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“O Almirante Beaufort, jovem ainda, caiu de cima de um navio às águas do porto de Portsmouth. Antes que fosse possível ir em seu socorro, desapareceu; ia morrer afogado.
À angústia do primeiro momento sucedera um sentimento de tranqüilidade e, posto que se tivesse como perdido, nem sequer se debateu, o que, sem dúvida, provinha de apatia e não de resignação; porque morrer afogado não lhe parecia má sorte e nenhum desejo tinha de ser socorrido.
Quanto ao mais, ausência completa de sofrimento; e até, pelo contrário, as sensações eram de natureza agradável, participando do vago bem-estar que precede o sono causado pelo cansaço.
Com esse enfraquecimento dos sentidos coincidia uma superexcitação extraordinária da atividade intelectual; as idéias sucediam-se com rapidez prodigiosa. O acidente que acabava de dar-se, o descuido que o motivara, o tumulto que se lhe deveria ter seguido, a dor que ia alancear o pai da vítima, outras circunstâncias intimamente ligadas ao lar doméstico, foram o objeto de suas primeiras reflexões; depois, veio-lhe à memória o último cruzeiro, viagem acidentada por um naufrágio; a seguir, a escola, os progressos que nela fizera e também o tempo perdido; finalmente, as suas ocupações e aventuras de criança. Em suma, a subida de todo o rio da vida, e quão pormenorizada e precisa! É ele próprio que o diz: “Cada incidente da minha vida atravessava-me sucessivamente a memória, não como simples esboço, mas com as particularidades e acessórios de um quadro completo! Por outras palavras; toda a minha existência desfilava diante de mim numa espécie de vista panorâmica, cada fato com sua apreciação moral ou reflexões sobre sua causa e seus efeitos. Pequenos acontecimentos sem conseqüência, havia muito tempo esquecidos, se acumulavam em minha imaginação como se tivessem se passado na véspera. E tudo isto sucedeu em dois minutos.”
Pode-se citar também o atestado de Perty [i] a respeito de Catherine Emmerich, que, ao morrer, reviu do mesmo modo toda a sua vida passada. Por essa forma estabelecemos que tal fenômeno não se restringe aos casos de acidentes, antes parece acompanhar regularmente o falecimento.
Tudo o que o Espírito fez, quis, pensou, em si reverbera. Semelhante a um espelho, a alma reflete todo o bem e todo o mal feito. Essas imagens nem sempre são subjetivas. Pela intensidade da vontade, podem revestir uma natureza substancial; vivem e manifestam-se para nossa felicidade ou nosso castigo.
Tendo se tornado transparente, depois de desencarnada, a alma julga-se a si mesma, assim como é julgada por todos aqueles que a contemplam. Só, na presença do seu passado, vê reaparecerem todos os seus atos e as suas conseqüências, todas as suas faltas, até as mais ocultas.
Para um criminoso não há descanso, não existe esquecimento. Sua consciência, justiceira inflexível, persegue-o sem cessar. Debalde procura ele escapar-lhe às obsessões; o suplício só poderá acabar se, convertendo-se o remorso em arrependimento, ele aceita novas provações terrestres, único meio de reparação e regeneração.
XII
As missões, a vida superior
Todo Espírito que deseja progredir, trabalhando na obra de solidariedade universal, recebe dos Espíritos mais elevados uma missão particular apropriada às suas aptidões e ao seu grau de adiantamento.
Uns têm por tarefa receber os homens em seu regresso à vida espiritual, guiá-los, ajudá-los a se desembaraçarem dos fluidos espessos que os envolvem; outros são encarregados de consolar, instruir as almas sofredoras e atrasadas. Espíritos químicos, físicos, naturalistas, astrônomos, prosseguem suas investigações, estudam os mundos, suas superfícies, suas profundezas ocultas, atuam em todos os lugares sobre a matéria sutil, que fazem passar por preparações, por modificações destinadas a obras que a imaginação humana teria dificuldades em conceber; outros se aplicam às artes, ao estudo do belo sob todas as suas formas; Espíritos menos adiantados assistem os primeiros nas suas tarefas variadas e servem-lhes de auxiliares.
Grande número de Espíritos consagra-se aos habitantes da Terra e dos outros planetas, estimulando-os em seus trabalhos, fortalecendo os ânimos abatidos, guiando os hesitantes pelo caminho do dever. Aqueles que exerceram a Medicina e possuem o segredo dos fluidos curativos, reparadores, ocupam-se mais especialmente dos doentes.[ii]
Mais bela dentre todas é a missão dos Espíritos de luz. Descem dos espaços celestes para trazer às humanidades os tesouros da sua ciência, da sua sabedoria, do seu amor. A sua tarefa é um sacrifício constante, porque o contacto dos mundos materiais é penoso para eles; mas afrontam todos os sofrimentos por dedicação aos seus protegidos, para os assistirem nas suas provações e infiltrarem em seus corações as grandes e generosas intuições. É justo atribuir-lhes os lampejos de inspiração que iluminam o pensamento, as expansões da alma, a força moral que nos sustenta nas dificuldades da vida. Se soubéssemos a quantos constrangimentos se impõem esses nobres Espíritos para chegarem até nós, corresponderíamos melhor a suas solicitações, empregaríamos esforços enérgicos para nos desapegarmos de tudo o que é vil e impuro, unindo-nos a eles na comunhão divina.
Nas horas de atribulações, é para esses Espíritos, para meus Guias bem-amados que voam meus pensamentos e meus apelos; é deles que sempre me têm vindo o amparo moral e as consolações supremas.
Subi a custo os atalhos da vida; dura foi a minha infância. Cedo conheci o trabalho manual e os pesados encargos de família. Mais tarde, em minha carreira de propagandista, muitas vezes me feri nas pedras do caminho; fui mordido pelas serpentes do ódio e da inveja. E agora chegou para mim a hora crepuscular; vão subindo e rodeando-me as sombras; sinto que minhas forças declinam e os órgãos se enfraquecem. Nunca, porém, me faltou o auxílio de meus amigos invisíveis; nunca minha voz os evocou em vão. Desde meus primeiros passos neste mundo, a sua influência envolveu-me. É às suas inspirações que devo minhas melhores páginas e minhas expressões mais vibrantes. Compartilharam minhas alegrias e tristezas e, quando rugia a tempestade, eu sabia que eles estavam firmes ao meu lado, no meu caminho. Sem eles, sem seu socorro, há muito tempo que eu teria sido obrigado a interromper a minha marcha, a suspender o meu labor; mas suas mãos estendidas têm me amparado e dirigido na áspera via. Às vezes, no recolhimento do entardecer ou no silêncio da noite, suas vozes me falam, embalam, confortam; ressoam na minha solidão como vaga melodia. Ou, então, são sopros que passam, semelhantes a carícias, sábios conselhos ciciados, indicações preciosas sobre as imperfeições de meu caráter e os meios de remediá-las.
Então esqueço as misérias humanas para comprazer-me na esperança de tornar a ver um dia os meus amigos invisíveis, de reunir-me a eles na luz, se Deus me julgar digno disso, com todos aqueles que tenho amado e que, do seio dos Espaços, me ajudam a percorrer a via terrestre.
Ascenda para todos vós, Espíritos tutelares, entidades protetoras, meu pensamento agradecido, a melhor parte de mim mesmo, o tributo de minha admiração e de meu amor.
*
A alma vem de Deus e volve a Deus, percorrendo o ciclo imenso dos seus destinos; mas, por mais baixo que tenha descido, cedo ou tarde, pela atração, sobe de novo para o infinito. Que procura ela ali? o conhecimento cada vez mais perfeito do universo, a assimilação cada vez mais completa de seus atributos – beleza, verdade, amor! e, ao mesmo tempo, uma libertação gradual das escravidões da matéria, uma colaboração crescente na obra de Deus.
Cada Espírito tem, no espaço, sua vocação e segue-a com facilidades desconhecidas na Terra; cada um encontra seu lugar nesse soberbo campo de ação, nesse vasto laboratório universal. Por toda parte, tanto na amplidão como nos mundos, objetos de estudo e de trabalho, meios de elevação, de participação na obra eterna, se oferecem à alma laboriosa.
Já não é o céu frio e vazio dos materialistas, nem mesmo o céu contemplativo e beato de certos crentes; é um universo vivo, animado, luminoso, cheio de seres inteligentes em via constante de evolução. Quanto mais os seres espirituais se elevam, tanto mais se acentua a sua tarefa, tanto mais aumentam de importância suas missões. Um dia, tomam lugar entre as almas mensageiras que vão levar aos confins do tempo e do espaço as forças e as vontades da Alma Infinita.
Para o Espírito ínfimo, assim como para o mais eminente, não tem limites o domínio da vida. Qualquer que seja a altura a que tenhamos chegado, há sempre um plano superior a alcançar, uma nova perfeição a realizar.
Para toda alma, mesmo a mais inferior, um futuro grandioso se prepara. Cada pensamento generoso que começa a despontar, cada efusão de amor, cada esforço que tende para uma vida melhor é como a vibração, o pressentimento, o apelo de um mundo mais elevado que a atrai e que, cedo ou tarde, a receberá. Todo ímpeto de entusiasmo, toda palavra de justiça, todo ato de abnegação repercute em progressão crescente na escala dos seus destinos.
À medida que ela se vai distanciando das esferas inferiores, onde reinam as influências pesadas, onde se agitam as vidas grosseiras, banais ou culpadas, as existências de lenta e penosa educação, a alma vai percebendo as altas manifestações da inteligência, da justiça, da bondade, e sua vida torna-se cada vez mais bela e divina. Os murmúrios confusos, os rumores discordes dos centros humanos pouco a pouco vão se enfraquecendo para ela até se extinguirem de todo; ao mesmo tempo começa a perceber os ecos harmoniosos das sociedades celestes. É o limiar das regiões felizes, onde reina uma eterna claridade, onde paira uma atmosfera de benevolência, serenidade e paz, onde todas as coisas saem frescas e puras das mãos de Deus.
A diferença profunda que existe entre a vida terrestre e a vida do espaço está no sentido de libertação, de alívio, de liberdade absoluta que desfrutam os Espíritos bons e purificados.
Desde que se rompem os laços materiais, a alma pura desfere o vôo para as altas regiões. Lá, vive uma vida livre, pacífica, intensa, ao pé da qual o passado terrestre lhe parece um sonho doloroso.
Na efusão das ternuras recíprocas, numa vida livre de males e necessidades físicas, a alma sente multiplicarem-se as suas faculdades, adquirirem uma penetração e uma extensão das quais os fenômenos de êxtase nos fazem entrever os velados esplendores.
A linguagem do mundo espiritual é a das imagens e dos símbolos, rápida como o pensamento; é por isso que os nossos guias invisíveis se servem de preferência de representações simbólicas para nos prevenir, no sonho, de um perigo ou de uma desgraça. O éter, fluido brando e luminoso, toma com extrema facilidade as formas que a vontade lhe imprime. Os Espíritos comunicam-se entre si e compreendem-se por processos diante dos quais a arte oratória mais consumada, toda a magia da eloqüência humana pareceriam apenas um grosseiro balbuciar. As Inteligências elevadas percebem e realizam sem esforço as mais maravilhosas concepções da arte e do gênio. Mas essas concepções não podem ser transmitidas integralmente aos homens. Mesmo nas manifestações medianímicas mais perfeitas, o Espírito superior tem de se submeter às leis físicas do nosso mundo e só vagos reflexos ou ecos enfraquecidos das esferas celestes, algumas notas perdidas da grande sinfonia eterna, é que ele pode fazer chegar até nós.
Tudo é graduado na vida espiritual. A cada grau de evolução do ser para a sabedoria, para a luz, para a santidade, corresponde um estado mais perfeito de seus sentidos receptivos, de seus meios de percepção. O corpo fluídico, cada vez mais diáfano, mais transparente, deixa passagem livre às radiações da alma. Daí uma aptidão maior para apreciar, para compreender os esplendores infinitos; daí uma recordação mais extensa do passado, uma familiarização cada vez maior com os seres e as coisas dos planos superiores, até que a alma, em sua marcha progressiva, tenha atingido as máximas altitudes.
Chegado a essas alturas, o Espírito tem vencido toda paixão, toda tendência para o mal, tem-se libertado para sempre do jugo material e da lei dos renascimentos, é a entrada definitiva nos reinos divinos, donde só voluntariamente descerá ao círculo das gerações para desempenhar missões sublimes.
Nessas eminências, a existência é uma festa perene da inteligência e do coração; é a comunhão íntima no amor com todos aqueles que nos foram caros e conosco percorreram o ciclo das transmigrações e das provas. Ajuntai a isso a visão constante da eterna beleza, uma profunda compreensão dos mistérios e das leis do universo, e tereis uma fraca idéia das alegrias reservadas a todos aqueles que, por seus méritos e esforços, alcançaram os céus superiores.
Segunda Parte
O Problema do Destino
XIII
As vidas sucessivas – A reencarnação e suas leis
A alma, depois de residir temporariamente no espaço, renasce na condição humana, trazendo consigo a herança, boa ou má, do seu passado; renasce criancinha, reaparece na cena terrestre para representar um novo ato do drama da sua vida, resgatar as dívidas que contraiu e conquistar novas capacidades que lhe hão de facilitar a ascensão, acelerar a marcha para a frente.
A lei dos renascimentos explica e completa o princípio da imortalidade. A evolução do ser indica um plano e um fim. Esse fim, que é a perfeição, não pode realizar-se em uma única existência, por mais longa que seja. Devemos ver na pluralidade das vidas da alma a condição necessária de sua educação e de seus progressos. É à custa dos próprios esforços, de suas lutas, de seus sofrimentos, que ela se redime de seu estado de ignorância e de inferioridade e se eleva, de degrau a degrau, primeiramente na Terra e, em seguida, através das inumeráveis estâncias do céu estrelado.
A reencarnação, afirmada pelas vozes de além-túmulo, é a única forma racional pela qual se pode admitir a reparação das faltas cometidas e a evolução gradual dos seres. Sem ela não se vê sanção moral satisfatória e completa, não há possibilidade de conceber a existência de um Ser que governe o universo com justiça.
Se admitirmos que o homem viva atualmente pela primeira e última vez neste mundo, que uma única existência terrestre é o quinhão de cada um de nós, a incoerência e a parcialidade, forçoso seria reconhecê-lo, presidem à repartição dos bens e dos males, das aptidões e das faculdades, das qualidades nativas e dos vícios originais.
Por que para uns a fortuna, a felicidade constante e para outros a miséria, a desgraça inevitável? Para estes a força, a saúde, a beleza; para aqueles a fraqueza, a doença, a fealdade? Por que aqui a inteligência, o gênio, e acolá a imbecilidade? Como se encontram tantas qualidades morais admiráveis, a par de tantos vícios e defeitos? Por que há raças tão diversas, umas inferiores a tal ponto que parecem confinar com a animalidade e outras favorecidas com todos os dons que lhes asseguram a supremacia? E as enfermidades inatas, a cegueira, a idiotia, as deformidades, todos os infortúnios que enchem os hospitais, os albergues noturnos, as casas de correção? A hereditariedade não explica tudo; na maior parte dos casos, essas aflições não podem ser consideradas como o resultado de causas atuais. Sucede o mesmo com os favores da sorte. Muitíssimas vezes, os justos parecem esmagados pelo peso da prova, ao passo que os egoístas e os maus prosperam!
Por que, ainda, crianças mortas antes de nascer e as que são condenadas a sofrer desde o berço? Certas existências acabam em poucos anos, em poucos dias; outras duram quase um século! Donde vêm também os jovens-prodígios – músicos, pintores, poetas –, todos aqueles que, desde a meninice, mostram disposições extraordinárias para as artes ou para as ciências, ao passo que tantos outros ficam na mediocridade toda a vida, apesar de um labor insano? E, igualmente, donde vêm os instintos precoces, os sentimentos inatos de dignidade ou baixeza contrastando às vezes tão estranhamente com o meio em que se manifestam?
Se a vida começa somente com o nascimento terrestre, se antes dele nada existe para cada um de nós, debalde se procurarão explicar essas diversidades pungentes, essas tremendas anomalias, e ainda menos poderemos conciliá-las com a existência de um poder sábio, previdente, eqüitativo. Todas as religiões, todos os sistemas filosóficos contemporâneos vieram esbarrar com esse problema; nenhum o pôde resolver. Considerado sob seu ponto de vista, que é a unidade de existência para cada ser humano, o destino continua incompreensível, ensombra-se o plano do universo, a evolução pára, torna-se inexplicável o sofrimento. O homem, levado a crer na ação de forças cegas e fatais, na ausência de toda justiça distributiva, resvala insensivelmente para o ateísmo e o pessimismo.
Com a doutrina das vidas sucessivas, pelo contrário, tudo se explica, se torna claro. A lei de justiça revela-se nas menores particularidades da existência. As desigualdades que nos chocam resultam das diferentes situações ocupadas pelas almas nos seus graus infinitos de evolução. O destino do ser não é mais do que o desenvolvimento, através das idades, da longa série de causas e efeitos gerados por seus atos. Nada se perde; os efeitos do bem e do mal se acumulam e germinam em nós até o momento favorável de desabrocharem. Às vezes, expandem-se com rapidez; outras, depois de longo lapso de tempo, transmitem-se, repercutem, de uma para outra existência, segundo a sua maturação é ativada ou retardada pelas influências ambientes; mas nenhum desses efeitos pode desaparecer por si mesmo; só a reparação tem esse poder.
Cada um leva para a outra vida e traz, ao nascer, a semente do passado. Essa semente há de espalhar seus frutos, conforme a sua natureza, ou para nossa felicidade ou para nossa desgraça, na nova vida que começa e até sobre as seguintes, se uma só existência não bastar para desfazer as conseqüências más de nossas vidas passadas. Ao mesmo tempo, os nossos atos cotidianos, fontes de novos efeitos, vêm juntar-se às causas antigas, atenuando-as ou agravando-as e formam com elas um encadeamento de bens ou de males que, no seu conjunto, urdirão a teia do nosso destino.
Assim, a sanção moral, tão insuficiente, às vezes tão sem valor, quando é estudada sob o ponto de vista de uma vida única, reconhece-se absoluta e perfeita na sucessão de nossas existências. Há uma íntima correlação entre os nossos atos e o nosso destino. Sofremos em nós mesmos, em nosso ser interior e nos acontecimentos da nossa vida, a repercussão do nosso proceder. A nossa atividade, sob todas as suas formas, cria elementos bons ou maus, efeitos próximos ou remotos, que recaem sobre nós em chuvas, em tempestades ou em alegres claridades. O homem constrói o seu próprio futuro. Até agora, na sua incerteza, na sua ignorância, ele o construiu às apalpadelas e sofreu a sua sorte sem poder explicá-la. Não tardará o momento em que, mais bem instruído, penetrado pela majestade das leis superiores, compreenderá a beleza da vida, que reside no esforço corajoso, e dará à sua obra um impulso mais nobre e elevado.
*
A variedade infinita das aptidões, das faculdades, dos caracteres, explica-se facilmente, dizíamos. Nem todas as almas têm a mesma idade, nem todas subiram com o mesmo passo seus estádios evolutivos. Umas percorreram uma carreira imensa e aproximaram-se já do apogeu dos progressos terrestres; outras mal começam o seu ciclo de evolução no seio das humanidades. Estas são as almas jovens, emanadas a menos tempo do Foco Eterno, foco inextinguível que despede sem cessar feixes de Inteligências que descem aos mundos da matéria para animarem as formas rudimentares da vida. Chegadas à humanidade, tomarão lugar entre os povos selvagens ou entre as raças bárbaras que povoam os continentes atrasados, as regiões deserdadas do Globo. E, quando, afinal, penetram em nossas civilizações, ainda facilmente se deixam reconhecer pela falta de desembaraço, de jeito, pela sua incapacidade para todas as coisas e, principalmente, pelas suas paixões violentas, pelos seus gostos sanguinários, às vezes até pela sua ferocidade; mas, essas almas ainda não desenvolvidas subirão por sua vez a escala das graduações infinitas por meio de reencarnações inúmeras.
Outro elemento do problema é a liberdade de ação do Espírito. A uns, ela permite que se demorem na via da ascensão, que percam, sem cuidado com o verdadeiro fim da existência, tantas horas preciosas à cata das riquezas e do prazer; a outros, deixa-os se apressarem a trilhar os carreiros escabrosos e alcançar os cimos do pensamento, se, às seduções da matéria, preferem a posse dos bens do espírito e do coração. São desse número os sábios, os gênios e os santos de todos os tempos e de todos os países, os nobres mártires das causas generosas e aqueles que consagraram vidas inteiras a acumular no silêncio dos claustros, das bibliotecas, dos laboratórios, os tesouros da ciência e da sabedoria humana.
Todas as correntes do passado se encontram, juntam-se e confundem-se em cada vida. Contribuem para fazer a alma generosa ou mesquinha, luminosa ou escura, poderosa ou miserável. Essas correntes, entre a maior parte dos nossos contemporâneos, apenas conseguem fazer as almas indiferentes, incessantemente balouçadas pelos sopros do bem e do mal, da verdade e do erro, da paixão e do dever.
Assim, no encadeamento das nossas estações terrestres, continua e completa-se a obra grandiosa de nossa educação, o moroso edificar de nossa individualidade, de nossa personalidade moral. É por essa razão que a alma tem de encarnar sucessivamente nos meios mais diversos, em todas as condições sociais; tem de passar alternadamente pelas provações da pobreza e da riqueza, aprendendo a obedecer para depois mandar. Precisam das vidas obscuras, vidas de trabalho, de privações, para acostumar-se a renunciar às vaidades materiais, a desapegar-se das coisas frívolas, a ter paciência, a adquirir a disciplina do espírito. São necessárias as existências de estudo, as missões de dedicação, de caridade, por via das quais se ilustra a inteligência e o coração se enriquece com a aquisição de novas qualidades; virão depois as vidas de sacrifício pela família, pela pátria, pela humanidade. São necessários também a prova cruel, cadinho onde se fundem o orgulho e o egoísmo, e as situações dolorosas, que são o resgate do passado, a reparação das nossas faltas, a norma pela qual se cumpre a lei de justiça. O Espírito retempera-se, aperfeiçoa-se, purifica-se na luta e no sofrimento. Volta a expiar no próprio meio onde se tornou culpado. Acontece às vezes que as provações fazem de nossa existência um calvário, mas esse calvário é um monte que nos aproxima dos mundos felizes.
Logo, não há fatalidade. É o homem, por sua própria vontade, quem forja as próprias cadeias, é ele quem tece, fio por fio, dia a dia, do nascimento à morte, a rede de seu destino. A lei de justiça não é, em essência, senão a lei de harmonia; determina as conseqüências dos atos que livremente praticamos. Não pune nem recompensa, mas preside simplesmente à ordem, ao equilíbrio tanto do mundo moral quanto do mundo físico. Todo dano causado à ordem universal acarreta causas de sofrimento e uma reparação necessária, até que, mediante os cuidados do culpado, a harmonia violada seja restabelecida.
O bem e o mal praticado constituem a única regra do destino. Sobre todas as coisas exerce influência uma lei grande e poderosa, em virtude da qual cada ser vivo do universo só pode gozar da situação correspondente a seus méritos. A nossa felicidade, apesar das aparências enganadoras, está sempre em relação direta com a nossa capacidade para o bem; e essa lei acha completa aplicação nas reencarnações da alma. É ela que fixa as condições de cada renascimento e traça as linhas principais dos nossos destinos. Por isso há maus que parecem felizes, ao passo que justos sofrem excessivamente. A hora da reparação soou para estes e em breve soará para aqueles.
Associarmos os nossos atos ao plano divino, agirmos de acordo com a Natureza, no sentido da harmonia e para o bem de todos, é preparar nossa elevação, nossa felicidade; agir no sentido contrário, fomentar a discórdia, incitar os apetites malsãos, trabalhar para si mesmo em menoscabo dos outros, é semear para o futuro fermentos de dor; é nos colocarmos sob o domínio de influências que retardam o nosso adiantamento e por muito tempo nos acorrentam aos mundos inferiores.
É isso o que é necessário dizer, repetir e fazer penetrar no pensamento, na consciência de todos, a fim de que o homem tenha um único alvo em mira: conquistar as forças morais, sem as quais ficará sempre na impotência de melhorar a sua condição e a da humanidade! Fazendo conhecer os efeitos da lei de responsabilidade, demonstrando que as conseqüências de nossos atos recaem sobre nós através dos tempos, como a pedra atirada ao ar torna a cair ao solo, pouco a pouco serão levados os homens a conformar o seu proceder com essa lei, a realizar a ordem, a justiça, a solidariedade no meio social.
*
Certas escolas espiritualistas combatem o princípio das vidas sucessivas e ensinam que a evolução da alma depois da morte continua a efetuar-se somente no mundo invisível; outras, conquanto admitam a reencarnação, crêem que ela se realiza em esferas mais elevadas; o regresso à Terra não lhes parece ser uma necessidade.
Aos partidários dessas teorias lembraremos que a encarnação na Terra tem um objetivo e esse objetivo é o aperfeiçoamento do ser humano. Ora, dada à infinita variedade das condições da existência terrestre, quer quanto à duração, quer quanto aos resultados, é impossível admitir que todos os homens possam chegar ao mesmo grau de perfeição numa única vida. Daí, a necessidade de regressos sucessivos que permitam adquirirem-se as qualidades requeridas para ter entrada em mundos mais adiantados.
O presente tem a sua explicação no passado. Foi precisa uma série de renascimentos terrestres para que o homem conquistasse a posição que atualmente ocupa, e não parece admissível que esse ponto de evolução seja definitivo para a nossa esfera. Os seus habitantes não estão todos em estado de transmigrar depois da morte para sociedades mais perfeitas; pelo contrário, tudo indica a imperfeição da sua natureza e a necessidade de novos trabalhos, de outras provas que lhes completem a educação e lhes dêem acesso a um grau superior na escala dos seres.
Em toda parte a Natureza procede com sabedoria, método e morosidade. Numerosos séculos foram-lhe indispensáveis para fabricar a forma humana; só volvidos longos períodos de barbaria é que nasceu a Civilização. A evolução física e mental e o progresso moral são regidos por leis idênticas; não basta uma única existência para dar-lhes cumprimento. E por que havemos de ir buscar muito longe, em outros mundos, os elementos de novos progressos, quando os encontramos por toda parte em volta de nós? Desde a selvageria até a mais requintada civilização, não nos oferece o nosso planeta vasto campo ao desenvolvimento do Espírito?
Os contrastes, as oposições que aí apresentam, em todas as suas formas, o bem e o mal, o saber e a ignorância, são outros tantos exemplos e ensinamentos, outras tantas causas de estímulo.
Renascer não é mais extraordinário do que nascer; a alma volta à carne para nela submeter-se às leis da necessidade; as carências e as lutas da vida material são outros tantos incentivos que a obrigam a trabalhar, aumentam a sua energia, avigoram-lhe o caráter. Tais resultados não poderiam ser obtidos na vida livre do espaço por Espíritos juvenis, cuja vontade é vacilante. Para avançarem, tornam-se precisos o látego da necessidade e as numerosas encarnações, durante as quais a alma vai concentrar-se, recolher-se em si mesma, adquirir a elasticidade, a impulsão indispensável para descrever mais tarde a sua imensa trajetória no céu.
O fim dessas encarnações é, pois, de alguma sorte, a revelação da alma a si mesma ou, antes, a sua própria valorização pelo desenvolvimento constante das suas forças, dos seus conhecimentos, da sua consciência, da sua vontade. A alma inferior e nova não pode adquirir a consciência de si mesma senão com a condição de estar separada das outras almas, encerrada num corpo material. Ela constituirá, assim, um ser distinto, que vai afirmar a sua personalidade, aumentar a sua experiência, acentuar a sua marcha progressiva na razão direta dos esforços que fizer para triunfar das dificuldades e dos obstáculos que a vida terrestre lhe semeia debaixo dos pés.
As existências planetárias põem-nos em relação com uma ordem completa de coisas que constituem o plano inicial, a base de nossa evolução infinita, e se acham em perfeita harmonia com o nosso grau de evolução; mas essa ordem de coisas e a série das vidas que com ela se relacionam, por mais numerosas que sejam, representam uma fração ínfima da existência sideral, um instante na duração ilimitada dos nossos destinos.
A passagem das almas terrestres para outros mundos só pode ser efetuada sob o regime de certas leis. Os globos que povoam a extensão diferem entre si por sua natureza e densidade. A adaptação dos invólucros fluídicos das almas a esses meios novos somente é realizável em condições especiais de purificação. É impossível aos Espíritos inferiores, na vida errática, penetrarem nos mundos elevados e lhes descreverem as belezas aos nossos médiuns. Encontra-se a mesma dificuldade, maior ainda, quando se trata da reencarnação nesses mundos. As sociedades que os habitam, por seu estado de superioridade, são inacessíveis à imensa maioria dos Espíritos terrestres, ainda demasiadamente grosseiros, em insuficiente grau de elevação. Os sentimentos psíquicos dos últimos, mui pouco apurados, não lhes permitiriam viver da vida sutil que reina nessas esferas longínquas. Achar-se-iam lá como cegos na claridade ou surdos num concerto. A atração que lhes encadeia os corpos fluídicos ao planeta prende-lhes, do mesmo modo, o pensamento e a consciência às coisas inferiores. Seus desejos, seus apetites, seus ódios, até mesmo seu amor, fazem-nos voltar a este mundo e ligam-nos ao objeto da sua paixão.
É necessário aprendermos primeiramente a desatar os laços que nos amarram à Terra, para depois levantarmos o vôo em direção a mundos mais elevados. Arrancar as almas terrestres ao seu meio, antes do termo da evolução especial a esse meio, fazê-las transmigrar para esferas superiores, antes de terem realizado os progressos necessários, seria desarrazoado e imprudente. A Natureza não procede assim; sua obra desenrola-se majestosa, harmônica em todas as suas fases. Os seres, cuja ascensão suas leis dirigem, não deixam o campo de ação senão depois de terem adquirido virtudes e potências capazes de lhes darem entrada num domínio mais elevado da vida universal.
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A que regras está sujeito o regresso da alma à carne? As da atração e da afinidade. Quando um Espírito encarna, é atraído para um meio conforme as suas tendências, ao seu caráter e grau de evolução. As almas seguem umas às outras e encarnam por grupos, constituem famílias espirituais, cujos membros são unidos por laços ternos e fortes, contraídos durante existências percorridas em comum. Às vezes esses Espíritos são temporariamente afastados uns dos outros e mudam de meio para adquirirem novas aptidões. Assim se explicam, segundo os casos, as analogias ou dessemelhanças que caracterizam os membros de uma mesma família, filhos e pais; mas sempre aqueles que se amam tornam, cedo ou tarde, a encontrar-se na Terra, como no espaço.
Acusa-se a doutrina das reencarnações de amesquinhar a idéia de família, de inverter e confundir as situações que ocupam, uns em relação aos outros, os Espíritos unidos por laços de parentesco, por exemplo, as relações de mãe para filho, de marido para mulher, etc.; o contrário é que é a verdade. Na hipótese de uma vida única, os Espíritos dispersam-se depois de breve coabitação e, muitas vezes, tornam-se estranhos uns aos outros. Segundo a doutrina católica, as almas permanecem, depois da morte, em lugares diversos, segundo os seus méritos, e os eleitos são para sempre separados dos réprobos. Assim, os laços de família e de amizade, formados por uma vida transitória, afrouxam-se na maior parte dos casos e até se quebram de vez; ao passo que, pelos renascimentos, os Espíritos reúnem-se de novo e prosseguem em comum as suas peregrinações através dos mundos, tornando-se, assim, a sua união cada vez mais íntima e profunda.
Nossa ternura espontânea por certos seres deste mundo explica-se facilmente. Já os havíamos conhecido, em outros tempos, já os encontráramos. Quantos esposos, quantos amantes não têm sido unidos por inúmeras existências, percorridas dois a dois! Seu amor é indestrutível, porque o amor é a força das forças, o vínculo supremo que nada pode destruir.
As condições da reencarnação não permitem que nossas situações recíprocas se invertam; quase sempre se conservam os graus respectivos de parentesco. Algumas vezes, em caso de impossibilidade, um filho poderá vir a ser o irmão mais novo do seu pai de outros tempos, a mãe poderá renascer irmã mais velha do filho. Em casos excepcionais, e somente a pedido dos interessados, podem inverter-se as situações. Os sentimentos de delicadeza, de dignidade, de mútuo respeito que sentimos na Terra não podem ser desconhecidos no mundo espiritual. Para supô-lo, é preciso ignorar a natureza das leis que regem a evolução das almas!
O Espírito adiantado, cuja liberdade aumenta na razão direta da sua elevação, escolhe o meio onde quer renascer, ao passo que o Espírito inferior é impelido por uma força misteriosa a que obedece instintivamente; mas todos são protegidos, aconselhados, amparados na passagem da vida do espaço para a existência terrestre, mais penosa, mais temível que a morte.
A união da alma com o corpo efetua-se por meio do invólucro fluídico, o perispírito, de que muitas vezes temos falado. Sutil por sua natureza, vai ele servir de laço entre o Espírito e a matéria. A alma está presa ao gérmen por esse “mediador plástico”, que vai retrair-se, condensar-se cada vez mais, através das fases progressivas da gestação, e formar o corpo físico. Desde a concepção até o nascimento, a fusão opera-se lentamente, fibra por fibra, molécula por molécula. Pelo afluxo crescente dos elementos materiais e da força vital fornecidos pelos genitores, os movimentos vibratórios do perispírito da criança vão diminuir e restringirem-se, ao mesmo tempo em que as faculdades da alma, a memória, a consciência esvaem-se e aniquilam-se. É a essa redução das vibrações fluídicas do perispírito, à sua oclusão na carne que se deve atribuir a perda da memória das vidas passadas. Um véu cada vez mais espesso envolve a alma e apaga-lhe as radiações interiores. Todas as impressões da sua vida celeste e do seu longo passado volvem às profundezas do inconsciente e a emersão só se realiza nas horas de exteriorização ou por ocasião da morte, quando o Espírito, recuperando a plenitude dos seus movimentos vibratórios, evoca o mundo adormecido das suas recordações.
O papel do duplo fluídico é considerável; explica, desde o nascimento até a morte, todos os fenômenos vitais. Possuindo em si os vestígios indeléveis de todos os estados do ser, desde a sua origem, comunica-lhe a impressão, as linhas essenciais ao gérmen material. Eis aí a chave dos fenômenos embriogênicos.
O perispírito, durante o período de gestação, impregna-se de fluido vital e materializa-se o bastante para tornar-se o regulador da energia e o suporte dos elementos fornecidos pelos genitores; constitui, assim, uma espécie de esboço, de rede fluídica permanente, através da qual passará a corrente de matéria que destrói e reconstitui sem cessar, durante a vida, o organismo terrestre; será a armação invisível que sustenta interiormente a estátua humana. Graças a ele, a individualidade e a memória conservar-se-ão no plano físico, apesar das vicissitudes da parte mutável e móvel do ser, e assegurarão, do mesmo modo, a lembrança dos fatos da existência presente, recordações cujo encadeamento, do berço à cova, fornece-nos a certeza íntima da nossa identidade.
A incorporação da alma não é, pois, subitânea, como o afirmam certas doutrinas; é gradual e só se completa e se torna definitiva à saída da vida uterina. Nesse momento, a matéria encerra completamente o Espírito, que deverá vivificá-la pela ação das faculdades adquiridas. Longo será o período de desenvolvimento durante o qual a alma se ocupará em pôr à sua feição o novo invólucro, em acomodá-lo às suas necessidades, em fazer dele um instrumento capaz de manifestar-lhe as potências íntimas; mas, nessa obra, será coadjuvada por um Espírito preposto à sua guarda, que cuida dela, a inspira e guia em todo o percurso da sua peregrinação terrestre. Todas as noites, durante o sono, muitas vezes até de dia, o Espírito, no período infantil, desprende-se da forma carnal, volve ao espaço, a haurir forças e alentos para, em seguida, tornar a descer ao invólucro e prosseguir o penoso curso da existência.
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Antes de novamente entrar em contacto com a matéria e começar nova carreira, o Espírito tem, dissemos, de escolher o meio onde vai renascer para a vida terrestre; mas essa escolha é limitada, circunscrita, determinada por causas múltiplas. Os antecedentes do ser, suas dívidas morais, suas afeições, seus méritos e deméritos, o papel que está apto para desempenhar, todos esses elementos intervêm na orientação da vida em preparo; daí a preferência por uma raça, tal nação, tal família. As almas terrestres que havemos amado atraem-nos; os laços do passado reatam-se em filiações, alianças, amizades novas. Os próprios lugares exercem sobre nós a sua misteriosa sedução e é raro que o destino não nos reconduza muitas vezes às regiões onde já vivemos, amamos, sofremos. Os ódios são forças também que nos aproximam dos nossos inimigos de outrora para apagarmos, com melhores relações, inimizades antigas. Assim, tornamos a encontrar em nosso caminho a maior parte daqueles que constituíram nossa alegria ou fizeram nossos tormentos.
Sucede o mesmo com a adoção de uma classe social, com as condições de ambiente e educação, com os privilégios da fortuna ou da saúde, com as misérias da pobreza. Todas essas causas tão variadas, tão complexas, vão combinar-se para assegurar ao novo encarnado as satisfações, as vantagens ou as provações que convêm ao seu grau de evolução, aos seus méritos ou às suas faltas e às dívidas contraídas por ele.
Dito isso, compreender-se-á quão difícil é a escolha. Por isso, na maioria das vezes ela nos é inspirada pelas Inteligências diretoras, ou, então, em proveito nosso, hão de elas próprias fazê-lo, se não possuirmos o discernimento necessário para adotar com toda a sabedoria e previdência os meios mais eficazes para ativarem a nossa evolução e expurgarem o nosso passado.
Todavia, o interessado tem sempre a liberdade de aceitar ou procrastinar a hora das reparações inelutáveis. No momento de se ligar a um gérmen humano, quando a alma possui ainda toda a sua lucidez, o seu Guia desenrola diante dela o panorama da existência que a espera; mostra-lhe os obstáculos e os males de que será eriçada, faz-lhe compreender a utilidade desses obstáculos e desses males para desenvolver-lhe as virtudes ou libertá-la dos seus vícios. Se a prova lhe parecer demasiado rude, se não se sentir suficientemente armado para afrontá-la, é lícito ao Espírito diferir-lhe a data e procurar uma vida transitória que lhe aumente as forças morais e a vontade.
Na hora das resoluções supremas, antes de tornar a descer à carne, o Espírito percebe, atinge o sentido geral da vida que vai começar, ela lhe aparece nas suas linhas principais, nos seus fatos culminantes, modificáveis sempre, entretanto, por sua ação pessoal e pelo uso do seu livre-arbítrio; porque a alma é senhora dos seus atos; mas, desde que ela se decidiu, desde que o laço se dá e a incorporação se debuxa, tudo se apaga, esvai-se tudo. A existência vai desenrolar-se com todas as suas conseqüências previstas, aceitas, desejadas, sem que nenhuma intuição do futuro subsista na consciência normal do ser encarnado. O esquecimento é necessário durante a vida material. O conhecimento antecipado dos males ou das catástrofes que nos esperam paralisariam os nossos esforços, sustariam a nossa marcha para a frente.
Quanto à escolha do sexo, é também a alma que, de antemão, resolve. Pode até variá-lo de uma encarnação para outra por um ato da sua vontade criadora, modificando as condições orgânicas do perispírito. Certos pensadores admitem que a alternação dos sexos seja necessária para adquirir virtudes mais especiais, dizem eles, a cada uma das metades do gênero humano; por exemplo, no homem, à vontade, a firmeza, a coragem; na mulher, a ternura, a paciência, a pureza.
Cremos, de acordo com os nossos Guias, que a mudança de sexo, sempre possível para o Espírito, é, em princípio, inútil e perigosa. Os Espíritos elevados reprovam-na. É fácil reconhecer, à primeira vista, em volta de nós, as pessoas que numa existência precedente adotaram sexo diferente; são sempre, sob algum ponto de vista, anormais. As viragos, de caráter e gostos varonis, algumas das quais apresentam ainda vestígio dos atributos do outro sexo, por exemplo, barba no mento, são, evidentemente, homens reencarnados. Elas nada têm de estético e sedutor; sucede o mesmo com os homens efeminados, que têm todos os característicos das filhas de Eva e acham-se como que transviados na vida. Quando um Espírito se afez a um sexo, é mau para ele sair do que se tornou a sua natureza.
Muitas almas, criadas aos pares, são destinadas a evoluírem juntas, unidas para sempre na alegria como na dor. Deram-lhes o nome de almas irmãs; o seu número é mais considerável do que geralmente se crê; realizam a forma mais completa, mais perfeita da vida e do sentimento e dão às outras almas o exemplo de um amor fiel, inalterável, profundo; podem ser reconhecidas por esse característico. Que seria de sua afeição, de suas relações, de seu destino, se a mudança de sexo fosse uma necessidade, uma lei? Entendemos antes que, pelo próprio fato da ascensão geral, os caracteres nobres e as altas virtudes multiplicar-se-ão nos dois sexos ao mesmo tempo; finalmente, nenhuma qualidade ficará sendo apanágio de um só dos sexos, mas atributo dos dois.
A mudança de sexo poderia ser considerada como um ato imposto pela lei de justiça e reparação num único caso, o qual se dá quando maus-tratos ou graves danos, infligidos a pessoas de um sexo, atraem para este mesmo sexo os Espíritos responsáveis, para assim sofrerem, por sua vez, os efeitos das causas a que deram origem; mas, a pena de talião não rege, como mais adiante veremos, de maneira absoluta, o mundo das almas; existem mil formas de se fazer a reparação e de se eliminarem as causas do mal. A cadeia onipotente das causas e dos efeitos desenrola-se em mil anéis diversos.
Objetar-nos-ão talvez que seria iníquo coagir metade dos Espíritos a evoluírem num sexo mais fraco e bastas vezes oprimido, humilhado, sacrificado por uma organização social ainda bárbara. Podemos responder que esse estado de coisas tende a desaparecer, de dia para dia, para dar lugar a maior soma de eqüidade. É pelo aperfeiçoamento moral e social e pela sólida educação da mulher que a humanidade se há de levantar.
Quanto às dores do passado, sabemos que não ficam perdidas. O Espírito que sofreu iniqüidades sociais, colhe, por força da lei de equilíbrio e compensação, o resultado das provações por que passou. O Espírito feminino, dizem-nos os Guias, ascende com vôo mais rápido para a perfeição.
O papel da mulher é imenso na vida dos povos. Irmã, esposa ou mãe, é a grande consoladora e a carinhosa conselheira. Pelo filho é seu o porvir e prepara o homem futuro. Por isso, as sociedades que a deprimem, deprimem-se a si mesmas. A mulher respeitada, honrada, de entendimento esclarecido é que faz a família forte e a sociedade grande, moral, unida!
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Temíveis são certas atrações para as almas que procuram as condições de um renascimento, por exemplo, as famílias de alcoólicos, de devassos, de dementes. Como conciliar a noção de justiça com a encarnação dos seres em tais meios? Não há aí, em jogo, razões psíquicas profundas e latentes e não são as causa físicas apenas uma aparência? Vimos que a lei de afinidade aproxima os seres similares. Um passado de culpas arrasta a alma atrasada para grupos que apresentam analogias com o seu próprio estado fluídico e mental, estado que ela criou com os seus pensamentos e ações.
Não há, nesses problemas, nenhum lugar para a arbitrariedade ou para o acaso. É o mau uso prolongado de seu livre-arbítrio, a procura constante de resultados egoístas ou maléficos que atrai a alma para genitores semelhantes a si. Eles fornecer-lhe-ão materiais em harmonia com o seu organismo fluídico, impregnados das mesmas tendências grosseiras, próprios para a manifestação dos mesmos apetites, dos mesmos desejos. Abrir-se-á nova existência, novo degrau de queda para o vício e para a criminalidade. E a descida para o abismo.
Senhora do seu destino, a alma tem de sujeitar-se ao estado de coisas que preparou, que escolheu. Todavia, depois de haver feito de sua consciência um antro tenebroso, um covil do mal, terá de transformá-lo em templo de luz. As faltas acumuladas farão nascer sofrimentos mais vivos; suceder-se-ão mais penosas, mais dolorosas as encarnações; o círculo de ferro apertar-se-á até que a alma, triturada pela engrenagem das causas e dos efeitos que houver criado, compreenderá a necessidade de reagir contra suas tendências, de vencer suas ruins paixões e de mudar de caminho. Desde esse momento, por pouco que o arrependimento a sensibilize, sentirá nascer em si forças, impulsões novas que a levarão para meios mais adequados à sua obra de reparação, de renovação, e passo a passo irá fazendo progressos. Raios e eflúvios penetrarão na alma arrependida e enternecida, aspirações desconhecidas, necessidades de ação útil e de dedicação hão de despertar nela. A lei de atração, que a impelia para as últimas camadas sociais, reverterá em seu benefício e tornar-se-á o instrumento da sua regeneração.
Entretanto, não será sem custo que ela se levantará; a ascensão não prosseguirá sem dificuldades. As faltas e os erros cometidos repercutem como causas de obstrução nas vias futuras e o esforço terá de ser tanto mais enérgico e prolongado quanto mais pesadas forem as responsabilidades, quanto mais extenso tiver sido o período de resistência e obstinação no mal. Na escabrosa e íngreme subida, o passado dominará por muito tempo o presente e o seu peso fará vergar mais de uma vez os ombros do caminhante; mas, do Alto, mãos piedosas estender-se-ão para ele e ajudá-lo-ão a transpor as passagens mais escarpadas. “Há mais alegria no Céu por um pecador que se arrepende do que por cem justos que perseveram.”
O nosso futuro está em nossas mãos e as nossas facilidades para o bem aumentam na razão direta dos nossos esforços para o praticarmos. Toda vida nobre e pura, toda missão superior é o resultado de um passado imenso de lutas, de derrotas sofridas, de vitórias ganhas contra nós mesmos; é o remate de trabalhos longos e pacientes, a acumulação de frutos de ciência e caridade colhidos, um por um, no decurso das idades. Cada faculdade brilhante, cada virtude sólida reclamou existências multíplices de trabalho obscuro, de combates violentos entre o espírito e a carne, a paixão e o dever. Para chegar ao talento, ao gênio, o pensamento teve de amadurecer lentamente através dos séculos. O campo da inteligência, penosamente desbravado, a princípio apenas deu escassas colheitas; depois, pouco a pouco, vieram as searas cada vez mais ricas e abundantes.
Em cada regresso ao espaço procede-se ao balanço dos lucros e perdas; avaliam-se e firmam-se os progressos. O ser examina-se e julga-se; perscruta minuciosamente a sua história recente, em si mesmo escrita; passa em revista os frutos de experiência e sabedoria que a sua última vida lhe proporcionou, para mais profundamente assinalar-lhes a substância.
A vida do espaço é, para o Espírito que evoluiu, o período de exame, de recolhimento, em que as faculdades, depois de se terem gasto no exterior, refletem-se, aplicam-se ao estudo íntimo, ao interrogatório da consciência, ao inventário rigoroso da beleza ou fealdade que há na alma. A vida do espaço é a forma necessária e simétrica da vida terrestre, vida de equilíbrio, em que as forças se reconstituem, em que as energias se retemperam, em que os entusiasmos se reanimam, em que o ser se prepara para as futuras tarefas; é o descanso depois do trabalho, a bonança depois da tormenta, a concentração tranqüila e serena depois da expansão ativa ou do conflito ardente.
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Segundo a opinião dos teósofos, o regresso da alma à carne efetua-se a cada mil e quinhentos anos.[iii] Esta teoria não é confirmada nem pelos fatos nem pelo testemunho dos Espíritos. Estes, interrogados em grande número, em meios muito diversos, responderam que a reencarnação é muito mais rápida; as almas ávidas de progresso demoram-se pouco no espaço. Pedem o regresso à vida deste mundo para conquistar novos títulos, novos méritos. Possuímos sobre as existências anteriores de certa pessoa indicações recolhidas, em pontos muito afastados uns dos outros, da boca de médiuns que nunca se conheceram, indicações perfeitamente concordes entre si e com as intuições do interessado. Demonstram que apenas vinte, trinta anos, quando muito, separaram as suas vidas terrestres. Não há, quanto a isso, regra exata. As encarnações aproximam-se ou se distanciam segundo o estado das almas, seu desejo de trabalho e adiantamento e as ocasiões favoráveis que se lhes oferecem; nos casos de morte precoce, são quase imediatas.
Sabemos que o corpo fluídico materializa-se ou purifica-se conforme a natureza dos pensamentos e das ações do Espírito. As almas viciosas atraem a si, por suas tendências, fluidos impuros, que lhes tornam mais espesso o invólucro e lhes diminuem as radiações. À morte, não podem elevar-se acima das nossas regiões e ficam confinadas na atmosfera ou misturadas com os humanos; se persistem no mal, a atração planetária torna-se tão poderosa que lhes precipita a reencarnação.
Quanto mais material e grosseiro é o Espírito, tanto mais influência tem sobre ele a lei de gravidade; com os Espíritos puros, cujo perispírito radioso vibra a todas as sensações do infinito e que acham nas regiões etéreas meios apropriados à sua natureza e ao seu estado de progressão, produz-se o fenômeno inverso. Chegados a um grau superior, esses Espíritos prolongam cada vez mais a sua estada no espaço; as vidas planetárias tornam-se para eles a exceção e a vida livre a regra, até que a soma das perfeições realizadas os liberte para sempre da servidão dos renascimentos.
XIV
As vidas sucessivas – Provas experimentais –
Renovação da memória
Nas páginas precedentes expusemos as razões lógicas que militam em prol da doutrina das vidas sucessivas. Consagraremos o presente capítulo e os seguintes a refutar as objeções dos seus contraditores e entraremos no campo das provas científicas que, todos os dias, vêm consolidá-la.
A objeção mais trivial é esta: “Se o homem já viveu, pergunta-se: por que não se lembra de suas existências passadas?”
Já, sumariamente, indicamos a causa fisiológica desse esquecimento; essa causa é o próprio renascimento, isto é, o revestimento de um novo organismo, de um invólucro material que, sobrepondo-se ao invólucro fluídico, faz, a seu respeito, o papel de um apagador. Em conseqüência da diminuição do seu estado vibratório, o Espírito, cada vez que toma posse de um corpo novo, de um cérebro virgem de toda imagem, acha-se na impossibilidade de exprimir as recordações acumuladas das suas vidas precedentes. Continuarão, é verdade, revelando seus antecedentes em suas aptidões, na facilidade de assimilação, nas qualidades e defeitos; mas todas as particularidades dos fatos, dos sucessos que constituem seu passado, reintegrado nas profundezas da consciência, ficarão veladas durante a vida terrestre. O Espírito, no estado de vigília, apenas poderá exprimir pelas formas da linguagem as impressões registradas por seu cérebro material.
A memória é a concatenação, a associação das idéias, dos fatos, dos conhecimentos. Desde que essa associação desaparece, desde que se rompe o fio das recordações, parece que para nós se apaga o passado, mas só na aparência. Num discurso pronunciado em 6 de fevereiro de 1905, o Prof. Charles Richet, da Academia de Medicina, dizia: “A memória é uma faculdade implacável de nossa inteligência, porque nenhuma de nossas percepções jamais é esquecida. Logo que um fato nos impressionou os sentidos, fixa-se irrevogavelmente na memória. Pouco importa que tenhamos conservado a consciência dessa recordação: ela existe, é indelével.”
Acrescentamos que ela pode ressurgir. O despertar da memória não é mais do que um efeito de vibração produzido pela ação da vontade nas células do cérebro. Para fazermos reviver as lembranças anteriores ao nascimento, é necessário colocarmo-nos novamente em harmonia de vibrações com o estado dinâmico em que nos achávamos na época em que houve a percepção. Não existindo já os cérebros que registraram essas percepções, é preciso procurá-las na consciência profunda; mas esta se conserva calada enquanto o Espírito está encerrado na carne. Para recuperar a plenitude das suas vibrações e reaver o fio das lembranças em si ocultas, é necessário que ele saia e se separe do corpo; então percebe o passado e pode reconstituí-lo nos menores fatos. É isso o que se dá nos fenômenos do sonambulismo e do transe.
Sabemos que há em nós profundezas misteriosas onde lentamente se foram depositando, através das idades, os sedimentos das nossas vidas de lutas, de estudo e de trabalho; ali se gravam todos os incidentes, todas as vicissitudes do passado obscuro. É como um oceano de coisas adormecidas, balouçadas pelas vagas do destino. Um apelo poderoso da vontade pode fazê-lo reviver. A vista do Espírito, nas horas de clarividência, desce para elas como as radiações das estrelas passam das profundezas galácticas até debaixo das abóbadas e das arcadas dos recessos sombrios do mar.
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Recordemos aqui os pontos essenciais da teoria do “eu”, com a qual têm conexão todos os problemas da memória e da consciência.
Os dois fatores que constituem a permanência e mantêm a identidade, a personalidade do “eu”, são a memória e a consciência. As reminiscências, as intuições e as aptidões determinam a sensação de haver vivido. Existe na inteligência uma continuidade, uma sucessão de causas e efeitos que é preciso reconstituir na sua totalidade para possuir o conhecimento integral do “eu”. É isso, como vimos, impossível na vida material, pois que a incorporação produz uma extinção temporária dos estados de consciência que formam esse todo contínuo. Assim como a vida física está sujeita às alternativas da noite e do dia, assim também se produz um fenômeno análogo na vida do Espírito. A nossa memória e a nossa consciência atravessam alternadamente períodos de eclipse ou de esplendor, de sombra ou de luz, no estado celeste ou terrestre, e até, neste último plano, durante a vigília ou nos diferentes estados do sono. E, assim como há gradações no eclipse, há também graus de luz.
Muitos sonhos, à semelhança das impressões recebidas durante o sono do sonambulismo, não deixam vestígios ao despertar. O esquecimento, todos os magnetizadores o sabem, é um fenômeno constante nos sonâmbulos; mas, desde que o Espírito do sujet, imerso em novo sono, torna a encontrar-se nas condições dinâmicas que permitem a renovação das recordações, estas se reavivam logo. O sujet recorda-se do que fez, disse, viu, exprimiu em todas as épocas da existência.
Por isso compreenderemos facilmente o esquecimento momentâneo das vidas anteriores. O movimento vibratório do invólucro perispiritual, amortecido pela matéria no decurso da vida atual, é excessivamente fraco para que o grau de intensidade e a duração necessária à renovação dessas recordações possam ser obtidos durante a vigília.
Na realidade, a memória não é mais do que uma modalidade da consciência. A recordação está, muitas vezes, no estado subconsciente. Já, no círculo restrito da vida atual, não conservamos a recordação de nossos primeiros anos, a qual está, contudo, gravada em nós, como todos os estados atravessados no decurso de nossa história. Sucede o mesmo com grande número de atos e fatos pertencentes aos outros períodos da vida. Gassendi, dizem, lembrava-se da idade de 18 meses; mas isso é uma exceção. É necessário o esforço mental para reavivar essas recordações da vida normal, a que nos é mais familiar; é necessário, repetimo-lo, para novamente colher mil coisas estudadas, aprendidas e, depois, esquecidas, porque baixaram às camadas profundas da memória.
A cada passo, a inteligência precisa procurar na subconsciência os conhecimentos, as recordações que quer reavivar; esforça-se para fazê-los passar para a consciência física, para o cérebro concreto, depois de tê-los provido dos elementos vitais fornecidos pelos neurônios ou células nervosas. Segundo a riqueza ou a pobreza desses elementos, a recordação surgirá clara ou difusa; às vezes, esquiva-se; a comunicação não pode estabelecer-se, ou então a projeção produz-se mais tarde somente, no momento em que menos se espera.
Para recordar, portanto, a primeira das condições é querer. Aí está a razão pela qual muitos Espíritos, mesmo na vida do espaço, sob o domínio de certos preconceitos dogmáticos, desprezam toda investigação e conservam-se ignorantes do passado que neles dorme. Nesse meio, como entre nós, no decurso da experimentação, é necessária uma sugestão. Vemos essa lei da sugestão manifestar-se em toda parte, debaixo de mil formas; nós mesmos, a cada instante do dia, estamos sujeitos à sua ação. Eleva-se, por exemplo, perto de nós um canto, ressoa uma palavra, um nome, fere-nos a vista uma imagem e, de repente, graças à associação de idéias, desenrola-se em nosso espírito um encadeamento completo de recordações confusas, quase esquecidas, dissimuladas nas camadas profundas da nossa consciência.
Períodos inteiros da nossa vida atual podem apagar-se da memória. No seu livro Lés Phénomènes Psychiques, pág. 170, o Dr. J. Maxwell fala nos seguintes termos do que se chama casos de amnésia:
“Algumas vezes, até desaparece a noção da personalidade; doentes há que, subitamente, esquecem o próprio nome. Apaga-se-lhes toda a vida e parecem voltar ao estado em que estavam quando nasceram; têm de aprender outra vez a falar, a vestir-se e a comer. Às vezes, não é tão completa a amnésia. Pude observar um doente que havia esquecido tudo o que tinha qualquer ligação com a sua personalidade; ignorava absolutamente tudo quanto fizera, não sabia onde nascera nem quem eram seus pais. Tinha cerca de trinta anos. A memória orgânica e as memórias organizadas fora da personalidade subsistiam; podia ler, escrever, desenhar alguma coisa, tocar mal um instrumento de música. Nele a amnésia limitava-se a todos os fatos conexos com a sua personalidade anterior.”
A guerra multiplicou esses casos e pudemos constatar isso nos jornais.
O Dr. Pitre, deão da Faculdade de Medicina de Bordéus, no seu livro L'Hystérie et 1'Hypnotisme, cita um caso que demonstra que todos os fatos e conhecimentos registrados em nós desde a infância podem renascer; é o que ele chama o fenômeno de ecmnésia. O sujet, uma donzela de 17 anos, falava só francês e havia esquecido o dialeto gascão, idioma da sua juventude. Adormecida e transportada pela sugestão à idade de 5 anos, deixava de entender o francês e só falava o seu dialeto; contava as menores particularidades de sua vida infantil, que se lhe apresentavam perfeitamente nítidas, mas não respondia às perguntas feitas, por já não compreender a língua que lhe falavam; esquecera todos os fatos de sua vida que se haviam desenrolado entre as idades de 5 e 17 anos.
O Dr. Burot fez experiências idênticas. O sujet Joana é transportado por ele, mentalmente, a diferentes épocas de sua juventude, e, em cada período, os incidentes da existência desenham-se com precisão em sua memória, mas todo fato ulterior se apaga. Era possível seguir-se, em escala descendente, os progressos de sua inteligência. Chegada à idade de 5 anos, verificou-se que mal sabia ler; escrevia como naquela idade, de maneira atrapalhada e com erros de ortografia que, em tal época, costumava cometer.[iv]
Foi comprovada a exatidão de todas essas narrativas. Os sábios que citamos entregaram-se a minuciosas pesquisas; puderam verificar a veracidade dos fatos relatados pelos pacientes, fatos que, no estado normal, se lhes varriam da memória.
Vamos ver que, por um encadeamento lógico e rigoroso, esses fenômenos levam-nos à possibilidade de despertarmos experimentalmente, na parte permanente do ser, as recordações anteriores ao nascimento, o que verificaremos nas experiências de F. Colavida, E. Marata, Coronel de Rochas, etc.
O estado de febre, o delírio, o sono anestésico, provocando a separação parcial, podem também abalar, dilatar as camadas profundas da memória e despertar conhecimentos e lembranças antigas. Todos, sem dúvida, se lembram do célebre caso de Ninfa Filiberto, de Palermo. Com febre, falava várias línguas estrangeiras que há muito tempo esquecera. Eis outros fatos relatados por médicos práticos.
O Dr. Henri Frieborn [v] cita o caso de uma mulher de 70 anos de idade que, gravemente doente de uma bronquite, foi acometida de delírio, de 13 a 16 de março de 1902. Depois, pouco a pouco, foi-lhe voltando a razão:
“Na noite de 13 para 14 percebeu-se que ela falava uma língua desconhecida das pessoas que a rodeavam. Parecia, às vezes, que recitava versos e, outras, que conversava. Por várias vezes repetiu a mesma composição em verso; acabou-se por descobrir que a língua era a indostânica.
Na manhã de 14 começou a misturar-se com o indostânico algum inglês; conversava dessa maneira com parentes e amigos de infância ou então falava deles.
No dia 15 havia, por sua vez, desaparecido o indostânico e a doente dirigiu-se a amigos, que mais tarde conhecera, servindo-se do inglês, do francês e do alemão. A senhora de que se trata nascera na Índia, donde saiu aos três anos de idade, a fim de ir para a Inglaterra, aonde chegou depois de quatro meses de viagem. Até ao dia do desembarque na Inglaterra fora confiada a serviçais hindus e não falava absolutamente nada do inglês.
No dia 13 revivia, no delírio, seus primeiros dias e falava a primeira linguagem que ouvira. Reconheceu-se que a poesia era uma espécie de cantiga com que os ayahs costumavam adormecer as crianças. Quando conversava, dirigia-se, sem dúvida, aos fâmulos hindus; assim, entre outras coisas, compreendeu-se que ela pedia que a levassem ao bazar para comprar doces.
Podia-se reconhecer que havia uma ligação seguida em toda a marcha do delírio. A princípio, foram conhecimentos com que a doente estivera em relação durante a primeira infância; depois, passou em revista toda a sua existência, até chegar, em 16 de março, à época em que se casou e teve filhos que cresceram.
É curioso verificar que, depois de um período de 66 anos, durante o qual ela nunca falara o indostânico, o delírio lhe relembrasse a linguagem da sua primeira infância. Atualmente, a doente fala com facilidade o francês, o alemão e o inglês; mas, posto que conheça ainda algumas palavras do indostânico, é absolutamente incapaz de falar essa língua ou mesmo de compor nela uma única frase.”
O Dr. Sollier, na sua obra Phénomènes d'autoscopie (pág. 105), menciona as experiências seguintes, do Dr. Bain. Trata-se de uma doente de 29 anos de idade, morfinômana e submetida ao “método de ressensibilização sucessiva pela hipnose”:
“Depois de terminarmos o que tínhamos a fazer com o corpo, procedemos ao despertar da cabeça Assistimos a uma regressão da personalidade, não numa única sessão, mas em muitas, há 17 anos. A doente tornava a encontrar-se na idade de 12 anos; revivia todos os períodos de sua vida movimentada, com desdobramento completo da personalidade. Levar-nos-ia muito longe darmos, mesmo em escorço, a história da doente, história à qual assistíamos como se tivéssemos na mão o auscultador de um telefone e escutássemos a um só interlocutor. Eram as cenas de uma pobre operária que se prostituiu para viver e que, doente, se entrega à morfina; implicada em roubos, é julgada duas vezes e cumpre em Saint-Lazare, depois em Nanterre, a pena de um ano de prisão; cenas de família, cenas de oficina, cenas com amantes, horas de prosperidade passageiras, horas de miséria consecutivas, a vida em Saint-Lazare e Nanterre. Em janeiro de 1902, deixava a doente o asilo, a seu pedido; muito melhor, tinha engordado muito, dormia espontaneamente de noite, era ativa e trabalhava. Redigiu, a pedido nosso, uma nota expondo todos os incidentes da sua vida. Essa nota concordava com todas as informações que nos dera na hipnose, ao encontrar outra vez a sensibilidade cerebral.”
Os Annales des Sciences Psychiques, de março de 1906, registraram um caso interessante de amnésia em vigília, referido pelo Dr. Gilbert-Ballet, do hospital de Paris.
“Trata-se de um doente que, em conseqüência de um choque violento, esquecera completamente um trecho considerável de sua vida passada. Lembrava-se muito bem da infância e dos fatos muito remotos, mas se produzira uma lacuna para uma parte da sua existência mais próxima, e não podia lembrar-se dos acontecimentos passados durante esse período da vida. É a isto que se chama amnésia retrógrada. O doente chama-se Dada e tem 50 anos de idade, Desde o dia 4 até ao dia 7 de outubro precedente, operara-se em sua memória um vácuo absoluto. Empregado como jardineiro numa propriedade perto de Nevers, deixara os seus amos no dia 4, e no dia 7 achou-se, sem saber como, em Liège, junto às portas da exposição. De que maneira fez essa longa viagem? Ignora-o e, apesar de todos os esforços, não pôde conseguir a mínima recordação.”
Mas, eis que esse doente é mergulhado na hipnose e para logo se reconstituem todos os incidentes dessa viagem em suas menores particularidades, com a recordação das pessoas encontradas. O senhor Dada está na quarta crise de amnésia nervosa. Recorda-se, adormecido, daquilo que esquecera no estado de vigília, simplesmente porque se encontra de novo na condição anterior, isto é, no estado em que se achava no momento do ataque de amnésia. Esse caso põe-nos também no rastro das leis e condições que regem os fenômenos de renovação da memória das vidas anteriores.
Em resumo, todo estudo do homem terrestre fornece-nos a prova de que existem estados distintos da consciência e da personalidade. Vimos, na primeira parte desta obra, que a coexistência, em nós, de um “mental duplo”, cujas duas partes se juntam e fazem fusão na morte, é atestada não só pelo hipnotismo experimental, mas também por toda a evolução psíquica.
O simples fato dessa dualidade intelectual, considerada nas suas relações com o problema das reencarnações, explica-nos como toda uma parte do “eu”, com seu imenso cortejo de impressões e recordações antigas, pode ficar imersa na sombra durante a vida atual.
Sabemos que a telepatia, a clarividência e a previsão dos acontecimentos são poderes atinentes ao “eu” profundo e oculto. A sugestão facilita o seu exercício; é um apelo da vontade, um convite às almas fracas e incapazes para que saiam do cárcere e tornem temporariamente a entrar na posse das riquezas, das potências que nelas dormitam. Os passes magnéticos desfazem os laços que prendem a alma ao corpo físico, provocam o desprendimento. A partir daí começa a sugestão, pessoal ou estranha, a pôr-se em ação, a exercer-se com mais intensidade. Esse movimento não é somente aplicável ao despertar dos sentidos psíquicos; acabamos de ver que pode também reconstituir o encadeamento das recordações gravadas nas profundezas do ser.
Parece que, em certos casos excepcionais, essa ação pode exercer-se mesmo no estado de vigília. F. Myers [vi] fala da faculdade do “subliminal” de evocar estados emocionais desaparecidos da consciência normal e de reviver no passado. Esse fato, diz ele, encontra-se freqüentes vezes nos artistas, cujas emoções revivescidas podem exceder em intensidade as emoções originais.
O mesmo autor emite a opinião de que a teoria mais verossímil para explicar o gênio é a das reminiscências de Platão, com a condição de baseá-las nos dados científicos estabelecidos em nossos dias.[vii]
Esses mesmos fenômenos reaparecem com outra forma numa ordem de fatos já assinalados. São as impressões de pessoas que, depois de acidentadas, puderam escapar à morte. Por exemplo, afogados salvos antes da asfixia completa e outros que sofreram quedas graves. Muitos contam que, entre o momento em que caíram e aquele em que perderam os sentidos, todo o espetáculo de sua vida se lhes desenrolou no cérebro de maneira automática, em quadros sucessivos e retrógrados, com rapidez vertiginosa, acompanhados do sentimento moral do bem e do mal, assim como da consciência das responsabilidades em que incorreram.
Th. Ribot, líder do Positivismo francês, na sua obra Les Maladies de la Mémoire, cita numerosos fatos que estabelecem a possibilidade do despertar espontâneo, automático, de todas as cenas ou imagens que povoam a memória, particularmente em caso de acidente.
Lembremos, a esse respeito, o caso do almirante Beaufort, extraído do Journal de Médecine, de Paris.[viii] Ele caiu ao mar e perdeu, durante dois minutos, o sentido da consciência física. Bastou esse tempo à sua consciência transcendental para resumir toda a sua vida terrestre em quadros reduzidos de uma nitidez prodigiosa. Todos os seus atos, inclusive as causas, as circunstâncias contingentes e os efeitos, desfilaram em seu pensamento. Lembrava-se das próprias reflexões do momento sobre o bem e o mal que deles haviam resultado.
Apresentamos aqui um caso da mesma natureza, relatado pelo Sr. Cottin, aeronauta:
“Em sua última ascensão, o balão Le Montgolfier levava o Sr. Perron, presidente da Academia de Aerostação, como chefe, e F. Cottin, agente administrativo da Associação Científica Francesa.
Tendo subido de um salto, às 4:24 o balão elevou-se a 700 metros. Foi então que rebentou e começou a descer com velocidade maior do que aquela com que subira e às 4:27 afundou-se pela casa número 20 do beco do Cavaleiro, em Saint-Ouen. “Depois de ter atirado fora tudo quanto podia complicar a situação, diz-nos o Sr. Cottin,[ix] apossou-se de mim uma espécie de quietação, de inércia talvez; mil recordações remotas afluem, comprimem-se, chocam-se diante da minha imaginação; depois as coisas acentuam-se e o panorama de minha vida vem desenrolar-se diante do meu espírito atento. É tudo exato: os castelos no ar, as decepções, a luta pela existência; e tudo isso dentro do caixilho inexorável imposto pelo destino... Quem acreditará, por exemplo, que eu me tornei a ver, aos vinte anos, sargento no 22º de Linha?... Tornei a ver-me de mochila às costas na estrada de Vendôme. Em menos de três minutos vi desfilar toda a minha vida diante da memória.”
Podem explicar-se esses fenômenos por um princípio de exteriorização. Nesse estado, como na vida do espaço, a subconsciência une-se à consciência normal e reconstitui a consciência total, a plenitude do “eu”. Por um instante, restabelece-se a associação das idéias e dos fatos, reata-se a cadeia das recordações. Pode-se obter o mesmo resultado pela experimentação; mas, então, o sujet precisa ser auxiliado em suas pesquisas por uma vontade superior à dele em poder, que se lhe associa e lhe estimula os esforços. Nos fenômenos do transe é esse papel desempenhado ou pelo Espírito-guia ou pelo magnetizador, cujo pensamento atua sobre o sujet como uma alavanca.
As duas vontades, combinadas, sobrepostas, adquirem, então, uma intensidade de vibrações que põe em abalo as camadas mais profundas e mais ocultas do subconsciente.
*
Outro ponto essencial deve prender a nossa atenção. É o fato, estabelecido por toda a ciência fisiológica, de existir íntima correlação entre o físico e o mental do homem. A cada ação física corresponde um ato psíquico e vice-versa. Ambos são registrados ao mesmo tempo na memória subconsciente de tal maneira que um não pode ser evocado sem que surja imediatamente o outro. Essa concordância aplica-se aos menores fatos da nossa existência integral, tanto no que diz respeito ao presente, como no que toca aos episódios do passado mais remoto.
A compreensão desse fenômeno, pouco inteligível para os materialistas, é-nos facilitada pelo conhecimento do perispírito ou invólucro fluídico da alma. É nele que se gravam todas as nossas impressões, e não no organismo físico composto de matéria inconsistente, incessantemente variável nas suas células constitutivas.
O perispírito é o instrumento de precisão que aponta com fidelidade absoluta as menores variações da personalidade. Todas as volições do pensamento e todos os atos da inteligência têm nele a sua repercussão. Os seus movimentos e os seus estados vibratórios distintos deixam nele traços sucessivos e sobrepostos. Certos experimentadores compararam esse modo de registro a um cinematógrafo vivo sobre o qual se fixam sucessivamente nossas aquisições e recordações. Desenrolar-se-ia por uma espécie de empuxo ou abalo causado quer pela ação de uma sugestão, quer por uma auto-sugestão, ou então em conseqüência de um acidente, como vimos.
A influência do pensamento sobre o corpo já nos é revelada por fenômenos observáveis em nós mesmos e em volta de nós. O medo paralisa os movimentos; a admiração, a vergonha e o susto provocam a palidez ou o rubor; a angústia aperta-nos o coração, a dor profunda faz-nos correr as lágrimas e pode causar com o tempo uma depressão vital. Aí estão outras tantas provas manifestas da ação poderosa da força mental sobre o invólucro material.
O Hipnotismo, desenvolvendo a sensibilidade do ser, demonstra-nos ainda com maior nitidez a ação reflexa do pensamento.
Vimos que a sugestão de uma queimadura pode produzir num sujet tantas desordens como a própria queimadura. Provoca-se, à vontade, a aparição de chagas, estigmas, etc.[x]
Se o pensamento e a vontade podem exercer tal influência sobre a matéria corporal, compreender-se-á que essa influência seja ainda maior e produza efeitos mais intensos quando for aplicada à matéria fluídica, imponderável, de que o perispírito é formado. Menos densa, menos compacta que a matéria física, obedecerá com muito mais flexibilidade, mais docilidade, às menores volições do pensamento. É em virtude dessa lei que os Espíritos podem aparecer com qualquer das formas que revestiram no passado e com todos os atributos da individualidade extinta. Basta-lhes pensarem com vigor numa fase qualquer das suas existências para se mostrarem aos videntes, tais quais eram na época evocada em sua memória; e, embora a força psíquica necessária lhes seja fornecida em pequena quantidade por um ou mais médiuns, as materializações tornam-se possíveis.
O Coronel de Rochas, conseguindo, em suas experiências, insular o corpo fluídico, demonstrou ser ele a sede da sensibilidade e das recordações.[xi] O Hipnotismo e a Fisiologia combinados permitem-nos, de ora em diante, estudar a ação da alma despida do seu invólucro grosseiro e unida ao corpo sutil; não tardarão em ministrar-nos os meios de elucidarmos os mais delicados problemas do ser. A experimentação psíquica encerra a chave de todos os fenômenos da vida; está destinada a renovar inteiramente a ciência moderna, lançando luz viva sobre grande número de questões obscuras até ao presente.
Vamos ver agora, nos fenômenos hipnóticos e particularmente no transe, que as impressões registradas pelo corpo fluídico de maneira indelével formam íntimas associações. As impressões físicas estão ligadas às impressões morais e intelectuais, de tal modo que não é possível chamar umas sem aparecerem as outras. A sua reaparição é sempre simultânea.
Essa íntima correlação do físico e do moral, na sua aplicação às lembranças gravadas em nós, é demonstrada por experiências numerosas. Citemos primeiro as de sábios positivistas, que, apesar de suas prevenções a respeito de toda teoria nova, a confirmam sem darem por isso.
Pierre Janet, professor de Fisiologia na Sorbonne, expõe os fatos que se seguem.[xii] As experiências são feitas em seu sujet, Rosa, adormecido:
“Sugiro a Rosa que não estamos em 1888, mas em 1886, no mês de abril, para verificar simplesmente modificações de sensibilidade que poderiam produzir-se; mas, nisso, produz-se um acidente muito singular. Ela geme, queixa-se de estar cansada e de não poder andar.
– Então, que é que tem? – pergunto-lhe.
– Oh! não é nada... Em que estado me acho!
– Que estado?
Responde-me com um gesto. O ventre crescera-lhe de repente e distendera-se por um acesso súbito de timpanite histérica. Sem saber, eu a transportara a um período da sua vida, em que ela estava grávida.
Estudos mais interessantes foram feitos em Maria por esse meio. Pude, fazendo-a voltar sucessivamente a diferentes períodos da sua existência, verificar todos os diversos estados da sensibilidade pelos quais ela passou e as causas de todas as modificações. Assim, está agora completamente cega do olho esquerdo e pretende que assim se encontra desde que nasceu. Fazendo-a voltar à idade de sete anos, verifica-se que padece ainda anestesia no olho esquerdo; mas, se lhe sugerir que tem seis anos, nota-se que vê bem com ambos os olhos e pode-se determinar a época e as circunstâncias bem curiosas em que perdeu a sensibilidade do olho esquerdo. A memória realizou automaticamente um estado de saúde do qual o sujet julgava não haver conservado nenhuma recordação.”
*
A possibilidade de despertar na consciência de um sujet em estado de transe as recordações esquecidas de sua infância conduz-nos, logicamente, à renovação das recordações anteriores ao nascimento. Essa ordem de fatos foi pela primeira vez assinalada no Congresso Espírita de Paris, em 1900, por experimentadores espanhóis. Fazemos um extrato do relatório lido na sessão de 25 de setembro:[xiii]
“Entrando o médium em sono profundo por meio de passes magnéticos, Fernandez Colavida, presidente do Grupo de Estudos Psíquicas de Barcelona, ordenou-lhe que dissesse o que tinha feito na véspera, na antevéspera, uma semana, um mês, um ano antes e, sucessivamente, fê-lo remontar até à infância e descrevê-la com todos os pormenores.
Sempre impulsionado pela mesma vontade, o médium contou a sua vida no espaço, a sua morte na última encarnação e, continuamente estimulado, chegou até quatro encarnações, a mais antiga das quais era uma existência inteiramente selvagem. Em cada existência, as feições do médium mudavam de expressão. Para trazê-lo ao estado habitual, fez-se com que voltasse gradualmente até à sua existência atual; depois foi despertado.
Algum tempo depois, de improviso, com o intento de contraprova, o experimentador fez magnetizar o mesmo paciente por outra pessoa, sugerindo-lhe que as suas precedentes descrições eram histórias. Sem embargo da sugestão, o médium reproduziu a série das quatro existências como o fizera antes. O despertar das recordações e o seu encadeamento foram idênticos aos resultados obtidos na primeira experiência.”
Na mesma sessão desse Congresso, Esteve Marata, presidente da União Espírita de Catalunha, declara ter obtido fatos análogos pelos mesmos processos, sendo paciente, em estado de sono magnético, sua própria esposa. A propósito de uma mensagem dada por um Espírito e que tinha relação com uma das vidas passadas do sujet, ele pôde despertar, na consciência dela, os vestígios das suas existências anteriores.
Desde então têm sido essas experiências tentadas em muitos centros de estudo. Têm-se obtido assim numerosas indicações a respeito das vidas sucessivas da alma; essas experiências hão de provavelmente multiplicar-se a cada dia. Notemos, entretanto, que elas reclamam grande prudência. Os erros e as fraudes são fáceis; são de recear perigos. O experimentador deve escolher pacientes muito sensíveis e bem desenvolvidos, necessita ser assistido por um Espírito bastante poderoso para afastar todas as influências estranhas, todas as causas de perturbação e preservar o médium de acidentes possíveis, o mais grave dos quais seria a separação completa, irremediável, a impossibilidade de compelir o Espírito a retomar o corpo, o que ocasionaria a separação definitiva, a morte.
É necessário, principalmente, precatar-se contra os excessos da auto-sugestão e aceitar somente as descrições dentro dos limites em que é possível examiná-las, verificá-las; exigir nomes, datas, pontos de referência, numa palavra, um conjunto de provas que apresentem caráter realmente positivo e científico. Seria bom imitar nesse ponto o exemplo dado pela Sociedade de Investigações Psíquicas de Londres e adotar métodos precisos e rigorosos, por exemplo, os que granjearam uma grande autoridade para os seus trabalhos sobre Telepatia.
A falta de precaução e a inobservância das regras mais elementares da experimentação fizeram das incorporações de Hélène Smith um caso obscuro e cheio de dificuldades.
Não obstante, no meio da confusão dos fatos apontados pelo Sr. Th. Flournoy, professor na Universidade de Genebra, entendemos que se deve reter o fenômeno da princesa hindu Simandini. Essa médium, no estado de transe, reproduz as cenas de uma das suas existências ocorridas na Índia, no século XII. Nesse estado, serve-se freqüentes vezes de palavras sânscritas, língua que ela ignora no estado normal; dá, sobre personagens históricas hindus, indicações que não se encontram em nenhuma obra usual. A confirmação dessas indicações é descoberta pelo Sr. Th. Flournoy, depois de muitas investigações, na obra de Marlès, historiador pouco conhecido e inteiramente fora do alcance do sujet. Hélène Smith, no sono sonambúlico, toma uma atitude impressionante. Extratamos o que diz Flournoy num livro que teve grande voga:[xiv]
“Há em todo o ser, na expressão da sua fisionomia, em seus movimentos, no timbre da voz, quando fala ou canta em indostânico, uma graça indolente, um abandono, uma doçura melancólica, um quê de langoroso e sedutor que corresponde ao caráter do Oriente.
Toda a mímica de Hélène, tão vária, e o falar exótico, ambos têm tal cunho de originalidade, de facilidade, de naturalidade, que se pergunta com estupefação donde vem a essa filha das margens do Lemano, sem educação artística nem conhecimentos especiais do Oriente, uma perfeição de jogo cênico à qual, sem dúvida, a melhor atriz só chegaria à custa de estudos prolongados ou de uma estada nas margens do Ganges.”
Quanto à escrita e à linguagem indostânica empregadas por Hélène, o Sr. Flournoy acrescenta que, nas investigações que fez para averiguar donde lhe vinha tal conhecimento, “todas as tentativas falharam”.
Nós mesmos pudemos observar, durante muitos anos, casos semelhantes ao de Hélène Smith. Um dos médiuns do grupo, cujos trabalhos dirigíamos, reproduzia no transe, sob a influência do Espírito-guia, cenas das suas diferentes existências. A princípio, foram as da vida atual no período infantil com expressões características e emoções juvenis; depois, vieram episódios de vidas remotas com jogos de fisionomia, atitudes, movimentos, reminiscências de expressões da meia-idade, um conjunto completo de detalhes psicológicos e automáticos muito diferentes dos costumes atuais da dama, senhora muito honesta e incapaz de fingimento algum, pela qual obtínhamos esses estranhos fenômenos.
O coronel A. de Rochas, antigo administrador da Escola Politécnica, ocupou-se muito desse gênero de experiências. Apesar das objeções que elas podem suscitar, cremos dever relatar algumas de suas experiências. Vamos dizer o porquê.
A princípio, tornamos a encontrar em todos os fatos da mesma ordem, provocados pelo Sr. de Rochas, a correlação do físico e do mental que já assinalamos e que parece ser a expressão de uma lei. As reminiscências anteriores ao nascimento produzem, no organismo dos pacientes adormecidos, efeitos materiais verificados por todos os assistentes, muitos dos quais eram médicos. Ora, ainda que se leve em conta o papel que nessas experiências pode representar a imaginação dos sujets; ainda que se levem em conta os arabescos que ela borda em torno do fato principal, é tanto mais difícil se atribuírem esses efeitos a simples fantasias dos sujets quando, segundo as próprias expressões do coronel, “se tem plena certeza da sua boa-fé e de que as suas revelações são acompanhadas de característicos somáticos que parecem provar, de maneira absoluta, a sua realidade”.[xv]
Damos a palavra ao Coronel de Rochas:[xvi]
“Há muito tempo se sabia que, em certas circunstâncias, notadamente quando se está para morrer, recordações, desde muito tempo em olvido, sucedem-se com extrema rapidez no espírito de algumas pessoas, como se diante da sua vista se desenrolassem os quadros de toda a sua vida.
Determinei experimentalmente um fenômeno análogo em sujets magnetizados, com a diferença de que, em vez de revocar simples recordações, faço tomar aos pacientes os estados de alma correspondentes às idades a que os reconduzo, com esquecimento de tudo o que é posterior a essas épocas. Essas transformações operam-se por meio de passes longitudinais, que têm, de ordinário, por efeito tornar mais profundo o sono magnético. As mudanças de personalidade, se assim se podem chamar os diferentes estados de um mesmo indivíduo, sucedem-se, invariavelmente, segundo a ordem dos tempos, fazendo-o voltar ao passado quando se empregam passes longitudinais, para tornar na mesma ordem, ao presente, quando se recorre aos passes transversais ou despertadores. Enquanto o paciente não volta ao estado normal, apresenta insensibilidade cutânea. Podem precipitar-se as transformações com o auxílio da sugestão, mas é preciso percorrer sempre as mesmas fases e não proceder com muita pressa. Não se observando esta condição, provocam-se os gemidos do sujet, que se queixa de que o torturam e de que não pode seguir-vos.
Quando fiz os primeiros ensaios, parava logo que o paciente, transportado à primeira infância, já não me sabia responder; pensava não ser possível ir mais longe. Entretanto, tentei um dia tornar mais profundo o sono, continuando os passes, e grande foi a minha admiração quando, interrogando o dormente, me achei na presença de outra personalidade, que dizia ser a alma de um morto que usara tal nome e vivera em tal país. Parecia assim abrir-se novo caminho. Continuando os passes no mesmo sentido, fiz reviver o morto e esse ressuscitado percorreu toda a sua vida precedente, remontando o curso do tempo. Aqui não eram, tampouco, simples recordações que eu despertava, mas sucessivos estados de alma que fazia reaparecer.
À medida que repetia as experiências, essa viagem pelo passado efetuava-se cada vez com mais rapidez, passando sempre exatamente pelas mesmas fases, de maneira que pude assim remontar a muitas existências anteriores sem haver demasiada fadiga para o paciente e para mim. Todos os sujets, quaisquer que fossem as suas opiniões no estado de vigília, apresentavam o espetáculo de uma série de individualidades cada vez menos adiantadas moralmente, à medida que se remontava o curso das idades. Em cada existência expiava-se, por uma espécie de pena de talião, as faltas da existência precedente e o tempo que separava duas encarnações passava-se num meio mais ou menos luminoso, segundo o estado de adiantamento do indivíduo.
Passes despertadores faziam o sujet voltar ao estado normal, percorrendo as mesmas etapas, exatamente na ordem inversa.
Quando verifiquei por mim mesmo e por outros experimentadores, operando em outras cidades com outros sujets, que não se tratava de simples sonhos que pudessem provir de causas fortuitas, mas de uma série de fenômenos, apresentados de maneira regular com todos os característicos aparentes de uma visão no passado ou no futuro, pus todos os meus cuidados em investigar se essa visão correspondia à realidade.”
O resultado das inquirições a que procedeu o Coronel de Rochas não o satisfez inteiramente, o que não o impediu de concluir nestes termos:[xvii]
“É certo que por meio de operações magnéticas se pode, progressivamente, trazer a maior parte dos sensitivos a épocas anteriores à sua vida atual, com as particularidades intelectuais e fisiológicas características dessas épocas, e isso até o momento de seu nascimento. Não são lembranças que se acordam; são estados sucessivos da personalidade que são evocados; essas evocações se produzem sempre na mesma ordem e através de uma sucessão de letargias e estados sonambúlicos.
Também é certo que, continuando essas operações magnéticas, além do nascimento, e sem haver necessidade de recorrer-se às sugestões, faz-se passar o sujet por estados análogos correspondentes às encarnações precedentes e aos intervalos que separam essas encarnações. O processo é o mesmo, através das sucessões de letargias e estados sonambúlicos.”
As concordâncias, convém repeti-lo, que existem entre os fatos verificados por sábios materialistas hostis ao princípio das vidas sucessivas, tais como Pierre Janet, o Dr. Pitre, o Dr. Burot, etc., e os relatados pelo Coronel de Rochas, demonstram que há nesses fatos mais do que sonhos ou romances “subliminais”; há uma lei de correlação que merece estudo atento e continuado. Por isso pareceu-nos conveniente insistir sobre esses fatos.
Em primeiro lugar, convém mencionar uma série de experiências feitas em Paris com Laurent V..., rapaz de 20 anos, que cursava o grau de licenciando em Filosofia. Os resultados foram publicados em 1895 nos Annales des Sciences Psychiques. O Sr. de Rochas resumiu-os assim:[xviii]
“Tendo verificado que era sensitivo, quisera, por sua própria vontade, compreender a razão dos efeitos fisiológicos e psicológicos que poderiam ser obtidos por meio do magnetismo.
Descobri casualmente que, adormecendo-o por meio de passes longitudinais, trazia-o a estados de consciência e de desenvolvimento intelectual correspondentes a idades cada vez menos adiantadas; passava, assim, sucessivamente a aluno de Retórica, de segunda, de terceira classe, etc., já nada sabendo do que se ensinava nas classes superiores. Acabei por levá-lo ao tempo em que aprendia a ler e deu-me, acerca da sua mestra e dos seus companheirozinhos de escola, particularidades que esquecera completamente na vigília, mas cuja exatidão me foi confirmada por sua mãe.
Alternando os passes adormecedores e os passes despertadores, fazia-o subir ou descer, à minha vontade, pelo curso de sua vida.”
Com os fatos que se vão seguir, vai dilatar-se o círculo dos fenômenos. Acrescenta o Coronel:
“Há muito pouco tempo encontrei em Grenoble e Voiron três sujets que possuíam faculdades semelhantes, cuja realidade pude igualmente verificar. Vindo-me a idéia de continuar os passes adormecedores depois de tê-los levado à mais tenra infância e os passes despertadores depois de tê-los reconduzido à sua idade atual, fiquei muito admirado de ouvi-los narrar sucessivamente todos os acontecimentos de suas existências pretéritas, passando pela descrição do seu estado entre duas existências. As indicações, que não variavam nunca, eram de tal modo categóricas que pude fazer indagações. De fato verifiquei, assim, a existência real dos nomes, dos lugares e de famílias que entravam nas suas narrativas, posto que, no estado de vigília, de nada se recordassem; mas não pude achar nos documentos do estado civil vestígio algum das personagens obscuras que eles teriam vivido.”
Extraímos outras minúcias complementares de um estudo do Sr. de Rochas, mais extenso que o precedente:[xix]
“Esses sujets não se conheciam. Uma, chamada Josefina, conta 18 anos, habita em Voiron e não é casada; a outra, Eugênia, tem 35 anos e vive em Grenoble; é viúva, tem dois filhos e é de natureza apática, muito franca e pouco curiosa; ambas têm boa saúde e procedimento regular. Pude, em virtude de conhecer suas famílias, verificar a exatidão de suas revelações retrospectivas em um sem-número de circunstâncias que nenhum interesse teriam para o leitor. Citarei somente algumas relativas a Eugênia, para dar-lhes uma idéia a tal respeito; são extratos das atas das nossas sessões com o Dr. Bordier, diretor da Escola de Medicina de Grenoble.
Adormecida, transporto-a a alguns anos antes, vejo uma lágrima sobre os olhos; diz-me que tem 20 anos e que acaba de perder um filho.
... Continuação dos passes. Sobressalto brusco com grito de pavor; viu aparecerem ao seu lado os fantasmas da avó e de uma tia, falecidas havia pouco tempo. (Essa aparição, que se deu na idade a que a levei, causara-lhe impressão muito profunda.)
... Ei-la agora com onze anos. Vai à primeira comunhão; os seus pecados mais graves são ter desobedecido algumas vezes à vovó e, principalmente, ter tirado um soldo do bolso do papai; teve muita vergonha e pediu perdão.
... Aos nove anos – Sua mãe morreu há oito dias; é grande a sua dor. Seu pai, tintureiro em Vinay, acaba de mandá-la para a casa do avô, em Grenoble, para aprender a coser.
... Aos seis anos – Anda na escola em Vinay e já sabe escrever bem.
... Aos quatro anos – Quando não está na escola, cuida da irmãzinha; começa a fazer riscos e a escrever algumas letras.
Passes transversais, despertando-a, fazem-na passar exatamente pelas mesmas fases e pelos mesmos estados de alma.”
O Coronel faz experiências sobre o que ele chama o “instinto do pudor”, em diferentes fases do sono. Levanta um pouco o vestido de Eugênia, que, de cada vez, o abaixa com vivacidade ou dá-lhe sopapos. “Quando pequena, não reage contra esse procedimento; o pudor não acordou ainda.”
“Josefina, em Voiron, apresentou os mesmos fenômenos relativamente ao instinto do pudor e à escrita em diferentes idades. (Seguem-se cinco espécimes mostrando o progresso de sua instrução, dos 4 aos 16 anos.)
Até agora temos caminhado em terreno firme; observamos um fenômeno fisiológico de difícil explicação, mas que numerosas experiências e observações permitem considerar como certo. Vamos agora entrever horizontes novos.
Deixamos Eugênia como criancinha amamentada por sua mãe. Tornando-lhe mais profundo o sono, determinei uma mudança de personalidade. Já não estava viva; flutuava numa semi-obscuridade, não tendo pensamento, nem necessidade, nem comunicação com ninguém. Depois, recordações ainda mais remotas.
Fora antes uma menina, falecida muito novinha, de febre causada pela dentição; vê os pais chorando em volta de seu corpo, do qual ela separou-se muito depressa.
Procedi depois ao despertar, fazendo os passes transversais. Enquanto desperta, percorre em sentido inverso todas as fases assinaladas precedentemente e dá-me novos pormenores provocados pelas minhas perguntas. Algum tempo antes da última encarnação, sentiu que devia reviver em certa família; aproximou-se da que devia ser sua mãe e que acabava de conceber...
Entrou pouco a pouco, “por baforadas”, no pequenino corpo. Até aos sete anos viveu, em parte, fora desse corpo carnal, que ela via, nos primeiros meses de sua vida, como se estivesse colocada fora dele. Não distinguia bem, então, os objetos materiais que a cercavam, mas, em compensação, percebia Espíritos flutuando em derredor. Uns, muito brilhantes, protegiam-na contra outros, escuros e malfazejos, que procuravam influenciar-lhe o corpo físico. Quando o conseguiam, provocavam aqueles acessos de raiva, a que as mães chamam manhas.”
Seguem-se longos pormenores, muito interessantes, sobre outras existências da personalidade, que fora em último lugar Josefina; e o Sr. de Rochas termina assim:
“Em Voiron tenho por espectadora habitual das minhas experiências uma menina de espírito muito circunspeto, muito refletido, e de modo nenhum sugestionável, a Srta. Luisa, que possui em muito alto grau a propriedade (relativamente comum em grau menor) de perceber os eflúvios humanos e, por conseguinte, o corpo fluídico. Quando Josefina aviva a memória do passado, observa-se-lhe em volta uma aura luminosa percebida por Luisa; ora, essa aura torna-se, aos olhos de Luisa, escura, quando Josefina se acha na fase que separa duas existências. Em todos os casos Josefina reage vivamente quando toco em pontos do espaço onde Luisa diz perceber a aura, quer seja luminosa ou sombria.
É muito difícil conceber como ações mecânicas, quais as dos passes, determinam o fenômeno da regressão da memória de maneira absolutamente certa até um momento determinado, e como essas ações, continuadas exatamente da mesma forma, mudam bruscamente, nesse momento, o seu efeito, para somente originarem alucinações.”
*
Nada acrescentaremos a tais comentários, com receio de enfraquecê-los. Preferimos passar sem transição a outra série de experiências do Sr. de Rochas, feitas em Aix-en-Provence, experiências relatadas, sessão por sessão, nos Annales des Sciences Psychiques, de julho de 1905.[xx]
É sujet uma jovem de 18 anos, que goza de saúde perfeita e que nunca ouviu falar de magnetismo nem de Espiritismo. A Srta. Marie Mayo é filha de um engenheiro francês falecido no Oriente; foi educada em Beirute, onde fora confiada aos cuidados de criados indígenas; estava aprendendo a ler e escrever em árabe. Foi, depois, reconduzida à França e habita Aix, com uma tia.
As sessões tinham como testemunhas o Dr. Bertrand, antigo presidente da Câmara Municipal de Aix, médico da família, e o Sr. Lacoste, engenheiro, a quem se deve a redação da maior parte das atas. Essas sessões foram em grande número. A enumeração dos fatos ocupa 50 páginas dos Annales. As primeiras experiências, empreendidas durante o mês de dezembro de 1904, têm por objeto a renovação das recordações da vida atual. A paciente, imersa na hipnose pela vontade do coronel, retrocede gradualmente ao passado e revive as cenas da sua infância; dá, em diferentes idades, espécimes de sua letra, que se podem examinar. Aos 8 anos escreve em árabe e traça caracteres que depois esqueceu.
Obtém-se, a seguir, a renovação das vidas anteriores. Alternadamente, subindo o curso de suas existências à época atual, o sujet, sob o império dos processos magnéticos que indicamos, passa e torna a passar pelas mesmas fases, na mesma ordem, direta ou retrógrada, com uma morosidade, diz o coronel, “que torna as explorações difíceis para além de certo número de vidas e de personalidades”.
Não é possível o fingimento. Mayo atravessa os diferentes estados hipnóticos e, em cada um, manifesta os sintomas que o caracterizam. O Dr. Bertrand verifica repetidas vezes a catalepsia, a contratura, a insensibilidade completa. Mayo passa a mão por cima da chama de uma vela sem a sentir. “Não tem nenhuma sensibilidade para o amoníaco; os olhos não reagem à luz; a pupila não é impressionada por um candeeiro ou vela que se lhe apresente de súbito muito perto da vista ou que rapidamente se retire”.[xxi] Em compensação, acentua-se a sensibilidade a distância, o que demonstra, com toda a evidência, o fenômeno da exteriorização. Citemos as atas:
“Faço subir Mayo o curso dos anos; ela, desse modo, vai até à época do seu nascimento. Fazendo-a chegar mais longe ainda, lembra-se de que já viveu, de que se chamava Line, de que morreu afogada, de que se elevou depois ao ar, de que viu seres luminosos; mas, que não lhe fora permitido falar-lhes. Além da vida de Line, torna a encontrar-se outra vez na erraticidade, mas num estado muito penoso; porque antes havia sido um homem “que não fora bom”.
Nessa encarnação chamava-se Charles Mauville. Estreou-se na vida pública como empregado num escritório em Paris. Havia, então, contínuos combates na rua. Ele mesmo matou gente e nisso tinha prazer, era mau. Cortavam-se as cabeças nas praças.
Aos cinqüenta anos deixou o escritório, está doente (tosse) e não tarda a morrer. Pode seguir o seu enterro e ouvir gente dizer: “Aquele foi um estróina a valer.” Sofre, é infeliz. Afinal, passa para o corpo de Line.
Outras sessões reconstituem a existência de Line, a bretã. “Retardo os passes quando chego à época de sua morte; a respiração torna-se então entrecortada; o corpo balouça-se como levado pelas vagas e ela apresenta sufocações.”
Sessão de 29 de dezembro de 1904 – O Sr. de Rochas ordena: “Torna a ser Line... no momento em que se afoga.” Imediatamente, Mayo faz um movimento brusco na poltrona; vira-se para o lado direito com o rosto nas mãos e fica assim alguns segundos. Dir-se-ia ser uma primeira fase do ato que é executado voluntariamente, porque, se Line morreu afogada, é um afogamento voluntário, um suicídio, o que dá à cena aspecto inteiramente particular, bem diferente de um afogamento involuntário.
Depois, Mayo vira-se bruscamente para o lado esquerdo. Os movimentos respiratórios precipitam-se e tornam-se difíceis; o peito levanta-se com esforço e irregularidade; o rosto exprime ansiedade, angústia; os olhos estão espantados; faz verdadeiros movimentos de deglutição, como se engolisse água, mas contra sua vontade, porque se vê que resiste; nesse momento dá alguns gritos inarticulados; torce-se mais do que se debate e o rosto exprime sofrimento tão real que o Sr. de Rochas ordena-lhe que envelheça algumas horas. Depois, pergunta-lhe:
– Debateste-te por muito tempo?
– Debati-me.
– E uma morte má?
– É.
– Onde estás?
– No escuro.
30 de dezembro de 1904 – Existência de Ch. Mauville. Mayo descreve uma das fases da doença que o mata; parece passar pelos sintomas característicos das moléstias do peito; opressão, acessos de tosse penosos; morre e assiste ao seu funeral.
– Havia muita gente no acompanhamento?
– Não.
– Que diziam de ti? Não diziam bem, não é verdade? Recordavam que tinhas sido um homem mau?
(Depois de hesitar, e baixinho:) – Sim.
Em seguida está no “escuro”; o Coronel faz com que o atravesse rapidamente e ela reencarna na Bretanha. Vê-se menina, depois donzela, tem 16 anos e não conhece ainda seu futuro marido; aos 18 anos encontra aquele que o há de ser, casa-se pouco depois e vem a ser mãe. Assistimos então a uma cena de parto de realismo surpreendente.[xxii] A paciente revolve-se na cadeira, os membros inteiriçam-se, o rosto contrai-se e os seus sofrimentos parecem tão intensos que o Coronel lhe ordena que os passe com rapidez.
Tem agora 22 anos, perdeu o marido num naufrágio e seu filhinho morreu. Desesperada, afoga-se. Esse episódio, que ela já reproduziu em outra sessão, é tão doloroso que o Coronel prescreve-lhe que passe além, o que ela faz, mas não sem experimentar violento abalo. No “escuro” em que se vê depois, não sofre, como dissemos, quanto sofrera no “escuro” depois da morte de Ch. Mauville; reencarna na sua família atual e volta à idade que tem. A mudança é operada por meio dos passes magnéticos transversais.”
31 de dezembro de 1904 – “Proponho-me, nessa sessão, obter alguns novos pormenores a respeito da personalidade de Charles Mauville e tratar de fazer chegar Mayo até uma vida precedente. Torno, portanto, rapidamente, mais profundo o sono, empregando passes longitudinais, até à infância de Mauville. No momento em que o interrogo, tem 5 anos. O pai é contramestre numa manufatura, a mãe traja de preto e tem na cabeça uma touca. Continuo a tornar o sono mais profundo.
Antes de nascer está na “escuridão”. Sofre. Anteriormente fora uma dama casada com um gentil-homem da Corte de Luis XIV; chamava-se Madeleine de Saint-Marc.
Informações da vida dessa senhora: conheceu a Senhorita de La Vallière, que lhe era simpática; mal conhece a Sra. de Montespan, e a Sra. de Maintenon desagrada-lhe.
– Diz-se que o rei desposou-a secretamente?
– Qual! É simplesmente amante dele.
– E qual é a sua opinião a respeito do rei?
– E um orgulhoso.
– Conhece Scarron?
– Santo Deus! Que feio ele é!
– Viu representar Molière?
– Vi, mas não gosto muito dele.
– Conhece Corneille?
– É um selvagem.
– E Racine?
– Conheço principalmente as suas obras e tenho-as em grande conta.[xxiii]
Proponho-lhe fazê-la envelhecer para que veja o que lhe sucederá mais tarde. Recusa formal. Debalde ordeno imperiosamente; não consigo vencer a sua resistência senão com emprego de passes transversais enérgicos, aos quais procura por todos os meios esquivar-se.
No momento em que eu paro, ela tem 40; deixou a Corte; tosse e sente-se doente do peito. Faço-a falar a respeito do seu caráter; confessa que é egoísta e ciumenta, que tem ciúmes principalmente das mulheres bonitas.
Continuando os passes transversais, faço-a chegar aos 45 anos, idade em que morre de tuberculose pulmonar. Assisto a uma agonia curta e ela entra na escuridão. Desperta sem demora pela continuação rápida dos passes transversais.”
19 de janeiro de 1905 – “Três existências sucessivas. Primeiramente, Madeleine de Saint-Marc. Mayo reproduz os últimos momentos da sua vida.
Ao cabo de alguns momentos, tosse, um verdadeiro acesso... depois morre... e compreende-se pelos seus movimentos e atitude que está sofrendo; depois volta a ser Charles Mauville; passado um instante, tosse outra vez. (O Sr. de Rochas lembra-se de que Charles Mauville morreu com doença do peito, próximo aos 50 anos, como morrera Madeleine.) Charles Mauville morre...
Passados alguns instantes, ela, sob a influência dos passes transversais, é outra vez Line na época da sua gravidez; depois chora, torce-se, agarra-se à sobrecasaca do Sr. De Rochas; os seios apresentam na realidade volume maior que de ordinário (todos o verificamos). Line tem verdadeiras dores; de repente sossega. – Está pronto; a criancinha nasceu. – Line teve o seu bom sucesso... Depois chora; o marido está a morrer...; chora mais... e, de repente, com muita rapidez, debate-se, suspira, afoga-se... e entra no escuro.
Passa, finalmente, para o corpo de Mayo e chega progressivamente até aos 18 anos. O Sr. de Rochas desperta-a completamente.”
*
Paremos um instante para considerar o conjunto desses fatos, procurar as garantias de autenticidade que apresentam e deduzir os ensinamentos que deles derivam.
Há, logo de princípio, uma coisa que nos causa forte impressão. É, em cada vida renovada, a repetição constante, no decurso de sessões múltiplas, dos mesmos acontecimentos, na mesma ordem, quer ascendentes, quer descendentes, de modo espontâneo, sem hesitação, erro ou confusão.[xxiv] Vem, depois, a comprovação unânime dos experimentadores na Espanha, em Genebra, Grenoble, Aix, etc., verificação que, pessoalmente, pude fazer sempre que observei fenômenos desse gênero. Em cada nova existência que se desenrola, a atitude, o gesto, a linguagem do sujet mudam; a expressão do olhar difere, tornando-se mais dura, mais selvagem, à medida que se recua na ordem dos tempos.
Assiste-se à exumação de um complexo de vistas, de preconceitos, de crenças, em relação com a época e o meio em que essa existência se passou. Quando o sujet, sempre uma mulher nos casos retro indicados,[xxv] passa por uma encarnação masculina, a fisionomia é inteiramente outra, a voz é mais forte, o tom mais elevado, os modos afetam uma tal ou qual rudeza. Não são menos distintas as diferenças, quando é um período infantil que se atravessa.
Os estados físicos e mentais encadeiam-se, ligam-se sempre numa conexidade íntima, completando-se uns pelos outros e sendo sempre inseparáveis. Cada recordação evocada, cada cena revivida mobiliza um cortejo de sensações e impressões, risonhas ou penosas, cômicas ou pungentes, segundo os casos, mas perfeitamente adequadas à situação.
A lei de correlação verificada por Pierre Janet, Th. Ribot, etc. encontra-se novamente aqui em todo o seu rigor, com precisão mecânica, tanto no que diz respeito às cenas da vida presente, quanto às que se relacionam com as anteriores. Essa correlação constante bastaria, por si só, para assegurar às duas ordens de recordações o mesmo caráter de probabilidade. Verificada, como foi, a exatidão das recordações, da existência atual nas suas fases primárias, apagadas na memória normal do sujet, o que, para umas, é uma prova de autenticidade, constitui igualmente forte presunção em prol das outras.
Por outro lado, os sujets reproduziram com uma fidelidade absoluta, com uma vivacidade de impressões e de sensações por forma alguma fictícias, cenas tão comoventes como complicadas; asfixia por submersão, agonias causadas pela tuberculose no último grau, caso de gravidez seguido de parto com toda a série dos fenômenos físicos correlatos – sufocações, dores, tumefação dos seios, etc.
Ora, esses sujets, quase todos moças de 16 a 18 anos, são, por natureza, muito tímidos e pouco versados em matéria científica. Por declaração dos próprios experimentadores, dos quais um é médico da família de Mayo, é notória a incapacidade deles para simularem cenas como essas; não possuem nenhum conhecimento de Fisiologia, ou de Patologia e, na sua existência atual, não foram testemunhas de nenhum incidente que pudesse ministrar-lhes indicações sobre fatos dessa ordem.[xxvi]
Todas essas considerações nos levam a afastar desconfianças de qualquer fraude, artifício ou hipótese de mera fantasia.
Que talento, que arte, que perfeição de atitude, de gesto, de acentuação não seria necessário despender de maneira contínua, durante tantas sessões, para imaginar e simular cenas tão realistas, às vezes dramáticas, na presença de experimentadores hábeis em desmascarar a impostura, de práticos sempre precavidos contra o erro ou o embuste? Tal papel não pode ser atribuído a jovens sem nenhuma experiência de vida, com instrução elementar mui limitada.
Outra coisa: no encadeamento dessas descrições, no destino dos seres que estão na tela da discussão, nas peripécias das suas existências, encontramos sempre confirmação da alta lei de causalidade ou de conseqüência dos atos, que rege o mundo moral. Decerto, não é possível ver nisso um reflexo das opiniões dos sujets, visto que, a tal respeito, nenhuma noção eles possuem, por não terem sido preparados de modo algum pelo meio em que viveram, nem pela educação que receberam, para o conhecimento das vidas sucessivas, como o atestam os observadores.[xxvii]
Evidentemente, muitos cépticos pensarão que esses fatos são ainda em mui pequeno número para que deles possa inferir uma teoria segura e conclusões decisivas. Dir-se-á que convém esperar para isso acumulação mais considerável de provas e de testemunhos; apresentar-nos-ão como objeção muitas experiências com aspecto suspeito, abundando em anacronismos, contradições, fatos apócrifos. Essas narrativas fantasistas produzem a viva impressão de que observadores benévolos tenham sido vítimas de ludíbrio, de mistificação. Qual é, porém, o dano que daí pode advir para as experiências sérias? Os abusos, os erros que aqui e ali se praticam não podem atingir os estudos feitos com precisão metódica e rigoroso espírito de exame.
Em resumo, temos para nós que os fatos relatados acima, juntos a muitos outros da mesma natureza, que seria supérfluo enumerar aqui, bastam para estabelecera existência, na base do edifício do “eu”, de uma espécie de cripta onde se amontoa uma imensa reserva de conhecimentos e de recordações. O longo passado do ser deixou aí seu rastro indelével que poderá, ele só, dizer-nos o segredo das origens e da evolução, o mistério profundo da natureza humana.
“Há – diz Herbert Spencer – dois processos de construção da consciência: a assimilação e a lembrança”; mas não se pode deixar de reconhecer que a consciência normal de que ele fala não é mais do que uma consciência precária e restrita, que vacila à borda dos abismos da alma, iluminando, como chama intermitente, um mundo oculto onde dormitam forças e imagens, em que se acumulam as impressões recolhidas desde o ponto inicial do ser. E tudo isso, oculto durante a vida pelo véu da carne, se manifesta no transe, sai da sombra com tanto mais nitidez quanto mais livre da matéria está a alma e maior é o grau de sua evolução.
*
Quanto às reservas feitas pelo Coronel de Rochas a propósito das inexatidões notadas por ele nas narrações dos hipnotizados no curso de suas investigações, devemos acrescentar: nada há que admirar quanto à possibilidade de ter havido erros, atendendo ao estado mental dos sujets e à quantidade – na hora atual – de elementos conhecidos e desconhecidos que entram em jogo nesses fenômenos tão novos para a ciência. Poderiam eles ser atribuídos a três causas diferentes – reminiscências diretas dos pacientes, visões, ou também sugestões provenientes do exterior. Quanto ao primeiro caso, notemos que, em todas as experiências que tenham por objetivo pôr em vibração as forças anímicas, o ser assemelha-se a um foco que se acende e aviva e que, na sua atividade, projeta vapores e fumo que, de quando em quando, encobrem a chama interior. Às vezes, em pacientes pouco desenvolvidos, pouco excitados, as recordações normais e as impressões recentes misturar-se-ão, por isso, com reminiscências afastadas. A habilidade dos experimentadores consistirá em saber separar esses elementos perturbadores, em dissipar as brumas e as sombras para restituírem ao foco central sua importância e seu brilho.
Poder-se-ia também ver nisso o resultado de sugestões exercidas pelos magnetizadores ou por personalidades estranhas. Eis o que, a esse respeito, diz o Coronel de Rochas:[xxviii]
“Essas sugestões não vêm certamente de mim, que não somente evitei tudo o que podia pôr o sujet em caminho determinado, mas que procurei muitas vezes, debalde, transviá-lo com sugestões diferentes; o mesmo sucedeu com outros experimentadores que se entregaram a esse estudo.
Provirão elas de idéias que, segundo a expressão popular, “andam no ar” e que atuam com mais força no espírito do paciente solto dos laços do corpo? Poderia bem ser isso, até certo ponto, porquanto se tem observado que todas as revelações dos extáticos se ressentem mais ou menos do meio em que viveram.
Serão devidas a entidades invisíveis que, querendo espalhar entre os homens a crença nas encarnações sucessivas, procedem como a Morale en action, com o auxílio de historiazinhas assinadas por pseudônimos para evitar as reivindicações entre vivos?
Consultados os invisíveis a tal respeito, por via medianímica, responderam:[xxix] “Quando o sujet não está suficientemente livre para ler em si mesmo a história do seu passado, podemos então proceder por quadros sucessivos que lhe reproduzem à vista as suas próprias existências. São, nesse caso, realmente visões e é por isso que nem sempre podem ser exatas. Em certos casos, pois, os pacientes não revivem as suas vidas. Comunicamos-lhes do Alto as informações que eles dão aos experimentadores e lhes sugerimos que sofram os efeitos das circunstâncias que descrevem.
Podemos iniciar-vos no vosso passado sem, contudo, precisarmos as datas e os lugares. Não esqueçais que, livres das convenções terrestres, deixa para nós de haver tempo e espaço. Vivendo fora desses limites, cometemos facilmente erros em tudo o que lhes diz respeito. Consideramos tudo isso como coisas mínimas e preferimos falar-vos dos vossos atos bons ou maus e de suas conseqüências. Se algumas datas, se alguns nomes não se encontrarem nos vossos arquivos, a conclusão para vós é que é tudo falso. Erro profundo do vosso julgamento. Grandes são as dificuldades para dar-vos conhecimentos tão exatos como o exigis; mas, crede-nos, não vos fatigueis nas vossas investigações. Não há estudo mais nobre do que esse. Não sentis que é belo difundir a luz? No entanto, infelizmente, no vosso planeta ainda há de passar muito tempo antes que as massas compreendam para que aurora se devem dirigir!”
Seria fácil acrescentarmos um grande número de fatos que têm ligação com a mesma ordem de averiguações.
O Príncipe Adam-Wisznievski, rua do Débarcadère 7, em Paris, comunica-nos a experiência narrada a seguir, feita pelas próprias testemunhas, algumas das quais vivem ainda e que só consentiram em ser designadas por iniciais:
“O Príncipe Galitzin, o Marquês de B..., o Conde de R... estavam reunidos, no verão de 1862, nas praias de Hamburgo.
Uma noite, depois de terem jantado muito tarde, passeavam no parque do Cassino e ali avistaram uma pobre deitada num banco. Depois de se chegarem a ela e a interrogarem, convidaram-na a vir cear no hotel. O Príncipe Galitzin, que era magnetizador, depois que ela ceou, o que fez com grande apetite, teve a idéia de magnetizá-la. Conseguiu-o à custa de grande número de passes. Qual não foi a admiração das pessoas presentes quando, profundamente adormecida, aquela que, em vigília, exprimia-se num arrevesado dialeto alemão, pôs-se a falar corretamente em francês, contando que reencarnara na pobreza por castigo, em conseqüência de haver cometido um crime na sua vida precedente, no século XVIII. Habitava, então, um castelo na Bretanha, à beira-mar. Por causa de um amante, quis livrar-se do marido e despenhou-o no mar, do alto de um rochedo; indicou o lugar do crime com grande exatidão.
Graças às suas indicações, o Príncipe Galitzin e o Marquês de B... puderam, mais tarde, dirigir-se à Bretanha, às costas do Norte, separadamente, e entregar-se a dois inquéritos, cujos resultados foram idênticos.
Havendo interrogado grande número de pessoas, não puderam, a princípio, colher informação alguma. Afinal encontraram uns camponeses já velhos que se lembravam de ter ouvido os pais contarem a história de uma jovem e bela castelã que assassinara o marido, mandando atirá-lo ao mar. Tudo o que a pobre de Hamburgo havia dito, no estado de sonambulismo, foi reconhecido exato.
O Príncipe Galitzin, regressando da França e passando por Hamburgo, interrogou o comissário de polícia a respeito dessa mulher. Esse funcionário declarou-lhe que ela era inteiramente falha de instrução, falava um dialeto vulgar alemão e vivia apenas de mesquinhos recursos, como mulher de soldados.”
A doutrina das vidas sucessivas, ensinada pelas grandes escolas filosóficas do passado e, em nossos dias, pelo espiritualismo kardequiano, recebe, é manifesto, por via dos trabalhos dos sábios e dos investigadores, umas vezes direta, outras indiretamente, novos e numerosos subsídios. Graças à experimentação, as profundezas mais recônditas da alma humana entreabrem-se e a nossa própria história parece reconstituir-se, da mesma forma que a Geologia pôde reconstituir a história do Globo, escavando-lhe os possantes suportes.
A questão está pendente ainda, é verdade; é preciso observar extrema reserva quanto às conclusões. Não obstante, apesar das obscuridades que subsistem, havemos considerado como um dever publicar esses fatos e experiências a fim de chamar para eles a atenção dos pensadores e provocar novas investigações. Só por esse modo é que a luz a pouco e pouco se fará completa acerca desse problema, como se fez acerca de tantos outros.
*
O esquecimento das existências anteriores é, em princípio, dissemos, uma das conseqüências da reencarnação; entretanto, não é absoluto esse esquecimento. Em muitas pessoas o passado renova-se em forma de impressões, senão de lembranças definidas. Essas impressões às vezes influenciam os nossos atos; são as que não vêm da educação, nem do meio, nem da hereditariedade. Nesse número podem classificar-se as simpatias e as antipatias repentinas, as intuições rápidas, as idéias inatas. Basta descermos a nós mesmos, estudarmo-nos com atenção, para tornarmos a encontrar em nossos gostos, em nossas tendências, em traços do nosso caráter, numerosos vestígios desse passado. Infelizmente, mui poucos de nós se entregam a esse exame com método e atenção.
Pode-se citar, ainda, em todas as épocas da História, um certo número de homens que, graças a disposições excepcionais do seu organismo psíquico, conservam recordações das suas vidas passadas. Para eles não era uma teoria a pluralidade das existências; era um fato de percepção direta. O testemunho desses homens assume importância considerável por terem ocupado na sociedade do seu tempo altas posições; quase todos, espíritos elevados, exerceram, na sua época, grande influência. A faculdade, muito rara, de que gozavam, era, sem dúvida, o fruto de uma evolução imensa. Estando o valor de um testemunho na razão direta da inteligência e inteireza da testemunha, não se podem passar em claro as afirmações desses homens, alguns dos quais trouxeram na cabeça a coroa do gênio.
É um fato bem conhecido que Pitágoras se recordava pelo menos de três das suas existências e dos nomes que em cada uma delas usava.[xxx] Declarava ter sido Hermótimo, Eufórbio e um dos Argonautas. Juliano, cognominado o Apóstata, tão caluniado pelos cristãos, mas que foi, na realidade, uma das grandes figuras da História Romana, recordava-se de ter sido Alexandre da Macedônia. Empédocles afirmava que, pelo que lhe dizia respeito, “recordava-se de ter sido rapaz e rapariga”.[xxxi]
Na opinião de Herder (Dialogues sur la Métempsycose), devem ajuntar-se a esses nomes os de Yarcas e de Apolônio de Tiana.
Na Idade Média tornamos a encontrar a mesma faculdade em Gerolamo Cardano.
Entre os modernos, Lamartine declara, no seu livro Voyage en Orient, ter tido reminiscências muito claras de um passado longínquo. Transcrevamos o seu testemunho
“Na Judéia eu não tinha Bíblia nem livro de viagem; ninguém que me desse o nome dos lugares e o nome antigo dos vales e dos montes. Não obstante, reconheci, sem demora,o vale de Terebinto e o campo de batalha de Saul. Quando estivemos no convento, os padres confirmaram-me a exatidão das minhas descobertas. Os meus companheiros recusavam acreditá-lo. Do mesmo modo, em Séfora, apontara com o dedo e designara pelo nome uma colina que tinha no alto um castelo arruinado, como o lugar provável do nascimento da Virgem. No dia seguinte, no sopé de um monte árido, reconheci o túmulo dos Macabeus e falava verdade sem o saber. Excetuando os vales do Líbano, quase não encontrei na Judéia um lugar ou uma coisa que não fosse para mim como uma recordação. Temos então vivido duas ou mil vezes? É pois, a nossa memória uma simples imagem embaciada que o sopro de Deus aviva?”
Era em Lamartine tão viva a concepção das múltiplas vidas do ser, que tinha o desígnio de fazer disso uma idéia dominante, a inspiradora por excelência de suas obras. La Chute d'un Ange era, no seu pensamento, o primeiro elo, e Jocelyn o último de uma série de obras que deviam encadear-se umas às outras e traçar a história de duas almas prosseguindo através dos tempos a sua evolução dolorosa. As agitações da vida política não lhe deixavam vagar para prender umas às outras as contas esparsas desse rosário de obras-primas.[xxxii]
Joseph Méry era pródigo nas mesmas idéias. Ainda em sua vida, dizia a seu respeito o Journal Littéraire, de 25 de novembro de 1864:
“Há teorias singulares que, para ele, são convicções. Assim, crê firmemente que viveu muitas vezes; lembra-se das menores circunstâncias das suas existências anteriores e descreve-as com tanta minúcia e com um tom de certeza tão entusiástico que se impõe como autoridade. Assim, foi um dos amigos de Vergílio e Horácio; conheceu Augusto e Germânico; fez a guerra nas Gálias e na Germânia. Era general e comandava as tropas romanas quando atravessaram o Reno. Reconhece-se nos montes e sítios onde acampou, nos vales e campos de batalha onde outrora combateu. Chamava-se Mínias.
Cabe aqui um episódio que parece estabelecer um bom fundamento de que tais recordações não são simples miragens da sua imaginação. Um dia, em sua vida atual, estava em Roma e de visita à biblioteca do Vaticano. Foi recebido por jovens noviços, trajando longos hábitos escuros, que se puseram a falar-lhe o latim mais puro. Méry era bom latinista em tudo quanto dizia respeito à teoria e às coisas escritas, mas nunca experimentara conversar familiarmente na língua de Juvenal. Ouvindo esses romanos de hoje, admirando esse magnífico idioma, tão bem harmonizado com os costumes da época em que era utilizado com os monumentos, pareceu-lhe que dos olhos lhe caía um véu; pareceu-lhe que ele mesmo já em outros tempos havia conversado com amigos que se serviam dessa linguagem divina. Frases inteiras e irrepreensíveis saíam-lhe dos lábios; achou imediatamente a elegância e a correção; falou, finalmente, latim como fala francês. Não era possível fazer-se tudo isso sem uma aprendizagem e, se ele não tivesse sido vassalo de Augusto, se não houvesse atravessado esse século de todos os esplendores, não teria improvisado um conhecimento impossível de adquirir-se em algumas horas.”
O Journal Littéraire, sempre a respeito de Méry, continua:
“A sua outra passagem pela Terra deu-se nas Índias; por isso conhece-as tão bem que, quando publicou La Guerre do Nizam, nenhum dos seus leitores duvidou que ele houvesse por muito tempo habitado a Ásia. Suas descrições são tão vivas, seus quadros tão originais, faz de tal modo tocar com o dedo as menores minudencias, que é impossível não tenha visto o que conta; a verdade marcou tudo isso com a sua chancela.
Pretende ter entrado nesse país com a expedição muçulmana, em 1035. Lá viveu 50 anos, passou belos dias e fixou residência definitiva; lá continuou a ser poeta, mas menos dedicado às letras que em Roma e Paris. Guerreiro nos primeiros tempos, cismador mais tarde, conservou impressas na sua alma as imagens surpreendentes das margens do rio sagrado e dos sítios hindus. Tinha muitas moradas na cidade e no campo, orou no templo dos elefantes, conheceu a civilização adiantada de Java, viu as esplêndidas ruínas que ele assinala e que são ainda tão pouco conhecidas.
É preciso ouvi-lo cantar os seus poemas, porque são verdadeiros poemas essas lembranças a Swedenborg. Não suspeiteis da sua seriedade, que é muito grande. Não há mistificação feita à custa dos seus ouvintes; há uma realidade da qual ele consegue convencer-vos.”
Paul Stapfer, em seu livro recentemente publicado, Victor Hugo à Guernesey, conta as suas palestras com o grande poeta. Este lhe expunha a sua crença nas vidas sucessivas; julgava ter sido Ésquilo, Juvenal, etc. Forçoso é reconhecer que tais colóquios não primam por excesso de modéstia e carecem um tanto de provas demonstrativas.
O filósofo sutil e profundo que foi Amiel escrevia:
“Quando penso nas intuições de toda espécie que tive desde a minha adolescência, parece-me que vivi muitas dúzias e até centenas de vidas. Toda a individualidade caracteriza esse mundo idealmente em mim ou, antes, forma-me momentaneamente à sua imagem. Assim é que fui matemático, músico, frade, filho, mãe, etc. Nesses estados de simpatia universal, fui mesmo animal e planta.”
Théophile Gautier, Alexandre Dumas, Ponson do Terrail e muitos outros escritores modernos comungavam nessas convicções. Sucedia o mesmo com Walter Scott, segundo o testemunho de Lockart, seu biógrafo.[xxxiii]
O Conde de Résie, na sua Histoire des Sciences Occultes,[xxxiv] diz:
“Podemos citar o nosso próprio testemunho, assim como as numerosas surpresas que freqüentes vezes nos causou o aspecto de muitos lugares em diferentes partes do mundo, cuja vista nos trazia logo à memória uma antiga recordação, uma coisa que não nos era desconhecida e que, entretanto, estávamos vendo pela primeira vez.”
Gustave Flaubert, em sua Correspondance, escreve:
“Tenho certeza de ter sido no Império Romano diretor de alguma trupe de comediantes ambulantes (...) e, ao reler as comédias de Plauto, surgem para mim como que recordações.”
*
Às reminiscências de homens ilustres, em sua maioria, devem-se juntar as de grande número de crianças. Aqui o fenômeno se explica facilmente. A adaptação dos sentidos psíquicos ao organismo material, a começar do nascimento, opera-se morosa e gradualmente; só é completa por volta dos sete anos, e mais tarde ainda em certos indivíduos.
Até essa época, o Espírito da criança, flutuando em torno do seu invólucro, vive até certo ponto da vida do espaço; goza de percepções, de visões que, às vezes, impressionam com fugitivos vislumbres o cérebro físico. Assim é que foi possível recolher de certas bocas juvenis alusões a vidas anteriores, descrições de cenas e personagens sem relação alguma com a vida atual desses jovens.
Essas visões, essas reminiscências esvaem-se, geralmente, próximo da idade adulta, quando a alma da criança entrou na plena posse dos seus órgãos terrestres. Então, debalde é interrogada a respeito dessas lembranças fugazes; cessou de todo a transmissão das vibrações perispirituais, a consciência profunda emudeceu.
Até agora não tem sido prestada a essas revelações toda a atenção que elas merecem. Os pais, a quem manifestações consideradas estranhas e anormais lançam em desassossego, em vez de provocá-las, procuram, pelo contrário, impedi-las. A Ciência perde, assim, indicações úteis. Se a criança, quando tenta traduzir, na sua linguagem afanosa e confusa, as vibrações fugitivas do seu cérebro psíquico, fosse animada, interrogada, em vez de ser repelida, ridicularizada, seria possível obter a respeito do passado elucidações de certo interesse, ao passo que atualmente se perdem na maioria dos casos.
No Oriente, onde a doutrina das vidas sucessivas está espalhada por toda parte, dá-se mais importância a essas reminiscências; recolhem-nas, constatam-nas na medida do possível e, muitas vezes, é reconhecida a sua exatidão. Dentre mil, vamos apresentar uma prova:
Uma correspondência de Simla (Índias Orientais) ao Daily Mail [xxxv] refere que um menino, nascido no distrito, é considerado como a reencarnação do falecido Sr. Tucker, superintendente da comarca, assassinado, em 1894, por “discoitos”. O menino recorda-se dos menores incidentes da sua vida precedente; quis transportar-se a vários lugares familiares ao Sr. Tucker. No local do homicídio pôs-se a tremer e deu todas as demonstrações de terror. “Esses fatos são muito comuns em Burma – acrescenta o jornal –, onde os reencarnados que se lembram do seu passado têm o nome de winsas.”
C. de Lagrange, cônsul de França, escrevia de Vera Cruz (México) à Revue Spirite, em 14 de julho de 1880:[xxxvi]
“Há dois anos tínhamos, em Vera Cruz, um menino de sete anos que possuía a faculdade de médium curador. Muitas pessoas foram curadas, quer por imposição das suas mãozinhas, quer por meio de remédios vegetais que ele receitava e afirmava conhecer. Quando lhe perguntavam onde aprendera essas coisas, respondia que, no tempo em que era grande, tinha sido médico. Esse menino recorda-se, portanto, de uma existência anterior.
Falava com dificuldade. Chamava-se Jules Alphonse e nascera em Vera Cruz. Essa faculdade surpreendente desenvolveu-se nele aos 4 anos de idade e causou impressão em muitas pessoas que, incrédulas a princípio, estão hoje convencidas. Quando estava só com o pai, repetia-lhe muitas vezes: “Pai, não creias que eu fique muito tempo contigo; estou aqui só por alguns anos, porque é preciso que vá para outra parte.” E, se lhe perguntavam: “Mas, para onde queres tu ir?”, respondia: “Para longe daqui, para onde se está melhor do que aqui.”
Esse menino era muito sóbrio, grande em todas as ações, perspicaz e muito obediente. Pouco tempo depois, morreu.”
O Banner of Light, de Boston, 15 de outubro de 1892, publica a narrativa, abaixo transcrita, do honrado Isaac G. Forster, inserta igualmente no Globe Democrat, de S. Luís, 20 de setembro de 1892, no Brooklyn Eagle e no Milwaukee Sentinel, de 25 de setembro de 1892:
“Há doze anos habitava eu o Condado de Effingham (Illinois) e lá perdi uma filha, Maria, quando para ela principiava a puberdade. No ano seguinte fui fixar residência no Dakota. Aí, nasceu-me, há nove anos, outra filhinha, a quem demos o nome de Nellie. Assim que chegou à idade de falar, pretendia não se chamar Nellie, mas sim Maria, que seu nome verdadeiro era o que em tempo lhe dávamos.
Ultimamente voltei para o Condado de Effingham, para pôr em dia alguns negócios. e levei Nellie comigo. Ela reconheceu a nossa antiga habitação e muitas pessoas que nunca vira, mas que minha primeira filha, Maria, conhecera muito bem.
A uma milha de distância está situada a casa da escola em que Maria andava; Nellie, que nunca a vira, dela fez uma descrição exata e exprimiu-me o desejo de tornar a vê-la. Levei-a e, quando lá chegou, dirigiu-se diretamente para a carteira que sua irmã ocupava, dizendo-me: “Esta carteira é a minha!”
O Journal des Débats, de 11 de abril de 1912, em seu folhetim científico cita, sob a assinatura de Henri de Varigny, um caso semelhante colhido na obra do Sr. Fielding Hall, o qual se entregou a longas pesquisas sobre esse assunto:
“Há cerca de meio século, duas crianças, um rapaz e uma menina, nasceram no mesmo dia e na mesma aldeia, na Birmânia. Casaram-se mais tarde e, depois de haver constituído família e praticado todas as virtudes, morreram no mesmo dia.
Maus tempos sobrevieram, e dois jovens, de sexos diferentes, tiveram de fugir da aldeia onde se tinha desenrolado o primeiro episódio. Foram estabelecer-se em outra parte e tiveram dois filhos gêmeos, que, em vez de se chamarem por seus próprios nomes, se davam entre si os nomes do par virtuoso e já morto do qual falamos.
Os pais espantaram-se com isso, mas logo compreenderam o fato. Para eles, o par virtuoso se tinha encarnado em seus filhos. Quiseram tirar a prova. Levaram-nos à aldeia onde anteriormente haviam nascido. Reconheceram tudo: estradas, casas, pessoas e até as vestimentas do casal, conservadas, não se sabe por que razão. Um se lembrou de terem emprestado duas rupias (moeda indiana) a certa pessoa. Esta vivia ainda e confirmou o fato.
O Sr. Fielding Hall, que viu as duas crianças quando elas ainda tinham 6 anos, achava uma com aparência mais feminina; esta albergava a alma da mulher defunta. Antes da reencarnação, diziam eles, viveram algum tempo sem corpo, nos ramos das árvores. Mas essas lembranças longínquas tornam-se cada vez menos nítidas e vão-se apagando pouco a pouco.”
Essa percepção das vidas anteriores encontra-se, também, excepcionalmente, em alguns adultos.
O Dr. Gaston Durville, no Psychic Magazine, número de janeiro e abril de 1914, conta um caso interessante de renovação das lembranças em estado de vigília.
A Sra. Laura Raynaud, conhecida em Paris por suas curas por meio do magnetismo, afirmava, desde muito, que se recordava de uma vida passada em um lugar que descrevia e que declarava iria encontrar um dia. Afirmava, ainda, ter vivido em condições nitidamente determinadas (sexo, condição social, nacionalidade, etc.), e haver desencarnado, havia certo número de anos, em conseqüência de tal moléstia.
A Sra. Raynaud, em viagem à Itália, em março de 1913, reconheceu o país em que tinha vivido. Percorreu os arredores de Gênova e encontrou uma habitação como tinha descrito. “Graças ao concurso do Sr. Calure, psiquista erudito de Gênova, encontramos – diz o doutor – nos registros da paróquia de São Francisco de Albaro, um registro de óbito que foi o da Sra. Raynaud n° 1.”
Todas as declarações por ela feitas, muitos anos antes (sexo, condição social, nacionalidade, idade e causa da morte), foram confirmadas.
Um sujet do doutor, em estado de sonambulismo lúcido, revelou curiosos pormenores sobre a sepultura da citada senhora.
*
Os testemunhos oriundos do mundo invisível são tão numerosos quanto variados. Não só Espíritos em grande número afirmam, nas suas mensagens, terem vivido muitas vezes na Terra, mas há os que anunciam antecipadamente a sua reencarnação; designam seu futuro sexo e a época de seu nascimento; ministram indicações sobre as suas aparências físicas ou disposições morais, que permitem reconhecê-los em seu regresso a este mundo; predizem ou expõem particularidades de sua próxima existência, o que se tem podido verificar.
A revista Filosofia della Scienza, de Palermo, no número de janeiro de 1911, publicou, sobre um caso de reencarnação, uma narrativa do mais alto interesse, que resumimos aqui. É o chefe da família, na qual os acontecimentos se passaram, o Dr. Carmelo Samona, de Palermo, quem fala:
“Perdemos, a 15 de março de 1910, uma filhinha que minha mulher e eu adorávamos; em minha companheira o desespero foi tal que receei, um momento, perdesse a razão. Três dias depois da morte de Alexandrina, minha mulher teve um sonho onde acreditou ver a criança a dizer-lhe:
– Mãe, não chores mais, não te abandonarei; não estou afastada de ti: ao contrário, tornarei a ti como filha.
Três dias mais tarde houve a repetição do mesmo sonho. A pobre mãe, a quem nada podia atenuar a dor e que não tinha, nessa época, noção alguma das teorias do Espiritismo moderno, só encontrava nesse sonho motivos para o reavivamento de suas penas. Certa manhã, em que se lamentava, como de costume, três pancadas secas fizeram-se ouvir à porta do quarto em que nos achávamos. Crente da chegada de minha irmã, meus filhos, que estavam conosco, foram abrir a porta, dizendo:
– Tia Catarina, entre.
A surpresa, porém, de todos, foi grande, verificando que não havia ninguém atrás dessa porta nem na sala que a precedia. Foi então que resolvemos realizar sessões de tiptologia, na esperança de que, por esse meio, talvez tivéssemos esclarecimentos sobre o fato misterioso dos sonhos e das pancadas que tanto nos preocupavam.
Continuamos nossas experiências durante três meses, com grande regularidade. Desde a primeira sessão, duas entidades manifestaram-se: uma dizia ser minha irmã; a outra, a nossa querida filha. Esta última confirmou, pela mesa, sua aparição nos dois sonhos de minha mulher e revelou que as pancadas tinham sido dadas por ela. Repetiu à sua mãe:
– Não te consternes, porque nascerei de novo por ti e antes do Natal.
A predição foi acolhida por nós com total incredulidade, pois um acidente, seguido de uma operação cirúrgica (21 de novembro de 1909), tornava impossível nova concepção em minha mulher.
Entretanto, a 10 de abril, uma primeira suspeita de gravidez revelou-se nela. A 4 de maio seguinte nossa filha manifestou-se ainda pela mesa e nos deu novo aviso:
– Mãe, há uma outra em ti.
Como não compreendêssemos essa frase, a outra entidade que, parece, acompanhava sempre nossa filha, confirmou-a, comentando-a assim:
– A pequena não se engana: outro ser se desenvolve em ti, minha boa Adélia.
As comunicações que se seguiram ratificaram todas essas declarações e mesmo as precisaram, anunciando que as crianças que deviam nascer seriam meninas; que uma se assemelharia a Alexandrina, sendo mais bela do que o tinha sido anteriormente.
Apesar da incredulidade persistente de minha mulher, as coisas pareciam tomar o rumo anunciado, porque, no mês de agosto, o Dr. Cordaro, parteiro reputado, prognosticou a gravidez de gêmeos.
E a 22 de novembro de 1910 minha mulher deu à luz duas filhinhas, sem semelhança entre si; uma, entretanto, reproduzia em todos os seus traços as particularidades físicas bem especiais que caracterizavam a fisionomia de Alexandrina, isto é, uma hiperemia do olho esquerdo, uma ligeira seborréia do ouvido direito e, enfim, uma dissemetria pouco acentuada da face.
Em apoio de suas declarações, o Dr. Carmelo Samona traz os atestados de sua irmã Samona Gardini, do Professor Wigley, da Sra. Mercantini, do Marquês Natoli, da Princesa Niscomi, do Conde de Ranchileile, todos os que tomavam conhecimento das comunicações obtidas na família do Dr. Carmelo Samona, à medida que elas se produziam.
Depois do nascimento dessas crianças, dois anos e meio são decorridos, o Dr. Samona escreve à Filosofia della Scienza, dizendo que a semelhança de Alexandrina II com Alexandrina I tudo confirma, não só na parte física como na moral: as mesmas atitudes e brincadeiras calmas; as mesmas maneiras de acariciar a mãe; os mesmos terrores infantis expressos nos mesmos termos, a mesma tendência irresistível para servir-se da mão esquerda, o mesmo modo de pronunciar os nomes das pessoas que a rodeavam. Como Alexandrina I, ela abre o armário dos sapatos, no quarto em que esse móvel se encontra, calça um pé e passeia triunfalmente no quarto. Em uma palavra, refaz, de modo absolutamente idêntico, a existência, na idade correspondente, de Alexandrina I.
Não se nota nada de semelhante com Maria Pace, sua irmã gêmea.
Compreende-se todo o interesse que apresenta uma observação dessa ordem, seguida durante tantos anos por um investigador do valor do Dr. Samona.” [xxxvii]
O Capitão Florindo Batista, cuja honestidade está ao abrigo de qualquer suspeita, conta na revista Ultra, de Roma:
“No mês de agosto de 1905, minha mulher, que estava grávida de três meses, teve, quando já se havia deitado, mas ainda perfeitamente acordada, uma aparição que a impressionou profundamente. Uma filhinha, morta havia 3 anos, apresentara-se-lhe repentinamente, manifestando alegria infantil e lhe disse, com voz muito doce, as seguintes palavras:
– Mamãe, eu volto!
Antes que minha mulher tornasse a si da surpresa, a visão desapareceu.
Quando entrei, minha mulher, ainda muito comovida, contou-me sua estranha aventura e eu tive a impressão que era de uma alucinação que se tratava; mas não quis combater a convicção em que ela estava, de haver recebido um aviso providencial, e acedi a seu desejo de dar à filhinha que esperávamos o nome de Branca, que era o da sua jovem irmã falecida.
Por essa época eu não tinha noção nenhuma daquilo que aprendi mais tarde e teria chamado louco a quem me viesse falar em reencarnação, porque estava intimamente convencido de que os mortos não renasciam mais.
Seis meses depois, em fevereiro de 1906, minha mulher deu à luz, com felicidade, uma filhinha que se assemelhava inteiramente à sua irmã falecida. Tinha seus olhos muito grandes e seus cabelos espessos e frisados.
Essas coincidências não me desviaram do meu cepticismo materialista, mas minha esposa, muito contente com o favor obtido, convenceu-se, de modo absoluto, de que o milagre se tinha dado e que havia posto duas vezes no mundo a mesma criatura.
Hoje a menina tem cerca de 6 anos e, como sua falecida irmã, é muito desenvolvida física e intelectualmente.
A fim de que se compreenda o que vou relatar, devo acrescentar que, durante a vida da primeira Branca, tínhamos como criada uma certa Mary, suíça, que só falava o francês.
Tinha ela importado de suas montanhas uma espécie de canção. Quando minha filhinha morreu, Mary voltou para seu pais e a berceuse se havia completamente apagado de nossas lembranças. Um fato verdadeiramente extraordinário veio trazê-la ao nosso espírito.
Há uma semana, estava eu com minha mulher no meu quarto de trabalho, quando ouvimos ambos, como um eco longínquo, a famosa cantilena; a voz vinha do quarto de dormir onde havíamos deixado nossa filhinha adormecida.
A princípio, emocionados e estupefatos, não lhe tínhamos reconhecido a voz; mas, aproximando-nos do quarto donde ela partia, achamos a criança sentada na cama e cantando, com acento nitidamente francês, a cantilena que nenhum de nós lhe houvéramos ensinado.
Minha mulher, evitando parecer muito espantada, perguntou-lhe o que cantava e a criança, com uma prontidão de pasmar, respondeu que cantava uma canção francesa, posto que não conhecesse desse idioma senão algumas palavras que tinha ouvido pronunciar por suas irmãs.
– Quem te ensinou essa bela canção? – perguntei-lhe.
– Ninguém; eu a sei de mim mesma – respondeu-me ela, e acabou de cantá-la alegremente, como se nunca tivesse cantado outra em sua vida.”
O Sr. Th. Jaffeux, advogado na Corte de Apelação de Paris, comunica-nos o seguinte fato (5 de março de 1911):
“Desde o começo de 1908, tinha como Espírito-guia uma mulher que havia conhecido em minha infância e cujas comunicações apresentavam um caráter de rara precisão: nomes, endereços, cuidados médicos, predições de ordem familiar, etc.
No mês de junho de 1909, transmitia essa entidade, da parte de Père Henri, diretor espiritual do grupo, o conselho de não prolongar indefinidamente a morada estacionária no espaço. A entidade respondeu-me por essa ocasião:
– Tenho a intenção de reencarnar; terei, sucessivamente, três reencarnações muito breves.
Para o mês de outubro de 1909, anunciou-me espontaneamente que ia reencarnar em minha família e designou-me o lugar dessa reencarnação; uma aldeia do Departamento do Eure-et-Loir.
Eu tinha, com efeito, uma prima grávida nesse momento, e fiz a seguinte pergunta:
– Por que sinal poderei reconhecê-la?
– Terei uma cicatriz de dois centímetros do lado direito da cabeça.
A 15 de novembro disse a mesma entidade que, no mês de janeiro seguinte, deixaria de vir, sendo substituída por outro Espírito.
Procurei, desde esse instante, dar a essa prova todo o seu alcance e nada me seria mais fácil, depois de ter feito documentar oficialmente a predição e de conseguir um certificado médico do nascimento da criança.
Infelizmente, encontrei-me em presença de uma família que manifestava uma hostilidade agressiva contra o Espiritismo; estava desarmado.
No mês de janeiro de 1910 a criança nascia com uma cicatriz de dois centímetros do lado direito da cabeça. Ela tem, atualmente, 14 meses.”
O senhor Warcollier, engenheiro químico em Paris, relata o seguinte fato na Revue Scientifique et Morale de fevereiro de 1920:
“A senhora B... pertencia a uma família aristocrática com ideais da nobreza e me foi apresentada por uma pessoa de minha família, a senhora Viroux. Ela tinha perdido durante a guerra um filho que particularmente amava; ainda lhe restam outros filhos, sendo que um deles é uma filha casada, da qual falaremos a seguir. Os detalhes relativos a esse caso são conhecidos de todos os amigos da senhora B..., que haviam sido informados sobre o assunto no decorrer dos acontecimentos.
Alistado voluntário no início da guerra, seu filho ganhou rapidamente os galões de subtenente, mas foi morto em combate. A mãe teve um sonho no qual viu o local preciso, um planalto da estrada de ferro, onde o corpo de seu filho estava morto. Graças a esse sonho, ela encontrou os despojos do rapaz e os enterrou no cemitério da aldeia vizinha.
Alguns meses depois teve um outro sonho e viu seu filho, que lhe dizia: “Mamãe, não chores, vou voltar, não para ti, mas para minha irmã”. Ela não compreendeu o sentido dessas palavras; mas sua filha teve um sonho semelhante, no qual via seu irmão novamente criança brincando em seu próprio quarto. Nem uma nem outra pensava ou acreditava em reencarnação. A filha da senhora B..., que nunca tivera filhos, desolava-se a esse respeito. Mas logo depois ela ficou grávida.
Na noite que precedeu o nascimento, a senhora B... reviu seu filho em sonho. Ele lhe falou ainda de seu retorno e lhe mostrou um bebê recém-nascido que tinha os cabelos negros, que ela reconheceu perfeitamente quando o recebeu em seus braços algumas horas mais tarde. A senhora B... convenceu-se, mediante mil detalhes psicológicos e por traços curiosos de caráter, que essa criança era realmente seu filho reencarnado e, entretanto, afirma que antes não era reencarnacionista; era católica de nascimento e, por sua classe, totalmente simpatizante do clero; confessou que era absolutamente céptica, talvez até um pouco atéia, e nunca tinha freqüentado nem os espíritas nem os teósofos.”
*
Indicamos neste capítulo as causas físicas do esquecimento das vidas anteriores. Não será conveniente, ao terminá-lo, colocarmo-nos em outro ponto de vista e inquirir se esse esquecimento não se justifica por uma necessidade de ordem moral? Para a maior parte dos homens, frágeis “canas pensantes” que o vento das paixões agita, não se nos afigura desejável a recordação do passado; pelo contrário, parece indispensável ao seu adiantamento que as vidas anteriores se lhes apaguem momentaneamente da memória.
A persistência das recordações acarretaria a persistência das idéias errôneas, dos preconceitos de casta, tempo e meio, numa palavra, de toda uma herança mental, um conjunto de vistas e coisas que nos custaria tanto mais a modificar, a transformar, quanto mais vivo estivesse em nós. Deparar-se-iam assim muitos obstáculos à nossa educação, aos nossos progressos; nossa capacidade de julgar achar-se-ia muitas vezes adulterada desde o berço. O esquecimento, ao contrário, permitindo-nos aproveitar mais amplamente os estados diferentes que uma nova vida nos proporciona, ajuda-nos a reconstruir nossa personalidade num plano melhor; nossas faculdades e nossa experiência aumentam em extensão e profundidade.
Outra consideração, mais grave ainda: o conhecimento de um passado corrupto, conspurcado, como deve suceder com o de muitos de nós, seria um fardo pesado. Só uma vontade de rija têmpera pode ver, sem vertigem, desenrolar-se uma longa série de faltas, de desfalecimentos, de atos vergonhosos, de crimes talvez, para pesar-lhes as conseqüências e resignar-se a passar por elas. A maior parte dos homens atuais é incapaz de tal esforço. A recordação das vidas anteriores só pode ser proveitosa ao Espírito bastante evolvido, bastante senhor de si para suportar-lhe o peso sem fraquejar, com suficiente desapego das coisas humanas para contemplar com serenidade o espetáculo de sua história, reviver as dores que padeceu, as injustiças que sofreu, as traições dos que amou. É privilégio doloroso conhecer o passado dissipado, passado de sangue e lágrimas, e é também causa de torturas morais, de íntimas lacerações.
As visões que se lhe vinculam, seriam, na maioria dos casos, fonte de cruéis inquietações para a alma fraca presa nas garras do seu destino. Se as nossas vidas precedentes foram felizes, a comparação entre as alegrias que nos davam e as amarguras do presente, tornaria estas últimas insuportáveis. Foram culpadas? A expectativa perpétua dos males que elas implicam paralisaria a nossa ação, tornaria estéril nossa existência. A persistência dos remorsos e a morosidade da nossa evolução far-nos-iam acreditar que a perfeição é irrealizável!
Quantas coisas, que são outros tantos obstáculos à nossa paz interna, outros tantos estorvos para nossa liberdade, não quiséramos apagar da nossa vida atual? Que seria, pois, se a perspectiva dos séculos percorridos se desenrolasse sem cessar, com todos os pormenores, diante da nossa vista? O que importa é trazer consigo os frutos úteis do passado, isto é, as capacidades adquiridas; é esse o instrumento de trabalho, o meio de ação do Espírito. O que constitui o caráter é também o conjunto das qualidades e dos defeitos, dos gostos e das aspirações, tudo o que transborda da consciência profunda para a consciência normal.
O conhecimento integral das vidas passadas apresentaria inconvenientes formidáveis, não só para o individuo, mas também para a coletividade; introduziria na vida social elementos de discórdia, fermentos de ódio que agravariam a situação da humanidade e obstariam a todo progresso moral. Todos os criminosos da História, reencarnados para expiar, seriam desmascarados; as vergonhas, as traições, as perfídias, as iniqüidades de todos os séculos seriam de novo assoalhadas à nossa vista. O passado acusador, conhecido de todos, tornaria a ser causa de profunda divisão e de vivos sofrimentos.
O homem, que vem a este mundo para agir, desenvolver as suas faculdades, conquistar novos méritos, deve olhar para frente e não para trás. Diante dele abre-se, cheio de esperanças e promessas, o futuro; a Lei Suprema ordena-lhe que avance resolutamente e, para tornar-lhe a marcha mais fácil, para livrá-lo de todas as prisões, de todo peso, estende um véu sobre o seu passado. Agradeçamos à Providência Infinita que, aliviando-nos da carga esmagadora das recordações, nos tornou mais cômoda a ascensão, a reparação menos amarga.
Objetam-nos, às vezes, que seria injusto ser castigado por faltas que foram esquecidas, como se o esquecimento apagasse a falta! Dizem-nos,[xxxviii] por exemplo: “Uma justiça, que é tramada em segredo e que não podemos pessoalmente avaliar, deve ser considerada como uma iniqüidade.”
Mas, em princípio, não há para nós em tudo um mistério? O talozinho de erva que rebenta, o vento que sopra, a vida que se agita, o astro que percorre a abóbada silenciosa, tudo são mistérios. Se só devemos acreditar no que compreendemos bem, em que é que havemos então de acreditar?
Se um criminoso, condenado pelas leis humanas, cai doente e perde a memória das suas ações (vimos que os casos de amnésia não são raros), segue-se daí que a sua responsabilidade desaparece ao mesmo tempo em que as suas lembranças? Nenhum poder é capaz de fazer com que o passado não tenha existido!
Em muitos casos seria mais atroz saber do que ignorar. Quando o Espírito, cujas vidas distantes foram culpadas, deixa a Terra e as más lembranças se avivam outra vez para ele, quando vê levantarem-se sombras vingadoras, acaso o lamenta o tempo do esquecimento? Acusa a Deus por ter-lhe tirado com a memória das suas faltas a perspectiva das provas que elas implicam?
Basta-nos, pois, conhecer qual é o fim da vida, saber que a justiça divina governa o mundo. Cada um está no local que para si fez e não sucede nada que não seja merecido. Não temos por guia nossa consciência e não brilham com vivo clarão, na noite de nossa inteligência, os ensinamentos dos gênios celestes?
O espírito humano, porém, flutua agitado por todos os ventos da dúvida e da contradição. Às vezes acha que tudo vai bem e pede novas energias vitais; outras, amaldiçoa a existência e clama o aniquilamento. Pode a Justiça Eterna conformar os seus planos com as nossas vistas efêmeras e variáveis? Na própria pergunta está a resposta. A justiça é eterna porque é imutável. No caso que nos ocupa, é a harmonia perfeita que se estabelece entre a liberdade dos nossos atos e a fatalidade das suas conseqüências. O esquecimento temporário das nossas faltas não evita o seu efeito. É necessária a ignorância do passado para que toda a atividade do homem se consagre ao presente e ao futuro, para que se submeta à lei do esforço e se conforme com as condições do meio em que renasce.
*
Durante o sono, a alma exerce a sua atividade, pensa, vagueia. Às vezes remonta ao mundo das causas e torna a encontrar a noção das vidas passadas. Do mesmo modo que as estrelas brilham somente durante a noite, também o nosso presente deve acolher-se à sombra para que os clarões do passado se acendam no horizonte da consciência.
A vida na carne é o sono da alma; é o sonho triste ou alegre. Enquanto ele dura, esquecemos os sonhos precedentes, isto é, as encarnações passadas; entretanto, é sempre a mesma personalidade que persiste nas suas duas formas de existência. Em sua evolução atravessa alternadamente períodos de contração e dilatação, de sombra e de luz. A personalidade retrai-se ou se expande nesses dois estados sucessivos, assim como se perde e torna a encontrar-se através das alternativas do sono e da vigília, até que a alma, chegada ao apogeu intelectual e moral, acabe por uma vez de sonhar.
Há em cada um de nós um livro misterioso onde tudo se inscreve em caracteres indeléveis. Fechado à nossa vista durante a vida terrena, abre-se no espaço. O Espírito adiantado percorre-lhe à vontade as páginas; encontra nele ensinamentos, impressões e sensações que o homem material a custo compreende.
Esse livro, o subconsciente dos psiquistas, é o que nós chamamos o perispírito. Quanto mais se purifica, tanto mais as recordações se definem; nossas vidas, uma a uma, emergem da sombra e desfilam em nossa frente para nos acusarem ou glorificarem. Todos os fatos, os atos, pensamentos mínimos, reaparecem e impõem-se à nossa atenção. Então o Espírito contempla a tremenda realidade; mede o seu grau de elevação; sua consciência julga sem apelação nem agravo. Como são suaves para alma, nessa hora, as boas ações praticadas, as obras de sacrifício! Como, porém, são pesados os desfalecimentos, as obras de egoísmo e iniqüidade!
Durante a reencarnação, é preciso relembrá-lo, a matéria cobre o perispírito com seu manto espesso; comprime, apaga-lhe as radiações. Daí o esquecimento. Livre desse laço, o Espírito elevado readquire a plenitude da sua memória; o Espírito inferior mal se lembra da sua última existência; é para ele o essencial, pois que ela é a soma dos progressos adquiridos, a síntese de todo o seu passado; por ela pode avaliar sua situação. Aqueles cujo pensamento não se penetrou, no nosso mundo, da noção das preexistências ignoram por muito tempo suas vidas primitivas, as mais afastadas. Daí a afirmação de numerosos Espíritos, em certos países, de que a reencarnação não é uma lei. Esses tais não interrogaram as profundezas do seu ser, não abriram o livro fatídico onde tudo está gravado. Conservam os preconceitos do meio terrestre em que viveram e esses preconceitos, em vez de incitá-los àquela investigação, dissuadem-nos dela.
Os Espíritos superiores, por sentimento de caridade, conhecendo a fraqueza dessas almas, julgando que o conhecimento do passado não lhes é ainda necessário, evitam atrair-lhes para esse ponto a atenção, a fim de lhes pouparem a vista de quadros penosos. Mas, chega um dia em que, pelas sugestões do Alto, sua vontade desperta e rebusca nos recessos da memória. Então as vidas anteriores lhes aparecem como miragem longínqua. Há de chegar o tempo em que, estando mais disseminado o conhecimento dessas coisas, todos os Espíritos terrestres, iniciados por uma forte educação na lei dos renascimentos, verão o passado desenrolar-se à sua frente logo depois da morte e até, em certos casos, durante esta vida. Terão adquirido a força moral necessária para afrontarem esse espetáculo sem fraquejar.
Para as almas purificadas a recordação é constante. O Espírito elevado tem o poder de reviver à vontade o passado, o presente e o misterioso futuro, cujas profundidades se iluminam por instantes, para ele, com rápidos clarões, para em seguida mergulharem nas sombras do desconhecido.
XV
As vidas sucessivas – As crianças prodígio
e a hereditariedade
Podem-se considerar certas manifestações precoces do gênio como outras tantas provas das preexistências, em razão de serem uma revelação dos trabalhos realizados pela alma em experiências anteriores.
Os fenômenos desse gênero, de que fala a História, não podem ser fatos desconexos, desligados do passado, produzindo-se ao acaso no vácuo dos tempos e do espaço; demonstram, ao contrário, que o princípio organizador da vida em nós é um ser que chega a este mundo com um passado inteiro de trabalho e evolução, resultado de um plano traçado e de um alvo para o qual ele se dirige através de suas existências sucessivas.
Cada encarnação encontra, na alma que recomeça vida nova, uma cultura particular, aptidões e aquisições mentais que explicam sua facilidade para o trabalho e seu poder de assimilação; por isso dizia Platão: “Aprender é recordar-se!”
A lei da hereditariedade vem muitas vezes obstar, até certo ponto, a essas manifestações da individualidade, porque é com os elementos fornecidos pela hereditariedade que o Espírito põe a seu jeito o seu invólucro; contudo, a despeito das dificuldades materiais, vê-se manifestarem-se em certos seres, desde a mais tenra idade, faculdades de tal modo superiores e sem nenhuma relação com as dos seus ascendentes, que não se pode, não obstante todas as sutilezas da casuística materialista, relacioná-las com qualquer causa imediata e conhecida.
Tem-se citado muitas vezes o caso de Mozart, que executou uma sonata no piano aos 4 anos e, aos 8, compôs uma ópera. Paganini e Teresa Milanollo, ainda crianças, tocavam violino de forma magistral. Liszt, Beethoven e Rubinstein faziam-se aplaudir aos 10 anos. Michelangelo e Salvatore Rosa revelaram-se de repente com talentos imprevistos. Pascal, aos 12 anos, descobriu a geometria plana, e Rembrandt, antes de saber ler, desenhava como um grande mestre.[xxxix]
Napoleão fez-se notar por sua aptidão prematura para a guerra. Já na infância, não brincava de soldadinho como as crianças de sua idade, mas com um método extraordinário, que parecia ser invenção sua.
O século XVI legou-nos a memória de um poliglota prodigioso, Jacques Chrichton, que Scaliger denominava um “gênio monstruoso”. Era escocês e, aos 15 anos, discutia em latim, grego, hebraico ou árabe, sobre qualquer assunto. Havia conquistado o grau de mestre aos 14 anos.
Henrique de Heinecken, nascido em Lübeck, em 1721 falou, quase ao nascer; aos 2 anos sabia três línguas; aprendeu a escrever em alguns dias e dentro de pouco tempo exercitava-se em pronunciar pequenos discursos; com 2 anos e meio fez exame de Geografia e História antiga e moderna. Seu único alimento era o leite da ama; quiseram desmamá-lo, depereceu e morreu em Lübeck, em 27 de junho de 1725, de 5 para 6 anos de idade, afirmando suas esperanças na outra vida. “Era – dizem as Mémoires de Trévoux – delicado, enfermiço, e muitas vezes estava doente.” Essa criança fenomenal teve completo conhecimento de seu próximo fim. Falava disso com serenidade pelo menos tão admirável como sua ciência prematura e quis consolar os pais dirigindo-lhes palavras de alento que ia buscar em suas crenças comuns.
A História dos últimos séculos assinala grande número dessas crianças-prodígio.
O jovem Van der Kerkhove, de Bruges, morreu aos 10 anos e 11 meses, em 12 de agosto de 1873, deixando 350 pequenos quadros magistrais, alguns dos quais, diz Adolphe Siret, membro da Academia Real de Ciências, Letras e Belas-Artes, da Bélgica, poderiam ser assinados por nomes como Diaz, Salvatore Rosa, Corot, Van Goyen, etc.
Outro menino, William Hamilton, estudava o hebraico aos 3 anos e aos 7 possuía conhecimentos mais extensos do que a maior parte dos candidatos ao magistério. “Estou vendo-o ainda – dizia um de seus parentes – responder a uma pergunta difícil de Matemática, afastar-se depois, correndo aos pulinhos e puxando o carrinho com que andava a brincar.” Aos 13 anos conhecia doze línguas, aos 18 pasmava toda a gente da vizinhança, a tal ponto que um astrônomo irlandês dizia dele: “Eu não digo que ele será, mas que já é o primeiro matemático do seu tempo.”
Neste momento (1908) a Itália se honra de possuir um lingüista fenomenal, o Sr. Trombetti, que excede muito aos seus antigos compatriotas, o célebre Pico de Mirandola e o prodigioso Mezzofanti, o cardeal que discursava em 70 línguas.
Trombetti nasceu de uma família de bolonheses pobres e completamente ignorantes. Aprendeu sozinho, na escola primária, francês e alemão e, no fim de dois meses, lia Voltaire e Goethe; aprendeu o árabe com a simples leitura da vida de Abd-el-Kader, escrita na mesma língua. Um persa, de passagem por Bolonha, ensinou-lhe a sua língua em algumas semanas. Aos 12 anos aprendeu, por si só e simultaneamente, latim, grego e hebraico e, em seguida, estudou quase todas as línguas vivas ou mortas. Seus amigos asseveram que ele conhece hoje cerca de trezentos dialetos orientais; o Rei da Itália nomeou-o professor de Filologia na Universidade de Bolonha.
No Congresso Internacional de Psicologia de Paris, em 1900, o Sr. Charles Richet, da Academia de Medicina, apresentou em assembléia geral, reunidas todas as seções, um menino espanhol de 3 anos e meio de idade, chamado Pepito Arriola, que toca e improvisa ao piano árias variadas, muito ricas de sonoridade. Reproduzimos a comunicação feita pelo Sr. Richet aos congressistas na sessão de 21 de agosto de 1900, a respeito desse menino, antes da sua audição musical:[xl]
“Vou transcrever fielmente o que diz sua mãe do modo pelo qual descobriu os extraordinários dons musicais do jovem Pepito:
– “Tinha o menino 2 anos e meio, aproximadamente, quando, pela primeira vez, se me depararam casualmente as suas aptidões musicais. Nessa época recebi de um amigo meu, músico, uma composição de sua lavra e pus-me a tocá-la ao piano com bastante freqüência. É provável que o menino a ouvisse com atenção, mas não reparei nisso. Ora, certa manhã ouço tocar numa sala contígua a mesma ária, com tanta mestria e justeza que quis saber quem assim tomava a liberdade de tocar piano em minha casa. Entrei na sala e vi o meu pequeno, que estava só, a tocar a ária; estava sentado num assento alto para onde subira sozinho e, ao ver-me, pôs-se a rir e disse-me: “Que me diz, mamãe?” Acreditei que se realizava um verdadeiro milagre.”
A partir desse momento o pequeno Pepito continuou a tocar, sem que sua mãe lhe tenha dado lições, às vezes as árias que ela própria tocava diante dele ao piano, outras vezes, árias que ele inventava.
Não tardou a adquirir capacidade suficiente para permitir-lhe, no dia 4 de dezembro de 1899, isto é, com 3 anos incompletos, tocar diante de um auditório bastante numeroso de críticos e músicos; em 26 de dezembro, com 3 anos e 12 dias, tocou no Palácio Real de Madrid diante do rei e da rainha mãe. Nessa ocasião tocou seis composições musicais de sua autoria, que foram aplaudidas.
Não sabe ler, quer se trate de música ou do alfabeto; não tem talento especial para o desenho, mas se entretém às vezes a escrever árias musicais, escrita que não tem, entenda-se bem, nenhum sentido. É, entretanto, engraçado vê-lo pegar num papelzinho, pôr-lhe como cabeçalho uns rabiscos (que significam, ao que parece, a natureza do trecho, sonata, habanera, valsa, etc.); depois, por baixo, figurar linhas que serão a pauta, com uma borradela que quer dizer clave de sol e linhas pretas que, afirma ele, são notas. Olha, então, para esse papel, com satisfação, põe-no no piano e diz: “Vou tocar isto” e, com efeito, tendo diante da vista esse papel informe, improvisa de maneira admirável.
Para metodicamente estudar a maneira como ele toca piano, separarei a execução da invenção.
Execução – A execução é infantil; vê-se que ele imaginou a dedilhação em todas as suas partes sem nenhuma lição. Tem, não obstante, dedilhação bastante desembaraçada, tanto quanto lho permite a pequenez da mão, que não abrange a oitava. Para resolver a dificuldade imaginou, o que é curioso, substituir a oitava por arpejos habilmente executados e muito rápidos. Toca com as duas mãos, que muitas vezes cruza para obter certos efeitos ou certas harmonias. Às vezes também, como os pianistas de renome, levanta a mão a grande altura, com a maior seriedade, para deixá-la cair exatamente na nota que quer. Não é provável que isso lhe tenha sido ensinado, porque, na maneira de tocar de sua mãe, que aliás tem boa execução, nada há de análogo. Pode tocar árias de bravura com agilidade por vezes admirável e vigor surpreendente numa criança de sua idade; mas, apesar dessas qualidades, força é reconhecer que a execução é desigual. De repente, depois de alguns momentos de prelúdio, põe-se a tocar, como se estivesse inspirado, com agilidade e precisão.
Ouvi-o tocar trechos de muita dificuldade, uma habanera galiciana e a Marcha turca de Mozart, com habilidade em certas passagens.
A harmonia, ainda mais do que a dedilhação, é extraordinária. Acha, quase sempre, o acorde justo e, se hesita, como lhe sucede no princípio de um trecho, tateia alguns segundos; depois, continuando, acha a verdadeira harmonia. Não se trata de uma harmonia muito complicada; quase sempre consiste em acordes de muita simplicidade; mas por vezes inventa alguns que causam grande surpresa.
Para falar com rigor, o que mais assombra não é a dedilhação, nem a harmonia, nem a agilidade, mas a expressão; tem uma riqueza de expressão admirável. Seja triste, alegre, marcial ou enérgico o trecho musical, a expressão é arrebatadora. Uma vez fiz tocar à mãe a mesma música que a ele. Sem dúvida, ela tocava-a muito melhor, sem notas erradas, nem hesitações, nem tateios, nem repetições, mas o bebezinho tinha muito mais expressão.
Muitas vezes mesmo é tão forte essa expressão, tão trágica até em certas árias melancólicas ou fúnebres, que se tem a sensação de que Pepito não pode, com a sua dedilhação imperfeita, exprimir todas as idéias musicais que nele fremem, de maneira que quase me atreveria a dizer que ele é muito maior músico do que aparenta...
Não somente executa as músicas que acaba de ouvir tocar no piano, mas pode também, posto que com mais dificuldade, executar ao piano as árias que ouviu cantar. “Causa pasmo vê-lo então achar, imaginar, reconstituir os acordes do contraponto e da harmonia, como o poderia fazer um músico perito.” Numa experiência feita há pouco tempo, um amigo meu cantou-lhe uma melodia muito complexa. Depois de tê-la ouvido cinco ou seis vezes, sentou-se ao piano, dizendo que se tratava de uma habanera, o que era verdade, e repetiu-a, senão no todo, pelo menos nas partes essenciais.
Invenção – É muitas vezes bem difícil, quando se ouve um improvisador, distinguir o que é invenção do que é reprodução, pela memória, de árias e trechos musicais já ouvidos. É certo, entretanto, que, quando Pepito se põe a improvisar, raras vezes lhe falha a inspiração e acha, muitas vezes, melodias extremamente interessantes, que pareceram mais ou menos originais a todos os assistentes. Há uma introdução, um meio, um fim; há, ao mesmo tempo, uma variedade e uma riqueza de sons que talvez admirassem, se se tratasse de um músico de profissão, mas que, numa criança de três anos e meio, causam verdadeira estupefação.”
Desde essa época prosseguiu o jovem artista o curso dos seus triunfos cada vez maiores. Tendo-se feito violinista incomparável, causa a admiração do mundo musical com o seu talento prematuro. Deu também muitos concertos em Leipzig e representações musicais em S. Petersburgo.[xli]
Assinalava-se de Rennes, a 28 de novembro de 1911, ao Le Matin, o caso de outra criança musicista:
“Nossa cidade possui um novo Mozart. Esse pequeno prodígio, filho de um empregado da Posta, nasceu em Rennes a 8 de outubro de 1904; tem, pois, 7 anos e dois meses. O jovem René Guillon, tal é o nome dessa criança extraordinária, compõe, não obstante sua idade, e executa ao piano sinfonias, sonatas, melodias, fugas, duos para piano e violão, duos para violões. Ainda bebê já parecia com disposição para o desenho; sentiu inclinação muito viva para a música, em seguida à audição da Marcha Fúnebre de Chopin, executada pela banda do 41º de Linha. Posto que nunca tivesse tocado um único instrumento, assim que entrou em casa dos pais, pôs-se ao piano e executou a célebre peça.
Desde esse momento, começou a compor, ao correr da inspiração, pedaços de música que fazem a admiração dos professores do Conservatório.”
Ajuntemos a essa lista dos meninos músicos o nome de Willy Ferreros que, com a idade de 4 anos e meio, dirigia com maestria a orquestra do Folies-Bergère, de Paris, depois a do Cassino de Lyon. Eis o que a seu respeito nos diz, no número de 17 de fevereiro de 1911, a revista Comédia:
“É um homenzinho que traz já garbosamente o traje negro, as calças de cetim, o colete branco e as botinas de verniz. Tendo na mão a batuta, dirige com desembaraço, segurança e precisão incomparáveis uma orquestra de 80 músicos, sempre atento às menores particularidades, escrupuloso observador do ritmo...
Há dias, ao acaso de uma viagem ao Meio-dia (Sul da França), o Sr. Clément Baunel descobriu esse pequeno prodígio; entusiasmou-se com tal instinto musical e trouxe o menino para Paris, que conquistou desde ontem à tarde. Ao correr da revista do Folies-Bergère, Willy Ferreros regeu, com os Cadets, de Souza, a Sylvia, de Léo Delibes. Foi um extraordinário acontecimento.”
O Intransigeant, de 22 de junho de 1911, acrescenta que ele é igualmente admirável na direção das Sinfonias de Haydn, na marcha do Tannhauser e na Dança de Anitra, de Grieg.
Citemos também Le Soir, de Bruxelas,[xlii] na enumeração que faz de algumas crianças notáveis de além-mar:
“Entre os rapazes-prodígio do Novo Mundo, devemos citar um, o engenheiro George Steuber, que conta 13 primaveras, e Harry Dugan, que ainda não completou 9 anos. Harry Dugan acaba de fazer uma excursão de 1.000 milhas (cerca de 1.600 quilômetros) através da República estrelada, onde realizou negócios colossais para a casa que representa.
Por mais incrível que pareça, a Universidade de Nova Orleans acaba de passar diploma de médico a um estudante com 5 anos de idade, chamado Willie Gwin. Os examinadores declararam depois, em sessão pública, que o novel Esculápio era o mais sábio osteólogo a que haviam passado diploma. Willie Gwin é filho de um médico conhecido.
A esse propósito, os jornais transatlânticos publicam uma lista de meninos-prodígio. Um deles, mal contando 11 anos de idade, fundou recentemente um jornal intitulado The Sunny Home, cuja tiragem, no terceiro número, era já de 20 mil exemplares. Pierre Loti e Sully Prudhomme são colaboradores do Chatterton americano.
Entre os pregadores célebres dos Estados Unidos, cita-se o jovem Dennis Mahan, de Montana, que, desde 6 anos, causava pasmo aos fiéis pelo seu profundo conhecimento das Escrituras e pela eloqüência da sua palavra.”
Juntemos a essa lista o nome do famoso engenheiro sueco Ericson, que aos 12 anos era inspetor no grande canal marítimo de Suez e tinha às suas ordens 600 operários.[xliii]
*
Voltemos ao problema das crianças-prodígio e examinemo-lo nos seus diferentes aspectos. Duas hipóteses foram aventadas para explicá-lo: a hereditariedade e a mediunidade.
A hereditariedade é, ninguém o ignora, a transmissão das propriedades de um indivíduo aos seus descendentes; as influências hereditárias são consideráveis nos dois pontos de vista, físico e psíquico. A transmissão do temperamento, dos traços do caráter e da inteligência de pais a filhos, é muito sensível em certas pessoas. Por diferentes títulos, encontramos em nós não somente as particularidades orgânicas dos nossos progenitores diretos ou dos nossos antepassados, mas também suas qualidades ou seus defeitos.
No homem atual revive a misteriosa linhagem inteira de seres, de cujos esforços seculares para uma vida mais elevada e completa ele é o resumo; mas a par das analogias há divergências mais consideráveis. Os membros de uma mesma família, posto que apresentando semelhanças, traços comuns, oferecem também, às vezes, diferenças que se destacam bem. O fato pode ser verificado por toda parte, ao redor de nós, em cada família, em irmãos e irmãs e até em gêmeos. Muitos destes, de semelhança física nos primeiros anos, a ponto de custar a diferençá-los um do outro, apresentam no decurso do seu desenvolvimento diferenças sensíveis de feições, caráter e inteligência.
Para explicar essas dessemelhanças será, pois, necessário fazer intervir um novo fator na solução do problema; serão os antecedentes do ser, que lhe permitiram aumentar suas faculdades, sua experiência de vidas em vidas e constituir-se uma individualidade, trazendo um cunho próprio de originalidade e as próprias aptidões.
Só a lei dos renascimentos poderá fazer-nos compreender como certos Espíritos encarnados mostram, desde os primeiros anos, a facilidade de trabalho e a assimilação que caracterizam as crianças-prodígio. São os resultados de imensos labores que familiarizaram esses Espíritos com as artes ou as ciências em que primam. Longas investigações, estudos e exercícios seculares deixaram impressas no seu invólucro perispiritual marcas profundas que geram uma espécie de automatismo psicológico. Nos músicos, notadamente, essa faculdade cedo se manifesta, por processos de execução que espantam os mais indiferentes e deixam perplexos sábios como o Prof. Richet.
Existem, nesses jovens, reservas consideráveis de conhecimentos armazenados na consciência profunda e que, daí, transbordam para a consciência física, de modo que produzem as manifestações precoces do talento e do gênio. Posto que parecendo anormais, não são, entretanto, mais do que conseqüência do labor e dos esforços continuados através dos tempos. É a essa reserva, a esse capital indestrutível do ser, que F. Myers chama consciência subliminal e que se encontra em cada um de nós; revela-se não só no senso artístico, científico ou literário, mas também por todas as aquisições do Espírito, tanto na ordem moral, quanto na ordem intelectual.
A concepção do bem, do justo, a noção do dever, são muito mais vivas em certos indivíduos e em certas raças do que noutros; não resultam somente da educação atual, como se pode reconhecer por uma observação atenta dos indivíduos nas suas impulsões espontâneas, mas também do cabedal próprio que trazem ao nascer. A educação desenvolve esses germens nativos, permite que se expandam e produzam todos os seus frutos; mas, por si só, seria incapaz de incubar tão profundamente aos recém-vindos as noções superiores que lhes dominam toda a existência, o que cotidianamente é verificado nas raças inferiores, refratárias a certas idéias morais e sobre quem a educação pouca influência tem.
Os antecedentes explicam, igualmente, as anomalias estranhas de seres com caráter selvagem, indisciplinado, malfazejo, que aparecem de repente em centros honestos civilizados. Têm-se visto filhos de boa família cometerem roubos, atearem incêndios, praticarem crimes com audácia e habilidade consumadas, sofrerem condenações e desonrarem o nome que usavam; em certas crianças citam-se atos de ferocidade sanguinária que não encontram explicação nem em seus parentes próximos, nem em sua ascendência. Adolescentes, por exemplo, matam os animais domésticos que lhes caem nas mãos, depois de os terem torturado com rematada crueldade.
Em sentido oposto podem-se registrar casos extraordinários de dedicação, considerada a idade dos que os praticam; salvamentos são efetuados com reflexão e decisão por crianças de dez anos de idade ou menos. Tais indivíduos, como os precedentes, parecem trazer para este mundo disposições particulares que não se encontram nos seus parentes. Assim como se vêem anjos de pureza e doçura nascerem e crescerem em meios grosseiros e depravados, assim também se encontram ladrões e assassinos em famílias virtuosas, num e noutro caso em condições tais que nenhum precedente atávico pode dar a chave do enigma.
Todos esses fenômenos, na sua variedade infinita, têm sua origem no passado da alma, nas numerosas vidas humanas que ela percorreu; cada um traz ao nascer os frutos da sua evolução, a intuição do que aprendeu, as aptidões adquiridas nos diversos domínios do pensamento e da obra social, na Ciência, no comércio, na indústria, na navegação, na guerra, etc.; traz habilidade para determinada coisa em particular, conforme sua atividade se tenha exercitado nesse ou naquele sentido.
O Espírito tem capacidade para os estudos mais diversos; mas, no curso limitado da vida terrestre, por efeito das condições ambientes, por causa das exigências materiais e sociais, geralmente só se aplica ao estudo de um número restrito de questões e, desde que sua vontade se encaminhou para qualquer dos vastos domínios do saber, em razão das suas tendências e das noções em si acumuladas, sua superioridade nesse sentido declara-se e define cada vez mais; repercute de existência em existência, revelando-se, em cada vinda à arena terrestre, por manifestações cada vez mais precoces e mais acentuadas. Daí, as crianças-prodígio e, em forma menos distinta, as vocações, as predisposições nativas; daí o talento, o gênio, que são o resultado de esforços perseverantes e contínuos para um objetivo determinado.
Que a alma é chamada, todavia, a entrar na posse de todas as formas do saber e não a restringir-se a algumas necessidades de estágios sucessivos, demonstra-se pelo simples fato da lei de um desenvolvimento sem limites. Do mesmo modo que a prova das vidas anteriores é estabelecida pelas aquisições realizadas antes do nascimento, a necessidade das vidas futuras impõe-se como conseqüência dos nossos atos atuais, conseqüência que, para campo de ação, exige condições e meios em harmonia com o estado das almas. Atrás de nós temos um infinito de promessas e esperanças; mas, de todo esse esplendor de vida, a maior parte dos homens só vê e só quer ver o mesquinho fragmento da existência atual, existência de um dia, que eles crêem sem véspera e sem amanhã. Daí a fraqueza do pensamento filosófico e da ação moral na nossa época.
O trabalho anterior que cada Espírito efetua pode ser facilmente calculado, medido pela rapidez com que ele executa de novo um trabalho semelhante, sobre um mesmo assunto, ou também pela prontidão com que assimila os elementos de uma ciência qualquer. Deste ponto de vista, é de tal modo considerável a diferença entre os indivíduos, que seria incompreensível sem a noção das existências anteriores.
Duas pessoas igualmente inteligentes, estudando determinada matéria, não a assimilarão da mesma forma; uma alcançar-lhe-á à primeira vista os menores elementos, a outra só à custa de um trabalho lento e de uma aplicação porfiada conseguirá penetrá-la. É que uma já tem conhecimento dessa matéria e só precisa recordá-la, ao passo que a outra se encontra pela primeira vez dentro de tais questões. O mesmo se dá com certas pessoas que facilmente aceitam tal verdade, tal princípio, tal ponto de uma doutrina política ou religiosa, ao passo que outras só com o tempo e à força de argumentos se convencem ou deixam de convencer-se. Para umas é coisa familiar ao seu espírito e para outras é estranha. Vimos que as mesmas considerações são aplicáveis à variedade tão grande de caracteres e das disposições morais. Sem a noção das preexistências, a diversidade sem limites das inteligências e das consciências ficaria sendo um problema insolúvel e a ligação dos diferentes elementos do “eu”, num todo harmonioso, tornar-se-ia fenômeno sem causa.
O gênio, dizíamos, não se explica pela hereditariedade nem pelas condições do meio. Se a hereditariedade pudesse produzir o gênio, ele seria muito mais freqüente. A maior parte dos homens célebres teve ascendentes de inteligência medíocre e sua descendência foi-lhes notoriamente inferior. Sócrates e Joana d'Arc nasceram de famílias obscuras. Sábios ilustres saíram dos centros mais vulgares, por exemplo: Bacon, Copérnico, Galvani, Kepler, Hume, Kant, Locke, Malebranche, Réaumur, Spinoza, Laplace, etc. J.-J. Rousseau, filho de um relojoeiro, apaixona-se pela Filosofia e pelas Letras na loja do seu pai; D'Alembert, enjeitado, foi encontrado na soleira da porta de uma igreja e criado pela mulher de um vidreiro. Nem a ascendência nem o meio explicam as concepções geniais de Shakespeare.
Os fatos não são menos significativos, quando consideramos a descendência dos homens de gênio. Seu poder intelectual desaparece com eles, não se encontra em seus filhos. A prole conhecida de tal ou tal grande poeta ou matemático é incapaz das obras mais elementares nessas duas espécies de trabalhos; a maior parte dos homens ilustres teve filhos estúpidos ou indignos. Péricles gerou dois patetas, que foram Parallas e Xântipo. Dessemelhanças de outra natureza, mas igualmente acentuadas, encontram-se em Aristipo e seu filho Lisímaco, em Tucídides e Milésias. Sófocles, Aristarco e Temístocles não foram mais felizes com os filhos. Que contraste entre Germânico e Calígula, entre Cícero e seu filho, Vespasiano e Domiciano, Marco Aurélio e Cômodo! E que dizer dos filhos de Carlos Magno, de Henrique IV, de Pedro, o Grande, de Goethe, de Napoleão?
Há, contudo, casos em que o talento, a memória, a imaginação, as mais altas faculdades do espírito parecem hereditárias. Essas semelhanças psíquicas entre pais e filhos explicam-se pela atração e simpatia; são Espíritos similares atraídos uns para os outros por inclinações análogas e que antigas relações uniram. Generans generat sibi simile. Tal fato pode, no que diz respeito às aptidões musicais, ser verificado nos casos de Mozart e do jovem Pepito, os quais são, no entanto, muito superiores aos seus ascendentes. Mozart brilha entre os seus como um sol entre planetas obscuros. As capacidades musicais da sua família não bastam para fazer-nos compreender que aos quatro anos tenha podido revelar conhecimentos que ninguém lhe havia ensinado e mostrar ciência profunda das leis da harmonia. De todos os Mozart, foi o único que se tornou célebre. Evidentemente as altas Inteligências, a fim de manifestarem com mais liberdade suas faculdades, escolhem, para reencarnar, um meio em que haja comunhão de gostos e em que os organismos materiais se vão, de geração em geração, acomodando às aptidões, cuja aquisição elas prosseguem. Dá-se isso particularmente com os grandes músicos, para quem condições especiais de sensação e percepção são indispensáveis; mas, na maior parte dos casos, o gênio aparece no seio de uma família sem antecessor nem sucessor no encadeamento das gerações. Os grandes gênios moralizadores, os fundadores de religiões, Lao-Tse, Buda, Zaratustra, Cristo e Maomé pertencem a essa classe de Espíritos; à mesma classe pertencem também poderosas Inteligências que tiveram neste mundo os nomes imortais de Platão, Dante, Newton, G. Bruno, etc.
Se as exceções fulgurantes ou funestas, criadas numa família pelo aparecimento de um homem de gênio ou de um criminoso, fossem simples casos de atavismo, dever-se-ia encontrar na genealogia respectiva o ancestral que serviu de modelo, de tipo primitivo a essa manifestação; ora, quase nunca isso se dá, quer num, quer noutro sentido. Poderiam perguntar-nos como conciliaremos essas dessemelhanças com a lei das atrações e das semelhanças, que parece presidir à aproximação das almas? A penetração em certas famílias de seres sensivelmente superiores ou inferiores, que vêm dar ou receber ensinamento, exercer ou sofrer novas influências, é facilmente explicável; pode resultar do encadeamento dos ensinos comuns que, em certos pontos, se tornam a unir e se enlaçam como conseqüência de afeições ou ódios mútuos do passado, forças igualmente atrativas que reúnem as almas em planos sucessivos na vasta espiral de sua evolução.
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Seria possível explicar pela mediunidade os fenômenos acima apontados? Alguns o tentaram. Nós mesmos, numa obra precedente,[xliv] reconhecemos que o gênio deve muito à inspiração e que esta é uma das formas da mediunidade. Mas acrescentávamos que, mesmo nos casos em que essa faculdade especial nitidamente se desenha, não se pode considerar o homem de gênio como um simples instrumento, assim como o é, antes de tudo, o médium propriamente dito. O gênio, dissemos nós, é principalmente aquisição do passado, o resultado de pacientes estudos seculares, de lenta e dolorosa iniciação. Esses antecedentes desenvolveram no ser uma profunda sensibilidade que o torna acessível às influências elevadas.
Há diferenças apreciáveis entre as manifestações intelectuais das crianças-prodígio e a mediunidade tomada no seu sentido geral. Esta tem um caráter intermitente, passageiro, anormal. O médium não pode exercer sua faculdade a cada momento; são precisas condições especiais, difíceis, às vezes, de reunir, ao passo que as crianças-prodígio podem utilizar seus talentos a cada passo, constantemente, como nós mesmos o podemos fazer com as nossas próprias aquisições mentais.
Se analisarmos com cuidado os casos apontados, reconheceremos que o gênio dos jovens prodígios lhes é muito pessoal; a aplicação dele é regulada por sua própria vontade. Suas obras, por mais originais e admiráveis que pareçam, ressentem-se sempre da idade de seus autores e não têm o cunho que apresentariam se emanassem de uma alta Inteligência estranha. Há em sua maneira de trabalhar e proceder ensaios, perplexidades, tateamentos, que não se produziriam se eles fossem os instrumentos passivos de uma vontade superior e oculta; foi o que verificamos nomeadamente em Pepito, de cujo caso nos ocupamos mais largamente.
Seria também admissível, sem daí advir enfraquecimento para a doutrina da reencarnação, que em certos indivíduos a aquisição pessoal e a inspiração exterior se combinem e completem uma pela outra.
É sempre a essa doutrina que se deve ir buscar armas quando se trata de atacar, por qualquer lado que seja, o problema das desigualdades. As almas humanas estão mais ou menos desenvolvidas segundo suas idades e, principalmente, segundo o emprego que fizeram do tempo que têm vivido; não fomos todos lançados no mesmo instante ao turbilhão da vida; não temos caminhado todos a passo igual, não temos desfiado todos do mesmo modo o rosário de nossas existências. Percorremos uma estrada infinita. Daí procede a razão pela qual tão diferentes nos parecem as nossas situações e os nossos valores respectivos; mas para todos o alvo é o mesmo. Sob o açoite das provas, o aguilhão da dor, sobem todos, todos se elevam. A alma não é feita de uma vez só; a si mesma se faz, se constrói através dos tempos. Suas faculdades, suas qualidades, seus haveres intelectuais e morais, em vez de se perderem, capitalizam-se, aumentam, de século para século. Pela reencarnação cada qual vem para prosseguir nesse trabalho, para continuar a tarefa de ontem, a tarefa de aperfeiçoamento que a morte interrompeu. Daí a brilhante superioridade de certas almas que têm vivido muito, granjeado muito, trabalhado muito. Daí os seres extraordinários que aparecem aqui e ali na História e projetam vivos clarões no caminho que a humanidade percorre. Sua superioridade vem somente da experiência e dos labores acumulados.
Considerada sob esse aspecto, a marcha da humanidade reveste aspecto grandioso. A humanidade vai, vagarosamente, saindo da escuridão das idades, emerge das trevas da ignorância e da barbaria e avança pausadamente no meio dos obstáculos e das tempestades; sobe pela via áspera e, a cada volta do caminho, lobriga melhor os altos cimos: as cumeadas luminosas onde imperam a sabedoria, a espiritualidade, o amor.
Essa marcha coletiva é também a marcha individual, a de cada um de nós, porque essa humanidade somos nós mesmos, são os mesmos seres que, depois de certo tempo de descanso no espaço, voltam, de século a século, até que estejam preparados para uma sociedade melhor, para um mundo mais belo. Fizemos parte das gerações extintas e havemos de pertencer às gerações futuras. Formamos, na realidade, uma imensa família humana em marcha para realizar o plano divino nela escrito, o plano dos seus magníficos destinos.
Para quem quer prestar atenção, um passado inteiro vive e freme em nós. Se a História, se todas as coisas antigas têm tantos atrativos a nossos olhos, se avivam em nossas almas tantas impressões profundas, às vezes dolorosas, se nos sentimos viver a vida dos homens de outrora, sofrer os seus males, é porque essa história é a nossa. A solicitude com que estudamos, com que agasalhamos a obra de nossos antepassados, as impulsões súbitas que nos levam para tal causa ou tal crença, não têm outra razão de ser. Quando percorremos os anais dos séculos, apaixonando-nos por certas épocas, quando todo o nosso ser se anima e vibra às recordações heróicas da Grécia ou da Gália, da Idade Média, das Cruzadas, da Revolução, é o passado que sai da sombra, que se anima e revive. Através da teia urdida pelos séculos, tornamos a encontrar as próprias angústias, as aspirações, os dilaceramentos de nosso ser. Momentaneamente essa recordação está em nós coberta por um véu; mas se interrogássemos nossa subconsciência, ouviríamos sair das suas profundezas vozes, às vezes vagas e confusas, outras vezes estridentes. Essas vozes falar-nos-iam de grandes epopéias, de migrações de homens, de cavalgadas furiosas que passam como furacões, arrebatando tudo para a escuridão e para a morte, entreter-nos-iam também com as vidas humildes, despercebidas, com as lágrimas silenciosas, com os sofrimentos esquecidos, com as horas pesadas e monótonas passadas a meditar, a produzir, a orar no silêncio dos claustros ou com a vulgaridade das existências pobres e desgraçadas.
Em certas horas, um mundo inteiro obscuro, confuso, misterioso, acorda e vibra em nós, um mundo cujos murmúrios, cujos rumores nos comovem e nos inebriam. É a voz do passado. No transe do sonambulismo é ela que nos fala e nos conta as vicissitudes da nossa pobre alma, errante através do mundo; diz-nos que o nosso “eu” atual é feito de numerosas personalidades, que nele se vão juntar como os afluentes num rio; que o nosso princípio de vida animou muitas formas, cuja poeira repousa entre os destroços dos impérios, sob os restos das civilizações extintas. Todas essas existências deixaram, no mais profundo de nós mesmos, vestígios, lembranças, impressões indeléveis.
O homem que se estuda e observa, sente que tem vivido e que há de viver; herda de si mesmo, colhendo no presente o que semeou no passado e semeando para o futuro.
Assim se afirmam a beleza e a grandeza da concepção das vidas sucessivas, que vêm completar a lei de evolução entrevista pela Ciência. Exercendo sua ação simultaneamente em todos os domínios, ela distribui a cada um segundo suas obras e mostra-nos, acima de tudo, essa majestosa lei do progresso, que rege o universo e dirige a vida para estados cada vez mais belos, cada vez melhores.
XVI
As vidas sucessivas – Objeções e críticas
Já respondemos às objeções que, logo à primeira vista, o esquecimento das vidas anteriores traz ao pensamento; resta-nos refutar outras de caráter filosófico ou religioso, que os representantes das igrejas opõem, de boamente, à doutrina das reencarnações.
Em primeiro lugar, dizem, essa doutrina é insuficiente sob o ponto de vista moral. Abrindo ao homem tão vastas perspectivas para o futuro, deixando-lhe a possibilidade de reparar tudo nas suas existências vindouras, acoroçoa-o ao vício e à indolência; não oferece estímulo de bastante poder e eficácia para a prática do bem, e, por todas essas razões, é menos enérgico que o temor de um castigo eterno depois da morte.
A teoria das penas eternas não é, como vimos,[xlv] no próprio pensamento da Igreja, mais do que um espantalho destinado a amedrontar os maus; mas a ameaça do inferno, o temor dos suplícios, eficaz nos tempos de fé cega, já hoje não reprime a ninguém. No fundo, é uma impiedade para com Deus, de quem se faz um ser cruel, que castiga sem necessidade e sem o objetivo de corrigir.
Em seu lugar, a doutrina das reencarnações mostra-nos a verdadeira lei dos nossos destinos e, com ela, a realização do progresso e da justiça no universo; fazendo-nos conhecer as causas anteriores dos nossos males, põe termo à concepção iníqua do pecado original, segundo a qual toda a descendência de Adão, isto é, a humanidade inteira, sofreria o castigo das fraquezas do primeiro homem. É por isso que sua influência moral será mais profunda que a das fábulas infantis do inferno e do paraíso; oporá freio às paixões, mostrando-nos as conseqüências dos nossos atos, recaindo sobre a nossa vida presente e as nossas vidas futuras, semeando nelas germens de dor ou de felicidade. Ensinando-nos que a alma é tanto mais desgraçada quanto mais imperfeita e culpada, estimulará os nossos esforços para o bem. É verdade que é inflexível essa doutrina; mas pelo menos proporciona o castigo à culpa e, depois da reparação, fala-nos de reabilitação e esperança. Ao passo que o crente ortodoxo, imbuído da idéia de que a confissão e a absolvição lhe apagam os pecados, afaga uma esperança vã e prepara para si próprio decepções na outra vida, o homem cuja mente foi iluminada pela nova luz aprende a retificar o seu proceder, a precatar-se, a preparar com cuidado o futuro.
Há outra objeção que consiste em dizer: Se estamos convencidos de que os nossos males são merecidos, de que são conseqüência da lei de justiça, tal crença terá por efeito extinguir em nós toda a piedade, toda a compaixão pelos sofrimentos alheios; sentir-nos-emos menos inclinados a socorrer, a consolar nossos semelhantes; deixaremos livre curso às suas provações, pois que devem ser para eles uma expiação necessária e um meio de adiantamento.[xlvi] Essa objeção é especiosa; emana de fonte interessada.
Consideremos, primeiramente, a questão sob o ponto de vista social, examiná-la-emos, depois, no sentido individual. O moderno Espiritualismo ensina-nos que os homens são solidários uns com os outros, unidos por uma sorte comum. As imperfeições sociais, de que todos mais ou menos sofremos, são o resultado de nossos erros coletivos no passado. Cada um de nós traz a sua parte de responsabilidade e tem o dever de trabalhar para o melhoramento do destino geral.
A educação das almas humanas obriga-as a ocupar situações diversas. Todas têm de passar alternadamente pela prova da riqueza e pela da pobreza, do infortúnio, da doença, da dor.
O egoísta fica alheio a todas as misérias deste mundo que não o atingem e diz: “Depois de mim, o dilúvio”. Crê que a morte o subtrai à ação das leis terrestres e às convulsões da sociedade. Com a reencarnação, muda o ponto de vista. Será forçoso voltar e sofrer os males que contávamos legar aos outros. Todas as paixões, todas as iniqüidades que tivermos tolerado, animado, sustentado, seja por fraqueza, seja por interesse, voltar-se-ão contra nós. O meio social em prol do qual nada tivermos feito constranger-nos-á com toda a força dos seus braços. Quem esmagou, quem explorou os outros será, por sua vez, explorado, esmagado; quem semeou a divisão, o ódio, sofrer-lhes-á os efeitos: o orgulhoso será desprezado e o espoliador espoliado; aquele que fez sofrer sofrerá. Se quiserdes assentar em bases firmes o vosso próprio futuro, trabalhai, pois, desde já, em aperfeiçoar, em melhorar o meio em que haveis de renascer; pensai na vossa própria reforma. Eis o que é indispensável fazer-se para que as misérias coletivas sejam vencidas pelo esforço de todos. Aquele que, podendo ajudar os seus semelhantes, deixa de fazê-lo, falta à lei de solidariedade.
Quanto aos males individuais, diremos, colocando-nos em outro ponto de vista: “Não somos juízes das medidas exatas onde começa e onde acaba a expiação.” Sabemos, porventura, quais são os casos em que há expiação? Muitas almas, sem serem culpadas, mas ávidas de progresso, pedem uma vida de provas para mais rapidamente efetuarem sua evolução. O auxílio que devemos a estas almas pode ser uma das condições de seu destino, como do nosso, e é possível que estejamos adrede colocados em seu caminho para aliviá-las, esclarecê-las, confortá-las. Sempre que se nos ofereça o mínimo ensejo de nos tornarmos úteis e prestativos e deixamos de o ser, há de nossa parte mau cálculo, porquanto todo bem e todo mal feitos remontam à sua origem com os seus efeitos.
“Fora da caridade não há salvação”, disse Allan Kardec. Tal é o preceito por excelência da moral espírita. O sofrimento, onde quer que se manifeste, deve encontrar corações compassivos prontos a socorrer e consolar. A caridade é a mais bela das virtudes; só ela dá acesso aos mundos felizes.
Muitas pessoas para quem a vida foi rude e difícil aterram-se com a perspectiva de a renovarem indefinidamente. Essa longa e penosa ascensão através dos tempos e dos mundos enche de pavor aqueles que, tomados de fadiga, contam com um descanso imediato e uma felicidade sem fim. É certo que se precisa ter têmpera n’alma para contemplar sem vertigem essas perspectivas imensas. A concepção católica era mais sedutora para as almas tímidas, para os espíritos indolentes, que, segundo ela, poucos esforços tinham a fazer para alcançar a salvação. A visão do destino é formidável. Só espíritos vigorosos podem considerá-lo sem fraquejar, encontrar na noção do destino o incentivo necessário, a compensação dos pequenos hábitos confessionais, a calma e a serenidade do pensamento.
Uma felicidade, que é preciso conquistar à custa de tantos esforços, amedronta mais do que atrai as almas humanas, fracas ainda em grande parte e inconscientes do seu magnífico futuro. A verdade, porém, está acima de tudo! Aqui, portanto, não estão em jogo as nossas conveniências pessoais. A lei, agrade ou não, é lei! É dever nosso subordinar-lhe os nossos desígnios e atos e não cabe a ela dobrar-se às nossas exigências.
A morte não pode transformar um Espírito inferior em Espírito elevado. Somos, nesta como na outra vida, o que nos fizemos, intelectual e moralmente. Isso é demonstrado por todas as manifestações espíritas. Há quem diga, entretanto, que só as almas perfeitas penetrarão nos reinos celestes e, por outro lado, restringem os meios de aperfeiçoamento ao círculo de uma vida efêmera. Pode alguém vencer suas paixões, modificar seu caráter durante uma única existência? Se alguns o têm conseguido, que pensar da multidão dos seres ignorantes e viciosos que povoam nosso planeta? É admissível que sua evolução se restrinja a essa curta passagem pela Terra? Onde encontrarão também, os que se tornaram culpados de grandes crimes, as condições necessárias à reparação? Se não fosse nas reencarnações ulteriores, tornaríamos forçosamente a cair no labirinto do inferno; mas um inferno perpétuo é tão impossível como um paraíso eterno, porque não há ato, por mais louvável, nem crime, por mais horrendo, que produza uma eternidade de recompensas ou de castigos!
Basta considerar a obra da Natureza, desde a origem dos tempos, para verificar-se por toda parte a lenta e tranqüila evolução dos seres e das coisas, que tanto se ajusta ao Poder Eterno e que todas as vozes do universo proclamam. A alma humana não escapa a essa regra soberana. Ela é a síntese, o remate desse esforço prodigioso, o último anel da cadeia que se desenrola desde as mais profundas camadas da vida e cobre o globo inteiro. Não é no homem que se resume toda a evolução dos reinos inferiores e que aparece fulgente o princípio sagrado da perfectibilidade? Não é esse princípio a sua própria essência e como que o selo divino impresso em sua natureza? E, se assim é, como admitir que a inteligência humana possa estar colocada fora das leis imponentes, emanadas da Causa Primária das Inteligências?
A onda de vida que rola suas águas através das idades para chegar ao ser humano e que, em seu curso, é dirigida pela lei grandiosa da evolução, pode ir terminar na imobilidade? Por toda a parte – na Natureza e na História – está escrito o princípio do progresso. Todo movimento que ele imprime às forças em ação no nosso mundo vai ter ao homem. Pode, pois, pretender-se que a parte essencial do homem, o seu “eu”, a sua consciência, escape à lei de continuidade e progressão? Não! A lógica, sem falar dos fatos, demonstra que a nossa existência não pode ser única. O drama da vida não pode constar de um só ato; é-lhe indispensável uma continuação, um prolongamento, pelos quais se explicam e esclarecem as incoerências aparentes e as obscuridades do presente; requer um encadeamento de existências solidárias umas das outras, realçando o plano e a economia que presidem aos destinos dos seres humanos.
Resultará daí estarmos condenados a um labor ímprobo e incessante? A lei de ascensão recua indefinidamente o período de paz e descanso? De modo nenhum. À saída de cada vida terrestre a alma colhe o fruto das experiências adquiridas; aplica as suas forças e faculdades ao exame da vida íntima e subjetiva; procede ao inventário da sua obra terrestre, assimila as partes úteis e rejeita o elemento estéril. É a primeira ocupação na outra vida, o trabalho por excelência de recapitulação e análise. O recolhimento entre os períodos de atividade terrestre é necessário e todo ser que segue a vida normal dele recebe, a seu turno, os benefícios.
Dizemos recolhimento porque, na realidade, o Espírito, no estado livre, ignora o descanso; a atividade é sua própria natureza. Essa atividade não é visível no sono? Só os órgãos materiais de transmissão sentem fadiga e pouco a pouco periclitam. Na vida do espaço são desconhecidos esses obstáculos; o Espírito pode consagrar-se, sem incômodo e sem coação, até à hora da reencarnação, às missões que lhe cabem.
O regresso à vida terrestre é para ele como que um rejuvenescimento. Em cada renascimento a alma reconstitui para si uma espécie de virgindade. O esquecimento do passado, qual Letes benfazejo e reparador, torna a fazer dela um ser novo, que repete a ascensão vital com mais ardor. Cada vida realiza um progresso, cada progresso aumenta o poder da alma e aproxima-a do estado de plenitude. Essa lei mostra-nos a vida eterna em sua amplitude. Todos nós temos um ideal a realizar – a beleza suprema e a suprema felicidade. Encaminhamo-nos para esse ideal com mais ou menos rapidez segundo a impulsão dos nossos ímpetos e a intensidade dos nossos desejos. Não existe nenhuma predestinação; nossa vontade e nossa consciência, reflexo vivo da norma universal, são nossos árbitros. Cada existência humana estabelece as condições do que se há de seguir. Seu conjunto constitui a plenitude do destino, isto é, a comunhão com o Infinito.
Perguntam-nos muitas vezes: “Como podem a expiação e o resgate das faltas passadas ser meritórios e fecundos para o Espírito reencarnado, se este, esquecido e inconsciente das causas que o oprimem, ignora atualmente o fim e a razão de ser de suas provações?”
Vimos que o sofrimento não é forçosamente uma expiação. Toda a Natureza sofre; tudo o que vive, a planta, o animal e o homem, está sujeito à dor. O sofrimento é principalmente um meio de evolução, de educação; mas, no caso em questão, é preciso lembrar que se deve estabelecer distinção entre a inconsciência atual e a consciência virtual do destino no Espírito reencarnado.
Quando o Espírito compreende, à luz intensa do Além, que lhe é absolutamente necessária uma vida de provações para apagar os lamentáveis resultados de suas existências anteriores, esse mesmo Espírito, num movimento de plena inteligência e plena liberdade, escolhe ou aceita espontaneamente a reencarnação futura com todas as conseqüências que ela acarreta, aí compreendido o esquecimento do passado, que se segue ao ato da reencarnação. Essa vista inicial, clara e completa, do seu destino no momento preciso em que o Espírito aceita o renascimento, basta amplamente para estabelecer a consciência, a responsabilidade e o mérito dessa nova vida. Dela o conserva neste mundo a intuição velada, o instinto adormecido, que a menor reminiscência, o menor sonho, bastam para acordar e fazer reviver.
É por esse laço invisível, mas real e possante, que a vida atual se liga à vida anterior do mesmo ser e constitui a unidade moral e a lógica implacável de seu destino. Se, já o demonstramos, não nos lembramos do passado, é porque, as mais das vezes, nada fazemos para despertar as recordações adormecidas; mas a ordem das coisas não deixa por isso de subsistir, nenhum elo da cadeia magnética do destino se obliterou e, ainda menos, se quebrou.
O homem de idade madura não se lembra do que fez na meninice. Deixa por isso de ser a criancinha de outrora e de lhe realizar as promessas? O grande artista que, ao entardecer de um dia de labor, cede ao cansaço e adormece, não retém durante o sono o plano virtual, a visão íntima da obra que vai prosseguir, que vai continuar, assim que acordar? Acontece o mesmo com o nosso destino, que é uma lide constante entrecortada, muitas vezes, em seu curso, por sonos, que são, na realidade, atividades de formas diferentes, abrilhantadas por sonhos de luz e beleza!
A vida do homem é um drama lógico e harmônico, cujas cenas e decorações mudam, variam ao infinito, mas não se apartam nunca, um só instante, da unidade do objetivo nem da harmonia do conjunto. Só quando voltarmos para o mundo invisível é que compreenderemos o valor de cada cena, o encadeamento dos atos, a incomparável harmonia do todo em suas ligações com a vida e a unidade universais.
Sigamos, pois, com fé e confiança, a linha traçada pela Mão Infalível. Dirijamo-nos aos nossos fins, como os rios se dirigem para o mar – fecundando a terra e refletindo o céu.
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Há mais duas objeções que reclamam a nossa atenção: “Se a teoria da reencarnação fosse verdadeira – diz Jacques Brieu no Moniteur des Études Psychiques – o progresso moral deveria ser sensível desde o começo dos tempos históricos. Ora, sucede coisa muito diferente; os homens de hoje são tão egoístas, tão violentos, tão cruéis e tão ferozes como o eram há 2.000 anos.” [xlvii]
É uma apreciação exagerada. Ainda que a consideremos como exata, nada prova contra a reencarnação. Sabemos que os melhores homens, aqueles que depois de uma série de existências alcançaram certo grau de perfeição, prosseguem a sua evolução em mundos mais adiantados e só voltam à Terra, excepcionalmente, na qualidade de missionários; por outro lado, contingentes de Espíritos, vindos de planos inferiores, cotidianamente se vão juntando à população do globo. Como estranhar, nessas condições, que o nível moral se eleve muito pouco?
Segunda objeção: a doutrina das vidas sucessivas, espalhando-se na humanidade, produz abusos inevitáveis. Não sucede o mesmo com todas as coisas no seio de um mundo pouco adiantado, cuja tendência é corromper, desnaturar os ensinamentos mais sublimes, acomodá-los a seus gostos, paixões e vis interesses?
O orgulho humano pode encontrar aí fartas satisfações e, com a ajuda dos Espíritos zombeteiros ou da sugestão automática, assiste-se, por vezes, às revelações mais burlescas. Assim como muita gente tem a pretensão de descender de ilustre estirpe, assim também, entre os teósofos e os espíritas, encontra-se muito crente vaidoso convencido de ter sido tal ou qual personagem célebre do passado.
“Em nossos dias – diz Myers –[xlviii] Anna Kingsford e Edward Maitland pretendiam ser nada menos do que a Virgem Maria e São João Batista.”
Pelo que pessoalmente me diz respeito, conheço por esse mundo afora umas dez pessoas que afirmam ter sido Joana d'Arc. Seria um nunca acabar se fosse preciso enumerar todos os casos desse gênero. Não obstante, é possível encontrar nesse terreno alguma parcela de verdade. Como havemos, porém, de joeirá-la dos erros? Em tais matérias, precisamos entregar-nos a uma análise atenta e passar tais revelações pelo crivo de uma crítica rigorosa; investigar primeiramente se a nossa individualidade apresenta traços salientes da pessoa designada; reclamar depois, da parte dos Espíritos reveladores, provas de identidade no tocante a tais personalidades do passado e a indicação de particularidades e de fatos desconhecidos, cuja verificação seja possível fazer ulteriormente.
Convém observar que esses abusos, como tantos outros, não derivam da natureza da causa incriminada, mas da inferioridade do meio em que ela exerce sua ação. Tais abusos, frutos da ignorância e de uma falsa apreciação, hão de diminuir de importância e desaparecer com o tempo, graças a uma educação mais sólida e mais prática.
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Uma última dificuldade ainda subsiste: é a que resulta da contradição aparente dos ensinamentos espíritas a respeito da reencarnação. Por muito tempo, nos países anglo-saxônios, as mensagens dos Espíritos não falavam dela; muitas até a negaram e isso serviu de argumento capital para os adversários do Espiritismo.
Já, em parte, respondemos a essa objeção. Dissemos então que essa anomalia se explicava pela necessidade em que se achavam os Espíritos de contemporizar, a princípio, com preconceitos religiosos muito inveterados em certos pontos. Nos países protestantes, hostis à reencarnação, foram deixados voluntariamente na penumbra, para serem divulgados com o tempo, quando fosse julgado oportuno, vários pontos da Doutrina. Com efeito, passado esse período de silêncio, vemos as afirmações espíritas em favor das vidas sucessivas produzirem-se hoje nos países de além-mar com a mesma intensidade que nos países latinos. Houve graduação em alguns pontos do ensino; não houve contradição.
As negações derivam quase sempre de Espíritos muito pouco adiantados, para saberem e poderem ler em si mesmos e discernir o futuro que os espera. Sabemos que essas almas passam pela reencarnação sem a preverem e, chegada a hora, são imersas na vida material como num sonho anestésico.
Os preconceitos de raça e de religião, que na Terra exerceram influência considerável nesses Espíritos, continuam a exercê-la na outra vida. Enquanto a entidade elevada sabe facilmente libertar-se deles com a morte, as menos adiantadas ficam por muito tempo dominadas por eles.
A lei dos renascimentos foi, no Novo Continente, considerada, por causa dos preconceitos de cor, debaixo de aspecto muito diferente daquele por que o foi no antigo mundo, onde velhas tradições orientais e célticas haviam depositado seu gérmen no fundo de muitas almas. Produziu logo a princípio tal choque, levantou tanta repulsão, que os Espíritos dirigentes do movimento julgaram mais prudente contemporizar.
Deixaram, primeiramente, disseminar-se a idéia em meios mais bem preparados, para, daí, ir lavrando até aos centros refratários por diferentes caminhos, visíveis e ocultos, e, sob a ação simultânea dos agentes dos dois mundos, infiltrar-se neles paulatinamente, como está sucedendo no momento presente.
A educação protestante não deixa no pensamento dos crentes ortodoxos lugar algum para a noção das vidas sucessivas. No seu modo de pensar, a alma, por ocasião da morte, é julgada e fixada definitivamente ou no paraíso ou no inferno. Para os católicos existe um termo médio: é o purgatório, lugar indefinido, não circunscrito, onde a alma tem de expiar suas faltas e purificar-se por meios incertos. Essa concepção é um encaminhamento para a idéia dos renascimentos terrestres. O católico pode assim relacionar as crenças antigas com as novas, ao passo que o protestante ortodoxo se vê na necessidade de fazer tábua rasa e de edificar no seu entendimento doutrinas absolutamente diferentes das que lhe foram sugeridas por sua religião. Daí, a hostilidade que o princípio das vidas múltiplas encontrou logo de princípio nos países anglo-saxônicos adeptos do Protestantismo; daí, os preconceitos que persistem, mesmo depois da morte, numa certa categoria de Espíritos.
Vimos que, na atualidade, pouco a pouco se vai produzindo uma reação, a crença nas vidas sucessivas vai ganhando todos os dias mais algum terreno nos países protestantes, à medida que a idéia do inferno se lhes vai tornando estranha. Conta já, na Inglaterra e na América, numerosos partidários; os principais órgãos espíritas desses países adotaram-na, ou pelo menos a discutem com uma imparcialidade de bom quilate. Os testemunhos dos Espíritos em seu favor, tão raros ao princípio, multiplicam-se hoje. Damos alguns exemplos.
Em Nova Iorque foi publicada, em 1905, uma obra importante com o título The Widow's Mite, na qual se fala da reencarnação. Diz J. Colville, na Light:
“O autor, Sr. Funck, é homem muito conhecido e altamente respeitado nos centros literários americanos como o mais antigo sócio da firma comercial Funck and Wagnalls, editora do famoso Standard Dictionary, cuja autoridade é reconhecida em toda parte onde se fala inglês.
É um homem prudente, que, passo a passo e com as maiores precauções, chegou à conclusão de que a Telepatia e a comunicação com os Espíritos estão, de ora em diante, demonstradas. Tomou como princípio pesar toda aparência de prova que se apresente e, graças a isso, chegou, após vinte e cinco anos de observações conscienciosas, a editar uma obra que provocará, com certeza, em muitos espíritos, convicção mais profunda do que provocaria se ele tivesse ligado atenção menos escrupulosa às minúcias. Esse livro contém uma grande variedade de fenômenos psíquicos observados nas condições mais variadas e relatados com o maior cuidado por uma testemunha céptica a princípio, e merece lugar elevado na literatura especial.”
Na obra de que se trata, o autor expõe, primeiramente, as condições de experimentação:
“O leitor deve considerar que a médium é uma senhora de idade, sem instrução, e a quem, tendo-a encontrado já nuns quarenta círculos, tivemos todo o vagar de estudar sob o ponto de vista moral. Na presente ocasião estou absolutamente convencido de que ela não tinha nenhum cúmplice. A primeira comunicação, de natureza muito elevada, dizia respeito às leis da Natureza; deixamo-la de parte, apesar do seu interesse, e chegamos à segunda, que tratava da reencarnação. A voz do Espírito-guia do grupo, Amos, fazendo-se ouvir, disse:
– Está aqui um Espírito luminoso que hoje vos apresento; vem dar-vos esclarecimentos a respeito da reencarnação, que foi o objeto de uma de vossas perguntas; é um Espírito muito elevado, que consideramos como instrutor para nós mesmos, e vem a instâncias nossas. Estais lembrados de que as perguntas que haveis feito, em várias reuniões, não receberam resposta satisfatória; por isso recorremos a ele, que consentiu em vir. Sinto vivamente que o Prof. Hyslop esteja ausente, já que fez várias perguntas a esse respeito, em outra ocasião.
Uma voz, muito mais forte que a precedente e absolutamente diversa, toma assim a palavra:
– Meus amigos, a reencarnação é a lei do desenvolvimento do Espírito na via do seu progresso (e todos devemos progredir, lentamente, é verdade, com pausas mais ou menos prolongadas, desenvolvimento que demanda longos séculos). Vem um momento em que o Espírito torna a nascer, entrando em outra esfera mais elevada da sua existência. Não falo somente da reencarnação na Terra. Não é freqüente que um Espírito elevado, que tenha vivido na Terra, torne a nascer nela. Algumas vezes, no entanto, os Espíritos são afeiçoados à Terra e aos seus atrativos, e tornam a tomar corpos humanos e a viver outra vez na Terra; mas isso não é necessário para os Espíritos elevados. Os progressos são mais rápidos no corpo espiritual e nas regiões onde nos achamos do que nas condições da vida terrena. O que acabamos de dizer é aplicável a cada uma das Esferas que sucessivamente percorremos.
Diz, depois, que Jesus desceu de uma Esfera superior para desempenhar missão junto aos homens e trazer-lhes a verdade.”
Friedrich Myers, em sua obra magistral La Personnalité Hummaine (edição inglesa) cap. X, 1.011, exprime opinião análoga:
“Nosso novo conhecimento, em Psiquismo, confirmando o pensamento antigo, confirma também, em relação ao Cristianismo, as narrativas das aparições do Cristo depois da morte e faz-nos entrever a possibilidade da reencarnação benfazeja de Espíritos que atingiram um nível mais elevado que o homem.”
Depois, na pág. 403:
“Das três hipóteses que têm por objetivo explicar o mistério das variações individuais, do aparecimento de qualidades e propriedades novas, a teoria das reminiscências de Platão parece-nos a mais verossímil, com a condição de assentar a base nos dados científicos estabelecidos em nossos dias.”
E à pág. 329:
“A doutrina da reencarnação nada encerra que seja contrário à melhor razão e aos instintos elevados do homem. Não é, decerto, fácil estabelecer uma teoria firmando a criação direta de Espíritos em fases de adiantamento tão diversas como aquelas em que tais Espíritos entram na vida terrena, com a forma de homens mortais; deve existir certa continuidade, certa forma de passado espiritual. Por enquanto, nenhuma prova possuímos em favor da reencarnação.”
Myers não conhecia as experiências recentes de que falamos no capítulo XIV; no entanto afirma novamente (pág. 407): “a evolução gradual (das almas) tem estádios numerosos, aos quais é impossível assinalar um limite”.
Mais recentemente, as Cartas do Mundo dos Espíritos, de Lord Carlingford, publicadas na Inglaterra, admitem as reencarnações como conseqüência necessária da lei de evolução.
A doutrina das vidas sucessivas vai-se insinuando mansamente, na atualidade, por toda parte, do outro lado da Mancha. Aí vemos um filósofo como o Professor Taggart adotá-la de preferência às outras doutrinas espiritualistas e declarar, como o fizera Hume antes dele, que “ela é a única que apresenta vistas razoáveis acerca da imortalidade”.
No último congresso da Igreja Anglicana, em Weymouth, o venerável arcediago Colley, reitor de Stockton (Warwickshire), fez uma conferência sobre a reencarnação, em sentido favorável. Esse fato indica-nos que as novas idéias abrem brecha até no seio das igrejas da Inglaterra (Light of Truth).
Enfim, em seu discurso de abertura, como presidente da Society for Psychical Research, o Rev. W. Boyd-Carpenter, bispo de Ripon, a 23 de maio de 1912, diante de seleto e distinto auditório, fez ressaltar a utilidade das pesquisas psíquicas, a fim de se obter um conhecimento mais completo do “eu” humano e precisar as condições de sua evolução. “O interesse desse discurso, dizem os Annales des Sciences Psychiques de maio de 1912, reside especialmente nisto: o ver-se aí um alto dignitário da Igreja Anglicana afirmar, como certos padres da Igreja, a preexistência da alma e aderir à teoria da evolução e das existências múltiplas.”
XVII
As vidas sucessivas – Provas históricas
Seria incompleto nosso estudo se não volvêssemos rápida vista para o papel que representou na História a crença nas vidas sucessivas. Essa doutrina domina toda a antiguidade. Vamos encontrá-la no âmago das grandes religiões do Oriente e nas obras filosóficas mais puras e elevadas. Guiou na sua marcha as civilizações do passado e perpetuou-se de idade em idade. Apesar das perseguições e dos eclipses temporários, reaparece e persiste através dos séculos em todos os países.
Oriunda da Índia, espalhou-se pelo mundo. Muito antes de terem aparecido os grandes reveladores dos tempos históricos, era ela formulada nos Vedas e notadamente no “Bhagavad-Gitâ”. O Bramanismo e o Budismo nela se inspiraram e, hoje ainda, seiscentos milhões de asiáticos – o dobro do que representam todas as agremiações cristãs reunidas – crêem na pluralidade das existências.
O Japão mostrou-nos, há pouco, o poder de tais crenças num povo. A coragem magnífica, o espírito de sacrifício que os japoneses mostram em frente da morte, a sua impassibilidade em presença da dor, todas essas qualidades dominadoras, que fizeram a admiração do mundo em circunstâncias memoráveis, não tiveram outra causa.
Depois da batalha de Tsushima, diz-nos o Journal, numa cena de melancolia grandiosa, diante do Exército reunido no cemitério de Aoyama, em Tóquio, o Almirante Togo falou, em nome da Nação, e dirigiu-se aos mortos em termos patéticos. Pediu às almas desses heróis que “protegessem a marinha japonesa, freqüentassem os navios e reencarnassem em novas equipagens”.[xlix]
Se, com o Prof. Izoulet, comentando no Colégio de França a obra do autor americano Alf. Mahan sobre o Extremo Oriente, admitirmos que a verdadeira civilização está no ideal espiritual e que, sem ele, os povos caem na corrupção e na decadência, o Japão, força será reconhecê-lo, está destinado a um grande futuro.
Voltemos à antiguidade. O Egito e a Grécia adotaram a mesma doutrina. À sombra de um simbolismo mais ou menos obscuro, esconde-se por toda parte a universal palingenesia.
A antiga crença dos egípcios é-nos revelada pelas inscrições dos monumentos e pelos livros de Hermes:
“Tomada na origem, diz-nos o Sr. de Vogue, a doutrina egípcia apresenta-nos a viagem às terras divinas como uma série de provas, ao sair das quais se opera a ascensão na luz”; mas, o conhecimento das leis profundas do destino estava reservado só para os adeptos.[l]
No seu recente livro, La Vie et la Mort, A. Dastre exprime-se assim:[li]
“No Egito a doutrina das transmigrações era representada por imagens hieráticas surpreendentes. Cada ser tinha o seu duplo. Ao nascer, o egípcio é representado por duas figuras. Durante a vigília as duas individualidades se confundem numa só; mas, durante o sono, ao passo que uma descansa e restaura os órgãos, a outra se lança no país dos sonhos. Não é, entretanto, completa essa separação; só o será pela morte ou, antes, a separação completa é que será a própria morte. Mais tarde esse duplo ativo poderá vir vivificar outro corpo terrestre e ter, assim, uma nova existência semelhante.”
Na Grécia vamos encontrar a doutrina das vidas sucessivas nos poemas órficos; era a crença de Pitágoras, Sócrates, Platão, Apolônio e Empédocles. Com o nome de metempsicose [lii] falam dela muitas vezes nas suas obras em termos velados, porque, em grande parte, estavam ligados pelo juramento iniciático; contudo, ela é afirmada com clareza no último livro da República, em Fedra, em Timeu e em Fédon.
“É certo que os vivos nascem dos mortos e que as almas dos mortos tornam a nascer.” (Fedra.)
“A alma é mais velha que o corpo. As almas renascem incessantemente do Hades para tornarem à vida atual.” (Fédon.)
A reencarnação era festejada pelos egípcios nos mistérios de Ísis e, pelos gregos, nos de Elêusis, com o nome de mistérios de Perséfone, em cujas cerimônias só os iniciados tomavam parte.
O mito de Perséfone era a representação dramática dos renascimentos, a história da alma humana passada, presente e futura, sua descida à matéria, seu cativeiro em corpos de empréstimo, sua reascensão por graus sucessivos. As festas eleusianas duravam três dias e traduziam, em comovente trilogia, as alternações da vida dupla, terrestre e celeste. Ao cabo dessas iniciações solenes, os adeptos eram sagrados.[liii]
Quase todos os grandes homens da Grécia foram iniciados, adoradores fervorosos da grande deusa; foi em seus ensinamentos secretos que eles beberam a inspiração do gênio, as formas sublimes da arte e os preceitos da sabedoria divina. Quanto ao povo, eram-lhe apenas apresentados símbolos; mas, por baixo da transparência dos mitos, aparecia a verdade iniciática do mesmo modo que a seiva da vida transuda da casca da árvore.
A grande doutrina era conhecida do mundo romano. Ovídio, Vergílio, Cícero, em suas obras imorredouras, a ela fazem alusões freqüentes. Vergílio, na Eneida,[liv] assevera que a alma, mergulhando no Letes, perde a lembrança das suas existências passadas.
A escola de Alexandria deu-lhe brilho vivíssimo com as obras de Filo, Plotino, Amônio denominado Sakas, Porfírio, Jâmblico, etc. Plotino, falando dos deuses, diz: “A cada um eles proporcionam o corpo que lhe convém e que está em harmonia com seus antecedentes, conforme suas existências sucessivas.”
Os livros sagrados dos hebreus, o Zohar, a Cabala, o Talmude, afirmam igualmente a preexistência e, com o nome de ressurreição, a reencarnação era a crença dos fariseus e dos essênios.[lv]
Da mesma crença encontram-se também vestígios numerosos no Antigo e no Novo Testamento, por entre textos obscuros ou alterados, por exemplo, em certas passagens de Jeremias e de Job, depois no caso de João Batista, que foi Elias, no do cego de nascença e na conversação particular de Jesus com Nicodemos.
Lê-se em Mateus:[lvi] “Em verdade vos digo que, dentre os filhos das mulheres, nenhum há maior que João Batista, e se quiserdes ouvir, é ele mesmo que é Elias que há de vir. Aquele que tem ouvidos para ouvir, ouça.”
De outra vez interrogaram ao Cristo os seus discípulos, dizendo:[lvii] “Por que dizem então os escribas que é necessário que volte Elias primeiro?” Jesus respondeu-lhes: “É verdade que Elias há de vir primeiro e restabelecer todas as coisas; mas digo-vos que Elias já veio, mas eles não o reconheceram e fizeram-lhe o que quiseram.” Então os discípulos compreenderam que era de João Batista que ele falara.
Um dia Jesus pergunta aos seus discípulos o que diz dele o povo. Eles respondem:[lviii] “Uns dizem que és João Batista, outros Elias, outros Jeremias, ou algum dos antigos profetas que voltou ao mundo.” Jesus, em vez de dissuadi-los, como se eles tivessem falado de coisas imaginárias, contenta-se com acrescentar: “E vós quem credes que sou eu?” Quando encontra o cego de nascença, os discípulos perguntam-lhe se esse homem nasceu cego por causa dos pecados dos pais ou dos pecados que cometeu antes de nascer. Acreditavam, pois, na possibilidade da reencarnação e na preexistência possível da alma. Sua linguagem fazia até acreditar que essa idéia estava divulgada e Jesus parece autorizá-la, em vez de combatê-la. Fala das numerosas moradas de que se compõe a casa do Pai e Orígenes, comentando essas palavras, acrescenta: “O Senhor alude às diferentes estações que as almas devem ocupar depois de terem sido privadas dos seus corpos atuais e de terem sido revestidas de outros.”
Lemos no Evangelho de João:[lix] “Havia entre os fariseus um homem chamado Nicodemos, um dos principais dentre os judeus. Esse homem veio de noite ter com Jesus e disse-lhe: “Mestre, sabemos que és um doutor vindo da parte de Deus, porque ninguém poderia fazer os milagres que fazes, se Deus não estivesse com ele.” Jesus respondeu-lhe: “Em verdade te digo que, se um homem não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus.” Nicodemos disse-lhe: “Como pode um homem nascer quando é velho? Pode tornar a entrar no ventre de sua mãe e nascer segunda vez?” Jesus responde: “Em verdade te digo que, se um homem não nascer de água e de espírito, não pode entrar no reino de Deus. O que é nascido da carne, é carne; o que é nascido do espírito, é espírito. Não te admires do que te disse: é necessário que nasças de novo. O vento sopra onde quer e tu lhe ouves o ruído, mas não sabes donde vem nem para onde vai. Sucede o mesmo com todo homem que é nascido do espírito.”
A água representava entre os hebreus a essência da matéria, e quando Jesus afirma que o homem tem de renascer de água e de espírito, não é como se dissesse que tem de renascer de matéria e de espírito, isto é, em corpo e alma?
Jesus acrescenta estas palavras: “Tu és mestre em Israel e ignoras estas coisas?” Não se tratava, pois, do batismo, que todos os judeus conheciam. As palavras de Jesus tinham um sentido mais profundo e sua admiração devia traduzir-se assim: “Tenho para a multidão ensinamentos ao seu alcance, e não lhe dou a verdade senão na medida em que ela a pode compreender. Mas contigo, que és mestre em Israel e que, nessa qualidade, deves ser iniciado em mistérios mais elevados, entendi poder ir mais além.”
Essa interpretação parece tanto mais exata quanto mais está em relação com o Zohar, que, repetimos, ensina a pluralidade dos mundos e das existências.
O Cristianismo primitivo possuía, pois, o verdadeiro sentido do destino. Mas, com as sutilezas da teologia bizantina, o sentido oculto desapareceu pouco a pouco; a virtude secreta dos ritos iniciáticos desvaneceu-se como um perfume sutil. A escolástica abafou a primeira revelação com o peso dos silogismos ou arruinou-a com sua argumentação especiosa.
Entretanto, os primeiros padres da Igreja e, entre todos, Orígenes e São Clemente de Alexandria, pronunciaram-se em favor da transmigração das almas. São Jerônimo e Ruffinus (Carta a Anastácio) afirmam que ela era ensinada como verdade tradicional a um certo número de iniciados.
Em sua obra capital, Dos Princípios, livro I, Orígenes passa em revista os numerosos argumentos que mostram, na preexistência e sobrevivência das almas em outros corpos, o corretivo necessário à desigualdade das condições humanas. De si mesmo inquire qual é a totalidade dos ciclos percorridos por sua alma em suas peregrinações através do infinito, quais os progressos feitos em cada uma de suas estações, as circunstâncias da imensa viagem e a natureza particular de suas residências.
São Gregório de Nysse diz que “há necessidade natural para a alma imortal de ser curada e purificada e que, se ela não o foi em sua vida terrestre, a cura se opera pelas vidas futuras e subseqüentes”.
Todavia, essa alta doutrina não podia conciliar-se com certos dogmas e artigos de fé, armas poderosas para a Igreja, tais como a predestinação, as penas eternas e o juízo final. Com ela, o Catolicismo teria dado lugar mais largo à liberdade do espírito humano, chamado em suas vidas sucessivas a elevar-se por seus próprios esforços e não somente por “graça do Alto”.
Por isso, foi um ato fecundo em conseqüência funesta a condenação das opiniões de Orígenes e das teorias gnósticas pelo Concílio de Constantinopla em 553. Ela trouxe consigo o descrédito e a repulsa do princípio das reencarnações. Então, em vez de uma concepção simples e clara do destino, compreensível para as mais humildes inteligências, conciliando a justiça divina com a desigualdade das condições e do sofrimento humanos, vimos edificar-se todo um conjunto de dogmas, que lançaram a obscuridade no problema da vida, revoltaram a razão e, finalmente, afastaram o homem de Deus.
A doutrina das vidas sucessivas reaparece novamente em épocas diferentes no mundo cristão, sob a forma das grandes heresias e das escolas secretas, mas foi muitas vezes afogada no sangue ou abafada debaixo das cinzas das fogueiras.
Na Idade Média eclipsa-se quase de todo e deixa de influenciar o desenvolvimento do pensamento ocidental, causando-lhe dano por essa forma. Daí os erros e a confusão daquela época sombria, o mesquinho fanatismo, a perseguição cruel, o ergástulo do espírito humano. Uma espécie de noite intelectual estendeu-se sobre a Europa.
No entanto, de tempos em tempos, como um relâmpago, o grande pensamento ilumina ainda, por inspiração do Alto, algumas belas almas intuitivas; continua a ser para os pensadores de escol a única explicação possível do que, para a massa, se tornara o profundo mistério da vida.
Não somente os trovadores, nos seus poemas e cantos, lhe faziam discretas alusões, mas até espíritos poderosos, como Boaventura e Dante Alighieri, a mencionam de maneira formal. Ozanam, escritor católico, reconhece que o plano da Divina Comédia segue muito de perto as grandes linhas da iniciação antiga, baseada, como vimos, sobre a pluralidade das existências.
O Cardeal Nicolau de Cusa sustenta, em pleno Vaticano, a pluralidade das vidas e dos mundos habitados, com o assentimento do Papa Eugênio IV.
Thomas Moore, Paracelso, Jacob Boehme, Giordano Bruno e Campanella afirmaram ou ensinaram a grande síntese, muitas vezes com o próprio sacrifício. Van Helmont, em De Revolutione Animarum, expõe, em duzentos problemas, todos os argumentos em prol da reencarnação das almas.
Não são essas altas inteligências comparáveis aos cumes dos montes, aos cimos gelados dos Alpes, que são os primeiros a receber os alvores do dia, a refletir os raios do Sol, e que ainda são iluminados por ele quando já o resto da Terra está imerso nas trevas?
O próprio Islamismo, principalmente no novo Alcorão, dá lugar importante às idéias palingenésicas.[lx] Finalmente, a Filosofia, nos últimos séculos, enriqueceu-se com elas. Cudworth e Hume consideram-nas como a teoria mais racional da imortalidade. Em Lessing, Herder, Hegel, Schelling, Fichte, o moço, elas são discutidas com elevação.
Mazzini, apostrofando os bispos, na sua obra Dal Concilio a Dio, diz:
“Cremos numa série indefinida de reencarnações da alma, de vida em vida, de mundo em mundo, cada uma das quais constitui um progresso em relação à vida precedente. Podemos recomeçar o estádio percorrido quando não merecemos passar a um grau superior; mas, não podemos retrogradar nem perecer espiritualmente.”
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Reportemo-nos agora às origens dos franceses e veremos a idéia das vidas sucessivas pairar sobre a terra das Gálias. Essa idéia vibra nos cantos dos bardos, sussurra na grande voz das florestas: “Debati-me em cem mundos; em cem círculos vivi.” (Canto bárdico; Barddas cad Goddeu.)
É a tradição nacional por excelência; inspirava aos pais dos franceses o desprezo da morte, o heroísmo nos combates; deve ser amada por todos aqueles que se sentem vinculados pelo coração ou pelo sangue à raça céltica, móbil, entusiasta, generosa, apaixonada pela justiça, pronta sempre a lutar em prol das grandes causas.
Nos combates contra os romanos – diz d'Arbois de Jubainville, professor do Colégio de França – os druidas ficavam imóveis como estátuas, recebendo feridas sem fugir e sem se defenderem. Sabiam que eram imortais e contavam achar em outra parte do mundo um corpo novo e sempre jovem.[lxi]
Os druidas não eram somente homens valentes, eram também sábios profundos.[lxii] Seu culto era o da Natureza, celebrado sob a abóbada sombria dos carvalhos ou sobre as penedias batidas pelas tempestades. As Tríades proclamam a evolução das almas partidas de anoufn, o abismo, subindo vagarosamente a longa espiral das existências (abred) para chegarem, depois de muitas mortes e renascimentos, a gwynfyd, o círculo da felicidade.
As Tríades são o mais maravilhoso monumento que nos resta da antiga sabedoria dos bardos e dos druidas; abrem perspectivas sem limites à vista admirada do investigador. Citaremos três, as que se referem mais diretamente ao nosso assunto, as Tríades, 19, 21 e 36:[lxiii]
“19. Três condições indispensáveis para chegar à plenitude (ciência e virtude): transmigrar em abred, transmigrar em gwynfyd e recordar-se de todas as coisas passadas até anoufn.”
“21. Três meios eficazes de Deus em abred (círculo dos mundos planetários) para dominar o mal e vencer a sua oposição em relação ao círculo de gwynfyd (círculo dos mundos felizes): a necessidade, a perda da memória e a morte.”
“36. Os três poderes (fundamentos) da ciência e da sabedoria: a transmigração completa por todos os estados dos seres; a lembrança de cada transmigração e dos seus incidentes; o poder de passar de novo, à vontade, por um estado qualquer em vista da experiência e do julgamento. Será isso obtido no círculo de gwynfyd.”
Certos autores entenderam, conforme a interpretação que deram aos textos bárdicos, que as vidas ulteriores da alma continuavam exclusivamente nos outros mundos.
Apresentamos dois casos que demonstram que os gauleses admitiam também a reencarnação na Terra. Extraímo-los do “Cours de Littérature Celtique” do Sr. d'Arbois de Jubainville:[lxiv]
Find Mac Cumail, o célebre herói irlandês, renasce em Morgan, filho de Fiachna, rainha de Ulster, em 603, e sucede-lhe mais tarde.
Os Annales de Tigernach fixam a morte de Find no ano 273 da nossa era, na batalha de Atbrea. “Um segundo nascimento, diz d'Arbois de Jubainville, dá-lhe nova vida e um trono na Irlanda.”
Os celtas praticavam também a evocação dos mortos. Levantara-se uma controvérsia entre Mongan e Forgoll a respeito da morte do rei Folhad, da qual Mongan fora testemunha ocular, e do lugar onde esse rei perdera a vida. “Ele evocou, diz o mesmo autor, do reino dos mortos, Cailté, seu companheiro nos combates. No momento em que o terceiro dia ia expirar, o testemunho de Cailté fornece a prova de que Mongan falara a verdade.”
O outro fato de reencarnação remonta a época muito mais antiga. Algum tempo antes da nossa era, Aeochaid Airem, rei absoluto da Irlanda, desposara Etâin, filha de Etar. Etâin, já alguns séculos antes, havia nascido em país céltico. Nessa vida anterior foi filha de Aillil e esposa de Mider, deificado depois de morto por causa de suas façanhas.
É provável que na história dos tempos célticos se encontrassem numerosos casos de reencarnação; mas, como se sabe, os druidas nada confiavam à escrita e contentavam-se com o ensino oral. Os documentos referentes à sua ciência e filosofia são raros e de data relativamente recente.
A doutrina céltica, decorridos séculos de esquecimento, reapareceu na França moderna e foi reconstituída ou sustentada por toda uma plêiade de escritores conspícuos: C. Bonnet, Dupont de Nemours, Ballanche, Jean Reynaud, Henri Martin, Pierre Leroux, Fourier, Esquiros, Michelet, Victor Hugo, Flammarion, Pezzani, Fauvety, Strada, etc.
“Nascer, morrer, renascer e progredir sempre, tal é a lei”, disse Allan Kardec. Graças a ele, graças à escola espírita de que ele é o fundador, a crença nas vidas sucessivas da alma vulgarizou-se, espalhou-se por todo o Ocidente, onde conta hoje milhões de partidários. O testemunho dos Espíritos veio dar-lhe sanção definitiva. À exceção de algumas almas em grau atrasado de evolução, para quem o passado está ainda envolto em trevas, todos, nas mensagens recolhidas em França, afirmam a pluralidade das existências e o progresso indefinido dos seres.
A vida terrestre – dizem eles –, em essência, não é mais do que um exercício, uma preparação para a vida eterna. Limitada a uma única existência, não poderia, em sua efêmera duração, corresponder a tão vasto plano. As reencarnações são os degraus da subida que todas as almas percorrem em sua ascensão; é a escada misteriosa que, das regiões obscuras, por todos os mundos da forma, nos leva ao reino da luz. Nossas existências desenrolam-se através dos séculos; passam, sucedem-se e renovam-se. Em cada uma delas largamos um pouco do mal que há em nós. Lentamente, avançamos, penetramos mais na via sagrada, até que tenhamos adquirido os méritos que nos hão de dar entrada nos círculos superiores donde eternamente irradiam a beleza, a sabedoria, a verdade, o amor!
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O estudo atento da história dos povos não nos mostra somente o caráter universal da doutrina palingenésica. Permite-nos, talvez, seguir o encadeamento grandioso das causas e dos efeitos que repercutem através dos tempos, na ordem social. Nela vemos, principalmente, que esses efeitos renascem de si mesmos e volvem à sua causa, encerrando os indivíduos e as nações na rede de uma lei inelutável.
Sob esse ponto de vista, as lições do passado são surpreendentes. Há um cunho de majestade, gravado no testemunho dos séculos, que impressiona o mais indiferente homem, o que nos demonstra a irresistível força do direito. Todo mal feito, o sangue vertido e as lágrimas derramadas recaem cedo ou tarde fatalmente sobre seus autores – indivíduos ou coletividades. Os mesmos fatos criminosos, os mesmos erros produzem as mesmas conseqüências nefastas. Enquanto os homens persistem em se hostilizarem uns aos outros, em se oprimirem, em se dilacerarem, as obras de sangue e luto prosseguem e a humanidade sofre até ao mais profundo das suas entranhas. Há expiações coletivas como há reparações individuais. Através dos tempos exerce-se uma justiça imanente, que faz desabrochar os elementos de decadência e destruição, os germens de morte, que as nações semeiam no seu próprio seio, cada vez que transgridem as leis superiores.
Se lançarmos as vistas para a história do mundo, veremos que a adolescência da humanidade, como a do indivíduo, tem seus períodos de perturbações, de desvarios, de experiências dolorosas. Através de suas páginas desenrola-se o cortejo de misérias conseqüentes; as quedas profundas alternam com as elevações, os triunfos com as derrotas.
Civilizações precárias assinalam as primeiras idades; os maiores impérios esboroam-se uns após outros na refrega das paixões. O Egito, Nínive, Babilônia e o império dos persas caíram. Roma e Bizâncio, roídas pela corrupção, baqueiam ao embate da invasão dos bárbaros. Depois da Guerra dos Cem Anos e do suplício de Joana d'Arc, a Inglaterra é açoitada por terrível guerra civil, a das Duas Rosas, York e Lencastre, que a conduz a dois passos de sua perda.
Que é feito da Espanha, responsável por tantos suplícios e degolações, da Espanha com seus “conquistadores” e seu Santo Ofício? Onde está hoje esse vasto império no qual o Sol jamais se punha?
Vede os Habsburg, herdeiros do Santo Império e, talvez, reencarnações dos algozes dos Hussitas? A Casa de Áustria é ferida em todos os seus membros: Maximiliano é fuzilado; Rodolfo cai no meio de uma orgia; a Imperatriz é assassinada. Chega a vez de François-Ferdinand e o velho imperador, com a cabeça encanecida, fica sozinho, em pé, no meio dos destroços de sua família e de seus Estados ameaçados de desagregação completa.
Onde estão os impérios fundados pelo ferro e pelo sangue, dos Califas, dos Mongóis, dos Carlovíngios, de Carlos V? Napoleão disse: “Tudo se paga!” E ele mesmo pagou e a França pagou com ele. O império de Napoleão passou como um meteoro!
Detenhamo-nos um instante nesse prodigioso destino, que, depois de haver lançado, em sua trajetória através do mundo, um clarão fulgurante, vai extinguir-se miseravelmente num rochedo do Atlântico. É bem conhecida de todos esta vida e, por conseguinte, melhor do que qualquer outra deve servir de exemplo; nela, como disse Maurice Maëterlinck, pode-se observar que as três causas principais da queda de Napoleão foram as três maiores iniqüidades que ele cometeu:
“Foi, primeiro que tudo, o assassínio do Duque de Enghien, condenado por sua ordem, sem julgamento e sem provas, e executado nos fossos de Vincennes, assassínio que fez ao redor do ditador ódios daí em diante implacáveis e um desejo de vingança que nunca abrandou; foi, depois, a odiosa emboscada de Bayonne, a que ele atrai, por baixas intrigas, para despojá-los de sua coroa hereditária, os bonacheirões e excessivamente confiados Bourbons de Espanha; a horrível guerra que se seguiu, que tragou trezentos mil homens, toda a energia, toda a moralidade, a maior parte do prestígio, quase todas as garantias, quase todas as dedicações e todos os destinos felizes do Império; foi, finalmente, a horrorosa e indesculpável campanha da Rússia que terminou pelo desastre definitivo da sua fortuna nos gelos de Berezina, ou nas neves da Polônia.” [lxv]
A história da diplomacia européia nos últimos cinqüenta anos não escapa a estas regras. Os autores de faltas contra a Eqüidade têm sido castigados como que por mão invisível.
A Rússia, depois de dilacerada a Polônia, prestou seu apoio à Prússia para a invasão dos ducados dinamarqueses, “o maior crime de pirataria cometido nos tempos modernos” – diz um historiador. Foi por causa disso punida, primeiro pela própria Prússia que, em 1877, no Congresso de Berlim, desapossava-a de todas as vantagens obtidas sobre a Turquia; depois, mais cruelmente ainda, pelos reveses da Guerra da Mandchúria e sua terrível repercussão em todo o império dos czares.
A Inglaterra, depois de ter arrastado a França à longa campanha da Criméia, que foi toda em seu favor, não deixou de continuar, mais ou menos por toda a parte, uma política fria, egoísta e homicida. Depois da Guerra do Transvaal, vê-se mais enfraquecida, aproximando-se talvez dos tempos que Sir Robert predisse em termos que causam admiração: “A habilidade de nossos homens de Estado os imortalizará, se, para nós, suavizarem essa descida, de modo a evitar que se transforme numa queda; se a dirigirem de modo a fazê-la parecer-se com a Holanda e não com Cartago e Veneza.”
O destacamento da Irlanda, do Egito, a revolta dos Indianos vieram a confirmar essas previsões.
Tal será a sorte de todas as nações que foram grandes por seus filósofos e pensadores, mas que tiveram a fraqueza de pôr seus destinos nas mãos de políticos ávidos e desonestos.
Napoleão III, no exílio, Bismarck, em desvalimento e doloroso retiro, começaram a expiar o seu pouco respeito às leis morais.
Não insistimos sobre esses fatos. Não vimos desenvolver-se sob nossos olhos, de 1914 a 1918,[lxvi] o drama imenso e vingador, que deixou a Alemanha vencida, punida por seu orgulho e por seus crimes?
Ao mesmo tempo, é preciso reconhecer que a França recebia uma lição terrível, talvez por causa da leviandade, imprevidência e sensualismo de um grande número de seus filhos; mas, com a vitória, encontrava o seu prestígio no mundo. Assim se afirmava uma vez mais a grande missão, o papel providencial que lhe parece destinado e que consiste em proclamar e defender, de todas as formas, pelo verbo e pela espada, o direito, a verdade, a justiça!
A Alemanha e a Áustria, aventuradas num pacto e numa cumplicidade ferozes, tinham sonhado com o domínio da Europa e do mundo: uma sobre o Oriente e a outra sobre o Ocidente. Na perseguição desse objetivo, calcaram os pés nos empenhos mais solenes, por exemplo, para com a Bélgica; não recuaram diante dos crimes mais odiosos. Qual foi o resultado? Após quatro anos de luta encarniçada, os impérios centrais rolaram no abismo. A Áustria é apenas um fantasma de nação, a Alemanha diminuiu, arruinada, presa às lutas internas e a todos os males econômicos.
Não é a repercussão dos acontecimentos de 1870 a 1871? Por sua vez, os alemães tiveram que conhecer a derrota e a anarquia.
Talvez, em nenhuma outra guerra, a luta de dois princípios ficou tão evidente. De um lado, a força brutal, do outro, o direito e a liberdade. E o que prova que Deus não se desinteressou pelo destino de nosso pequeno globo é que o direito venceu! Pode-se dizer que, como os gregos em Maratona e em Salamina, os soldados de Marne e de Verdun, sustentados por esses poderes invisíveis, preservaram a humanidade do domínio da espada e salvaram a civilização.[lxvii] Este será o justo julgamento da História!
Sim, a História é um grande ensino, podemos ler em suas profundezas a ação de uma lei poderosa. Através da sucessão dos acontecimentos, sentimos, por vezes, perpassar como que um sopro sobre-humano; no meio da noite dos séculos vemos luzirem, por um instante, como relâmpagos, as radiações de um pensamento eterno.
Para os povos, como para os indivíduos, há uma justiça; no que respeita aos povos, podemos seguir-lhes a marcha silenciosa. Vemo-la muitas vezes manifestar-se através do encadeamento dos fatos. Não sucede o mesmo com relação ao indivíduo. Nem sempre ela é visível como na vida de Napoleão. Não se lhe pode seguir a marcha quando sua ação, em vez de ser imediata, se exerce a longo prazo.
A reencarnação, o regresso à carne, o escuro invólucro da matéria que cai sobre a alma e produz o esquecimento, encobrem-nos a sucessão dos efeitos e das causas; mas, como vimos, particularmente nos fenômenos do transe, desde que podemos erguer o véu estendido sobre o passado e ler o que está gravado no fundo do ser humano, então, na adversidade que o fere, nas grandes dores, nos reveses, nas aflições pungentes, somos obrigados a reconhecer a ação de uma causa anterior, de uma causa moral, e a nos inclinarmos ante a majestade das leis que presidem aos destinos das almas, das sociedades e dos mundos!
*
O plano da História desenrola-se em suas linhas formidáveis. Deus envia à humanidade seus messias, seus reveladores, visíveis e invisíveis, os guias, os educadores de todas as ordens; mas o homem, na liberdade de seus pensamentos, de sua consciência, escuta-os ou desatende-os. O homem é livre; as incoerências sociais são obra sua. Ele lança a sua nota confusa no comércio universal, mas essa nota discordante nem sempre consegue dominar a harmonia dos séculos.
Os gênios enviados do Alto brilham como faróis na escuridão da noite. Sem remontarmos à mais alta Antigüidade, sem falarmos dos Hermes, dos Zoroastros, dos Krishnas, desde a aurora dos tempos cristãos vimos erguer-se a estátua enorme dos profetas, gigantes que avultam também na História. Foram eles, com efeito, que prepararam as vias do Cristianismo, a religião dominadora, da qual mais tarde há de nascer, no evolver dos tempos, a fraternidade universal. Depois vemos o Cristo, o homem de dor, o homem de amor, cujo pensamento irradia, como beleza imperecível, o drama do Gólgota, a ruína de Jerusalém, a dispersão dos judeus.
Aquém do mar azul, o desabrochar do gênio grego, foco de educação, esplendor de arte e ciência, há de iluminar a humanidade. Finalmente, o poder romano, que ensinará ao mundo o direito, a disciplina, a vida social.
Voltam, depois, os tempos de torva ignorância, mil anos de barbárie, a grande vaga e a revessa das invasões, a emergência dos elementos ferozes na civilização, o rebaixamento do nível intelectual, a noite do pensamento; mas aparecem Gutenberg, Cristóvão Colombo, Lutero. Erguem-se as catedrais góticas, revelam-se continentes desconhecidos, a Religião entra na disciplina. Graças à Imprensa, o novo pensamento espalhar-se-á por todos os pontos do mundo. Depois da Reforma virá a Renascença e, em seguida, as Revoluções!
E eis que, após muitas vicissitudes, lutas e dilacerações, a despeito das perseguições religiosas, das tiranias civis e das inquisições, o pensamento se emancipa. O problema da vida que, com as concepções de uma igreja que se tornara fanática e cega, continuava impenetrável, vai esclarecer-se de novo. Qual estrela sobre o mar brumoso, reaparece a grande lei. O mundo vai renascer para a vida do espírito. A existência humana deixará de ser um escuro beco sem saída para se transformar em estrada largamente aberta para o futuro.
*
As leis da Natureza e da História completam-se e afirmam-se na sua unidade imponente. Uma lei circular preside à evolução dos seres e das coisas, rege a marcha dos séculos e das humanidades. Cada destino gravita num círculo imenso, cada vida descreve uma órbita. Toda a ascensão humana divide-se em ciclos, em espirais que se vão amplificando, de modo a tomar um sentido cada vez mais universal.
Assim como a Natureza se renova sem cessar em suas ressurreições, desde as metamorfoses dos insetos até o nascimento e a morte dos mundos, assim também as coletividades humanas nascem, desenvolvem-se e morrem nas suas formas sucessivas; mas, não morrem senão para renascer e crescer em perfeições, em instituições, artes e ciências, cultos e doutrinas.
Nas horas de crise e desvario, surgem enviados que vêm restabelecer as verdades obscurecidas e encaminhar a humanidade. E, não obstante a emigração das melhores almas humanas para as esferas superiores, as civilizações terrestres vão-se regenerando e as sociedades evolvem. A despeito dos males inerentes ao nosso Planeta, a despeito das múltiplas necessidades que nos oprimem, o testemunho dos séculos diz-nos que, em sua ascensão secular, as inteligências apuram-se, os corações tornam-se mais sensíveis, a humanidade, no seu conjunto, sobe devagar; a contar de hoje ela aspira à paz na solidariedade.
Em cada renascimento volve o indivíduo à massa; a alma, reencarnando, toma nova máscara; as respectivas personalidades anteriores apagam-se temporariamente. Reconhecem-se, entretanto, através dos séculos, certas grandes figuras do passado; torna-se a encontrar Krishna no Cristo e, em ordem menos elevada, Vergílio em Lamartine, Vercingetorix em Desaix, César em Napoleão.
Em certa mendiga, de feições altivas, de olhar imperioso, acocorada sobre uma esterqueira às portas de Roma, coberta de úlceras e estendendo a mão aos transeuntes, poder-se-ia, segundo as indicações dos Espíritos, no século passado, reconhecer Messalina.
Quantas outras almas culpadas vivem em torno de nós escondidas em corpos disformes, expostas a males que elas por si mesmas prepararam e, de alguma sorte, moldaram com seus pensamentos, com seus atos de outrora? O Dr. Pascal exprime-se assim, a esse respeito:
“O estudo das vidas anteriores de certos homens, particularmente feridos, revelou estranhos segredos. Aqui, uma traição, que causa uma carnificina, é punida, passados séculos, com uma vida dolorosa desde a infância e com uma enfermidade que traz a marca da sua origem – a mudez: os lábios que traíram já não podem falar; ali, um inquisidor torna à encarnação, com um corpo doente desde a meninice, para um meio familiar eminentemente hostil e com intuições nítidas da crueldade passada; os sofrimentos físicos e morais mais agudos acossam-no sem afrouxar.” [lxviii]
Esses casos são mais numerosos do que se supõe; cumpre ver neles a aplicação de uma regra inflexível. Todos os nossos atos, consoante sua natureza, traduzem-se por um acréscimo ou diminuição de liberdade; daí, para os culpados, o renascimento em invólucros miseráveis, prisões da alma, imagens e repercussão de seu passado.
Nem os problemas da vida individual nem os da vida social se explicam sem a lei dos renascimentos; todo o mistério do ser se resume nela! É dela que nosso passado recebe sua luz e o futuro se engrandece; nossa personalidade amplifica-se inesperadamente. Compreendemos que não é de ontem que data o nosso aparecimento no universo, como ainda é crença de muitos; mas, ao inverso, nosso ponto de origem, nosso primeiro nascimento afunda-se na escuridão dos tempos. Sentimos que mil laços, tecidos lentamente através dos séculos, prendem-nos à humanidade. É nossa a sua história; havemos viajado com ela no oceano das idades, afrontando os mesmos perigos, sofrendo os mesmos reveses. O esquecimento dessas coisas é apenas temporário; dia virá em que um mundo completo de recordações reavivar-se-á em nós. O passado, o futuro e toda a História tomarão a nossos olhos um novo aspecto, um interesse profundo. Aumentará nossa admiração à vista de tão magníficos destinos. As leis divinas parecer-nos-ão maiores, mais sublimes, e a própria vida tornar-se-á bela e desejável, apesar de suas provas, de seus males!
XVIII
Justiça e responsabilidade – O problema do mal
A lei dos renascimentos, dissemos, rege a vida universal. Com alguma atenção, poderíamos ler em toda a Natureza, como num livro, o mistério da morte e da ressurreição.
As estações sucedem-se no seu ritmo imponente. O inverno é o sono das coisas; a primavera é o acordar; o dia alterna com a noite; ao descanso segue-se a atividade; o Espírito ascende às regiões superiores para tornar a descer e continuar com forças novas a tarefa interrompida.
As transformações da planta e do animal não são menos significativas. A planta morre para renascer, cada vez que volta a seiva; tudo murcha para reflorir. A larva, a crisálida e a borboleta são outros tantos exemplos que reproduzem, com mais ou menos fidelidade, as fases alternadas da vida imortal.
Como seria, pois, possível que só o homem ficasse fora do alcance dessa lei? Quando tudo está ligado por laços numerosos e fortes, como admitir que nossa vida seja como um ponto atirado, sem ligação, para os turbilhões do tempo e do espaço? Nada antes, nada depois! Não. O homem, como todas as coisas, está sujeito à lei eterna. Tudo o que tem vivido reviverá em outras formas para evoluir e aperfeiçoar-se. A Natureza não nos dá a morte senão para dar-nos a vida. Em conseqüência da renovação periódica das moléculas do nosso corpo, que as correntes vitais trazem e dispersam, pela assimilação e desassimilação cotidianas, já habitamos um sem-número de invólucros diferentes numa única vida. Não é lógico admitir que continuaremos a habitar outros no futuro?
A sucessão das existências apresenta-se-nos, pois, como uma obra de capitalização e aperfeiçoamento. Depois de cada vida terrestre, a alma ceifa e recolhe, em seu corpo fluídico, as experiências e os frutos da existência decorrida. Todos os seus progressos refletem-se na forma sutil da qual é inseparável, no corpo etéreo, lúcido, transparente, que, purificando-se com ela, se transforma no instrumento maravilhoso, na harpa que vibra a todos os sopros do Infinito.
Assim, o ser psíquico, em todas as fases de sua ascensão, encontra-se tal qual a si mesmo se fez. Nenhuma aspiração nobre é estéril, nenhum sacrifício baldado. E na obra imensa todos são colaboradores, desde a alma mais obscura até o gênio mais radioso. Uma cadeia sem fim liga os seres na majestosa unidade do Cosmo. É uma efusão de luz e amor que, das cumeadas divinas, jorra e se derrama sobre todos, para regenerá-los e fecundá-los. Ela reúne todas as almas em comunhão universal e eterna, em virtude de um princípio que é a mais esplêndida revelação dos tempos modernos.
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A alma deve conquistar, um por um, todos os elementos, todos os atributos de sua grandeza, de seu poder, de sua, centro de vontade, energia e virtude.
Verdadeiramente só se conhecem, saboreiam e apreciam os bens que se adquirem à própria custa, lentamente, penosamente. A alma, criada perfeita, como o querem certos pensadores, seria incapaz de aquilatar e até de compreender sua perfeição, sua felicidade. Sem termos de comparação, sem permutas possíveis com seus semelhantes, perfeitos quanto ela, sem objetivo para sua atividade, seria condenada à inação, à inércia, o que seria o pior dos estados; porque viver, para o espírito, é agir, é crescer, é conquistar sempre novos títulos, novos méritos, um lugar cada vez mais elevado na hierarquia luminosa e infinita. E para merecê-lo é necessário ter penado, lutado, sofrido. Para gozar da abundância é preciso ter conhecido as privações. Para apreciar a claridade dos dias é mister haver atravessado a escuridão das noites. A dor é a condição da alegria e o preço da virtude, sendo esta última o bem mais precioso que há no universo.
Construir o próprio “eu”, sua individualidade através de milhares de vidas, passadas em centenas de mundos e sob a direção de nossos irmãos mais velhos, de nossos amigos do espaço, escalar os caminhos do Céu, arrojarmo-nos cada vez mais para cima, abrir um campo de ação cada vez mais largo, proporcionado à obra feita ou sonhada, tornarmo-nos um dos atores do drama divino, um dos agentes de Deus na obra eterna, trabalhar para o universo, como o universo trabalha para nós, tal é o segredo do destino!
Assim, a alma sobe de esfera em esfera, de círculos em círculos, unida aos seres que tem amado; vai, continuando as suas peregrinações, em procura das perfeições divinas. Chegada às regiões superiores, está livre da lei dos renascimentos; a reencarnação deixa de ser para ela obrigação para tornar-se somente ato de sua vontade, o cumprimento de uma missão, obra de sacrifício.
Depois que atingiu as alturas supremas, o Espírito diz, às vezes, de si para si:
“Sou livre; quebrei para sempre as algemas que me acorrentavam aos mundos materiais. Conquistei a ciência, a energia, o amor. Mas o que granjeei quero repartir com meus irmãos, os homens, e para isso irei de novo viver entre eles, irei oferecer-lhes o que de melhor há em mim, retomarei um corpo de carne, descerei outra vez para junto daqueles que penam, que sofrem, que ignoram, para os ajudar, consolar e esclarecer.”
E, então, temos Lao-Tse, Buda, Sócrates, Cristo, numa palavra, todas as grandes almas que têm dado sua vida pela humanidade!
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Resumamos. Havemos demonstrado, no decurso deste estudo, a importância da doutrina das reencarnações; vimos nela uma das bases essenciais em que assenta o Novo Espiritualismo; seu alcance é imenso. Ela explica a desigualdade das condições humanas, a variedade infinita das aptidões, das faculdades e dos caracteres, dissipa os mistérios perturbadores e as contradições da vida; resolve o problema do mal. É por meio dela que a ordem sucede à desordem, a luz se faz no seio das trevas, desaparecem as injustiças, as iniqüidades aparentes da sorte se desvanecem para ser substituídas pela lei máscula e majestosa da repercussão dos atos e de suas conseqüências. E essa lei de justiça imanente que governa os mundos foi inscrita por Deus no âmago das coisas e na consciência humana.
A doutrina das reencarnações aproxima os homens mais que qualquer outra crença, ensinando-lhes a comunidade de origens e fins, mostrando-lhes a solidariedade que os liga a todos no passado, no presente, no futuro. Diz-lhes que não há, entre eles, deserdados nem favorecidos, que cada um é filho de suas obras, senhor de seu destino. Nossos sofrimentos, ocultos ou aparentes, são conseqüências do passado ou também a escola austera onde se aprendem as altas virtudes e os grandes deveres.
Percorreremos todos os estádios da via imensa; passaremos alternadamente por todas as condições sociais para conquistar as qualidades inerentes a esses meios. Assim, a solidariedade que nos liga compensa, numa harmonia final, a variedade infinita dos seres, resultante da desigualdade de seus esforços e também das necessidades de sua evolução. Com ela, para longe vão a inveja, o desprezo e o ódio! Os menores de nós talvez já tenham sido grandes e os maiores tornarão a nascer pequenos, se abusarem de sua superioridade. A cada um, por sua vez, a alegria como a dor! Daí a verdadeira confraternidade das almas; sentimo-nos todos perenemente unidos nos degraus da nossa ascensão coletiva; aprendemos a ajudar-nos e a sustentar-nos, a estender a mão uns aos outros!
Através dos ciclos do tempo, todos se aperfeiçoam e se elevam; os criminosos do passado virão a ser os sábios do futuro. Chegará a hora em que nossos defeitos serão eliminados, em que nossos vícios e nossas chagas morais serão curadas. As almas frívolas tornar-se-ão sisudas, as inteligências obscuras iluminar-se-ão. Todas as forças do mal que em nós vibram ter-se-ão transformado em forças do bem. Do ser fraco, indiferente, fechado a todos os grandes pensamentos, sairá, com o perpassar dos tempos, um Espírito poderoso, que reunirá todos os conhecimentos, todas as virtudes, e se tornará capaz de realizar as coisas mais sublimes.
Essa será a obra das existências acumuladas; será sem dúvida indispensável um grande número delas para operar tal mudança, para nos expurgar de nossas imperfeições, fazer desaparecer as asperezas de nossos caracteres, transformar as almas de trevas em almas de luz! Mas só é poderoso e durável aquilo que teve o tempo necessário para germinar, sair da sombra, subir para o céu. A árvore, a floresta, a Natureza, os mundos no-lo dizem em sua linguagem profunda. Não se perde nenhuma semente, nenhum esforço é inútil. A planta dá suas flores e seus frutos somente na estação própria; a vida só desabrocha nas terras do espaço após imensos períodos geológicos.
Vede os diamantes esplêndidos que fazem mais formosas as mulheres e faíscam mil cores. Quantas metamorfoses não tiveram de passar para adquirir essa pureza incomparável, seu brilho fulgurante? Que lenta incubação no seio da matéria obscura!
Acontece o mesmo com a entidade humana. Para se purificar de seus elementos grosseiros e adquirir todo o seu brilho, são necessários períodos de evolução mais vastos ainda, muitos anos de aprisionamento na carne.
É nesse trabalho de aperfeiçoamento que aparece a utilidade, a importância das vidas de provas, das vidas modestas e despercebidas, das existências de labor e dever para vencer as paixões ferozes, o orgulho e o egoísmo, para curar as chagas morais. Desse ponto de vista, o papel dos humildes, dos pequenos neste mundo, as tarefas desprezadas patenteiam-se em toda a sua grandeza à nossa vista; compreendemos melhor a necessidade do regresso à carne para resgate e purificação.
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Resolvendo o problema do mal, o Novo Espiritualismo mostra, mais uma vez, sua superioridade sobre as outras doutrinas.
Para os materialistas evolucionistas, o mal e a dor são constantes, universais. Em toda parte – dizem Taine, Soury, Nietzsche e Haeckel – vemos espraiar-se o mal e sempre o mal há de reinar na humanidade; todavia – acrescentam –, com o progresso o mal decrescerá; mas será mais doloroso, porque nossa sensibilidade física e moral irá aumentando e será necessário sofrermos e chorarmos sem esperança, sem consolação, por exemplo, no caso de uma catástrofe, irreparável a seus olhos, como a morte de um ser querido. Por conseguinte, o mal sobrepujará sempre o bem.
Certas doutrinas religiosas não são muito mais consoladoras. Segundo o Catolicismo, o mal parece predominar também no universo e Satanás parece muito mais poderoso do que Deus. O inferno, segundo a palavra fatídica, povoa-se constantemente de multidões inumeráveis, ao passo que o paraíso é partilhado de raros eleitos. Para o crente ortodoxo, a perda, a separação dos seres que amou, são quase tão definitivas como para o materialista. Não há nunca para ele certeza completa de tornar a encontrá-los, de se lhes reunir um dia.
Com o Novo Espiritualismo a questão toma aspecto muito diferente. O mal é apenas o estado transitório do ser em via de evolução para o bem; o mal é a medida da inferioridade dos mundos e dos indivíduos, é também, como vimos, a sanção do passado. Toda escala comporta graus; nossas vidas terrestres representam os graus inferiores de nossa ascensão eterna.
Tudo ao redor de nós demonstra a inferioridade do planeta em que habitamos. Muito inclinado sobre o eixo, sua posição astronômica é a causa de perturbações freqüentes e de bruscas mudanças de temperatura: tempestades, inundações, convulsões sísmicas, calores tórridos, frios rigorosos. A humanidade terrestre, para subsistir, está condenada a um labor penoso. Milhões de homens, jungidos ao trabalho, não sabem o que é o descanso nem o bem-estar. Ora, existem relações íntimas entre a ordem física dos mundos e o estado moral das sociedades que os povoam. Os mundos imperfeitos, como a Terra, são reservados, em geral, às almas ainda em baixo grau de evolução.
Entretanto, nossa estada nesse meio é simplesmente temporária e subordinada às exigências de nossa educação psíquica; outros mundos, melhor aquinhoados sob todos os pontos de vista, nos aguardam. O mal, a dor, o sofrimento, atributos da vida terrestre, têm forçosa razão de ser; são o chicote, a espora que nos estimulam e nos fazem andar para frente.
Sob esse ponto de vista, o mal tem um caráter relativo e passageiro; é a condição da alma ainda criança que se ensaia para a vida. Pelo simples fato dos progressos feitos, vai pouco a pouco diminuindo, desaparece, dissipa-se, à medida que a alma sobe os degraus que conduzem ao poder, à virtude, à sabedoria!
Então a justiça patenteia-se no universo; deixa de haver eleitos e réprobos; sofrem todos as conseqüências de seus atos, mas todos reparam, resgatam e, cedo ou tarde, se regeneram para evolverem desde os mundos obscuros e materiais até a luz divina; todas as almas amantes tornam a encontrar-se, reúnem-se em sua ascensão para cooperarem juntas na grande obra, para tomarem parte na comunhão universal.
O mal não tem, pois, existência real, não há mal absoluto no universo, mas em toda parte a realização vagarosa e progressiva de um ideal superior; em toda parte se exerce a ação de uma força, de um poder, de uma causa que, conquanto nos deixe livres, nos atrai e arrasta para um estado melhor. Por toda parte, a grande lida dos seres trabalhando para desenvolver em si, à custa de imensos esforços, a sensibilidade, o sentimento, a vontade, o amor!
*
[i] Perty - Myst. Ercheinungen (Aparições Místicas), II, pág. 433.
Os três autores são citados pelo Dr. Pascal na sua memória apresentada ao Congresso de Psicologia de Paris em 1900.
[ii] Os casos de curas feitas por Espíritos são numerosos; achar-se-ão descrições deles em toda a literatura espírita. (Veja-se, por exemplo, o caso citado por Myers (Human Personality, II, 124.) A mulher de um grande médico, de reputação européia, que sofria de um mal a que o seu marido não pudera dar alivio, foi curada radicalmente pelo Espírito de outro grande médico. Veja-se também o caso de Mme. Claire Galichon, que foi curada por magnetizações do Espírito do cura d'Ars. O fato é contado por ela própria na sua obra Souvenirs et Problèmes Spirites, páginas 174 e seguintes.
[iii] Os livros teosóficos, diz Annie Besant, são concordes em reconhecer que “as encarnações são separadas umas das outras por um período médio de quinze séculos”. (La Reincarnation, pág. 97.)
[iv] Doutores Bourru e Burot - Lés Changements de la Personnalité. Bibliothèque Scientifique Contemporaine, 1887.
[v] Ver Lancet, de Londres, número de 12 de junho de 1902.
[vi] F. Myers - La Personnalité Humaine, pág. 333.
[vii] Idem, pág. 103.
[viii] Idem, cap. XI.
[ix] Extraído de Le Spiritisme et l'Anarchie, por J. Bouvery, pág. 405.
[x] Ver No Invisível, cap. XX.
[xi] Ver A. de Rochas - L'Extériorisation de la Sensibilité.
[xii] P. Janet - L'Automatisme Psychologique, pág. 160.
[xiii] Ver Compte rendu du Congrès Spirite et Spiritualiste de 1900, Leymarie, editor, págs. 349 e 350.
[xiv] Th. Flournoy - Des Indes à la Planète Mars, páginas 271 e 272.
[xv] Revue Spirite, janeiro de 1907, pág. 41. Artigo do Coronel de Rochas sobre As Vidas Sucessivas, Chacornac, ed. 1911.
[xvi] A. de Rochas, As Vidas Sucessivas.
[xvii] A. de Rochas - Les Vies Successives, pág. 497.
[xviii] Memória lida à Academia Delfinal, em 19 de novembro de 1904, por Albert de Rochas.
[xix] Ver A. de Rochas - Les Vies Successives, Chacornac, págs. 68 e 75.
[xx] Ver também seu livro Les Vies Successives, páginas 123-162.
[xxi] Annales des Sciences Psychiques, julho de 1905, página 391.
[xxii] Não lhe será naturalmente revelado esse incidente, ao despertar.
[xxiii] Atualmente, Racine é o seu autor predileto. Quando está acordada, nenhuma lembrança tem de haver alguma vez ouvido falar de Mlle. de la Vallière.
[xxiv] Outro experimentador, A. Bouvier, diz (Paix Universelle de Lião, 15 de setembro de 1906): “De cada vez que o paciente torna a passar por uma mesma vida, sejam quais forem as precauções que se tomem para enganá-lo ou fazê-lo enganar-se, permanece sempre a mesma individualidade, com o seu caráter pessoal, corrigindo, quando é preciso, os erros daqueles que o interrogam.”
[xxv] Devo dizer que vi experiências igualmente em moços.
[xxvi] Essa opinião foi emitida na minha presença, quando passei em Aix, pelos Srs. Lacoste e Dr. Bertrand.
[xxvii] Ver sobre o assunto A. de Rochas - Les Vies Successives, pág. 501.
[xxviii] Annales des Sciences Psychiques, janeiro de 1906, pág. 22.
[xxix] Comunicação obtida num grupo, em junho de 1907, no Havre.
[xxx] Herodoto, Hist., T. II, cap. CXXIII; Diogenes Laerce, Vida de Pitágoras, § 4 e 23.
[xxxi] Fragmento, vv. 11-12, Diógenes Laerce, Vida de Empédocles.
[xxxii] Ver Petit de Julleville - Histoire de la Littérature Française, tomo VII.
[xxxiii] Ver Lockart - Vie de W. Scott, VII, pág. 114.
[xxxiv] T. II, pág. 292.
[xxxv] Reproduzida por Le Matin e Paris-Nouvelles, de 8 de julho de 1903, com o titulo: Uma reencarnação, correspondência de Londres, 7 de julho.
[xxxvi] Revue Spirite, 1880, pág. 361.
[xxxvii] Annales des Sciences Psychiques, julho de 1913, nº 7, págs. 196 e seguintes.
[xxxviii] Journal de Charleroi, 18 de fevereiro de 1899. Isso mesmo era o que, já no quarto século, objetava Enéias de Gaza no, seu Théophraste.
[xxxix] Ver C. Lombroso - L'homme de Génie.
[xl] Ver Revue Scientifique de 6 de outubro de 1900, página 432 e Compte rendu officiel du Congrès de Psychologie, 1900, F. Alcan, pág. 93.
[xli] Prof. Charles Ríchet - Annales des Sciences Psychiques, abril, 1908, pág. 98.
[xlii] Número de 25 de julho de 1900.
[xliii] Dr. Wahu - Le Spiritisme dans le Monde.
[xliv] Ver No Invisível, “A mediunidade gloriosa”.
[xlv] Cristianismo e Espiritismo, cap. X.
[xlvi] Foi, igualmente, o que Taine exprimiu nos seus Nouveaux Essais de Critique et d'Histoire por estes termos:
“Se se acreditar que os desgraçados só o são em castigo das suas faltas, de que servirão, nesse caso, a caridade e a fraternidade? Poder-se-á ter compaixão de um doente que está sofrendo e que desespera; mas, não haverá propensão para ter-se menos pena de um culpado? Ainda mais, a comiseração deixa de ter razão de ser, seria uma falta, em virtude de ser a justiça de Deus afirmando-se e exercendo-se nos sofrimentos dos homens. Com que direito havíamos, pois, de contrariar e pôr obstáculos à justiça divina? A própria escravidão é legitima e quanto mais castigados, mais humilhados são os homens pelo destino, tanto mais se deve crer na sua decadência e punição.”
É de admirar que um espírito tão penetrante como o de H. Taine se tenha colocado em ponto de vista tão acanhado para enfrentar tão grave problema.
[xlvii] Número de 5 de maio de 1901, pág. 298.
[xlviii] F. Myers - La Personnalité Humaine, pág. 331.
[xlix] Ver o Journal de 12 de dezembro, artigo do Sr. Ludovic Nandeau, testemunha da cerimônia. Ver, principalmente, Iamato Damachi, ou a alma japonesa, e o livro do professor americano Hearn, matriculado em uma universidade japonesa: Hakoro, ou a idéia da preexistência.
[l] Ver Depois da Morte - A doutrina secreta, o Egito, caps. I e III.
[li] Citação de P. C. Revel, Le Hasard, sa Loi et ses Conséquences, pág. 193.
[lii] O vulgo não quer ver hoje na metempsicose mais do que a passagem da alma humana para o corpo de seres inferiores. Na Índia, no Egito e na Grécia era ela considerada, de um modo mais geral, como a transmigração das almas para outros corpos humanos. Tendemos a crer que a descida da alma à humanidade num corpo inferior não era, como a idéia do inferno no Catolicismo, mais do que um espantalho destinado, no pensamento dos antigos, a apavorar os maus. Qualquer retrogradação dessa espécie seria contrária à justiça, à verdade; além de que o desenvolvimento do organismo ou perispírito, vedando ao ser humano continuar a adaptar-se às condições da vida animal, torná-la-ia, aliás, impossível.
[liii] Ver Ed. Schuré, Sanctuaires d'Orient, págs. 254 e seguintes.
[liv] Eneida, VI, 713 e seg.
[lv] Lê-se no Zohar, II: “Todas as almas estão sujeitas à revolução (metempsicose, aleen b'gilgulah), mas os homens não conhecem as vias de Deus, o que é bom.” José (Antiq. XVIII, I, $ 3) diz que o virtuoso terá o poder de ressuscitar e viver de novo.
[lvi] Mateus, XI, 9, 14, 15.
[lvii] Mateus, XVII, 10 a 15.
[lviii] Mateus, XVI, 13, 14; Marcos, VIII, 28.
[lix] João, III, 3 a 8.
[lx] Ver Surate, II, v. 26 do Alcorão; Surate, VII, v. 55; Surate, XVII, v. 52; Surate, XIV, v. 25.
[lxi] Ver Tácito, Ab excessu Augusti, livro XIV, c. 30.
[lxii] É o que afirmava César nos seus Commentaires de la guerre des Gaules, liv. VI, cap. XIX, edição Lemerre, 1919. Ver também: Alex. Poly. Histor., fragmento 138, na coleção dos fragmentos dos historiadores gregos, edit. Didot, 1849; Strabão, Geogr., liv. IV, cap. IV, Diodoro di Sicilia. Bibl. hist., liv. V, cap. XXVIII; Clemente de Alexandria, Stromates, IV, cap. XXV.
[lxiii] As Tríades, publicadas por Ed. Williams, conforme o original gaulês e a tradução de Edward Darydd. Ver Gatien Arnoult, Philosophie Gauloise, t. I.
[lxiv] T. L, págs. 266, 267. Ver também: H. d'Arbois de Jubainville, Les Druides et les Dieux Celtiques, págs. 137 a 140; Livre de Leinster, pág. 41; Annales de Tigernach, publicação de Whitley Stokes; Revue Celtique, t. XVII, pág. 21; Annales des Quatre Maltres, edição O. Donovan, t. I, 118, 119.
[lxv] Maëterlinck - Le Temple Enseveli, pág. 35.
[lxvi] De 1914 a 1918: foi o período da Primeira Guerra Mundial (N.E.).
[lxvii] Ver minha obra O Mundo Invisível e a Guerra.
[lxviii] Dr. Th. Pascal - Les Lois de la Destinée, pág. 208.
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