... Estará por certo demen­tado... Não me escuta, não me atende. Por minha vez, sinto a garganta carcomida de veneno mor­tal... quero minha filha e um médico!

Nosso orientador, contudo, respondeu-lhe com voz triste, não obstante acariciar-lhe a fronte as­sustadiça:

— Filha, as portas de tua casa no mundo cerraram-se para tua alma com os olhos do corpo que perdeste. Teu esposo jaz liberado dos com­promissos do matrimônio carnal e tua filha, desde muito, foi acolhida em outro lar. É indispensável, pois, que te refaças, de modo a prestar-lhes todo o serviço que desejas.

A desditosa criatura rojou-se de joelhos, solu­çando.

— Então, morri? a morte é uma tragédia pior que a vida? — clamou, desesperada.

— A morte é simples mudança de veste —elucidou Gúbio, sereno —, somos o que somos.

De­pois do sepulcro, não encontramos senão o paraíso ou o inferno criados por nós mesmos.

E adoçando a voz para conversar na condição de um pai, prosseguiu, comovido:

— Porque atiraste fora o remédio salvador, esfacelando o vaso sagrado que o continha? nunca ouviste o choro dos que padeciam mais que tu mesma? jamais te inclinaste para registrar as afli­ções que vinham de mais fundo? porque não aus­cultaste o silencioso martírio daqueles que não possuem mãos para reagir, pernas para andar, voz para suplicar?

— A revolta consumiu-me.... — explicou a desventurada.

— Sim — confirmou o Instrutor, solícito —, um momento de rebeldia põe um destino em perigo, como diminuto erro de cálculo ameaça a estabili­dade dum ediff cio inteiro.

— Infeliz de mim! — suspirou Irene, aceitan­do a amargosa realidade — onde estava Deus que me não socorreu a tempo?

— A pergunta é inoportuna — esclareceu nos­so dirigente bondosamente. — Procuraste saber, antes, onde te encontravas a ponto de te esqueceres tão profundamente de Deus? A bondade do Senhor nunca se ausenta de nós. Se transparecia da ben­dita oportunidade terrena que te conduzia à vitória espiritual, reside também agora nas lágrimas de contrição que te encaminham à regeneração salu­tar. Admito que possas, em breve, alcançar seme­lhante bênção; entretanto, cavaste enorme precipí­cio entre a tua consciência e a harmonia divina, que precisarás transpor efetuando a própria recom­posição. Por algum tempo, experimentarás a con­sequência do ato impensado. Colher fruto imaturo é praticar violência. Intoxicaste a matéria delicada sobre a qual se estruturam os tecidos da alma e poucas circunstâncias te atenuam a gravidade da falta. Não percas, porém, a esperança e dirige os passos na direção do bem. Se o horizonte, por vezes, se faz mais longínquo, nunca se torna ina­tingível.

E encorajando-a, paternalmente, acentuou:

— Vencerás, Irene; vencerás.

A interlocutora, entre o desapontamento e a rebelião, não parecia interessada em reter os elevados conceitos ouvidos. Desviando a atenção da verdade que a feria, fundo, identificou a presença de Saldanha, passando a gritar medrosamente.

Gúbio interferiu, acalmando-a.

A companheira de Jorge, todavia, dominado o temor infantil, regressou à intemperança mental, pousou no sogro os olhos atormentados e inquiriu:

— Sombra ou fantasma, que procuras aqui? porque não vingaste o filho infeliz? não te dói tanta infâmia inútil? não disporás, acaso, de armas, com que possas ferir o juiz desalmado que nos conspurcou a vida? Cessa, então, com a morte o devotamento dos pais? descansarás, porventura, em algum céu, contemplando Jorge, assim, redu­zido a frangalhos? ou ignoras a realidade cruel? que razões te compelem à mudez das estátuas? por­que não buscaste, sem repouso, a justiça de Deus, que não se encontra na Terra?

As perguntas semelhavam-se a golpes de ferro em brasa.

O perseguidor de Margarida recebia-as por vergastadas no íntimo, porqüanto extrema indigna­ção lhe empalideceu o semblante. Hesitava, quanto à atitude a assumir, mas, reconhecendo-se diante de um condutor amoroso e sábio, procurou o olhar de Gúbio, rogando-lhe cooperação em silêncio, e o nosso Instrutor tomou, por ele, a palavra.

— Irene — exclamou, melancólico —, a cer­teza da vida vitoriosa, acima da morte, não te infunde respeito ao coração? Supões estejamos su­bordinados a um poder que nos desconhece?

Pe­rante a verdade nova que te surpreende a alma, não percebes a infinita sabedoria de um Supremo Doador de todas as bênçãos? Onde se encontra a felicidade da vingança? O sangue e as lágrimas de nossos inimigos apenas aprofundam as chagas que nos abriram nos corações.

Acreditas que a legítima consagração de um pai deva traduzir-se através da dilaceração ou do homicídio, da per­seguição ou da cólera? Saldanha veio até este cárcere, por amor, e eu creio que as mais nobres conquistas dele lhe retornam à superfície da per­sonalidade, triunfantes e renascentes!.. Não lhe precipites a ternura paterna no abismo do deses­pero, de cujas trevas procuras inútilmente fugir.

A desditosa mulher silenciou, soluçante, en­quanto o sogro enxugava as lágrimas que as observações generosas de Gúbio lhe haviam arrancado.

Foi então que Iracema se declarou exausta e suplicou a dádiva dum leito.

O nosso orientador convidou Saldanha a se pronunciar.

Se Jorge melhorara, ambas as senhoras desen­carnadas exigiam socorro urgente. Não seria lícito abandoná-las àquele clima de desintegração das me­lhores energias morais.

— Perfeitamente — concordou o obsessor de Margarida, sob intensa modificação —, conheço os celerados que aqui se reúnem, e agora que Iracema e Irene tornaram à consciência que lhes é própria, preocupa-me a gravidade do assunto.

Nosso dirigente explicou-lhe que poderíamos abrigá-las numa organização socorrista, não distante, mas, para levarmos a efeito semelhante me­dida, não poderíamos olvidar-lhe a permissão.

Saldanha aceitou contente e agradeceu, desa­pontado. Sentia-se estimulado ao bem, através da palavra cordial de nosso orientador e revelava-se disposto a não perder o mínimo ensejo de corres­ponder-lhe à dedicação fraterna.

Depois de alguns minutos, ausentávamo-nos do hospício conduzindo as irmãs enfermas a recolhimento adequado, onde Gúbio as internou com todo o prestígio de suas virtudes celestes, ante o visível espanto de Saldanha que não sabia como expri­mir-se no reconhecimento a extravasar-lhe da alma.

Ao retornarmos, cabisbaixo e humilhado o perseguidor de Margarida perguntou, timidamente, quais eram as armas justas num serviço de sal­vação, ao que o nosso orientador retrucou atenciosamente:

— Em todos os lugares, um grande amor pode socorrer o amor menor, dilatando-lhe as fronteiras e impelindo-o para o Alto, e, em toda parte, a gran­de fé, vitoriosa e sublime, pode auxiliar a fé peque­nina e vacilante, arrebatando-a às culminâncias da vida.

Saldanha não voltou à palavra e fizemos a maior parte do caminho em significativo silêncio.


13

Convocação familiar

Alcançando a grande residência em que Mar­garida descansava, antes de nos instalarmos de novo junto à enferma, Gúbio, assistido agora pelo enorme respeito de Saldanha, dirigiu-lhe a palavra, examinando a oportunidade de conversarmos com o juiz e analisar a situação da filhinha de Jorge, ali refugiada.

O magistrado residia com os parentes na ala central do vasto edifício de que Gabriel e a esposa. usavam pequena dependência. Até então, não lhe havíamos atingido a zona domiciliar.

— É possível — informou o nosso Instru­tor — promovermos benéfica reunião, convocando alguns encarnados a possível ajuste. O juiz, cer­tamente, dispõe de alguma peça em que possamos permanecer congregados por alguns minutos.

Saldanha concordou, através de monossílabos, ao modo do aprendiz que se vê na obrigação de aderir, indiscriminadamente, ao mestre.

— A noite é propícia — prosseguiu o Instru­tor, prestativo e simples — e atravessamos os primeiros minutos da madrugada.

Entramos, respeitosos, mas confesso que o sono do magistrado não poderia ser tão calmo quanto desejaria, em virtude do grande número de enti­dades sofredoras que lhe batiam às portas internas. Algumas rogavam socorro em altos brados. A maioria reclamava justiça.

Dispunhamo-nos a visitar os aposentos parti­culares do dono da casa, quando um rapaz encarnado nos surge à frente, cauteloso, deslocando-se a caminho do pavimento inferior.

Saldanha tocou, de leve, o braço de Gúbio e notificou:

— Este é Alencar, irmão de Margarida e per­seguidor de minha neta.

— Vejamo-lo — exclamou o interpelado, alte­rando-nos a direção.

Seguimos o jovem, que nem de longe consegui­ria registrar-nos a presença, e observamos que, após descer alguns degraus, se postava à entrada de compartimento modesto, tentando forçá-la.

Em torno, inalava-se-lhe o hálito viciado, per­cebendo-se que o jovem procedia de grandes libações.

— Todas as noites — comentou Saldanha, preocupado — procura abusar de nossa pobre me­nina. Não tem o mínimo respeito a si mesmo. Re­parando a resistência de Lia, estende os processos de perseguição, com ameaças diversas, e acredito que, se ainda não atingiu os fins indignos para os quais se orienta, é porque permaneço a postos, agindo na defesa com a brutalidade que me é ca­racterística.

Notamos, admirados, o tom de humildade que transparecia das palavras do vigoroso verdugo.

Saldanha ressurgia visceralmente transfigura­do. A consideração que dispensava a Gúbio dava-nos conhecimento da súbita transformação que nele se operara. Mostrava compreensão e doçura nos gestos reverentes.

Ouvindo-o, nosso orientador, sem qualquer alar­de de superioridade, concordou:

— Efetivamente, Saldanha, este rapaz se re­vela possuído de forças degradantes e precisa cola­boração enérgica que o auxilie a buscar higiene mental.

Em seguida, atentamente, ministrou-lhe passes magnéticos nos órgãoS visuais.

Escoados alguns minutos, Alencar retirou-se, algo cambaleante, para a câmara de dormir, de pálpebras semicerradas, acreditando Saldanha que alguma enfermidade inofensiva, por alguns dias, a partir daquela hora, o ajudaria a meditar nos de­veres do homem de bem.

O obsidente de Margarida demonstrava indis­farçável contentamento.

Logo após, em companhia de nosso devotado orientador, passamos ao apartamento privado do juiz.

O magistrado se mantinha de corpo repousado sobre o colchão macio, mostrando, contudo, a mente inquieta, flagelada.

Permitiu Gúbio que eu lhe tocasse a fronte, auscultando-lhe os pensamentos mais profundos.

Naquela hora avançada da noite, o encanecido cavalheiro meditava: “Onde estariam centralizados os supremos interesses da vida? onde a ambicio­nada paz espiritual que não conquistara em mais de meio século de experiência ativa na Terra? por­que arquivava no coração os mesmos sonhos e necessidades do homem de quinze anos, quando ultrapassara já os sessenta?

Crescera, estudara, casara-se. Todas as lutas, no fundo, não lhe ha­viam modificado a personalidade. Conquistara os títulos que assinalam no mundo os sacerdotes do direito e, por centenas de vezes, envergara a toga para julgar processos difíceis. Proferira sentenças inúmeras e tivera nas mãos, sob o próprio desígnio, a destinação de muitos lares e de coletividades inteiras.

Recebera homenagens de pobres e ricos, grandes e pequenos, no transcurso da viagem pelo encapelado mar da experiência terrestre em face da posição que desfrutava no ataviado barco do tribunal. Respondera a milhares de consultas em casos de harmonia social, mas, na vida íntima, singular deserto lhe povoava a alma toda. Sentia sede de fraternidade com os homens; todavia, a posse do ouro e a eminência na atividade pública impunham-lhe grandes obstáculos para ler a verdade na máscara dos semelhantes. Experimentava intraduzível fome de Deus. No entanto, os dogmas das religiões sectárias e as discórdias entre elas, afastavam-lhe o espírito de qualquer acordo com a fé atuante no mundo. Por outro lado, a ciência comum, negativista e impenitente, ressecara-lhe o coração. Toda a existência se resumiria a simples fenômenos mecânicos dentro da natureza? Adotada essa hipótese, toda a vida humana seria tão impor­tante como a bolha d’água a desfazer-se ao vento. Sentia-se dilacerado, oprimido, exausto. Ele que esclarecera a muitos, quanto às mais elevadas nor­mas de conduta pessoal, como elucidaria, agora, a si mesmo?

Defrontado pelos primeiros sintomas da velhice do corpo de carne, reagia, magoado, contra a extinção gradual das energias orgânicas. Porque as rugas do rosto, o alvejar dos cabelos, o enfraquecimento da visão e o empobrecimento do celeiro vital, se a mocidade lhe vibrava na mente ansiosa por renovação? Seria a morte simplesmente a noite sem alvorada? que misterioso poder dis­punha, assim, da vida humana, conduzindo-a a obje­tivos inesperados e ocultos?”

Retirei a destra, percebendo que o rêspeitável funcionário tinha os olhos úmidos.

Aproximou-se Gúbio e colocou-lhe as mãos so­bre a fronte, comunicando-nos que prepará-lo-ia para a conversação próxima, dirigindo-lhe a intui­ção para as reminiscências do processo em que Jorge fora implicado.

Daí a instantes, notei que os olhos do juiz exibiam modificada expressão. Dir-se-ia contemplarem cenas distanciadas, com indizível tortura. Mos­travam-se angustiados, doridos...

O Instrutor recomendou-me tornar à ausculta­ção psíquica e voltei a pousar a mão direita sobre o cérebro dele.

Com as minhas percepções gerais algo desen­volvidas, ouvi-lhe os pensamentos novos.

— “Por que razão se detinha — meditava o pai de Margarida — naquele processo liquidado, a seu ver, desde muito, ferindo o próprio coração? Anos haviam transcorrido sobre o crime obscuro, entretanto, o assunto lhe revivia na cabeça, qual se a memória lho impusesse, tirânica e desapiedada, por disco de estranho padecimento moral. Que mo­tivos o levavam a rememorar semelhante peça judi­ciária com tanta força? Via Jorge, mentalmente, esquecido no abismo da inconsciência e lembrava-lhe as palavras veementes, afirmando inocência. Não conseguia explicar por que fortes razões lhe recolhera a filha, introduzindo-a no próprio lar. Debalde procurava o móvel secreto que o levava a demorar-se no assunto, naquela madrugada de inexplicável insônia.

Recordou que o sentenciado perdera a assistência dos melhores amigos e a própria esposa suicidara-se em pleno desespero... No entanto, porque reter-se naquele caso sem im­portância?

Ele, o juiz, chamado a processos incon­táveis, apreciara enigmas muito mais intrincados e importantes. Não conseguia, pois, justificar-se, quanto às reminiscências do humilde condenado, réu de crime comum..

Nesse comenos, o Instrutor recomendou a Elói e a mim o trazimento de Jorge, fora do veículo carnal, ao domicílio do magistrado, enquanto pre­pararia a este último o desligamento parcial do corpo através do sono.

Voltamos, o companheiro e eu, ao cubículo do obsidiado que se achava ausente do vaso físico, em grande prostração.

Administrei-lhe ao organismo perispiritual re­cursos fluídicos reparadores e transportamo-lo à residência indicada.

A essa altura, o dono da casa e a neta de Sal­danha, provisôriamente libertos das teias fisiológicas, já se encontravam ao lado de Gúbio, que recebeu Jorge com desvelado carinho, e, unindo os três como que identificando-os a uma corrente mag­nética de forte expressão, emprestou-lhes forças àmente, por intermédio de operações fluídicas, para que o ouvissem acordados, em espírito, tanto quan­to possível. Notei, então, que o despertamento não era análogo para os três.

Variava de acordo com a posição evolutiva e condições mentais de cada um. O magistrado era mais lúcido pela agilidade dos raciocínios; a jovem Lia colocava-se em se­gundo lugar pelas singulares qualidades de inteli­gência; situava-se Jorge em posição inferior, em face do esgotamento em que se encontrava.

Vendo-se à frente do antigo réu e da filha, que identificou, de pronto, o categorizado expoente da justiça perguntou a esmo, absorvido de insofreável espanto:

— Onde estamos? onde estamos?

Nenhum de nós se atreveu à resposta.

Gúbio, no entanto, orava em silêncio; e quando formosa luz se lhe irradiou do tórax e do cérebro, dando-nos a entender que o sentimento e a razão se achavam nele irmanados em claridade celeste, exclamou para o assombrado interlocutor, tocando-lhe afavelmente os ombros:

— Juiz, o lar do mundo não é tão sômente um asilo de corpos que o tempo transformará. É igual­mente o ninho das almas, onde o espírito pode en­tender-se com o espírito, quando o sono sela os lábios de carne, suscetíveis de mentir. Congrega­mo-nos em teu próprio abrigo para uma audiência com a realidade.

O chefe daquele santuário doméstico escutava, perplexo.

— O homem encarnado na Terra — continuou Gúbio empolgante — é uma alma eterna usando um corpo perecível, alma que procede de milenários caminhos para a integração com a verdade divina, à maneira do seixo que desce, rolando nos séculos, do cimo do monte para o seio recôndito do mar. Somos, todos, atores do drama sublime da evolução universal, através do amor e da dor... Indébita é a nossa interferência nos destinos uns dos outros, quando nossos pés trilham retos caminhos. Todavia, se nos desviamos da rota adequada, é razoável o apelo do amor para que a dor diminua.

O magistrado ligou os conceitos ouvidos à pre­sença de Jorge, na sala, e inquiriu, aflito:

— Apelam, porventura, em favor deste con­denado?

— Sim — respondeu nosso Instrutor, sem he­sitar. Não acreditas que esta vítima aparente de inconfessável erro judiciário já tenha esgotado o cálice do martírio oculto?

— O caso dele, porém, permanece liquidado.

— Não, juiz, nenhum de nós chegou ao fim dos processos redentores que nos dizem respeito.

Não seria Jorge, acusado penitente, o único sen­tenciado indigno de uma pausa nas dores da re­missão.

O interlocutor arregalou os olhos, mostrando certo orgulho ferido e retorquiu, quase sarcástico:

— Mas, eu fui o juiz da causa. Consultei os códigos necessários, antes de emitir a sentença. O crime foi averiguado, os laudos periciais e as testemunhas condenaram o réu. Não posso, em sã consciência, aceitar intromissões, mesmo tardias, sem argumentação ponderosa e cabível.

Gúbio contemplou-o, compadecidamente, e con­siderou:

— Compreendo-te a negativa. Os fluidos da carne tecem um véu pesado demais para ser facilmente rompido pelos que se não afeiçoam, ainda, diàriamente, ao contacto da espiritualidade supe­rior. Invocas a tua condição de sacerdote da lei, para esmagares o destino de um trabalhador que já perdeu tudo quanto possuía, a fim de que resga­tasse, intensivamente, os erros do passado distante. Referes-te ao título que a convenção humana te conferiu, certamente atendendo a injunções do Po­der Divino; entretanto, não me pareces amoldado aos sublimes fundamentos de tua elevada missão no mundo, porqüanto o homem que aceitou a mor­domia, no quadro dos bens materiais ou espirituais do Planeta, nunca alardeia superioridade, quando consciente das obrigações que lhe cabem, por enten­der na administração fiel um caminho de aprimo­ramento, mesmo através de extremo sofrimento mo­ral. Distribuir amor e justiça, simultâneamente, na atualidade da Terra, em que a maioria das criaturas menosprezam semelhantes dádivas, é crivar-se de dores. Admites que o homem viverá sem contas, ainda mesmo aquele que se supõe capacitado para julgar o próximo, em definitivo? Acreditas haja o teu raciocínio acertado em todos os enigmas da senda? Terás agido imparcialmente em todas as decisões? Não creias... O Justo Juiz foi crucifi­cado num madeiro de linhas retas por devotar-se no mundo à extrema retidão. Todos nós, na estrada multissecular do conhecimento edificante, muita vez colocamos o desejo acima do dever e o capricho a cavaleiro dos princípios redentores que nos com­pete observar. Em quantas ocasiões já se te in­clinou o mandato às contrafações da política desin­tegrante dos homens, ávidos de transitório poder? em quantos processos permitiste que os teus senti­mentos se turvassem no personalismo delinqüente?

O homem, em cuja presença identificava Sal­danha perigoso inimigo, revelava-se infinitamente confundido. Palidez cadavérica lhe cobria o sem­blante, sobre o qual grossas lágrimas principiaram a correr.

— Juiz — continuou Gúbio, em voz firme —, não fôsse a compaixão divina que te concede ao ministério diversos auxiliares invisíveis, amparan­do-te as ações, por amor à Justiça que representas, e as vítimas dos teus erros involuntários e das paixões obcecantes daqueles que te cercam não te permitiriam a permanência no cargo. Teu palácio residencial mostra-se repleto de sombras. Muitos homens e mulheres, dos que já sentenciaste em mais de vinte anos, nas lides do direito, arrebata­dos pela morte, não conseguiram seguir adiante, colados que se acham aos efeitos de tuas decisões e demoram-se em tua própria casa, aguardanto-te explicações oportunas. Missionário da lei, sem hábitos de prece e meditação, únicos recursos através dos quais poderias abreviar o trabalho de escla­recimento que te assiste, grandes surpresas te re­serva o transe final do corpo.

Verificando-se pausa mais longa, o magistrado exteriorizou nos olhos indefinível terror, caiu de joelhos e rogou:

— Benfeitor ou vingador, ensina-me o cami­nho! que devo fazer a benefício do condenado?

— Facilitarás a revisão do processo e resti­tuí-lo-âs à liberdade.

— Ele é, então, inocente? — indagou o inter­locutor, exigindo bases sólidas a futuras conclusões.

— Ninguém sofre sem necessidade à frente da Justiça Celeste e tão grande harmonia rege o Uni­verso que os nossos próprios males se transubstan­ciam em bênçãos. Explicaremos tudo.

E, dando-nos a perceber que precisava gravar na mente do juiz quanto se lhe pedia da ação pro­videncial, continuou:

— Não te circunscreverás à mencionada me­dida. Amparar-lhe-ás a filha, hoje internada por favor em tua casa, em estabelecimento condigno, onde possa receber a necessária educação.

— Mas — interveio o jurista —, esta menina não é minha filha.

— Não serias, entretanto, convocado por nós a semelhante encargo, se não pudesses recebê-lo. Crês, porém, que o dinheiro em disponibilidade deva satisfazer tão somente as exigências daqueles que se reuniram a nós, dentro dos laços consangulneos? Liberta o coração, meu amigo! respira em mais alto clima. Aprende a semear amor no chão em que pisas. Quanto mais eminentemente colocada na experiência humana, mais intensivo pode tornar-se o esforço da criatura, na própria elevação. Na Ter­ra, a justiça abre tribunais para examinar o crime em seus aspectos variados, especializando-se na identificação do mal; todavia, no Céu, a Harmonia descerra santuários, apreciando-nos a bondade e a virtude, consagrando-se à exaltação do bem, na to­talidade dos seus ângulos divinos. Enquanto étempo, faze de Jorge um amigo e da filha dele uma companheira de luta que te afague, um dia, os cabelos brancos e te ofereça, mais tarde, a luz da prece, quando teu espírito for compelido a trans­por o escuro portal do túmulo.

O juiz, em pranto, interrogou:

— Como agir, porém?

— Amanhã — informou o Instrutor, calmo e persuasivo — te erguerás do leito sem a lembrança integral do nosso entendimento de agora, porque o cérebro de carne é um instrumento deli­cado, incapaz de suportar a carga de duas vidas, mas idéias novas surgir-te-ão formosas e claras, com respeito ao bem que necessitas praticar. A intuição, contudo, que é o disco milagroso da cons­ciência, funcionará livremente, retransmitindo-te as sugestões desta hora de luz e paz, qual canteiro de bênçãos ofertando-te flores perfumosas e espontâ­neas. Chegado esse momento, não permitas que o cálculo te abafe o impulso das boas obras. No cora­ção hesitante, o raciocínio vulgar luta contra o sentimento renovador, turvando-lhe a corrente lím­pida, com o receio de ingratidão ou com ruinosa obediência aos preconceitos estabelecidos.

Diante de Saldanha que acompanhava a cena, demonstrando indizível bem-estar, Jorge e a filha trocavam olhares de alegria e esperança.

O magistrado contemplou-os, pensativo, notan­do-se-lhe o propósito de endereçar ao nosso Instru­tor novas interpelações. Dominado, no entanto, pelas emoções do minuto, calou-se, resignado e humilde.

Gúbio, entretanto, perscrutando-lhe os pensa­mentos, tocou-lhe a fronte, de leve, com ambas as mãos e falou em voz firme:

— Gostarias que me expressasse a respeito da culpabilidade do réu, a fim de que a tua consciência de julgador consolide certos pontos de vista, já esposados no processo a que nos reportamos. Em verdade, quanto ao delito de que é presentemente acusado, Jorge tem as mãos limpas. Entretanto, a existência humana é como precioso tecido de que os olhos mortais apenas enxergam o lado avesso. Nos sofrimentos de hoje, solvemos os débitos de ontem. Com isto, não desejamos dizer que nossas falhas, muita vez oriundas da ociosidade ou da impenitência de agora, gerando resultados ruinosos para nós mesmos e para outrem, sejam recursos providenciais ao pagamento de alheias dividas, por­que assim consagraríamos a fatalidade por sobe­rana do mundo, quando, em todas as horas, criamos causas e consequências com os nossos atos coti­dianos. As entidades que pranteiam às tuas por­tas não choram cem razão e, mais dia menos dia, a toga que envergas temporariàmente acertará con­tas com todos aqueles que, em torno dela, se lastimam.

Jorge, porém, que aqui não se encontra em reclamações e, sim, trazido por nós para bené­fico entendimento, liberou certa parte do pretérito doloroso.

Gúbio, a essa altura, fêz grande pausa em suas elucidações, fixou o interlocutor mais profundamente e prosseguiu, com grave entono:

— Juiz, pessoas e sucessos que nos afetam a consciência de maneira particular não constituem objeto vulgar na marcha reveladora da vida - Por agora, trazes a mente subjugada pelo choque bioló­gico do retorno à carne e não poderias seguir-nos na exumação do passado recente. Já te auscultei, no entanto, os arquivos mentais e vejo os quadros que o tempo não destrói. No século findo, guarda­vas o título de posse sobre extensa faixa de terra e orgulhavas-te da posição de senhor de dezenas de escravos que, em maioria reencarnados, atual­mente te integram a falange de colaboradores nos trabalhos comuns a que te sentes constrangido pela máquina funcional. A todos eles, deves assistência e carinho, auxílio e compreensão. Nem todos os servos do passado, porém, se confundem no mesmo naipe de relações com o teu espírito. Alguns se salientaram no drama que viveste e volvem ao teu caminho, impressionando-te o coração. Jorge de hoje era ontem teu escravo, embora nascesse quase sob o mesmo teto que te assinalou os primeiros vagidos. Era teu servidor, perante os códigos ter­restres, e irmão consanguíneo, ante as divinas leis, não obstante afagado por outra mãe. Nunca lhe perdoaste semelhante aproximação, considerada em tua casa por aviltante ultraje ao nome familiar. Chegados ambos à tarefa da paternidade, teu filho de ontem e de hoje lhe transviou a filha do pre­térito e de agora e, quando semelhante amargura sobreveio, com escárnio supremo para um lar ca­tivo e triste, determinaste medidas condenáveis que culminaram no insofreável desespero de Jorge em outros tempos, o qual, desarvorado e semilouco, não somente roubou a vida ao corpo de teu filho que lhe invadira o santuário doméstico, mas também a própria existência, suicidando-se em dramáticas cir­cunstâncias. Todavia, nem a dor, nem a morte apagam as aflições da responsabilidade que só o regresso à oportunidade de reconciliação consegue remediar. E aqui te encontras, de novo, diante do condenado, junto do qual sempre te inclinaste à antipatia gratuita, e ao lado da jovem a quem pro­meteste amparar por filha muito querida ao cora­ção. Trabalha, meu amigo! vale-te dos anos, porque Alencar e tua pupila serão atraídos à bênção do matrimônio. Age enquanto podes. Todo bem pra­ticado felicitará a ti mesmo, porqüanto outro cami­nho para Deus não existe, fora do entendimento construtivo, da bondade ativa, do perdão redentor. Jorge, humilhado e desiludido, apagou o desvario deplorável, suportando inominável martírio moral em poucos anos de acusação indébita e prisão tor­mentosa, com viuvez, enfermidades e privações de toda a espécie.

O nosso orientador fitou-o, compadecido, na pausa mais ou menos longa que se fizera, e rematou:

— Não te dispões, por tua vez, aos testemu­nhos salvadores?

Abalo salutar, oculto à nossa apreciação, cer­tamente sulcava, fundo, o espírito do magistrado, que mostrava o semblante extremamente transfor­mado. Vimo-lo levantar-se, em lágrimas, cambaleante. A força magnética do nosso Instrutor al­cançara-lhe as fibras mais íntimas, porqüanto os olhos dele pareciam iluminados de súbita deter­minação.

Abeirou-se de Jorge, estendeu-lhe a destra em sinal de fraternidade, que o filho de Saldanha bei­jou igualmente em pranto, e, em seguida, acercou-se da jovem, abriu-lhe os braços acolhedores e excla­mou comovido:

— Serás minha filha, doravante, para sempre !... Indescritível contentamento marcou-nos o inol­vidável minuto.

Gúbio ajudou-os a partir na direção do inte­rior doméstico, e, quando nos dispúnhamos a recon­duzir Jorge ao presídio de cura onde o corpo em repouso o esperava, Saldanha, plenamente modifi­cado por uma alegria misteriosa que lhe refundia as expressões fisionômicas, avançou para o nosso Instrutor e, tentando oscular-lhe as mãos, mur­murou:

— Nunca pensei encontrar noite tão gloriosa quanto esta!

Ia desmanchar-se em palavras de reconheci­mento, mas Gúbio, com naturalidade, obrigou-o a reajustar-se, acrescentando:

— Saldanha, nenhum júbilo, depois do amor de Deus, é tão grande quanto aquele que recolhe­mos no amor espontâneo de um amigo. Semelhante alegria, neste momento, é nossa, porque te senti­mos a amizade nobre e sincera no coração.

E um abraço de carinhosa fraternidade coroou a tocante e inesquecível cena.


14

Singular episódio

Penetrando o compartimento em que Margarida descansava, lá nos aguardavam os dois hipnotiza­dores em função ativa.

Gúbio pousou significativo olhar em Saldanha e pediu-lhe em tom discreto:

— Meu amigo, chegou a minha vez de rogar. Releva-me a identificação, talvez tardia aos teus olhos, com relação aos objetivos que nos pren­dem aqui.

E. denunciando imensa comoção na voz, es­clareceu:

— Saldanha, esta senhora doente é filha de meu coração desde outras eras. Sinto por ela o enternecimento com que cuidaste, até agora, do teu Jorge, defendendo-o com as forças de que dispões. Eu sei que a luta te impôs acerbos espinhos ao coração, mas também guardo sentimentos de pai. Não te merecerei, porventura, simpatia e ajuda? Somos irmãos no devotamento aos filhos, compa­nheiros da mesma luta.

Observei, então, cena comovedora que, minutos antes, se me figuraria inacreditável.

O perseguidor da enferma contemplou o nosso Instrutor com o olhar dum filho arrependido.

Gros­sas lágrimas brotaram-lhe dos olhos antes frios e impassíveis. Parecia inabilitado a responder, diante da emotividade que lhe dominava a garganta; toda­via, Gúbio, enlaçando-lhe fraternalmente o busto, acrescentou:

— Passamos horas sublimes de trabalho, en­tendimento e perdão. Não desejarás desculpar os que te feriram, libertando, enfim, quem me é tão querida ao espírito? Chega sempre um instante no mundo em que nos entediamos dos próprios erros. Nossa alma se banha na fonte lustral do pranto renovador e esquecemos todo o mal a fim de valori­zar todo o bem. Noutro tempo, persegui e humilhei, por minha vez. Não acreditava em boas obras que não nascessem de minhas mãos.

Supunha-me do­minador e invencível, quando não passava de infeliz e insensato. Considerava inimigos quantos me não compreendessem os caprichos perigosos e me não louvassem a insânia.

Experimentava diabólico pra­zer, quando o adversário esmolasse piedade ao meu orgulho, e gostava de praticar a generosidade humi­lhante daquele que determina sem concorrentes. Mas a vida, que faz caminhos na própria pedra, usando a gota d’água, retalhou-me o coração com o estilete dos minutos, transformando-me devagar, e o déspota morreu dentro de mim, O título de irmão é, hoje, o único de que efetivamente me orgulho. Dize-me, Saldanha amigo, se o ódio está igualmente morto em teu espírito; fala-me se devo contar com o abençoado concurso de tuas mãos!

Eu e Elói tínhamos lágrimas ardentes, diante daquela doutrinação emocionante e inesperada.

Saldanha enxugou os olhos, fixou-os, humil­de, no interlocutor bondoso e asseverou, comovendo-nos:

— Ninguém me falou ainda como tu... Tuas palavras são consagradas por uma força divina que eu não conheço, porque chegam aos meus ouvidos, quando já me encontro confundido pelos teus atos convincentes. Faze de mim o que desejares. Ado­taste, nesta noite, por filhos de teu coração todos os parentes em cuja memória ainda vivo. Ampa­raste-me o filho demente, ajudaste-me a esposa alu­cinada, protegeste-me a nora infeliz, socorreste-me a neta indefesa e repreendeste os que me perturbavam ­ sem motivo justo... Como não enlaçar, agora, as minhas mãos com as tuas na salvação da pobre mulher que amas por filha? Ainda que ela própria me houvesse apunhalado mil vezes, teu pedido, após o bem que me fizeste, redimi-la-ia ao meu olhar...

E, detendo a custo o pranto que lhe manava espontâneo, o ex-perseguidor acentuou, com expres­são respeitosa:

— Poderoso Espírito e bom amigo, que me pro­curaste na condição do servo apagado para acor­dar-me as forças enrijecidas no gelo da vingança, estou pronto a servir-te! sou teu de agora em diante!

— Seremos de Jesus para sempre! — corrigiu Gúbio, sem afetação.

E abraçando-o efusivamente, conduziu-o a pe­queno aposento próximo, naturalmente para orga­nizar plano de ação eficiente e rápido.

Sômente aí me lembrei de que nos achávamos na presença de ambos os hipnotizadores em função ativa, junto ao casal em repouso. Um deles se reve­lava inquieto e demonstrava-se francamente com­preensivo; notava que algo de extraordinário se passava, mas, talvez compelido por votos de dis­ciplina, não se animava a dirigir-nos palavra. O outro, todavia, não acusava qualquer emoção. Con­tinuava alheio ao drama que vivíamos. Figurava-se um autômato em serviço, impressionando-me parti­cularmente pela impassibilidade do olhar.

Alguns minutos transcorreram pesados, quan­do Gúbio e Saldanha retornaram à cena.

O ex-obsessor de Margarida mostrava-se mu­dado, quase imponente. Via-se-lhe no porte a reno­vação de rumo interior.

Certo, estabelecera novo programa de luta, em companhia do nosso dirigente, porque chamou o hipnotizador mais vivo, a conversação particular.

Próximos de mim, a palestra desdobrou-se clara.

— Leôncio — disse Saldanha, entusiasmado —, nosso projeto mudou e conto com a tua colabo­ração.

— Que houve? — indagou curiosamente o in­terpelado.

— Um grande acontecimento.

E prosseguiu, transformado:

— Temos aqui um mago da luz divina.

Em traços rápidos, narrou-lhe os sucessos da noite, em comovedora síntese, terminando por apelar:

— Poderemos contar contigo?

— Perfeitamente — esclareceu o companhei­ro —, sou amigo dos amigos, não obstante os riscos da empresa.

E designando com um golpe de olhar o outro magnetizador que prosseguia operando ao lado de Margarida, em serviço automático, objetou:

— É indispensável, porém, todo o cuidado com Gaspar, que não se acha em condições de aderir.

— Tranquiliza-te — esclareceu Saldanha, mais atencioso —, providenciaremos tudo.

Mostrou Leôncio estranho brilho nos olhos e, dirigindo-se ao ex-chefe de tortura, falou súplice:

— Escuta! conheces meu problema. Já que foste socorrido pelo mago, não poderei receber contribuição dele por minha vez? Tenho na Terra a esposa seduzida e o filho à morte.

Imprimindo inolvidável acento à voz, observou:

— Saldanha, não desconheces que sou crimi­noso, mas sou pai ainda... Se eu pudesse livrar o filhinho da revolta e da sepultura enquanto étempo, considerar-me-ia sumamente feliz. Sabes que um condenado não deseja igual sorte para os rebentos do coração!

Ante o choroso apelo, Saldanha não hesitou:

— Bem — tornou um tanto embaraçado —, procura o benfeitor Gúbio e expõe-lhe o caso com franqueza.

Leôncio não se fêz rogado.

Acercou-se, respeitoso, de nosso Instrutor e explicou-se, simplesmente, sem rebuços:

— Amigo, acabo de saber com que devota­mento mobilizas tua força, a beneficio de criaturas desviadas do bem, como nós, que nos sentimos des­prezíveis diante de todos. É por isto que também venho implorar-te auxilio imediato.

— Em que poderemos ser úteis? — indagou o orientador, cortês.

— Passei para cá, há longos sete anos, e dei­xei no mundo minha mulher e um filhinho recém-nato. Voltei, moço ainda, sufocado no esgotamento pelo trabalho excessivo em busca do dinheiro fácil. Obtive, realmente, o que intentara, com a provisão de vastos depósitos bancários com que a esposa ainda se mantém, até hoje, a coberto de todas as necessidades. O desespero, a ânsia inútil por reto­mar o corpo que abandonara, a vaidade ferida, converteram-me no colaborador desumano de que Gregório, o nosso chefe, tanto se orgulha... Ai de mim, porém, que me sentia dono exclusivo dos encantos da mulher que eu adorava! De dois anos para cá, minha infortunada Avelina passou a es­cutar as fantasiosas propostas de um enfermeiro que se aproveitou da fragilidade orgânica de meu filhinho para insinuar-se sobre o ânimo da pobre mãe, viúva e jovem. Chamado a prestar socorro ao menino, depois de um incidente sem importância, o profissional percebeu as preciosidades materiais da presa cobiçada. Desde então, assediou-me a esposa sem descanso e passou a envenenar meu pequeno, pouco a pouco, à força de entorpecentes, administra­dos por ele, seguindo um plano cruel. No decurso do tempo, conseguiu de Avelina quanto queria: di­nheiro, ilusões, prazeres e promessa de casamento. Acredito que o consórcio se realizará, dentro de breves dias, e já me resignei a semelhante aconte­cimento, porque a alma encarnada respira sob teia grossa de pesadelos e exigências, mas o perseguidor embuçado, sentindo em meu filho um concorrente forte aos bens que amontoei, procura aniquilá-lo sem pressa, roubando-lhe, calculado e ingrato, o en­sejo de viver para um futuro digno e feliz.

Interrompeu-se, por alguns momentos, e pros­seguiu, comovido:

— Francamente, envergonho-me de suplicar um favor que não mereço, mas o espírito pervertido, como eu, que pede recursos salvadores para os entes amados, guarda consciência do próprio infortúnio no mal que elegeu para inspirar-lhe o caminho... Benfeitor, por piedade! meu desven­turado Ângelo permanece à beira do túmulo... Admito que o fim do corpo esteja marcado para breves dias, se mãos amigas e devotadas não nos socorrerem à altura de nossa indigência. Já fiz tudo quanto se achava ao alcance de nossas possi­bilidades, porém sou parte integrante de uma fa­lange de seres malvados e o mal não salva, nem melhora ninguém.

Gúbio ia responder, mas Elói tomou a dian­teira e, com imensa surpresa para nós, perguntou, sem cerimônia:

— E o nome do enfermeiro? Quem é esse quase infanticida?

— É Felício de...

Quando o nome de família foi pronunciado, nosso companheiro apoiou-se em mim, para não cair... É meu irmão! — bradou — é meu irmão...

Forte emotividade empalideceu-lhe o rosto e expectativa inquietante desabou sobre nós.

Mas Gúbio, com a serenidade sublime que lhe assinalava a fronte, abraçou Elói e inquiriu calmo:

— Onde está o infeliz que não seja nosso ir­mão necessitado?

A frase inteligente e bondosa sossegou o colega deprimido e ofegante.

Desejoso talvez de desfazer as nuvens que se adensavam naquele reduto doméstico e de o transformar em abençoado santuário, nosso Instrutor convidou-nos a visitar o menino enfermo, sem perda de tempo.

Saldanha indicou a figura estranha de Gaspar, que parecia surdo e insensível ao que se passava) e lembrou:

— Deixá-lo-emos sôzinho por algumas horas. Aliás, precisamos, pelo menos, de um dia, a fim de fortificarmos a defensiva. A falange de Gregório não nos perdoará.

Nosso Instrutor sorriu em silêncio e ausenta­mo-nos.

Soprava brando e fresco vento da madrugada e pesada quietude reinava nas vias suburbanas que cruzávamos a passo rápido.

Leôncio, à frente, mostrou-nos confortável vi­venda e informou:

— Aqui mesmo.

Entramos.

Em aposentos diversos, a dona da casa e o enfermeiro dormiam à solta, enquanto um pequeno simpático gemia, quase imperceptivelmente, demons­trando angústia e mal-estar.

Notava-se nele a devastação operada pelos tó­xicos insistentes. Profunda melancolia estampava-se-lhe no olhar.

Leôncio, o temido hipnotizador, abraçou-o e esclareceu:

— Os venenos sutis, que ingere em doses di­minutas e sistemáticas, invadem-lhe o corpo e a alma.

Fios magnéticos e invisíveis ligavam, ali, pai e filho, porque o menino, num lance comovedor, embora a prostração em que se achava, contemplou, embevecido, o retrato grande do paizinho, suspenso da parede, e falou, súplice, baixinho:

— Papai, onde está o senhor?... tenho medo, muito medo...

Lágrimas ardentes seguiram-lhe a prece ines­perada e o hipnotizador de Margarida, que até então se nos afigurara um gênio horrível, pror­rompeu em pranto emocionante.

Gúbio ausentou-se por momentos e regressou trazendo Felício, o enfermeiro, provisôriamente des­ligado do aparelho fisiológico. O rapaz, não obstan­te semi-inconsciente, ao avistar Elói junto ao doen­tinho, procurou recuar, num impulso de evidente pavor, mas nosso dirigente conteve-o, sem aspe­reza.

Meu colega abeirou-se dele, já de fisionomia transfigurada, buscando dirigir-lhe a palavra.

O Instrutor, no entanto, afagou-o com a destra e avisou:

— Elói, não interfiras. Não te encontras em condições sentimentais de operar com êxito. A in­dignação afetiva denunciar-te-ia a inabilidade pro­visória para atenderes a este gênero de serviço. Atuarás no fim.

Em seguida, Gúbio aplicou passes de desperta­mento em Felício para que a mente dele acompa­nhasse a lição daquela hora, dentro do mais alto estado de consciência que lhe fôsse possível, notan­do-se que o paciente passou a fixar-nos com mais clareza, envergonhado e espantadiço. Fitou Elói, positivamente amedrontado, e reparando Leôncio a chorar sobre o filhinho, fêz novo movimento de recuo, interrogando embora:

— Quê? pois este monstro chora?

Gúbio aproveitou a pergunta brutalmente des­fechada e interveio, sereno:

— Não concedes a um pai o direito de emocio­nar-se ante o filhinho perseguido e doente?

— Sei apenas que ele é para mim um inimigo implacável — comentou o irmão de Elói, com insofreável animosidade —, e reconheço-o, de perto. É o marido de Avelina... A princípio, via-o nos odio­sos retratos que povoam esta casa... depois passou a flagelar-me nas horas de sono...

— Escuta! — disse-lhe o orientador, com in­flexão de carinho — quem terá assumido a posição de adversário, em primeiro lugar? o coração dele, humilhado e ferido nos sentimentos mais altos que possui, ou o teu que urdiu deplorável projeto de conquista sentimental ante uma viúva indefesa? o dele que padece nos zelos inquietantes de pai ou o teu que comparece neste lar com o escuro propósito de assassinar-lhe o filhinho?

— Mas, Leôncio é um morto”! — suspirou o enfermeiro, desapontado.

E não hás de sê-lo, um dia — tornou o nosso dirigente —‘ quando houveres restituído o corpo de carne ao inventário de pó?

E porque o interlocutor não pudesse prosseguir, conturbado pelas forças desintegrantes da culpa, o Instrutor continuou:

— Felício, porque insistes no condenável en­redo com que preparas tão calculado crime? Não te compadeces, porventura, de uma criança en­ferma e sem pai visível? Tens Leôncio na conta dum monstro, por defender o frágil rebento do coração, tal como a ave que ataca, ainda que im­potente, na ânsia de preservar o ninho... Que dizer, porém, de ti, meu irmão, que não vacilas em devassar este santuário, tão sômente com o instinto de gozo e poder? como interpretar-te o gesto lasti­mável de enfermeiro que se vale do divino dom de aliviar e curar para perturbar e ferir? Felício, a experiência humana, confrontada com a eternidade em que se movimentará a consciência, é simples sonho ou pesadelo de alguns minutos. Porque com­prometer o futuro ao preço do conforto ilusório de alguns dias? Os que plantam espinhos colhem espi­nhos na própria alma e comparecem perante o Senhor de mãos convertidas em garras abominá­veis. Os que espalham pedras em derredor dos pés alheios serão surpreendidos, mais tarde, pelo endu­recimento e paralisia do próprio coração.

Guardas, porventura, suficiente noção da responsabilidade que assumes? Possuis ainda no coração evidentes restos de bondade igual à daqueles que se acolhem no âmbito de uma família abençoada e grande, em cujo seio a solidariedade é cultivada, desde os pri­mórdios da luta. Vejo que o entusiasmo juvenil não se extinguiu, de todo, em tua mente. Porque ceder às sugestões do crime? não te comove a prostração deste menino a quem procuras impor a morte vagarosa?

Repara! o drama de Leôncio não se resume ao conflito de um “morto”, como supões em teu perturbado raciocínio. Ausculta-lhe o co­ração de pai amoroso e dedicado! encontrarás den­tro dele a afeição doce e pura, à maneira do brilhante oculto no cascalho rijo e contundente.

O irmão de Elói pousava em nosso Instrutor os olhos medrosos e espantados.

Depois de leve pausa, Gúbio continuou:

— Aproxima-te. Vem a nós. Perdeste a capa­cidade de amar? Leôncio é teu amigo, nosso irmão.

Felício gritou com visível expressão de an­gústia:

— Quero ser bom, mas não posso... Tento melhorar-me e não consigo...

De voz entrecortada pelos soluços, acrescentou:

— E o dinheiro? como resgatarei os débitos contraídos? sem o casamento com Avelina, a solu­ção é impraticável!

Nosso dirigente abraçou-o e aduziu:

— E acreditas solver compromissos financei­ros provocando dívidas morais que te atormentarão por tempo indeterminado? Ninguém te proibe o casamento, nem Leôncio, o organizador dos bens materiais de que pretendes dispor, discricionària­mente, te poderia induzir à abstenção nesse sen­tido, Os atos de cada homem e de cada mulher arquitetam-lhes os destinos.

Somos responsáveis por todas as deliberações que perfilharmos ante os programas do Eterno e não poderíamos interferir em teu livre arbítrio, mas te pedimos concurso em benefício desta vida frágil que deve continuar... Queres dinheiro, recursos que te façam respeitado ou temido pelos outros homens. Convence-te, po­rém, de que a fortuna é uma coroa pesada demais para a cabeça que não sabe sustentá-la e costuma arrojar à poeira, através do cansaço e da desilusão, todos aqueles que a senhoreiam, sem horizontes largos de trabalho e benemerência. Não importa, pois, que comandes os valiosos depósitos de prata e ouro que Leôncio amontoou, inadvertidamente, porque aprenderás, com os anos, que a felicidade não está metida em cofres que a ferrugem consome. Todavia, Felício, interessamo-nos por tua promessa em favor desta criança, extenuada de sofrimento. Poupa-lhe o corpo tenro e aguarda o futuro! não tragas para o reino da morte semelhante delito, que te confinaria o espírito a furnas trevosas de expiação regeneradora.

Ante a interrupção que se impusera natural, Felício quis dizer qualquer coisa para justificar-se, mas não pôde.

Gúbio, todavia, prosseguiu, sereno:

— Casa-te, esbanja as reservas preciosas deste lar se não souberes entender a tempo a sagrada missão do dinheiro, sobe aos píncaros da vida so­cial transitória, adorna-te com os títulos conven­cionais com que o mundo inferior se habituou a premiar as criaturas sagazes que sobem a ladeira da dominação inútil ou ruinosa, sem ferir-lhe pu­blicamente os preconceitos, porque o tempo te espe­rará sempre, com lições de mestre; sem embargo, ajuda o pequenino a restabelecer-se.

E endereçando compassivo olhar ao hipnoti­zador de Margarida, acentuou:

— Não é bem Isto, Leôncio, quanto desejamos?

— Sim — confirmou o pobre pai em lágrimas enternecidas —, o dinheiro não importa e agora reconheço que Avelina é tão livre quanto eu mesno. Mas se meu filhinho continuar na Terra, tenho esperanças em minha própria regeneração. Terei nele um companheiro e um amigo, ligado à minha memória, em cuja capacidade de servir poderei en­contrar bendito campo de serviço espiritual. Este menino, por enquanto, é o único meio de que dis­ponho para retomar a crença no bem de que me havia afastado.

Reconhecendo-lhe o doloroso esforço para falar e rogar naquela hora, Gúbio abraçou-o, ergueu-o e disse:

— Leôncio, Jesus crê na cooperação dos ho­mens, tanto assim que nos tolera as imperfeições renitentes até que aceitemos o imperativo de nossa conversão pessoal ao supremo bem. Porque havía­mos então de descrer? Confio na renovação de Felício. De hoje em diante, o teu filhinho não será mais vigiado por um perseguidor e, sim, protegido por desvelado benfeitor, digno de nosso concurso fraterno!

O enfermeiro, vencido por semelhantes pala­vras, ajoelhou-se, diante de nós, e jurou:

— Em nome da Justiça Divina, prometo am­parar esta criança, como verdadeiro pai!

Em seguida, reergueu-se e tentou beijar as mãos de Gúbio, mas o nosso Instrutor, abstendo-se delicadamente de receber a homenagem, recomen­dou a Elói e a mim conduzissemos o paciente ao corpo físico, enquanto ele mesmo aplicaria passes de fortalecimento ao doentinho.

Felícío abraçou-se a nós ambos e, depois de nosso auxílio por reajustar-se no aparelho carnal, acordou no leito em copiosas lágrimas.

O lance, porém, não terminou aí.

Forçando a situação de algum modo, Elói ino­culou-lhe intensa energia magnética à esfera ocular e o irmão, apalermado, viu-nos ambos, por alguns segundos.

Boquiaberto, assombrado, não sabia que dizer, mas Elói acercou-se dele e com benéfica indigna­ção a resplandecer-lhe nos olhos, exortou-o, fran­camente:

— Se assassinares este menino, eu mesmo te punirei.

O enfermeiro proferiu grito terrível e deixou cair no travesseiro a cabeça desfalecente, perdendo-nos de vista.

Nesse instante, acreditei com sinceridade que a promessa de Felício seria cumprida integralmente.


15

Finalmente, o socorro

Entusiasmado com a atuação do nosso Ins­trutor, Saldanha entregou-se a gestos de humildade quase ingênua, e tanto ele quanto Leôncio passa­ram a cooperar ativamente conosco nos preparativos em benefício da solução que buscávamos.

Ambos solicitaram continuidade do mesmo qua­dro ambiente, para não acordarmos, contra nós, de­savisadamente, a fúria das entidades ignorantes que se mantinham em posição contrária à nossa. Pode­riam organizar-se em legião ameaçadora e estra­gar-nos os melhores projetos.

Conheciam processos de auxilio, iguais àquele em que funcionávamos e permaneciam informados quanto ao potencial da zona inimiga, do centro da qual poderiam surgir, de imediato, centenas de adversários, em massa, contra aquela instituição doméstica menos prepa­rada a resistir um cerco de semelhante jaez.

Ouvindo-lhes os pareceres, atentei para a si­tuação de Gaspar, sem dissimular minha justifi­cada estranheza. O hipnotizador, de presença desa­gradabilíssima pelos fluidos menos simpáticos que emitia, continuava ausente de nossas conversações. O próprio olhar, quase vítreo, incapaz de fixar-nos, dava idéia de paralisia da alma, de petrificação do pensamento.

Não podendo sofrear a curiosidade por mais tempo, indaguei de Gúbio quanto ao que lhe ocor­ria. Que significava aquela máscara psicológica do magnetizador das sombras? Jazia surdo, quase cego, plenamente insensível. Respondia às mais longas e importantes perguntas, através de monos­sílabos, de modo vago, e demonstrava insistência irredutível, no setor de flagelação à vítima.

O orientador, agora liberto de cuidados, escla­receu, prestimoso:

— André, há obsessores marcadamente endu­recidos de coração que se petrificam quando sob a influência de perseguidores ainda mais fortes e mais perverSoS que eles mesmos. Inteligências te­míveis das trevas absorvem certos centros peris­píriticos de determinadas entidades que se revelam pervertidas e ingratas ao bem e utilizam-nas como instrumentalidade na extensão do mal que elegeram por sementeira na vida. Gaspar encontra-se nessa situação. Hipnotizado por senhores da desordem, anestesiado pelos raios entorpecentes, perdeu tran­sitoriamente a capacidade de ver, ouvir e sentir com elevação. Demora-se em aflitivo pesadelo, àmaneira do homem comum, dentro do qual a dila­ceração de Margarida se lhe torna a ideia fixa, obcecante.

— Mas não poderá reintegrar-se na posse dos sentidos naturais? — inquiri, sob forte impressão.

— Perfeitamente. O magnetismo é uma força universal que assume a direção que lhe ditarmos. Passes contrários à ação paralisante restitui-lo-ão à normalidade. Tal operação, contudo, exige mo­mento adequado. Há necessidade, no feito, de re­cursos regeneradores intensivos, suscetíveis de se­rem encontrados junto a serviços de grupo, em que a colaboração de muitos se entrosa a favor de um só, quando necessário.

Nesse instante, Saldanha abeirou-se de nós e pediu instruções, sem rebuços.

— Meu benfeitor — disse a Gúbio, com reve­rência —, compreendo que demonstrar, de pronto, a nova situação seria atrair sobre nosso esforço terrível reação de quantos passarão a vigiar-nos desapiedadamente. Com franqueza, vejo-me num campo novo e desconheço o caminho por onde re­começar.

O interpelado anuiu com bondade:

— Sim, Saldanha, permaneces bem inspirado. Estamos fracos para batalhar em conjunto. É in­dispensável que Margarida alcance melhoras positivas, antes de tudo. Aguardemos a noite.

Espero situar o caso em algum núcleo de amor fraternal. Até lá, convém guardarmos o ambiente doméstico sem alterações, mesmo porque Gaspar é outro doente, exigindo especial atenção: traz o veículo perispirítico enfermiço e viciado, reclamando cari­doso concurso.

Mal não havia terminado a observação e Ga­briel entrou no aposento e abeirou-se da esposa, desalentada e abatida.

Gúbio agora, senhor da situação, aproximou-se

do rapaz, sem alarde, e colocou sobre a fronte dele

a destra paternal, dominando-lhe, no cérebro, as

zonas diretas da inspiração, dando curso, natural­mente, a forças magnéticas suscetíveis de inclinar

o problema de assistência a solução favorável.

Reparei que o esposo de Margarida, sob a influência renovadora, passou a contemplar a companheira, enternecidamente. Tomou-lhe as mãos com sincera ternura e falou, espontâneo:

— Margarida, dói-me ver-te assim, sob desâ­nimo tão profundo.

Pequena pausa pesou sobre ambos; contudo, ao cabo de alguns momentos, tornou o marido de olhos iluminados por indefinível esperança:

— Ouve! Uma idéia súbita me brotou no pen­samento. Desde muitos dias estamos atropelados por remédios violentos e medidas drásticas que não te socorreram com a eficiência precisa.

Consentes em que eu peça, em nosso favor, o concurso de algum amigo interessado em Espiritismo Cristão?

Tocada por aquela onda de abençoado carinho que fluía imperceptivelmente de Gúbio, por intermédio de Gabriel, a doente abriu os olhos, cheios de interesse novo, como quem encontrara inespe­rada senda salvadora e concordou, feliz:

— Estou pronta. Aceitarei qualquer recurso que consideres por tua vez justo e digno.

O esposo, num transporte de esperança, saiu precipitadamente, acompanhado de Gúbio, que nos recomendou a permanência ao lado de Saldanha, em preparativos de serviço para a noite próxima.

Na intimidade do ex-perseguidor, não perdi tempo.

Internara-me em atividade absolutamente nova para mim e desejava ampliar conhecimentos e re­cursos. Considerei que um trabalhador incompleto, em minha posição, precisa estudar sempre, e, apro­ximando-me do verdugo transformado em amigo, interroguei:

— Saldanha, como explicar tamanho temor de nosso lado, perante os companheiros retardados?

Ele fixou em mim o olhar espantado e ob­servou:

— Meu caro, conheço suficientemente este ca­pitulo. Se nos dispusermos a lutar abertamente, conservando conosco esta jovem senhora enferma, em padrão físico de menor resistência, o malogro em nossos objetivos de socorro a ela será questão de alguns minutos. Nos círculos inferiores em que nos encontramos, a maldade é força dominante em quase toda parte, contando com intérpretes que nos vigiam através de todos os flancos e não nos é fácil escapar. Para combater o mal e vencê-lo, urge possuir a prudência e a abnegação dos anjos. De outro modo é perder o tempo e cair, sem defesa, em perigosas armadilhas das trevas.

O novo aliado relanceou o olhar pelo quarto, a fim de certificar-se de que não vínhamos sendo ouvidos por adversários comuns, e prosseguiu:

— Eu mesmo, logo depois de minha vinda, tudo fiz por fugir ao mal, mas em vão. Velhas orações por mim aprendidas nos recessos do lar, que o tempo não consumiu de todo em meu espírito, arti­culadas então por minha boca, mereceram sar­casmo cruel dos inimigos do bem. Em verdade, pensamentos menos dignos me povoavam a cabeça, mas a vontade de melhorar-me era sincera em meu coração. Esforcei-me de alguma sorte, reagi quanto pude; todavia, meu impulso para o bem legitimo era, no fundo, um sopro frágil à frente de um tufão. Ao contacto dessa gente desencarnada, infe­liz e vingativa, perdi o resto da compostura moral que procurava debalde sustentar. Se a alma, li­berta do corpo de carne, não se encontra amparada em princípios robustos de virtude santificante, sen­tida e vivida, é quase impossível sair vitoriosa das ciladas escuras que nos armam.

— Entretanto — objetei —, não será essa atitude mero reflexo da ignorância insustentável?

— Admito que sim — elucidou o obsessor mo­dificado, surpreendendo-me pela clareza de argu­mentação —; todavia, não desconheces que a maior dificuldade não nasce da ignorância em si mesma, mas de nossa dureza contrária à capitulação indis­pensável. A sabedoria golpeia a insciência, a bon­dade humilha a perversidade, o amor verdadeiro sitia o ódio num círculo de ferro; no entanto, aque­les que são surpreendidos no campo da inferiori­dade manobram contra o bem, deliberadamente, mil armas de despeito, calúnia, inveja, ciúme, mentira e discórdia, provocando perturbação e desânimo.

Assinalando-lhe a palavra tão fortemente es­clarecida, cuja desenvoltura e acerto me assombra­vam, ponderei:

— Teu próprio caso é um exemplo vivo. Es­panta-me o cabedal de teus comentários inteligentes. De nenhum modo poderias ser um ignorante.

— Ah! sim! — replicou o ex-verdugo, sorrin­do — inteligência não me falta. Leitura, idem.

Estou positivamente informado com relação aos deveres de ordem geral que me competem.

Falta­va-me, contudo, a companhia de alguém que conseguisse mostrar-me á eficiência e a segurança do bem, no meio de tantos males. Imagina um esfo­meado a ouvir discursos. Acreditas que as palavras lhe satisfaçam as exigências do estômago? Isso foi precisamente o que me ocorreu.

Preocupado com a esposa e a nora, desencarnadas em terrível desequilíbrio, atormentado pelo filho louco e pela neta em perigo, não havia “espaço mental” em mi­nha cabeça para simplesmente louvar teorias sal­vadoras. O benfeitor Gúbio, no entanto, demons­trou-me que o bem é mais poderoso que o mal. Isto para mim bastou, à saciedade. Nas dúvidas, o es­clarecimento benéfico traduz verdadeira caridade.

Reparou em derredor, com extrema descon­fiança no olhar, e acentuou:

— Sei, porém, de experiência própria, quem são os revoltados em cuja equipe trabalhei até ontem. Francamente, ainda não sei com certeza que será de mim mesmo. Perseguir-me-ão sem tréguas. Se puderem, conduzir-me-ão ao vale de miséria e penúria. Noto, contudo, que transforma­ção salutar me possui agora o espírito. Conven­ci-me de que o bem pode vencer o mal e espero que o nosso Instrutor não me abandone. Ainda que eu sofra, a ele acompanharei. Não pretendo regressar ao repugnante caminho percorrido.

Leôncio, que nos fitava atencioso, registrando-nos a conversação, asseverou por sua vez:

— Eu também não mais posso servir nas filei­ras da vingança. Estou farto...

Hipotequei aos dois nossa simpatia e prometi-lhes, em nome de nosso orientador, que lhes não faltaria acolhimento em plano superior.

Sorriam satisfeitos, quando Gúbio retomou ao compartimento da enferma, notificando que o pro­blema fora resolvido. Margarida e o esposo com­pareceriam na noite próxima a uma reunião fami­liar, importante setor de socorro mediúnico.

A doente encarnada e Gaspar, o hipnotizador traumatizado, receberiam recursos eficientes.

Com ansiedade, aguardamos o anoitecer.

De quando em quando, Gúbio colocava a destra sobre a fronte da enferma, como a acentuar-lhe a resistência geral.

Por volta de vinte horas, um automóvel recebia o casal, que se fêz acompanhado por nós e pelo grande número de “ovóides”, ainda ligados à ca­beça da enferma, sob processo de imantação.

Saldanha tivera o cuidado de despistar todos os companheiros perturbadores que intentavam seguir-nos. Tranquilizou-os com palavras amigas, afir­mando, aliás com muita razão, que o assunto vinha sendo bem tratado.

Alcançando confortadora vivenda, fomos admi­ravelmente recebidos.

O senhor Silva, dono da casa, acolheu Gabriel e a esposa com inequívocas demonstrações de cari­nho, e Sidônio, o diretor espiritual dos trabalhos que se realizariam, estendeu-nos braços fraternais.

Lá dentro, quatro cavalheiros e três senhoras, os componentes habituais do círculo doméstico, ao que fomos informados, passaram a trocar idéias com os visitantes, reanimando-os e instruindo-os, até que o relógio indicasse o momento exato para os serviços da noite.

À indagação de Gúbio, Sidônio esclareceu, mui­to seguro:

— Nosso agrupamento produz satisfatoriamen­te; entretanto, poderia levar a efeito mais ampla colheita de bênçãos se a confiança no bem e o ideal de servir fôssem mais dilatados em nossos colabo­radores no plano físico. Sabemos que a instrumen­talidade é essencial em qualquer serviço.

O braço é intérprete do pensamento, o operário é comple­mento do administrador, o aprendiz é veículo do mestre. Sem companheiros encarnados que nos cor­respondam aos objetivos na ação santificante, como estabelecer a espiritualidade superior na Crosta da Terra? Efetivamente, encontramos irmãos dispos­tos ao concurso fraternal, embora, forçoso é dizer, a maioria espere a mediunidade espetacular, a fim de cooperar conosco. Não procuram saber que todos somos médiuns de alguma força boa ou má, em nossas faculdades receptivas. Não aceitam as necessidades do serviço que nos aconselham a bus­car desenvolvimento substancial na auto-iluminação, através do serviço aos nossos semelhantes, e tocam a exigir dons medianímicos, quais se fôssem dádi­vas milagrosas a serem transmitidas graciosa­mente àqueles que se lhes candidatam aos benefí­cios, por intermédio da antiga “varinha de condão”. Esquecem-se de que a mediunidade é uma energia peculiar a todos, em maior ou menor grau de exte­riorização, energia essa que se encontra subordi­nada aos princípios de direção e à lei do uso, tanto quanto a enxada que pode ser mobilizada para ser­vir ou ferir, conforme o impulso que a orienta, me­lhorando sempre, quando em serviço metódico, ou revestindo-se de ferrugem asfixiante e destrutiva, quando em constante repouso. Nossos amigos não percebem o valor de uma atitude desassombrada e permanente de fé positiva, dentro do caminho lou­vável, haja o que hoüver, e, não obstante cuidarmos devotadamente da crença deles, com a mesma ter­nura consagrada pelo lavrador vigilante à plantinha tenra que encerra a esperança do porvir, basta que espíritos perturbadores ou maliciosos os visitem, sutis, à maneira de melros num arrozal, e lá se vão os germens superiores que lhes confiamos, incessantemente, ao solo do coração. De um instan­te para outro, duvidam de nosso esforço, descon­fiam de si mesmos, cerram os olhos ante a grandeza das leis que os cercam nos ângulos da natureza terrestre, e as energias mentais que deveriam cen­tralizar em construção ativa e santificante, com vistas ao aprimoramento próprio, são desbaratadas quase que diàriamente pela argumentação menti­rosa de espíritos ingratos e menos permeáveis ao bem.

Verificando-se espontânea parada, aventurei-me a considerar:

— A referência abrange um grupo assim tão harmoniosamente constituído quanto este? Será cri­vel que o conjunto organizado sobre propósitos tão sadios dê guarida fácil às forças deprimentes?

O diretor da casa sorriu bem humorado e res­pondeu com franqueza:

— Sim, coletivamente considerando, reúnem-se agora, sob este teto amigo, e procuram-nos a com­panhia espiritualizante. Isto, porém, acontece por seis horas, nas cento e sessenta e oito horas de cada semana. Enquanto conosco, deixam-se envol­ver nas suaves irradiações da paz e da alegria, do bom ânimo e da esperança, registrando-nos as vi­brações edificantes das quais desejávamos fôssem eles nossos portadores permanentes e seguros na esfera vulgar da luta humana. Todavia, tão logo se encontram a pequena distância de nossas portas, aceitam ou provocam milhares de sugestões sutis, diferentes das nossas. Choques de pensamentos adversos ao nosso programa, nascidos da mente de encarnados e desencarnados, vergastam-nos sem piedade. Raros se capacitam de que a fé representa bênção suscetível de ser aumentada, indefinida­mente, e fogem ao serviço que a conservação, a consolidação e o crescimento desse dom nos ofere­cem a todos. Além disso, quando esse ou aquele irmão revela disposições mais avançadas para ser­vir a bem de todos, em favor do império da luz, costuma ser imediatamente visitado, nas horas de sono físico, por entidades renitentes na prática do mal, interessadas na extensão do domínio das som­bras, que lhe desintegram convicções e propósitos nascentes com insinuações menos dignas, quando o espírito do trabalhador não está cónveniente­mente apoiado no desejo robusto de progredir, re­dimir-se e marchar para a frente.

A exposição era muito interessante e tudo faria a benefício de mais amplas elucidações ao assunto, mas o relógio marcava o momento de nossa coope­ração ativa e pusemo-nos em forma.

Para os trabalhos da reunião que congregava nove pessoas terrestres, vinte e um colaboradores espirituais se movimentaram em nosso circulo de ação.

Gúbio e Sidônio, em esforço conjugado, efe­tuaram operações magnéticas ao redor de Margarida, desligando finalmente os “corpos ovóides” que foram entregues a uma comissão de seis com­panheiros que os conduziram, cuidadosamente, a postos socorristas.

Logo após, enquanto a prece e os estudos evan­gélicos se faziam ouvir, dentro das contribuições de nosso círculo, grande cópia de força nêurica, com a devida compensação em fluidos revigoradores de nossa esfera, foi extraida, através da boca, na­rinas e mãos dos assistentes encarnados, força essa que Gúbio e Sidônio aplicaram sobre Marga­rida e Gaspar, no evidente intuito de restaurar-lhes as energias perispiríticas.

A jovem senhora passou a demonstrar aben­çoados sinais de alívio e Gaspar, de impassível que se achava, pôs-se a gemer, qual se houvera acor­dado de intenso e longo pesadelo.

A essa altura, nosso orientador preparou Dona Isaura, senhora daquele santuário doméstico e mé­dium do culto familiar, adestrando-lhe a faculdade de incorporação, por intermédio de passes magné­ticos sobre a laringe e, em particular, sobre o sis­tema nervoso. Quando a hora de amor cristão aos desencarnados começou a funcionar, os orientadores trouxeram Gaspar à organização medianímica, a fim de que pudesse ele recolher algum benefício, ao contacto dos companheiros materializados na experiência física, que lhe haviam fornecido ener­gias vitalizantes, tal como acontece às flores que sustentam, sem perceber, o trabalho salutar das abelhas operosas.

Reparei que os sentidos do insensível perseguidor ganharam inesperada percepção. Visão, audi­ção, tato e olfato foram nele súbitamente acordados e intensificados. Parecia um sonâmbulo, desper­tando. À medida que se lhe casavam as forças às energias da médium, mais se acentuava o fenômeno de reavivamento sensorial. Apossando-se proviso­riamente dos recursos orgânicos de Dona Isaura, em visível processo de “enxertia psíquica”, o hip­notizador gritou e chorou lamentosamente. Mistu­rou blasfêmias e lágrimas, palavras comovedoras e palavras menos dignas, entre a penitência e a rebeldia. Escutando agora, com aguçada sensibi­lidade, conversou detidamente com o doutrinador. O senhor Silva, marido da médium, fêz-lhe sentir a necessidade de renovação espiritual em edifi­cante lição que nos tocava as fibras mais Intimas, e, depois de sessenta minutos de exaustivo embate emocional, Gaspar foi conduzido por dois servido­res de nossa equipe ao lugar que lhe correspondia, isto é, à posição de demente com retorno gradativo à razão.

Findos os serviços ativos, a reunião foi encer­rada, notando-se que imensa alegria transbordava de todos os corações.

Margarida estava, enfim, aliviada e, em pran­to, pedia ao esposo agradecesse, de viva voz, as dádivas recebidas.

Gúbio, porém, vendo Saldanha espantadiço, ob­temperou:

— O triunfo essencial ainda não veio. Marga­rida recebeu amparo imediato, mas precisamos ago­ra socorrer-lhe a casa, até que ela mesma incorpore à própria individualidade, em caráter definitivo, os benefícios aqui recolhidos.

Sorriu bondosamente e acrescentou:

— Para que uma planta seja efetivamente pre­ciosa, não basta que esteja bela e perfumada na estufa protetora. É necessário receber o auxílio externo, consolidando a resistência própria, de modo a produzir utilidades no bem comum.

E passando a entender-se com Sidônio, acei­tou a colaboração, por dez dias sucessivos, de doze companheiros espirituais incorporados ao agrupa­mento destinado a reforçar as atividades defensivas na moradia de Gabriel, de vez que, segundo Salda­nha e Leôncio, do dia seguinte em diante, teríamos guerra aberta com os assalariados de Gregório, que viriam naturalmente sobre nós, temíveis e insis­tentes.

16

Encantamento pernicioso

Finda a reunião, reparei que a médium Dona Isaura Silva apresentava sensível transfiguração.

Enquanto perduravam os trabalhos, mostrava radiações brilhantes, em derredor do cérebro, ofe­recendo simpático ambiente pessoal; entretanto, encerrada que foi a sessão, cercou-se de emissões de substância fluídica cinzento-escura, qual se hou­vesse repentinamente apagado, em torno dela, al­guma lâmpada invisível.

Impressionado, dirigi-me a Sidônio, com na­tural indagação, ao que ele me respondeu, atencioso:

— A pobrezinha encontra-se debaixo de ver­dadeira tempestade de fluidos malignos que lhe vão sendo desfechados por entidades menos esclareci­das, com as quais se sintonizou, inadvertidamente, pelos fios negros do ciúme - Enquanto se acha sob nossa influência direta, mormente nos trabalhos es­pirituais de ordem coletiva, em que age como vál­vula captadora das forças gerais dos assistentes, desfruta bom ânimo e alegria, porque o médium ésempre uma fonte que dá e recebe, quando em fun­ção entre os dois planos; terminada, contudo, a tarefa, Isaura volta às tristes condições a que se relegou.

— Não há, porém, algum recurso para socor­rê-la? — indaguei, curioso.

— Sem dúvida — elucidou o orientador da pe­quena e simpática instituição —, e, porque não a abandonamos, ainda não sucumbiu. E’ imprescin­dível, todavia, num processo de semelhante natu­reza, agir com cautela, sem humilhá-la e sem feri-la. Quando defendemos um broto tenro, do qual é justo aguardar preciosa colheita no porvir, é necessário combater os vermes invasores, sem atingi-lo. Cres­tar o grelo de hoje é perder a colheita de amanhã. Nossa irmã é valorosa cooperadora, revela qualida­des apreciáveis e dignas, porém, não perdeu ainda a noção de exclusivismo sobre a vida do compa­nheiro e, através dessa brecha que a induz a vio­lentas vibrações de cólera, perde excelentes oportu­nidades de servir e elevar-se. Hoje, viveu um dos seus dias mais infelizes, entregando-se totalmente a esse gênero de flagelação interior. Reclama-nos concurso ativo, nesta noite, pois cada servo acor­dado para o bem, quando se projeta em determinada faixa de vibrações inferiores durante o dia, marca quase sempre uma entrevista pessoal, para a noite, com os seres e as forças que a povoam.

Estampou na fisionomia significativa expres­são e acrescentou:

— Enquanto a criatura é vulgar e não se des­taca por aspirações de ordem superior, as inteligências pervertidas não se preocupam com ela; no entanto, logo que demonstre propósitos de subli­mação, apura-se-lhe o tom vibratório, passa a ser notada pelos característicos de elevação e é natu­ralmente perseguida por quem se refugia na inveja ou na rebelião silenciosa, visto não conformar-se com o progresso alheio.

Convenci-me de que o caso assumiria grande importância para os meus estudos particulares e, compreendendo que Margarida já recebera grandes vantagens, pedi permissão ao nosso Instrutor, após o consentimento de Sidônio, para observar naquela noite o conflito inquietante entre a missionária e os que se lhe prendiam às teias escuras do senti­mento.

Gúbio concordou, sorridente.

Aguardar-me-ia o regresso no dia seguinte.

Nosso grupo retirou-se conduzindo a doente e o esposo infinitamente satisfeitos e coloquei-me, ao lado de Sidônio, em interessante conversação.

— Por enquanto — explicou-me a certa altura da útil palestra —, este domicílio está sob a guarda dos nossos processos de vigilância. Entidades per­turbadoras ou criminosas não dispõem de acesso até aqui, mas nossa amiga, transtornada pelo ciú­me, vai, ela mesma, ao encalço de maus conselheiros. Esperemos que abandone o veículo de carne, sob a ação do sono, e verás, de perto.

Decorridas apenas duas horas, vimos o senhor Silva que nos acenava de porta próxima, já desli­gado do corpo físico. Sidônio levantou-se e, con­vocando um de seus auxiliares, recomendou-lhe acompanhasse o dono da casa em proveitosa ex­cursão de estudos.

O irmão Silva, junto de nós, alegou, pesaroso:

— Tanto desejava que Isaura viesse, mas não me atendeu aos apelos!

— Deixa-a! — observou Sidônio, com inflexão de energia na voz — naturalmente ainda hoje não se acha preparada para atender às lições.

O interlocutor mostrou profunda tristeza no semblante calmo, porém não vacilou. Seguiu, sem delongas, o cooperador que lhe era apresentado.

Mais alguns minutos e D. Isaura, fora do corpo de carne, surgiu-nos à vista, revelando o perispírito intensamente obscuro. Passou rente a nós sem prestar-nos a mínima atenção, mostrando-se encar­cerada em absorvente idéia fixa. Sidônio endere­çou-lhe algumas palavras amigas, que não foram absolutamente ouvidas. Tentou o amigo tocá-la com a destra luminosa, mas a médium precipitou-se em desabalada carreira, deixando-nos perceber que a nossa aproximação lhe constituía, naqueles ins­tantes, aflitiva tortura. Encontrava-se incapaz de assinalar-nos a presença; entretanto, percebia-nos, instintivamente, as vibrações mentais e demonstra­va temer o contacto espiritual conosco.

O benfeitor explicou-me que poderia constran­gê-la a ouvir-nos, obrigando-a a submeter-se, sem reservas, à nossa influência; no entanto, semelhante atitude de nosso lado implicaria a supressão indé­bita das possibilidades educativas. Isaura, no fun­do, era senhora do próprio destino e, na experiência íntima, dispunha do direito de errar para melhor aprender — o mais acertado caminho de defesa da própria felicidade. Ali estava, a fim de ajudá-la, quanto possível, na preservação das forças físicas, mas não para algemá-la a atitudes com que ainda não pudesse concordar espontâneamente, nem mes­mo em nome do bem que não reclama escravos em sua ação e, sim, servidores livres, contentes e oti­mistas.

Com grande surpresa para mim, o prestimoso guardião continuou explicando que aquela senhora, efetivamente, detinha extensas possibilidades no serviço aos semelhantes. Caso quisesse perdê-las temporàriamente, outro recurso não nos cabia se­não o de entregá-la à corrente da própria vontade, até que um dia conseguisse ela própria despertar em plano de compreensão mais alta. Sabia, à sacie­dade, que o marido não lhe era propriedade exclusi­va, que o ciúme tresloucado só poderia conduzi-la a perigosa situação espiritual, não ignorava que a palavra do Mestre exortava os aprendizes ao perdão e ao amor para que os companheiros mais infelizes não se projetassem nos despenhadeiros fundos da estrada. Entretanto, se os seus desígnios se de­morassem na linha contrária ao roteiro que o plano superior lhe havia traçado, só nos restaria deixá-la circunscrita aos círculos da mente em desânimo ou em desespero, a fim de que o tempo lhe ensinasse o reajustamento próprio.

Depois de pacientes elucidações, Sidônio con­cluiu num sorriso melancólico:

— Educação não vem por imposição. Cada Espírito deverá a si mesmo a ascensão sublime ou a queda deplorável.

A esse tempo, acompanhávamos a senhora Sil­va, fora do corpo de carne, a fugir de seu domicílio para a via pública. Estugou o passo até encontrar velha casa desabitada, a cuja sombra se lhe depara­ram dois malfeitores desencarnados, inimigos saga­zes do serviço de libertação espiritual de que se convertera em devotada servidora. É evidente que a esperavam com o propósito deliberado de intoxi­car-lhe o pensamento.

Abeiraram-se dela, amistosos e macios, sem se aperceberem da nossa presença.

— Com que então, Dona Isaura — disse um dos embusteiros, apresentando na voz mentiroso acento de compaixão —, a senhora tem sofrido bas­tante em seus respeitáveis sentimentos de mulher...

— Ah! meu amigo — clamou a interpelada visivelmente satisfeita por encontrar alguém que se lhe associasse às dores imaginárias e infantis —‘então, o senhor também sabe?

— Como não? — comentou o interlocutor, en­fático — sou um dos Espíritos que a “protegem” e sei que seu esposo lhe tem sido desalmado ver­dugo. A fim de “ajudá-la”, tenho seguido o infeliz, por toda parte, surpreendendo-lhe as traições aos compromissos domésticos.

D. Isaura, em lágrimas, confiou-se ao fingido amigo.

— Sim — gritou, molestada —, esta é que éa verdade! Sofro infinitamente... Não existe neste mundo criatura mais desventurada que eu...

— Reconheço — acentuou o loquaz perseguidor —, reconheço a extensão de seus padecimentoS morais, vejo-lhe o esforço e o sacrifício e não ignoro que seu marido eleva a voz nas preces, através das sessões habituais, para simplesmente acobertar as próprias culpas. Por vezes, em plena oração, en­trega-se a pensamentos de lascivia, fixando senho­ras que lhe frequentam o lar.

Envolvendo a médium imprevidente na meli­fluidade das frases, aduzia:

— É um absurdo! Dói-me vê-la algemada a um patife mascarado de apóstolo.

— É isto mesmo... — confirmava a pobre senhora, qual se fora andorinha delicada, portado­ra de importante mensagem, repentinamente presa num tabuleiro de mel —, estou rodeada de gente desonesta. Nunca sofri tanto!

Indicando o quadro triste, Sidônio informou-me:

— Antes de tudo, os agentes da desarmonia perturbam-lhe os sentimentos de mulher, para, em seguida, lhe aniquilarem as possibilidades de mis­sionária. O ciúme e o egoísmo constituem portas fáceis de acesso à obsessão arrasadora do bem. Pelo exclusivismo afetivo, a médium, nesta conversação, já se ligou mentalmente aos ardilosos adversários de seus compromissos sublimes.

Deixando transparecer imensa tristeza, acres­centou:

— Repara.

O inteligente obsessor abraçou a senhora, par­cialmente desligada do corpo físico, e prosseguiu:

— Dona Isaura, acredite que somos seus leais amigos. E os protetores verdadeiros são aqueles que, como nós, lhe conhecem os padecimentos ocul­tos. Não é justo que se submeta às arbitrariedades do marido infiel. Abstenha-se de receber-lhe o sé­quito de companheiros hipócritas, interessados em orações coletivas, que mais se assemelham a palha­çadas inúteis. É um perigo entregar-se a práticas mediúnicas, qual vem fazendo em companhia de gente dessa espécie... Tome cuidado!...

A médium invigilante arregalou os olhos, Im­pressionada com a estranha inflexão impressa nas palavras ouvidas, e gritou:

— Aconselhe-me, Espírito generoso e amigo, que tão bem me conhece o martírio silencioso!

O interlocutor, na intenção de destruir a cé­lula iluminativa que funcionava com imenso pro­veito no santuário doméstico da jovem senhora, assediada agora por seus argumentos adocicados e venenosos, observou com malicia:

— A senhora não nasceu com a vocação do picadeiro. Não permita a transformação de sua casa em sala de espetáculo. Seu marido e suas relações sociais exageram-lhe as faculdades. Precisa ainda de longo tempo para desenvolver-se sufi­cientemente.

E envolvendo-a nos pesados véus da dúvida que anulam tantos trabalhadores bem intencionados, aduziu:

— Já meditou bastante na mistificação in­consciente? Está convencida de que não engana os outros? É indispensável acautelar-se. Se estu­dar a grave questão do Espiritismo, com inteli­gência e acerto, reconhecerá que as mensagens escritas por seu intermédio e as incorporações de entidades supostamente benfeitoras não passam de pálidas influências de Espíritos perturbados e de alta percentagem dos produtos de seu próprio cére­bro e de sua sensibilidade agitada pelas exigências descabidas das pessoas que lhe frequentam a casa. Não vê a plena consciência com que se entrega ao imaginado intercâmbio? Não creia em possi­bilidades que não possui. Trate de preservar a dignidade de sua casa, mesmo porque seu esposo não tem outro objetivo senão o de utilizar-lhe a credulidade excessiva, lançando-a a triste aventura do ridículo.

A pobre criatura, tão ingênua e prestimosa, registrava com visível terror aquela conceituação do assunto.

Espantado com a passividade de Sidônio, ante aquele assalto, enderecei-lhe a palavra, respeitoso, porém menos tranqüilo:

— Não será razoável defendê-la?

Ele sorriu compreensivamente e elucidou:

— Todavia, que fizemos, há poucas horas, no culto da prece e do socorro fraternal, senão pre­pará-la à própria defensiva? Trabalhou mediúnica­mente conosco; ouviu formosa e comovedora pre­leção evangélica contra os perigos do egoísmo en­fermiço; colaborou, decidida, para que o bem se concretizasse e ela própria emprestou-nos os lábios a fim de ensinarmos princípios de salvação em nome do Cristo, a quem deveria confiar-se. Entre­tanto, apenas porque o esposo se dispôs a justa gentileza com as damas que lhe buscaram a com­panhia esclarecedora e fraterna, obscureceu o pen­samento no ciúme destruidor e perdeu o equilíbrio íntimo, entregando-se, inerme, a entidades que lhe exploram o sentimentalismo.

Fêz significativo gesto, apontando os malfei­tores desencarnados, e explicou:

— Estes companheiros retardados procedem com os médiuns à maneira de ladrões que, depois de saquearem uma casa, acordam o dono, hipnoti­zam-no e obrigam-no a tomar-lhes o lugar, compe­lindo-o a sentir-se na condição de mentiroso e mis­tificador. Aproximam-se da mente invigilante, di­laceram-lhe a harmonia, furtam-lhe a tranquilidade e, depois, com sarcasmo imperceptível e sutil, obri­gam-na a acreditar-se fantasiosa e desprezível. Muitos missionários se deixam atropelar pela falsa argumentação que acabamos de ouvir e menospre­zam as sublimes oportunidades de estender o bem, através de preciosa sementeira que lhes enriqueça o futuro.

— Mas não há recurso — inquiri, sensibili­zado — de afastar semelhantes malfeitores?

— Sem dúvida — elucidou Sidônio, bem hu­morado —, em toda parte existe contenção e panacéia, remediando situações pela violência ou pelo engodo prejudiciais, mas, na intimidade de nossa tarefa, que será mais aconselhável? Espantar mos­cas ou curar a ferida?

Sorriu, enigmático, e prosseguiu:

— Tais dificuldades são lições valiosas que o Espírito do medianeiro, entre encarnados e desen­carnados, deve aproveitar em benditas experiências e não nos compete subtrair o ensinamento ao apren­diz. Enquanto um trabalhador da mediunidade em­presta ouvido. a histórias que lhe lisonjeiem a es­fera pessoal, disso fazendo condição para cooperar na obra do bem, quer dizer que ainda estima o personalismo inferior e o fenômeno, acima do ser­viço que lhe cabe no plano divino. Nessa posição, demorar-se-á longo tempo entre desencarnados ocio­sos que disputam a mesma presa, anulando valiosa ocasião de elevar-se, porque, depois de certo tempo de auxílio desaproveitado, perde provisoriamente a companhia edificante de irmãos mais evolvidos que tudo fazem inútilmente pelo reerguer no caminho. Então cai vibratôriamente no nível moral a que se ajusta, convive com as entidades cujo contacto pre­fere, e acorda, mais tarde, verificando as horas preciosas que desprezou.

A esse tempo, o obsidente de Dona Isaura afirmava-lhe, palrador.

— Estude a senhora o próprio caso. Consulte cientistas competentes. Leia as últimas novidades em psicanálise e não perca sua oportunidade de restauração, sob pena de enlouquecer.

E comentava, sacrílego:

— Falo-lhe em nome das Esferas Superiores na qualidade de amigo fiel.

— Sim... compreendo... — concordava a in­terlocutora, tímida e desapontada.

Nesse momento, Sidônio abeirou-se do grupo e fêz-se visível para Dona Isaura, hipnotizada pelos perseguidores, e a médium registrou-lhe a presença com alguma dificuldade, exclamando:

— Vejo Sidônio, nosso devotado amigo espi­ritual!

O verboso obsessor, que de maneira alguma percebia a nossa vizinhança, em virtude do baixo padrão emocional em que se mantinha, zombou, franco:

— Nada disso. A senhora nada vê. É pura ilusão. Abandone o vicio mental para furtar-se a maiores desequilíbrios.

Sidônio voltou algo triste e informou sem re­buços:

— Desde o instante em que Isaura se projetou na zona sombria do ciúme, tem a matéria mental em posição difícil e não se acha em condições de compreender-me. Mas, poderemos socorrê-la de ou­tro modo.

Em volitação rápida, no que foi seguido por mim, encontrou o marido da medianeira numa reunião instrutiva, junto de vários amigos espiri­tuais, e recomendou-lhe tomar o corpo físico sem perda de tempo, a fim de auxiliar a esposa em di­ficuldade.

O irmão Silva não hesitou.

Em breve, regressava à câmara conjugal, rea­possando-se do veículo denso.

O corpo da senhora, ao lado dele, arfava em reiteradas contorções, acorrentado a indizível pe­sadelo.

Dócil à influenciação de Sidônio, procurou des­pertá-la, sacudindo-lhe o busto, delicadamente.

Isaura, em copioso pranto, retornou ao campo carnal sem detença, abrindo os olhos assustadiços:

— Oh! como sou infeliz! — bradou, angus­tiada — estou sozinha!

Sidônio, quase incorporado ao marido compla­cente e bondoso, levava-o a falar, construtivamente:

— Lembra-te, querida, de nossa fé e de quanto temos recebido de nossos amados benfeitores espi­rituais!

— Nada disso! —retrucou, Irritada.

— Como assim? — tornou ele, paciente — não temos sido tão amparados, através de tua própria mediunidade?

— Nunca! nunca... — protestou a pobre se­nhora —, tudo é uma farsa. As mensagens que recebo são pura atividade de minha imaginação. Tudo é expressão de mim mesma.

— Mas ouve, Isaura! — aduziu o esposo, sor­rindo — jamais foste mentirosa. Já sei. Caíste nas malhas dos nossos infelizes irmãos que te conduzem ao purgatório do ciúme terrível, mas Jesus nos auxiliará no oportuno reajustamento.

Nesse momento, Sidônio voltou-se para mim e lembrou:

— Penso, André, que já assististe à fase cul­minante da lição. E esta conversa agora seguirá até muito longe. Com o milagroso concurso das horas, pacificaremos a mente da servidora respei­tável, mas exclusivista e invigilante. Volta ao teu círculo de trabalho e guarda o ensinamento desta noite.

Profundamente tocado pelo que vira, agradeci e afastei-me.


17

Assistência fraternal

No segundo dia de serviço espiritual definitivo, na tarefa de socorro a Margarida, nossa movimen­tação aureolava-se de sublime entusiasmo no san­tuário doméstico, que novamente se revestia das doces claridades da paz.

A casa transformou-se.

Desde a véspera, Saldanha e Leôncio eram os primeiros a pedir instruções de trabalho.

Teimavam em dizer que os adversários do bem voltariam à carga. Conheciam a crueldade dos ex-companheiros e, porque muitos apaniguados de Gregório viriam fiscalizar a normalidade do processo alienatório da esposa de Gabriel, Gúbio co­meçou por traçar expressivas fronteiras, ao redor da casa, mantidas dali em diante sob a responsa­bilidade dos colaboradores que Sidônio nos cedera por gentileza.

Enquanto aprestávamos a defensiva, o jovem casal louvava a alegria que lhes retornara aos corações.

Margarida sentia-se leve, bem disposta, e ren­dia graças ao Eterno pelo “milagre” com que fora contemplada. O esposo formulava mil promessas de trabalho espiritual, com o júbilo do neófito embriagado de sublime esperança.

De nosso lado, porém, as responsabilidades pas­saram a crescer.

Atendendo às determinações de Gúbio, Salda­nha dirigiu-se ao interior da casa e trouxe, por influência indireta, velha serva encarnada, que es-panou móveis, bruniu adornos e abriu as janelas, dando passagem a vastas correntes de ar fresco.

O prédio como que se reconciliava com a har­monia.

As medidas referentes à limpeza prosseguiam adiantadas, quando vozes ásperas se fizeram ouvir, partidas da via pública.

Elementos da falange gregoriana gritavam por Saldanha, que compareceu, junto de nós, desapon­tado e algo aflito. Nosso Instrutor paternalmente lhe recomendou:

— Vai, meu amigo, e mostra-lhes o novo rumo. Tem coragem e resiste ao venenoso fluido da cólera. Usa a serenidade e a delicadeza.

Saldanha estampou na fisionomia perceptível gesto de reconhecimento e avançou na direção dos recém-chegados.

Uma das entidades de horrível semblante, de mãos à cintura, gritou-lhe, irreverente:

— Então? que houve aqui? Traindo o co­mando?

O interpelado, que os últimos sucessos haviam alterado profundamente, respondeu humilde, mas firme:

— Meus compromissos foram assumidos com a própria consciência e acredito dispor do direito de escolher a minha rota.

— Ah! — disse o outro, sarcástico — tens agora o direito... Veremos...

E tentando insinuar-se de maneira direta, clamou:

— Deixa-me entrar!

— Não posso — esclareceu o ex-perseguidor —, a casa segue noutra direção.

O interlocutor lançou-lhe um olhar ‘de revolta insofreável e indagou estentórico:

— Onde tens a cabeça?

— No lugar próprio.

— Não temes, porventura, as consequências do

gesto impensado?

— Nada tenho de que penitenciar-me.

O visitante fêz carantonha de irritação extre­ma e aduziu:

— Gregório saberá.

E retirou-se acompanhado pelos demais.

Transcorridos alguns instantes, outros elemen­tos assomaram à entrada, assustadiços e insolentes, com a repetição dos mesmos quadros.

Em breve, cenas diversas passaram a desdo­brar-se.

Gúbio colocou sinais luminosos nas janelas, indicando a nova posição daquele abrigo doméstico, opondo-se às manchas de sombra que provinham dali; e, naturalmente atraidos por eles, Espiritos sofredores e perseguidos, mas bem intencionados, apareceram em grande número.

A primeira entidade a aproximar-se foi uma senhora que se ajoelhou, à entrada, suplicando:

— Benfeitores de Cima, que vos congregastes nesta casa, em serviço de luz, livrei-me da aflição!... Piedade! piedade!...

O nosso Instrutor atendeu-a, imediatamente, permitindo-lhe a passagem. E, no pátio ao lado, contou em pranto que se mantinha, há muito tempo, num edifício próximo, segregada por verdugos im­passíveis que lhe exploravam antigas disposições mórbidas para o vício. Achava-se, porém, cansada do erro e suspirava por mudança benéfica. Peni­tenciava-se. Pretendia outra vida, outro rumo. Im­plorava asilo e socorro.

O orientador consolou-a, bondoso, e prometeu-lhe amparo.

Logo após, surgiram dois velhos, rogando pou­sada. Ambos haviam desencarnado em extrema

indigência num hospital. Revelavam-se possuídos de imenso terror. Não se conformavam com a morte. Temiam o desconhecido e mendigavam elucidações. Padeciam de verdadeira loucura.

Curiosa dama compareceu pedindo providên­cias contra Espíritos pervertidos e perturbadores que, em grande bloco, lhe não permitiam aproxi­mar-se do filho, instigando-o à embriaguez.

Outra veio solicitar recursos contra os maus pensamentos de um Espírito vingativo que lhe não dava ensejo à oração.

A corrente dos pedintes, contudo, não ficou aí. Tive a idéia de que a missão de Gúbio se convertera, de repente, numa avançada instituição de pronto-socorro espiritual.

Dezenas de criaturas desencarnadas, sob re­gime de prisão aos círculos inferiores, alinhavam-se, agora, ao lado da residência de Gabriel, sob a de­terminação de Gúbio que dizia aguardar a noite para os serviços da prece em geral.

Antes, porém, que o dia expirasse, começaram a surgir vários elementos da falange de Gregório, afirmando-se dispostos à renovação de caminho.

Procediam da própria colônia que visitáramos, e um deles, com grande assombro para mim, foi claro na enunciação dos propósitos de que se achava inspirado.

— Salvem-me dos juizes cruéis! — suplicou, emocionando-nos pela inflexão de voz — não posso mais! não suporto, por mais tempo, as atrocidades que sou constrangido a praticar. Soube que o pró­prio Saldanha se transformou. Eu não posso per­sistir no erro! Temo a perseguição de Gregório, mas, se é necessário arrostar as maiores dores, en­frentá-las-ei de bom grado, preferindo-lhes o golpe fulminatório a regressar. Ajudem-me! Aspiro ànova estrada, com o bem.

Apelos como este foram repetidos muitas vezes.

Enfileirando os sofredores de intenções nobres e retas que nos alcançavam, no vasto recinto de que dispúnhamos, nosso Instrutor recomendou que eu e Elói nos colocássemos à disposição deles, ouvin­do-os com paciência e prestando-lhes a assistência possível, a fim de se prepararem mentalmente para as orações da noite.

Confesso que me senti à vontade.

Dividimo-nos, então, em dois setores distintos.

Organizei os irmãos que me cabia atender em assembléia fraternal; contudo, em vista de os ne­cessitados continuarem chegando, de espaço a es­paço, era imperioso abrir novos lugares no extenso grupo dos ouvintes.

Muitas entidades em desequilíbrio, lá fora, re­clamavam acesso, pronunciando rogativas comovedoras; todavia, o nosso orientador aconselhara fôsse a entrada privativa dos Espíritos que se mostrassem conscientes das próprias necessidades.

De há muito aprendera que uma dor maior sempre consola uma dor menor e limitava-me a pronunciar frases curtas, para que os infelizes, ali congregados, encontrassem reconforto, uns com os outros, sem necessidade de doutrinação de minha parte.

Conduzindo-me desse modo, pedi a uma das irmãs presentes, em deploráveis condições perispi­ríticas, expor-nos, por gentileza, a experiência de que fora objeto.

A infortunada concentrou a atenção de todos, em virtude das feridas extensas que mostrava no semblante agora erguido.

— Ai de mim! — começou, penosamente —ai de mim, a quem a paixão cegou e venceu, trans­portando-me ao suicídio! Mãe de dois filhos, não suportei a solidão que o mundo me impusera com a morte de meu marido tuberculoso. Cerrei os olhos ao campo de obrigações que me convidavam ao en­tendimento e sufoquei as reflexões ante o futuro que se avizinhava. Olvidei o lar, os filhos, os com­promissos assumidos e precipitei-me no vale fundo de sofrimentos inenarráveis.

Há quinze anos, preci­samente, vagueio sem pouso, à feição da ave im­previdente que aniquilasse o ninho... Leviana que fui! quando me vi só e aparentemente desampa­rada, entreguei meus pobres filhos a parentes cari­dosos e sorvi, louca, o veneno que me desintegraria o corpo menosprezado.

Supunha reencontrar o es­poso querido ou chafurdar-me no abismo da ine­xistência; todavia, nem uma realização nem outra me surpreenderam o coração. Despertei sob denso nevoeiro de lama e cinza e debalde clamei socorro, à face dos padecimentos que me asfixiavam. Co­berta de chagas, qual se o tóxico letal me atingisse os mais finos tecidos da alma, gritei sem destino certo!

A essa altura, porque a emotividade lhe inter­ceptasse a voz, interferi, perguntando, de modo a fixar o ensinamento:

— E não conseguiu retornar ao santuário do­méstico?

— Ah! sim! fui até lá — informou a inter­pelada tentando dominar-se —, mas, para acen­tuar-me a angústia, o toque de meu carinho nos filhos amados, que confiara aos parentes próximos, provocava-lhes aflição e enfermidade. As irradia­ções de minha dor lhes alcançavam os corpos tenros, envenenando-lhes a carne delicada, através da respiração. Quando compreendi que a minha pre­sença lhes inoculava pavoroso “virus fluídico”, de­les fugi aterrada. É preferível suportar o castigo de minha própria consciência isolada e sem rumo que infligir-lhes sofrimento sem causa!

Experi­mentei medo e horror de mim mesma. Desde então, perambulo sem consolo e sem norte. É por isto que venho até aqui implorando alívio e segurança. Estou cansada e vencida...

— Convença-se de que receberá os recursos que pleiteia, por intermédio da prece — esclareci, prometendo-lhe a colaboração eficiente de Gúbio.

A pobrezinha sentou-se, mais calma; e repa­rando que um dos irmãos presentes buscava salien­tar-se, no intuito de relatar-nos a experiência de que era vítima, roguei atenção, em torno das pala­vras que pronunciaria.

Fitei-o, vigilante, e notei-lhe o singular brilho dos olhos. Parecia alucinado, abatido.

Com a expressão típica da loucura cronicifi­cada, falou, aflito:

— Permite-me indagar?

— Perfeitamente — respondi surpreso.

— Que é o pensamento?

Não aguardava a pergunta que me era des­fechada, mas, centralizando minha capacidade receptiva, no propósito de responder com acerto, elu­cidei como pude:

— O pensamento é, sem dúvida, força criadora de nossa própria alma e, por isto mesmo, e a con­tinuação de nós mesmos. Através dele, atuamos no meio em que vivemos e agimos, estabelecendo o padrão de nossa influência, no bem ou no mal.

— Ah! — fêz o estranho cavalheiro, um tanto atormentado — a explicação significa que as nos­sas idéias exteriorizadas criam imagens, tão vivas quanto desejamos?

— Indiscutivelmente.

— Que fazer, então, para destruir nossas pró­prias obras, quando interferimos, erroneamente, na vida mental dos outros?

— Auxilie-nos a apreciar seu caso, contando-nos alguma coisa de sua experiência — pedi com interesse fraternal.

O interlocutor, provàvelmente tocado pelo tom de minha solicitação afetuosa, expôs a perturbação que lhe vagava no íntimo, com frases incisivas, quentes de sinceridade e dor:

— Fui homem de letras, mas nunca me inte­ressei pelo lado sério da vida. Cultivava o chiste malicioso e com ele o gosto da volúpia, estendendo minhas criações à mocidade de meus dias. Não consegui posição de evidência, nos galarins da fama; entretanto, mais que eu poderia imaginar, impres­sionei, destrutivamente, muitas mentalidades ju­venis, arrastando-as a perigosos pensamentos.

De­pois do meu decesso, sou incessantemente procurado pelas vítimas de minhas insinuações sutis, que me não deixam em paz, e, enquanto isto ocorre, outras entidades me buscam, formulando ordens e pro­postas referentes a ações indignas que não posso aceitar. Compreendi que me achava em ligação, desde a existência terrestre, com enorme quadrilha de Espíritos perversos e galhofeiros que me toma­vam por aparelho invigilante de suas manifesta­ções indesejáveis. No fundo, eu mantinha por mim mesmo, no próprio espírito, suficiente material de leviandade e malícia, que eles exploraram larga­mente, adicionando aos meus erros os erros maiores que intentariam debalde praticar, sem meu con­curso ativo. Acontece, porém, que abrindo meus olhos à verdade, na esfera em que hoje respiramos, em vão busco adaptar-me a processos mais nobres de vida. Quando não sou atribulado por mulheres e homens que se afirmam prejudicados pelas ideias que lhes infundi, na romagem carnal, certas formas estranhas me apoquentam o mundo interior, como se vivessem incrustadas à minha própria imagina­ção. Assemelham-se a personalidades autônomas, se bem que sejam visíveis tão somente aos meus olhos. Falam, gesticulam, acusam-me e riem-se de mim.

Reconheço-as sem dificuldade. São imagens vivas de tudo o que meu pensamento e minha mão de escritor criaram para anestesiar a dignidade de meus semelhantes. Investem contra mim, apupam-me e vergastam-me o brio, como se fôssem filhos rebelados contra um pai criminoso.

Tenho vivido ao léu, qual alienado mental que ninguém com­preende! Como entender, porém, os pesadelos que me possuem? Somos o domicílio vivo dos pensa­mentos que geramos ou as nossas idéias são pontos de apoio e manifestação dos Espíritos bons ou maus que sintonizam conosco?

Havia nos ouvintes significativa expectação, não obstante a calma reinante.

O infeliz deixou de falar, titubeante. Demons­trava-se atormentado por energias estranhas ao próprio campo íntimo, apalermado e trêmulo à nos­sa vista. Fitou em mim os olhos esgazeados de es­quisito terror e, correndo aos meus braços, bradou:

— Ei-lo! ei-lo que chega por dentro de mim... É uma das minhas personagens na literatura fescenina! Ai de mim! acusa-me! Gargalha irônica e tem as mãos crispadas! Vai enforcar-me!...

Alçando a destra à garganta, denunciava, aflito:

— Serei assassinado! Socorro! socorro!...

Os demais companheiros perturbados e sofredores, ali presentes, alarmaram-se, desditosos.

Houve quem tentasse fugir, mas, com uma fra­se apenas, sustei o tumulto que se iniciava.

O pobre beletrista desencarnado contorcia-se em meus braços, sem que eu pudesse socorrer-lhe a mente transviada e ferida.

Cautelosamente, enviei um emissário a Gúbio, que compareceu, em alguns segundos.

Examinou o caso e pediu a presença de Leôncio, o ex-hipnotizador de Margarida. À frente do recém-chegado, indicou-lhe o doente em crise e falou peremptório, mas bondoso:

— Opera, aliviando.

— Eu? eu? — falou o convertido, semi-apaler­mado — merecerei a graça de transmitir alívio?.

Gúbio, no entanto, obtemperou, sem hesitar:

— Serviço construtivo e atividade destrutiva constituem problema de direção. A corrente líquida, devastadora, que derruba e mata, pode sustentar uma usina de força edificante. Em verdade, meu amigo, todos somos devedores, enquanto nos situa­mos nas linhas do mal. É imperioso reconhecer, contudo, que o bem é a nossa porta redentora. O maior criminoso pode abreviar longos anos de pena, entregando-se ao resgate próprio, através do ser­viço benéfico aos semelhantes.

Dissipando-lhe as dúvidas, acentuou com in­flexão de ternura:

— Começa hoje, aqui e agora, com o Cristo. Em tua determinação de ajudar, esconde-se a so­lução do segredo da felicidade própria.

Leôncio não mais vacilou.

Magnetizou o enfermo dementado que, poucos minutos depois, silenciou, em profundo repouso.

Desde esse instante, o ex-perseguidor não mais me abandonou nas experiências do dia, desempe­nhando as funções de excelente companheiro.

A assembléia, porém, crescia de hora a hora. Entidades de boa intenção buscavam-nos se­quiosas de paz e esclarecimento, mas, francamente, doía-me observar tanta ignorância, além da morte do corpo.

Na maior parte dos presentes não surgia o mais leve traço de compreensão da espiritualidade.

Raciocínios e sentimentos jaziam presos ao chão terrestre, vinculados a interesses e paixões, angús­tias e desencantos.

E nosso orientador fora categórico, nas últimas informações que transmitira. A noite próxima assi­nalar-nos-ia o término da permanência junto ao lar de Margarida, e cabia-nos preparar quantos nos buscavam, famintos de conhecimento santificante, para os serviços de oração que ele pretendia reali­zar. Não convinha comparecessem desprevenidos de avisos salutares e oportunos, acerca das obrigações e esperanças que lhes competiam desenvolver.

Em razão disso, interferi nas conversações, dis­seminando os esclarecimentos de que podia dispor.

Ao entardecer, a conformação e o contenta­mento reinavam em todos os rostos. Nosso Instrutor prometera conduzir os companheiros de boa vontade a esfera mais elevada, garantindo-lhes a passagem para a condição superior, e doce júbilo transparecia de todos os olhares.

Na exaltação da fé e confiança que nos domi­navam, simpática senhora pediu-me permissão para cantar um hino evangélico, ao que anuí, prazeroso, e era de ver a beleza da melodia desferida em notas de maravilhoso encantamento.

Alegre e reconfortado pela expressão do ser­viço que nos fora conferido, tinha meus olhos nublados de pranto, quando, aos últimos versos do cântico de esperança, jovem dama, de triste fisio­nomia, avançou para mim e disse, em voz súplice:

— Meu amigo, de hoje em diante adotarei novo rumo. Sinto, neste cenáculo de fraternidade, que o mal nos afundará invariàvelmente nas trevas.

Fixou os olhos lacrimosos nos meus e rogou, depois de comovente intervalo:

— Promete-me, porém, a bênção do olvido na “esfera do recomeço”! (1) Fui mãe de dois filhi­nhos, tão belos e tão puros como duas estrelas, mas a morte me arrebatou muito cedo do lar.

Mas não foi a morte o único algoz que me feriu, desa­piedado... Meu marido, em seis meses, esqueceu as promessas de muitos anos e entregou-me os dois anjos à madrasta sem entranhas, que cruelmente os amesquinha... Há vinte meses luto contra ela, to­mada de incoercível revolta; todavia, estou ente­diada do ódio que me constringe o coração! Preciso renovar-me para o bem, a fim de ser mais útil. Entretanto, meu amigo, tenho sede de esquecimen­to. Ajuda-me por piedade! Prende-me em algum lugar, onde minhas recordações amargas possam tranqüilamente morrer. Não me deixes, por mais tempo, entregue aos caprichos que me arrastam. Minha inclinação ao bem é insignificante réstia de luz, no seio da noite do mal que me envolve. Com­padece-te e ajuda-me!

Não sei amar, ainda, sem o ciúme violento e aviltante! Entretanto, não ignoro que o Mestre Divino se entregou à cruz, em extrema

(1) Nos círculos mais próximos da experiência hu­mana, “esfera do recomeço” significa reencarnação. — Nota do autor espiritual.

renúncia! não permitas que as minhas elevadas aspirações desta hora venham a perecer!

As rogativas e lágrimas daquela mulher acor­daram-me a lembrança viva do próprio passado.

Eu também sofrera intensivamente para des­vencilhar-me dos laços inferiores da carne. Sen­sibilizado, nela enxerguei uma irmã pelo coração e que me cumpria esclarecer e amparar.

Abracei-a, comovido, como se o fizesse a uma filha, chorando por minha vez. E refletindo nas dificuldades de quantos empreendem a reveladora viagem da morte, sem bases de verdadeiro amor e de legítimo entendimento nos corações que perma­necem à retaguarda, exclamei:

— Sim, farei tudo quanto estiver em minhas forças para auxiliar-te. Fixa-te em Jesus e doce esquecimento do perturbado campo terrestre te balsamizará o espírito, preparando-te para o vôo às torres celestes. Serei teu amigo e desvelado irmão.

Ela abraçou-me, confiante, como a criancinha quando se sente segura e feliz.


18

Palavras de benfeitora

A reunião noturna guardava-nos surpreendente alegria.

Sob a doce claridade lunar, Gúbio assumiu a direção dos trabalhos e congregou-nos em largo circulo.

Era, efetivamente, nos menores gestos, pre­cioso guia a conduzir-nos aos montes de elevação mental.

Recomendou-nos o esquecimento dos velhos erros e aconselhou-nos atitude interior de sublimada esperança, emoldurada em otimismo reno­vador, a fim de que as nossas energias mais nobres fôssem ali exteriorizadas. Esclareceu que um caso de socorro, quando orientado nos princípios evan­gélicos, qual sucedia no problema de Margarida, ésempre suscetível de comunicar alívio e iluminação a muita gente, elucidando, ainda, que ali nos en­contrávamos para receber a bênção do Plano Supe­rior, mas, para isso, tornava-se imperioso guardar inequívoca posição de superioridade moral, porque o pensamento, em reunião qual aquela, punha em jogo forças individuais de suma importância no êxito ou no fracasso do tentame.

De todas as fisionomias transbordavam o con­tentamento e a confiança, quando o nosso orientador, erguendo a voz no cenáculo de fraternidade, rogou humilde e comovente:

— Senhor Jesus, digna-te abençoar-nos, dis­cípulos teus, sequiosos das águas vivas do Reino Celeste!

Aqui nos congregamos, aprendizes de boa von­tade, à espera de tuas santificadas determinações.

Sabemos que nunca nos impediste o acesso aos celeiros da graça divina e não ignoramos que a tua luz, quanto a do Sol, cai sobre santos e pecadores, justos e injustos...

Mas nós, Senhor, nos achamos atrofiados pela própria imprevidência.

Te­mos o peito ressecado pelo egoísmo e os pés con­gelados na indiferença, desconhecendo o próprio rumo.

Todavia, Mestre, mais que a surdez que nos toma os ouvidos e mais que a cegueira que nos absorve o olhar, padecemos, por desdita nossa, de extrema petrificação na vaidade e no orgulho que, através de muitos séculos, elegemos por nos­sos condutores nos despenhadeiros da sombra e da morte; mas confiamos em Ti, cuja influência san­tificante regenera e salva sempre.

Poderoso Amigo, tu que abres o seio da Terra pela vontade do Supremo Pai, usando a lava com­burente, liberta-nos o espírito dos velhos cárceres do «eu”, ainda que para isso sejamos compelidos a passar pelo vulcão do sofrimento!

Não nos relegues aos precipícios do passado.

Descerra-nos o futuro e inclina-nos a alma à atmosfera da bondade e da renúncia.

Dentro da extensa noite que improvisamos para nós mesmos, pelo abuso dos benefícios que nos emprestaste, possuímos tão sômente a lanterna bru­xuleante da boa vontade, que a ventania das pai­xões pode apagar de um momento para outro.

Ó Senhor! livra-nos do mal que amontoamos no santuário de nossa própria alma!

Abre-nos, por piedade, o caminho salvador que nos laça dignos de tua com paixão divina.

Revela-nos tua vontade soberana e misericordiosa, a fim de que, executan­do-a, possamos alcançar, um dia, a glória da res­surreição verdadeira.

Distanciados, agora, do corpo de carne, não nos deixes cadaverizados no egoísmo e na discórdia.

Envia-nos, magnânimo, os mensageiros de tua bondade infinita, para que possamos abandonar o sepulcro de nossas antigas ilusões!

Nesse momento, as lágrimas serenas do orien­tador, em prece, receberam resposta celestial, por­que verdadeira chuva de raios diamantinos come­çou a jorrar do Alto sobre ele, como se força mis­teriosa e invisível ali houvesse libertado divina torrente de claridade em nosso favor.

Calara-se-lhe a voz, mas o quadro sublime arrancava-nos pranto de emotividade indefinível.

Não havia um só dos circunstantes sem o toque visível, no rosto, daquele êxtase bendito que nos assomava, de assalto, ao coração.

O Instrutor parecia vacilante, embora o halo radioso que lhe cobria gloriosamente a cabeça ve­neranda.

Chamou-me num sopro e informou:

— André, dirige os trabalhos da reunião, en­quanto devo fornecer recursos à materialização de nossa benfeitora Matilde. Vejo-a ao nosso lado, esclarecendo haver chegado a noite longamente esperada por seu coração materno. Antes do re­encontro com Gregório, em companhia de bem-aventuradas entidades que a assistem, pretende ela visitar-nos, de maneira tangível, encorajando quantos aqui hoje se candidatam ao serviço pre­paratório de ingresso em circulos superiores.

Tremi, perante a ordem, mas não hesitei.

Tomei-lhe o lugar, sem detença, enquanto o sábio mentor se recolhia a dois passos de nós, em profunda meditação.

Reparamos, em silêncio, que luz brilhante e doce passou a se lhe irradiar do peito, do semblante e das mãos, em ondas sucessivas, semelhando-se a matéria estelar, tenuíssima, porque as irradiações pairavam em torno, como que formando singulares paradas nos movimentos que lhe eram característi­cos. Em breves instantes, aquela massa suave e luminescente adquiria contornos definidos, dando-nos a ideia de que manipuladores invisíveis lhe infundiam plena vida humana.

Mais alguns instantes e Matilde surgiu diante de nós, venerável e bela.

O fenômeno da materialização de uma entidade sublimada ali se fizera prodigioso aos nossos olhos, em processo quase análogo ao que se verifica nos círculos carnais.

Ante a benfeitora, diversas mulheres presen­tes prosternaram-Se, dominadas de incoercível emo­ção, atitude natural que não nos surpreendeu, por­que, efetivamente, nos sentíamos em contacto direto com um anjo glorioso, em forma de mulher.

A abnegada protetora endereçou à assembleia um gesto de bênção e falou em voz pausada e emo­cionante, depois de ligeira saudação:

— Meus amigos, todos aguardais a hora feliz de abençoado retorno à “esfera do recomeço’; en­tretanto, a dádiva do vaso de carne é inapreciável bênção divina.

Não busqueis a reencarnação tão sômente pela ânsia de olvido, nos sonhos do mundo que as ten­tações do campo inferior podem transformar em pesadelo.

A vida que conhecemos, até agora, é contínuo processo de aperfeiçoamento.

Não basta desejar. É imprescindível orientar o desejo na direção do Bem Infinito.

Fêz ligeira pausa e, talvez respondendo à argüição mental de muitos, prosseguiu:

— Não julgueis seja eu excepcional emissária do reino da luz. Sou humilde servidora, sem outro crédito perante o Eterno Doador que não seja o da boa vontade. Meus pés jazem ainda marcados pelo pretérito obscuro e meu coração ainda guar­da cicatrizes recentes e profundas de experiências amargosas, que os dias incessantes, até agora, não conseguiram apagar.

Não me confirais, portanto, nomes e títulos que não possuo. Sou simplesmente vossa irmã de luta, interessada em acordar-vos para a sublimi­dade do futuro.

Nosso coração é um templo que o Senhor edi­ficou, a fim de habitar conosco para sempre.

Gloriosas sementes de divindade esperam-nos a harmonia e o ajustamento interiores para desa­brocharem, dentro de nós mesmos, arrebatando-nos às esferas resplandecentes.

A aquisição das virtudes iluminativas, no en­tanto, não constitui serviço instantâneo da alma, suscetível de efetuar-se de momento para outro.

Somos, cada qual de nós, um ímã de elevada potência ou um centro de vida inteligente, atraindo forças que se harmonizam com as nossas e delas constituindo nosso domicílio espiritual. A criatura, encarnada ou desencarnada, onde estiver, respira entre os raios de vida superior ou inferior que emi­te, ao redor dos próprios passos, tal qual a aranha que se confunde nos fios escuros que produz ou da andorinha que corta os altos céus com as próprias asas. Todos nós exteriorizamos energias, com as quais nos revestimos, e que nos definem muito mais que as palavras.

De que vos valeria o retorno à oficina da carne, sem conhecimento das obrigações que nos compe­tem, ante a Justiça Divina? que nos adiantaria o temporário esquecimento do passado, sem nos inte­grarmos na responsabilidade, a maior força capaz de nos socorrer nos círculos de matéria densa e que se traduz em tendência nobre a persistir co­nosco?

A volta à vestimenta física é uma bênção que poderemos conseguir à custa de generosas intercessões, quando nos faleçam méritos para obtê-la, no instante oportuno, por nós mesmos, tanto quanto é possível conseguir trabalho digno na Esfera da Crosta, movimentando amigos que nos conduzam aos objetivos disputados; no entanto, qual ocorre a muitos encarnados que se localizam em respeitá­veis quadros de serviço, tão só para usarem direi­tos que nada fizeram pelos merecer, com flagrante abuso das leis que nos regem as ações, muitas almas procuram o santuário da carne, formulando precipitadas promessas, e nele penetram agravando os próprios débitos.

Tímidas, levianas ou inconseqüentes, aproveitam o estágio bendito na Região da Neblina (1), para repetirem as mesmas faltas de outra época, com absoluta perda do tempo, que é patrimônio do Senhor.

Nesse momento, dentro de breve intervalo que imprimiu à alocução edificante e piedosa, Matilde estendeu-nos as mãos que despediam raios de in­tensa luz e exclamou, maternal:

— Rogais o regresso à sombra protetora da carne, no propósito de desfazer os sinais desagra­dáveis que vos marcam a veste espiritual. Contudo, já armazenastes suficiente força para esquecer os males que vos foram causados na Crosta da Terra? reconheceis os vossos erros, a ponto de aceitar a necessária retificação? fortalecestes o ânimo, a fim de examinar as necessidades que vos são peculia­res, sem aflições alucinatórias? aprendestes a servir com o Cordeiro Divino, até ao sacrifício pessoal na cruz da incompreensão humana, anulando na pró­pria alma as zonas viciadas de sintonia com os poderes das trevas? já auxiliastes os companheiros de caminho evolutivo e salvador com a intensidade e a eficiência que vos justifiquem a rogativa de colaboração intercessora? que boas obras já efe­tuastes a fim de rogardes novos recursos do Céu? com quem contais para vencer nas experiências porvindouras? Acreditais, porventura, que o lavra­dor recolherá sem plantar? armazenastes bastante

(1) “Região de Neblina” é também sinônimo de Esfera Carnal. — Nota do autor espiritual.

serenidade e entendimento no coração, de modo a não vos intoxicardes amanhã, no plano físico, sob o bombardeio sutil dos raios pardos da cólera, da inveja ou do ciúme nefasto? permaneceis conven­cidos de que ninguém se aquecerá ao Sol Divino, sem abrir o próprio coração às correntes da Luz Eterna? ignorais, acaso, que é preciso igualmente trabalhar para que se mereça a bênção de um templo carnal na Terra? que amigos beneficiastes para pedir-lhes a ternura e o sacrifício da paternidade e da maternidade no mundo, em vosso favor?

Não vos iludais.

Somente as criaturas primitivas, nos círculos selvagens da natureza, conhecem, por agora, a se­mi-inconsciência do viver, por se abeirarem ainda dos reinos inferiores. Recebem a reencarnação quase ao jeito dos irracionais, que aperfeiçoam instintos para ingressarem, mais tarde, no santuário da razão.

Para nós, porém, senhores de vigorosa inteli­gência, que já respiramos em centenas de formas diversas e que já atravessamos vários climas evo­lutivos, ofendendo e sendo ofendidos, amando e odiando, acertando e errando, resgatando débitos e contraindo-os, a vida não pode resumir-se a mero sonho, como se a reencarnação constituísse simples processo de anestesia da alma.

É indispensável, pois, que nos refaçamos, apri­morando o tom vibratório de nossa consciência, alargando-a para o bem supremo e iluminando-a àclaridade renovadora do Divino Mestre.

A mente humana, honrando os patrimônios celestiais que lhe foram conferidos, não poderá vegetar, à feição do arbusto enfezado que nada produz de útil na economia do orbe, nem deve imitar o irracional que se localiza na retaguarda da inteli­gência incompleta.

Uma existência entre os homens, por mais hu­milde, para nós outros é acontecimento importante demais para que o apreciemos sem maior conside­ração. Todavia, sem abraçar a noção de respon­sabilidade individual, que nos deve marcar o esfor­ço de santificação, qualquer empresa dessa ordem é arriscada, porque em nosso aprendizado intensivo, na recapitulação, cada Espírito segue sozinho no círculo dos próprios pensamentos, sem que os com­panheiros de jornada, com raríssimas exceções, lhe conheçam as esperanças mais nobres e lhe parti­lhem as aspirações dignificadoras. Cada criatura encarnada permanece só, no reino de si mesma, e faz-se indispensável muita fé e suficiente coragem para marcharmos vitoriosamente, sob o invisível madeiro redentor que nos aperfeiçoa a vida, até ao Calvário da suprema ressurreição.

Nesse instante, Matilde fêz mais longa pausa na alocução com que nos enriquecia aquela hora de sabedoria e luz e acercou-se de Gúbio, prostrado e palidíssimo.

Afagou-o, bondosa, com palavras de agradeci­mento e, em seguida, como se desejasse quebrar a feição de solenidade que a sua presença nos impri­mira à reunião, dirigiu-se, com acento carinhoso, aos ouvintes, rogando-lhes que se pronunciassem acerca dos projetos acalentados para o futuro.

Vozes de gratidão elevaram-se, comovidas.

Um cavalheiro de olhos fulgurantes destacou-se e foi claro na consulta.

— Grande benfeitora — disse, gravemente —, fui duplamente homicida, na derradeira romagem terrestre. Respirei muitos anos no corpo carnal, como se fora a pessoa mais tranquila do mundo, não obstante trazer a consciência tisnada de remorso e as mãos enodoadas de sangue humano. Ludi­briei quantos me cercavam, através da máscara da hipocrisia. Atravessando os umbrais do túmulo, atormentado de acerbas reminiscênCiaS, supus que tremendas acusações me esperariam. Semelhante expectativa aliviava-me, de algum modo, porque o criminoso, perseguido pelo remorso, encontra verdadeiro socorro nas humilhações que o espezinham. Contudo, não encontrei senão o desprezo, com avil­tamento de mim próprio. Minhas vitimas distan­ciaram-se de mim, desculparam-me e esqueceram-me. Vejo-me, todavia, acicatado por forças punitivas que nunca poderei descrever com as minúcias desejáveis. Há um tribunal invisível em minha consciência e debalde procuro fugir aos sítios em que menoscabei as obrigações de respeito ao pró­ximo.

Abafando os soluços, rematou, comovente:

— Como iniciar o esforço de minha restau­ração?

Tão imensa tristeza perpassava naquela voz humilde, que nos sentíamos todos tocados nas fibras mais íntimas.

Matilde, contudo, respondeu, sem titubear:

— Outros irmãos, não longe de nós, supor­tando a carga das mesmas culpas, peregrinam, des­ditosos, entre o pesadelo e a aflição inomináveis. Abre teu coração para eles. Começarás ajudando-os a enxergar a senda regenerativa, alimentando-os com esperanças e ideais novos e atraindo-os ao trabalho de sublimação, pelo esforço, na constante aplicação do bem. Sofrer-lhes-ás as injúrias, os remoques, as incompreensões, mas descobrirás um meio de ampará-los com eficiência e brandura. Depois de semelhante sementeira, principiarás a recolher as bênçãos de paz e de luz, porqüanto, o Espírito que ensina com amor, embora delituoso e imperfeito, acaba aprendendo as mais difíceis li­ções da responsabilidade que adquire, transmitindo a outros revelações salvadoras que lhe não perten­cem. Realizado esse serviço nobilitante, retomarás, então, mais tarde, o corpo físico, recapitulando os ensinamentos que gravaste na mente interessada em renovar-se. Reencontrarás, daí em diante, mil motivos para a cólera violenta; e a tentação de eliminar adversários, prostrando-os a golpe mortal, visitar-te-á com frequência o coração. Se souberes, porém, e, sobretudo, se quiseres vencer os próprios impulsos destrutivos, quando te encontrares em plena e abençoada luta na “esfera do recomeço”, plantando amor e paz, luz e aperfeiçoamento, ao redor dos teus pés, então terás demonstrado apro­veitamento real e efetivo das dádivas recebidas e revelar-te-ás preparado para maior ascensão.

Antes que a emissária pudesse imprimir novo brilho ao ensinamento, chorosa mulher recorreu-lhe ao conselho, exclamando, humilhada:

— Grande mensageira do bem, confesso aqui minhas faltas diante de todos e peço-te roteiro sal­vador. Enquanto encarnada, nunca fui punida pelos meus excessos no abuso dos sentidos. Possuí um lar que não honrei, um esposo que depressa esqueci e filhos que afastei, deliberadamente, de meu con­vívio, para gozar, à saciedade, os prazeres que a mocidade me oferecia. Meu transviamento moral não foi conhecido na comunidade em que vivi, mas a morte apodreceu a máscara que me ocultava aos alheios olhos e passei a experimentar horrível pa­vor de mim mesma. Que farei por retornar à paz? como traduzir o arrependimento que me enche a alma de infinita amargura?

Matilde fitou-a, compungidamente, e observou:

— Milhares de seres, despojados da roupagem fisiológica, estertoram em zona próxima, sob o güante cruel das paixões a que se algemaram, in­vigilantes. Poderás encetar o reajustamento de tuas energias, dedicando-te, nos círculos próximos, ao levantamento dos sofredores de boa vontade.

Com esquecimento de ti mesma, arrebatarás muitos Espíritos, cadaverizados no abuso, aos pântanos de dor em que se debatem. Plantarás na mente deles novos princípios e novas luzes, consolando-os e transformando-os, a caminho da harmonia divina, reconquistando, por tua vez, o direito de regresso ao campo bendito da carne. Reconduzida, então, àabençoada escola terrestre, receberás, talvez, a pro­va terrível da beleza física, a fim de que o contacto com as tentações da própria natureza inferior te retempere o aço do caráter, se conseguires manter fidelidade suprema ao amor santificante. Esta éa lei, minha filha! Para que nos reergamos com segurança, depois da queda ao precipício, é im­prescindível auxiliar quantos se projetaram nele, consolidando, ante as dores alheias, a noção da responsabilidade que nos deve presidir às ações porvindouras, de modo que a reencarnação não se converta em novo mergulho no egoísmo. O único recurso de fugirmos definitivamente ao mal é o apoio constante no Bem Infinito.

A benfeitora imprimiu ligeira interrupção ao verbo generoso, espraiou o olhar na assembleia que a ouvia, expectante, e concluiu:

— E que nenhum de nós admita o acesso fácil aos tesouros eternos, tão só porque atualmente nos vejamos libertos das cadeias beneméritas do corpo de carne. O Senhor criou leis imperecíveis e per­feitas para que não alcancemos o Reino da Divina Luz, ao sabor do acaso, e Espírito algum trairá os imperativos sábios do esforço e do tempo! Quem pretende a colheita de felicidade no século vindouro, comece desde agora a sementeira de amor e paz.

Nesse momento, entregou-se Matilde a maior parada e, enquanto parecia meditar, em prece, de seu tórax iluminado nasciam, espontâneas e bri­lhantes, ondas sucessivas de maravilhosa luz.


19

Precioso entendimento

Certo, acreditando haver transmitido a nós outros os ensinamentos que podíamos receber, a nobre mensageira recomendou a Elói trouxesse Margarida àquele plenário amoroso, deixando perceber que pretendia consolidar-lhe o equilíbrio e fortalecer-lhe a resistência.

Transcorridos alguns minutos, a esposa de Ga­briel, que se convertera em objeto de nossas me­lhores atenções naqueles dias, desligada do envol­tório denso, compareceu no cenáculo.

Mostrava passo vacilante e estranho alheamen­to no olhar, revelando a semi-inconsciência em que se demorava.

Ao que me pareceu, a luz reinante não lhe afetou o olhar.

Caracterizava-se, naquela hora, pelos movimen­tos impulsivos, caminhando, em nosso meio, qual se fora sonâmbula vulgar.

Maquinalmente se asilou nos braços maternos que Matilde lhe oferecia e, tão depressa se acolheu no regaço da benfeitora que a envolvia em doce ternura, reagiu, favoravelmente, contemplan­do-nos, então, assustadiça. Parecia acordar, pouco a pouco...

A protetora, interessada em despertar-lhe al­guns centros importantes da vida mental começou a aplicar-lhe passes ao longo do cérebro, operações que não pude compreender tão bem quanto desejava. Reparei, contudo, que Matilde lhe aplicava recursos magnéticos sobre os condutores nervosos do órgão de manifestação do pensamento, tanto quanto ao longo de toda a região do simpático, esclarecendo-me o Instrutor, mais tarde, que o es­tado natural da alma encarnada pode ser compa­rado, em maior ou menor grau, à hipnose profunda ou à anestesia temporária, a que desce a mente da criatura através de vibrações mais lentas, peculia­res aos planos inferiores, para fins de evolução, aprimoramento e redenção, no espaço e no tempo.

Fenômenos de metabolismo, na organização pe­rispiritica, fizeram-se patentes à nossa observação, porque Margarida expelia, através do tórax e das mãos, fluidos cinzento-escuros, em forma de vapor tenuíssimo, a desfazer-se no vasto oceano de oxi­gênio comum. Logo após semelhante “operação de limpeza”, as zonas do sistema endocrinico emitiam radiações diamantinas, figurando-se uma constela­ção de caprichosos contornos a brilhar nas sombras do perispírito, até ali opaco e vulgar.

Do peito de Matilde ondas luminosas partiam ininterruptas e tudo nos fazia crer que a tutelada de Gúbio se achava, naquela hora, num banho autêntico de essências divinas.

A certa altura do singular processo de desper­tamento, a jovem senhora abriu desmedidamente os olhos, qual criança espantada, e fixou-nos com ex­pressão de assombro, ensaiando movimentos de recuo e pavor. Mas, em se voltando para o sem­blante doce e iluminado da benfeitora, aquietou-se, brandamente, como que magnetizada por indefiní­vel amor.

Matilde osculou-a, enternecida, e, ao contacto daqueles lábios sublimes, Margarida, mostrando-se tocada nos recessos do ser, abraçou-lhe o busto, evidenciando ânsia suprema de integração espi­ritual.

Parecendo desvairada de repentino júbilo, bra­dou, em lágrimas comoventes:

— Mãe! Querida mãezinha!

— Sim, minha filha, sou eu — disse a inter-locutora, afagando-a com extremado afeto —; o amor jamais desaparece! A união das almas vence o tempo e a morte.

— Porque me abandonaste? — inquiriu a es­posa de Gabriel, colando-se-lhe ao coração, num transporte de inexprimível ventura.

— Nunca te esqueci — elucidou a benfeitora, acolhendo-a com mais intensa ternura. — O pais da “neblina carnal” muitas vezes parece distanciar-nos uns dos outros; entretanto, sombra alguma conseguirá separar-nos. Nossas aspirações e espe­ranças se confundem, quais pontos de luz, nas tre­vas da separação, assim como as estrelas se asse­melham a balizas brilhantes no nevoeiro noturno, recordando-nos o infinito e a eternidade.

Ao som caricioso daquelas palavras, a ex-obsi­diada parecia acordar cada vez mais largamente em nosso plano.

De olhos ansiosos, fixos na protetora, como que magnetizada por incomensurável afeto, ponde­rou, entre lágrimas:

— Mãezinha querida, estou cansada e infeliz!

— Quando a boa luta apenas começa? — per­guntou Matilde, sorrindo.

— Sinto-me cercada de inimigos sem entra­nhas. Devo ser atormentada dia e noite. Noto invencível antagonismo entre meus sentimentos e a realidade humana, O próprio matrimônio, em que eu depositava os mais caros sonhos, não me foi senão escuro livro de desenganos cruéis. Trago meu coração extenuado e oprimido. Frustração e ruína espiritual seguem-me de perto... Por isto, sou um fardo pesado ao esposo dedicado e digno de melhor sorte...

Soluços violentos impediram-na de continuar.

A veneranda emissária enxugou-me o pranto e falou, bondosa:

— Margarida, viver no corpo terrestre, entendendo os deveres divinos que nos cabem, não é tão fácil, ante a glória infinita que em companhia dele podemos recolher. Todos possuimos culposo preté­rito a redimir. É imperioso reconhecer, todavia, que, se a experiência humana pode ser doloroso curso de renunciação pessoal, é também abençoada escola em que o Espírito de boa vontade pode al­cançar culminâncias. Para isto, no entanto, é in­dispensável se abra o coração ao clima interior da bondade e do entendimento. Somos diamantes bru­tos, revestidos pelo duro cascalho de nossas mile­nárias imperfeições, localizados pela magnanimidade do Senhor na ourivesaria da Terra. A dor, o obstá­culo e o conflito são bem-aventuradas ferramentas de melhoria, funcionando em nosso favor. Que dizer da pedra preciosa que fugisse às mãos do lapidário, do barro que repelisse a influência do oleiro? Modifica as mais íntimas disposições, com referência aos adversários. O inimigo nem sempre é uma consciência agindo deliberadamente no mal. Na maioria das vezes, atende à incompreensão quanto qualquer de nós; procede em determinada linha de pensamento, porque se acredita em roteiro infalível aos próprios olhos, nos lances do trabalho a que se empenhou nos círculos da vida; enfrenta, qual ocorre a nós mesmos, problemas de visão que só o tempo, aliado ao esforço pessoal na execução do bem, conseguirá decidir. O batráquio e a ave caracterizam-se por impulsos diferentes, não obs­tante filhos do mesmo mundo. É necessário, Mar­garida, sabermos utilizar o inimigo, nele situando nossa lição benfeitora. A rigor, em vista da nossa posição de inferioridade, seremos adversários na­turais da obra dos Anjos, na esfera menos elevada que atravessamos presentemente; todavia, as Po­tências Angélicas não nos punem a incapacidade temporária de compreensão ante os serviços divinos que lhes cabem na economia do Universo. Ao invés de condenar-nos, identificam-nos as deficiências compadecidamente e estendem-nos braços fraternos, através de mil recursos invisíveis e indiretos, a fim de que aprendamos a escalar o monte da sublima­ção, em marcha para os cumes celestes.

Verificando-se pequena pausa nas observações maternais, a jovem senhora obtemperou, enlevada:

— Amada Mãezinha! Pudessem meus ouvidos

guardar sempre a doce música de tuas palavras! Tristemente, antevejo o torvelinho das dificulda­des terrenas a que devo retornar. Tudo agora é con­solação e esperança; todavia, amanhã serei novamente prisioneira no cárcere físico e caminharei de memória anestesiada, em conflito incessante com os monstros que me assediam!

— Este, filha — acrescentou Matilde, afetuo­sa —, é o imperativo da tarefa que te compete realizar. Entretanto, não percas os tesouros do tempo em considerações inúteis. Enche as tuas horas de trabalho salutar com a possível harmonia, fonte de toda a beleza. A inteligência que, de algum modo, já se evadiu das limitações da animalidade, encontra-se no corpo de carne, à maneira do lidador num estádio de provas benfeitoras. Lá dentro, na arena das possibilidades sublimes que a região do nevoeiro oferece, há quem se encaminhe para cima e há quem se dirija para baixo. Não fujas ao óbice valioso na corrida de aperfeiçoamento, nem sorvas o mentiroso elixir da ilusão, apaixonadamente usa­do por todos os que se deixaram vencer pelas ten­tações do desânimo, incapazes de aceitar o desafio que o mundo lhes endereça. A vida, para toda alma que triunfa no carreiro áspero, é serviço, movi­mento, ascensão. E à rajada de luta que te condu­zirá ao píncaro luminoso, não te suponhas sôzinha na jornada áspera. Outras, aos milhares, suam e sangram, em silêncio. Passam na cena do mundo, sem o afeto de um esposo e sem a bênção de um lar. Não conhecem, como tu, a dádiva de um corpo normal, nem podem guardar os mínimos sonhos que arregimentas no coração feminil. São homens esquecidos e mulheres desamparadas que passam despercebidos e humilhados, do berço ao túmulo. Respiram em regime de tortura moral e seguem, estrada afora, desprotegidos e dilacerados, aos olhos do mundo, abafando os próprios soluços que, se ouvidos, lhes acarretariam implacável punição. En­tretanto, apesar do espesso véu de lágrimas que lhes dificulta a marcha, continuam caminhando im­pávidos, contando com um amanhã, cada vez mais impreciso e distante, que parece ocultar-se, indefi­nido, nos horizontes sem fim.

Margarida, que assinalava enternecidamente a argumentação, rogou, súplice:

— Mãezinha querida, ensina-me a continuar. Desejo honrar a bendita oportunidade que recebi!

— Não procures ser atendida em todos os teus desejos — falou a benfeitora, suavemente —, mas procura servir, fraternalmente, a quantos te recla­mem arrimo e braço forte.

Ajuda, antes de procurares auxílio.

Compreende, sem exigir compreensão imediata.

Desculpa os outros, sem desculpar a ti mesma.

Ampara, sem a intenção de ser amparada.

Dá, sem o propósito de receber.

Não persigas o respeito humano que te faça aparecer melhor que és, mas busca, em todo tempo e lugar, a bênção divina na aprovação da própria consciência.

Não procures destacada posição, diante dos outros; antes de tudo, aperfeiçoa os teus sentimentos, cada vez mais, sem propaganda de tuas virtudes vacilantes e problemáticas.

Age corretamente e esquece as frases vazias ou venenosas da maledicência contumaz.

Em te socorrendo das diretrizes alheias, des­confia das palavras que te lisonjeiem a fantasiosa superioridade pessoal ou que te inclinem à dureza de coração.

Diante da fartura ou da escassez, recorda o serviço que o Senhor te convocou a realizar e pro­duze o bem em seu nome, onde estiveres.

Lembra-te de que a experiência na carne é de­masiadamente breve e que a tua cabeça deve per­manecer tão cheia de ideais santificantes, quanto as mãos repletas de trabalho salutar.

Para que atendas, porém, a semelhante pro­grama, é imprescindível abras o coração ao sol renovador do Sumo Bem.

De alma cerrada ao interesse pela felicidade do próximo, jamais encontrarás a própria felici­dade.

A alegria que improvisares, em torno dos pés alheios, te fará mais rica de júbilo.

Na paz que semeares, encontrarás a colheita da paz que desejas.

Estes, são princípios da vida radiante.

No insulamento, ninguém recolherá a suprema alegria.

Para a sabedoria divina, tão infortunado é o pastor que perdeu o rebanho, quanto a ovelha que perdeu o pastor. A desistência de ajudar é tão escura quanto o relaxamento de extraviar-se.

O egoísmo conseguirá criar um oásis, mas nunca edificará um continente.

É indispensável, Margarida, aprenderes a sair de ti mesma, auscultando a necessidade e a dor daqueles que te cercam.

Nesse ínterim, calou-se a voz da protetora e, sentindo-se banhada na infinita luz daqueles mo­mentos inesquecíveis, a esposa de Gabriel indagou, embriagada de ventura:

— Ó Deus! Pai Misericordioso, a que devo atribuir a graça inolvidável desta hora?

Matilde, pretendendo talvez imprimir ampla familiaridade à cena a que assistíamos, levantou-se, abraçada à filha espiritual, e, caminhando ao nos­so encontro, apresentou-nos a ela, por particulares amigos.

Confraternizadora palestra estabeleceu-se, ex­tinguindo-se a onda de lágrimas que nos visitava, indistintamente, ante a conversação comovedora e inesquecível.

Chegou, entretanto, o momento em que a ben­feitora se revelou interessada em despedir-se.

Antes, porém, cravou o olhar muito lúcido na ex-obsidiada e falou-lhe, resoluta:

— Margarida, agora que reténs, tanto quanto possível, regular consciência de ti mesma em nossa esfera de ação, ouve o apelo que te endereçamos. Não suponhas que te visito pelo simples prazer de consolar-te, o que seria talvez induzir-te ao caminho da despreocupação irresponsável que nunca nos dirige à verdadeira paz. A finalidade divina há de ser, em tudo, a alma de nossa ação. O lavrador que amanha o solo e o socorre com irrigação con­fortadora, algo espera da sementeira que lhe re­clama o esforço diário. O amparo do Alto, direto ou indireto, reservado ou ostensivo, não é apenas mera exibição de poder celestial. Os moradores dos círculos mais elevados não se arriscariam a descer, sem objetivos de ordem superior, ao domicílio da mente encarnada, assim como os artistas da inteli­gência não se animariam a movimentar espetáculos de cultura intelectual, sem fins educativos, junto aos irmãos de raciocínios e sentimentos ainda rudimen­tares ou inferiores. O tempo é valioso, minha filha, e não podemos menoscabá-lo, sem grave prejuízo para nós mesmos.

Ante a expressão de surpresa que a tutelada de Gúbio estampava no semblante inquieto, Matilde continuou:

— Em breves anos, voltarei também ao círculo de lutas em que te debates.

— Tu? — gritou Margarida, apalermada, ante a perspectiva de renascimento carnal para o ser iluminado que se mantinha à nossa vista — porque te seria imposta semelhante pena?

— Não te guardes em tamanha incompreensão da lei do trabalho — ajuntou a mensageira, sor­rindo —; a reencarnação nem sempre é simples processo regenerativo, embora, na maioria das ve­zes, constitua recurso corretivo de Espíritos reni­tentes na desordem e no crime. A Crosta da Terra é comparável a imenso mar onde a alma operosa encontra valores eternos aceitando os imperativos de serviço que a Bondade Divina nos oferece. Além disso, todos temos doces laços do coração, que se demoram, por muitos séculos, retidos ao fundo do abismo. É indispensável buscar as pérolas per­didas para que o paraíso não permaneça vazio de beleza ao nosso olhar. Depois de Deus, o amor éa força gloriosa que alimenta a vida e move os mundos.

A benfeitora fitou a jovem senhora, enlevada, fêz pequena pausa e aduziu:

— Em razão disto, espero não desconheças a santidade do ministério maternal, na orientação dos Espíritos renascentes. Nossas melhores possibili­dades se perdem na “esfera do recomeço”, por falta de braços decididos e conscientes que nos guiem através dos labirintos do mundo.

Carinho, quase sempre, não falta no santuário familiar, onde a alma se habilita à recapitulação de valiosa aven­tura; entretanto, a ternura absoluta é tão nociva quanto a absoluta aspereza. Não ignoras, filha amada, que a entidade mais enobrecida, em reto­mando o veículo de carne, é compelida a sofrer-lhe os regulamentos. As leis fisiológicas, que dominam na Crosta, não fazem exceção. Impõem-se sobre os justos com o mesmo rigor dentro do qual funcionam para os pecadores. O anjo que desça ao fundo da mina de carvão continuará naturalmente a ser um anjo na vida íntima; entretanto, não escapará ao clima deprimente do sub-solo. O esquecimento tem­porário me acompanhará, nos abafadores das célu­las físicas, mas o êxito desejável somente me feli­citará se eu puder contar com a tua orientação robusta e vigilante.

Bem sei que, depois, regressando por tua vez ao envoltório que te liga ao círculo comum da luta terrestre, olvidarás, igualmente, a nossa conversa­ção desta hora. No entanto, a saúde e a harmonia que te inundarão a estrada doravante, aliadas ao otimismo e à esperança, que persistirão em teu espírito por recordações indeléveis e vagas destes instantes divinos, não te deixarão esquecer de todo.

Defende o teu corpo, como quem preserva um recipiente sagrado para o serviço do Senhor e espe­ra-me em tempo breve.

Viveremos mais juntas, na peregrinação me­ritória.

Nos abençoados elos do sangue seremos mãe e filha, de maneira a aprendermos, mais intensa­mente, a ciência da fraternidade universal.

Realmente, Margarida, o meu retorno ser-te-ás acrifício doloroso ao corpo frágil e delicado; toda­via, ajuda-me na sementeira renovada para que eu te seja útil na colheita infalível.

Não me recebas, nos braços, por boneca mi­mosa e impassível. Adornos externos nunca trazem felicidade legítima ao coração, e, sim, o caráter edificado e cristalino, base segura de que se expan­de a boa consciência. A estufa pode alimentar as flores mais lindas da Terra, mas não produz os melhores frutos. A árvore benfeitora não prescin­dirá do carinho e da assistência constante do pomi­cultor. É imperioso reconhecer, porém, que sómen­te se fortalecerá sob a temperatura atormentadora da canícula, debaixo de aguaceiros salutares ou aos golpes da ventania forte. A luta e o atrito são bênçãos sublimes, através das quais realizamos a superação de nossos velhos obstáculos. É neces­sário não menosprezá-los, identificando neles o en­sejo bendito de elevação.

Compreende-me as necessidades para que eu te possa entender no momento justo. As conveniências humanas são respeitáveis, mas as conve­niências espirituais são divinas. Auxilia-me a conquistar equilíbrio nas primeiras, a fim de atender aos imperativos celestiais do espírito eterno.

Logo que me sintas nos braços, não me relegues à gar­ridice e à inutilidade, a pretexto de guardar-me em maternal proteção. Não é com enfeites exteriores que ajudaremos o vegetal precioso a crescer e fru­tificar, mas, sim, com o esforço perseverante da enxada, com a vigilância na defesa, com o adubo estimulante e com a poda benfeitora. Não me percas de vista, para que o amor e a gratidão a Deus perdurem para sempre em minha memória frágil. Socorre-me em tempo para que eu seja útil, no momento oportuno.

Edificados com a lição indireta que se nos administrava, reparamos que Margarida, em co­pioso pranto, prometia tudo quanto lhe era soli­citado.

A doce palestra interessava-nos a todos e, por nossa vontade, seria indefinidamente alongada no tempo; porém, Matilde agora revelava no olhar a preocupação de ausentar-se.

Dirigiu, ainda, brandas frases de reconforto àfilha querida, envolveu-a em operações magnéticas, reajustando-lhe os centros perispirítícos, carinho­samente, e rogou o auxílio de Elói para que a esposa de Gabriel regressasse ao envoltório carnal.

Despedindo-se em definitivo, a grande mentora acrescentou algumas recomendações de adeus.

— Margarida — disse, bondosa —, não te esqueças do reino de beleza que podes improvisar no santuário doméstico.

Foge, resoluta, dos perigosos fantasmas do ciúme e da discórdia. Aprende a renunciar, nas questões pequeninas, para recolheres com facilidade a luz que emana do sacrifício. Não comprometas, por bagatelas, o êxito espiritual que a experiência te pode oferecer. Estás livre dos males exteriores, mas ainda te não libertaste dos males próprios. Confia no Divino Poder e não desfaleças, ainda mesmo quando a tempestade te açoite as fibras mais íntimas do coração.

Mãe e filha permutaram um abraço cheio de indefinível ternura e, encaminhando-se para Gúbio, a este explicou Matilde, discreta, o trabalho que planejara para as horas seguintes, asseverando que nos esperaria em paisagem próxima.

Logo após, agradeceu-nos com extrema genti­leza, não nos oferecendo oportunidade de exprimir-lhe o reconhecimento e o júbilo que nos possuíam a alma.

Em seguida, ausentou-se, restituindo, natural­mente, ao nosso orientador as forças que lhe subtraira, em caráter temporário.

Gúbio, então, retomou as rédeas do trabalho, notificando que, exceção feita a quatro companhei­ros que montariam guarda fraterna junto ao lar de Gabriel, deveríamos partir todos, na direção dos círculos mais altos com escala em um dos “campos de saida” da esfera carnal.


20

Reencontro

A noite ia avançada, mas o nosso Instrutor, vagueando o olhar em torno, parecia consultar a paisagem externa, ensimesmado, pensativo...

Logo após, fitou, enternecido, a filha espiri­tual que passara a convalescer em brando e defendido repouso. Orou, longamente, junto dela, na câmara íntima e, em seguida, veio anunciar-nos o instante da partida.

Aves tornando ao ninho de esperança e de paz, deveríamos, agora, transportar conosco outros pás­saros de asas semimutiladas que a tormentadas paixões ameaçava. Todos os corações, ali socorri­dos, demandariam, junto de nós, outros campos de ação regenerativa e redentora.

Aquelas entidades sofredoras e amigas, ainda mesmo as que se conservavam nas mediações da loucura pelos desequilíbrios do sentimento a que se haviam confiado, tinham lágrimas de alegria e reconhecimento nos olhos. Em cada uma palpitava o anseio de retificação e de vida nova. Por isto mesmo, talvez, cravavam o olhar inquieto e jubi­loso em nosso orientador, como que a lhe devora­rem as palavras.

— Todos os companheiros incorporados à nos­sa missão destes dias — avisava Gúbio, paternal desde que se mantenham perseverantes no pro­pósito de auto-restauração, seguem ao nosso lado, com acesso aos círculos de trabalho condigno, onde estudantes do bem e da luz lhes acolherão, com simpatia, as aspirações de vida superior. Espero, contudo, que não aguardem milagres na esfera próxima. O trabalho de reajustamento próprio é artigo de lei irrevogável, em todos os ângulos do Universo. Ninguém suplique protecionismo a que não fêz jus, nem flores de mel às sementes amar­gas que semeou em outro tempo. Somos livros vivos de quanto pensamos e praticamos e os olhos cristalinos da Justiça Divina nos lêem, em toda parte. Se há um ministério humano, na Crosta da Terra, determinando sobre as vidas inferiores da gleba planetária, temos, em nossas linhas de ação, o ministério dos anjos, dominando em nossos cami­nhos evolutivos. Ninguém trai os princípios esta­belecidos. Possuímos agora o que ajuntamos no dia de ontem e possuiremos amanhã o que esteja­mos buscando no dia de hoje. E como emendar é sempre mais difícil que fazer, não podemos con­tar com o favoritismo, na obra laboriosa do apri­moramento individual, nem provocar solução pa­cífica e imediata para problemas que gastamos longos anos a entretecer - A prece ajuda, a espe­rança balsamiza, a fé sustenta, o entusiasmo revi­gora, o ideal ilumina, mas o esforço próprio na direção do bem é a alma da realização esperada. Em razão disso, ainda aqui, a bênção do minuto, a dádiva da hora e o tesouro das oportunidades de cada dia hão de ser convenientemente apro­veitados se pretendemos santificadora ascensão. Felicidade, paz, alegria, não se improvisam. Re­presentam conquistas da alma no serviço inces­sante de renovar-se para a execução dos Desígnios Divinos. Felizmente, desde agora estamos abri­gados no santuário da boa vontade e, ainda neste instante, cabe-nos não esquecer a promessa evan­gélica: “quem perseverar até ao fim, será salvo. A Graça Celestial, sem dúvida, é um sol perma­nente e sublime. Urge, porém, a criação de qualidades superiores em nós, para fixar-lhe os raios e recebê-los.

Doce intervalo mostrou-nos o júbilo reinante.

Salutar otimismo transbordava de todos os rostos.

Saldanha, de olhos fitos em nosso dirigente, confundia-nos pelo pranto de contrição purificadora, a correr-lhe, abundante, dos olhos.

Antes que o nosso Instrutor pudesse retomar o fio da palavra encorajadora e vigilante, algumas irmãs entoaram formoso hino de louvor à bondade do Cristo, com visível desassombro no olhar firme, dantes ansioso e dorido, enchendo-nos o coração de intraduzível bem-estar.

Raios de safirina luz derramaram-se profusa­mente sobre nós, enquanto as vozes harmoniosas e singelas se espalhavam, em derredor, tangendo-nos as fibras mais recônditas, nos recessos do ser.

Terminado o cântico melodioso e tocante que nos recordava os pensamentos sublimes de inolvi­dável Salmo de David (1), o Instrutor retomou a palavra e informou que, não obstante as santifi­cadas alegrias daquela hora, a batalha não estava finda.

Faltava-nos o epílogo, esclareceu com inflexão mais grave na voz.

Matilde antecipara-se, de modo a esperar-nos em região intermediária, em cujo clima vibracional lhe seria possível materializar-se, de novo, aos olhos de todos, realizando o sonhado reencontro espiri­tual com o filho de outras eras que, a breve tempo, nos procuraria na condição de vingador.

Evidenciando manifesta preocupação no olhar muito lúcido, o nosso orientador prosseguiu escla­recendo que Gregório, ciente das novidades havidas no drama de Margarida e informado acerca da re­novação de muitos companheiros e colaboradores

(1) Salmo 90. — Nota do autor espiritual.

dele, agora francamente inclinados ao bem, ente­diados da ignorância e do ódio, da perversidade e da insensatez, se revoltara contra ele Gúbio, dis­pondo-se a buscá-lo para um ajuste de que se julgava credor. Explicou, emocionado, que num duelo espiritual, como aquele a esboçar-se, esperava de todos nós o auxilio eficiente da prece e das emissões mentais de amor puro. Não deve­ríamos receber os doestos e insultos de Gregório por ofensas pessoais, nem levar suas atitudes à conta de maldade ou grosseria. Competia-nos obser­var-lhe nos gestos de incompreensão a dor que se lhe cristalizara no Espírito oprimido e inconfor­mado, vendo-lhe nas palavras, não a maldade de­liberada, mas, sim, a eclosão de uma revolta doen­tia e infeliz que não poderia prejudicar e ferir senão a ele próprio. O pensamento é uma for­ça vigorosa, comandando os mínimos impulsos da alma e, se nos entregássemos à reação espiritual, armada de ódio ou desarmonia, pactuaríamos com a violência, impedindo, não só a manifestação pro­videncial de Matilde, a benfeitora, mas também a renovação de Gregório, que guardava a inteligên­cia centralizada no mal. Emissões de mágoa ou revide colocar-nos-iam em trabalho contraprodu­cente. As vibrações de amor fraternal, quais as que o Cristo nos legou, são as verdadeiras energias dissolventes da vingança, da perseguição, da indis­ciplina, da vaidade e do egoísmo que atormentam a experiência humana. Além disso, tornou o Instru­tor bondoso, cumpria-nos considerar que aquela mente transviada do trilho divino se caracteri­zava muito mais pela moléstia do orgulho ferido e impenitente, que pela perversidade. Gregório era tão sômente um infeliz, quanto nós mesmos em passado próximo ou remoto, acicatado por rebeliões e remorsos interiores a lhe desajustarem os senti­mentos. Merecia, por isso mesmo, nossa dedicação carinhosa e confortadora, ainda mesmo que nos visitasse com aparências de celerado ou de louco. Nossa conduta, aliás, nada apresentava de sur­preendente, em semelhante capítulo, porque não fora para ensinar-nos outras lições que o Cristo trabalhara em benefício de todos e padecera na cruz, sem ninguém.

Notificou-nos, ainda, que o sacerdote das som­bras se faria acompanhar, em sua vinda até nós, de muitos companheiros tão envenenados mental­mente quanto ele, e que, contra essa equipe de criaturas inimigas da luz, cabia-nos formar um todo de defesa harmônica, através da fraternidade legitima, da oração intercessora e do amor espi­ritual que se compadece e age em favor da restauração do bem.

Valendo-se da pausa que se impusera, natural, Saldanha perguntou ao nosso mentor se não devía­mos organizar pelo menos um movimento coorde­nado de repulsão enérgica, ao que o dirigente, sábio e amigo, respondeu, sorrindo:

— Saldanha, em companhia do Mestre que abraçamos, só há lugar para o trabalho sadio, com entendimento das lições de sacrifício e iluminação que nos deixou. Não acredites que um golpe possa desaparecer com outro golpe. Não se cura a ferida, aprofundando o sulco da carne em sangue. A cica­triz abençoada surge sempre à custa de enferma­gem, remédio ou retificação, com ascendentes de amor. Quem pretende o Reinado do Cristo entre­ga-se a Ele. Somos servos. A defesa, qualquer que seja, pertence ao Senhor.

O ex-perseguidor calou-se, humilde.

Decorridos alguns minutos, algo constrangidos afastamo-nos, em bloco, da vivenda em que tantos ensinamentos preciosos havíamos recebido.

Amparados os mais doentes naqueles que se mostravam mais fortes, retiramo-nos, cautelosos, pondo-nos a caminho da zona preestabelecida.

Duas horas de jornada, sob a supervisão de Gúbio perfeitamente treinado em experiências daquela natureza, conduziram-nos ao local desejado.

O campo, em torno, era singularmente belo.

Verdejante planalto, coroado de luar, convida­va-nos à meditação e à prece, e brisas ligeiras e frescas da madrugada como que nos bafejavam o cérebro convidando-nos a reconfortar as fontes do pensamento.

Nosso Instrutor fêz-nos sentar em semicírculo, compelindo-nos a recordar várias cenas evangélicas e informou, com visível emoção, que, segundo men­sagem particular por ele registrada, Gregório e os dele já se haviam colocado em nosso encalço e que, se alguns dos companheiros procurassem evi­tar-lhe a presença, qualquer fuga, em nosso agru­pamento, se fazia impraticável, em virtude de a elevada percentagem de peregrinos, ali reunidos, se revelarem incapazes de volitação em alto plano, pela densidade do padrão mental em que se man­tinham.

Cabia-nos, pois, agora, a atitude de oração e expectativa amorosa de quem sabia compreender, ajudar e perdoar.

Do zimbório estrelejado desciam valiosos es­tímulos para nós.

Constelações tremeluziam distantes, enquanto a Lua, silenciosa e bela, parecia disposta a teste­munhar-nos o esforço cristão.

Reparei que o nosso dirigente, insulado na relva macia, assumia a mesma posição de instrumento mediúnico, qual acontecera na reunião que vínhamos de efetuar, porque me entregou, confian­te, a direção da assembléia, o que aceitei, dentro de preocupação extrema, embora sem hesitar.

Providenciada semelhante medida, Gúbio pas­sou a elevada condição mental, por intermédio da oração.

Acompanhamo-lo, reverentes. Não havia gosto para conversações estranhas ao problema delicado daquela hora.

Demorávamo-nos em observação expectante, quando ruído longínquo nos anunciou a alteração dos acontecimentos.

O Instrutor, não obstante palidíssimo, dando-nos a idéia de que já se achava em comunicação com entidades superiores e imperceptíveis ao nosso olhar, mais uma vez nos exortou ao silêncio, à pa­ciência, à serenidade e à prece, recomendando-nos seguir todos os fatos, sem revolta, sem mágoa e sem desânimo.

Não foi preciso esperar muito.

Alguns minutos se desdobraram apressados e Gregório, com algumas dezenas de assalariados, surgiu em campo, investindo-nos com palavrões que se caracterizavam pela dureza e violência. Os recém-chegados apareceram acompanhados de gran­de cópia de animais, em maioria monstruosos.

Noutras circunstâncias, sem a bênção do aviso salutar, provàvelmente teríamos debandado, mas Gúbio, cuja superioridade conhecíamos por expe­riência própria, ali se mantinha, resoluto e imper­turbável, emitindo ondas de luminosidade intensa, veiculando forças magnéticas, imponderáveis, que, dirigidas sobre nós, como que nos supria de recur­sos necessários ao procedimento irrepreensível.

Por mim, ao reparar as máscaras sinistras que se abeiravam de nós, confesso que, em tempo algum, senti tamanha ameaça de medo e tão pro­fundo contágio de confiança.

O sacerdote das sombras avançou para o nosso orientador, à semelhança de general parlamentando na praça, antes de começar a batalha, e acusou sem rodeios:

— Miserável hipnotizador de servos ingênuos, onde se alinham tuas armas para o duelo desta hora? Não contente em prejudicar-me os projetos mais íntimos, num problema de ordem pessoal, ali­ciaste numerosos colaboradores meus, em nome de um Mestre que não ofereceu aos que o acompanha­ram senão sarcasmo, martírio e crucificação! Acreditas, porventura, esteja eu disposto, por minha vez, a aceitar princípios que relaxam a dignidade humana? Admites, acaso, permaneça, a meu turno. fascinado pelos feiticeiros de tua estirpe? Traidor da palavra empenhada, confundir-te-ei os poderes de bruxo desconhecido! Não creio no amor açuca­rado que elegeste por senha de luta! Creio na força que governa a vida e que te dobrará, igualmente, aos meus pés!

Percebendo que o nosso orientador não se er­guia, como que chumbado ao solo, compelido por indefinível prostração, não obstante cercado de intensa luz, o sacerdote dos mistérios negros, aca­riciando os copos da espada luzente, acentuou, irado:

— Covarde, não te levantas para ouvir-me a acusação justa e digna? Perdeste também o brio, semelhando-te a quantos te antecederam no movi­mento de humilhação que persiste no mundo, há quase dois mil anos? Também, noutra época, acre­ditei na celestial proteção através da atividade re­ligiosa, nos ideais em que hoje te empenhas. En­tendi, contudo, a tempo, que o Trono Divino paira distante demais para que nos preocupemos em al­cançá-lo. Não há um Deus misericordioso e. sim. uma Causa que dirige. Essa causa é inteligência e não, sentimento - Encastelei-me, assim, na força determinativa para não soçobrar. O “querer”, o “mandar” e o “poder” estão em minhas mãos. Se tuas mágicas prevalecem acima dos princípios que consagro e defendo, aceita a luva que te lanço à face! Combatamos!

Gregório espraiou torvo olhar pela assistência muda e exclamou:

— Aqui descansam inermes, ao teu lado, os meus colaboradores que adormeceram, vergonhosa­mente, ao teu cântico sedutor; entretanto, cada qual deles me pagará, muito caro, a defecção e a deso­bediência.

Fixou, com mais atenção, os olhos felinos na assembléia, mas, exceto eu, que deveria permanecer atento à tarefa direcional que me fora cometida, ninguém ousou modificar a atitude de profunda concentração nos propósitos de humildade e amor a que fôramos conclamados.

Demonstrando acentuado desapontamento, em face dos insultos sem resposta, o temível diretor de legiões sombrias abeirou-se, mais estreitamente, de nosso Instrutor sereno e bradou:

— Levantar-te-ei, por mim mesmo, usando os sopapos que mereces.

Antes, porém, que conseguisse ligar o intento à ação, delicado aparelho luminoso surgiu no alto, à maneira de garganta improvisada em fluidos ra­diantes, como as que se formam nas sessões de voz direta, entre os encarnados, e a voz cristalina e terna de Matilde ressoou, acima de nossas cabeças, exortando-o, com amorosa firmeza:

— Gregório, não. enregeles o coração quando

o Senhor te chama, por mil modos, ao trabalho renovador! O teu longo período de dureza e secura está terminado. Não intentes contra os abençoados aguilhões de nosso Eterno Pai! o espinho fere, en­quanto o fogo o não consome; e a pedra mostra resistência, enquanto o fio d’água a não desgasta! Para a tua alma, filho meu, findou a noite em que a tua razão se eclipsou no mal. A ignorância pode muito; no entanto, é simples nada quando a sabe­doria espalha os seus avisos. Não admitas que os monstros da negra magia te alimentem o coração com a felicidade desejável!

O temido perseguidor mantinha-se confundido, semi-aterrado, ao passo que nós mesmos, os circunstantes ligados à missão de Gúbio, não conse­guíamos dissimular a imensa surpresa que nos dominava, ante o quadro imponente e inesperado.

Compreendi que a benfeitora se valia dos flui­dos vitais de nosso orientador para exprimir-se, naquele plano, qual o fizera, horas antes, na resi­dência de Margarida.

O sacerdote transviado, num complexo de es­panto, rebelião e amargura, tinha agora o aspecto de uma fera enjaulada.

— Acreditas, porventura — prosseguiu a voz materna, adulçorada —, que o amor pode alterar-se no curso do tempo? Supuseste, um dia, que eu te pudesse esquecer? Olvidaste a imantação de nossos destinos? Peregrine minhalma através de mil mundos, suspirarei sempre pela integração de nossos espíritos. A luz sublime do amor que nos arde nos sentimentos mais profundos pode resplan­decer nos precipícios infernais, atraindo para o Senhor aqueles que amamos. Gregório, ressurge!

E, numa inflexão de lágrimas que desarmaria o raciocínio mais enrijecido, acentuou:

— Lembra-te! Deixaste morrer nos séculos os projetos de amor que traçamos na Toscana e na Lombardia distantes? esqueceste nossos votos ao pé dos altares humildes? olvidaste as cruzes de pedra que nos ouviam as orações? não prometemos ambos trabalhar em comum pela purificação dos santuários de Deus na Terra? Sempre grande e belo no combate à política venal dos homens, cris­talizaste na mente os desvarios do orgulho e da vaidade, adquiridos ao contacto de uma coroa pu­trescível. Afogaste ideais preciosos na corrente de ouro mundano e perdeste a visão dos horizontes divinos, mergulhando-te na sombra dos cálculos pela extensão do império de teus caprichos. In­censaste a grandeza dos poderosos do mundo em desfavor dos humildes, incentivaste a tirania espi­ritual, crendo-te possuidor de autoridade infalí­vel, e supunhas que o Céu, além da morte, nada mais fôsse que simples cópia dos Tribunais e das Cortes da Terra. Tremendos desenganos surpre­enderam-te o despertar, e, embora humilhado e padecente, coagulaste os pensamentos no ácido ve­nenoso da revolta e elegeste a escravização das inteligências inferiores por única posição digna de conquistar. Durante séculos, tens sido apenas rude disciplinador de almas criminosas e perturbadas que o túmulo encontrou na imprudência e no vicio. Não te doerá, porém, filho meu, a triste condição de gênio desprezível? Semelhante pergunta não morre sem resposta. Falam por ti o imenso tédio do mal e a profunda solidão interior que presen­temente te invadem as horas. Aprendeste com infinito desapontamento que os tesouros divinos não repousam em frias arcas de valores amoedados, e sabes, agora, que Jesus dispõe de escasso tempo para frequentar basílicas suntuosas, não obstante respeitáveis, porque da escura senda humana emer­gem soluços de peregrinos sem luz e sem lar, sem arrimo e sem pao...

Via-se que a benfeitora, quase asfixiada pela emoção, apresentava enorme dificuldade para con­tinuar, mas, após longa pausa, que ninguém ousou interromper, prosseguiu, comovida:

— Como pudeste esquecer, por alguns dias de autoridade efêmera na Terra, as nossas redentoras visões do Cristo angustiado na cruz? Aderiste aos Dragões do Mal pela simples verificação de que a tiara passageira não te poderia aureolar a cabeça nos domínios da vida eterna a que a morte nos arrebatou; entretanto, o Divino Amigo jamais des­creu das nossas promessas de serviço e espera por nós com a mesma abnegação do princípio. Vamos! Sou Matilde, alma de tua alma, que, um dia, te adotou por filho querido e a quem amaste como dedicada mãe espiritual.

Calou-se a voz da mensageira, interditada pela corrente de pranto.

Foi então que Gregório, fazendo quanto lhe era possível por manter-se de pé, gritou, como ansioso por fugir a si mesmo.

— Não creio! não creio! Estou só! consagrei-me ao serviço das sombras e não tenho outros com­promissos.

Transbordava-lhe da voz menos altiva um tom de pavor indescritível. Parecia disposto à fuga, francamente transformado. Mas, ante a assembléia extática e silenciosa, mantinha-se magnetizado pela palavra da benfeitora que se fazia ouvir, austera e doce, bela e terrível, escalpelando-lhe a consciência. Espraiou o olhar de leão ferido através de todos os ângulos do campo que nos situava, e, sentindo-se no centro de quantos assistiam, ali, atônitos, à cena inesperada, exteriorizou na expressão fisionômica todo o desespero extremo que lhe vagava nalma, arrancou a espada da bainha e bradou encolerizado:

— Vim para combater, não para argumentar. Não temo sortilégios. Sou um chefe e não posso perder os minutos com palavras tergiversantes. Não admito a presença de minha mãe espiritual de outras eras. Conheço as artimanhas dos fascinadores e não tenho outra alternativa senão duelar.

Fitando a delicada forma de luz que pairava no espaço, acrescentou:

— Por quem és! Anjo ou demônio, aparece e combate! Aceitas meu desafio?

— Sim... — respondeu Matilde, com ternura e humildade.

— Tua espada? — trovejou Gregório, arquejante.

— Vê-la-ás dentro em breve...

Após alguns momentos de ansiosa expectativa, apagou-se a garganta luminosa que brilhava sobre nós, mas leve massa radiante e disforme surgiu, não longe, à nossa vista.

Compreendi que a valorosa emissária se ma­terializaria, ali mesmo, utilizando os fluidos’ vitais que o nosso orientador lhe forneceria.

Júbilo e assombro dominavam a assembléia.

Em poucos instantes, erguia-se Matilde, a. nos­so olhar, de rosto velado por véu de gaze tenuís­sima. A túnica alva e luminescente, aliada ao porte esguio e nobre, sob a auréola de safirina luz de que se tocava, traziam à lembrança alguma encantada madona da Idade Média, em repentina apa­rição.

Adiantava-se, digna e calma, na direção do sombrio perseguidor; todavia, Gregório, perturbado e impaciente, atacou-a de longe e empunhou a lâ­mina em riste, exclamando, resoluto:

— Às armas! às armas!...

Matilde estacou, serena e humilde, embora im­ponente e bela, com a majestade de uma rainha coroada de Sol.

Decorridos alguns instantes ligeiros, movimen­tou-se novamente e, alçando a destra radiosa até ao coração, caminhou para ele, afirmando, em voz doce e terna:

— Eu não tenho outra espada, senão a do amor com que sempre te amei!

E de súbito desvelou o semblante vestalino, revelando-lhe a individualidade num dilúvio de intensa luz. Contemplando-lhe, então, a beleza suave e sublime, banhada de lágrimas, e sentindo-lhe as irradiações enternecedoras dos braços que, agora, se lhe abriam, envolventes e acolhedores, Gregório deixou cair a lâmina acerada e de joelhos se pros­ternou, bradando:

— Mãe! Minha mãe! Minha mãe!...

Matilde enlaçou-o e exclamou:

— Meu filho! Meu filho! Deus te abençoe! quero-te mais que nunca!

Verificara-se, ali, naquele abraço, espantoso choque entre a luz e a treva, e a treva não resistiu...

Gregório, como que abalado nos refolhos do ser, regressara à fragilidade infantil, em pleno desmaio da força que o sustinha. Finalmente, ini­ciara sua libertação.

A benfeitora, enlevada, recolhera-o, enlangues­cido, nos braços, enquanto numerosos membros da sombria falange fugiam espavoridos.

Matilde, vitoriosa, agradeceu em palavras que nos faziam vibrar as fibras mais recônditas da alma, e, em seguida, confiou aos nossos cuidados o filho vencido, asseverando-nos que o abnegado Gúbio se encarregaria de guardar, por algum tempo, aquele que ela considerava o seu divino tesouro.

Após abraçar-nos, generosa, desmaterializou-se ao nosso coro de hosanas, a fim de seguir, de mais longe, a preparação do futuro glorioso.

Refez-se o nosso orientador, reintegrando-se em nosso grupo de serviço.

Edificado, feliz, Gúbio sustentou Gregório, iner­te, nos braços à maneira do cristão fiel que se orgulha de suportar o companheiro menos feliz. Orou, cercado de claridade santificante, arrancando-nos lágrimas irreprimíveis de alegria e reconhe­cimento e, depois, ante a paz que se estabelecera, triunfante e ditosa, deu por finda a nossa tarefa, dispondo-se a guiar a heterogênea, mas expressiva coletividade de novos estudantes do bem, recolhidos nos trabalhos de salvação de Margarida, até a im­portante e abençoada colônia de trabalho regene­rador.

Surgira, para mim, a despedida

Tinha meus olhos úmidos de pranto.

O Instrutor abraçou-me e, retendo-me junto do coração, falou, bondoso:

— Jesus te recompense, filho meu, pelo papel que desempenhaste nesta jornada de libertação. Nunca te esqueças de que o amor vence todo ódio e de que o bem aniquila todo mal.

Quis responder, esclarecendo que sômente a mim, discípulo inábil, cabia o dever de gratidão; todavia, incoercível emotividade prendeu-me a voz.

O orientador, no entanto, leu-me no olhar os sentimentos mais profundos e sorriu, em retirada.

Elói, também, rumou para longe, em busca de outros setores.

E voltando, sozinho, ao meu domicílio espiri­tual, roguei, chorando:

— Mestre de Bondade Infinita, não me aban­dones! ampara-me a insuficiência de servo imper­feito e infiel!

Em torno, reinava insondável e sublime silên­cio. Mas, enquanto o horizonte se tingia de rubro. preludiando a festa da aurora, a estrela matutina brilhava, tremeluzindo aos meus olhos, qual celeste resposta de luz.

Fim