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quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

O Problema do Ser, do Destino e da Dor–Parte 1-Léon Denis

 

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Léon Denis

O Problema do Ser, do Destino e da Dor

Traduzido do Francês

Le Problème de l'Être et de la Destinée

1905 

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Auguste Rodin

O Pensador

Conteúdo resumido

Léon Denis (1846-1927) foi um dos mais extraordinários espíritas de todos os tempos, sucessor e propagador da obra de Allan Kardec, a qual ampliou em termos filosóficos.

Seus elevados conceitos doutrinários, alicerçados na mais pura moral cristã e nos ensinamentos dos espíritos evoluídos, lançaram novas luzes sobre a Doutrina Espírita, que enfrentava, na época, os duros ataques de grupos religiosos e científico-materialistas.

Era também um orador excepcional, que sempre atraía multidões. Sua vida era regrada pelos exemplos de renúncia e dedicação, tendo sempre e para todos uma palavra de ânimo.

O Problema do Ser, do Destino e da Dor, essa obra magistral, enfoca os problemas da angústia e da dor, o grandioso destino do homem e a maneira de compreender e equacionar os obstáculos e as vicissitudes da vida terrena.

Quem somos? De onde viemos? Para onde vamos? Por que sofremos? Qual o objetivo da nossa existência? Essa a formidável problemática do Ser, que Léon Denis descerra-nos com clareza e precisão, fundamentando-se nos princípios da Doutrina Espírita.

Introdução

Uma dolorosa observação surpreende o pensador no ocaso da vida. Resulta também, mais pungente, das impressões sentidas em seu giro pelo espaço. Reconhece ele então que, se o ensino ministrado pelas instituições humanas, em geral – religiões, escolas, universidades –, nos faz conhecer muitas coisas supérfluas, em compensação quase nada ensina do que mais precisamos conhecer para encaminhamento da existência terrestre e preparação para o Além.

Aqueles a quem incumbe a alta missão de esclarecer e guiar a alma humana parecem ignorar a sua natureza e os seus verdadeiros destinos.

Nos meios universitários reina ainda completa incerteza sobre a solução do mais importante problema com que o homem se defronta em sua passagem pela Terra. Essa incerteza se reflete em todo o ensino. A maior parte dos professores e pedagogos afasta sistematicamente de suas lições tudo o que se refere ao problema da vida, às questões de termo e finalidade...

A mesma impotência encontramos no padre. Por suas afirmações despidas de provas, apenas consegue comunicar às almas que lhe estão confiadas uma crença que já não corresponde às regras duma crítica sã nem às exigências da razão.

Com efeito, na Universidade, assim como na Igreja, a alma moderna não encontra senão obscuridade e contradição em tudo que diz respeito ao problema de sua natureza e de seu futuro. É a esse estado de coisas que se deve atribuir, em grande parte, o mal de nossa época, a incoerência das idéias, a desordem das consciências, a anarquia moral e social.

A educação que se dá às gerações é complicada; mas, não lhes esclarece o caminho da vida; não lhes dá a têmpera necessária para as lutas da existência. O ensino clássico pode guiar no cultivo, no ornamento da inteligência; não inspira, entretanto, a ação, o amor, a dedicação. Ainda menos possibilita alcançar uma concepção da vida e do destino que desenvolva as energias profundas do “eu” e nos oriente os impulsos e os esforços para um fim elevado. Essa concepção, no entanto, é indispensável a todo ser, a toda sociedade, porque é o sustentáculo, a consolação suprema nas horas difíceis, a origem das virtudes másculas e das altas inspirações.

Carl du Prel refere o fato seguinte:[i]

“Um amigo meu, professor da Universidade, passou pela dor de perder a filha, o que lhe reavivou o problema da imortalidade. Dirigiu-se aos colegas, professores de Filosofia, esperando achar consolações em suas respostas. Amarga decepção: pedira um pão, ofereciam-lhe pedras; procurava uma afirmação, respondiam-lhe com um talvez!”

Francisque Sarcey,[ii] modelo completo do professor da Universidade, escrevia:[iii]

“Estou na Terra. Ignoro absolutamente como aqui vim ter e como aqui fui lançado. Não ignoro menos como daqui sairei e o que de mim será quando daqui sair.”

Ninguém o confessaria mais francamente: a filosofia da escola, depois de tantos séculos de estudo e de labor, é ainda uma doutrina sem luz, sem calor, sem vida.[iv] A alma de nossos filhos, sacudida entre sistemas diversos e contraditórios – o positivismo de Auguste Comte, o naturalismo de Hegel, o materialismo de Stuart Mill, o ecletismo de Cousin, etc. –, flutua incerta, sem ideal, sem fim preciso.

Daí o desânimo precoce e o pessimismo dissolvente, moléstias das sociedades decadentes, ameaças terríveis para o futuro, a que se junta o cepticismo amargo e zombeteiro de tantos moços da nossa época; em nada mais crêem do que na riqueza, nada mais honram que o êxito.

O eminente professor Raoul Pictet assinala esse estado de espírito na introdução da sua última obra sobre as ciências psíquicas.[v] Fala ele do efeito desastroso produzido pelas teorias materialistas na mentalidade de seus alunos, e conclui assim:

“Esses pobres moços admitem que tudo quanto se passa no mundo é efeito necessário e fatal de condições primárias, em que a vontade não intervém; consideram que a própria existência é, forçosamente, joguete da fatalidade inelutável, à qual estão entregues de pés e mãos ligados.

Esses moços cessam de lutar logo às primeiras dificuldades. Já não crêem em si mesmos. Tornam-se túmulos vivos, onde se encerram, promiscuamente, suas esperanças, seus esforços, seus desejos, fossa comum de tudo o que lhes fez bater o coração até ao dia do envenenamento. Tenho visto desses cadáveres diante de suas carteiras e no laboratório, e tem-me causado pena vê-los.”

Tudo isso não é somente aplicável a uma parte da nossa juventude, mas também a muitos homens do nosso tempo e da nossa geração, nos quais se pode verificar uma espécie de lassidão moral e de abatimento. F. Myers o reconhece, igualmente. Diz ele: [vi]

“Há uma espécie de inquietação, um descontentamento, uma falta de confiança no verdadeiro valor da vida. O pessimismo é a doença moral do nosso tempo.”

As teorias de além-Reno, as doutrinas de Nietzsche, de Schopenhauer, de Haeckel, etc., muito contribuíram, por sua parte, para determinar esse estado de coisas. Sua influência por toda parte se derrama. Deve-se-lhes atribuir, em grande parte, esse lento trabalho, obra obscura de cepticismo e de desânimo, que se desenvolve na alma contemporânea, essa desagregação de tudo que fortificava a alegria, a confiança no futuro, as qualidades viris de nossa raça.[vii]

É tempo de reagir com vigor contra essas doutrinas funestas e de procurar, fora da órbita oficial e das velhas crenças, novos métodos de ensino que correspondam às imperiosas necessidades da hora presente. É preciso dispor os Espíritos para os reclamos, os combates da vida presente e das vidas ulteriores; é necessário, sobretudo, ensinar o ser humano a conhecer-se, a desenvolver, sob o ponto de vista dos seus fins, as forças latentes que nele dormem.

Até aqui, o pensamento confinava-se em círculos estreitos: religiões, escolas, ou sistemas, que se excluem e combatem reciprocamente. Daí essa divisão profunda dos espíritos, essas correntes violentas e contrárias, que perturbam e confundem o meio social.

Aprendamos a sair desses círculos austeros e a dar livre expansão ao pensamento. Cada sistema contém uma parte de verdade; nenhum contém a realidade inteira.

O universo e a vida têm aspectos muito variados, numerosos demais para que um sistema possa abraçar a todos. Dessas concepções disparatadas, devem-se recolher os fragmentos de verdade que contêm, aproximando-os e pondo-os de acordo; é necessário, depois, uni-los aos novos e múltiplos aspectos da verdade que descobrirmos todos os dias e encaminharmo-nos para a unidade majestosa e para a harmonia do pensamento.

A crise moral e a decadência da nossa época provêm, em grande parte, de se ter o espírito humano imobilizado durante muito tempo. É necessário arrancá-lo à inércia, às rotinas seculares, levá-lo às grandes altitudes, sem perder de vista as bases sólidas que lhe vem oferecer uma ciência engrandecida e renovada. É essa ciência de amanhã que trabalhamos para constituir. Ela nos fornecerá o critério indispensável, os meios de verificação e de comparação sem os quais o pensamento, entregue a si mesmo, estará sempre em risco de desvairar.

*

A perturbação e a incerteza que verificamos no ensino repercutem e se encontram, dizíamos, na ordem social inteira.

Em toda parte a crise existe, inquietante. Sob a superfície brilhante de uma civilização apurada esconde-se um mal-estar profundo. A irritação cresce nas classes sociais. O conflito dos interesses e a luta pela vida tornam-se, dia a dia, mais ásperos. O sentimento do dever se tem enfraquecido na consciência popular, a tal ponto que muitos homens já não sabem onde está o dever. A lei do número, isto é, da força cega, domina mais do que nunca. Pérfidos retóricos dedicam-se a desencadear as paixões, os maus instintos da multidão, a propagar teorias nocivas, às vezes criminosas. Depois, quando a maré sobe e sopra o vento de tempestade, eles afastam de si toda a responsabilidade.

Onde está, pois, a explicação desse enigma, dessa contradição notável entre as aspirações generosas de nosso tempo e a realidade brutal dos fatos? Por que um regime que suscitara tantas esperanças ameaça chegar à anarquia, à ruptura de todo o equilíbrio social?

A inexorável lógica vai responder-nos: a Democracia, radical ou socialista, em suas massas profundas e em seu espírito dirigente, inspirando-se nas doutrinas negativas, não podia chegar senão a um resultado negativo para a felicidade e elevação da humanidade. Tal o ideal, tal o homem; tal a nação, tal o país!

As doutrinas negativas, em suas conseqüências extremas, levam fatalmente à anarquia, isto é, ao vácuo, ao nada social. A história humana já o tem experimentado dolorosamente.

Enquanto se tratou de destruir os restos do passado, de dar o último golpe nos privilégios que restavam, a Democracia serviu-se habilmente de seus meios de ação. Mas, hoje, importa reconstruir a cidade do futuro, o edifício vasto e poderoso que deve abrigar o pensamento das gerações. Diante dessas tarefas, as doutrinas negativistas mostram sua insuficiência e revelam sua fragilidade; vemos os melhores operários debaterem-se em uma espécie de impotência material e moral.

Nenhuma obra humana pode ser grande e duradoura se não se inspirar, na teoria e na prática, em seus princípios e em suas explicações, nas leis eternas do universo. Tudo o que é concebido e edificado fora das leis superiores se funda na areia e desmorona.

Ora, as doutrinas do socialismo atual têm uma tara capital. Querem impor uma regra em contradição com a Natureza e a verdadeira lei da humanidade: o nível igualitário.

A evolução gradual e progressiva é a lei fundamental da Natureza e da vida. É a razão de ser do homem, a norma do universo. Insurgir-se contra essa lei, substituir-lhe por outro o fim, seria tão insensato como querer parar o movimento da Terra ou o fluxo e o refluxo dos oceanos.

O lado mais fraco da doutrina socialista é a ignorância absoluta do homem, de seu princípio essencial, das leis que presidem ao seu destino. E quando se ignora o homem individual, como se poderia governar o homem social?

A origem de todos os nossos males está em nossa falta de saber e em nossa inferioridade moral. Toda a sociedade permanecerá débil, impotente e dividida durante todo o tempo em que a desconfiança, a dúvida, o egoísmo, a inveja e o ódio a dominarem. Não se transforma uma sociedade por meio de leis. As leis e as instituições nada são sem os costumes, sem as crenças elevadas. Quaisquer que sejam a forma política e a legislação de um povo, se ele possui bons costumes e fortes convicções, será sempre mais feliz e poderoso do que outro povo de moralidade inferior.

Sendo uma sociedade a resultante das forças individuais, boas ou más, para se melhorar a forma dessa sociedade é preciso agir primeiro sobre a inteligência e sobre a consciência dos indivíduos.

Mas, para a Democracia socialista, o homem interior, o homem da consciência individual não existe; a coletividade o absorve por inteiro. Os princípios que ela adota não são mais do que uma negação de toda filosofia elevada e de toda causa superior. Não se procura outra coisa senão conquistar direitos; entretanto, o gozo dos direitos não pode ser obtido sem a prática dos deveres. O direito sem o dever, que o limita e corrige, só pode produzir novas dilacerações, novos sofrimentos.

Eis por que o impulso formidável do Socialismo não faria senão deslocar os apetites, as ambições, os sofrimentos, e substituir as opressões do passado por um despotismo novo, mais intolerável ainda.

Já podemos medir a extensão dos desastres causados pelas doutrinas negativas. O Determinismo, o Monismo, o Materialismo, negando a liberdade humana e a responsabilidade, minam as próprias bases da Ética universal. O mundo moral não é mais que um anexo da Fisiologia, isto é, o reinado, a manifestação da força cega e irresponsável. Os espíritos de escol professam o Niilismo metafísico, e a massa humana, o povo, sem crenças, sem princípios fixos, está entregue a homens que lhe exploram as paixões e especulam com suas ambições.

O Positivismo, apesar de ser menos absoluto, não é menos funesto em suas conseqüências. Por suas teorias do desconhecido, suprime as noções de fim e de larga evolução. Toma o homem na fase atual de sua vida, simples fragmento de seu destino, e o impede de ver para diante e para trás de si. Método estéril e perigoso, feito, parece, para cegos de espírito, e que se tem proclamado muito falsamente como a mais bela conquista do espírito moderno.

Tal é o atual estado da Sociedade. O perigo é imenso e se alguma grande renovação espiritualista e científica não se produzisse, o mundo soçobraria na incoerência e na confusão.

Nossos homens de governo sentem já o que lhes custa viver numa sociedade em que as bases essenciais da moral estão abaladas, em que as sanções são fictícias ou impotentes, em que tudo se funde, até a noção elementar do bem e do mal.

As igrejas, é verdade, apesar de suas fórmulas antiquadas e de seu espírito retrógrado, agrupam ainda ao redor de si muitas almas sensíveis; mas, tornaram-se incapazes de conjurar o perigo, pela impossibilidade em que se colocaram de fornecer uma definição precisa do destino humano e do Além, apoiada em fatos probantes e bem estabelecidos. A religião, que teria, sobre esse ponto capital, o mais alto interesse em se pronunciar, conserva-se no vago.

A humanidade, cansada dos dogmas e das especulações sem provas, mergulhou no materialismo ou na indiferença. Não há salvação para o pensamento, senão por meio de uma doutrina baseada na experiência e no testemunho dos fatos.

De onde virá essa doutrina? Que poder nos livrará do abismo em que nos arrastamos? Que ideal novo virá dar ao homem a confiança no futuro e o fervor pelo bem? Nas horas trágicas da História, quando tudo parecia desesperado, nunca faltou o socorro. A alma humana não se pode afundar inteiramente e perecer. No momento em que as crenças do passado se velam, uma concepção nova da vida e do destino, baseada na ciência dos fatos, reaparece. A grande tradição revive sob formas engrandecidas, mais novas e mais belas. Mostra a todos um futuro cheio de esperanças e de promessas. Saudemos o novo reino da Idéia, vitoriosa sobre a Matéria, e trabalhemos para preparar-lhe o caminho.

A tarefa a cumprir é grande. A educação do homem deve ser inteiramente refeita. Essa educação, já o vimos, nem a Universidade nem a Igreja estão em condições de fornecer, pois já não possuem as sínteses necessárias para esclarecer a marcha das novas gerações. Uma só doutrina pode oferecer essa síntese, a do Espiritualismo científico; já ela se eleva no horizonte do mundo intelectual e parece que há de iluminar o futuro.

A essa filosofia, a essa ciência, livre, independente, emancipada de toda pressão oficial, de todo compromisso político, as descobertas contemporâneas trazem cada dia novas e preciosas contribuições. Os fenômenos do magnetismo, da radioatividade e da telepatia são aplicações de um mesmo princípio, manifestações de uma mesma lei, que rege conjuntamente o ser e o universo.

Ainda alguns anos de labor paciente, de experimentação conscienciosa, de pesquisas perseverantes, e a nova educação terá encontrado sua fórmula científica, sua base essencial. Esse acontecimento será o maior fato da História, desde o aparecimento do Cristianismo.

A educação, sabe-se, é o mais poderoso fator do progresso, pois contém em gérmen todo o futuro. Mas, para ser completa, deve inspirar-se no estudo da vida sob suas duas formas alternantes, visível e invisível, em sua plenitude, em sua evolução ascendente para os cimos da natureza e do pensamento.

Os preceptores da humanidade têm, pois, um dever imediato a cumprir. É o de repor o Espiritualismo na base da educação, trabalhando para refazer o homem interior e a saúde moral. É necessário despertar a alma humana adormecida por uma retórica funesta; mostrar-lhe seus poderes ocultos, obrigá-la a ter consciência de si mesma, a realizar seus gloriosos destinos.

A ciência moderna analisou o mundo exterior; suas penetrações no universo objetivo são profundas; isso será sua honra e sua glória; mas nada sabe ainda do universo invisível e do mundo interior. É esse o império ilimitado que lhe resta conquistar. Saber por que laços o homem se liga ao conjunto, descer às sinuosidades misteriosas do ser, onde a sombra e a luz se misturam, como na caverna de Platão, percorrer-lhe os labirintos, os redutos secretos, auscultar o “eu” normal e o “eu” profundo, a consciência e a subconsciência; não há estudo mais necessário. Enquanto as Escolas e as Academias não o tiverem introduzido em seus programas, nada terão feito pela educação definitiva da humanidade.

Já vemos, porém, surgir e constituir-se uma psicologia maravilhosa e imprevista, de onde vão derivar uma nova concepção do ser e a noção de uma lei superior que abarca e resolve todos os problemas da evolução e do movimento transformador.

*

Um tempo se acaba; novos tempos se anunciam. A hora em que estamos é uma hora de transição e de parto doloroso. As formas esgotadas do passado empalidecem-se e se desfazem para dar lugar a outras, a princípio vagas e confusas, mas que se precisam cada vez mais. Nelas se esboça o pensamento crescente da humanidade.

O espírito humano está em trabalho, por toda parte, sob a aparente decomposição das idéias e dos princípios; por toda parte, na Ciência, na Arte, na Filosofia e até no seio das religiões, o observador atento pode verificar que uma lenta e laboriosa gestação se produz. A Ciência, sobretudo, lança em profusão sementes de ricas promessas. O século que começa será o das potentes eclosões.

As formas e as concepções do passado, dizíamos, já não são suficientes. Por mais respeitável que pareça essa herança, não obstante o sentimento piedoso com que se podem considerar os ensinamentos legados por nossos pais, percebe-se que esse ensinamento não foi suficiente para dissipar o mistério sufocante do porquê da vida.

Pode-se, entretanto, em nossa época, viver e agir com mais intensidade do que nunca; mas é possível viver e agir plenamente, sem se ter consciência do fim a atingir? O estado d’alma contemporâneo pede, reclama uma ciência, uma arte, uma religião de luz e de liberdade, que venham dissipar-lhe as dúvidas, libertá-lo das velhas servidões e das misérias do pensamento, guiá-lo para horizontes radiosos a que se sente levado pela própria natureza e pelo impulso de forças irresistíveis.

Fala-se muito de progresso; mas o que se entende por progresso? É uma palavra vazia e sonora, na boca de oradores pela maior parte materialistas, ou tem um sentido determinado? Vinte civilizações têm passado pela Terra, iluminando com seus alvores a marcha da humanidade. Seus grandes focos brilharam na noite dos séculos; depois extinguiram-se. E o homem não discerne ainda, atrás dos horizontes limitados de seu pensamento, o além sem limites aonde o leva o destino. Impotente para dissipar o mistério que o cerca, estraga suas forças nas obras da Terra e foge aos esplendores de sua tarefa espiritual, tarefa que fará sua verdadeira grandeza.

A fé no progresso não caminha sem a fé no futuro, no futuro de cada um e de todos. Os homens não progridem e não se adiantam, senão crendo no futuro e marchando com confiança, com certeza para o ideal entrevisto.

O progresso não consiste somente nas obras materiais, na criação de máquinas poderosas e de toda a ferramenta industrial; do mesmo modo, não consiste em descobrir processos novos de arte, de literatura ou formas de eloqüência. Seu mais alto objetivo é empolgar, atingir a idéia primordial, a idéia mãe que há de fecundar toda a vida humana, a fonte elevada e pura de onde hão de dimanar conjuntamente as verdades, os princípios e os sentimentos que inspirarão as obras de peso e as nobres ações.

É tempo de o compreender: a Civilização só poderá engrandecer-se, a Sociedade só poderá subir se um pensamento cada vez mais elevado e uma luz mais viva vierem inspirar, esclarecer os espíritos e tocar os corações, renovando-os. Somente a idéia é mãe da ação. Somente a vontade de realizar a plenitude do ser, cada vez melhor, cada vez maior, nos pode conduzir aos cimos longínquos em que a Ciência, a Arte, toda a obra humana, numa palavra, achará sua expansão, sua regeneração.

Tudo no-lo diz: o universo é regido pela lei da evolução; é isso o que entendemos pela palavra progresso. E nós, em nosso princípio de vida, em nossa alma, em nossa consciência, estamos para sempre submetidos a essa lei. Não se pode desconhecer, hoje, essa força, essa lei soberana; ela conduz a alma e suas obras, através do infinito do tempo e do espaço, a um fim cada vez mais elevado; mas essa lei não é realizável senão por nossos esforços.

Para fazer obra útil, para cooperar na evolução geral e recolher todos os seus frutos, é preciso, antes de tudo, aprender a discernir, a reconhecer a razão, a causa e o fim dessa evolução, saber aonde ela conduz, a fim de participar, na plenitude das forças e das faculdades que dormitam em nós, dessa ascensão grandiosa.

Nosso dever é traçar a trajetória à humanidade futura, da qual ainda faremos parte integrante, como no-lo ensinam a comunhão das almas, a revelação dos grandes Instrutores invisíveis e como a Natureza o ensina também por seus milhares de vozes, pelo renovamento perpétuo de todas as coisas, àqueles que a sabem estudar e compreender.

Vamos, pois, para o futuro, para a vida sempre renascente, pela via imensa que nos abre um Espiritualismo regenerado!

Fé do passado, ciências, filosofias, religiões, iluminai-vos com uma chama nova; sacudi vossos velhos sudários e as cinzas que os cobrem. Escutai as vozes reveladoras do túmulo; elas nos trazem uma renovação do pensamento com os segredos do Além, que o homem tem necessidade de conhecer para melhor viver, melhor agir c melhor morrer!

Paris, 1908.

Léon Denis


Primeira Parte
O Problema do Ser

I
A evolução do pensamento

Uma lei, já o dissemos, rege a evolução do pensamento, como a evolução física dos seres e dos mundos; a compreensão do universo se desenvolve com os progressos do espírito humano.

Essa compreensão geral do universo e da vida foi expressa de mil maneiras, sob mil formas diversas no passado. Ela o é hoje em termos mais amplos, e o será sempre com mais amplitude, à medida que a humanidade for subindo os degraus de sua ascensão.

A Ciência vê alargar-se, sem cessar, seu campo de exploração. Todos os dias, com auxílio de seus poderosos instrumentos de observação e análise, descobre novos aspectos da matéria, da força e da vida; mas o que esses instrumentos verificam já há muito tempo o espírito discernira, porque o vôo do pensamento precede sempre e excede os meios de ação da ciência positiva. Os instrumentos nada seriam sem a inteligência, a vontade que os dirige.

A Ciência é incerta e mutável, renova-se sem cessar. Os seus métodos, teorias e cálculos, com grande custo arquitetados, desabam ante uma observação mais atenta ou uma indução mais profunda, para dar lugar a novas teorias, que não terão maior estabilidade.[viii] A teoria do átomo indivisível, por exemplo, que há dois mil anos servia de base à Física e à Química, é atualmente qualificada como hipótese e puro romance pelos nossos químicos mais eminentes.

Quantas decepções análogas não têm demonstrado no passado à fraqueza do espírito científico, que só chegará à realidade quando se elevar acima da miragem dos fatos materiais para estudar as causas e as leis!

Dessa maneira foi que a Ciência pôde determinar os princípios imutáveis da Lógica e das matemáticas. Não sucede o mesmo nos outros campos de investigação. Na maior parte das vezes, o sábio para eles leva os seus preconceitos, tendências, práticas rotineiras, todos os elementos de uma individualidade acanhada, como se pode verificar no domínio dos estudos psíquicos, principalmente na França, onde até agora poucos sábios houve bastante corajosos e suficientemente ilustrados para seguirem a estrada já amplamente traçada pelas mais belas inteligências de outras nações.

Não obstante, o espírito humano avança passo a passo no conhecimento do ser e do universo; o nosso saber, quanto à força e à matéria, modifica-se dia a dia; a individualidade humana revela-se com aspectos inesperados. À vista de tantos fenômenos verificados experimentalmente, em presença dos testemunhos que de toda parte se acumulam,[ix] nenhum espírito perspicaz pode continuar a negar a realidade da outra vida, a esquivar-se às conseqüências e às responsabilidades que ela acarreta.

O que dizemos da Ciência poder-se-ia, igualmente, dizer das filosofias e das religiões que se têm sucedido através dos séculos. Constituem elas outros tantos estádios ou trechos percorridos pela humanidade, ainda criança, elevando-se a planos espirituais cada vez mais vastos e que se ligam entre si. No seu encadeamento, essas crenças diversas nos aparecem como o desenvolvimento gradual do ideal divino, que o pensamento reflete, com tanto mais brilho e pureza quanto mais delicado e perfeito se vai tornando.

É essa a razão pela qual as crenças e os conhecimentos de um tempo ou de um meio parecem ser, para o tempo ou o meio onde reinam, a representação da verdade, tal qual a podem alcançar e compreender os homens dessa época, até que o desenvolvimento das suas faculdades e consciências os torne capazes de perceber uma forma mais elevada, uma radiação mais intensa dessa verdade.

Sob esse ponto de vista, o próprio feiticismo, apesar dos seus ritos sangrentos, tem uma explicação. É o primeiro balbuciar da alma infantil, ensaiando-se para soletrar a linguagem divina e fixando, em traços grosseiros, em formas apropriadas ao seu estado mental, a concepção vaga, confusa, rudimentar de um mundo superior.

O Paganismo representa uma concepção mais elevada, posto que mais antropomórfica. Nele os deuses são semelhantes aos homens, têm todas as suas paixões, todas as suas fraquezas; mas, agora, a noção do ideal se aperfeiçoa com a do bem. Um raio de beleza eterna vem fecundar as civilizações no berço.

Mais acima vem a idéia cristã, essencialmente feita de sacrifício e abnegação. O paganismo grego era a religião da Natureza radiosa; o Cristianismo é a da humanidade sofredora, religião das catacumbas, das criptas e dos túmulos, nascida na perseguição e na dor, conservando o cunho da sua origem. Reação necessária contra a sensualidade pagã, tornar-se-á ela, pelo seu próprio exagero, impotente para vencê-la, porque, com o cepticismo, a sensualidade renascerá.

O Cristianismo, na sua origem, deve ser considerado como o maior esforço tentado pelo mundo invisível para comunicar ostensivamente com a nossa humanidade. É, segundo a expressão de F. Myers, “a primeira mensagem autêntica do Além”. Já as religiões pagãs eram ricas de fenômenos ocultos de toda espécie e de fatos de adivinhação; mas a ressurreição, isto é, as aparições do Cristo materializado, depois de ter morrido, constituem a mais poderosa manifestação de que os homens têm sido testemunhas. Foi o sinal de uma entrada em cena do mundo dos Espíritos, entrada que, nos primeiros tempos cristãos, se produziu de mil maneiras. Dissemos em outra parte [x] como e por que pouco a pouco foi descendo de novo o véu do Além e o silêncio se fez, salvo para alguns privilegiados: videntes, extáticos, profetas.

Assistimos hoje a uma nova florescência do mundo invisível na História. As manifestações do Além, de passageiras e isoladas, tendem a converter-se em permanentes e universais. Entre os dois mundos desdobra-se um caminho, a princípio simples carreiro, estreita senda, mas que se alarga, melhora pouco a pouco, e que se tornará estrada larga e segura. O Cristianismo teve como ponto de partida fenômenos de natureza semelhante aos que se verificam em nossos dias, no domínio das ciências psíquicas. É por esses fatos que se revelam a influência e a ação de um mundo espiritual, verdadeira morada e pátria eterna das almas. Por meio deles rasga-se um claro azul na vida infinita. Vai renascer a esperança nos corações angustiados e a humanidade vai reconciliar-se com a morte.

*

As religiões têm contribuído poderosamente para a educação humana; têm oposto um freio às paixões violentas, à barbaria das idades de ferro, e gravado fortemente a noção moral no íntimo das consciências. A estética religiosa criou obras-primas em todos os domínios; teve parte ativa na revelação de arte e beleza que prossegue pelos séculos além. A arte grega criara maravilhas; a arte cristã atingiu o sublime nas catedrais góticas que se erguem, bíblias de pedra sob o céu, com as suas altaneiras torres esculpidas, suas naves imponentes, cheias de vibrações dos órgãos e dos cantos sagrados, suas altas ogivas, de onde a luz desce em ondas e se derrama pelos afrescos e pelas estátuas; mas o seu papel está a terminar, visto que, atualmente, ou se copia a si mesma ou, exausta, entra em descanso.

O erro religioso, principalmente o católico, não pertence à ordem estética, que não engana; é de ordem lógica. Consiste em encerrar a Religião em dogmas estreitos, em moldes rígidos. Enquanto o movimento é a própria lei da vida, o Catolicismo imobilizou o pensamento, em vez de provocar-lhe o vôo.

Está na natureza do homem exaurir todas as formas de uma idéia, ir até aos extremos, antes de prosseguir o curso normal da sua evolução. Cada verdade religiosa, afirmada por um inovador, enfraquece-se e altera-se com o tempo, por serem quase sempre incapazes os discípulos de se manterem na altura a que o Mestre os atraíra. Desde esse momento a doutrina torna-se uma fonte de abusos e provoca pouco a pouco um movimento contrário, no sentido do cepticismo e da negação. À fé cega sucede a incredulidade; o materialismo faz sua obra e somente quando ele mostra toda a sua impotência na ordem social é que se torna possível uma renovação idealista.

Correntes diversas – judaica, helênica, gnóstica – misturam-se e chocam-se, desde os primeiros tempos do Cristianismo, na esteira da religião nascente; declaram-se cismas. Sucedem-se rupturas, conflitos, no meio dos quais o pensamento do Cristo se vai pouco a pouco velando e obscurecendo.

Mostramos [xi] quais as alterações, as acomodações sucessivas de que foi objeto a doutrina cristã na sucessão dos tempos. O verdadeiro Cristianismo era uma lei de amor e liberdade, as igrejas fizeram dele uma lei de temor e escravidão. Daí o se afastarem gradualmente da igreja os pensadores; daí o enfraquecimento do espírito religioso.

Com a perturbação que invadiu os espíritos e as consciências, o materialismo ganhou terreno. A sua moral, que pretende foros de científica, que proclama a necessidade da luta pela vida, o desaparecimento dos fracos e a seleção dos fortes, reina hoje, quase como soberana, tanto na vida pública, quanto na vida privada. Todas as atividades se aplicam à conquista do bem-estar e dos gozos físicos. Por falta de preparação moral e de disciplina, a alma perde as suas energias; insinuam-se por toda parte o mal-estar e a discórdia, na família e na nação. É, dizíamos, um período de crise. Não obstante as aparências, nada morre; tudo se transforma e renova. A dúvida, que assedia as almas em nossa época, prepara o caminho para as convicções de amanhã, para a fé inteligente e esclarecida, que há de reinar no futuro e estender-se a todos os povos, a todas as raças.

Embora jovem e dividida pelas necessidades de território, de distância, de clima, a humanidade começou a ter consciência de si mesma. Acima e fora dos antagonismos políticos e religiosos, constituem-se agrupamentos de inteligências. Homens preocupados com os mesmos problemas, aguilhoados pelos mesmos cuidados, inspirados pelo Invisível, trabalham numa obra comum e procuram as mesmas soluções. Pouco a pouco vão aparecendo, fortificando-se, aumentando, os elementos de uma ciência psicológica e de uma crença universais. Um grande número de testemunhas imparciais vê nisso o prelúdio de um movimento do pensamento, tendendo a abranger todas as sociedades da Terra.[xii]

A idéia religiosa acaba de percorrer o seu ciclo inferior e se vão desenhando os planos de uma espiritualidade mais elevada. Pode-se dizer que a Religião é o esforço da humanidade para comunicar com a Essência eterna e divina. É essa a razão pela qual haverá sempre religiões e cultos, cada vez mais liberais e conformes às leis superiores da Estética, que são a expressão da harmonia universal. O belo, nas suas regras mais elevadas, é uma lei divina e as suas manifestações em relação com a idéia de Deus revestirão forçosamente um caráter religioso.

À proporção que o pensamento se vai aperfeiçoando, missionários de todas as ordens vêm provocar a renovação religiosa no seio da humanidade. Assistimos ao prelúdio de uma dessas renovações, maior e mais profunda que as precedentes. Já não tem somente homens por mandatários e intérpretes, o que tornaria a nova dispensação tão precária como as outras. São os Espíritos inspiradores, os gênios do espaço, que exercem ao mesmo tempo a sua ação em toda a superfície do Globo e em todos os domínios do pensamento. Sobre todos os pontos aparece um novo espiritualismo.

Imediatamente surge a pergunta: “Que és tu, ciência ou religião? Espíritos de pouco alcance, credes então que o pensamento há de seguir eternamente os carreiros abertos pelo passado?!”

Até aqui todos os domínios intelectuais têm permanecido separados uns dos outros, cercados de barreiras, de muralhas – a Ciência de um lado, a Religião do outro. A Filosofia e a Metafísica estão eriçadas de sarças impenetráveis. Quando tudo é simples, vasto e profundo no domínio da alma como no do universo, o espírito de sistema tudo complicou, apoucou, dividiu. A Religião foi emparedada no sombrio ergástulo dos dogmas e dos mistérios; a Ciência foi enclausurada nas mais baixas camadas da Matéria. Não é essa a verdadeira religião, nem a verdadeira ciência. Bastará nos elevemos acima dessas classificações arbitrárias para compreendermos que tudo se concilia e reconcilia numa visão mais alta.

A nossa ciência, posto que elementar, quando se entrega ao estudo do espaço e dos mundos, não provoca, desde logo e imediatamente, um sentimento de entusiasmo, de admiração quase religiosa? Lede as obras dos grandes astrônomos, dos matemáticos de gênio. Dir-vos-ão que o universo é um prodígio de sabedoria, de harmonia, de beleza, e que já na penetração das leis superiores se realiza a união da Ciência, da Arte e da Religião, pela visão de Deus na sua obra. Chegado a essas alturas, o estudo converte-se em contemplação e o pensamento em prece!

O Espiritualismo moderno vai acentuar, desenvolver essa tendência, dar-lhe um sentido mais claro e mais rigoroso. Pelo lado experimental, ainda não é mais do que uma ciência; pelo objetivo das suas investigações, penetra nas profundezas invisíveis e eleva-se até aos mananciais eternos, donde dimanam toda a força e toda a vida. Por essa forma une o homem ao Poder Divino e torna-se uma doutrina, uma filosofia religiosa. É, além disso, o laço que reúne duas humanidades. Por ele, os Espíritos prisioneiros na carne e os que estão livres chamam e respondem uns aos outros. Entre eles estabelece-se uma verdadeira comunhão.

Cumpre, pois, não ver nele uma religião, no sentido restrito, no sentido atual dessa palavra. As religiões do nosso tempo querem dogmas e sacerdotes e a doutrina nova não os comporta; está patente a todos os investigadores. O espírito de livre crítica, exame e verificação preside às suas investigações.

Os dogmas e os sacerdotes são necessários e sê-lo-ão por muito tempo ainda às almas jovens e tímidas, que todos os dias penetram no círculo da vida terrestre e não se podem reger por si, nem analisar as suas necessidades e sensações.

O Espiritualismo moderno dirige-se principalmente às almas desenvolvidas, aos espíritos livres e emancipados, que querem por si mesmos achar a solução dos grandes problemas e a fórmula do seu Credo. Oferece-lhes uma concepção, uma interpretação das verdades e das leis universais baseada na experiência, na razão e no ensino dos Espíritos. Acrescentai a isso a revelação dos deveres e das responsabilidades, única condição que dá base sólida ao nosso instinto de justiça; depois, com a força moral, as satisfações do coração, a alegria de tornar a encontrar, pelo menos com o pensamento, algumas vezes até com a forma,[xiii] os seres amados que julgávamos perdidos. À prova da sua sobrevivência junta-se a certeza de irmos ter com eles e com eles reviver vidas inumeráveis, vidas de ascensão, de felicidade ou de progresso.

Assim, esclarecem-se gradualmente os problemas mais obscuros, entreabre-se o Além; o lado divino dos seres e das coisas se revela. Pela força desses ensinamentos, a alma humana cedo ou tarde subirá e, das alturas a que chegar, verá que tudo se liga, que as diferentes teorias, contraditórias e hostis na aparência, não são mais do que aspectos diversos de um mesmo todo. As leis do majestoso universo resumir-se-ão para ela numa lei única, força ao mesmo tempo inteligente e consciente, modo de pensamento e ação. Por ela achar-se-ão ligados numa mesma unidade poderosa todos os mundos, todos os seres, associados numa mesma harmonia, arrastados para um mesmo fim.

Dia virá em que todos os pequenos sistemas, acanhados e envelhecidos, fundir-se-ão numa vasta síntese, abrangendo todos os reinos da idéia. Ciências, filosofias, religiões, divididas hoje, reunir-se-ão na luz e será então a vida, o esplendor do espírito, o reinado do Conhecimento.

Nesse acordo magnífico, as ciências fornecerão a precisão e o método na ordem dos fatos; as filosofias, o rigor das suas deduções lógicas; a Poesia, a irradiação das suas luzes e a magia das suas cores; a Religião juntar-lhes-á as qualidades do sentimento e a noção da estética elevada. Assim, realizar-se-á a beleza na força e na unidade do pensamento. A alma orientar-se-á para os mais altos cimos, mantendo ao mesmo tempo o equilíbrio de relação necessário para regular a marcha paralela e ritmada da inteligência e da consciência na sua ascensão para a conquista do bem e da verdade.

II
O critério da Doutrina dos Espíritos

O Espiritualismo moderno baseia-se num completo conjunto de fatos. Uns, simplesmente físicos, revelam-nos a existência e o modo de ação de forças por muito tempo desconhecidas; outros têm um caráter inteligente. Tais são: a escrita direta ou automática, a tiptologia, os discursos pronunciados em transe ou por incorporação. Todas estas manifestações já passamos em revista, analisando-as, noutra parte.[xiv] Vimos que são acompanhadas, freqüentes vezes, de sinais, de provas que estabelecem a identidade e a intervenção de almas humanas que viveram na Terra e às quais a morte deu a liberdade.

Foi por meio desses fenômenos que os Espíritos [xv] espalharam os seus ensinamentos no mundo e esses ensinamentos foram, como veremos, confirmados em muitos pontos pela experiência.

O novo espiritualismo dirige-se, pois, conjuntamente, aos sentidos e à inteligência. Experimental, quando estuda os fenômenos que lhe servem de base; racional, quando verifica os ensinamentos que deles derivam, e constitui um instrumento poderoso para a indagação da verdade, pois que pode servir simultaneamente em todos os domínios do conhecimento.

As revelações dos Espíritos, dizíamos, são confirmadas pela experiência. Eles ensinaram-nos teoricamente e demonstraram praticamente, desde 1850,[xvi] a existência de forças imponderáveis, dando-lhes o nome de fluidos, que a Ciência rejeitava então a priori. Depois, Sir W. Crookes, entre os sábios que gozam de grande autoridade, foi o primeiro a verificar a realidade dessas forças e a Ciência atual, dia a dia, vai reconhecendo a sua importância e variedade, graças às descobertas célebres de Roentgen, Hertz, Becquerel, Curie, G. Le Bon, etc.

Os Espíritos afirmavam e demonstravam a ação possível da alma sobre a alma, em todas as distâncias, sem o auxílio dos órgãos. Não obstante, essa ordem de fatos levantava oposição e incredulidade.

Ora, os fenômenos da telepatia, da sugestão mental, da transmissão do pensamento, observados e provocados hoje em todos os meios, vieram aos milhares, confirmar essas revelações.

Os Espíritos ensinavam a preexistência, a sobrevivência, as vidas sucessivas da alma. E eis que as experiências de F. Colavida, E. Marata, as do Coronel de Rochas, as minhas, etc. estabeleceram que não somente a lembrança das menores particularidades da vida atual até a mais tenra infância, mas também a das vidas anteriores estão gravadas nos recônditos da consciência. Um passado inteiro, velado no estado de vigília, reaparece, revive no estado de transe. Com efeito, essa rememoração pôde ser reconstituída num certo número de pacientes adormecidos, como mais tarde o estabeleceremos, quando mais especialmente tratarmos dessa questão.[xvii]

Vê-se, pois, que o Espiritualismo moderno não pode, a exemplo das antigas doutrinas espiritualistas, ser considerado como pura concepção metafísica. Apresenta-se com caráter mui diverso e corresponde às exigências de uma geração educada na escola do criticismo e do racionalismo, a qual os exageros de um misticismo mórbido e agonizante tornaram desconfiada.

Hoje, já não basta crer; quer-se saber. Nenhuma concepção filosófica ou moral tem probabilidade de triunfar se não tiver por base uma demonstração que seja, ao mesmo tempo, lógica, matemática e positiva e se, além disso, não a coroar uma sanção que satisfaça a todos os nossos instintos de justiça.

“Se alguém, disse Leibniz, quisesse escrever como matemático sobre filosofia e moral, poderia, sem obstáculo, fazê-lo com rigor.”

Mas, acrescenta Leibniz: “Raras vezes tem sido isso tentado e, ainda menos, com bom resultado.”

Pode-se observar que estas condições foram perfeitamente preenchidas por Allan Kardec na magistral exposição por ele feita em O Livro dos Espíritos. Esse livro é o resultado de um trabalho imenso de classificação, coordenação e eliminação, que teve por base milhões de comunicações, de mensagens, provenientes de origens diversas, desconhecidas umas das outras, obtidas em todos os pontos do mundo e que o eminente compilador reuniu depois de se ter certificado da sua autenticidade. Tendo o cuidado de pôr de parte as opiniões isoladas, os testemunhos suspeitos, conservou somente os pontos em que as afirmações eram concordes.

Falta muito para que fique terminado esse trabalho, que, desde a morte do grande iniciador, não sofreu interrupção. Já possuímos uma síntese poderosa, cujas linhas principais Kardec traçou e que os herdeiros do seu pensamento se esforçam por desenvolver com o concurso do invisível. Cada um traz o seu grão de areia para o edifício comum, para esse edifício cujos fundamentos a experimentação científica torna a cada dia mais sólidos, mas cujo remate elevar-se-á cada vez mais alto.

Há trinta anos que, sem interrupção, eu mesmo posso dizê-lo, tenho recebido ensinamentos de guias espirituais, que não têm cessado de me dispensar sua assistência e conselhos. As suas revelações tomaram caráter particularmente didático no decurso de sessões, que se sucederam no espaço de oito anos e das quais muitas vezes falei numa obra precedente.[xviii]

No livro de Allan Kardec, o ensino dos Espíritos é acompanhado, para cada pergunta, de considerações, comentários e esclarecimentos que fazem sobressair com mais nitidez a beleza dos princípios e a harmonia do conjunto. Aí é que se mostram as qualidades do autor. Esmerou-se ele, antes de tudo, em dar sentido claro e preciso às expressões que habitualmente emprega no seu raciocínio filosófico; depois, em definir bem os termos que podiam ser interpretados em sentidos diferentes. Ele sabia que a confusão que reina na maioria dos sistemas provém da falta de clareza das expressões usadas pelos seus autores.

Outra regra, não menos essencial em toda a exposição metódica, e que Allan Kardec escrupulosamente observou, é a que consiste em circunscrever as idéias e apresentá-las em condições que as tornem bem compreensíveis para qualquer leitor. Enfim, depois de ter desenvolvido essas idéias numa ordem e concatenação que as ligavam entre si, soube deduzir conclusões, que constituem já, na ordem racional e na medida das concepções humanas, uma realidade, uma certeza.

Por isso nos propomos a adotar aqui os termos, as vistas, os métodos de que se serviu Allan Kardec, como sendo os mais seguros, reservando-nos o acrescentar ao nosso trabalho todos os desenvolvimentos que resultaram das investigações e experiências feitas nos cinqüenta anos decorridos desde o aparecimento das suas obras.

Por tudo quanto acabamos de dizer, vê-se que a doutrina dos Espíritos, da qual Kardec foi o intérprete e o compilador judicioso, reúne, do mesmo modo que os sistemas filosóficos mais apreciados, as qualidades essenciais de clareza, lógica e rigor; mas o que nenhum outro sistema podia oferecer é o importante conjunto de manifestações por meio das quais essa doutrina se afirmou a princípio no mundo e pôde, depois, ser posta à prova, dia a dia, em todos os meios. Ela se dirige aos homens de todas as classes, de todas as condições; não somente aos seus sentidos e à sua inteligência, mas também ao que neles há de melhor: à sua razão, à sua consciência. Não constituem, na sua união, essas íntimas potências, um critério do bem e do mal, do verdadeiro e do falso, mais ou menos claro ou velado, sem dúvida, segundo o adiantamento das almas, mas que em cada uma delas se encontra como um reflexo da Razão Eterna, da qual elas emanam? [xix]

*

Há duas coisas na doutrina dos Espíritos: uma revelação do mundo espiritual e uma descoberta humana, isto é, de uma parte, um ensinamento universal, extraterrestre, idêntico a si mesmo nas suas partes essenciais e no seu sentido geral; da outra, uma confirmação pessoal e humana, que continua a ser feita segundo as regras da lógica, da experiência e da razão. A convicção que daí deriva fortalece-se e cada vez se torna mais rigorosa, à proporção que as comunicações aumentam em número e que, por isso mesmo, os meios de verificação se multiplicam e estendem.

Até agora, só tínhamos conhecido sistemas individuais, revelações particulares; hoje, são milhares de vozes, as vozes dos defuntos que se fazem ouvir. O mundo invisível entra em ação e, no número dos seus agentes, Espíritos eminentes deixam-se reconhecer pela força e beleza dos seus ensinamentos. Os grandes gênios do espaço, movidos por um impulso divino, vêm guiar o pensamento para cumes radiosos.[xx]

Não está aí uma vasta e grandiosa manifestação da Providência, sem igual no passado? A diferença dos meios só tem par na dos resultados. Comparemos.

A revelação pessoal é falível. Todos os sistemas filosóficos humanos, todas as teorias individuais, tanto as de Aristóteles, Tomás de Aquino, Kant, Descartes, Spinoza, como as dos nossos contemporâneos, são necessariamente influenciados pelas opiniões, tendências, preconceitos e sentimentos do revelador. Dá-se o mesmo com as condições de tempo e de lugar nas quais elas se produzem; outro tanto se pode dizer das doutrinas religiosas.

A revelação dos Espíritos, impessoal, universal, escapa à maior parte dessas influências, ao passo que reúne a maior soma de probabilidades, senão de certezas. Não pode ser abafada nem desnaturada. Nenhum homem, nenhuma nação, nenhuma igreja tem o privilégio dela. Desafia todas as inquisições e produz-se onde menos se espera encontrá-la. Têm-se visto homens que mais hostis lhe eram convertidos às novas idéias pelo poder das manifestações, comovidos até ao fundo da alma pelos rogos e exortações dos seus parentes falecidos, e fazerem-se espontaneamente instrumentos de ativa propaganda.

Não faltaram no Espiritismo os que, como S. Paulo, têm sido avisados: fenômenos semelhantes ao do caminho de Damasco lhes têm operado a conversão.

Os Espíritos têm suscitado o aparecimento de numerosos médiuns em todos os meios, no seio das classes e dos partidos mais diversos e até no fundo dos santuários. Sacerdotes têm recebido as suas instruções e as têm propagado abertamente ou, então, sob o véu do anonimato.[xxi] Seus parentes, seus amigos falecidos desempenhavam junto deles as funções de mestres e reveladores, ajuntando aos seus ensinos provas formais, irrecusáveis, da sua identidade.

Foi por tais meios que, em cinqüenta anos, conseguiu o Espiritismo assenhorear-se do mundo e sobre ele derramar a sua claridade. Existe um acordo majestoso em todas essas vozes que se têm elevado simultaneamente para fazer ouvir às nossas sociedades cépticas a boa nova da sobrevivência e resolver os problemas da morte e da dor. A revelação tem penetrado por via mediúnica no coração das famílias, chegando até ao fundo dos antros e dos infernos sociais. Não dirigiram, como é sabido, os forçados da prisão de Tarragona ao Congresso Espírita Internacional de Barcelona, em 1888, uma tocante adesão em favor de uma doutrina que, diziam eles, os convertera ao bem e os reconciliara com o dever?! [xxii]

No Espiritismo, a multiplicidade das fontes de ensino e de difusão constitui, portanto, um contraste permanente, que frustra e torna estéreis todas as oposições, todas as intrigas. Por sua própria natureza, a revelação dos Espíritos furta-se a todas as tentativas de monopólio ou falsificação. Em relação a ela é de todo impotente o espírito de domínio ou dissidência, porque, quando conseguissem extingui-la ou desnaturá-la num ponto, imediatamente ela reviveria em cem pontos diversos, malogrando assim ambições nocivas e perfídias.

Nesse imenso movimento revelador, as almas obedecem a ordens que partem do Alto; são elas próprias que o declaram. A sua ação é regulada de acordo com um plano traçado de antemão e que se desenrola com majestosa amplitude. Um conselho invisível preside, do seio dos Espaços, à sua execução. É composto de grandes Espíritos de todas as raças, de todas as religiões, da fina flor das almas que viveram neste mundo segundo a lei do amor e do sacrifício. Essas potências benfazejas pairam entre o céu e a Terra, unindo-os num traço de luz por onde sem cessar sobem as preces, por onde descem as inspirações.

Há, contudo, no que diz respeito à concordância dos ensinamentos espirituais, um fato, uma exceção que impressionou certos observadores e do qual eles se têm servido como de um argumento capital contra o Espiritismo: por que, objetam eles, os Espíritos que, na totalidade dos países latinos, afirmam a lei das vidas sucessivas e as reencarnações da alma na Terra, negam-na ou passam-na em claro nos países anglo-saxões? Como explicar uma contradição tão flagrante? Não há aí cabedal suficiente para destruir a unidade de doutrina que caracteriza a Revelação Nova?

Notemos que não há contradição alguma, mas simplesmente uma graduação originada de preconceitos de casta, de raça e religião, inveterados em certos países. O ensino dos Espíritos, mais completo, mais extenso desde o princípio nos centros latinos, foi, em sua origem, restringido e graduado em outras regiões, por motivos de oportunidade. Pode-se verificar que todos os dias aumenta na Inglaterra e na América o número das comunicações espíritas que afirmam o princípio das reencarnações sucessivas. Muitas delas fornecem até argumentos preciosos à discussão travada entre espiritualistas de diferentes escolas.

Tem lavrado de tal modo além do Atlântico à idéia reencarnacionista, que um dos principais órgãos espiritualistas americanos lhe é inteiramente favorável. O Light, de Londres, que ainda há pouco afastava essa questão, discute-a, hoje, com imparcialidade.

Parece, pois, que, se a princípio houve sombras e contradições, eram elas apenas aparentes e quase nenhuma resistência oferecem a um exame sério.[xxiii]

*

A Revelação Espírita levantou, como sucede com todas as doutrinas novas, muitas objeções e críticas. Ponderemos algumas. Acusam-nos, antes de tudo, de termos grande empenho em filosofar; acusam-nos de termos edificado, sobre a base de fenômenos, um sistema antecipado, uma doutrina prematura, e de havermos comprometido assim o caráter positivo do Espiritualismo moderno.

Um escritor de valia, fazendo-se intérprete de um certo número de psiquistas, resumia as suas críticas nestes termos: “Uma objeção séria contra a hipótese espírita é a que se refere à filosofia com que certos homens demasiadamente apressados dotaram o Espiritismo. O Espiritismo, que apenas devia ser uma ciência no seu início, é já uma filosofia imensa para a qual o universo não tem segredos.”

Poderíamos lembrar a esse autor que os homens de quem ele fala representaram em tudo isso simplesmente o papel de intermediários, limitando-se a coordenar e publicar os ensinamentos que recebiam por via mediúnica.

Por outro lado, devemos notar, haverá sempre indiferentes, cépticos, espíritos retardados, prontos a achar que andamos com muita pressa. Não haveria progresso possível, se tivesse de esperar pelos retardatários. É deveras engraçado ver pessoas, cujo interesse por essas questões apenas data de ontem, darem regras a homens como Allan Kardec, por exemplo, que só se atreveu a publicar os seus trabalhos ao cabo de anos de investigações laboriosas e de maduras reflexões, obedecendo nisso a ordens formais e bebendo em fontes de informação das quais os nossos excelentes críticos nem sequer parecem ter idéia.

Todos aqueles que seguem com atenção o desenvolvimento dos estudos psíquicos podem verificar que os resultados adquiridos vieram confirmar em todos os pontos e fortalecer cada vez mais a obra de Kardec.

Friedrich Myers, o eminente professor de Cambridge, que foi durante vinte anos, diz Charles Richet, a alma da Society for Psychical Researches, de Londres, e que o Congresso oficial internacional de Psicologia de Paris elevou, em 1900, à dignidade de presidente honorário, declara nas últimas páginas de sua obra magistral, La Personnalité Humaine, cuja publicação produziu no mundo sábio uma sensação profunda: “Para todo investigador esclarecido e consciencioso essas indagações vão dar lugar, lógica e necessariamente, a uma vasta síntese filosófica e religiosa.” Partindo desses dados, consagra o capítulo décimo a uma “generalização ou conclusão que estabelece um nexo mais claro entre as novas descobertas e os esquemas já existentes do pensamento e das crenças dos homens civilizados”.[xxiv]

Termina assim a exposição de seu trabalho:

“Bacon previra a vitória progressiva da observação e da experiência em todos os domínios dos estudos humanos; em todos, exceto um: o domínio das coisas divinas. Empenho-me em mostrar que essa grande exceção não é justificada. Pretendo que existe um método para chegar ao conhecimento das coisas divinas com a mesma certeza, a mesma segurança com que temos alcançado os progressos que possuímos no conhecimento das coisas terrestres. A autoridade das igrejas será substituída, assim, pela da observação e experiência. Os impulsos da fé transformar-se-ão em convicções racionais e firmes, que darão origem a um ideal superior a todos os que a humanidade houver conhecido até esse momento.”

Assim, o que certos críticos de pouca sagacidade consideram como tentativa prematura, aparece a F. Myers como “evolução necessária e inevitável”. A síntese filosófica, que remata a sua obra, recebeu, no meio científico, a mais alta aprovação. Para Sir Oliver Lodge, o acadêmico inglês, “constitui ela um dos mais vastos, compreensíveis e bem fundados esquemas que, acerca da existência, têm sido vistos”.[xxv]

O Prof. Flournoy, de Genebra, tece-lhe o maior elogio nos seus Archives de Psychologie de la Suisse Romande (junho de 1903).

Na França, outros homens de ciência, sem ser espíritas, chegam a conclusões idênticas.

Sr. Maxwell, doutor em Medicina, substituto do Procurador Geral junto à Corte de Apelação de Paris, exprimia-se assim:[xxvi]

“O Espiritismo vem a seu tempo e corresponde a uma necessidade geral... A extensão que essa doutrina está tomando é um dos fenômenos mais curiosos da época atual. Assistimos ao que me parece ser o nascimento de uma verdadeira religião sem cerimônias rituais e sem clero, mas com assembléias e práticas. Pelo que me diz respeito, acho extremo interesse nessas reuniões e sinto a impressão de assistir ao nascimento de um movimento religioso fadado para grandes destinos.”

À vista de tais apreciações, as argúcias e as recriminações dos nossos contraditores caem por si mesmas. A que devemos atribuir a sua aversão à doutrina dos Espíritos? Será por se tornar o ensino espírita, com a sua lei das responsabilidades, o encadeamento de causas e efeitos que se desenvolvem no domínio moral e a sanção dos exemplos que nos traz, um terrível embaraço para grande número de pessoas que pouca importância ligam à filosofia?

*

Falando dos fatos psíquicos, diz F. Myers:[xxvii] “Essas observações, experiências e induções abrem a porta a uma revelação.” É evidente que no dia em que se estabeleceram relações com o mundo dos Espíritos, pela própria força das coisas, levantou-se imediatamente, com todas as suas conseqüências, com aspectos novos, o problema do ser e do destino.

Diga-se o que se disser, não era possível comunicar com os parentes e amigos falecidos, abstraindo de tudo o que diz respeito ao seu modo de existência, sem tomar interesse pelas suas vistas forçosamente ampliadas e diferentes do que eram na Terra, pelo menos para as almas já desenvolvidas.

Em nenhuma época da História o homem pôde subtrair-se aos grandes problemas do ser, da vida, da morte, da dor. Apesar da sua impotência para resolvê-los, eles o têm preocupado incessantemente, voltando sempre com mais força, todas as vezes que ele tenta afastá-los, insinuando-se em todos os acontecimentos de sua vida, em todos os escaninhos do seu entendimento; batendo, por assim dizer, às portas da sua consciência. E quando uma nova fonte de ensinamentos, de consolação, de forças morais, quando vastos horizontes se abrem ao pensamento, como poderia ele ficar indiferente? Não ocorrerá conosco a mesma coisa que se passa com os nossos parentes? Não é, pois, nossa sorte futura, nossa sorte de amanhã que está em litígio?

Pois quê! O tormento e a angústia do desconhecido que afligem a alma através dos tempos, a intuição confusa de um mundo melhor, pressentido, desejado, a procura ansiosa de Deus e da sua justiça podem ser, em nova e mais larga medida, acalmados, esclarecidos, satisfeitos, e havíamos de desprezar os meios de o fazer? Não há nesse desejo, nessa necessidade, que o pensamento tem de sondar o grande mistério, um dos mais belos privilégios do ser humano? Não é isso o que constitui a dignidade, a beleza, a razão de ser da sua vida?

Não se tem visto, todas as vezes que temos desconhecido esse direito, esse privilégio, todas as vezes que temos renunciado por algum tempo a volver as vistas para o Além, a dirigir os pensamentos para uma vida mais elevada, o havermos querido restringir o horizonte; não se tem visto, concomitantemente, se agravarem as misérias morais, o fardo da existência cair com maior peso sobre os ombros dos desgraçados, o desespero e o suicídio aumentarem a área da sua devastação e as sociedades se encaminharem para a decadência e para a anarquia?

*

Há outro gênero de objeção: a filosofia espírita, dizem, não tem consistência; as comunicações em que se funda provêm as mais das vezes do médium, do seu próprio inconsciente, ou, então, dos assistentes. O médium em transe “lê no espírito dos consulentes as doutrinas que aí se acham acumuladas, doutrinas ecléticas, tomadas de todas as filosofias do mundo e, principalmente, do hinduísmo”.

Refletiu bem o autor dessas linhas nas dificuldades que tal exercício deve apresentar? Seria capaz de explicar os processos com cuja intervenção se pode ler, à primeira vista, no cérebro de outrem, as doutrinas que nele estão “acumuladas”? Se pode, faça-o; então, teremos fundamentado para ver, nas suas alegações, tão-somente palavras, nada mais do que palavras, empregadas levianamente e ao serviço de uma crítica apaixonada. Aquele que não quer parecer enganar-se com os sentimentos é muitas vezes logrado pelas palavras. A incredulidade sistemática num ponto torna-se às vezes credulidade ingênua em outro.[xxviii]

Lembraremos, antes de tudo, que as opiniões da maior parte dos médiuns, no princípio das manifestações, eram opostas inteiramente às opiniões enunciadas nas comunicações. Quase todos haviam recebido educação religiosa e estavam imbuídos das idéias de paraíso e inferno. As suas idéias acerca da vida futura, quando as tinham, diferiam sensivelmente das que os Espíritos expunham, o que, ainda hoje, é o caso mais freqüente; era o que sucedia com três médiuns do nosso grupo, senhoras católicas e dadas às respectivas práticas, que, apesar dos ensinos filosóficos que recebiam e transmitiam, nunca renunciaram completamente aos seus hábitos cultuais.[xxix]

Quanto aos assistentes, ouvintes, ou às pessoas designadas pelo nome de “consulentes”, não olvidemos tampouco que, ao alvorecer do Espiritismo na França, isto é, na época de Allan Kardec, os homens que possuíam noções de filosofia, quer oriental, quer druídica, comportando a teoria das transmigrações ou vidas sucessivas da alma, eram em pequeno número e tornava-se preciso ir procurá-los no seio das academias ou em alguns centros científicos muito retraídos.

Aos nossos contraditores perguntaremos como teria sido possível a médiuns inumeráveis, espalhados em toda a superfície da Terra, desconhecidos uns dos outros, constituírem sozinhos as bases de uma doutrina, com solidez bastante para resistir a todos os ataques, a todos os assaltos; assaz exata para que os seus princípios tenham sido confirmados e recebam todos os dias a confirmação da experiência, como o mostramos no princípio deste capítulo.

A respeito da sinceridade das comunicações medianímicas e do seu alcance filosófico, vamos citar as palavras de um orador, cujas opiniões não parecerão suspeitas a todos aqueles que conhecem a aversão que a maior parte dos eclesiásticos tem ao Espiritismo.

Num sermão pronunciado a 7 de abril de 1899, em Nova Iorque, o reverendo J. Savage, pregador de fama, dizia:

“Formam legião as supostas patacoadas que, dizem, vêm do outro mundo, ao mesmo tempo em que existe uma literatura moral completa das mais puras e de ensinos espiritualistas incomparáveis. Sei de um livro, cujo autor, diplomado de Oxford, pastor da Igreja inglesa, veio a ser espírita e médium.[xxx] Esse livro foi escrito automaticamente. Às vezes, para desviar o pensamento do trabalho que a mão executava, o autor lia Platão em grego e o seu livro, contrariamente ao que, em geral, se admite para obras desse gênero, achava-se em oposição absoluta às próprias crenças religiosas do autor, se bem que ele se tivesse convertido antes de o haver concluído. Essa obra contém ensinamentos morais e espirituais dignos de qualquer das Bíblias que existem no mundo.

As primeiras idades do Cristianismo eram (basta que leais São Paulo para vos recordardes) compostas de gente com quem as pessoas de consideração nada queriam ter em comum. O Espiritualismo moderno estreou por uma forma semelhante; mas, à sombra da sua bandeira enfileiram-se em nossos dias muitos nomes de fama e encontram-se os homens melhores e mais inteligentes. Lembrai-vos, pois, de que é, em geral, um grande movimento muito sincero.” [xxxi]

No seu discurso, o reverendo Savage soube dar a cada coisa o seu lugar. É certo que as comunicações medianímicas não oferecem todas o mesmo grau de interesse. Muitas há que são um conjunto de banalidades, de repetições, de lugares comuns. Nem todos os Espíritos têm capacidade para nos dar ensinamentos úteis e profundos. Como na Terra, e mais ainda, a escala dos seres no espaço comporta graus infinitos. Ali se encontram as mais nobres inteligências, como as almas mais vulgares, mas, às vezes, os próprios Espíritos inferiores, descrevendo a sua situação moral, as suas impressões à hora da morte e no Além, iniciando-nos nas particularidades da sua nova existência, fornecem materiais preciosos para determinarmos as condições da sobrevivência segundo as diversas categorias de Espíritos. Podemos, pois, em nossas relações com os Invisíveis, granjear elementos de instrução; todavia, nem tudo se deve aproveitar. Ao experimentador prudente e sagaz incumbe saber separar o ouro da ganga. A verdade não nos chega sempre pura e a ação do Alto deixa às faculdades e à razão do homem o campo necessário para se exercitarem e desenvolverem.

Em tudo isso é preciso andar com todas as cautelas, a tudo aplicar contínuo e atento exame,[xxxii] precaver-se contra as fraudes, conscientes ou inconscientes, e ver se não há, nas mensagens escritas, um simples caso de automatismo. Para isso, convém averiguar se as comunicações são, pela forma e pelo fundo, superiores às capacidades do médium. É preciso exigir, da parte dos manifestantes, provas de identidade e não abrir mão de todo o rigor, senão nos casos em que os ensinamentos, em virtude da sua superioridade e majestosa amplitude, se impõem por si mesmos e estão muito acima das faculdades do transmissor.

Uma vez reconhecida a autenticidade das comunicações, é preciso ainda comparar entre si e submeter a exame severo os princípios científicos e filosóficos que elas expõem e aceitar somente os pontos em que há quase unanimidade de vistas.

Além das fraudes de origem humana, há também as mistificações de origem oculta. Todos os experimentadores sérios sabem que existem duas espécies de Espiritismo: um, praticado a torto e a direito, sem método, sem elevação de pensamento, atrai para nós os basbaques do espaço, os Espíritos levianos e zombeteiros, que são numerosos na atmosfera terrestre; o outro, de mais circunspeção, praticado com seriedade, com sentimento respeitoso, põe-nos em relação com os Espíritos adiantados, desejosos de socorrer e esclarecer aqueles que os chamam com fervor de coração. É o que as religiões têm conhecido e designado pelo nome de comunicação dos santos.

Pergunta-se também: como se pode distinguir, na vasta massa das comunicações, cujos autores são invisíveis, o que provém das entidades superiores e deve ser conservado? Para essa pergunta há uma só resposta. Como distinguimos nós os bons e maus livros dos autores falecidos há muito tempo? Como distinguir uma linguagem nobre e elevada de uma linguagem banal e vulgar? Não temos nós um estalão, uma regra para aquilatar os pensamentos, provenham eles do nosso mundo ou do outro? Podemos julgar as mensagens medianímicas principalmente pelos seus efeitos moralizadores, que inúmeras vezes têm melhorado muitos caracteres e purificado muitas consciências. É esse o critério mais seguro de todo o ensino filosófico.

Em nossas relações com os invisíveis há também meios de reconhecimento para distinguir os bons Espíritos das almas atrasadas. Os sensitivos reconhecem facilmente a natureza dos fluidos, que nos Espíritos bons são sutis, agradáveis, e nos maus são violentos, glaciais, custosos de suportar. Um dos nossos médiuns anunciava sempre com antecipação a chegada do “Espírito azul”, cuja presença era revelada por vibrações harmoniosas e radiações brilhantes.[xxxiii] Outros há que certos médiuns distinguem pelo cheiro. Delicados e suaves nuns,[xxxiv] são esses cheiros repugnantes noutros. Avalia-se a elevação de um Espírito pela pureza dos seus fluidos, pela beleza da sua forma e da sua linguagem.

Nessa ordem de investigações, o que mais impressiona, persuade e convence são as conversas travadas com os nossos parentes e amigos que nos precederam na vida do espaço. Quando provas incontestáveis de identidade nos têm dado a certeza da sua presença, quando a intimidade de outrora, a confiança e a familiaridade reinam de novo entre eles e nós, as revelações, que nessas condições se obtêm, tomam um caráter dos mais sugestivos. Diante delas, as últimas hesitações do cepticismo dissipam-se forçosamente, dando lugar aos impulsos do coração.

É possível, na realidade, resistir às vozes, aos chamamentos daqueles que compartilharam a nossa vida e cercaram os nossos primeiros passos de terna solicitude, dos companheiros da nossa infância, da nossa juventude, da nossa virilidade que, um por um, se sumiram na morte, deixando, ao partir, mais solitário, mais desolado o nosso caminho? No transe eles voltam com atitudes, inflexões de voz, evocações de lembranças, com milhares e milhares de provas de identidade, banais nas suas particularidades para os estranhos, tão comovedoras, entretanto, para os interessados! Dão-nos instruções relativas aos problemas do Além, exortam-nos e consolam-nos. Os homens mais fleumáticos, os mais doutos experimentadores, como o professor Hyslop, não puderam resistir às influências de além-túmulo.[xxxv]

Demonstra isso que no Espiritismo não há tão-somente, como o pretendem alguns, práticas frívolas e abusivas, mas que nele se encontra um móvel nobre e generoso, isto é, a afeição pelos nossos mortos, o interesse que temos pela sua memória. Não é esse um dos lados mais respeitáveis da natureza humana, um dos sentimentos, uma das forças que elevam o homem acima da matéria e estabelecem a diferença entre ele e os irracionais?

Depois, a par disso, acima das exortações comovidas dos nossos parentes, devemos assinalar os surtos poderosos dos gênios do espaço, as páginas escritas febrilmente, na meia obscuridade, por médiuns do nosso conhecimento, incapazes de compreender-lhes o valor e a beleza, páginas em que o esplendor do estilo se alia à profundeza das idéias, ou então os discursos impressionantes, como muitas vezes ouvimos em nosso grupo de estudos, discursos pronunciados pelo órgão de um médium de saber e caráter modestos e em que um Espírito discorria, falando-nos do eterno enigma do mundo e das leis que regem a vida espiritual. Aqueles que tiveram a honra de assistir a essas reuniões sabem qual a influência penetrante que elas exerciam em todos nós. Apesar das tendências cépticas e do espírito zombador dos homens da nossa geração, há acentos, formas de linguagem, rasgos de eloqüência aos quais eles não poderiam resistir. Os mais prevenidos seriam obrigados a reconhecer neles o característico, o sinal incontestável de uma grande superioridade moral, o cunho da verdade. Na presença desses Espíritos, que por momentos desceram ao nosso mundo obscuro e atrasado, para nele fazerem brilhar uma fulguração do seu gênio, o criticismo mais exigente turba-se, hesita e cala-se.

Durante oito anos recebemos, em Tours, comunicações dessa ordem, que tocavam todos os grandes problemas, todas as questões importantes de filosofia e de moral. Formavam muitos volumes manuscritos. O resumo desse trabalho, demasiadamente extenso, de texto copioso demais para ser publicado na íntegra, quisera-o eu apresentar aqui. Jerônimo de Praga, o meu amigo, o meu guia do presente e do passado, o Espírito magnânimo que dirigiu os primeiros vôos da minha inteligência infantil em idades remotas, é seu autor. Quantos outros Espíritos eminentes não espalharam assim os seus ensinamentos pelo mundo, na intimidade de alguns grupos! Quase sempre anônimos, revelam-se apenas pelo alto valor das suas concepções. Foi-me dado soerguer alguns dos véus que encobriam a sua verdadeira personalidade. Devo, porém, guardar segredo, porque a fina flor dos Espíritos se distingue precisamente pela particularidade de se esconder sob designações emprestadas e querer ficar ignorada. Os nomes célebres que subscrevem certas comunicações, chãs e vazias, não são, na maioria dos casos, mais do que um engodo.

Quis com esses pormenores demonstrar que esta obra não é exclusivamente minha, que é, antes, o reflexo de um pensamento mais elevado que procuro interpretar. Está de acordo em todos os pontos essenciais com as vistas expressas pelos instrutores de Allan Kardec; todavia, pontos que eles deixaram obscuros, nela começam a ser discutidos. Tive também em consideração o movimento do pensamento e da ciência humana, de suas descobertas, e o cuidado de assinalá-los nesta obra. Em certos casos, acrescentei-lhe as minhas impressões pessoais e os meus comentários, porque, no Espiritismo, nunca é demais dizê-lo, não há dogmas e cada um dos seus princípios pode e deve ser discutido, julgado, submetido ao exame da razão.

Considerei como um dever conseguir que desses ensinamentos tirassem proveito os meus irmãos da Terra. Uma obra vale pelo que é. Seja o que for que pensem e digam da Revelação dos Espíritos, não posso admitir que, quando em todas as Universidades se ensinam sistemas metafísicos arquitetados pelo pensamento dos homens, se possa desatender e rejeitar os princípios divulgados pelas nobres Inteligências do espaço.

A nossa estima aos mestres da razão e da sabedoria humana não é motivo para deixarmos de dar o devido apreço aos mestres da razão sobre-humana, aos representantes de uma sabedoria mais alta e mais grave. O espírito do homem, comprimido pela carne, privado da plenitude dos seus recursos e percepções, não pode chegar de per si ao conhecimento do universo invisível e de suas leis. O círculo em que se agitam a nossa vida e o nosso pensamento é limitado, assim como é restrito o nosso ponto de vista. A insuficiência dos dados que possuímos torna toda a nossa generalização impossível. Para penetrarmos no domínio desconhecido e infinito das leis, precisamos de guias. Com a colaboração dos pensadores eminentes dos dois mundos, das duas humanidades, é que alcançaremos as mais altas verdades, ou pelo menos chegaremos a entrevê-las, e que serão estabelecidos os mais nobres princípios. Muito melhor e com muito mais segurança do que os nossos mestres da Terra, os do espaço sabem pôr-nos em presença do problema da vida e do mistério da alma e, igualmente, ajudar-nos a adquirir a consciência da nossa grandeza e do nosso futuro.

*

Às vezes fazem-nos uma pergunta, opõem-nos uma nova objeção. Em vista da infinita variedade das comunicações e da liberdade que cada um tem de apreciá-las, de verificá-las à sua vontade, que há de ser, dizem-nos, da unidade de doutrina, essa unidade poderosa que tem feito a força, a grandeza das religiões sacerdotais e lhes tem assegurado a duração?

O Espiritismo, já o dissemos, não dogmatiza; não é uma seita nem uma ortodoxia. É uma filosofia viva, patente a todos os espíritos livres, e que progride por evolução. Não faz imposições de ordem alguma; propõe e sua proposta apóia-se em fatos de experiência e provas morais; não exclui nenhuma das outras crenças, mas se eleva acima delas e abraça-as numa fórmula mais vasta, numa expressão mais elevada e extensa da verdade.

As Inteligências superiores abrem-nos o caminho, revelam-nos os princípios eternos, que cada um de nós adota e assimila, na medida da sua compreensão, consoante o grau de desenvolvimento atingido pelas faculdades de cada um na sucessão das suas vidas.

Em geral, a unidade de doutrina é obtida unicamente à custa da submissão cega e passiva a um conjunto de princípios, de fórmulas fixadas em moldes inflexíveis. É a petrificação do pensamento, o divórcio da Religião e da Ciência, a qual não pode passar sem liberdade e movimento.

Essa imobilidade, esta inflexibilidade dos dogmas priva a Religião, que a si mesma as impõe, de todos os benefícios do movimento social e da evolução do pensamento. Considerando-se como a única crença boa e verdadeira, chega ao ponto de proscrever tudo o que está fora dela e empareda-se assim numa tumba para dentro da qual quisera arrastar consigo a vida intelectual e o gênio das raças humanas.

O que o Espiritismo mais toma a peito é evitar as funestas conseqüências da ortodoxia. A sua revelação é uma exposição livre e sincera de doutrinas, que nada têm de imutáveis, mas que constituem um novo estádio no caminho da verdade eterna e infinita. Cada um tem o direito de analisar-lhe os princípios, que apenas são sancionados pela consciência e pela razão. Mas, adotando-os, deve cada um conformar com eles a sua vida e cumprir as obrigações que deles derivam. Quem a eles se esquiva não pode ser considerado como adepto verdadeiro.

Allan Kardec colocou-nos sempre de sobreaviso contra o dogmatismo e o espírito de seita; recomenda-nos sem cessar, nas suas obras, que não deixemos cristalizar o Espiritismo e evitemos os métodos nefastos, que arruinaram o espírito religioso das criaturas.

Nos nossos tempos de discórdias e lutas políticas e religiosas, em que a Ciência e a ortodoxia estão em guerra, quiseram demonstrar aos homens de boa vontade, de todas as opiniões, de todos os campos, de todas as crenças, assim como a todos os pensadores verdadeiramente livres e de largo descortino, que há um terreno neutro, o do espiritualismo experimental, onde nos podemos encontrar, dando-nos mutuamente as mãos. Não mais dogmas! Não mais mistérios! Abramos o entendimento a todos os sopros do espírito, bebamos em todas as fontes do passado e do presente. Digamos que em todas as doutrinas há parcelas da verdade; nenhuma, porém, a encerra completamente, porque a verdade, em sua plenitude, é mais vasta do que o espírito humano.

É somente no acordo das boas vontades, dos corações sinceros, dos espíritos livres e desinteressados que se realizarão a harmonia do pensamento e a conquista da maior soma de verdade assimilável para o homem da Terra, no atual período histórico.

Dia virá em que todos hão de compreender que não há antítese entre a Ciência e a verdadeira Religião. Há apenas mal-entendidos. A antítese se dá entre a Ciência e a ortodoxia, o que nos é provado pelas recentes descobertas da Ciência, que nos aproximam sensivelmente das doutrinas sagradas do Oriente e da Gália, no que diz respeito à unidade do mundo e à evolução da vida. Por isso é que podemos afirmar que, prosseguindo a sua marcha paralela na grande estrada dos séculos, a Ciência e a crença forçosamente encontrar-se-ão um dia, pois que idênticos são ambos os seus alvos, que acabarão por se penetrarem reciprocamente. A Ciência será a análise; a Religião será a síntese. Nelas unificar-se-ão o mundo dos fatos e o mundo das causas, os dois termos da inteligência humana vincular-se-ão, rasgar-se-á o véu do Invisível; a obra divina aparecerá a todos os olhares em seu majestoso esplendor!

*

As alusões que acabamos de fazer às doutrinas antigas poderiam levantar outra objeção: “Não são, pois, dir-nos-ão, inteiramente novos os ensinamentos do Espiritismo?” Não, sem dúvida. Em todos os tempos da humanidade, têm rebentado relâmpagos, o pensamento em marcha tem sido iluminado por lampejos e as verdades necessárias têm aparecido aos sábios e aos investigadores. Os homens de gênio, do mesmo modo que os sensitivos e os videntes, têm recebido sempre do Além revelações apropriadas às necessidades da evolução humana.[xxxvi]

É pouco provável que os primeiros homens pudessem ter chegado, espontaneamente e só com o auxílio dos próprios recursos mentais, à noção de leis e mesmo às primeiras formas de civilização. Consciente ou não, a comunhão entre a Terra e o espaço tem existido sempre. Por isso, tornaríamos a encontrar nas doutrinas do passado a maior parte dos princípios que o ensino dos Espíritos de novo trouxe à luz.

De resto, esses princípios, reservados à minoria, não haviam penetrado até à alma das multidões. Essas revelações produziam-se, de preferência, sob a forma de comunicações insuladas, de manifestações que apresentavam caráter esporádico, as quais eram as mais das vezes consideradas como milagrosas; mas, volvidos vinte ou trinta séculos de trabalho lento e gestação silenciosa, o espírito crítico desenvolveu-se e a razão elevou-se até ao conceito de leis superiores. Esses fenômenos, com o ensino que lhes é conexo, reaparecem, generalizam-se, vêm guiar as sociedades hesitantes na árdua via do progresso.

É sempre nas horas turvas da História que as grandes concepções sintéticas se formam no seio da humanidade. Então, as religiões decrépitas, com as vozes enfraquecidas pela idade, e as filosofias com a sua linguagem demasiadamente abstrata, já não são suficientes para consolar os aflitos, levantar os ânimos abatidos, arrastar as almas para os altos cimos. Todavia, ainda há nelas muitas forças latentes e focos de calor que podem ser reavivados. Por isso não compartilhamos das vistas de certos teóricos que, nesse domínio, cogitam mais de demolir do que de restaurar. Seria um erro. Há distinções a fazer na herança do passado e mesmo nas religiões esotéricas, criadas para espíritos infantis, as quais correspondem todas às necessidades de certa categoria de almas. A sabedoria consistiria em recolher as parcelas de vida eterna, os elementos de direção moral que elas contêm, eliminando ao mesmo tempo as superfetações inúteis que a ação das idades e das paixões lhes foi adicionando.

Quem poderia executar essa obra de discriminação, de seleção, de renovação? Os homens estavam mal preparados para isso. Apesar dos avisos imperiosos da hora presente, apesar da decadência moral do nosso tempo, nem no santuário nem nas cátedras acadêmicas se tem elevado uma voz autorizada para dizer as palavras fortes e graves que o mundo esperava.

Só do Alto, pois, é que podia vir o impulso. Veio. Todos aqueles que têm estudado o passado, com atenção, sabem que há um plano no drama dos séculos. O pensamento divino manifesta-se de maneiras diferentes e a revelação é graduada de mil modos, conforme as exigências das sociedades. Foi por isso que, havendo soado a hora da nova dispensação, o Mundo Invisível saiu do seu silêncio. Por toda a Terra afluíram as comunicações dos defuntos, trazendo os elementos de uma doutrina em que se resumem e se fundem as filosofias e as religiões de duas humanidades. O escopo do Espiritismo não é destruir, mas unificar e completar, renovando. Vem separar, no domínio das crenças, o que tem vida do que está morto. Recolhe e ajunta, dos numerosos sistemas em que até o presente se tem encerrado a consciência da humanidade, as verdades relativas que eles contêm, para juntá-las às verdades de ordem geral que proclama. Em resumo, o Espiritismo vincula à alma humana, ainda incerta e débil, as asas poderosas dos largos espaços e, por esse meio, eleva-a a alturas donde pode abranger a vasta harmonia das leis e dos mundos e obter, ao mesmo tempo, visão clara do seu destino.

Esse destino se acha incomparavelmente superior a tudo que lhe haviam segredado as doutrinas da Idade Média e as teorias de outro tempo. É um futuro de imensa evolução que se abre continuamente para a alma, de esferas em esferas, de claridades em claridades, para um fim cada vez mais belo, cada vez mais iluminado pelos raios da justiça e do amor.

III
O problema do Ser

O primeiro problema que se apresenta ao pensamento é o do próprio pensamento, ou, antes, do ser pensante. É isto, para todos nós, assunto capital, que domina todos os outros e cuja solução nos reconduz às próprias origens da vida e do universo.

Qual a natureza da nossa personalidade? Comporta um elemento suscetível de sobreviver à morte? A essa questão estão afetas todas as apreensões, todas as esperanças da humanidade.

O problema do ser e o problema da alma fundem-se num só. É a alma [xxxvii] que fornece ao homem o seu princípio de vida e movimento. A alma humana é uma vontade livre e soberana, é a unidade consciente que domina todos os atributos, todas as funções, todos os elementos materiais do ser, como a Alma divina domina, coordena e liga todas as partes do universo para harmonizá-las.

A alma é imortal, porque o nada não existe e coisa alguma pode ser aniquilada, nenhuma individualidade pode deixar de ser. A dissolução das formas materiais prova simplesmente uma coisa: que a alma é separada do organismo por meio do qual comunicava com o meio terrestre. Não deixa, por esse fato, de prosseguir a sua evolução em novas condições, sob formas mais perfeitas e sem nada perder da sua identidade. De cada vez que ela abandona o seu corpo terrestre, encontra-se novamente na vida do espaço, unida ao seu corpo espiritual, do qual é inseparável, à forma imponderável que para si preparou com os seus pensamentos e obras.

Esse corpo sutil, essa duplicação fluídica existe em nós no estado permanente. Embora invisível, serve, entretanto, de molde ao nosso corpo material. Este não representa, no destino do ser, o papel mais importante. O corpo visível, ou corpo físico, varia. Formado de acordo com as necessidades da vida terrestre, é temporário e perecível; desagrega-se e dissolve-se quando morre. O corpo sutil permanece; preexistindo ao nascimento, sobrevive às decomposições da campa e acompanha a alma nas suas transmigrações. É o modelo, o tipo original, a verdadeira forma humana, à qual vêm incorporar-se temporariamente as moléculas da carne. Essa forma sutil, que se mantém no meio de todas as variações e de todas as correntes materiais, mesmo durante a vida pode separar-se, em certas condições, do corpo carnal, e também agir, aparecer, manifestar-se à distância, como mais adiante veremos, de modo a provar de maneira irrecusável sua existência independente.[xxxviii]

*

As provas da existência da alma são de duas espécies: morais e experimentais.

Vejamos primeiro as provas morais e as de ordem lógica; não obstante haverem servido muitas vezes, conservam toda a sua força e valor.

Segundo as escolas Materialista e Monista, a alma não é mais do que a resultante das funções cerebrais. “As células do cérebro – disse Haeckel – são os verdadeiros órgãos da alma. Esta está ligada à integridade delas. Cresce, decai e desaparece com elas. O gérmen material contém o ser completo, físico e mental.”

Responderemos em substância: A matéria não pode gerar qualidades que ela não tem. Átomos, sejam triangulares, circulares ou aduncos, não podem representar a razão, o gênio, o amor puro, a caridade sublime. O cérebro, dizem, cria a função. É caso compreensível que uma função possa conhecer-se, possuir a consciência e a sensibilidade? Como explicar a consciência, a não ser pelo espírito? Vem da matéria? Quantas vezes não está a primeira em luta com a última! Vem do interesse e do instinto de conservação? Revolta-se ela contra eles e leva-nos até ao sacrifício!

O organismo material não é o princípio da vida e das faculdades; é, ao contrário, o seu limite. O cérebro é um simples instrumento que serve ao Espírito para registrar as suas sensações. É comparável a um harmonia, em que cada tecla representaria um gênero especial de sensações. Quando o instrumento está perfeitamente afinado, as teclas dão, sob a ação da vontade, o som peculiar a cada uma delas e reina a harmonia em nossas idéias e em nossos atos; mas se as teclas estiverem estragadas, ou desfalcadas, o som produzido não será o que deve ser, a harmonia será incompleta. Resultará daí uma desafinação, por mais esforços que faça a inteligência do artista, ao qual será impossível tirar do instrumento defeituoso uma combinação de manifestações regulares. Assim se explicam as doenças mentais, as neuroses, a idiotia, a perda temporária da palavra ou da memória, a loucura, etc., sem que, por isso, a existência da alma fique comprometida. Em todos esses casos o Espírito subsiste, mas as suas manifestações são contrariadas e, às vezes, até aniquiladas por uma falta de correlação com o seu organismo.

Sem dúvida, o desenvolvimento do cérebro denota, de maneira geral, altas faculdades. Uma alma delicada e poderosa precisa de um instrumento mais perfeito, que se preste a todas as manifestações de um pensamento elevado e fecundo. As dimensões e circunvoluções do cérebro estão muitas vezes em relação direta com o grau de evolução do Espírito.[xxxix] Não se deve daqui deduzir que a memória é um simples jogo das células cerebrais. Estas modificam-se e renovam-se sem cessar, diz a Ciência, a tal ponto que o cérebro e o corpo passam por uma completa mudança material em poucos anos.[xl]

Nessas condições, como explicar que nos possamos recordar dos fatos que remontam a dez, vinte, trinta anos? Como rememoram os velhos com surpreendente facilidade todos os pormenores da sua infância? Como podem a memória, a personalidade, o “eu” persistir e manter-se no meio das contínuas destruições e reconstruções orgânicas? Outros tantos problemas insolúveis para o materialismo!

Os sentidos, dizem os psicólogos contemporâneos, são o único veículo para a alma, a suspensão dos primeiros implica o desaparecimento da outra. Notemos, entretanto, que o estado de anestesia, isto é, a supressão momentânea da sensibilidade, não elimina, de modo algum, a ação da inteligência. Esta se ativa, ao contrário, em casos nos quais, segundo as doutrinas materialistas, deveria estar aniquilada.

Buisson escrevia: “Se existe alguma coisa que possa demonstrar a independência do “eu”, é com certeza a prova que nos fornecem os pacientes submetidos à ação do éter. Nesse estado as suas faculdades intelectuais resistem aos agentes anestésicos.”

Velpeau, tratando do mesmo assunto, dizia: “Que mina fecunda não são para a Fisiologia e para a Psicologia os fatos como esses, que separam o espírito da matéria, a inteligência do corpo!”

Havemos de ver também por que forma, no sono comum ou no provocado, no sonambulismo e na exteriorização, a alma pode viver, perceber e agir sem o auxílio dos sentidos.

*

Se a alma, como diz Haeckel, representasse unicamente a soma dos elementos corporais, haveria sempre no homem correlação entre o físico e o mental. A relação seria direta e constante e perfeito o equilíbrio entre as faculdades, as qualidades morais de uma parte, e a constituição material, da outra. Os mais bem dotados no ponto de vista físico possuiriam também as almas mais inteligentes e mais dignas. Sabemos que assim não sucede, porque, muitas vezes, almas de escol têm habitado corpos débeis. A saúde e a força não implicam, nos que as possuem, um espírito sutil e brilhantes faculdades.

Mens sana in corpore sano, diz-se, é verdade; mas, há tantas exceções a esta máxima que não é possível considerá-la como regra absoluta. A carne cede sempre à dor; não sucede o mesmo com a alma, que, muitas vezes, resiste, exalta-se no sofrimento e triunfa dos agentes externos.

Os exemplos de Antígono, de Jesus, de Sócrates, de Joana d'Arc, dos mártires cristãos, dos hussitas e de tantos outros que embelezam a História e enobrecem a raça humana aí estão para lembrar-nos que as vozes do sacrifício e do dever podem elevar-se muito acima dos instintos da matéria. Nas horas decisivas, a vontade dos heróis sabe dominar as resistências do corpo.

Se o homem estivesse integralmente contido no gérmen físico, encontrar-se-iam nele unicamente as qualidades e os defeitos dos seus progenitores, na mesma proporção; mas, ao contrário, vêem-se por toda parte crianças que diferem dos pais, são-lhes superiores ou ficam-lhes inferiores. Irmãos, irmãos gêmeos, de uma semelhança física flagrante, apresentam, mental e moralmente considerados, caracteres dessemelhantes entre si e com os seus ascendentes.

As teorias do atavismo e da hereditariedade são impotentes para explicar os casos célebres de crianças artistas ou sábias – músicos como Mozart ou Paganini, calculistas como Mondeux e Inaudi, pintores de dez anos como Van der Kerkhove e tantos outros meninos-prodígio, cujas aptidões não se encontram nos pais ou só se encontram em grau muito inferior, como, por exemplo, nos ascendentes de Mozart.

As propriedades da substância material, transmitidas pelos pais, manifestam-se na criança pela semelhança física e pelos males constitucionais; mas a semelhança só persiste, quando muito, durante o primeiro período da vida. Desde que o caráter se define, desde que a criança se faz homem, vêem-se as feições se modificarem pouco a pouco, ao mesmo tempo em que as tendências hereditárias vão diminuindo e dando lugar a outros elementos, que constituem uma personalidade diferente, um ser às vezes distinto, pelos gostos, pelas qualidades, pelas paixões, de tudo quanto se encontra nos ascendentes. Não é, pois, o organismo material o que constitui a personalidade, mas sim o homem interior, o ser psíquico. À medida que este se desenvolve e se afirma por sua própria ação na existência, vê-se a herança física e mental dos pais ir pouco a pouco enfraquecendo e, muitas vezes, desaparecer.

*

A noção do bem, gravada no fundo das consciências, é, igualmente, prova evidente da nossa origem espiritual. Se o homem procedesse do pó ou fosse resultante das forças mecânicas do mundo, não poderíamos conhecer o bem e o mal, sentir remorso nem dor moral.

“Essas noções – dizem-nos – provêm dos vossos antepassados, da educação, das influências sociais!”

Mas, se essas noções são heranças exclusivas do passado, de onde foi que ele as recebeu? E por que se multiplicam em nós, não achando terreno favorável nem alimento?

Se a vista do mal vos tem causado sofrimento, se tendes chorado por vós e pelos outros, haveis de ter podido entrever, nessas horas de tristeza, de dor reveladora, as secretas profundezas da alma, as suas ligações misteriosas com o Além, e deveis compreender o encanto amargo e o fim elevado da existência, de todas as existências. Esse fim é a educação dos seres pela dor; é a ascensão das coisas finitas para a vida infinita.

Não, o pensamento e a consciência não derivam de um universo químico e mecânico. Ao contrário, dominam-no, dirigem-no e subjugam-no do Alto. Com efeito, não é o pensamento que pesa os mundos, mede a extensão e discrimina as harmonias do Cosmo? Só por um lado pertencemos ao mundo material. É por isso que tão vivamente padecemos com os seus males. Se lhe pertencêssemos completamente, sentir-nos-íamos muito mais em nosso elemento e ser-nos-iam poupados muitos sofrimentos.

A verdade acerca da natureza humana, da vida e do destino, o bem e o mal, a liberdade e a responsabilidade não se descobrem no fundo das retortas nem na ponta os escalpelos. A ciência material não pode julgar coisas do espírito. Só o espírito pode julgar e compreender o espírito, e isso na razão do grau da sua evolução. É da consciência das almas superiores, dos seus pensamentos, dos seus trabalhos, dos seus exemplos, dos seus sacrifícios, que brotam a luz mais intensa e o mais nobre ideal que podem guiar a humanidade no seu caminho.

O homem é, pois, ao mesmo tempo, espírito e matéria, alma e corpo; mas talvez espírito e matéria não sejam mais do que simples palavras, exprimindo de maneira imperfeita as duas formas da vida eterna, a qual dormita na matéria bruta, acorda na matéria orgânica, adquire atividade, se expande e se eleva no espírito.

Não haverá, como admitem certos pensadores, mais do que uma essência única das coisas, forma e pensamento ao mesmo tempo, sendo a forma um pensamento materializado e o pensamento a forma do espírito? [xli] É possível. O saber humano é limitado e até os olhares do gênio não são mais do que relâmpagos no domínio infinito das idéias e das leis.

Todavia, o que caracteriza a alma e absolutamente a diferencia da matéria é a sua unidade consciente. Sob a ação da análise, a matéria dispersa-se e dissipa-se. O átomo físico divide-se em sub-átomos, que, por sua vez, fragmentam-se indefinidamente. A matéria é inteiramente desprovida de unidade, como o estabeleceram as recentes descobertas de Becquerel, Curie e Le Bon.

No universo só o espírito representa o elemento uno, simples, indivisível e, por conseguinte, logicamente indestrutível, imperecível, imortal.

IV
A personalidade integral

A consciência, o “eu”, é o centro do ser, a própria essência da personalidade.

Ser pessoa é ter uma consciência, um “eu” que reflete, examina-se, recorda-se. Poder-se-á, porém, conhecer, analisar e descrever o “eu”, os seus misteriosos recônditos, as suas forças latentes, os seus germens fecundos, as suas atividades silenciosas? As psicologias, as filosofias do passado debalde o tentaram. Os seus trabalhos não fizeram mais do que tocar de leve a superfície do ser consciente. As camadas internas e profundas continuaram obscuras, inacessíveis, até ao dia em que as experiências do Hipnotismo, do Espiritismo, da renovação da memória aí projetaram, afinal, alguma luz.

Então se pôde ver que em nós se reflete, se repercute todo o universo na sua dupla imensidade, de espaço e de tempo. Dizemos de espaço, porque a alma, nas suas manifestações livres e plenas, não conhece as distâncias. Dizemos de tempo, porque um passado inteiro dorme nela ao lado do futuro que aí jaz no estado de embrião.

As escolas antigas admitiam a unidade e a continuidade do “eu”, a permanência, a identidade perfeita da personalidade humana e a sua sobrevivência. Os seus estudos basearam-se no sentir íntimo, no que em nossos dias se chama introspecção.

A nova psicologia experimental considera a personalidade como um agregado, um composto, uma “colônia”. Para ela é apenas aparente a unidade do ser, que pode decompor-se. O “eu” é uma coordenação passageira, disse Th. Ribot.[xlii] Essas afirmações baseiam-se em fatos de experiência, que não se podem deixar de parte, tais como vida intelectual inconsciente, alterações da personalidade, correlação entre as doenças da memória e as lesões do cérebro, etc.

Como aproximar e conciliar teorias tão dessemelhantes e contudo baseadas, ambas, na ciência de observação? De maneira simples. Pela própria observação, mais atenta, mais rigorosa. Myers disse-o por estes termos:[xliii]

“Uma investigação mais profunda, mais audaz, exatamente na direção que os psicólogos (materialistas) preconizam, mostra que eles se enganaram afirmando que a análise não provava a existência de nenhuma faculdade acima das que a vida terrestre, assim como eles a concebem, é capaz de produzir e o meio terrestre de utilizar. Porque, na realidade, a análise revela os vestígios de uma faculdade que a vida material ou planetária nunca poderia ter gerado e cujas manifestações implicam e fazem necessariamente supor a existência de um mundo espiritual. Por outro lado, e em favor dos partidários da unidade do “eu”, pode-se dizer que os dados novos são de natureza a fornecer às suas pretensões uma base muito mais sólida e uma prova presuntiva que se avantaja em força a todas as que eles poderiam ter imaginado, a prova, especialmente, de que o “eu” pode sobreviver, e sobrevive realmente, não só às desintegrações secundárias, que o afetam no curso da sua vida terrestre, mas também à desintegração derradeira que resulta da morte corporal.

Muito falta ao “eu” consciente de cada um de nós para poder compreender a totalidade da nossa consciência e das nossas faculdades. Existem uma consciência mais vasta e faculdades mais profundas, cuja maior parte se conserva virtual em relação à vida terrestre, das quais se desprenderam, por via de seleção, a consciência e as faculdades da vida terrestre; tais, consciência mais alta e faculdades mais profundas, de novo se afirmam em toda a plenitude depois da morte.

Tenho sido, há cerca de catorze anos, levado lentamente a essa conclusão, que revestiu para mim a sua forma atual, em conseqüência de uma longa série de reflexões baseadas em provas, cujo número ia aumentando progressivamente.”

Em certos casos vê-se aparecer em nós um ser muito diferente do ser normal, possuindo não só conhecimentos e aptidões mais extensas que as da personalidade comum, mas, além disso, dotado de modos de percepção mais poderosos e variados. Às vezes, até mesmo nos fenômenos de “segunda personalidade” o caráter se modifica e difere por tal forma do caráter habitual que alguns observadores se julgaram na presença de um outro indivíduo.

Cumpre fazer bem a distinção entre esses casos e os fenômenos de incorporações de Espíritos. Os médiuns, no estado de desdobramento, de sonambulismo, emprestam às vezes o seu organismo a entidades do Além, Espíritos desencarnados que dele se servem para comunicar com os homens; mas, então, os nomes, as particularidades, as provas de identidade fornecidas pelos manifestantes não permitem confusão alguma. A individualidade que se manifesta difere radicalmente da do paciente. Os casos de G. Pelham,[xliv] de Robert Hyslop, de Fourcade, etc. nos demonstram que as substituições de Espíritos não podem ser confundidas com os casos de personalidade dupla.

Sem embargo, o erro era possível. Com efeito, do mesmo modo que as incorporações de Espíritos, a intervenção de personalidades secundárias é precedida de um sono curto. Estas surgem, as mais das vezes, num acesso de sonambulismo ou mesmo após uma comoção. O período de manifestação, a princípio de breve duração, prolonga-se pouco a pouco, repete-se e vai-se destacando, cada vez com maior precisão, até adquirir e constituir uma cadeia de recordações particulares que se distinguem do conjunto das recordações registradas na consciência normal. Esse fenômeno pode ser facilitado ou provocado pela sugestão hipnótica. É mesmo provável que nos casos espontâneos, em que nenhuma vontade humana intervém, o fenômeno seja devido à sugestão de agentes invisíveis, guias e protetores do sujet. Exercem eles nesses casos, como veremos, a sua ação para um fim curativo, terapêutico.

No caso, célebre, de Félida, estudado pelo Doutor Azam,[xlv] os dois estados de consciência, ou variações da personalidade, são nitidamente estabelecidos:

“Quase todos os dias, sem causa conhecida ou sob o domínio de uma comoção, ela é tomada pelo que chama ‘a sua crise’. De fato, entra no seu segundo estado. Acha-se sentada com um trabalho de costura na mão; de repente, sem que nada o possa fazer prever e depois de uma dor nas fontes, mais violenta que de costume, a cabeça cai-lhe sobre o peito, as mãos ficam inativas e descem inertes ao longo do corpo. Dorme ou parece dormir um sono especial, porque nenhum barulho, nenhuma excitação, beliscadura ou picada a podem acordar. Ademais, essa espécie de sono sobrevém subitamente e dura dois ou três minutos. Antes durava muito mais.

Depois, Félida acorda: mas o seu estado intelectual não é o mesmo que era antes de adormecer. Tudo parece diferente. Ergue a cabeça e, abrindo os olhos, cumprimenta sorrindo as pessoas que a cercam, como se tivesse chegado nessa ocasião; a fisionomia, triste e silenciosa antes, ilumina-se e respira alegria. A sua palavra é breve. Cantarolando, continua a obra de agulha que, no estado precedente, havia começado. Levanta-se. O seu andar é ágil e quase não se queixa das mil dores que, momentos antes, a faziam sofrer. Cuida dos arranjos domésticos, anda pela rua, etc. O seu gênio mudou completamente; de triste fez-se alegre. A sua imaginação está mais exaltada; o motivo mais insignificante a entristece ou alegra; de indiferente passou a uma sensibilidade excessiva.

Nesse estado, lembra-se perfeitamente de tudo o que se passou nos outros estados semelhantes anteriores e também durante a sua vida normal. Nessa vida, como na outra, as suas faculdades intelectuais e morais, posto que diferentes, acham-se incontestavelmente na sua integridade: nenhuma idéia delirante, nenhuma falsa apreciação, nenhuma alucinação. Félida é outra, nada mais. Pode-se até mesmo dizer que nesse segundo estado, nessa segunda condição, como lhe chama M. Azam, todas as suas faculdades parecem mais desenvolvidas e completas.

Essa segunda vida, em que a dor física não se faz sentir, é muito superior à outra, principalmente pelo fato notável de, enquanto ela dura, Félida lembrar-se não só do que se passou durante os precedentes acessos, mas também de toda a sua vida normal; ao passo que, durante a vida normal, nenhuma lembrança tem do que se passou durante os acessos.”

Vê-se que aí não estão em jogo várias personalidades, mas simplesmente vários estados da mesma consciência. A relação subsiste entre esses diversos aspectos do ser psíquico. Pelo menos, o segundo estado, o mais completo, nada ignora do que fez o primeiro; ao passo que este não conhece o outro senão por ouvir dizer. O modo de existência n° 2 trata o n° 1 com algum desdém. Félida, no segundo estado, fala da “rapariga estúpida”, do mesmo modo que nós mesmos o faríamos falando do menino desajeitado, do bebe trapalhão, que fomos em outro tempo.

No caso de Louis Vivé,[xlvi] achamo-nos na presença de um fenômeno de “regressão da memória”. O sujet, sob a influência da sugestão hipnótica, revive todas as cenas da sua vida, como diz Myers, “com a rapidez e a facilidade de imagens cinematográficas. Não só os estados mentais passados e esquecidos voltam à memória ao mesmo tempo que as impressões físicas dessas variações, mas também quando um estado mental passado e esquecido é sugerido ao paciente, como sendo o seu estado atual, ele recebe imediatamente as impressões físicas correspondentes”.

Veremos mais adiante que, graças a experiências da mesma ordem, se tem podido reconstituir as excitações anteriores de certos pacientes com a mesma nitidez, o mesmo poder de impressões e sensações, o que nos levará a reconhecer que a ciência profunda do ser nos reserva muitas surpresas.

Em Mary Reynolds [xlvii] assistimos a uma transformação completa do caráter, que apresenta três fases distintas: uma caracterizada pelo desleixo e outra com disposições para a tristeza, tendendo a fundir-se num terceiro estado superior aos dois precedentes.

Outro caso fornecer-nos-á indicações preciosas sobre a natureza do segundo estado nas variações da personalidade. É o da Srta. R. L..., observado pelo Dr. Dufay e publicado na Revue Scientifique, de 5 de julho de 1876.

A Srta. R. L... – diz o Dr. Dufay – apresenta dois estados da personalidade. Tem perfeita consciência, no segundo estado, que é o estado de sonambulismo, da acuidade surpreendente que adquirem os seus sentidos. A alma é mais sensível; a inteligência e a memória recebem também um desenvolvimento considerável. Pode contar os fatos mais insignificantes dos quais teve conhecimento em qualquer época, embora deles não se recorde quando volta ao estado normal.

Não podemos passar em silêncio as observações da mesma natureza, feitas pelo Dr. Morton-Prince em relação à Srta. Beauchamp.[xlviii] Esta apresenta muitos aspectos da mesma personalidade, que se revelaram sucessivamente e foram sendo denominados, à medida que apareciam, B1, B2, B4, B5.

B1 é a Srta. Beauchamp em estado normal, pessoa séria, reservada, escrupulosa em excesso. B2 é a mesma em estado de hipnose, com mais desembaraço, simplicidade e memória mais extensa. B4, que se revela mais tarde, distingue-se das precedentes por um estado completo de unidade harmônica e de equilíbrio normal, mas a quem faz falta a memória dos seis últimos anos, em conseqüência de uma emoção violenta. Enfim, B5 que reúne, como em síntese, a memória dos estados já descritos.

A originalidade desse caso consiste na intervenção, em meio desses diversos aspectos da personalidade da Srta. Beauchamp, de uma personalidade que lhe é completamente estranha, como nos parece. Trata-se de B3, que se diz chamar Sally, ser esperta, travessa, na verdade faceira, pregando-lhe peças repetidas, uma vida bem difícil... Sally adapta-se, fisiologicamente, muito mal aos órgãos da médium.

Essa misteriosa Sally não poderia ser, segundo nós, senão uma entidade do espaço, conseguindo substituir-se, no sono, à pessoa normal e dispor, por um lapso de tempo, de um organismo cujo estado de equilíbrio está momentaneamente perturbado. Esse fenômeno pertence à categoria das incorporações de Espíritos, de que tratamos especialmente em outra obra.[xlix]

Por seu turno, o Dr. Herbert Mayo aponta um fenômeno de memória quíntuplo.[l] “O estado normal do sujet era interrompido por quatro variedades de estados mórbidos, dos quais ele não se recordava ao acordar, mas cada um desses estados conservava uma forma de memória que lhe era peculiar.”

Finalmente, F. Myers, na sua obra magistral,[li] relata, segundo o Dr. Mason, um caso de personalidade múltipla que entendemos dever reproduzir:

“Alma Z... era uma donzela muito sã e inteligente, de gênio inalterável e insinuante, espírito de iniciativa em tudo que empreendia, estudo, esporte, relações sociais. Em seguida a um cansaço intelectual e a uma indisposição da qual não fez caso, viu sua saúde seriamente comprometida e, decorridos dois anos de grandes sofrimentos, fez brusca aparição uma segunda personalidade. Numa linguagem meio infantil, meio indiana, esta personalidade anunciava-se como sendo a nº 2, que vinha para aliviar os sofrimentos da nº 1. Ora, o estado da nº 1 nesse momento era dos mais deploráveis – dores, debilidade, síncopes freqüentes, insônias, estomatite mercurial, de origem medicamentosa, impossibilitando a alimentação. A nº 2 era alegre e terna, de conversa sutil e espirituosa, inteligência clara, alimentando-se bem e abundantemente, com maior proveito, dizia ela, do que a nº 1. A conversa, por mais aprimorada e interessante que fosse, nada deixava suspeitar dos conhecimentos adquiridos pela primeira personalidade. Manifestava uma inteligência supranormal relativamente ao que se passava na vizinhança. Foi nessa época que o autor começou a observar esse caso e eu não o perdi de vista durante seis anos consecutivos. Quatro anos depois de ter aparecido a segunda personalidade, manifestou-se inopinadamente uma terceira que se fez conhecer pelo nome de “moleque”. Era completamente distinta e diferente das outras duas e tomara o lugar da nº 2, que esta ocupara por quatro anos.

Todas essas personalidades, posto que absolutamente distintas e características, eram, cada qual no seu gênero, interessantes, e a nº 2, em particular, tem feito e continua a fazer a alegria dos seus amigos, todas as vezes que aparece e que lhes é dado se aproximarem dela. Aparece sempre nos momentos de fadiga excessiva, de excitação mental, de prostração. Sobrevém, então, e persiste às vezes durante alguns dias. O “eu” original afirma sempre a sua superioridade, estando ali as outras apenas em atenção a ela e para seu proveito. A nº 1 nenhum conhecimento pessoal tem das outras duas personalidades; contudo, conhece-as bem, principalmente a nº 2, pelas narrativas das outras e pelas cartas que muitas vezes delas recebe, e admira as mensagens sutis, espirituosas e muitas vezes instrutivas que lhe trazem essas cartas ou as narrativas dos amigos.”

Limitar-nos-emos à citação dos fatos que acabamos de transcrever para não nos alongarmos demais. Existem muitos outros da mesma natureza, cuja descrição o leitor poderá encontrar nas obras especiais.[lii]

No seu conjunto, esses fenômenos demonstram que além do nível da consciência normal, fora da personalidade comum, existem em nós planos de consciência, camadas ou zonas dispostas de tal maneira que, em certas condições, se podem observar alternâncias nesses planos. Vê-se então emergirem e manifestarem-se, durante um certo tempo, atributos, faculdades que pertencem à consciência profunda, mas que não tardam a desaparecer para volverem ao seu lugar e tornarem a mergulhar na sombra e na inação.

O nosso “eu” ordinário, superficial, limitado pelo organismo, não parece ser mais do que um fragmento do nosso “eu” profundo. Neste está registrado um mundo inteiro de fatos, de conhecimentos, de recordações referentes ao longo passado da alma. Durante a vida normal, todas essas reservas permanecem latentes, como que sepultadas por baixo do invólucro material; reaparecem no estado de sonambulismo. O apelo da vontade e a sugestão as mobilizam e elas entram em ação e produzem os estranhos fenômenos que a psicologia oficial comprova sem os poder explicar.

Todos os casos de desdobramento da personalidade, todos os fenômenos de clarividência, telepatia, premonição, aparecimento de sentidos novos e de faculdades desconhecidas, todo esse conjunto de fatos, cujo número aumenta e constitui já um grandíssimo amálgama, deve ser atribuído à intervenção das forças e recursos da personalidade oculta.

O estado de sonambulismo, que permite a sua manifestação, não é um estado “regressivo” ou mórbido, como o julgaram certos observadores; é, antes, um estado superior e, segundo a expressão de Myers, “evolutivo”. É verdade que o estado de degenerescência e enfraquecimento orgânico facilita, em alguns pacientes, o afloramento das camadas profundas do “eu”, o que é designado pelo nome de histeria. Tudo o que, de um modo geral, deprime o corpo físico, favorece, convém notar, o desprendimento, a saída do Espírito. A esse respeito, muitos testemunhos nos seriam fornecidos pela lucidez dos moribundos; mas, para avaliar somente esses fatos, é mister considerá-los principalmente sob o ponto de vista psicológico. Aí está toda a sua importância.

A ciência materialista viu nesses fenômenos o que ela chama “desintegrações”, isto é, alterações e dissociações da personalidade. Os diversos estados da consciência aparecem algumas vezes tão distintos e os tipos que surgem são de tal modo diferentes do tipo normal, que têm levado a crer que se está em presença de várias consciências autônomas, em alternação no mesmo paciente. Acreditamos, com Myers, que nada disso sucede. Há aí simplesmente uma variedade de estados sucessivos coincidindo com a permanência do “eu”. A consciência é uma, mas se manifesta de diversos modos: de maneira restrita, na vida normal, enquanto está limitada ao campo do organismo; mais completa, mais extensa em estados de desprendimento e, finalmente, de maneira cabal, perfeita, na ocasião da morte, depois da separação definitiva, como o demonstram as manifestações e os ensinamentos dos Espíritos. A desagregação é, pois, apenas aparente. A única diferença entre os estados variados de consciência é uma diferença de graus. Esses graus podem ser numerosos. O espaço que, por exemplo, medeia entre o estado de incorporação e a exteriorização completa parece considerável. A personalidade não deixa, por isso, de permanecer idêntica através da concatenação dos fatos da consciência, que um laço contínuo liga entre si, desde as modificações mais simples do estado normal até os casos que comportam transformação da inteligência e do caráter; desde a simples idéia fixa e os sonhos até a projeção da personalidade no mundo espiritual, nesse Além onde a alma recupera a plenitude das suas percepções e dos seus poderes.

Já no decurso da existência terrestre, da infância à velhice, vemos o “eu” modificar-se incessantemente; a alma atravessa uma série de estados, anda em mudança contínua. Não obstante, no meio dessas diversas fases, é invariável a fiscalização que exerce sobre o organismo. A Fisiologia salientou a sábia e harmoniosa coordenação de todas as partes do ser, as leis da vida orgânica e do mecanismo nervoso, que não podem ser explicadas sem a presença de uma unidade central. Essa unidade soberana é a origem e a causa conservadora da vida; relaciona-lhe todos os elementos, todos os aspectos.

Foi por uma conseqüência não menos perniciosa das teorias materialistas que os “psicólogos” da escola oficial chegaram a considerar o gênio como uma neurose, quando ele pode ser a utilização, em maior escala, dos poderes psíquicos ocultos no homem.

Myers, falando da categoria dos histéricos que conduzem o mundo, emite a opinião de que “a inspiração do gênio não seria mais do que a emergência, no domínio das idéias conscientes, de outras idéias em cuja elaboração a consciência não tomou parte, mas que se têm formado isoladamente, por assim dizer, independentemente da vontade, nas regiões profundas do ser”.[liii]

Em geral, aqueles que tão levianamente são qualificados como “degenerados” são muitas vezes “progenerados”, e nestes sensitivos, histéricos ou neuróticos, as perturbações do organismo físico e as alterações nervosas muito caracterizadas em certas inteligências geniais, como em outro lugar vimos (No Invisível, último capítulo), podem realmente ser um processo de evolução pelo qual toda a humanidade terá de passar para chegar a um grau mais intenso da vida planetária.

O desenvolvimento do organismo humano até à sua expansão completa é sempre acompanhado de perturbações, do mesmo modo que o aparecimento de cada novo ser na Terra é delas precedido. Em nossos esforços dolorosos para maior soma de vida, os valores mórbidos transmutam-se em forças morais. As nossas necessidades são instintos em fusão, que se concretizam em novos sentidos para adquirir mais poder e conhecimento.

Mesmo no estado comum, no estado de vigília, emergências, impulsos do “eu” profundo podem remontar até às camadas exteriores da personalidade, trazendo intuições, percepções, lampejos bruscos sobre o passado e o futuro do ser, os quais denotam faculdades muito extensas, que não pertencem ao “eu” normal.

Cumpre relacionar com essa ordem de fenômenos a maior parte dos casos de escrita automática. Dizemos a maior parte, porque sabemos de outros que têm como causa agentes externos e invisíveis.

Há em nós uma espécie de reservatório de águas subterrâneas, donde, em certas horas, rompe e sobe à superfície uma corrente rápida e em ebulição. Os profetas, os mártires de todas as religiões, os missionários, os inspirados, os entusiastas de todos os gêneros e de todas as escolas conheceram esses impulsos surdos e poderosos, que nos têm brindado com as maiores obras que hão revelado aos homens a existência de um mundo superior.

V
A alma e os diferentes estados do sono

O estudo do sono fornece-nos indicações de grande importância sobre a natureza da personalidade. Em geral não se aprofunda muito o mistério do sono. O exame atento desse fenômeno, o estudo da alma e da sua forma fluídica durante a parte da existência que consagramos ao descanso, conduzir-nos-ão a uma compreensão mais alta das condições do ser na vida do Além.

O sono possui não só propriedades restauradoras que a Ciência não pôs no devido relevo, mas também um poder de coordenação e centralização sobre o organismo material. Pode, além disso, acabamos de o ver, provocar uma ampliação considerável das percepções psíquicas, maior intensidade do raciocínio e da memória.

Que é então o sono?

É simplesmente o desprendimento da alma, que sai do corpo. Diz-se: o sono é irmão da morte. Essas palavras exprimem uma verdade profunda. Seqüestrada na carne no estado de vigília, a alma recupera, durante o sono, a sua liberdade relativa, temporária, e ao mesmo tempo o uso dos seus poderes ocultos. A morte será a sua libertação completa, definitiva.

Já nos sonhos, vemos os sentidos da alma, esses sentidos psíquicos, dos quais os do corpo são a manifestação externa e amortecida, entrar em ação.[liv] À medida que as percepções externas se enfraquecem e apagam, quando os olhos estão fechados e suspenso o ouvido, outros meios mais poderosos despertam nas profundezas do ser. Vemos e ouvimos com os sentidos internos. Imagens, formas, cenas à distância sucedem-se e desenrolam-se; travam-se conversas com pessoas vivas ou falecidas. Esse movimento, muitas vezes incoerente e confuso no sono natural, adquire precisão e aumenta com o desprendimento da alma no sono provocado, no transe de sonambulismo e no êxtase.

Às vezes, a alma afasta-se durante o descanso do corpo e são as impressões das suas viagens, os resultados das suas indagações, das suas observações, que se traduzem pelo sonho. Nesse estado, um laço fluídico ainda a liga ao organismo material e, por esse vínculo sutil, espécie de fio condutor, as impressões e as vontades da alma podem transmitir-se ao cérebro. É pelo mesmo processo que, nas outras formas do sono, a alma governa o seu invólucro terrestre, fiscaliza-o, dirige-o. Essa direção, no estado de vigília, durante a incorporação, exercita-se de dentro para fora; efetuar-se-á em sentido inverso nos diferentes estados de desprendimento. A alma, emancipada, continuará a influenciar o corpo mediante o laço fluídico que continuamente liga um à outra. Desde esse momento, no seu poder psíquico reconstituído, a alma exercerá sobre o organismo carnal uma direção mais eficaz e segura. A marcha dos sonâmbulos à noite, em lugares perigosos e com inteira segurança, é uma demonstração evidente desse fato.

Sucede o mesmo com a ação terapêutica provocada pela sugestão. Esta é eficaz, principalmente no sentido de facilitar o desprendimento da alma e dar-lhe o poder absoluto de fiscalização, a liberdade necessária para dirigir a força vital acumulada no perispírito e, por esse meio, restaurar as perdas sofridas pelo corpo físico.[lv] Comprovamos esse fato nos casos de personalidade dupla. A segunda personalidade, mais completa, mais integral que a personalidade normal, substitui-a para um fim curativo, por meio de uma sugestão exterior, aceita e transformada em auto-sugestão pelo Espírito do sujet. Com efeito, este nunca abandona os seus direitos e poderes de fiscalização. Assim, como disse Myers, “não é a ordem do hipnotizador, mas antes a faculdade do paciente que forma o nó da questão”.[lvi]

O sábio professor de Cambridge disse mais:[lvii]

“O fim único de todos os processos hipnogênicos é dar energia à vida; é alcançar mais rápida e completamente resultados que a vida abandonada a si mesma só realiza lentamente e de forma incompleta.”

Por outros termos, o hipnotismo é a aplicação, num grau mais intenso, das energias reparadoras que entram em jogo no sono natural. A sugestão terapêutica é a arte de libertar o Espírito do corpo, de abrir-lhe uma saída pelo sono e permitir-lhe que exerça com plenitude os seus poderes sobre o corpo doente. As pessoas sugestionáveis são aquelas cujas almas indolentes ou que pouco têm evolvido não estão aptas para desprenderem-se por si mesmas e agir utilmente no sono ordinário para restaurar as perdas do organismo.

A sugestão em si mesma não é, pois, mais do que um pensamento, um ato da vontade, diferindo somente da vontade ordinária por sua concentração e intensidade. Em geral, os nossos pensamentos são múltiplos e hesitantes. Nascem e passam ou, então, quando coexistam em nós, chocam-se e confundem-se. Na sugestão, o pensamento e a vontade fixam-se num ponto único. Ganham em poder o que perdem em extensão. Por sua ação, que se torna mais penetrante, mais incisiva, provocam no sujet o despertar de faculdades não utilizadas no estado normal. A sugestão torna-se, então, uma espécie de impulso, de alavanca que mobiliza a força vital e dirige-a para o ponto onde ela tem de operar.

A sugestão pode exercer-se tanto na ordem física, por uma influência direta sobre o sistema nervoso, quanto na ordem moral, sobre o “eu” central e a consciência do sujet. Bem empregada, constitui ela um meio muito apreciável de educação, destruindo as tendências ruins e os hábitos perniciosos. A sua influência sobre o caráter produz, então, os mais felizes resultados.[lviii]

Voltemos ao sono ordinário e ao sonho. Enquanto o desprendimento da alma é incompleto, as sensações, as preocupações da vigília e as recordações do passado misturam.-se com as impressões da noite. As percepções registradas pelo cérebro desenrolam-se automaticamente, em desordem aparente, quando a atenção da alma está desviada do corpo e deixa de regular as vibrações cerebrais. Daí a incoerência da maior parte dos sonhos; mas, à medida que a alma se desprende e se eleva, a ação dos sentidos psíquicos torna-se predominante e os sonhos adquirem lucidez e nitidez notáveis. Clareiras cada vez mais largas, vastas perspectivas abrem-se no mundo espiritual, verdadeiro domínio da alma e lugar do seu destino. Nesse estado ela pode penetrar as coisas ocultas e até os pensamentos e os sentimentos de outros Espíritos.[lix]

Há em nós uma dupla vista, pela qual pertencemos, ao mesmo tempo, a dois mundos, a dois planos de existência. Uma está em relação com o tempo e o espaço, como nós os concebemos em nosso meio planetário com os sentidos do corpo: é a vida material; a outra, mediante os sentidos profundos e as faculdades da alma, liga-nos ao universo espiritual e aos mundos infinitos. No decurso da nossa existência terrestre, é principalmente quando dormimos que essas faculdades podem exercer-se e entrar em vibração as potências da alma. Esta torna a pôr-se em contacto com o universo invisível, que é a sua pátria e do qual estava separada pela carne. Retempera-se no seio das energias eternas para continuar, quando desperta, a sua tarefa penosa e obscura.

Durante o sono a alma pode, segundo as necessidades do momento, aplicar-se a reparar as perdas vitais causadas pelo trabalho cotidiano e regenerar o organismo adormecido, infundindo-lhe as forças tiradas do mundo cósmico, ou, quando está acabado esse movimento reparador, continuar o curso da sua vida superior, pairar sobre a Natureza, exercer as suas faculdades de visão à distância e penetração das coisas. Nesse estado de atividade independente vive já antecipadamente a vida livre do Espírito; porque essa vida, que é uma continuação natural da existência planetária, espera-a depois da morte, devendo a alma prepará-la não somente com as suas obras terrestres, mas também com as suas ocupações quando desprendida durante o sono. É graças ao reflexo da luz do Alto, que cintila em nossos sonhos e ilumina completamente o lado oculto do destino, que podemos entrever as condições do ser no Além.

Se nos fosse possível abranger com o olhar toda a extensão de nossa existência, reconheceríamos que o estado de vigília está longe de constituir-lhe a fase essencial, o elemento mais importante. As almas que de nós cuidam servem-se do nosso sono para exercitar-nos na vida fluídica e no desenvolvimento dos nossos sentidos de intuição. Efetua-se, então, um trabalho completo de iniciação para os homens ávidos de se elevarem.

Os vestígios desse trabalho encontram-se nos sonhos. Assim, quando voamos, quando deslizamos com rapidez pela superfície do solo, significa isso a sensação do corpo fluídico, ensaiando-se para a vida superior.

Sonhar que subimos sem cansaço, com facilidade surpreendente, através do espaço, sem embaraço nem medo, ou então que estamos pairando por cima das águas; atravessar paredes e outros obstáculos materiais sem ficarmos admirados de praticar atos que são impossíveis enquanto estamos acordados, não é a prova de que nos tornamos fluídicos pelo desprendimento? Tais sensações, tais imagens, que comportam completa inversão das leis físicas que regem a vida comum, não poderiam vir ao nosso espírito, se não fossem o resultado de uma transformação do nosso modo de existência.

Na realidade, já não se trata aqui de sonhos, mas de ações reais praticadas em outro domínio da sensação e cuja lembrança se insinuou na memória cerebral. Essas lembranças e impressões no-lo demonstram bem. Possuímos dois corpos, e a alma, sede da consciência, fica ligada ao seu invólucro sutil, enquanto o corpo material está deitado e em completa inércia.

Apontemos, todavia, uma dificuldade. Quanto mais a alma se afasta do corpo e penetra nas regiões etéreas, tanto mais fraco é o laço que os une, tanto mais vaga a lembrança ao acordar. A alma paira muito longe na imensidade e o cérebro deixa de registrar as suas sensações. Daí resulta não podermos analisar os nossos mais belos sonhos. Algumas vezes, a última das impressões sentidas no decurso dessas peregrinações noturnas subsiste ao despertar.

E se, nesse momento, tivermos o cuidado de fixá-la fortemente na memória, pode ficar lá gravada. Tive, uma noite, a sensação de vibrações percebidas no espaço, as últimas notas de uma melodia suave e penetrante, e a lembrança das derradeiras palavras de um cântico que findava assim: “Há céus inumeráveis!”

Às vezes sentimos, ao acordar, a vaga impressão de poderosas coisas entrevistas, sem nenhuma lembrança determinada. Essa espécie de intuição, resultante de percepções registradas na consciência profunda, mas não na consciência cerebral, persiste em nós durante certo tempo e influencia os nossos atos. Outras vezes, essas impressões traduzem-se nitidamente no sonho. Eis o que a respeito diz Myers:[lx]

“O resultado permanente de um sonho é muitas vezes de tal ordem que nos mostra claramente que o sonho não é o efeito de uma simples confusão com lembranças avivadas da vida passada, mas que possui um poder inexplicável que lhe é próprio e que ele tira, semelhante nisso à sugestão hipnótica, das profundezas da nossa existência, a que a vida de vigília é incapaz de chegar. Desse gênero, dois grupos de casos há que, pela clareza com que se patenteiam, facilmente podem ser reconhecidos; um deles, principalmente, em que o sonho acabou por uma transformação religiosa decidida, e o outro em que o sonho foi o ponto de partida de uma idéia obsidente ou de um acesso de verdadeira loucura.”

Esses fenômenos poderiam explicar-se pela comunicação, no sonho, da consciência superior com a consciência normal, ou pela intervenção de alguma Inteligência elevada que julga, reprova, condena o proceder do sonhador, ocasionando-lhe perturbação e um salutar receio. A obsessão pode também exercer-se por meio do sonho até a ponto de causar perturbação mental ao despertar. Terá como autores Espíritos malfazejos, a quem o nosso procedimento no passado e os danos que lhes causamos deram domínio sobre nós.

Insistimos também na propriedade misteriosa que tem o sono de fazer-nos senhores, em certos casos, de camadas mais extensas da memória.

A memória normal é precária e restrita, não vai além do círculo estreito da vida presente, do conjunto dos fatos, cujo conhecimento é indispensável por causa do papel que se tem de desempenhar na Terra e do fim que se deve alcançar. A memória profunda abrange toda a história do ser desde a sua origem, os seus estádios sucessivos, os seus modos de existência, planetários ou celestes. Um passado inteiro, feito de recordações e sensações, esquecido, ignorado no estado de vigília, está gravado em nós. Esse passado só desperta quando o Espírito se exterioriza durante o sono natural ou provocado. Uma regra conhecida de todos os experimentadores é que, nos diferentes estados do sono, à medida que se vai ficando a maior distância do estado de vigília e da memória normal, tanto mais a hipnose é profunda, tanto mais se acentua a expansão, a dilatação da memória. Myers confirma o fato nos seguintes termos:[lxi]

“A memória mais distanciada da vida de vigília é a que mais vasto alcance tem, é a que mais profundo poder exerce sobre as impressões acumuladas no organismo. Por mais inexplicável que esse fenômeno se tenha apresentado aos observadores, que com ele depararam sem possuírem a decifração do enigma, é certo que as observações independentes de centenas de médicos e de hipnotizadores atestam a sua realidade. O exemplo mais comum é fornecido pelo sono hipnótico ordinário. O grau de inteligência que se manifesta no sono varia segundo os sujets e as épocas; mas todas as vezes que esse grau é suficiente para autorizar um juízo, achamos que existe durante o sono hipnótico a memória considerável, que não é necessariamente uma memória completa ou razoável do estado de vigília; ao passo que na maior parte dos sujets acordados, salvo o caso de uma injunção especial dirigida ao “eu” hipnótico, nenhuma lembrança existe que se relacione com o estado de sono.

O sono ordinário pode ser considerado como ocupando uma posição que está entre a vida acordada e o sono hipnótico profundo; e parece provável que a memória pertencente ao sono ordinário liga-se, por um lado, à que pertence à vida de vigília e, pelo outro, à que existe no sono hipnótico. Realmente assim é, estando os fragmentos da memória do sono ordinário intercalados nas duas cadeias.”

Myers, em apoio às suas palavras, cita [lxii] vários casos em que fatos retrospectivos esquecidos, e outros dos quais o que dorme nunca teve conhecimento, se revelam no sonho.

As experiências a que se refere Myers (vê-las-emos quando tratarmos da questão das reencarnações) foram levadas muito mais longe do que ele o previa, e as conseqüências que daí provêm são imensas. Não só tem sido possível, pela sugestão hipnótica, reconstituir as menores recordações da vida atual, desaparecidas da memória normal dos sujets, mas também reatar o encadeamento das suas vidas passadas, já interrompido.

Ao mesmo tempo em que uma memória mais vasta e mais rica, vemos aparecer no sono faculdades que são muito superiores a todas as que desfrutamos no estado de vigília. Problemas estudados em vão, abandonados como insolúveis, são resolvidos no sonho ou no sonambulismo; obras geniais, operações estéticas da ordem mais elevada, poemas, sinfonias e hinos fúnebres são concebidos e executados. Há em tudo isso uma obra exclusiva do “eu” superior ou a colaboração de entidades espirituais que vêm inspirar os nossos trabalhos? É provável que esses dois fatores intervenham nos fenômenos dessa ordem.

Myers cita o caso de Agassiz descobrindo, enquanto dormia, o arranjo esquelético de ossadas dispersas que ele tentara, por várias vezes e sem resultado, acertar durante a vigília.

Lembraremos os casos de Voltaire, La Fontaine, Coleridge, S. Bach, Tartini, etc., executando obras importantes em condições análogas.[lxiii]

Finalmente, importa mencionar uma forma de sonhos cuja explicação escapou até agora à Ciência. São os sonhos premonitórios, complexo de imagens e visões que se referem a acontecimentos futuros e cuja exatidão é ulteriormente verificada. Parecem indicar que a alma tem o poder de penetrar o futuro ou que este lhe é revelado por inteligências superiores.

Assinalemos o sonho da Duquesa de Hamilton, que viu com antecipação de quinze dias a morte do Conde de L... com particularidades de natureza íntima que acompanharam esse acontecimento.[lxiv]

Um fato da mesma natureza foi publicado pelo Progressive Thinker de Chicago, a 1.° de novembro de 1913. Um magistrado de Hauser, M. Reed, morreu imediatamente, em conseqüência de uma guinada do automóvel em que viajava. Seu filho, de 10 anos de idade, tinha tido, por duas vezes seguidas, a visão dessa catástrofe em todos os seus pormenores. Apesar dos avisos e das súplicas de sua mulher, M. Reed achou que não devia renunciar ao projetado passeio, em que veio a encontrar a morte, nas circunstâncias idênticas às percebidas no sonho da criança.

M. Henri de Parville, no seu folhetim científico do Journal des Débats (maio de 1904) refere um, caso afiançado por testemunhos dignos de fé:

“Uma senhora, cujo marido desapareceu sem deixar vestígios e que ela não pôde descobrir apesar de todas as pesquisas a que procedeu, teve um sonho. Um cãozinho, que por muito tempo havia vivido na sua companhia, mas que o marido levara, aparece-lhe, dá latidos de alegria e cobre-a de carícias. Instala-se-lhe ao pé, não tira os olhos dela; depois, passado um momento, levanta-se e começa a arranhar a porta. Está feita a sua visita e precisa ir-se embora. Ela abre-lhe a porta e, no sonho, segue o animal, que se afasta, correndo; corre também atrás dele e, passado algum tempo, o vê entrar numa casa, cujo andar térreo é ocupado por um café. A rua, a casa e o bairro gravam-se-lhe na memória, que conserva a recordação de tudo isso depois de acordada. Preocupada com esse sonho, conta-o a três pessoas da vizinhança, que depois deram testemunho da autenticidade dos fatos. Decide-se, finalmente, a seguir a pista do cão e encontra o marido na rua e na casa que vira em sonho.”

Os Annales des Sciences Psychiques, de julho de 1905, citava dois sonhos premonitórios acompanhados de circunstâncias que lhe dão caráter muito comovente.

Finalmente, achamos na Revue de Psychologie de la Suisse Romande, 1905, pág. 379, o caso de um mancebo que se via muitas vezes a si mesmo numa alucinação autoscópica, precipitado do cimo de um rochedo e estendido, ensangüentado e contundido, no fundo de um barranco. Essa premonição fatal realizou-se, ponto por ponto, a 10 de julho de 1904, no monte du Salève, perto de Genebra.

*

À proporção que nos vamos elevando na ordem dos fenômenos psíquicos, vão-se eles apresentando com maior clareza, com maior rigor e trazem-nos provas mais decisivas da independência e da sobrevivência do Espírito.

As percepções da alma no sono são de duas espécies. Verificamos primeiramente a visão à distância, a clarividência, a lucidez; vem depois um conjunto de fenômenos designados pelos nomes de telepatia e telestesia (sensações e simpatias à distância). Compreende a recepção e transmissão dos pensamentos, das sensações, dos impulsos motrizes. Com esses fatos relacionam-se os casos de desdobramentos e aparições designados pelos nomes de fantasmas dos vivos. A psicologia oficial teve de verificar esses casos em grande número, sem os explicar.[lxv] Todos esses fatos ligam-se entre si e formam uma cadeia contínua. Em princípio, constituem, no fundo, um só e mesmo fenômeno, variável na forma e intensidade, isto é, o desprendimento gradual da alma. Vamos seguir esse desprendimento nas suas diversas fases, desde o despertar dos sentidos psíquicos e das suas manifestações em todos os graus até a projeção, à distância, de todo o Espírito, alma e corpo fluídico.

Examinemos primeiramente os casos em que a visão psíquica se exerce com agudeza notável. Citamos alguns nas nossas obras precedentes. Aqui apresentamos um, mais recente, publicado por toda a imprensa londrina.

O desaparecimento da Srta. Holland, processo criminal que apaixonou a Inglaterra, foi explicado por um sonho. A polícia a procurava inutilmente. O acusado, Samuel Douglas, que estava para ser solto, pretendia que ela havia partido para destino desconhecido. Os jornais de Londres publicaram desenhos que representavam a casa em que morava a Srta. Holland e o jardim da mesma casa. Uma criada viu a gravura e exclamou: “Aí está o meu sonho!”, e indicou um lugar, ao pé de uma árvore, dizendo: “Está ali um cadáver!” Soube-o a polícia e, na presença dos agentes, ela confirmou as suas declarações. Explicou que vira em sonho esse jardim e, no solo, no lugar indicado, um corpo enterrado. A polícia mandou escavar o terreno nesse lugar e nele foi encontrado o cadáver da Srta. Holland. Ficou provado que a criada nunca conhecera essa pessoa nem pusera os pés nesse jardim.

C. Flammarion, na sua obra O Desconhecido e os Problemas Psíquicos, menciona uma série completa de visões diretas, à distância, durante o sono, resultante de um inquérito feito na França sobre os fenômenos dessa ordem.

Vamos referir um caso mais complicado. Os Annales des Sciences Psychiques, de Paris, setembro de 1905 (pág. 551), contêm a relação circunstanciada e autenticada pelas autoridades legais de Castel di Sangro (Itália), de um sonho macabro, coletivo e verídico

“O guarda rural do Barão Raphaël Corrado viu em sonho, na noite de 3 de março último, seu pai, falecido havia dez anos. Exprobrou-lhe, a ele, aos irmãos e irmãs, o terem-no esquecido e, coisa mais grave, deixarem os seus pobres ossos desenterrados pelos coveiros, abandonados sobre a neve, por trás da torre do cemitério, à mercê dos lobos. A irmã do guarda sonhou exatamente a mesma coisa, e o irmão, muito impressionado, pegou na espingarda e, não obstante a tempestade de neve que atormentava a região, dirigiu-se para o cemitério, sito num monte que dominava a cidade. Aí, por trás da torre, entre as silvas e por cima da neve, em que havia sinais de patas de lobo, viu ossos humanos.”

Os Annales dão depois a narrativa circunstanciada do inquérito e das pesquisas feitas pelo juiz de paz. Estabelecem que os ossos eram, na realidade, os do pai do guarda, que os coveiros, terminado o prazo legal, haviam exumado. Iam eles transportá-los para o ossuário, à noitinha, quando o frio e a neve os obrigaram a deixar o serviço para o dia seguinte. Os documentos relativos a esse caso, que foi objeto de um processo, estão assinados pelo tabelião, pelo juiz de paz e pelo síndico da localidade. Foram publicadas pelo Eco del Sangro, de 15 de março de 1905.

O Prof. Newbold, da Universidade da Pensilvânia, relata nos Proceedings of S. P. R., XII, pág. 11, vários exemplos de sonhos, que indicam uma grande atividade da alma durante o sono e dão ensinamentos que vêm do mundo invisível. Entre outros, citaremos o do Dr. Hilprecht, professor de língua assíria na mesma Universidade, que num sonho teve a revelação de uma inscrição antiga, que até então não havia descoberto. Num sonho mais complexo, em que intervém um sacerdote dos antigos templos de Nippur, dele recebeu a explicação de um enigma de difícil decifração. Foram reconhecidas como exatas todas as particularidades desse sonho. As indicações do sacerdote versavam sobre pontos de Arqueologia completamente desconhecidos dos seres que vivem na Terra.

Convém notar que em todos esses fatos o corpo do percipiente está em repouso e os seus órgãos físicos estão adormecidos; mas, nele o ser psíquico continua em vigília, em atividade; vê, ouve e comunica, sem o auxílio da palavra, com outros seres semelhantes, isto é, com outras almas.

Esse fenômeno tem caráter geral e dá-se em cada um de nós. Na transição da vigília para o sono, exatamente no momento em que os nossos meios ordinários de comunicação com o mundo exterior estão suspensos, abrem-se em nós novas saídas para a Natureza e por elas escapa-se uma irradiação mais intensa da nossa visão. Já nisso vemos revelar-se uma nova forma de vida, a vida psíquica, que vai amplificar-se nos outros fenômenos dos quais nos vamos ocupar, provando que existem para o ser humano modos de percepção e de manifestação muito diferentes do dos sentidos materiais.

Depois dos fenômenos de visão no sono natural, vamos apresentar um caso de clarividência no sono provocado.

O Dr. Maxwell, advogado geral no Supremo Tribunal de Bordéus, provoca na Sra. Agullana, sujet muito sensível, o sono magnético. Ela desprende-se, exterioriza-se, afasta-se em espírito da sua morada. O Dr. Maxwell manda-lhe observar, a certa distância, o que está fazendo um seu amigo M. B... Eram 10:20 da noite. Damos a palavra ao experimentador:[lxvi]

“A médium, com grande surpresa nossa, disse-nos que estava vendo M. B..., meio despido, a passear descalço sobre pedra. Pareceu-me que isso não tinha sentido algum. No dia seguinte ofereceu-se-me ensejo de ver o meu amigo. Mostrou-se muito admirado com o que lhe contei e disse-me textualmente: “Ontem, à noite, não me senti bem. Um amigo meu, M. S..., que mora comigo, aconselhou-me que experimentasse o sistema Kneip e instou tanto que, para satisfazê-lo, fiz pela primeira vez, ontem, à noite, a experiência de passear descalço na pedra fria. Estava efetivamente meio despido quando a fiz. Eram 10 horas e 20 minutos e passeei durante algum tempo nos degraus da escada, que é de pedra.”

Os casos de clarividência no estado de sonambulismo são numerosos. Vêm relatados em todas as obras e revistas que se ocupam especialmente desses assuntos.

A Médecine Française, de 16 de abril de 1906, refere um fato de clarividência relativo às minas de Courrières. A Sra. Berthe, a vidente consultada, descreveu com exatidão um desabamento na mina e as torturas impostas aos sobreviventes, cuja morte ou libertação ela anunciou.

Ajuntemos dois exemplos recentes:

“O Sr. Louis Cadiou, diretor da Usina de la Grand-Palud, perto de Landerneau (Finistère), tendo desaparecido em fins de dezembro de 1913, não se lhe podiam descobrir os traços, apesar das buscas minuciosas. Das sondagens efetuadas na ribeira do rio Elorn nenhum resultado adveio. Uma vidente, moradora em Nancy, a Sra. Camille Hoffmann, tendo sido consultada, declarou, em estado de sono magnético, que o cadáver seria encontrado na orla de um bosque vizinho à usina, oculto sob ligeira camada de terra.

Por essas indicações, o irmão da vítima descobriu, depois, o corpo em uma situação idêntica à que a vidente tinha descrito.

Todos os jornais, entre outros o Le Matin, de 5 de fevereiro de 1914, relatam pormenorizadamente o caso Cadiou, que toda a França acompanhou com apaixonado interesse.

Alguns dias depois, produziu-se fenômeno análogo. Havendo-se afogado no Saóne, perto de Màcon, um jovem chamado Charles Chapeland, seu irmão recorreu à Sra. Camille Hoffmann para encontrar o cadáver. Ela assegurou que ele seria lançado pelas águas, 60 dias depois do acidente, perto da portagem de Cormoranche, o que se realizou exatamente.” [lxvii]

VI
Desprendimento e exterior – Projeções telepáticas

Chegamos agora a uma ordem de manifestações que se produzem à distância sem o concurso dos órgãos, tanto na vigília quanto no sono. Esses fenômenos, conhecidos pelo termo um tanto genérico e vago de telepatia, não são, dissemos, atos doentios e mórbidos da personalidade, como certos observadores o têm acreditado, mas, pelo contrário, casos parciais, rebentos isolados da vida superior no seio da humanidade. Deve-se ver neles o primeiro aparecimento dos poderes futuros com que o homem terrestre será dotado. O exame desses fatos levar-nos-á a reconhecer que o “eu” exteriorizado durante a vida e o “eu” que sobrevive após a morte são idênticos e representam dois aspectos sucessivos da existência de um único e mesmo ser.

A telepatia, ou projeção à distância do pensamento e mesmo da imagem do manifestante, faz-nos subir mais um degrau na escala da vida psíquica. Aqui, achamo-nos na presença de um ato poderoso da vontade. A alma comunica-se a si própria, comunicando a sua vibração, o que demonstra à evidência que a alma não é um composto, uma resultante nem um agregado de forças, mas sim, pelo contrário, o centro da vida e da vontade, centro dinâmico que governa o organismo e dirige-lhe as funções. As manifestações telepáticas não comportam limites. O poder e a independência da alma nelas se revelam soberanamente, porque o corpo nenhum papel representa no fenômeno. É mais um obstáculo do que um auxílio. Produzem-se, por esse motivo, ainda com maior intensidade, depois da morte, como a seu tempo veremos.

“A autoprojeção, diz Myers,[lxviii] é o único ato definido que o homem parece capaz de executar, tanto antes como depois da morte corporal.”

A comunicação telepática a distância foi estabelecida por experiências que se tornaram clássicas. Podemos citar as do Sr. Pierre Janet, hoje professor da Sorbonne, e do Dr. Gilbert, do Havre, no seu sujet Léonie que eles, de noite, a um quilômetro de distância, fazem vir ao seu encontro por meio de chamamentos sugestivos.[lxix]

Desde então as experiências se foram multiplicando com êxito constante. Apontemos apenas vários casos de transmissão de pensamento a grande distância.

Os Annales des Sciences Psychiques, Paris, 1891, pág. 26, relatam uma experiência de transmissão mental de imagem, feita a 171 quilômetros de distância, de Paris a Ribemont (Aisne). Os operadores eram os Senhores Debaux e Léon Hennique.

O Daily Express, de 17 de julho de 1903, refere notáveis ensaios de permuta de pensamentos, que se efetuaram nos escritórios da Review of Reviews, em Norfolk Street, Strand, Londres. Essas experiências eram fiscalizadas por uma comissão de seis membros, da qual faziam parte o Dr. Wallace, de Harley Street, 39, e o eminente publicista W. Stead. As mensagens telepáticas foram enviadas pelo Sr. Richardson, de Londres, e recebidas pelo Sr. Franck, de Nottingham, a uma distância de 110 milhas inglesas.

Finalmente, o Banner of Light, de Boston, no seu número de 12 de agosto de 1905, informa-nos que uma americana, a Sra. Burton Johnson, de Des Moines, conquistou recentemente o recorde nesse gênero de transmissão. Sentada no seu quarto do Hotel Vitória, recebeu quatro vezes mensagens telepáticas de Palo Alto (Califórnia), que fica a distância de três mil milhas. Trata-se, diz o jornal, de fatos devidamente comprovados, rigorosamente fiscalizados e que não deixam subsistir dúvida alguma.

A transmissão dos pensamentos e das imagens opera-se, dissemos, indistintamente, tanto durante o sono, como no estado de vigília. Já expusemos vários casos; serão encontrados outros, em grande número, nas obras especiais. Mencionemos, por exemplo, o de um médico chamado telepaticamente durante a noite e o de Agnés Paquet, citados por Myers.[lxx] Acrescentemos o caso da Sra. Elgee, que, estando no Cairo, teve a visão de um amigo que, naquele mesmo momento, em Inglaterra, pensava nela ardentemente.[lxxi]

“Nos últimos dias da sua vida, minha mãe via-me muitas vezes junto de si, em Tours, conquanto eu andasse então muito longe dali, em viagem pelo oriente da França.”

Todos esses fenômenos podem ser explicados pela projeção da vontade do manifestante, que evoca no percipiente a própria imagem do agente.

Nos casos a seguir, veremos a personalidade psíquica, a alma, destacar-se completamente do invólucro corpóreo e aparecer na sua forma de fantasma. A esse respeito são inúmeros os testemunhos.

Relatamos em outra obra [lxxii] os resultados dos inquéritos da Sociedade de Pesquisas Psíquicas, de Londres. Permitiram eles que se recolhessem cerca de mil casos de aparições, à distância, de pessoas vivas, apoiados por atestados de alto valor. Os testemunhos foram consignados em muitos volumes, sob a forma de autos. Foram assinados por homens de ciência pertencentes a academias ou diversos corpos científicos. Entre esses nomes figuram os de Gladstone, Balfour, etc.

Atribui-se, geralmente, a esses fenômenos, caráter subjetivo; mas essa opinião não resiste a um exame atento. Certas aparições foram vistas sucessivamente, por várias pessoas, nos diferentes andares de uma casa; outras impressionaram animais, como cães, cavalos, etc. Em certos casos, os fantasmas atuam sobre a matéria, abrem portas, deslocam objetos, deixam indícios no pó que cobre os móveis; ouvem-se vozes, que dão informações a respeito de fatos ignorados, sendo mais tarde essas informações reconhecidas como exatas.

No número desses casos devemos incluir o da Senhora Hawkins, cujo fantasma foi visto simultaneamente por quatro pessoas e do mesmo modo;[lxxiii] as visões de Mac-Alpine, de Carrol, Stevenson;[lxxiv] a de um marinheiro que, estando a velar junto de um camarada moribundo, viu aparecer uma família inteira de fantasmas, trajando luto;[lxxv] o caso de Clerk em que o irmão moribundo apareceu a uma negra que nunca o conhecera.[lxxvi]

Na França, foram recolhidos numerosos fatos da mesma natureza e publicados pelos Annales des Sciences Psychiques, do Dr. Dariex e do Prof. Charles Richet e por Camille Flammarion, na sua obra O Desconhecido e os Problemas Psíquicos.

Vamos citar um caso recentíssimo. Os grandes jornais de Londres, o Daily Express, o Evening News, o Daily News, de 17 de maio de 1905, o Umpire, de 14 de maio, etc., narram a aparição, em plena sessão do Parlamento, na Câmara dos Comuns, do fantasma de um deputado, o Major Sir Carne Raschse, retido nesse momento em casa por causa de uma indisposição. Três outros deputados atestam a realidade da manifestação. Sir Gilbert Parker exprime-se da seguinte maneira:[lxxvii]

“Eu queria tomar parte no debate, mas se esqueceram de chamar-me. Quando voltava para o meu lugar, dei com os olhos em Sir Carne Raschse sentado perto do seu lugar do costume. Como sabia que ele tinha estado doente, fiz-lhe um gesto amigável, dizendo-lhe: “Estimo que esteja melhor”; mas ele não deu resposta alguma, o que me causou admiração. A fisionomia do meu amigo estava muito pálida. Ele estava sentado, quieto, com a fronte encostada à mão; a expressão do seu rosto era impassível e dura. Pensei um instante no que havia de fazer. Quando me voltei para Sir Carne, havia ele desaparecido. Imediatamente fui à sua procura, esperando encontrá-lo no vestíbulo; mas Raschse não estava lá; ninguém aí o vira...

O próprio Sir Carne não duvidava de ter realmente aparecido na Câmara sob a forma do seu duplo, por causa da preocupação em que estava de dar ao Governo o apoio do seu voto.”

No “Daily News” de 17 de maio de 1905, Sir Arthur Hayter junta o seu testemunho ao de Sir Gilbert Parker. Diz que ele também não só viu Sir Carne Raschse, como chamou a atenção de Sir Henry Campbell Bannerman para a sua presença na Câmara.

A exteriorização, ou desdobramento, do ser humano pode ser provocada pela ação magnética. Fizeram-se experiências que tornam impossível a dúvida. O paciente, adormecido, desdobra-se e vai produzir, a distância, atos materiais.

Citamos o caso do magnetizador Lewis.[lxxviii] Em outras circunstâncias semelhantes foi a aparição fotografada. Aksakof, na sua obra Animismo e Espiritismo, cita três desses casos; outros fatos análogos foram observados pelo Capitão Volpi e por W. Stead, diretor do Borderland.

No caso Istrati e Hasdeu – este último senador da Rumânia – a forma desdobrada do professor Istrati impressionou placas fotográficas, à noite, a distância de 50 quilômetros do lugar onde estava o seu corpo adormecido. Assim, a objetividade da alma, com a sua forma fluídica manifestando-se em pontos afastados daquele onde o corpo se acha em descanso, está demonstrada de maneira positiva e não pode ser contestada seriamente.

Ademais, basta consultar a História para reconhecer-se que o passado está cheio de fatos desse gênero. Os fenômenos de bilocação dos vivos são freqüentes nos anais religiosos. O passado não é menos rico em narrações e testemunhos a respeito dos Espíritos dos mortos e essa abundância de afirmações, essa persistência através dos séculos são bem próprias para indicar que, no meio das superstições e dos erros, alguma coisa de realidade deve existir.

Com efeito, a comunicação e a manifestação a distância entre Espíritos encarnados conduzem, lógica e necessariamente, à comunicação possível entre Espíritos encarnados e desencarnados. A esse respeito, assim se expressa Myers: [lxxix]

“Nós podemos impressionar-nos reciprocamente à distância e, se os nossos Espíritos encarnados podem assim atuar, de maneira independente do organismo carnal, há nisto uma presunção favorável à existência de outros Espíritos independentes dos corpos e suscetíveis de nos impressionarem do mesmo modo.”

Os habitantes do espaço têm facultado muitas provas experimentais da lei da comunhão universal na medida fraca e estreita em que na Terra ela pode ser verificada com rigor.

Devemos apontar, entre outros fatos, a experiência da Sociedade de Pesquisas de Londres, à qual o mundo sábio é devedor de tantas descobertas no domínio psíquico. Estabeleceu ela um sistema de permutas de pensamentos entre os Estados Unidos e a Inglaterra, simplesmente com o auxílio de dois médiuns em transe, que serviram para transmitir uma mensagem de um Espírito a outro Espírito. A mensagem consistia em quatro palavras latinas e o latim era língua que os médiuns não conheciam.

Essa experiência foi feita sob a vigilância e a fiscalização do Prof. Hyslop, da Universidade de Colúmbia, em Nova Iorque, e tomaram-se todas as precauções necessárias para serem evitadas as fraudes.[lxxx]

Quando se estuda, nos seus diversos aspectos, o fenômeno da telepatia, as vistas gerais que daí resultam aumentam pouco a pouco e somos levados a reconhecer nele um processo de comunicação de alcance incalculável. A princípio, esse fenômeno nos foi apresentado como uma simples transmissão, quase mecânica, de pensamentos e imagens entre dois cérebros; mas o fenômeno vai revestir as formas mais variadas e impressionantes. Depois dos pensamentos vêm as projeções, a distância, dos fantasmas dos vivos, as dos moribundos e, finalmente, sem que nenhuma solução de continuidade interrompa o encadeamento dos fatos, as aparições dos mortos, quando o vidente, na maior parte dos casos, nenhum conhecimento tem do falecimento das pessoas que aparecem. Há aí uma série contínua de manifestações, que se vão graduando nos seus efeitos e concorrem para demonstrar a indestrutibilidade da alma.

A ação telepática não conhece limites; suprime todos os obstáculos e liga os vivos da Terra aos vivos do espaço, o mundo visível aos mundos invisíveis, o homem a Deus; une-os da maneira mais estreita, mais íntima.

Os meios de transmissão que ela nos revela constituem a base das relações sociais entre os Espíritos, o seu modo usual de permutarem as idéias e as sensações. O fenômeno que na Terra se chama telepatia não é outra coisa senão o processo de comunicação entre todos os seres pensantes na vida superior e a oração é uma das suas formas mais poderosas, uma das suas aplicações mais elevadas e mais puras. A telepatia é a manifestação de uma lei universal e eterna.

Todos os seres, todos os corpos permutam vibrações. Os astros exercem influência através das imensidades siderais; do mesmo modo, as almas, que são sistemas de forças e focos de pensamentos, impressionam-se reciprocamente e podem comunicar-se a todas as distâncias.[lxxxi] A atração estende-se às almas como aos astros; atrai-os para um Centro comum, eterno e divino. Uma dupla relação se estabelece. Suas aspirações sobem para ele na forma de apelos e orações. E, sob a forma de graças e inspirações, descem os socorros.

Os grandes poetas, escritores, artistas, os sábios e os puros conhecem esses impulsos, essas inspirações súbitas, esses clarões de gênio que iluminam o cérebro como relâmpago e parecem provir de um mundo superior, cuja grandeza e inebriante beleza refletem, ou então são visões da alma. Num arrojo extático ela vê entreabrir-se esse mundo inacessível, percebe-lhe as radiações, as essências, as luzes.

Tudo isso demonstra-nos que a alma é suscetível de ser impressionada por meios diferentes dos órgãos, que ela pode recolher conhecimentos que excedem as faculdades humanas e provêm de uma causa espiritual. Graças a esses clarões, a esses relâmpagos, ela entrevê, na vibração universal, o passado e o futuro; percebe a gênese das formas, formas de arte e pensamento, de beleza e santidade, da qual perenemente derivam formas novas, numa variedade inesgotável como o manancial de onde emanam.

Consideremos essas coisas sob um ponto de vista mais direto; vejamos as suas conseqüências no meio terrestre. Já pelos fatos telepáticos se acentua a evolução humana. O homem conquista novos poderes psíquicos que lhe permitirão, um dia, manifestar o seu pensamento a todas as distâncias, sem intermediário material. Esse progresso constitui um dos mais magníficos estádios da humanidade para uma vida mais intensa e livre. Poderá ser o prelúdio da maior revolução moral que se tenha realizado em nosso Globo. Por esse modo seria realmente vencido, ou consideravelmente atenuado, o mal.

Quando o homem já não tiver segredos, quando se lhe puder ler no cérebro os pensamentos, ele não mais se atreverá a pensar no mal e, por conseguinte, a fazer o mal. Assim, a alma humana elevar-se-á sempre, subindo pela escala dos desenvolvimentos infinitos. Tempos virão em que a inteligência há de predominar cada vez mais, desembaraçando-se da crisálida carnal, estendendo, afirmando o seu domínio sobre a matéria, criando com os seus esforços meios novos e mais amplos de percepção e manifestação. Apurando-se, por sua vez, os sentidos, verão eles ampliar-se-lhes o círculo de ação. O cérebro humano tornar-se-á um templo misterioso, de vastas e profundas naves, cheias de harmonias, vozes e perfumes, instrumento admirável ao serviço de um Espírito que se tornou mais sutil e poderoso.

Ao mesmo tempo em que a personalidade humana, alma e organismo, a pátria terrestre se transformará. Para que se opere a evolução do meio é preciso que primeiramente se efetue a evolução do indivíduo. É o homem que faz a humanidade e esta, por sua ação constante, transforma a morada daquele. Há equilíbrio absoluto e relação íntima entre o moral e o físico. O pensamento e a vontade são a ferramenta, por excelência, com a qual tudo podemos transformar em nós e à nossa volta.

Tenhamos somente pensamentos elevados e puros; aspiremos a tudo o que é grande, nobre e belo. Pouco a pouco sentiremos regenerar-se o nosso próprio ser e, com ele, do mesmo modo, todas as camadas sociais, o globo e a humanidade! E, em nossa ascensão, chegaremos a compreender e praticar melhor a comunhão universal que une todos os seres. Inconsciente nos estados inferiores da existência, essa comunhão torna-se cada vez mais consciente, à medida que o ser se eleva e percorre os graus inumeráveis da evolução, para chegar, um dia, ao estado de espiritualidade em que cada alma, irradiando o brilho das potências adquiridas nos impulsos do seu amor, vive da vida de todos e a todos se sente unida na obra eterna e infinita.

VII
Manifestações depois da morte

Acabamos de seguir o espírito do homem através das diferentes fases do desprendimento: sono ordinário, sono magnético, sonambulismo, transmissão do pensamento e telepatia, em todas as suas formas. Vimos a sua sensibilidade e os seus meios de percepção aumentarem na razão do afrouxamento dos laços que o prendem ao corpo. Vamos agora vê-lo no estado de liberdade absoluta, isto é, depois da morte, manifestando-se ao mesmo tempo física e intelectualmente aos seus amigos da Terra. Não há solução de continuidade entre esses diferentes estados psíquicos. Quer esses fenômenos se dêem durante a vida material ou depois, são idênticos nas suas causas, nas suas leis e nos seus efeitos; produzem-se segundo modos constantes.

Há continuidade absoluta e graduação entre todos esses fatos, desvanecendo-se assim a noção de sobrenatural, que por muito tempo os tornou suspeitos à Ciência. O antigo adágio: “A Natureza não dá saltos” verifica-se mais uma vez. A morte não é um salto: é a separação e não a dissolução dos elementos que constituem o homem terrestre; é a passagem do mundo visível ao mundo invisível, cuja delimitação é puramente arbitrária e devida simplesmente à imperfeição dos nossos sentidos. A vida de cada um de nós no Além é o prolongamento natural e lógico da vida atual, o desenvolvimento da parte invisível do nosso ser. Há concatenação no domínio psíquico, como no domínio físico.

Nas duas ordens de aparições, quer dos vivos exteriorizados, quer dos defuntos, é sempre, como vimos, a forma fluídica, o veículo da alma, reprodução ou, antes, esboço do corpo físico, que se concretiza e se torna perceptível para os sensitivos. A Ciência, depois dos trabalhos de Becquerel, Curie, Le Bon, etc., familiariza-se de dia para dia com os estados sutis e invisíveis da matéria, numa palavra, com os fluidos utilizados pelos Espíritos nas suas manifestações, e que os espíritas bem conhecem. Graças às descobertas recentes, a Ciência pôs-se em contacto com um mundo de elementos, de forças, de potências, cuja existência nem sequer imaginava, e mostrou-se-lhe afinal a possibilidade de formas de existência durante muito tempo ignoradas.

Os sábios que estudaram o fenômeno espírita, Sir W. Crookes, R. Wallace, R. Dale Owen, Aksakof, O. Lodge, Paul Gibier, Myers, etc., verificaram numerosos casos de aparições de pessoas mortas. O Espírito Katie King, que durante três anos se materializou em casa de Sir W. Crookes, membro da Academia Real de Londres, foi fotografado em 26 de março de 1874, na presença de um grupo de experimentadores.[lxxxii]

Sucedeu o mesmo com os Espíritos Abdullah e John King, fotografados por Aksakof. O acadêmico R. Wallace e o Dr. Thompson obtiveram a fotografia espírita de suas respectivas mães, falecidas havia muitos anos.[lxxxiii]

Myers fala de 231 casos de aparições de pessoas mortas. Cita alguns tirados dos Phantasms.[lxxxiv] Assinalemos nesse número uma aparição anunciando uma morte iminente:[lxxxv]

“Um caixeiro viajante, homem muito positivo, teve certa manhã a visão de uma sua irmã que falecera havia nove anos. Quando contou o fato à família, foi ouvido com incredulidade e cepticismo; mas, ao descrever a visão, mencionou a existência de uma arranhadura na face da irmã. Essa particularidade de tal maneira impressionou sua mãe, que ela caiu desmaiada. Depois que voltou a si, contou que fora ela que, sem querer, fizera essa arranhadura na filha, no momento em que a depunha no caixão; que, em seguida, para disfarçá-la, cobrira-a com pós, de modo que ninguém no mundo estava a par dessa particularidade. O sinal que seu filho vira, pois, prova a veracidade da visão e ela viu nele ao mesmo tempo o anúncio da sua morte que, efetivamente, sobreveio algumas semanas depois.” [lxxxvi]

Devem ser citados igualmente os casos seguintes: o de um mancebo que se comprometera, se morresse primeiro, a aparecer a uma donzela, sem lhe causar grande susto. Apareceu efetivamente um ano depois à irmã dela, no momento em que ia subir para uma carruagem;[lxxxvii] o caso do Sr. Town, cuja imagem foi vista por seis pessoas;[lxxxviii] o caso da Sra. de Fréville, que gostava de freqüentar o cemitério e passear em volta da campa do marido e aí foi vista, sete ou oito horas depois do seu falecimento, por um jardineiro que por ali passava;[lxxxix] o de um pai de família, falecido em viagem e que apareceu à filha com um vestuário desconhecido que, depois de morto, uns estranhos lhe haviam vestido. Falou-lhe de uma quantia que ela ignorava estar em seu poder. A exatidão desses dois fatos foi reconhecida ulteriormente;[xc] o caso de Edwin Russell, que se fez visível ao seu mestre de capela com a preocupação das obrigações e compromissos contraídos durante a vida.[xci] Finalmente, o caso de Robert Mackenzie. Quando ainda o patrão ignorava a sua morte, apareceu-lhe ele para desculpar-se de uma acusação de suicídio que pesava sobre a sua memória. Foi reconhecida a falsidade dessa acusação, por ter sido acidental a sua morte.[xcii]

Na memória apresentada ao Congrès International de Psychologie de Paris, em 1900, o Dr. Paul Gibier, diretor do Instituto Pasteur de Nova Iorque, fala das “materializações de fantasmas” [xciii] obtidas por ele no seu próprio laboratório, na presença de muitas senhoras da sua família e dos preparadores que habitualmente o auxiliavam nos seus trabalhos de biologia. As ditas senhoras tinham especialmente o encargo de vigiar a médium, Sra. Salmon, despi-la antes da sessão para lhe examinarem os vestidos, sempre pretos, ao passo que os fantasmas apareciam de branco. Por excesso de precaução, metiam a médium dentro de uma gaiola metálica fechada com cadeado e, durante as sessões, o Dr. Gibier não largava a chave.

Foi nessas condições que se produziram, à meia-luz, formas numerosas, talhes diferentes, desde aparições de crianças até fantasmas de alta estatura. A formação é gradual, opera-se à vista dos assistentes. As formas falam, passam de um lugar para outro, apertam as mãos dos experimentadores. “Interrogadas – diz Paul Gibier –, declaram todas ser entidades, pessoas que viveram na Terra, Espíritos desencarnados, cuja missão é nos mostrarem a existência da outra vida.”

A identidade de um desses Espíritos foi estabelecida com precisão: a de uma entidade chamada Blanche, parenta falecida de duas senhoras que assistiam às sessões, as quais puderam abraçá-la repetidas vezes e conversar com ela em francês, língua ignorada da médium.

No congresso espiritualista realizado no mesmo ano em Paris, na sessão de 23 de setembro, o Dr. Bayol, senador das Bocas do Ródano, ex-governador de Dahomey, expunha verbalmente os fenômenos de aparição dos quais foi testemunha em Arles e Eyguières. O fantasma de Acella, donzela romana, cujo túmulo está em Arles, no antigo cemitério de Aliscamps, materializou-se a ponto de deixar uma impressão do seu rosto em parafina fervente, não em entalhe, como se produzem habitualmente as moldagens, mas em relevo, o que seria impossível a qualquer ser vivo. Essas experiências, cercadas de todas as precauções necessárias, efetuaram-se na presença de personagens tais como o prefeito das Bocas do Ródano, o poeta Mistral, um general de Divisão, médicos, advogados, etc.[xciv]

Numa ata, com a data de 11 de fevereiro de 1904, publicada pela Revue des Études Psychiques, de Paris,[xcv] o Prof. Milèsi, da Universidade de Roma, “um dos campeões mais estimados da nova escola psicológica italiana”, conhecido na França por suas conferências na Sorbonne sobre a obra de Auguste Comte, deu público testemunho da realidade das materializações de Espíritos, entre outras a de sua própria irmã falecida em Cremona havia três anos.

Damos aqui um extrato dessa ata:

“O que de mais maravilhoso houve nessa sessão foram as aparições, que eram de natureza luminosa, posto que se produzissem na meia claridade. Foram em número de nove; todos os assistentes as viram... As três primeiras foram as que reproduziram as feições da irmã do Prof. Milèsi, falecida havia três anos em Cremona, no convento das Filhas do Sacré-Coeur, com a idade de 32 anos. Apareceu sorrindo, com o esquisito sorriso que lhe era habitual. Do mesmo modo o Sr. Squanquarillo viu uma aparição, na qual reconheceu sua mãe. Foi a quarta. As cinco restantes reproduziam as feições dos dois filhos do Sr. Castoni. Este afirma ter sido abraçado pelos filhos. ter conversado com eles várias vezes, ter recebido respostas suas e apertos de mãos; sentiu-os, mesmo, sentarem-se nos seus joelhos.” Assinaram J. B. Milèsi, P. Cartoni, F. Simmons, J. Squanquarillo, etc.

No seu artigo do Figaro de 9 de outubro de 1905, intitulado: Par delà la Science, Ch. Richet, da Academia de Medicina de Paris, dizia, a propósito de outros fenômenos da mesma ordem: “O mundo oculto existe. Correndo embora o risco de ser tido pelos meus contemporâneos como insensato, creio que há fantasmas.”

O célebre Prof. Lombroso, da Universidade de Turim, no número de junho de 1907 da revista italiana Arena, expõe o resultado de suas experiências com Eusápia Paladino: fenômenos de levitação, transportes de flores, etc. e acrescenta:

“O leitor vai interpelar-me com ar de compaixão e perguntar-me: “Não se deixou simplesmente ludibriar por farsantes vulgares?” O fato indiscutível é que com Eusápia tomaram-se as medidas de precaução mais absolutamente rigorosas contra a possibilidade de qualquer fraude, porque se lhe ligavam as mãos e os pés, ficando uns e outros cercados por um fio elétrico que, ao menor movimento, punha em ação uma campainha. O médium Politi foi, na Sociedade de psicologia de Milão, metido nu em pêlo, num saco, e a Sra. d’Espérance ficou imobilizada numa rede como um peixe e, não obstante, os fenômenos se produziram.

Depois de tudo isso assisti ainda a sessões em que Eusápia Paladino em transe dava respostas exatas e muito sensatas em línguas que ela não conhecia, como, por exemplo, o inglês. Juntando a esses fatos pessoais tudo o que soube das experiências de Crookes com Home e Katie King, das do médium alemão que fazia às escuras as mais curiosas pinturas, adquiri a convicção de que os fenômenos espíritas se explicam, pela maior parte, por forças inerentes ao médium e também, por um lado, pela intervenção de seres supraterrestres, que dispõem de forças das quais as propriedades do radium podem dar idéia, por analogia.

...Um dia, depois do transporte, sem contacto, de um objeto muito pesado, Eusápia, em estado de transe, disse-me: “Por que estás a perder o tempo com bagatelas? Sou capaz de fazer com que vejas tua mãe; mas é necessário que penses nisso com veemência.” Impulsionado por essa promessa, no fim de meia hora de sessão, tomou-me o desejo intenso de vê-la cumprir-se e a mesa, levantando-se com os seus movimentos habituais e sucessivos, parecia dar a sua anuência ao meu pensamento íntimo. De repente, em meia obscuridade, à luz vermelha, vi sair dentre as cortinas uma forma um tanto curvada, como era a da minha mãe, coberta com um véu. Contornou a mesa para chegar até a mim, murmurando palavras que muitos ouviram, mas que a minha meia-surdez não me permitiu escutar. Como, sob a influência de uma viva emoção, eu lhe suplicava que as repetisse, ela me disse: “Cœsar, fiol mio!” o que, confesso, não era costume seu, visto que, sendo de Veneza, dizia mio fiol; depois, afastando o véu, deu-me um beijo.”

Lombroso fala, depois, das casas mal-assombradas e diz:

“Convém acrescentar que os casos de casas em que, durante anos, se reproduzem aparições ou barulhos, concordando com a narrativa de mortes trágicas e observadas sem a presença de médiuns, pleiteiam contra a ação exclusiva destes em favor da ação dos finados.” [xcvi]

No Grupo de estudos que por muito tempo dirigi em Tours, os médiuns descreviam aparições de defuntos visíveis apenas a eles, é verdade, mas que nunca haviam conhecido, de quem nunca tinham visto nenhum retrato, ouvido fazer nenhuma descrição, e que os assistentes reconheciam pelas suas indicações.

Às vezes os Espíritos se materializam a ponto de poderem escrever, na presença de pessoas humanas e à sua vista, mensagens numerosas, que ficam como outras tantas provas da sua passagem. Foi o que se deu com a mulher do banqueiro Livermore, cuja letra foi reconhecida como idêntica à que ele possuía durante a sua existência terrestre;[xcvii] mas, muito mais freqüentes vezes, os Espíritos incorporam-se no invólucro de médiuns adormecidos, falam, escrevem, gesticulam, conversam com os assistentes e fornecem-lhes provas certas da sua identidade.

Nesses fenômenos, o médium abandona momentaneamente o corpo; a substituição é completa. A linguagem, a atitude, a letra e o jogo de fisionomia são os de um Espírito estranho ao organismo de que dispõe por algum tempo.

Os fatos de incorporação da Sra. Piper, minuciosamente observados e comprovados pelo Dr. Hodgson e pelos Profs. Hyslop, W. James, Newbold, O. Lodge e Myers, constituem o complexo de provas mais poderoso em favor da sobrevivência.[xcviii] A personalidade de G. Pelham revelou-se, post mortem, aos seus próprios parentes, a seu pai, a sua mãe, aos seus amigos de infância, cerca de trinta vezes, a tal ponto que não deixou dúvida alguma no espírito deles acerca da causa dessas manifestações.

Sucedeu o mesmo com o Prof. Hyslop, que, tendo feito ao Espírito do seu pai 205 perguntas sobre assuntos que ele mesmo ignorava, obteve 152 respostas absolutamente exatas, 16 inexatas e 37 duvidosas, por não poderem ser verificadas. Essas verificações foram feitas no decurso de numerosas viagens efetuadas através dos Estados Unidos para se chegar a conhecer minuciosamente a história da família Hyslop, antes do nascimento do professor, história a que essas perguntas se referiam.

Os Annales des Sciences Psychiques de Paris, julho de 1907, lembram o seguinte fato, que igualmente se produziu na América pelo ano de 1860:

“O grande juiz Edmonds, presidente do Supremo Tribunal de Justiça do Estado de Nova Iorque, presidente do Senado dos Estados Unidos, tinha uma filha, Laura, em quem surgiu uma mediunidade com fenômenos espontâneos, que se produziram em volta dela e não tardaram a despertar a sua curiosidade, de tal modo, que começou a freqüentar sessões espíritas. Foi então que ela se tornou médium-falante. Quando nela se manifestava outra personalidade, Laura falava por vezes diferentes línguas que ignorava.

Numa noite, em que uma dúzia de pessoas estavam reunidas em casa do Sr. Edmonds, em Nova Iorque, o Sr. Green, artista nova-iorquino, veio acompanhado por um homem que ele apresentou com o nome do Sr. Evangelides, da Grécia. Não tardou a manifestar-se na Senhorita Laura uma personalidade, que dirigiu a palavra, em inglês, ao visitante e lhe comunicou grande número de fatos tendentes a provar que a personalidade era a de um amigo falecido em casa dele, havia muitos anos, mas de cuja existência nenhuma das pessoas presentes tinha conhecimento. De tempos a tempos a donzela pronunciava palavras e frases inteiras em grego, o que deu ensejo a que o Sr. Evangelides lhe perguntasse se podia falar grego. Ele falava efetivamente com dificuldade o inglês. A conversação continuou em grego da parte de Evangelides e alternativamente em grego e inglês da parte da Srta. Laura. Momentos houve em que Evangelides parecia muito comovido. No dia seguinte renovou a sua conversação com a Srta. Laura, depois explicou aos assistentes que a personalidade invisível, que parecia manifestar-se com a intervenção da médium, era a de um dos seus amigos íntimos, falecido na Grécia, irmão do patriota grego Marc Bótzaris. Esse amigo informava-o da morte de um filho seu, também de nome Evangelides, que ficara na Grécia e passava bem no momento em que seu pai partira para a América.

Evangelides voltou a ter com o Sr. Edmonds várias vezes ainda e, dez dias depois da sua primeira visita, informou-o de que acabava de receber uma carta participando-lhe a morte de seu filho. Essa carta devia vir em caminho quando se realizou a primeira conversa do Sr. Evangelides com a Srta. Laura.

“Estimaria – disse o juiz Edmonds a esse respeito – que me dissessem como devo encarar esse fato. Negá-lo é impossível; é demasiado flagrante. Também então podia negar que o Sol nos alumia.”

Isso se passou na presença de oito a dez pessoas, todas instruídas, inteligentes, discretas e também capazes todas de fazerem a distinção entre uma ilusão e um fato real.” [xcix]

O Sr. Edmonds informa-nos que sua filha não tinha ouvido até então uma palavra em grego moderno. Acrescenta que em outras ocasiões ela chegou a falar mais de treze línguas diferentes, entre as quais o polonês e o indiano, quando, no seu estado normal, apenas sabia inglês e francês, este último como se pode aprender na escola. É preciso notar que o Sr. J. W. Edmonds não é uma personalidade qualquer. Nunca puseram em dúvida a perfeita integridade do seu caráter e as suas obras provam sua luminosa inteligência.

Fenômenos da mesma ordem foram muitas vezes obtidos na Inglaterra. Citemos, nesse número, uma manifestação do célebre Prof. Sidgwick pelo organismo da Sra. Thompson, adormecida. Figura nos Proceedings. O Sr. Piddington, secretário da Sociedade, testemunha do fato, redigiu um relatório que foi lido em sessão de 7 de dezembro de 1903. Fez circular de mão em mão, entre os assistentes, diferentes escritos automáticos, nos quais os amigos e parentes de Sidgwick, o eminente psicólogo que foi o primeiro presidente da Sociedade, reconheceram sua letra. Ao menos uma vez Sidgwick ter-se-ia esforçado por falar pela boca da Sra. Thompson. O Senhor Piddington descreveu essa cena como a experiência mais realista e impressionante que se encontra em todo o curso das suas investigações. “Não era, diz ele, como se tivesse sido Sidgwick; era ele realmente, ao que se podia julgar.” A personalidade de Sidgwick fez alusão, entre outras coisas, a um incidente que se dera numa das reuniões do Conselho de direção da Society, “e do qual, pode-se dizer com certeza quase absoluta, a Sra. Thompson não podia ter conhecimento”. Uma das pessoas que assistiam à sessão, membro do Conselho de direção, o Sr. Arthur Smith, levantou-se para declarar que se lembrava muito bem daquela circunstância.[c]

Relataremos ainda um fenômeno de comunicação durante o sono, obtido pelo Sr. Chedo Mijatovitch, ministro plenipotenciário da Sérvia, em Londres, e reproduzido pelos Annales des Sciences Psychiques, de 1º e 16 de janeiro de 1910.

“A pedido de espíritas húngaros, para que se pusesse em relação com um médium, a fim de elucidar um ponto de História a respeito de um antigo soberano sérvio, morto em 1350, dirigiu-se à casa do Sr. Vango, de quem muito se falava por essa época e a quem nunca tinha visto até então. Adormecido, o médium anunciou a presença do Espírito de um jovem, ansioso por se fazer ouvir, mas de quem não compreendia a linguagem. No entanto, acabou conseguindo reproduzir algumas palavras.

Elas eram em sérvio, sendo esta a tradução: “Peço-te escrever à minha mãe Nathalie, dizendo-lhe que imploro o seu perdão.”

O Espírito era o do rei Alexandre.

Chedo Mijatovitch não duvidou, ainda mais quando novas provas de identidade logo se ajuntaram à primeira: o médium fez a descrição do defunto e este mostrou seu pesar por não ter seguido um conselho confidencial que lhe havia dado, dois anos antes de ser assassinado, o diplomata consultante.”

Na França, entre um certo número de casos, assinalaremos o do abade Grimaud, diretor do asilo dos surdos-mudos de Vaucluse. Por meio dos órgãos da Sra. Gallas, adormecida, recebeu, do Espírito Forcade, falecido havia oito anos, uma mensagem pelo movimento silencioso dos lábios, de acordo com um método especial para surdos-mudos, que esse Espírito inventara, comunicado ao abade Grimaud, venerável eclesiástico, que era o único dos assistentes que podia conhecê-lo. Pouco tempo há que publicamos a ata dessa notável sessão com as assinaturas de doze testemunhas e o atestado do abade Grimaud.[ci]

O Sr. Maxwell, advogado geral no Tribunal de Apelação de Bordéus e doutor em Medicina, na sua obra Phénomènes Psychiques [cii] estuda o fenômeno das incorporações, que observou em casa da Sra. Agullana, esposa de um estucador, e assim se exprime.

“A personalidade mais curiosa é a de um médico falecido há cem anos. A sua linguagem médica é arcaica. Dá às plantas os nomes medicinais antigos. O seu diagnóstico é geralmente exato; mas, a descrição dos sintomas internos que ele vê é bem própria a causar admiração a um médico do século XX... Há dez anos que observo o meu colega de além-túmulo. Não tem variado e apresenta uma continuidade lógica surpreendente.”

Eu mesmo observei freqüentes vezes esse fenômeno. Pude, como em outra parte expus,[ciii] conversar por intermédio de diversos médiuns, com muitos parentes e amigos falecidos, obter indicações que esses médiuns não conheciam e que, para mim, constituíam outras tantas provas de identidade. Se levarmos em conta as dificuldades que comporta a comunicação de um Espírito a ouvintes humanos, por meio de um organismo e, particularmente, de um cérebro que ele não apropriou, a que não deu flexibilidade mediante uma longa experiência; se considerarmos que, em razão da diferença dos planos de existência, não se pode exigir de um desencarnado todas as provas que a um homem material se pediria, é preciso reconhecer que o fenômeno das incorporações é um dos que mais concorrem para demonstrar a espiritualidade e o princípio da sobrevivência.

Não se trata, nesses fatos, de uma simples influência a distância. Há um impulso a que o sujet não pode resistir e que na maior parte das vezes se transforma em tomada de posse do organismo inteiro. Esse fenômeno é análogo ao que verificamos nos casos de segunda personalidade. Neste, o “eu” profundo substitui o “eu” normal e toma a direção do corpo físico, com um fim de fiscalização e regeneração. Mas, aqui é um Espírito estranho que desempenha esse papel e substitui a personalidade do médium adormecido.

As palavras possessão ou posse, de que acabamos de nos servir, foram muitas vezes tomadas em sentido lamentável.

Atribuía-se no passado aos fatos que elas designam um caráter diabólico e terrificante, como muito bem disse Myers:[civ] “O diabo não é criatura desconhecida pela Ciência. Nesses fenômenos achamo-nos somente na presença de Espíritos que foram outrora homens semelhantes a nós e que estão sempre animados dos mesmos motivos que nos inspiram.”

A esse propósito Myers faz uma pergunta: “É a possessão algumas vezes absoluta?”... e responde nestes termos: “A teoria que diz que nenhuma das correntes conhecidas da personalidade humana esgota toda a sua consciência e que nenhuma das suas manifestações conhecidas exprime toda a potencialidade do seu ser, pode igualmente se aplicar aos homens desencarnados.” [cv]

Com isso abordaríamos o ponto central do problema da vida humana, a mola secreta, a ação íntima e misteriosa do Espírito sobre um cérebro, quer sobre o seu, quer, nos casos de que nos ocupamos, sobre um cérebro estranho.

Considerada sob esse aspecto, a questão toma importância capital em Psicologia. Myers acrescenta:[cvi]

“Com o auxilio desses estudos, as comunicações cada vez se tornarão mais fáceis, completas, coerentes, e atingirão nível mais elevado de consciência unitária. Grandes e numerosas devem ter sido as dificuldades; mas nem de outro modo pode ser quando se trata de reconciliar o espírito com a matéria e de abrir ao homem, do planeta onde está encarcerado, uma fresta para o mundo espiritual...

Assim como, pela clarividência migratória (Myers chama assim à clarividência dos sonâmbulos), o Espírito muda de centro de percepção, no meio das cenas do mundo material, assim também há transmissões espontâneas do centro de percepção para as regiões do mundo espiritual. A concepção do êxtase, no seu sentido mais literal e sublime, resulta assim, sem esforço, quase insensivelmente, de uma série de provas modernas.

Em todas as épocas tem-se concebido o Espírito como suscetível de deixar o corpo ou, se não o deixa, de estender consideravelmente o seu campo de percepção, fazendo nascer um estado que se parece com o êxtase. Todas as formas conhecidas de êxtase concordam neste ponto e se baseiam num fato real.”

Vê-se que, graças a experiências, a observações, a testemunhos mil vezes repetidos, a existência e a sobrevivência da alma saem doravante do domínio da hipótese ou da simples concepção metafísica, para se converterem em realidade viva, em fato rigorosamente averiguado. O sobrenatural tocou o termo de seus dias; o milagre já não passa de uma palavra. Todos os terrores, todas as superstições que a idéia da morte sugeria aos homens se desfazem em fumo. Dilata-se a nossa concepção da vida universal e da obra divina e, ao mesmo tempo, a nossa confiança no futuro se fortifica. Vemos nas formas alternadas da existência carnal e fluídica o progresso do ser, o desenvolvimento da personalidade prosseguindo e uma Lei Suprema presidindo à evolução das almas através do tempo e do espaço.

VIII
Estados vibratórios da Alma – A memória

A vida é uma vibração imensa que enche o universo e cujo foco está em Deus. Cada alma, centelha destacada do Foco Divino, torna-se, por sua vez, um foco de vibrações que hão de variar, aumentar de amplitude e intensidade, consoante o grau de elevação do ser. Esse fato pode ser verificado experimentalmente.[cvii]

Toda alma tem, pois, a sua vibração particular e diferente. O seu movimento próprio, o seu ritmo, é a representação exata do seu poder dinâmico, do seu valor intelectual, da sua elevação moral.

Toda a beleza, toda a grandeza do universo vivo se resume na lei das vibrações harmônicas. As almas que vibram uníssonas reconhecem-se e chamam-se através do espaço. Daí as atrações, as simpatias, a amizade, o amor! Os artistas, os sensitivos, os seres delicadamente harmonizados conhecem essa lei e sentem-lhe os efeitos. A alma superior é uma vibração na posse de todas as suas harmonias.

A entidade psíquica penetra com as suas vibrações todo o seu organismo fluídico, o perispírito, que é a sua forma e imagem, a reprodução exata da sua harmonia pessoal e da sua luz; mas chega a encarnação e essas vibrações vão reduzir-se, amortecer-se sob o invólucro carnal. O foco interior já não poderá projetar para o exterior senão uma radiação enfraquecida, intermitente. Entretanto, no sono, no sonambulismo, no êxtase, desde que à alma se abre uma saída através do invólucro de matéria que a oprime e agrilhoa, restabelece-se imediatamente a corrente vibratória e o foco torna a adquirir toda a sua atividade. O Espírito encontra-se novamente nos seus estados anteriores de poder e liberdade. Tudo o que nele dormia desperta. As suas numerosas vidas reconstituem-se, não só com os tesouros do seu pensamento, com as reminiscências e aquisições, mas também com todas as sensações, alegrias e dores registradas em seu organismo fluídico. É essa a razão pela qual, no transe, a alma, vibrando as recordações do passado, afirma as suas existências anteriores e reata a cadeia misteriosa das suas transmigrações.

As menores particularidades da nossa vida registram-se em nós e deixam traços indeléveis. Pensamentos, desejos, paixões, atos bons ou maus, tudo se fixa, tudo se grava em nós. Durante o curso normal da vida, essas recordações acumulam-se em camadas sucessivas e as mais recentes acabam por apagar, pelo menos aparentemente, as mais antigas. Parece que esquecemos aqueles mil pormenores da nossa existência dissipada. Basta, porém, evocar, nas experiências hipnóticas, os tempos passados e tornar, pela vontade, a colocar o sujet numa época anterior da sua vida, na mocidade ou no estado de infância, para que essas recordações reapareçam em massa. O sujet revive o seu passado, não só com o estado de alma e associação de idéias que lhe eram peculiares nessa época, idéias às vezes bem diversas das que ele professa atualmente, com os seus gostos, hábitos, linguagem, mas também reconstituindo automaticamente toda a série dos fenômenos físicos contemporâneos daquela época. Leva-nos isso a reconhecer que há íntima correlação entre a individualidade psíquica e o estado orgânico.

Cada estado mental está associado a um estado fisiológico. A evocação de um na memória dos sujets traz imediatamente a reaparição do outro.[cviii]

Dadas as flutuações constantes e a renovação integral do corpo físico em alguns anos, esse fenômeno seria incompreensível sem a intervenção do perispírito, que guarda em si, gravadas na sua substância, todas as impressões de outrora. É ele que fornece à alma a soma total dos seus estados conscientes, mesmo depois da destruição da memória cerebral. Assim o demonstram os Espíritos nas suas comunicações, visto que conservam no espaço até as menores recordações da sua existência terrestre.

Esse registro automático parece efetuar-se em forma de agrupamento, ou zonas, dentro de nós, que correspondem a outros tantos períodos da nossa vida, de maneira que, se a vontade, por meio da auto-sugestão ou da sugestão estranha, o que é a mesma coisa, pois que, como vimos, a sugestão, para ser eficaz, deve ser aceita pelo paciente e transformar-se em auto-sugestão, se a vontade, dizemos, faz reviver uma lembrança pertencente a um período qualquer do nosso passado, todos os fatos de consciência que têm conexão com esse mesmo período desenrolam-se imediatamente numa concatenação metódica. G. Delanne comparou esses estados vibratórios com as camadas concêntricas observadas na secção de uma árvore e que permitem se lhe calcule o número de anos.

Isso tornaria compreensíveis as variações da personalidade de que falamos. Para observadores superficiais, esses fenômenos se explicam pela dissociação da consciência. Estudados de perto e analisados, representam., pelo contrário, aspectos de uma consciência única, correspondentes a outras tantas fases de uma mesma existência. Esses aspectos revelam-se desde que o sono é bastante profundo e o desprendimento perispiritual suficiente. Se se tem podido acreditar em mudanças de personalidade, é porque os estados transitórios, intermediários, faltam ou apagam-se.

O desprendimento, dissemos precedentemente, é facilitado pela ação magnética. Os passes feitos em um sensitivo relaxam pouco a pouco e desatam os laços que unem o Espírito ao corpo. A alma e a sua forma etérea saem da ganga material e essa saída constitui o fenômeno do sono. Quanto mais profunda for a hipnose, tanto mais a alma se separa e se afasta, recobrando a plenitude das suas vibrações. A vida ativa concentra-se no perispírito, ao passo que a vida física está suspensa.

A sugestão aumenta também o ritmo vibratório da alma. Cada idéia contém o que os psicólogos chamam a tendência para a ação e essa tendência transforma-se em ato pela sugestão. Esta, com efeito, não é mais do que um modo da vontade. Levada à mais alta intensidade, torna-se força motriz, alavanca que levanta e põe em movimento as potências vitais adormecidas, os sentidos psíquicos e as faculdades transcendentais.

Vê-se então se produzirem os fenômenos da clarividência, da lucidez, do despertar da memória. Para essas manifestações se tornarem possíveis, o perispírito deve ser previamente impressionado por um abalo vibratório determinado pela sugestão. Esse abalo, acelerando o movimento rítmico, tem por efeito restabelecer a relação entre a consciência cerebral e a consciência profunda, relação que está interrompida no estado normal durante a vida física. Então as imagens e as reminiscências armazenadas no perispírito podem reanimar-se e tornar-se novamente conscientes; mas, ao despertar, a relação cessa logo, o véu torna a cair, as recordações longínquas apagam-se pouco a pouco e tornam a entrar na penumbra.

A sugestão é, pois, o processo que se deve empregar, de preferência, nessas experiências. Para reconduzir os sujets a uma época determinada do seu passado são eles adormecidos por meio de passes longitudinais, depois se lhes sugere que têm tal ou qual idade. Assim, faz-se que remontem a todos os períodos da sua existência; podem obter-se fac-similes da sua letra, que variam segundo as épocas e são sempre concordes, quando se trata das mesmas épocas evocadas no curso de diferentes sessões. Por meio de passes transversais faz-se com que voltem depois ao ponto atual, tornando a passar pelas mesmas fases.

Pode-se também – e nós assim o temos feito – designar ao sujet uma data determinada do seu passado, ainda o mais remoto, e fazê-lo renascer nele. Se o sujet for muito sensível, vê-se então se desenrolarem cenas de cativante interesse com pormenores sobre o meio evocado e as personagens que nele vivem, pormenores que são às vezes suscetíveis de verificação. “Tem-se podido reconhecer – diz o Coronel de Rochas – que as recordações assim avivadas eram exatas e que os sujets tomavam sucessivamente as personalidades correspondentes à sua idade.” [cix]

Continuamos a tratar desses fenômenos, cuja análise projeta uma luz viva sobre o mistério do ser. Todos os aspectos variados da memória, a sua extinção na vida normal, o seu despertar no transe e na exteriorização, tudo se explica pela diferença dos movimentos vibratórios que ligam a alma e o seu corpo psíquico ao cérebro material. A cada mudança de estado as vibrações variam de intensidade, fazendo-se mais rápidas, à medida que a alma se desprende do corpo. As sensações são registradas no estado normal, com um mínimo de força e duração; mas a memória total subsiste no fundo do ser. Por pouco que os laços materiais se afrouxem e a alma seja restituída a si mesma, ela torna a encontrar, com o seu estado vibratório superior, a consciência de todos os aspectos da sua vida, de todas as formas físicas ou psíquicas da sua existência integral. É, como vimos, o que se pode verificar e reproduzir artificialmente no estado hipnótico. Para bem nos orientarmos no labirinto desses fenômenos é preciso não esquecer que esse estado comporta muitos graus. A cada um desses graus vincula-se uma das formas da consciência e da personalidade; a cada fase do sono corresponde um estado particular da memória; o sono mais profundo faz surgir a memória mais extensa. Esta restringe-se cada vez mais, à medida que a alma reintegra o seu invólucro. Ao estado de vigília, ou acordado, corresponde a memória mais restrita, mais pobre.

O fenômeno da reconstituição artificial do passado faz-nos compreender o que se passa depois da morte, quando a alma, livre do corpo terrestre, torna a achar-se em presença da sua memória aumentada, memória-consciência, memória implacável que conserva a impressão de todas as suas faltas, tornando-se o seu juiz e, às vezes, o seu algoz; mas, ao mesmo tempo, o “eu” fragmentado em camadas distintas, durante a vida deste mundo, reconstitui-se na sua síntese superior e na sua magnífica unidade. Toda a experiência adquirida no decorrer dos séculos, todas as riquezas espirituais, frutos da evolução, muitas vezes latentes ou, pelo menos, amortecidas, apoucadas nesta existência, reaparecem no seu brilho e frescura para servir de base a novas aquisições. Nada se perde. As camadas profundas do ser, se contam os desfalecimentos e as quedas, proclamam também os lentos e penosos esforços acumulados no decorrer das idades para constituírem essa personalidade, que irá sempre crescendo, sempre mais rica e mais bela, na feliz expansão das suas faculdades adquiridas, suas qualidades e suas virtudes.

IX
Evolução e finalidade da Alma

A alma, dissemos, vem de Deus; é, em nós, o princípio da inteligência e da vida. Essência misteriosa, escapa à análise, como tudo quanto dimana do Absoluto. Criada por amor, criada para amar, tão mesquinha que pode ser encerrada numa forma acanhada e frágil, tão grande que, com um impulso do seu pensamento, abrange o infinito, a alma é uma partícula da essência divina projetada no mundo material.

Desde a hora em que caiu na matéria, qual foi o caminho que seguiu para remontar até ao ponto atual da sua carreira? Precisou passar vias escuras, revestir formas, animar organismos que deixava ao sair de cada existência, como se faz com um vestuário inútil. Todos esses corpos de carne pereceram, o sopro dos destinos dispersou-lhes as cinzas, mas a alma persiste e permanece na sua perpetuidade, prossegue sua marcha ascendente, percorre as inumeráveis estações da sua viagem e dirige-se para um fim grande e apetecível, um fim que é a perfeição.

A alma contém, no estada virtual, todos os germens dos seus desenvolvimentos futuros. É destinada a conhecer, adquirir e possuir tudo. Como, pois, poderia ela conseguir tudo isso numa única existência? A vida é curta e longe está a perfeição! Poderia a alma, numa vida única, desenvolver o seu entendimento, esclarecer a razão, fortificar a consciência, assimilar todos os elementos da sabedoria, da santidade, do gênio? Para realizar os seus fins, tem de percorrer, no tempo e no espaço, um campo sem limites. É passando por inúmeras transformações, no fim de milhares de séculos, que o mineral grosseiro se converte em diamante puro, refratando mil cintilações. Sucede o mesmo com a alma humana.

O objetivo da evolução, a razão de ser da vida não é a felicidade terrestre, como muitos erradamente crêem, mas o aperfeiçoamento de cada um de nós, e esse aperfeiçoamento devemos realizá-lo por meio do trabalho, do esforço, de todas as alternativas da alegria e da dor, até que nos tenhamos desenvolvido completamente e elevado ao estado celeste. Se há na Terra menos alegria do que sofrimento, é que este é o instrumento por excelência da educação e do progresso, um estimulante para o ser, que, sem ele, ficaria retardado nas vias da sensualidade. A dor, física e moral, forma a nossa experiência. A sabedoria é o prêmio.

Pouco a pouco a alma se eleva e, conforme vai subindo, nela se vai acumulando uma soma sempre crescente de saber e virtude; sente-se mais estreitamente ligada aos seus semelhantes; comunica mais intimamente com o seu meio social e planetário. Elevando-se cada vez mais, não tarda a ligar-se por laços pujantes às sociedades do espaço e depois ao Ser universal.

Assim, a vida do ser consciente é uma vida de solidariedade e liberdade. Livre dentro dos limites que lhe assinalam as leis eternas, faz-se o arquiteto do seu destino. O seu adiantamento é obra sua. Nenhuma fatalidade o oprime, salvo a dos próprios atos, cujas conseqüências nele recaem; mas não pode desenvolver-se e medrar senão na vida coletiva com o recurso de cada um e em proveito de todos. Quanto mais sobe, tanto mais se sente viver e sofrer em todos e por todos. Na necessidade de se elevar a si mesmo, atrai a si, para fazê-los chegar ao estado espiritual, todos os seres humanos que povoam os mundos onde viveu. Quer fazer por eles o que por ele fizeram os seus irmãos mais velhos, os grandes Espíritos que o guiaram na sua marcha.

A lei de justiça requer que, por sua vez, sejam emancipadas, libertadas da vida inferior todas as almas. Todo ser que chega à plenitude da consciência deve trabalhar para preparar aos seus irmãos uma vida suportável, um estado social que só comporte a soma de males inevitáveis. Esses males, necessários ao funcionamento da lei de educação geral, nunca deixarão de existir em nosso mundo; representam uma das condições da vida terrestre. A matéria é o obstáculo útil; provoca o esforço e desenvolve a vontade; contribui para a ascensão dos seres, impondo-lhes necessidades que os obrigam a trabalhar. Como, sem a dor, havíamos de conhecer a alegria; sem a sombra, apreciar a luz; sem a privação, saborear o bem adquirido, a satisfação alcançada? Eis aqui a razão por que encontramos dificuldades de toda sorte em nós e em volta de nós.

*

Grandioso é o espetáculo da luta do espírito contra a matéria, luta para a conquista do Globo, luta contra os elementos, os flagelos, contra a miséria, a dor e a morte. Por toda parte a matéria se opõe à manifestação do pensamento. No domínio da Arte, é a pedra que resiste ao cinzel do escultor; na Ciência, é o inapreciável, o infinitamente pequeno que se furta à observação; na ordem social, como na ordem privada, são os obstáculos sem-número, as necessidades, as epidemias, as catástrofes!

Não obstante, frente às potências cegas que o oprimem e o ameaçam de todos os lados, o homem, ser frágil, ergueu-se. Por único recurso tem apenas a vontade e, com esse único recurso, tem continuado, sem tréguas nem piedade, através dos tempos, a áspera luta; depois, um dia, pela vontade humana, foi vencida, subjugada a formidável potência. O homem quis e a matéria submeteu-se. Ao seu gesto, os elementos inimigos, a água e o fogo, uniram-se rugindo e para ele têm trabalhado.

É a lei do esforço, lei suprema, pela qual o ser se afirma, triunfa e desenvolve-se; é a magnífica epopéia da História, a luta exterior que enche o mundo. A luta interior não é menos comovente. De cada vez que renasce, terá o Espírito de ajeitar, de apropriar o novo invólucro material que lhe vai servir de morada e fazer dele um instrumento capaz de traduzir, de exprimir as concepções do seu gênio. Demasiadas vezes, porém, o instrumento resiste e o pensamento, desanimado, retrai-se, impotente para adelgaçar, para levantar o pesado fardo que o sufoca e aniquila. Entretanto, pelo esforço acumulado, pela persistência dos pensamentos e dos desejos, apesar das decepções, das derrotas, através das existências renovadas, a alma consegue desenvolver as suas altas faculdades.

Há em nós uma surda aspiração, uma íntima energia misteriosa que nos encaminha para as alturas, que nos faz tender para destinos cada vez mais elevados, que nos impele para o belo e para o bem. É a lei do progresso, a evolução eterna, que guia a humanidade através das idades e aguilhoa cada um de nós, porque a humanidade são as próprias almas, que, de século em século, voltam para prosseguir, com o auxílio de novos corpos, preparando-se para mundos melhores, em sua obra de aperfeiçoamento. A história de uma alma não difere da história da humanidade; só a escala difere: é a escala das proporções.

O Espírito molda a matéria, comunica-lhe a vida e a beleza. É por isso que a evolução é, por excelência, uma lei de estética. As formas adquiridas são o ponto de partida de formas mais belas. Tudo se liga. A véspera prepara o dia seguinte; o passado gera o futuro. A obra humana, reflexo da obra divina, expande-se em formas cada vez mais perfeitas.

*

A lei do progresso não se aplica somente ao homem; é universal. Há, em todos os reinos da Natureza, uma evolução que foi reconhecida pelos pensadores de todos os tempos. Desde a célula verde, desde o embrião errante, boiando à flor das águas, a cadeia das espécies tem-se desenrolado através de séries variadas, até nós.[cx]

Cada elo dessa cadeia representa uma forma da existência que conduz a uma forma superior, a um organismo mais rico, mais bem adaptado às necessidades, às manifestações crescentes da vida; mas, na escala da evolução, o pensamento, a consciência e a liberdade só aparecem passados muitos graus. Na planta a inteligência dormita; no animal ela sonha; só no homem acorda, conhece-se, possui-se e torna-se consciente; a partir daí o progresso, de alguma sorte fatal nas formas inferiores da Natureza, só se pode realizar pelo acordo da vontade humana com as leis Eternas.

É pelo acordo, pela união da razão humana com a razão divina que se edificam as obras preparatórias do reino de Deus, isto é, do reino da sabedoria, da justiça, da bondade, de que todo ser racional e consciente tem em si a intuição.

Assim, o estudo das leis da evolução, em vez de anular a espiritualidade do homem, vem, pelo contrário, dar-lhe uma nova sanção; ensina-nos como o corpo do homem pode derivar de uma forma inferior pela seleção natural, mas nos mostra também que possuímos faculdades intelectuais e morais de origem diferente e achamos essa origem no universo invisível, no mundo sublime do Espírito.

A teoria da evolução deve ser completada pela da percussão, isto é, pela ação das potências invisíveis, que ativa e dirige essa lenta e prodigiosa marcha ascensional da vida do Globo. O mundo oculto intervém, em certas épocas, no desenvolvimento físico da humanidade, como intervém no domínio intelectual e moral, pela revelação medianímica. Quando uma raça que chegou ao apogeu é seguida de uma nova raça, é racional acreditar que uma família superior de almas encarna entre os representantes da raça exausta para fazê-la subir um grau, renovando-a e moldando-a à sua imagem. É o eterno himeneu entre o céu e a Terra, a infinita penetração da matéria pelo espírito, a efusão crescente da vida psíquica na forma em evolução.

O aparecimento dos homens na escala dos seres pode explicar-se dessa forma. O homem, demonstra-nos a embriogenia, é a síntese de todas as formas vivas que o precederam, o último elo da longa cadeia de vidas inferiores que se desenrola através dos tempos. Mas isso é apenas o aspecto exterior do problema das origens, ao passo que amplo e imponente é o aspecto interior. Assim como cada nascimento se explica pela descida à carne de uma alma que vem do espaço, assim também o primeiro aparecimento do homem no Planeta deve ser atribuído a uma intervenção das Potências invisíveis que geram a vida. A essência psíquica vem comunicar às formas animais evoluídas o sopro de uma nova vida; vai criar, para a manifestação da inteligência, um órgão até então desconhecido: a palavra. Elemento poderoso de toda a vida social, o verbo aparecerá e, ao mesmo tempo, a alma encarnada conservará, mediante seu invólucro fluídico, a possibilidade de entrar em relações com o meio donde saiu.[cxi]

A evolução dos mundos e das almas é regida pela vontade divina, que penetra e dirige toda a Natureza, mas a evolução física é uma simples preparação para a evolução psíquica e a ascensão das almas prossegue muito além da cadeia dos mundos materiais.

O que impera nas baixas regiões da vida é a luta ardente, o combate sem tréguas de todos contra todos, a guerra perpétua em que cada ser faz esforço para conquistar um lugar ao Sol, quase sempre em detrimento dos outros. Essa peleja furiosa arrasta e dizima todos os seres inferiores nos seus turbilhões.

O nosso Globo é como uma arena onde se travam batalhas incessantes.[cxii]

A Natureza renova continuamente esses exércitos de combatentes. Na sua prodigiosa fecundidade, gera novos seres; mas logo a morte ceifa em suas fileiras cerradas. Essa luta, horrenda à primeira vista, é necessária para o desenvolvimento do princípio de vida, dura até o dia em que um raio de inteligência vem iluminar as consciências adormecidas. É na luta que a vontade se apura e afirma; é da dor que nasce a sensibilidade.

A evolução material, a destruição dos organismos é temporária; representa a fase primária da epopéia da vida. As realidades imperecíveis estão no Espírito; só ele sobrevive a esses conflitos. Todos esses invólucros efêmeros não são mais do que vestuários que vêm ajustar-se à sua forma fluídica permanente. Cobre-os com vestuários para representar os numerosos atos do drama da evolução no vasto palco do universo.

Emergir grau a grau do abismo da vida para tornar-se Espírito, gênio superior, e isto por seus próprios méritos e esforços, conquistar o futuro hora a hora, ir-se libertando dia a dia um pouco mais da ganga das paixões, libertar-se das sugestões do egoísmo, da preguiça, do desânimo, resgatar-se pouco a pouco das suas fraquezas, da sua ignorância, ajudando os seus semelhantes a se resgatarem por sua vez, arrastando todo o meio humano para um estado superior, tal é o papel distribuído a cada alma. Para desempenhá-lo, tem ela à sua disposição toda a série de existências inumeráveis na escala magnífica dos mundos.

Tudo o que vem da matéria é instável; tudo passa, tudo foge. Os montes se vão pouco a pouco abatendo sob a ação dos elementos; as maiores cidades convertem-se em ruínas, os astros acendem-se, resplandecem, depois apagam-se e morrem; só a alma imperecível paira na duração eterna.

O círculo das coisas terrestres aperta-nos e limita as nossas percepções; mas quando o pensamento se separa das formas mutáveis e abarca a extensão dos tempos, vê o passado e o futuro se juntarem, fremirem e viverem o presente. O canto de glória, o hino da vida infinita enche os espaços, sobe do âmago das ruínas e dos túmulos. Sobre os destroços das civilizações extintas rebentam florescências novas. Efetua-se a união entre as duas humanidades, visível e invisível, entre aqueles que povoam a Terra e os que percorrem o espaço. As suas vozes chamam, respondem umas às outras, e esses rumores, esses murmúrios, vagos e confusos ainda para muitos, tornam-se para nós a mensagem, a palavra vibrante que afirma a comunhão de amor universal.

*

Tal é o caráter complexo do ser humano – espírito, força e matéria, em que se resumem todos os elementos constitutivos, todas as potências do universo. Tudo o que está em nós está no universo e tudo o que está no universo encontra-se em nós. Pelo corpo fluídico e pelo corpo material o homem acha-se ligado à imensa teia da vida universal; pela alma, a todos os mundos invisíveis e divinos. Somos feitos de sombra e luz; somos a carne com todas as suas fraquezas e o espírito com as suas riquezas latentes, as suas esperanças radiosas, os seus surtos grandiosos, e o que está em nós em todos os seres se encontra. Cada alma humana é uma projeção do grande Foco Eterno e é isso o que consagra e assegura a fraternidade dos homens. Temos em nós os instintos animais, mais ou menos comprimidos pelo trabalho longo e pelas provas das existências passadas, e temos também a crisálida do anjo, do ser radioso e puro, que podemos vir a ser pela impulsão moral, pelas aspirações do coração e pelo sacrifício constante do “eu”. Tocamos com os pés as profundezas sombrias do abismo e com a fronte as alturas fulgurantes do céu, o império glorioso dos Espíritos.

Quando aplicamos o ouvido ao que se passa no fundo do nosso ser, ouvimos como o ruído de águas ocultas e tumultuosas, o fluxo e refluxo do mar agitado da personalidade que os vendavais da cólera, do egoísmo e do orgulho encapelam. São as vozes da matéria, os chamamentos das baixas regiões, que nos atraem e influenciam ainda as nossas ações; mas podemos dominar essas influências com a vontade, podemos impor silêncio a essas vozes. Quando em nós se faz a bonança, quando o murmúrio das paixões se aplaca, eleva-se então a voz potente do Espírito Infinito, o cântico da vida eterna, cuja harmonia enche a Imensidade. E quanto mais o Espírito se eleva, purifica e ilustra, tanto mais o seu organismo fluídico se torna acessível às vibrações, às vozes, ao influxo do Alto.

O Espírito Divino, que anima o universo, atua sobre todas as almas; busca penetrá-las, esclarecê-las, fecundá-las; mas a maior parte se deixa ficar na escuridão e no insulamento. Demasiado grosseiras ainda, não podem sentir-lhe a influência nem ouvir os seus chamados. Muitas vezes ele as cerca, as envolve, procura chegar às camadas profundas das suas consciências, acordá-las para a vida espiritual. Muitas resistem a essa ação, porque a alma é livre; outras somente a sentem nos momentos solenes da vida, nas grandes provas, nas horas desoladas em que experimentam a necessidade de um socorro do Alto e o pedem. Para viver da vida superior a que se adaptam essas influências, é necessário ter conhecido o sofrimento, praticado a abnegação, ter renunciado às alegrias materiais, acendido e alimentado em si a chama, a luz interior que se não apaga nunca e cujos reflexos iluminam, desde este mundo, as perspectivas do Além. Só múltiplas e penosas existências planetárias nos preparam para essa vida.

*

Assim se desvenda o mistério da Psique, a alma humana, filha do céu, presa temporariamente na carne e que volta para sua pátria de origem ao longo das milhares de mortes e renascimentos.

A tarefa é árdua e as subidas a escalar são difíceis; a espiral assustadora a ser percorrida se desenrola sem um término aparente; mas nossas forças não possuem limites, pois podemos renová-la incessantemente pela vontade e pela comunhão universal.

E, depois, não estamos sozinhos para efetuar essa grande viagem. Não apenas nos reuniremos, cedo ou tarde, com os seres amados, os companheiros de nossas vidas passadas, aqueles que compartilharam nossas alegrias e nossos tormentos, mas também com outros grandes seres, que também foram homens e que agora são espíritos celestes e permanecem ao nosso lado nas passagens difíceis. Aqueles que nos ultrapassaram no caminho sagrado não se desinteressam de nossa sorte, e quando a tormenta maltrata nossa estrada, suas mãos caridosas sustentam nossa caminhada.

Lenta e dolorosamente, amadurecemos para as tarefas cada vez mais elevadas; participamos mais da execução de um plano cuja majestade enche de uma admiração comovente aquele que nele entrevê as linhas imponentes. À medida que nossa ascensão se acentua, maiores revelações nos são feitas, novas formas de atividade, novos sentidos psíquicos nascem em nós, coisas mais sublimes nos aparecem. O universo fluídico sempre se mostra mais vasto para nosso desenvolvimento; ele se torna uma fonte inesgotável de alegrias espirituais.

Posteriormente, chega a hora em que, após suas peregrinações pelos mundos, a alma, das regiões da vida superior, contempla o conjunto de suas existências, o longo cortejo dos sofrimentos por que passou. Esses sofrimentos são o preço da sua felicidade, essas provas redundaram todas em seu proveito, afinal ela o compreende. Então, mudam-se os papéis. De protegida passa a protetora; envolve com a sua influência os que lutam ainda nas terras do espaço, insufla-lhes os conselhos da própria experiência; sustenta-os na via árdua, nas sendas ásperas que ela própria percorreu.

Conseguirá a alma chegar um dia ao termo da sua viagem? Avançando pelo caminho traçado, ela vê sempre se abrirem novos campos de estudos e descobertas. Semelhantes à corrente de um rio, as águas da Ciência suprema descem para ela em torrente cada vez mais caudalosa. Chega a penetrar a santa harmonia das coisas, a compreender que não existe nenhuma discordância, nenhuma contradição no universo; que por toda parte reinam a ordem, a sabedoria, a providência, e a sua confiança e seu entusiasmo aumentam cada vez mais. Com amor maior ao Poder Supremo, ela saboreia de maneira mais intensa as felicidades da vida bem-aventurada.

Daí em diante está intimamente associada à obra divina; está preparada para desempenhar as missões que cabem às almas superiores, à hierarquia dos Espíritos que, por diversos títulos, governam e animam o Cosmo, porque essas almas são os agentes de Deus na obra eterna da Criação, são os livros maravilhosos em que Ele escreveu os seus mais belos mistérios, são como as correntes que vão levar às terras do espaço as forças e as radiações da Alma Infinita.

Deus conhece todas as almas, que formou com o seu pensamento e o seu amor. Sabe o grande partido que delas há de tirar mais tarde para a realização das suas vistas. A princípio, deixa-as percorrer vagarosamente as vias sinuosas, subir os sombrios desfiladeiros das vidas terrestres, acumular pouco a pouco em si os tesouros de paciência, de virtude, de saber, que se adquirem na escola do sofrimento. Mais tarde, enternecidas pelas chuvas e pelas rajadas da adversidade, amadurecidas pelos raios do sol divino, saem da sombra dos tempos, da obscuridade das vidas inumeráveis, e eis que suas faculdades desabrocham em feixes deslumbrantes; a sua inteligência revela-se em obras que são como que o reflexo do Gênio Divino.

X
A morte

A morte é uma simples mudança de estado, a destruição de uma forma frágil que já não proporciona à vida as condições necessárias ao seu funcionamento e à sua evolução. Para além da campa, abre-se uma nova fase de existência. O Espírito, debaixo da sua forma fluídica, imponderável, prepara-se para novas reencarnações; acha no seu estado mental os frutos da existência que findou.

Por toda parte se encontra a vida. A Natureza inteira mostra-nos, no seu maravilhoso panorama, a renovação perpétua de todas as coisas. Em parte alguma há a morte, como, em geral, é considerada entre nós; em parte alguma há o aniquilamento; nenhum ente pode perecer no seu princípio de vida, na sua unidade consciente. O universo transborda de vida física e psíquica. Por toda parte o imenso formigar dos seres, a elaboração de almas que, quando escapam às demoradas e obscuras preparações da matéria, é para prosseguirem, nas etapas da luz, a sua ascensão magnífica.

A vida do homem é como o Sol das regiões polares durante o estio. Desce devagar, baixa, vai enfraquecendo, parece desaparecer um instante por baixo do horizonte. É o fim, na aparência; mas, logo depois, torna a elevar-se, para novamente descrever a sua órbita imensa no céu.

A morte é apenas um eclipse momentâneo na grande revolução das nossas existências; mas, basta esse instante para revelar-nos o sentido grave e profundo da vida. A própria morte pode ter também a sua nobreza, a sua grandeza. Não devemos temê-la, mas, antes, esforçarmo-nos por embelezá-la, preparando-se cada um constantemente para ela, pela pesquisa e conquista da beleza moral, a beleza do Espírito que molda o corpo e o orna com um reflexo augusto na hora das separações supremas. A maneira pela qual cada um sabe morrer é já, por si mesma, uma indicação do que para cada um de nós será a vida do espaço.

Há como uma luz fria e pura em redor da almofada de certos leitos de morte. Rostos, até aí insignificantes, parecem aureolados por claridades do Além. Um silêncio imponente faz-se em volta daqueles que deixaram a Terra. Os vivos, testemunhas da morte, sentem grandes e austeros pensamentos desprenderem-se do fundo banal das suas impressões habituais, dando alguma beleza à sua vida interior. O ódio e as más paixões não resistem a esse espetáculo. Ante o corpo de um inimigo, abranda toda a animosidade, esvai-se todo o desejo de vingança. Junto de um esquife, o perdão parece mais fácil, mais imperioso o dever.

Toda morte é um parto, um renascimento; é a manifestação de uma vida até aí latente em nós, vida invisível da Terra, que vai reunir-se à vida invisível do espaço. Depois de certo tempo de perturbação, tornamos a encontrar-nos, além do túmulo, na plenitude das nossas faculdades e da nossa consciência, junto dos seres amados que compartilharam as horas tristes ou alegres da nossa existência terrestre. A tumba apenas encerra pó. Elevemos mais alto os nossos pensamentos e as nossas recordações, se quisermos achar de novo o rastro das almas que nos foram caras.

Não peçais às pedras do sepulcro o segredo da vida. Os ossos e as cinzas que lá jazem nada são, ficai sabendo. As almas que os animaram deixaram esses lugares, revivem em formas mais sutis, mais apuradas. Do seio do invisível, aonde lhes chegam as vossas orações e as comovem, elas vos seguem com a vista, vos respondem e vos sorriem. A revelação espírita ensinar-vos-á a comunicar com elas, a unir os vossos sentimentos num mesmo amor, numa esperança inefável.

Muitas vezes, os seres que chorais e que ides procurar no cemitério estão ao vosso lado. Vêm velar por vós aqueles que foram o amparo da vossa juventude, que vos embalaram nos braços, os amigos, companheiros das vossas alegrias e das vossas dores, bem como todas as formas, todos os meigos fantasmas dos seres que encontrastes no vosso caminho, os quais participaram da vossa existência e levaram consigo alguma coisa de vós mesmos, da vossa alma e do vosso coração. Ao redor de vós flutua a multidão dos homens que se sumiram na morte, multidão confusa, que revive, vos chama e mostra o caminho que tendes de percorrer.

Ó morte, ó serena majestade! Tu, de quem fazem um espantalho, és para o pensador simplesmente um momento de descanso, a transição entre dois atos do destino, dos quais um acaba e o outro se prepara. Quando a minha pobre alma, errante há tantos séculos através dos mundos, depois de muitas lutas, vicissitudes e decepções, depois de muitas ilusões desfeitas e esperanças adiadas, for repousar de novo no teu seio, será com alegria que saudará a aurora da vida fluídica; será com ebriedade que se elevará do pó terrestre, através dos espaços insondáveis, em direção àqueles a quem amou neste mundo e que a esperam.

Para a maior parte dos homens a morte continua a ser o grande mistério, o sombrio problema que ninguém ousa olhar de frente. Para nós ela é a hora bendita em que o corpo cansado volve à grande Natureza para deixar à Psique, sua prisioneira, livre passagem para a pátria eterna. Essa pátria é a Imensidade radiosa, cheia de sóis e de esferas. Junto deles, como há de parecer raquítica a nossa pobre Terra! O infinito envolve-a por todos os lados. O infinito na extensão e o infinito na duração, eis o que se nos depara, quer se trate da alma, quer se trate do universo.

Assim como cada uma das nossas existências tem o seu termo e há de desaparecer para dar lugar a outra vida, assim também cada um dos mundos semeados no espaço terá de morrer para dar lugar a outros mundos mais perfeitos.

Dia virá em que a vida humana se extinguirá no Globo esfriado. A Terra, vasta necrópole, rolará, soturna, na amplidão silenciosa. Hão de elevar-se ruínas imponentes nos lugares onde existiram Roma, Paris, Constantinopla, cadáveres de capitais, últimos vestígios das raças extintas, livros gigantescos de pedra que nenhum olhar carnal voltará a ler. Mas a humanidade terá desaparecido da Terra somente para prosseguir, em esferas mais bem dotadas, a carreira de sua ascensão. A vaga do progresso terá impelido todas as almas terrestres para planetas mais bem preparados para a vida. É provável que civilizações prodigiosas floresçam há esse tempo em Saturno e Júpiter; ali se hão de expandir humanidades renascidas numa glória incomparável. Lá é o lugar futuro dos seres humanos, o seu novo campo de ação, os sítios abençoados onde lhes será dado continuarem a amar e trabalhar para o seu aperfeiçoamento.

No meio de seus trabalhos, a triste lembrança da Terra virá talvez perseguir ainda esses Espíritos; mas, das alturas atingidas, a memória das dores sofridas, das provas suportadas, será apenas um estimulante para se elevarem a maiores alturas.

Em vão a evocação do passado lhes fará surgir à vista os espectros de carne, os tristes despojos que jazem nas sepulturas terrestres. A voz da sabedoria dir-lhes-á:

“Que importa as sombras que se foram! Nada perece. Todo ser se transforma e esclarece sobre os degraus que conduzem de esfera em esfera, de sol em sol, até Deus. Espírito imorredouro, lembra-te disto: “A morte não existe!”

*

O ensino e o cerimonial das igrejas muito têm contribuído, ao representar a morte com formas lúgubres, para fazer nascer um sentimento de terror nos espíritos. As doutrinas materialistas, por sua vez, não eram próprias para reagir contra essa impressão.

À hora do crepúsculo, quando a noite desce sobre a Terra, apodera-se de nós uma espécie de tristeza. Facilmente a afugentamos, dizendo no nosso íntimo: depois das trevas virá a luz. A noite é apenas a véspera da aurora!

Quando acaba o verão e o inverno taciturno sucede ao deslumbramento da Natureza, consolamo-nos com o pensamento das florescências futuras. Por que existe, pois, o medo da morte, a ansiedade pungente, com relação a um ato que não é o fim de coisa alguma? É quase sempre porque a morte nos parece a perda, a privação súbita de tudo o que fazia a nossa alegria. O espiritualista sabe que não é assim. A morte é para ele a entrada num modo de vida mais rico de impressões e de sensações. Não somente não ficamos privados das riquezas espirituais, como também estas aumentam com recursos tanto mais extensos e variados quanto a alma se tiver preparado melhor para gozá-los.

A morte nem sequer nos priva das coisas deste mundo. Continuaremos a ver aqueles a quem amamos e deixamos atrás de nós. Do seio dos Espaços seguiremos os progressos deste planeta; veremos as mudanças que ocorrerem na sua superfície; assistiremos às novas descobertas, ao desenvolvimento social, político e religioso das nações e, até à hora do nosso regresso à carne, em tudo isso havemos de cooperar fluidicamente, auxiliando, influenciando, na medida do nosso poder e do nosso adiantamento, aqueles que trabalham em proveito de todos.

Bem longe de afugentar a idéia da morte, como em geral o fazemos, saibamos, pois, encará-la face a face, pelo que ela é na realidade. Esforcemo-nos por desembaraçá-la das sombras e das quimeras com que a envolvem e averigüemos como convém nos prepararmos para esse incidente natural e necessário no curso da vida.

Necessário, dizemos. Com efeito, o que aconteceria se a morte fosse suprimida? O globo tornar-se-ia estreito demais para conter a multidão humana. Com a idade e a velhice, a vida parecer-nos-ia, em dado momento, de tal modo insuportável, que preferiríamos tudo à sua prolongação indefinida. Viria um dia em que, tendo esgotado todos os meios de estudo, de trabalho, de cooperação útil à ação comum, a existência revestiria para nós um caráter de insuportável monotonia.

O nosso progresso e a nossa elevação exigem-no: mais dia menos dia, temos de ficar livres do invólucro carnal, que, depois de haver prestado os serviços esperados, se torna impróprio para seguir-nos em outros planos do nosso destino. Como é possível que aqueles que crêem na existência de uma sabedoria previdente, de um Poder ordenador, qualquer que seja, aliás, a forma que emprestem a esse Poder, considerem a morte um mal? Se ela representa um papel importante na evolução dos seres, não será, portanto, uma das fases reclamadas por essa evolução, o correspondente natural do nascimento, um dos elementos essenciais do plano da vida?

O universo não pode falhar. Seu fim é a beleza; seus meios a justiça e o amor. Fortaleçamo-nos com o pensamento no futuro sem limites. A confiança na outra vida estimulará os nossos esforços, torná-los-á mais fecundos. Nenhuma obra de vulto e que exija paciência pode ser levada a cabo sem a certeza do dia seguinte. A cada vez que distribui os seus golpes à nossa volta, a morte, no seu esplendor austero, torna-se um ensinamento, uma lição soberana, um incentivo para trabalharmos melhor, para procedermos melhor, para aumentarmos constantemente o valor da nossa alma.

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Os sepultamentos são feitos com um aparato que deixa outra impressão não menos penosa na memória dos assistentes. O pensamento de que o nosso invólucro será também por sua vez depositado na terra provoca uma sensação de angústia e asfixia. No entanto, todos os corpos que por nós foram animados, no passado, jazem igualmente no solo ou vão sendo paulatinamente transformados em plantas e flores. Esses corpos eram simples vestuários usados; a nossa personalidade não foi enterrada com eles; pouco nos importa hoje o que deles foi feito. Por que havemos, então, de nos preocupar mais com a sorte do último do que com a dos outros? Sócrates respondia com justeza aos seus amigos que lhe perguntavam como queria ser enterrado: “Enterrai-me como quiserdes, se puderdes apoderar-vos de mim.” [cxiii]

Inúmeras vezes a imaginação do homem povoa as regiões do Além de criações assustadoras, que se tornam horripilantes para ele. Certas igrejas ensinam, ainda, que as condições boas ou más da vida futura são definitivas, irrevogavelmente determinadas por ocasião da morte e essa afirmação perturba a existência de muitos crentes. Outros temem o insulamento, o abandono no seio dos Espaços.

A Revelação dos Espíritos vem pôr termo a todas essas apreensões; traz-nos sobre a vida de além-túmulo indicações exatas;[cxiv] dissipa a incerteza cruel e o temor do desconhecido que nos atribulam. A morte, diz-nos ela, em nada muda a nossa natureza espiritual, os nossos caracteres, o que constitui o nosso verdadeiro “eu”; apenas nos torna mais livres, dota-nos de uma liberdade cuja extensão se mede pelo nosso grau de adiantamento. Tanto de um lado quanto de outro, temos a possibilidade de fazer o bem ou o mal, a facilidade de adiantar-nos, de progredir, de reformar-nos. Por toda a parte reinam as mesmas leis, as mesmas harmonias, as mesmas potências divinas. Nada é irrevogável. O amor que nos chama a este mundo, atrai-nos mais tarde para o outro; mas em todos os lugares amigos protetores, arrimos, esperam-nos. Ao passo que neste mundo choramos a partida de um dos nossos, como se ele fosse perder-se no nada, acima de nós seres etéreos glorificam a sua chegada à luz, da mesma forma que nós nos regozijamos com a chegada de uma criancinha, cuja alma vem, de novo, desabrochar para a vida terrestre. Os mortos são os vivos do céu!

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Muitas pessoas temem a morte por causa dos sofrimentos físicos que a acompanham. Sofremos, é verdade, na doença que acaba pela morte, mas sofremos também nas doenças de que nos curamos. No instante da morte, dizem-nos os Espíritos, quase nunca há dor; morre-se como se adormece. Essa opinião é confirmada por todos aqueles a quem a profissão e o dever chamam freqüentes vezes para a cabeceira dos moribundos.

No entanto, se considerarmos o sossego, a serenidade de certos doentes nas horas derradeiras e a agitação convulsiva, a agonia de outros, devemos reconhecer que as sensações que precedem a morte são muito diversas, em relação aos indivíduos. Os sofrimentos são tanto mais vivos quanto mais numerosos e fortes são os laços que unem a alma ao corpo. Tudo o que os pode diminuir, enfraquecer, tornará a separação mais rápida, a transição menos dolorosa.

Se a morte é quase sempre isenta de sofrimento para aquele cuja vida foi nobre e bela, não sucede o mesmo com os sensuais, os violentos, os criminosos, os suicidas.

Uma vez transposta a passagem, uma espécie de perturbação, de entorpecimento, invade a maior parte das almas que não souberam preparar-se para a partida. Nesse estado, as suas faculdades ficam veladas, as suas percepções mal se exercem através de um nevoeiro mais ou menos denso. A duração da perturbação varia segundo a natureza e o valor moral delas; pode ser muito prolongada para as mais atrasadas e chegar a anos até; depois, pouco a pouco, vai-se dissipando o nevoeiro; as percepções ganham maior nitidez. O Espírito readquire a lucidez; desperta para a nova vida, a vida do espaço. Solene é esse instante para ele, mais decisivo, mais formidável do que a hora da morte; porque, segundo o seu valor e o seu grau de pureza, será tranqüilo e delicioso, cheio de ansiedade ou de sofrimento esse despertar.

No estado de perturbação, a alma tem consciência dos pensamentos que se lhe dirigem. Os pensamentos de amor e caridade, as vibrações dos corações afetuosos brilham para ela como raios na névoa que a envolve; ajudam-na a soltar-se dos últimos laços que a acorrentam à Terra, a sair da sombra em que está imersa. É por isso que as preces inspiradas pelo coração, pronunciadas com calor e convicção, principalmente as preces improvisadas, são salutares, benfazejas para o Espírito que deixou a vida corporal; pelo contrário, as orações vagas, pueris, das igrejas, são muitas vezes ineficazes. Pronunciadas maquinalmente, não adquirem o poder vibratório que faz do pensamento uma força penetrante e, ao mesmo tempo, uma luz.

O cerimonial religioso em uso oferece, em geral, pouco auxílio e conforto aos defuntos. Os assistentes dessas manifestações, na ignorância das condições da sobrevivência, ficam indiferentes e distraídos. É quase um escândalo ver a desatenção com que se assiste, em nossa época, a uma cerimônia fúnebre. A atitude dos assistentes, a falta de recolhimento, as conversas banais trocadas durante o funeral, tudo causa penosa impressão. Bem poucos dos que formam o acompanhamento pensam no defunto e consideram como dever projetar para ele um pensamento afetuoso.

As preces fervorosas dos amigos, dos parentes, são muito mais eficazes para o Espírito do morto do que as manifestações do culto mais pomposo; não é, contudo, conveniente nos entregarmos desmedidamente à dor da separação. As saudades da partida são, decerto, legítimas e as lágrimas sinceras são sagradas; mas, quando demasiado violentas, essas manifestações de pesar entristecem e desanimam aquele a quem se dirigem e, muitas vezes, testemunha delas. Em vez de lhe facilitarem o vôo para o espaço, retêm-no nos lugares onde sofreu e onde ainda estão sofrendo aqueles que lhe são caros.

Pergunta-se às vezes o que se deve pensar das mortes prematuras, das mortes acidentais, das catástrofes que, de um golpe, destroem numerosas existências humanas. Como conciliar esses fatos com a idéia de plano, de providência, de harmonia universal? E se deixa voluntariamente a vida por um ato de desespero, que sucede? Qual é a sorte dos suicidas?

As existências interrompidas prematuramente por causa de acidentes chegaram ao seu termo previsto. São, em geral, complementares de existências anteriores, truncadas por causa de abusos ou excessos. Quando, em conseqüência de hábitos desregrados, se gastaram os recursos vitais antes da hora marcada pela Natureza, tem-se de voltar a perfazer, numa existência mais curta, o lapso de tempo que a existência precedente devia ter normalmente preenchido. Sucede que os seres humanos passíveis dessa reparação se reúnem num ponto pela força do destino, para sofrerem, numa morte trágica, as conseqüências de atos que têm relação com o passado anterior ao nascimento. Daí, as mortes coletivas, as catástrofes que lançam no mundo um aviso. Aqueles que assim partem, acabaram o tempo que tinham de viver e vão preparar-se para existências melhores.

Quanto aos suicidas, a perturbação em que a morte os imerge é profunda, penosa, dolorosa. A angústia os agrilhoa e segue até à sua reencarnação ulterior. O seu gesto criminoso causa ao corpo fluídico um abalo violento e prolongado que se transmitirá ao organismo carnal pelo renascimento. A maior parte deles volta enferma à Terra. Estando no suicida, em toda a sua força, a vida, o ato brutal que a despedaça produzirá longas repercussões no seu estado vibratório e determinará afecções nervosas nas suas futuras vidas terrestres.

O suicida procura o nada e o esquecimento de todas as coisas; mas vai, ao contrário, encontrar-se em face de sua consciência, na qual fica gravada, para todo o sempre, a recordação lamentável da sua deserção do combate da vida. A prova mais dura, o sofrimento mais cruel que haja na Terra é preferível à recriminação perpétua da alma, à vergonha de já não se poder prezar.

A destruição violenta de recursos físicos que podiam ser-lhe úteis ainda, e até fecundos, não livra o suicida das provações a que quis fugir, porque lhe será necessário reatar a cadeia quebrada das suas existências e com ela tornar a achar a série inevitável das provas, agravadas por atos e conseqüências que ele mesmo causou.

Os motivos de suicídio são de ordem passageira e humana; as razões de viver são de ordem eterna e sobre-humana. A vida, resultado de um passado completo, instrumento de futuro, é, para cada um de nós, o que deve ser na balança infalível do destino. Aceitemos com coragem suas vicissitudes, que são outros tantos remédios para as nossas imperfeições, e saibamos esperar com paciência a hora fixada pela lei eqüitativa para termo da nossa permanência na Terra.

*

O conhecimento que nos tiver sido possível adquirir das condições da vida futura exerce grande influência em nossos últimos momentos; dá-nos mais segurança; abrevia a separação da alma. Para nos prepararmos com proveito para a vida do Além, é preciso não somente estarmos convencidos da sua realidade, mas também lhe compreender as leis, ver com o pensamento as vantagens e as conseqüências dos nossos esforços para o ideal moral. Os nossos estudos psíquicos, as relações estabelecidas durante a vida com o mundo invisível, as nossas aspirações às formas de existência mais elevadas, desenvolvem as nossas faculdades latentes e, quando chega a hora definitiva, como se encontra já em parte efetuada a separação do corpo, a perturbação pouco dura. O Espírito reconhece-se quase logo: tudo o que vê lhe é familiar; adapta-se sem esforço e sem emoção às condições no novo meio.

Quando se aproxima a hora derradeira, os moribundos entram muitas vezes na posse dos seus sentidos psíquicos e percebem os seres e as coisas do Invisível. Numerosos são os exemplos. Apresentamos alguns, extraídos das investigações feitas pelo Sr. Ernesto Bozzano, cujos resultados foram publicados pelos Annales des Sciences Psychiques, de março de 1906:

1° caso – Num livro que conta a vida do Rev. Dwight L. Moody (fervoroso propagandista evangélico nos Estados Unidos), escrita por seu filho (pág. 485), encontra-se a seguinte narrativa dos seus últimos momentos:

“Ouviram-no, de repente, murmurar: “A Terra afasta-se, o céu abre-se diante de mim; passei os seus últimos limites. Não me chameis outra vez; tudo isto é belo; dir-se-ia uma visão de êxtase. Se isto é a morte, como é suave...” Seu rosto reanimou-se e, com uma expressão de alegre enlevo: “Dwight! Irene! Vejo as crianças!” (fazia alusão a dois dos seus netos que tinham morrido). Depois, voltando-se para sua mulher, disse-lhe: “Tu foste sempre uma boa companheira para mim.” Depois dessas palavras, perdeu os sentidos.”

2º caso – O Sr. Alfred Smedley, a págs. 50 e 51 da sua obra Some Reminiscences, conta do seguinte modo os últimos momentos de sua mulher:

“Alguns momentos antes da sua morte, os olhos se lhe fixaram em alguma coisa que pareceu enchê-los de viva e agradável surpresa. Então disse:

– Como! Estão aqui minha irmã Carlota, minha mãe, meu pai, meu irmão João, minha irmã Maria! Agora, trazem-me também Bessy Heap! Estão todos aqui. Oh! como isto é belo, como isto é belo! Não os estás vendo?

– Não, minha querida – respondi – e muito sinto.

– Então, não os podes ver – repetiu a doente com surpresa –. Não obstante, todos estão aqui, vieram para me levar com eles. Uma parte da nossa família já atravessou o grande mar e não tardaremos a achar-nos todos reunidos na nova mansão celeste.

Acrescentarei aqui que Bessy Heap tinha sido uma criada muito fiel, muito afeiçoada à nossa família, e que sempre tivera por minha mulher particular estima.

Depois dessa visão extática, a doente ficou algum tempo como exausta; finalmente, voltando fixamente a vista para o céu e erguendo os braços, expirou.”

3º caso – O Dr. Paul Edwards escrevia, em abril de 1903, ao diretor de Light, de Londres:

“Aí por volta do ano de 1887, quando eu habitava uma cidade da Califórnia, fui chamado para junto da cabeceira de uma amiga a quem dedicava grande estima e que se achava na hora extrema, em conseqüência de uma doença do peito. Toda gente sabia que essa mulher pura e nobre, mãe exemplar, estava votada a morte iminente. Ela acabou também por assim o compreender e quis então preparar-se para o grande momento. Tendo mandado vir os filhos para junto do leito, beijava ora um, ora outro, mandando-os depois retirar. O marido aproximou-se por último para dar-lhe e receber o adeus supremo. Achou-a na plena posse das suas faculdades intelectuais. Ela começou por dizer:

– Newton (era o nome do marido), não chores, porque eu não sofro e tenho a alma pronta e serena. Amei-te na Terra; continuarei a amar-te depois de partir. É meu intento vir até ti, se me for possível; se não puder, velarei do céu por ti, por meus filhos, esperando a tua vinda. Agora, o meu mais vivo desejo é ir-me embora... Avisto algumas sombras que se agitam em volta de nós... todas vestidas de branco... Ouço uma melodia deliciosa... Oh! aí está a minha Sadie! Está perto de mim e sabe perfeitamente quem eu sou. (Sadie era uma filhinha que ela perdera havia dez anos.)

– Sissy – disse-lhe o marido – minha Sissy, não vês que estás sonhando?!

– Ah! meu caro – respondeu a doente –, por que me chamaste? Agora, custar-me-á mais a ir-me embora. Sentia-me tão feliz no Além, era tão delicioso, tão belo!

Três minutos depois, aproximadamente, acrescentou a agonizante:

– Vou-me novamente embora e, desta vez, não voltarei, ainda que me chames.

Durou esta cena oito minutos. Via-se bem que a agonizante gozava da visão completa dos dois mundos ao mesmo tempo, porque falava das figuras que se moviam ao seu derredor no Além e, simultaneamente, dirigia a palavra aos mortais deste mundo... Nunca me sucedeu assistir a morte mais impressionante, mais solene.”

Os “Annales” relatam igualmente grande número de casos em que o doente percebe aparições de defuntos, cujo falecimento ignorava. Cinco casos sensacionais encontram-se nos Proceedings of the S. P. R., de Londres. Esses casos apóiam-se em testemunhos de alto valor.

O Sr. Ernesto Bozzano, ao terminar a sua exposição, pergunta se esses fenômenos poderiam ser explicados pela subconsciência ou pela leitura do pensamento. Conclui pela negativa e assim se exprime:[cxv]

“Essas hipóteses pouco se recomendam pela simplicidade e não têm o dom de convencer facilmente um investigador imparcial. É claro que, com semelhantes teorias, tão embrulhadas e muito mais engenhosas do que sérias, se ultrapassam as fronteiras da indução científica para mergulhar-se no domínio ilimitado do fantástico.” [cxvi]

Enfim, eis dois outros fatos publicados pelos Annales des Sciences Psychiques, de maio de 1911. Eles apresentam certos traços de analogia com os precedentes e, além disso, se enriquecem de pormenores que nos ensinam como se opera, na morte, a separação entre o corpo fluídico e o corpo material.

A Sra. Morence Marryat escreve o que se segue no The Spirit’s World (O Mundo dos Espíritos, 128):

“Conto entre meus mais caros amigos uma jovem, pertencente às altas classes da aristocracia, dotada de maravilhosas faculdades mediúnicas.

Teve ela, há alguns anos, a infelicidade de perder sua irmã mais velha, então com vinte anos, em conseqüência de uma forte pleurisia.

Edith (designarei por esse nome a jovem médium) não quis afastar-se um só instante da cabeceira de sua irmã e aí, em estado de clarividência, pôde assistir ao processo de separação do Espírito da parte material. Contava-me ela que a pobre doente, em seus últimos dias de vida terrestre, se tinha tornado inquieta, sobreexcitada, delirante, voltando-se incessantemente no leito e pronunciando palavras sem sentido.

Foi então que Edith começou a perceber uma espécie de ligeira nebulosidade semelhante a fumaça, que, condensando-se gradualmente acima da cabeça, acabou por assumir as proporções, as formas e os traços da irmã moribunda, de modo a se lhe assemelhar por completo. Essa forma flutuava no ar, a pouca distância da doente.

À medida que o dia declinava, a agitação da enferma minorava, sendo substituída à tarde por prostração profunda, precursora da agonia.

Edith contemplava avidamente a irmã: o rosto tornara-se lívido, o olhar obscurecia-se, mas, ao alto, a forma fluídica purpureava-se e parecia animar-se gradualmente com a vida que abandonava o corpo.

Um momento depois, a criança jazia inerte e sem conhecimento sobre os travesseiros, mas a forma se transformara em Espírito vivo. Cordões de luz, no entanto, semelhantes a florescências elétricas, ligavam-se ainda ao coração, ao cérebro e aos outros órgãos vitais.

Chegando o momento supremo, o Espírito oscilou algum tempo de um lado a outro, para vir em seguida colocar-se ao lado do corpo inanimado. Ele era, em aparência, muito fraco e mal podia suster-se.

E, enquanto Edith contemplava esta cena, eis que se apresentaram duas formas luminosas, nas quais reconheceu seu pai e sua avó, mortos ambos nessa mesma casa. Aproximaram-se do Espírito recém-nascido, sustentaram-no afetuosamente e o abraçaram. Depois, arrancaram-lhe os cordões de luz que o ligavam ainda ao corpo e, apertando-o sempre nos braços, dirigiram-se à janela e desapareceram.”

W. Stainton Moses, pastor da Igreja Anglicana e um dos mais célebres médiuns de nossa época, publicou em Light:

“Tive recentemente e pela primeira vez na vida ocasião de estudar os processos de transição do Espírito. Aprendi tantas coisas dessa experiência, que me louvo por ser útil a outros contando o que vi... Tratava-se de um próximo parente meu, de quase 80 anos. Eu tinha percebido, por certos sintomas, que seu fim estava próximo e corri a preencher meu triste e último dever...

Graças a meus sentidos espirituais, podia verificar que em torno e acima de seu corpo se formava a aura nebulosa com a qual o Espírito devia preparar seu corpo espiritual; e percebia que ela ia aumentando de volume e densidade, posto que submetida a maiores ou menores variações, segundo as oscilações experimentadas na vitalidade do moribundo.

Pude assim notar que, por vezes, um alimento leve tomado pelo doente ou uma influência magnética desprendida por pessoa que dele se aproximasse tinha como resultado avivar momentaneamente o corpo. A aura parecia, pois, continuamente em fluxo e refluxo.

Assisti a esse espetáculo durante doze dias e doze noites e, embora ao sétimo dia já o corpo tivesse dado sinais de sua iminente dissolução, a flutuação da vitalidade espiritual em via de exteriorização persistia. Pelo contrário, a cor da aura tinha mudado; esta última tomava, além disso, formas cada vez mais definidas, à medida que a hora da libertação se aproximava para o Espírito.

Vinte e quatro horas, somente, antes da morte, quando o corpo jazia inerte, foi que o processo de libertação progrediu. No momento supremo vi aparecer formas de “espíritos guardiães”, que se chegaram ao moribundo e sem nenhum esforço separaram o Espírito do corpo consumido. Quando, enfim, se quebraram os cordões magnéticos, os traços do defunto, nos quais se liam os sofrimentos experimentados, serenaram completamente e se impregnaram de inefável expressão de paz e de repouso.”

Em resumo, o melhor meio de conseguirmos uma morte suave e tranqüila é viver dignamente, com simplicidade e sobriedade, é viver uma vida sem vícios nem fraquezas, desapegando-nos antecipadamente de tudo o que nos liga à matéria, idealizando a nossa existência, povoando-a de pensamentos elevados e ações nobres.

Sucede o mesmo com as condições boas ou ruins da vida de além-túmulo. Dependem também unicamente da maneira pela qual desenvolvemos as nossas tendências, os nossos apetites, os nossos desejos. É na atualidade que precisamos preparar-nos, agir, reformar-nos, e não no momento em que se aproxima o fim terrestre. Seria pueril acreditarmos que a nossa situação futura depende de certas formalidades mais ou menos bem cumpridas à hora da partida. É a nossa vida inteira que responde pela vida futura; uma e outra se ligam estreitamente; formam uma série de causas e efeitos que a morte não interrompe.

Não é menos importante dissipar as quimeras que preocupam certos cérebros a respeito dos lugares reservados às almas depois da morte, para as atormentar. Aquele que cuidou do nosso nascimento, colocando-nos, ao virmos ao mundo, em braços amantes, estendidos para nos receberem, reserva-nos também afeições para a nossa chegada ao Além. Expulsemos para longe de nós os terrores vãos, as visões infernais, as beatitudes ilusórias. O futuro, como o presente, é a atividade, o trabalho; é a conquista de novos postos. Tenhamos confiança na bondade de Deus, no amor que Ele tem às suas criaturas, e avancemos com firmeza no coração para o alvo que a todos Ele marcou!

Além da campa, o único juiz, o único algoz que temos é a nossa própria consciência. Livre dos estorvos terrestres, adquire ela um grau de acuidade para nós difícil de compreender. Adormecida muitas vezes durante a vida, acorda com a morte e a sua voz se eleva; evoca as recordações do passado, as quais, despidas inteiramente de ilusões, lhe aparecem sob a sua verdadeira luz, e as nossas menores faltas se tornam causa de incessantes pesares.

“Não há, como disse Myers, necessidade de purificação pelo fogo. O conhecimento de si mesmo é o único castigo e a única recompensa do homem.” [cxvii]

*

Existe em toda a parte a harmonia, tanto na marcha solene dos mundos, como na dos destinos. Cada um é classificado segundo as suas aptidões na ordem universal. Aos grandes Espíritos incumbem as altas tarefas, as criações do gênio; às almas fracas as obras medíocres, as missões inferiores. Em qualquer campo que se exerça a atividade de nossas vidas, tendemos para o lugar que nos convém e legitimamente nos pertence.

Façamo-nos, pois, almas poderosas, ricas de ciência e virtude, aptas para as obras grandiosas e elas por si mesmas hão de se colocar em nobre posição na ordem eterna.

Pela alta cultura moral, pela conquista da energia, da dignidade, da bondade, esforcemo-nos por alcançar o nível dos grandes Espíritos que trabalham pela causa das humanidades, para apreciarmos com eles as alegrias reservadas ao verdadeiro mérito. Então a morte, em vez de ser um espantalho, converter-se-á, para nós, em um benefício, e poderemos repetir as célebres palavras de Sócrates: – “Ah! se assim é, deixai que eu morra uma e muitas vezes!”

XI
A vida no Além

O ser humano, dissemos, pertence desde esta vida a dois mundos. Pelo corpo físico está ligado ao mundo visível; pelo corpo fluídico ao invisível. O sono é a separação temporária dos dois invólucros; a morte é a separação definitiva. A alma, nos dois casos, separa-se do corpo físico e, com ela, a vida concentra-se no corpo fluídico. A vida de além-túmulo é simplesmente a permanência e a libertação da parte invisível do nosso ser.

A antiguidade conheceu esse mistério,[cxviii] mas, desde muito tempo, sobre as condições da vida futura os homens apenas possuíam noções de caráter vago e hipotético.

As religiões e as filosofias nos transmitem, acerca desses problemas, dados muito incertos, absolutamente desprovidos de observação, de sanção e, sobre quase todos os pontos, em desacordo completo com as idéias modernas de evolução e continuidade.

A Ciência, por seu lado, não estudou nem conheceu, até aqui, no homem terrestre mais do que a superfície, a parte física. Ora, esta é para o ser inteiro quase o que a casca é para a árvore. Quanto ao homem fluídico, etéreo, de que o nosso cérebro físico não pode ter consciência, ela o tem ignorado inteiramente até nossos dias. Daí a sua impotência para resolver o problema da sobrevivência, pois que é só o ser fluídico que sobrevive. A Ciência nada tem compreendido das manifestações psíquicas que se produzem no sono, no desprendimento, na exteriorização, no êxtase, em todas as fugas da alma para a vida superior. Ora, é unicamente pela observação desses fatos que chegaremos a adquirir, já nesta vida, um conhecimento positivo da natureza do “eu” e das suas condições de existência no Além.

Só a experiência podia resolver a questão. Tratava-se de estudar no homem atual o que o pode esclarecer sobre o homem futuro. Não há outra saída para o pensamento humano, que a Religião, a Filosofia e a Ciência, na sua insuficiência, encurralaram no materialismo. É esse o preço da salvação social, porque o materialismo conduzir-nos-ia fatalmente à anarquia.

Foi somente depois do aparecimento do Espiritualismo experimental que o problema da sobrevivência entrou no domínio da observação científica e rigorosa. O mundo invisível pôde ser estudado por meio de processos e métodos idênticos aos adotados pela Ciência contemporânea nos outros campos de investigação. Esses métodos foram por nós descritos em outra parte.[cxix] E começamos por verificar que, em vez de cavar um fosso, de estabelecer uma solução de continuidade entre os dois modos de vida, terrestre e celeste, visível e invisível, como o faziam as diferentes doutrinas religiosas, esses estudos nos mostraram na vida do Além o prolongamento natural, a continuidade do que observamos em nós.

A persistência da vida consciente, com todos os atributos que comporta, memória, inteligência, faculdades afetivas, foi estabelecida pelas numerosas provas de identidade pessoal recolhidas no decurso de experiências e investigações dirigidas por sociedades de estudos psíquicos em todos os países. Os Espíritos dos defuntos têm-se manifestado, aos milhares, não somente com o cunho de caráter e a totalidade das recordações que constituem a sua personalidade moral, mas também com as feições físicas e as particularidades da sua forma terrestre, conservadas pelo perispírito ou corpo etéreo. Este, sabemos, não é mais do que o molde do corpo terrestre e é por isso que as feições e as formas humanas reaparecem nos fenômenos de materialização.

Ademais, o conhecimento das variadas condições da vida do Além foi exposto pelos próprios Espíritos, com o auxílio dos meios de comunicação de que dispõem. Suas indicações, recolhidas e consignadas em volumes inteiros de autos, servem de base precisa à concepção que atualmente podemos fazer das leis da vida futura.

Na falta das manifestações dos defuntos, entretanto, as experiências sobre o desdobramento dos vivos fornecer-nos-iam já preciosos indícios sobre o modo de existência da alma no domínio do invisível.

Na anestesia e no sonambulismo, como experimentalmente o demonstrou o coronel de Rochas, a sensibilidade e as percepções não são suprimidas, mas simplesmente exteriorizadas, transportadas para fora.[cxx] Daqui, já podemos deduzir logicamente que a morte é o estado de exteriorização total e de libertação do “eu” sensível e consciente.

O nascimento é como que uma morte para a alma, que por ela é encerrada com o seu corpo etéreo no túmulo da carne. O que chamamos morte é simplesmente o retorno da alma à liberdade, enriquecida com as aquisições que pôde fazer durante a vida terrestre; e vimos que os diferentes estados do sono são outros tantos regressos momentâneos à vida do espaço. Quanto mais profunda for a hipnose, tanto mais a alma se emancipa e afasta. O sono mais intenso confina com a primeira fase da vida invisível.

Na realidade, as palavras sono e morte são impróprias. Quando adormecemos para a vida terrestre, acordamos para a vida do espírito. Produz-se o mesmo fenômeno na morte; a diferença está só na duração.

Carl du Prel cita dois exemplos significativos:

“Uma sonâmbula fez um dia a descrição do seu estado e sentia pesar por não poder lembrar-se dele depois de acordada; mas, acrescentava, “tornarei a ver isso tudo depois da morte”. Considerava, pois, o seu estado de sonambulismo como idêntico ao estado depois da morte.” (Kerner, Magikon, 41.)

“Dois Espíritos visitam um dia a vidente de Prévorst, que não tinha em grande apreço essas visitas.

– Por que vindes a minha casa? – perguntou ela.

– Quê? – responderam com muito acerto os Espíritos – tu é que estás em nossa casa!” (Perty, I, 280.)

O nosso mundo e o Além não estão separados um do outro; provam-no esses fatos aos quais se podiam juntar muitos outros da mesma ordem. Estão um no outro; de alguma sorte se enlaçam e estreitamente se confundem. Os homens e os Espíritos misturam-se. Testemunhas invisíveis associam-se à nossa vida, compartilhando de nossas alegrias e provações.

*

A situação do Espírito depois da morte é a conseqüência direta das suas inclinações, seja para a matéria, seja para os bens da inteligência e do sentimento. Se as propensões sensuais dominam, o ser forçosamente se imobiliza nos planos inferiores que são os mais densos, os mais grosseiros. Se alimenta pensamentos belos e puros, eleva-se a esferas em relação com a própria natureza dos seus pensamentos.

Swedenborg disse com razão: “O Céu está onde o homem pôs o seu coração”; todavia, não é imediata a classificação, nem súbita a transição.

Se o olhar humano não pode passar bruscamente da escuridão à luz viva, sucede o mesmo com a alma. A morte faz-nos entrar num estado transitório, espécie de prolongamento da vida física e prelúdio da vida espiritual. É o estado de perturbação de que falamos, estado mais ou menos prolongado segundo a natureza espessa ou etérea do perispírito do defunto.

Livre do fardo material que a oprimia, a alma acha-se ainda envolvida na rede dos pensamentos e das imagens – sensações, paixões, emoções – por ela geradas no decurso das suas vidas terrestres; terá de familiarizar-se com a sua nova situação, entrar no conhecimento do seu estado, antes de ser levada para o meio cósmico adequado ao seu grau de luz e densidade.

A princípio, para o maior número, tudo é motivo de admiração nesse outro mundo onde as coisas diferem essencialmente do meio terrestre. As leis da gravidade são mais brandas; as paredes não são obstáculos; a alma pode atravessá-las e elevar-se aos ares. Não obstante, continua retida por certos estorvos que não pode definir. Tudo a intimida e enche de hesitação, mas os seus amigos de lá vigiam-na e guiam-lhe os primeiros vôos.

Os Espíritos adiantados depressa se libertam de todas as influências terrestres e recuperam a consciência de si mesmos. O véu material rasga-se ao impulso dos seus pensamentos e abrem-se perspectivas imensas. Compreendem quase logo a sua situação e com facilidade a ela se adaptam. Seu corpo espiritual, instrumento volitivo, organismo da alma, do qual ela nunca se separa, que é a obra de todo o seu passado, porque pessoalmente o construiu e teceu com a sua atividade, flutua algum tempo na atmosfera; depois, segundo o seu estado de sutileza, de poder, corresponde às atrações longínquas, sente-se naturalmente elevado para associações similares, para agrupamentos de Espíritos da mesma ordem, Espíritos luminosos ou velados, que rodeiam o recém-chegado com solicitude para o iniciarem nas condições do seu novo modo de existência.

Os Espíritos inferiores conservam por muito tempo as impressões da vida material. Julgam que ainda vivem fisicamente e continuam, às vezes durante anos, o simulacro das suas ocupações habituais. Para os materialistas o fenômeno da morte continua a ser incompreensível. Por falta de conhecimentos prévios confundem o corpo fluídico com o corpo físico e conservam as ilusões da vida terrestre. Os seus gostos e até as suas necessidades imaginárias como que os amarram à Terra; depois, devagar, com o auxílio de Espíritos benfazejos, sua consciência desperta, sua inteligência abre-se à compreensão do seu novo estado; mas, assim que procuram elevar-se, sua densidade os faz recair imediatamente na Terra. As atrações planetárias e as correntes fluídicas do espaço os reconduzem violentamente para as nossas regiões, como folhas secas varridas pelo vendaval.

Os crentes ortodoxos vagueiam na incerteza e procuram a realização das promessas do sacerdote, o gozo das beatitudes prometidas. Por vezes é grande a sua surpresa; precisam de longo aprendizado para se iniciarem nas verdadeiras leis do espaço. Em vez de anjos ou demônios, encontram os Espíritos dos homens que, como eles, viveram na Terra e os precederam. Viva é a sua decepção ao verem suas esperanças malogradas, suas convicções transformadas por fatos para os quais a educação que haviam recebido de nenhum modo os preparara; mas, se sua vida foi boa, submissa ao dever, não podem essas almas ser infelizes, por terem mais influência sobre o destino os seus atos do que as crenças.

Os Espíritos cépticos e, com eles, todos aqueles que se recusaram a crer na possibilidade de uma vida independente do corpo, julgam-se mergulhados em um sonho que só se dissipa quando acaba o erro em que esses Espíritos laboram.

As impressões variam infinitamente, com o valor das almas. Aquelas que, desde a vida terrestre, conheceram a verdade e serviram à sua causa, recolhem, logo que desencarnam, o beneficio de suas investigações e trabalhos. A comunicação abaixo transcrita dá, entre muitas outras, testemunho disso. Provém do Espírito de um espírita militante, homem de coração e convicção esclarecida, Charles Fritz, fundador do jornal La Vie d'Outre-Tombe, em Charleroi. Todos aqueles que conheceram esse homem reto e generoso, reconhecê-lo-ão pela linguagem. Descreve ele as impressões que sentiu logo depois de morrer e acrescenta:

“Senti que os laços pouco a pouco se desfaziam e que minha pessoa espiritual, meu “eu” se ia soltando. Vi em redor de mim Espíritos bons que me estavam esperando e foi com eles que, por fim, me elevei da superfície da Terra.

Não sofri com essa desencarnação. Os meus primeiros passos foram os da criança que começa a andar.

A luz espiritual, cheia de força e de vida, nascia em mim, porque a luz não vem dos outros, mas de nós. É um raio que dimana do invólucro fluídico e que nos penetra todo o ser.

Quanto mais tiverdes trabalhado em favor da verdade, do amor e da caridade, tanto mais intensa se fará a luz, até se tornar deslumbrante para aqueles que vos são inferiores.

Pois bem! Os meus primeiros passos foram vacilantes. Entretanto, a força me foi sendo restaurada e eu pedi a Deus auxílio e misericórdia. Depois de haver verificado a completa separação da minha individualidade, enfrentei afinal o trabalho que tinha de fazer. Vi o passado de minha última vida e me esforcei por levantá-la com clareza das profundezas da memória.

O passado acha-se no corpo fluídico do homem e, por conseguinte, do Espírito. O perispírito é como o espelho de todas as suas ações, e sua alma, se foi má sua vida, contempla com tristeza suas faltas, inscritas, ao que parece, nas dobras do corpo perispiritual.

Não tive dificuldade alguma em reconhecer minha vida, tal qual ela fora. Verifiquei com evidência que eu não havia sido infalível. Quem pode gabar-se disso na Terra? Devo, porém, dizer-vos que, depois de feito o exame, senti grande satisfação e felicidade com o que havia feito na Terra. Lutei, trabalhei e sofri pela causa do Espiritismo. A luz que dele dimana ofereci, juntamente com a esperança, a muitos irmãos da Terra por meio da palavra, dos meus estudos e obras; por isso, torno a encontrar essa luz.

Sou feliz por ter trabalhado em reerguer a fé, os corações e a coragem. A todos, pois, recomendo a fé inabalável que eu tinha e que se vai haurir no Espiritismo.

Tenho de continuar a desenvolver-me para rever o passado das minhas encarnações anteriores. É um estudo, um trabalho completo que tenho de fazer. Vejo bem uma parte desse passado, mas não a posso definir muito bem, conquanto esteja completamente desperto.

Dentro de pouco tempo, espero, essas vidas passadas hão de aparecer-me com clareza. Possuo luz bastante para poder caminhar com segurança, vendo o que está na minha frente, o meu futuro, e presto já o meu auxílio a Espíritos infelizes.”

A lei dos agrupamentos no espaço é a das afinidades. A ela estão sujeitos todos os Espíritos. A orientação de seus pensamentos leva-os naturalmente para o meio que lhes é próprio, porque o pensamento é a própria essência do mundo espiritual, sendo a forma fluídica apenas o vestuário. Onde quer que seja, reúnem-se os que se amam e compreendem. Herbert Spencer, num momento de intuição, formulou um axioma igualmente aplicável ao mundo visível e ao mundo invisível. “A vida – disse ele – é uma simples adaptação às condições exteriores.”

Se é propenso às coisas da matéria, o Espírito fica preso à Terra e mistura-se com os homens que têm os mesmos gostos, os mesmos apetites; quando é levado para o ideal, para os bens superiores, eleva-se sem esforço para o objeto dos seus desejos, une-se às sociedades do espaço, toma parte nos seus trabalhos e goza dos espetáculos, das harmonias do infinito.

O pensamento cria, a vontade edifica. A causa de todas as alegrias e de todas as dores está na consciência e na razão; por isso é que, cedo ou tarde, encontramos no Além as criações dos nossos sonhos e a realização das nossas esperanças. Mas o sentimento da tarefa incompleta, ao mesmo tempo que os afetos e as lembranças, trazem novamente a maior parte dos Espíritos à Terra. Todas as almas encontram o meio que os seus desejos reclamam e hão de viver nos mundos sonhados, unidos aos seres que estimam; mas também aí encontrarão os prazeres ou os sofrimentos que o seu passado gerou.

Nossas concepções e nossos sonhos seguem-nos por toda parte. No surto dos seus pensamentos e no ardor de sua fé, os adeptos de cada religião criam imagens nas quais supõem reconhecer os paraísos entrevistos. Depois, pouco a pouco, se apercebem de que essas criações são fictícias, de pura aparência e comparáveis a vastos panoramas pintados na tela ou a afrescos imensos. Aprendem, então, a desprender-se deles e aspiram a realidades mais elevadas, mais sensíveis. Sob nossa forma atual e no estreito limite de nossas faculdades, não poderíamos compreender as alegrias e os arroubos reservados aos Espíritos superiores, nem as angústias profundas experimentadas pelas almas delicadas que chegaram aos limites da perfeição. A beleza está por toda parte; só os seus aspectos variam ao infinito, segundo o grau de evolução ou depuração dos seres.

O Espírito adiantado possui fontes de sensações e percepções infinitamente mais extensas e mais intensas do que as do homem terrestre. Nele, a clarividência, a clariaudiência, a ação a distância, o conhecimento do passado e do futuro coexistem numa síntese indefinível, que constitui, segundo a expressão de F. Myers, “o mistério central da vida”. Falando das faculdades dos Invisíveis de situação média, esse autor assim se exprime:[cxxi]

“O Espírito, sem ser limitado pelo espaço e pelo tempo, tem do espaço e do tempo conhecimento parcial. Pode orientar-se, achar uma pessoa viva e segui-la. É capaz de ver no presente coisas que aparecem para nós como situadas no passado e outras que estão no futuro.

O Espírito tem conhecimento dos pensamentos e emoções que, da parte dos seus amigos, se referem a ele.”

Quanto à diferença de acuidade nas impressões, já podemos fazer uma idéia pelos sonhos chamados “emotivos”. A alma, quando desprendida, embora incompletamente, não só percebe, mas também sente com intensidade muito mais viva que no estado de vigília. Cenas, imagens, quadros, que, quando estamos acordados, nos impressionam fracamente, tornam-se no sonho causa de grande satisfação ou de vivo sofrimento. Isso nos dá uma idéia do que podem ser a vida dos Espíritos e seus modos de sensação, quando, separados do invólucro carnal, a memória e a consciência recuperam a plenitude de suas vibrações. Compreendemos desde logo como pode a reconstituição das recordações do passado converter-se em fonte de tormentos. A alma traz em si mesma o seu próprio juiz, a sanção infalível de suas obras, boas ou más.

Tem-se reconhecido isso em acidentes que podiam ter causado a morte. Em certas quedas, durante a trajetória percorrida pelo corpo humano a partir de um ponto elevado acima do solo, ou então na asfixia por submersão, a consciência superior da vítima passa em revista toda a vida gasta, com uma rapidez espantosa. Revê-a completamente em seus mínimos pormenores em poucos minutos.

Carl du Prel [cxxii] dá, desses fatos, muitos exemplos. Haddock cita, entre outros, o caso do Almirante Beaufort:[cxxiii]


[i] Carl du Prel - La Mort et l’Au-Delà, pág. 7.

[ii] François Sarcey de Suttières, também conhecido como Francisque Sarcey: célebre crítico literário e conferencista inspirado. (N.E.)

[iii] Petit Journal crônica, 7 de março de 1894.

[iv] A propósito dos exames universitários, escrevia M. Ducros, deão da Faculdade de Aix, no Journal des Débats, de 3 de maio de 1912:

“Parece que existe entre o discípulo e as coisas um como anteparo, não sei que nuvem de palavras aprendidas, de fatos esparsos e opacos. É sobretudo em filosofia que se experimenta essa penosa impressão.”

[v] Étude critique du matérialisme et du spiritualisme, pour la physique expérimentale - F. Alcan, ed., 1896.

[vi] F. Myers - La Personnalité Humaine.

[vii] Estas linhas foram escritas antes da guerra de 1914-15. É preciso reconhecer que, no curso dessa luta gigantesca, a mocidade francesa demonstrou um heroísmo acima de todo elogio. Mas, nisso em nada interveio a educação nacional. Devemos, pelo contrário, ver aí um acordar das qualidades étnicas que dormitavam no coração da raça.

[viii] O Professor Charles Richet assim o reconhece: “A Ciência nunca deixou de ser uma série de erros e aproximações, elevando-se constantemente para constantemente cair com rapidez tanto maior quanto mais elevado é o seu grau de adiantamento.” (Anais das Ciências Psíquicas, janeiro de 1905, pág. 15.)

[ix] Ver a minha obra No Invisível, (passim).

[x] Ver Cristianismo e Espiritismo, cap. V.

[xi] Cristianismo e Espiritismo (1ª parte, passim).

[xii] “Sir O. Lodge, reitor da Universidade de Birmingham, membro da Academia Real, vê nos estudos psíquicos o próximo advento de nova e mais livre religião (Annales des Sciences Psychiques, dezembro de 1905, pág. 765.)

Ver também Os fenômenos psíquicos, pág. 11, de Maxwell, advogado geral na Corte de Apelação de Paris.

[xiii] Ver: No Invisível - “Aparições e materializações de Espíritos”.

[xiv] Ver No Invisível, 2ª parte. Falamos aqui somente dos fatos espíritas e não dos fatos de animismo ou manifestações dos vivos a distancia.

[xv] Chamamos Espírito à alma revestida de seu corpo sutil.

[xvi] Ver Allan Kardec - O Livro dos Espíritos, O Livro dos Médiuns.

Pode-se ler na Revista Espírita de 1860, pág. 81, uma mensagem do Espírito do Dr. Vignal, declarando que os corpos irradiam luz obscura. Não está aí a radioatividade verificada pela ciência atual, mas que, então, a Ciência ignorava?

Allan Kardec, em 1867, escreveu em A Gênese (os fluidos), cap. XIV, o seguinte: “Quem conhece a constituição íntima da matéria tangível? Talvez ela só seja compacta em relação aos sentidos e o que disso poderia ser prova é a facilidade com que é atravessada pelos fluidos espirituais e pelos Espíritos, aos quais não opõe mais obstáculos do que os corpos transparentes aos raios da luz.

Tendo como elemento primitivo o fluido cósmico etéreo, a matéria tangível deve poder, desagregando-se, voltar ao estado de eterização, assim como o diamante, o mais duro dos corpos, pode volatilizar-se em gás impalpável. A solidificação da matéria não é, na realidade, mais do que um estado transitório do fluido universal, que pode voltar ao estado primitivo, quando as condições de coesão deixam de existir.

[xvii] Ver Compte rendu du Congrès Spirite de 1900, págs. 349 e 350, e Revista Cientifica e Moral do Espiritismo, julho e agosto de 1904. Ver, ainda, A. de Rochas, As Vidas Sucessivas, Chacornac, ed. 1911.

[xviii] Ver No Invisível.

[xix] Os fatos não têm valor sem a razão que os analisa e deles deduz a lei. Os fenômenos são efêmeros; a certeza que nos dão é apenas aparente e sem duração. A certeza só existe no espírito, as verdades únicas são de ordem subjetiva, a História no-lo demonstra.

Durante séculos acreditou-se, e muitos crêem ainda, que o Sol nasce. Foi preciso descobrir-se pela inteligência o movimento da Terra, inapreciável para os sentidos, para se compreender o regresso dos mesmos pontos à mesma posição em relação a ele. Que é feito da maior parte das teorias da Física e da Química? Certo, pouco mais há do que as leis da atração e da gravidade e, ainda assim, talvez só o sejam para uma parte do universo.

Por conseguinte, o método que se impõe é: 1º- a observação dos fatos; 2º- a sua generalização e a investigação da lei; 3º- a indução racional que, além dos fenômenos fugitivos e mutáveis, percebe a causa permanente que os produz.

[xx] Ver as comunicações publicadas por Allan Kardec em O Livro dos Espíritos e em O Céu e o Inferno; Ensinos Espiritualistas, obtidos por Stainton Moses. Indicamos também Le Problème de 1'Au-Delà (Conseils des Invisibles), coleção de mensagens publicadas pelo general Amade. Leymarie, Paris, 1902; as comunicações de um “Envoyé de Marie” e de um “Guide Spirituel” publicadas na revista L'Aurore, da duquesa de Pomar, de 1894 a 1898; as recolhidas por Mme. Krell com o título Révélations sur ma vie spirituelle; La Survie, coleção de comunicações obtidas por Mme. Noeggerath; Instructions du Pasteur B., editadas pelo jornal Le Spiritualisme Moderne, etc.

[xxi] Ver Rafael, Le Doute; Padre Marchai, O Espírito Consolador; Reverendo Stainton Moses, Ensinos Espiritualistas.

O Padre Didon escrevia (4 de agosto de 1876), nas suas Letres à Mile. Th. V. (Plon-Nourrit, edit., Paris, 1902), pág. 34: “Creio na influência que os mortos e os santos exercem misteriosamente sobre nós. Vivo em profunda comunhão com os invisíveis e sinto com delícia os benefícios de sua secreta convivência.”

Em outra obra citamos os sermões de certos pastores ligados ao Espiritismo. (Ver Cristianismo e Espiritismo, nota complementar nº 6.)

Um pastor eminente da igreja reformada da França escrevia-nos recentemente (fevereiro de 1905), a respeito de fenômenos observados por ele mesmo:

“Pressinto que o Espiritismo pode realmente vir a ser uma religião positiva, não à maneira das reveladas, mas na qualidade de religião de acordo com o racionalismo e a Ciência. Coisa estranha! Na nossa época de materialismo, em que as igrejas parecem estar a ponto de se desorganizar e dissolver, o pensamento religioso volta a nós por sábios, acompanhado pelo maravilhoso dos tempos antigos. Todavia, esse maravilhoso, que eu distingo do milagre, visto que não é mais do que um fato natural superior e raro, não continuará a estar a serviço de uma igreja particularmente honrada com os favores da divindade; será propriedade da humanidade, sem distinção de cultos. Quanto maior grandeza e moralidade não há nisso?”

[xxii] Ver Compte rendu du Congrès Spirite de Barcelone, 1888. Livraria das Ciências Psíquicas, Paris, 42, rua Saint-Jacques.

[xxiii] Ver mais adiante, caps. XIV, XV e XVI, os testemunhos obtidos na América e na Inglaterra, favoráveis à reencarnação.

[xxiv] F. Myers - La Personnalité Humaine, Félix Alcan, edição de 1905, págs. 401/403.

[xxv] A síntese de F. Myers pode resumir-se assim: Evolução gradual e infinita, com estádios numerosos, da alma humana, na sabedoria e no amor. A alma humana tira a sua força e a sua graça de um universo espiritual. Esse universo é animado e dirigido pelo Espírito Divino, o qual é acessível à alma e está em comunicação com ela.

[xxvi] J. Maxwell - Les Phénomènes Psychiques, Alcan, edit., 1903, págs. 8 e 11.

[xxvii] F. Myers - La Personnalité Humaine, pág. 417.

[xxviii] É notório que a sugestão e a transmissão do pensamento só podem exercer ação em pacientes preparados para esse fim, desde muito tempo e por pessoas que, sobre eles, tomaram certo ascendente. Até agora, essas experiências não vão além de palavras ou de séries de palavras e nunca conseguiram constituir um conjunto de doutrinas. Um médium, ledor de pensamentos, inspirando-se, se fosse possível, nas opiniões dos assistentes, tiraria daí, não noções precisas acerca de um princípio qualquer de filosofia, mas os dados mais confusos e contraditórios.

[xxix] Russell-Wallace o acadêmico inglês, na sua bela obra Os Milagres e o Espiritismo Moderno, exprime-se assim: “Havendo, em geral, sido os médiuns educados em qualquer uma das crenças ortodoxas usuais, como se explica que as noções sobre o paraíso não sejam nunca confirmadas por eles? Nos montões de volumes ou brochuras da literatura espiritualista não se encontra nenhum vestígio de Espírito descrevendo anjos com asas, harpas de ouro ou o trono de Deus, junto dos quais os mais modestos cristãos ortodoxos pensam que serão colocados, se forem para o céu.

Nada mais maravilhoso há na história do espírito humano do que o seguinte fato: quer seja no fundo dos bosques mais remotos da América, quer seja nas cidades menos importantes da Inglaterra, mulheres e homens ignorantes, quase todos educados nas crenças sectárias habituais do céu e do inferno, desde que foram tomados pelo estranho poder da mediunidade, deram a esse respeito ensinamentos que são mais filosóficos do que religiosos e diferem totalmente do que tão profundamente lhes havia sido gravado no espírito.”

[xxx] Trata-se do livro Ensinos Espiritualistas, de Stainton Moses.

[xxxi] Reproduzido pela Revue du Spiritualisme Moderne, 25 de outubro de 1901.

Cumpre se faça notar que, em casos como o de Stainton Moses, além da escrita automática, as mensagens podem ser obtidas pela escrita direta sem nenhuma intervenção de mão humana.

[xxxii] Ver, para as condições de experimentação, Allan Kardec, O Livro dos Médiuns; G. Delanne, Recherches sur la Mediumnité; Léon Denis, No Invisível, cap. IX.

[xxxiii] Durante as sessões de Stainton Moses produziu-se o mesmo fenômeno: “As principais personalidades que se manifestavam com S. Moses, dizem os relatores, anunciavam geralmente a sua presença por meio de um som musical invariável para cada uma delas, o que permitia identificá-las.” (Anais das Ciências Psíquicas, fevereiro de 1905, pág. 91.)

[xxxiv] Ver, Dr. Maxwell, advogado geral, Les Phénomènes Psychiques, pág. 164.

[xxxv] Ver No Invisível, as conversações do professor Hyslop, da Universidade de Colúmbia, com o pai, irmãos e tios falecidos.

[xxxvi] Ver No Invisível, cap. XXVI - “A mediunidade gloriosa”.

[xxxvii] Demonstra-lo-emos mais adiante com uma série completa de fatos de observação, de experiência e de provas objetivas.

[xxxviii] A ciência fisiológica, à qual escapa ainda a maior parte das leis da vida, entreviu, no entanto, a existência do perispírito ou do corpo fluídico, que é ao mesmo tempo o molde do corpo material, o vestuário da alma e o intermediário obrigatório entre eles. Claude Bernard escreveu (Recherches sur les Problèmes de la Physiologie): “Há como um desenho preestabelecido de cada ser e de cada órgão, de modo que, se considerado insuladamente, cada fenômeno do organismo é tributário das forças gerais da Natureza; em conjunto, parecem eles revelar um laço especial, parecem dirigidos por alguma condição invisível pelo caminho que seguem, na ordem que os concatena.”

Sem a noção do corpo fluídico, a união da alma com o corpo material torna-se incompreensível. Daí o enfraquecimento de certas teorias espiritualistas, que consideravam a alma como “Espírito puro”. Nem a razão nem a Ciência podem admitir um ser sem forma. Leibniz, no prefácio das suas Nouvelles Recherches sur la Raison Humaine, dizia: “Creio, com a maior parte dos antigos, que todos os Espíritos, todas as almas, todas as substâncias simples, ativas, estão sempre unidas a um corpo e que nunca existem almas completamente desprovidas deles.”

Enfim, existem numerosas provas, objetivas e subjetivas, da existência do perispírito. São, em primeiro lugar, as sensações chamadas “de integridade”, que acompanham sempre a amputação de qualquer membro. Alguns magnetizadores afirmam que podem exercer influência nos seus doentes, magnetizando o prolongamento fluídico dos membros amputados (Carl du Prel, La Doctrine Monistique de l'Ame, cap. VI). Vêm depois as aparições dos fantasmas dos vivos. Em muitos casos, o corpo fluídico, concretizado, tem impressionado placas fotográficas, deixado impressões e moldagens em substâncias moles, traços no pó e na fuligem, provocado o deslocamento de objetos, etc. (Ver: No Invisível, caps. XII e XX.)

[xxxix] A regra não é absoluta. O cérebro de Gambetta, por exemplo, não pesava mais do que 1.246 gramas, ao passo que a média humana é de 1.500 a 1.800 gramas.

[xl] Claude Bernard - La Science Expérimentale, Phénomènes de la Vie.

[xli] Entendemos aqui por espírito o princípio da inteligência.

[xlii] Th. Ribot - Les Maladies de la Personnalité, páginas 170 e 172.

[xliii] F. Myers - La Personnalité Humaine, pág. 19. Essa obra representa o mais grandioso esforço tentado pelo pensamento para resolver os problemas do ser.

O Professor Flournoy, da Universidade de Genebra, escrevia a respeito desse livro: “O nome de Myers será inscrito no livro de ouro dos grandes iniciadores, a par dos de Copérnico e Darwin, para completar a tríade dos gênios que mais profundamente revolucionaram as noções científicas na ordem da Cosmologia, da Biologia e da Psicologia.”

[xliv] Ver nossa obra No Invisível, cap. XIX (passim), e G. Delanne, A Alma é Imortal.

[xlv] Dr. Binet - Altérations de la Personnalité, F. Alcan, Paris, pág. 6 e 20.

[xlvi] F. Myers - La Personnalité Humaine, pág. 60. Ver também Camuset, Annales Médico-Psychologiques, 1882, página 15.

[xlvii] W, James - Principies of Psychology.

[xlviii] Dr. Morton Prince. Ver The Association of a Personality, bem como a obra do coronel A. de Rochas, Les Vies Successives, Chacornac, ed., Paris, 1911, págs. 398 e 402.

[xlix] Ver No Invisível, capitulo XIX.

[l] Revue Philosophique, 1887, I, pág. 449.

[li] F. Myers - La Personnalité Humaine, págs. 61 e 62.

[lii] Ver outra, as dos Drs. Bourru e Burot, Les Changements de la Personnalité; De la Suggestion Mentale, Bibl. científ. contemporânea, Paris, 1887 ; Binet, Les Altérations de la Personnalité; Berjon, La Grande Hystérie chez l’Homme. Dr. Osgood Mason, Double Personnalité, ses rapports avec l’Hypnotisme et la Lucidité.

Ver também Proceedings S.P.R., o caso da Srta. Beauchamp, estudado por Morton, o de Annel Bourne, descrito pelo Dr. Hodgson e o de Mollie Faucher observado pelo juiz americano Cain Dailey.

[liii] F. Myers - La Personnalité Humaine, pág. 69. Acreditamos, todavia, que no exame desse problema de gênio Myers não atendeu bastante às aquisições anteriores, fruto das existências acumuladas, tampouco à inspiração medianímica.

[liv] A visão ocular não é mais do que a manifestação externa da faculdade visual, que tem a sua expressão mais ampla na visão interna. A visão interior exterioriza-se e traduz-se pela ação dos sentidos, tanto na vida física como na vida psíquica. No primeiro caso, o órgão terminal pertence ao corpo material; no outro caso são os órgãos do corpo fluídico.

A visão no sonho é acompanhada de uma luz especial, constante, diferente da luz do dia.

[lv] O espírito exteriorizado pode tirar do organismo mais força vital do que o homem normal, o homem encarnado, pode obter. Experiências demonstraram que um espírito pode, através do organismo, exercer maior pressão num dinamômetro do que o espírito encarnado.

[lvi] F. Myers - La Personnalité Humaine, pág. 204.

[lvii] Idem, pág. 187.

[lviii] Em resumo, os frutos que a sugestão hipnótica pode e deve proporcionar e em vista dos quais se deve aplicar, são estes: concentração do pensamento e da vontade; aumento de energia e vitalidade; atenção fixa em coisas essencialmente úteis; alargamento do campo da memória; manifestação de sentidos novos por meio de impulsões internas ou externas.

[lix] Segundo os antigos, existem duas espécies de sonhos: o sonho propriamente dito, em grego, “onar”, é de origem física, e o sonho “repar”, de origem psíquica. Encontra-se essa distinção em Homero, que representa a tradição popular, assim como em Hipócrates, que é representante da tradição científica. Muitos ocultistas modernos adotaram definições análogas. Em tese geral, segundo eles dizem, o sonho propriamente dito seria um sonho produzido mecanicamente pelo organismo, e o sonho psíquico um produto da clarividência adivinhadora; ilusório um, verídico o outro. Porém, às vezes, é muito difícil estabelecer uma limitação nítida e distinta entre essas duas classes de fenômenos.

O sonho vulgar parece devido à vibração cerebral automática, que continua a produzir-se no sono, quando a alma está ausente. Esses sonhos são muitas vezes absurdos; mas este mesmo absurdo é uma prova de que a alma está fora do corpo físico e deixou de regular-lhe as funções. Com menos facilidade nos lembramos do sonho psíquico, porque não impressiona o cérebro físico, mas somente o corpo psíquico, veículo da alma, que está exteriorizada no sono.

“Os sentidos, diz o Dr. Pascal (Mémoire présenté au Congrès de Psychologie de Paris, em 1900), depois da atividade do dia, já não produzem sensações tão vivas e, como é a energia dessas sensações que tem a consciência “concentrada” no cérebro, esta consciência, quando os sentidos adormecem, escapa-se para fora do corpo físico e fixa-se no corpo psíquico.”

O sonho lúcido representa o conjunto das impressões recolhidas pela alma no estado de liberdade e transmitidas ao cérebro, quer no decurso das suas migrações, quer no momento de despertar. Poder-se-ia distingui-lo do sonho vulgar ou automático pelo fato de não causar nenhuma fadiga, contrariamente ao que sucede com a atividade cerebral da vigília.

[lx] F. Myers - La Personnalité Humaine, pág. 117.

[lxi] F. Myers - La Personnalité Humaine, págs. 121 e 122.

[lxii] F. Myers - La Personnalité Humaine, págs. 123 e 124.

[lxiii] Ver No Invisível, cap. XII.

[lxiv] Proceedings, S.P.R., XI, pág. 505.

[lxv] Ver Proceedings da Sociedade de Pesquisas Psíquicas de Londres.

[lxvi] J. Maxwell - Les Phénomènes Psychiques, pág. 173, F. Alcan, Paris, 1903.

[lxvii] Ver Le Matin, de 23 de fevereiro de 1914.

[lxviii] F. Myers - La Personnalité Humaine, pág. 250.

[lxix] Ver Bulletin de la Société de Psychologie Physiologique, I, pág. 24.

[lxx] Phantasms of the living, I, 267. Proceedings, VII, págs. 32 e 35.

[lxxi] Idem, II, 239.

[lxxii] Ver Depois da Morte, 3ª parte; e No Invisível, cap. XI.

[lxxiii] Phantasms of the Living, II, 18.

[lxxiv] Proceedings, X. 332, Phantasms of the Living, II, 96 e 100.

[lxxv] Phantasms of the Living, II, 144.

[lxxvi] Phantasms of the Living, II, 61.

[lxxvii] The Umpire de 14 de maio de 1905, reprodução feita pelos Annales des Sciences Psychiques, julho de 1905.

[lxxviii] Revue Scientifique du Spiritisme, fevereiro de 1905, pág. 457.

[lxxix] F. Myers - La Personnalité Humaine, pág. 25.

[lxxx] Pode-se ler a narração desse fato na Daily Tribune, de Chicago, 31 de outubro de 1904, e nos Proceedings da S.P.R.

[lxxxi] Sir William Crookes, num discurso na British Association em 1898, sobre a lei das vibrações, declara que ela é a lei natural que rege “todas as comunicações psíquicas”.

Parece que a telepatia até se estende aos animais.

Existem fatos que indicam uma comunicação telepática entre homens e animais. Ver, nos Annales des Sciences Psychiques, agosto de 1905, págs. 459 e seguintes, o estudo bem documentado de E. Bozzano, Perceptions Psychiques et les Animaux.

[lxxxii] Ver W. Crookes - Recherches sur les Phénomènes du Spiritisme.

[lxxxiii] Aksakof - Animismo e Espiritismo, págs. 620 e 621.

[lxxxiv] F. Myers - La Personnalité Humaine, pág. 268.

[lxxxv] Idem, pág, 280.

[lxxxvi] Há necessidade de fazer notar que o Espírito quis aparecer com esse “arranhão” somente para dar, por esse meio, uma prova da sua identidade. O mesmo se dá em muitos dos casos que se vão seguir, em que Espíritos se mostraram com trajes ou atributos que constituíam outros tantos elementos de convicção para os percipientes.

[lxxxvii] Proceedings, X, 284.

[lxxxviii] Idem, X, 292.

[lxxxix] Phantasms of the Living, I, 212.

[xc] Proceedings, X, 283.

[xci] Proceedings, VIII, 214.

[xcii] Proceedings, II, 95.

[xciii] Ver Compte rendu officiel du IV Congrès de Psychologle, Paris, F. Alcan, fevereiro de 1901, reproduzido in extenso pelos Annales des Sciences Psychiques.

[xciv] Ver Compte rendu du Congrès Spiritualiste International de 1900, pág. 241 e seguintes. Leymarie, editor.

[xcv] Número de março de 1904.

[xcvi] Recomendamos a leitura da obra Hipnotismo e Mediunidade, de Lombroso. (N.E.)

[xcvii] Ver Aksakof - Animismo e Espiritismo, págs. 620 e 631.

[xcviii] Ver o caso de Mrs. Piper. Proceedings, XIII, 284 e 285; XIV, 6 e 49, resumidos na minha obra No Invisível, cap. XIX.

[xcix] Havia, entre outras pessoas, Mr. Green, artista; o Sr. Allen, presidente do Banco de Boston; dois empreiteiros de caminhos de ferro nos Estados do Oeste; Miss Jennie Keyer, sobrinha do juiz Edmonds, etc.

[c] Revue des Etudes Psychiques, Paris, janeiro de 1904.

[ci] Ver No Invisível, cap. XIX.

[cii] Phénomènes Psychiques, pág. 26.

[ciii] No Invisível, caps. VIII, XIX e XX; Cristianismo e Espiritismo, cap. XI.

[civ] F. Myers - La Personnalité Humaine, pág. 369.

[cv] F. Myers - La Personnalité Humaine, pág. 297.

[cvi] Idem, ibidem.

[cvii] Os doutores Baraduc e Joire construíram aparelhos registradores que permitem medir a força radiante que se escapa de cada pessoa humana e varia segundo o estado psíquico do sujet.

[cviii] Essa lei é reconhecida em psicologia com o nome de Paralelismo psicofísico. Wundt, nas suas Léçons sur 1'Ame (2ª edição, Leipzig, 1892), já dizia: “A cada fato psíquico corresponde um fato físico qualquer.”

As experiências dos próprios materialistas fazem sobressair a evidência dessa lei. É assim, por exemplo, que M. Pierre Janet, quando faz voltar o seu sujet Rosa a dois anos antes no curso da sua vida atual, vê reproduzir-se nela todos os sintomas do estado de gravidez em que se achava naquela época. (P. Janet, professor de psicologia na Sorbonne, L'Automatisme Psychologique, pág. 160.) Ver também os casos assinalados pelos doutores Bourru e Burot, Changements de la Personnalité, pág. 152; pelo Dr. Sollier, Des Hallucinations Autoscopiques (Bulletin de 1'Institut Psychique, 1902, págs. 30 e segs.) e os relatados pelo Dr. Pitre, decano da Faculdade de Medicina de Bordéus, no seu livro Le Somnambulisme et 1'Hystérie.

[cix] Annales des Sciences Psychiques, julho de 1905, página 350.

[cx] Os seres monocelulares encontram-se ainda hoje aos bilhões, em cada organismo humano.

Não foi de uma única célula que saiu a série das espécies; foi, antes, a multidão das células que se agrupou para formar seres mais perfeitos e, de degrau em degrau, convergir para a unidade.

[cxi] Qualquer que seja a teoria a que se dê preferência nessas matérias, adotem-se as vistas de Darwin, de Spencer ou de Haeckel, não é possível crer-se que a Natureza, que Deus apenas tenha um só e único meio de produzir e desenvolver a vida. O cérebro humano é limitado; as possibilidades da vida são infinitas. Os pobres teoristas, que querem enclausurar toda a ciência biológica dentro dos estreitos limites de um sistema, fazem-nos sempre lembrar o menino da lenda, que queria meter toda a água do oceano em um buraco feito na areia da praia.

O próprio professor Ch. Richet declarou, na sua resposta a Sully-Prudhomme: “As teorias da seleção são insuficientes.” E nós acrescentaremos: “Se há unidade de plano, deve haver diversidade nos meios de execução. Deus é o grande artista que, dos contrastes sabe fazer resultar a harmonia. Parece que há no universo duas imensas correntes de vida. Uma sobe do abismo pela animalidade; a outra desce das alturas divinas. Vão ambas ao encontro uma da outra para se unirem e se confundirem e mutuamente se atraírem. Não é essa a significação que tem a escada do sonho de Jacob?”

[cxii] Ver Le Dantec - La Lutte Universelle, I vol., 1906.

[cxiii] Pergunta-se muitas vezes se a cremação é preferível ao sepultamento, sob o ponto de vista da separação do Espírito. Os Invisíveis, consultados, respondem que, em tese geral, a cremação provoca desprendimento mais rápido, mais brusco e violento, doloroso mesmo para a alma apegada à Terra por seus hábitos, gostos e paixões. É necessário certo arrebatamento psíquico, certo desapego antecipado dos laços materiais, para sofrer sem dilaceração a operação crematória. É o que se dá com a maior parte dos orientais, entre os quais está em uso a cremação. Em nossos países do Ocidente, em que o homem psíquico está pouco desenvolvido, pouco preparado para a morte, o sepultamento deve ser preferido, embora dê origem, por vezes, a erros deploráveis, por exemplo, o enterramento de pessoas em estado de letargia. Deve ser preferido porque permite ao Espírito ainda apegado à matéria desprender-se lenta e gradualmente do corpo físico; mas precisa ser rodeado de grandes precauções; os sepultamentos são, entre nós, feitos com muita precipitação.

[cxiv] Ver Allan Kardec - O Céu e o Inferno.

[cxv] Annales des Sciences Psychiques, março de 1906, página 171.

[cxvi] Notemos mais estes testemunhos: “Outro fato que se deve assinalar e de que fui testemunha, disse o Dr. Haas, presidente da Sociedade dos Estudos Psíquicos de Nancy, é que, muitas vezes, poucos instantes antes de morrer, alguns alienados recobram lucidez completa.”. (Bulletin de la Société des Etudes Psychiques de Nancy, 1906, pág. 56.) O Dr. Teste (Manuel Pratique du Magnétisme animal), declara, igualmente, ter encontrado loucos que, na agonia, isto é, quando a consciência passa ao corpo fluídico, recuperaram a razão.

[cxvii] F. Myers - La Personnalité Humaine, pág. 418.

[cxviii] Ver Depois da Morte, 1ª parte (passim).

[cxix] Ver No Invisível, 1ª parte.

[cxx] Ver A. de Rochas - Les Etats profonds de 1'Hypnose; L'Extériori­sation de la Sensibilité; Les Frontières de la Science.

[cxxi] F. Myers - La Personnalité Humaine, pág. 395.

[cxxii] Carl du Prel - Philos der Mystik.

[cxxiii] Haddock - Somnolisme et Psychisme, pág. 213, extrato do “Journal de Médecine” de Paris.

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