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quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

O Problema do Ser, do Destino e da Dor-Parte 3-Léon Denis

 

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Insistamos na noção de justiça, que é essencial; porque há precisão, necessidade imperiosa, para todos, de saber que a justiça não é uma palavra vã, que há uma sanção para todos os deveres e compensações para todas as dores. Nenhum sistema pode satisfazer nossa razão, nossa consciência, se não realizar a noção de justiça em toda a sua plenitude. Essa noção está gravada em nós, é a lei da alma e do universo. Por tê-la desconhecido é que tantas doutrinas se enfraquecem e se extinguem na presente hora, em redor de nós. Ora, a doutrina das vidas sucessivas é um resplendor da idéia de justiça; dá-lhe realce e brilho incomparáveis. Todas as nossas vidas são solidárias umas com as outras e se encadeiam rigorosamente. As conseqüências dos nossos atos constituem uma sucessão de elementos que se ligam uns aos outros pela estreita relação de causa e efeito; constantemente, em nós mesmos, em nosso ser interior, como nas condições exteriores de nossa vida, sofremos-lhes os resultados inevitáveis. Nossa vontade ativa é uma causa geradora de efeitos mais ou menos longínquos, bons ou maus, que recaem sobre nós e formam a trama de nossos destinos.

O Cristianismo, renunciando a este mundo, procrastinava a felicidade e a justiça para o outro; e se seus ensinamentos podiam bastar aos simples e aos crentes, tornavam fácil aos hábeis cépticos dispensar-se da justiça, pretextando que seu reino não era da Terra; mas com a prova das vidas sucessivas o caso muda completamente de figura. A justiça deixa de ser transferida para um domínio quimérico e desconhecido. É aqui mesmo, em nós e em torno de nós, que ela exerce o seu império. O homem tem de reparar, no plano físico, o mal que fez no mesmo plano; torna a descer ao cadinho da vida, ao próprio meio onde se tornou culpado, para, junto daqueles que enganou, despojou, espoliou, sofrer as conseqüências do modo pelo qual anteriormente procedeu.

Com o princípio dos renascimentos, a idéia de justiça define-se e verifica-se; a lei moral, a lei do bem se patenteia em toda a sua harmonia. Esta vida não é mais do que um anel da grande cadeia das suas existências, eis o que o homem afinal compreende; tudo o que semeia colherá mais cedo ou mais tarde. Deixa, portanto, de ser possível desconhecermos as nossas obrigações e esquivarmo-nos às nossas responsabilidades. Nisso, como em tudo o mais, o dia seguinte vem a ser o produto da véspera; por baixo da aparente confusão dos fatos descobrimos as relações que os ligam. Em vez de estarmos escravizados a um destino inflexível, cuja causa está fora de si, tornamo-nos senhores e autores desse destino. Em vez de ser dominado pela sorte, o homem, muito ao contrário, a domina e cria, independentemente dela, por sua vontade e seus atos. O ideal de justiça deixa de ser afastado para um mundo transcendental; podemos definir-lhe os termos em cada vida humana, renovada em sua relação com as leis universais, no domínio das causas reais e tangíveis.

Essa grande luz faz-se precisamente na hora em que as velhas crenças desabam sob o peso do tempo, em que todos os sistemas apresentam sinais de próxima ruína, em que os deuses do passado se cobrem e se afastam, os deuses de nossa infância, os que os nossos pais adoraram. Há muito tempo o pensamento humano, ansioso, tateia nas trevas à procura do novo edifício moral que há de abrigá-lo. E, precisamente, vem agora a doutrina dos renascimentos oferecer-lhe o ideal necessário a toda a sociedade em marcha e, ao mesmo tempo, o corretivo indispensável aos apetites violentos, às ambições desmedidas, à avidez das riquezas, das posições, das honras: um dique aos desmandos do sensualismo que ameaça submergir-nos.

Com ela, o homem aprende a suportar, sem amargura e sem revolta, as existências dolorosas, indispensáveis à sua purificação; aprende a submeter-se às desigualdades naturais e passageiras que são o resultado da lei de evolução, a postergar as divisões fictícias e malsãs, provenientes dos preconceitos de castas, de religiões ou de raças. Esses preconceitos desvanecem-se inteiramente desde que se saiba que todo Espírito, nas suas vidas ascendentes, tem de passar pelos mais diversos meios.

Graças à noção das vidas sucessivas, as responsabilidades individuais, ao mesmo tempo em que as das coletividades, aparecem-nos mais distintas. Há em nossos contemporâneos uma tendência para atirar o peso das dificuldades presentes sobre os ombros das gerações futuras. Persuadidos de que não tornarão à Terra, deixam a nossos sucessores o cuidado de resolverem os problemas espinhosos da vida política e social.

Com a lei dos destinos, a questão muda logo de face; não somente o mal que tivermos feito recairá sobre nós e teremos de pagar as nossas dívidas até o último ceitil, como o estado social que tivermos contribuído para perpetuar com seus vícios, com as suas iniqüidades, apanhar-nos-á na sua férrea engrenagem, quando voltarmos à Terra, e sofreremos por todas as suas imperfeições. Essa sociedade, à qual teremos pedido muito e dado pouco, virá a ser outra vez “nossa” sociedade, sociedade madrasta para seus filhos, egoístas e ingratos.

No decurso de nossas estações terrestres, às vezes como poderosos, outras como fracos, diretores ou dirigidos, sentiremos muitas vezes recair sobre nós o peso das injustiças que deixamos se perpetuassem. E não nos esqueçamos de que as existências obscuras, as vidas humildes e despercebidas serão em muito maior número para cada um de nós, ao passo que os homens que possuírem a abastança, a educação e a instrução representarão a minoria na totalidade das populações do Globo.

Mas, quando a grande doutrina se tiver tornado a base da educação humana e a partilha de todos, quando a prova das vidas sucessivas aparecer a todas as vistas, então os mais instruídos, os mais refletidos, desenvolvendo em si as intuições do passado, compreenderão que têm vivido em todos os meios sociais e terão mais tolerância e benevolência para com os pequenos, sentirão que há menos maldade e acrimônia do que sofrimento revoltado na alma dos deserdados. Que partido admirável não podem então tirar de sua própria experiência, difundindo em torno de si a luz, a esperança, a consolação!

Então o interesse, o bem pessoal, tornar-se-á o bem de todos. Cada um se sentirá inclinado a cooperar mais ativamente para o melhoramento dessa sociedade em cujo seio terá de renascer para progredir com ela e avançar para o futuro.

*

A hora presente é ainda uma hora de lutas; luta das nações para a conquista do globo, luta das classes para a conquista do bem-estar e do poder. Em torno de nós agitam-se forças cegas e profundas, que ontem não se conheciam e hoje se organizam e entram em ação. Uma sociedade agoniza; outra nasce. O ideal do passado vem à Terra. Qual será o de amanhã?

Abriu-se um período de transição. Uma fase diferente de evolução humana, obscura, cheia, ao mesmo tempo, de promessas e ameaças, começou. Na alma das gerações que sobem jazem os germens de novas florescências. Flores do mal ou flores do bem?

Muitos se alarmam, muitos se espantam. Não duvidamos do futuro da humanidade, de sua ascensão para a luz, e derramamos em volta de nós, com coragem e perseverança incansáveis, as verdades que asseguram o dia de amanhã e fazem as sociedades fortes e felizes.

Os defeitos de nossa organização social provêm principalmente de nossos legisladores que, em suas acanhadas concepções, abrangem somente o horizonte de uma vida material. Não compreendendo o fim evolutivo da existência e o encadeamento de nossas vidas terrenas, estabeleceram um estado de coisas incompatível com os fins reais do homem e da sociedade.

A conquista do poder pelo maior número não é própria para ampliar esse ponto de vista. O povo segue o instinto surdo que o impele. Incapaz de aquilatar o mérito e o valor de seus representantes, leva muitas vezes ao poder os que desposam suas paixões e participam de sua cegueira. A educação popular precisa ser completamente reformada, porque só o homem ilustrado pode colaborar com inteligência, coragem e consciência na renovação social.

Nas reivindicações atuais, a noção de direito é objeto de excessivas especulações, sobreexcitam-se os apetites, exaltam-se os espíritos. Esquece-se de que o direito é inseparável do dever e, na verdade, é simplesmente sua resultante. Daí, uma ruptura de equilíbrio, uma inversão das relações de causa para efeito, isto é, do dever para o direito na repartição das vantagens sociais, o que constitui uma causa permanente de divisão e ódio entre os homens. O indivíduo que encara somente seu interesse próprio e seu direito pessoal ocupa lugar inferior, ainda, na escala da evolução.

O direito – como disse Godin, fundador do familistério de Guise – é feito do dever cumprido. Sendo os serviços prestados à humanidade a causa, o direito vem a ser o efeito. Numa sociedade bem organizada, cada cidadão classificar-se-á de acordo com o seu valor pessoal e o grau de sua evolução, em proporção com sua cota social.

O indivíduo só deve ocupar a situação merecida; seu direito está em proporção equivalente à sua capacidade para o bem. Tal é a regra, tal é a base da ordem universal, e a ordem social, enquanto não for sua contraprova, sua imagem fiel, será precária e instável.

Cada membro de uma coletividade deve, por força dessa regra, em vez de reivindicar direitos fictícios, tornar-se digno deles, aumentando o próprio valor e sua participação na obra comum. O ideal social transforma-se, o sentido da harmonia desenvolve-se, o campo do altruísmo dilata-se; mas, no estado atual das coisas, no seio de uma sociedade onde fermentam tantas paixões, onde se agitam tantas forças brutais, no meio de uma civilização feita de egoísmo e cobiça, de incoerência e má-vontade, de sensualidade e sofrimentos, são de temer muitas convulsões.

As vezes ouve-se o bramido da onda que sobe. O queixume dos que sofrem transforma-se em brados de cólera. As multidões contam-se; interesses seculares são ameaçados. Levanta-se, porém, uma nova fé, iluminada por um raio do Alto e assente em fatos, em provas sensíveis. Diz a todos: “Sede unidos, porque sois irmãos, irmãos neste mundo, irmãos na imortalidade. Trabalhai em comum para tornardes mais suaves as condições da vida social, mais fácil o desempenho de vossas tarefas futuras. Trabalhai para aumentar os tesouros de saber, de sabedoria, de poder, que são a herança da humanidade. A felicidade não está na luta, na vingança; está na união dos corações e das vontades!”

XIX
A lei dos destinos

Demonstrada a prova das vidas sucessivas, o caminho da existência acha-se desimpedido e traçado com firmeza e segurança. A alma vê claramente seu destino, que é a ascensão para a mais alta sabedoria, para a luz mais viva. A eqüidade governa o mundo; nossa felicidade está em nossas mãos; deixa de haver falhas no universo, sendo seu alvo a beleza, seus meios a justiça e o amor. Dissipa-se, portanto, todo o temor quimérico, todo o terror do Além. Em vez de recear o futuro, o homem saboreia a alegria das certezas eternas. Confiado no dia seguinte, multiplicam-se-lhe as forças; seu esforço para o bem será centuplicado.

Entretanto, levanta-se outra pergunta: quais são as molas secretas por cuja via se exerce a ação da justiça no encadeamento de nossas existências?

Notemos, primeiramente, que o funcionamento da justiça humana nada nos oferece que se possa comparar com a lei divina dos destinos. Esta se executa por si mesma, sem intervenção alheia, tanto para os indivíduos como para as coletividades. O que chamamos mal, ofensa, traição, homicídio, determina nos culpados um estado de alma que os entrega aos golpes da sorte na medida proporcionada à gravidade de seus atos.

Essa lei imutável é, antes de tudo, uma lei de equilíbrio. Estabelece a ordem no mundo moral, da mesma forma que as leis de gravitação e da gravidade asseguram a ordem e o equilíbrio no mundo físico. Seu mecanismo é, ao mesmo tempo, simples e grande. Todo mal se resgata pela dor. O que o homem faz de acordo com a lei do bem lhe proporciona tranqüilidade e contribui para sua elevação; toda violação provoca sofrimento. Este prossegue a sua obra interior; cava as profundidades do ser; traz para a luz os tesouros de sabedoria e beleza que ele contém e, ao mesmo tempo, elimina os germens malsãos. Prolongará sua ação e voltará à carga por tanto tempo quanto for necessário até que ele se expanda no bem e vibre uníssono com as forças divinas; mas, na persecução dessa ordem grandiosa, compensações estarão reservadas à alma. Alegrias, afeições, períodos de descanso e felicidade alternarão, no rosário das vidas, com as existências de luta, resgate e reparação. Assim, tudo é regulado, disposto com uma arte, uma ciência, uma bondade infinitas na obra providencial.

No princípio de sua carreira, em sua ignorância e fraqueza, o homem desconhece e transgride muitas vezes a lei. Daí as provações, as enfermidades, as servidões materiais; mas, desde que se instrui, desde que aprende a pôr os atos de sua vida em harmonia com a regra universal, torna-se, com efeito, cada vez menos presa da adversidade.

Os nossos atos e pensamentos traduzem-se em movimentos vibratórios e seu foco de emissão, pela repetição freqüente dos mesmos atos e pensamentos, transforma-se, pouco a pouco, em poderoso gerador do bem ou do mal.

O ser classifica-se, assim, a si mesmo pela natureza das energias de que se torna o centro irradiador, mas, ao passo que as forças do bem se multiplicam por si mesmas e aumentam incessantemente, as forças do mal se destroem por seus próprios efeitos, porque estes voltam para sua causa, para seu centro de emissão e traduzem-se sempre em conseqüências dolorosas. Estando o mau, como todos os seres, sujeito à impulsão evolutiva, vê por isso aumentar-se forçosamente sua sensibilidade.

As vibrações de seus atos, de seus pensamentos maus, depois de haverem efetuado sua trajetória, volvem a ele, mais cedo ou mais tarde, oprimem-no e apertam-no na necessidade de reformar-se.

Esse fenômeno pode explicar-se cientificamente pela correlação das forças, pela espécie de sincronismo vibratório que faz voltar sempre o efeito à sua causa. Temos demonstração disso no fato bem conhecido de, em tempo de epidemia, de contágio, serem atacadas principalmente as pessoas cujas forças vitais se harmonizam com as causas mórbidas em ação, ao passo que os indivíduos dotados de vontade firme e isentos de receio ficam geralmente indenes.

Sucede o mesmo na ordem moral. Os pensamentos de ódio e vingança, os desejos de prejudicar, provenientes do exterior, só podem agir sobre nós e influenciar-nos caso encontrem elementos que vibrem uníssonos com eles. Se nada existir em nós de similar, essas forças ruins resvalam sem nos penetrarem, volvem para aquele que as projetou para, por sua vez, o ferirem, seja no presente ou no futuro, quando circunstâncias particulares as fizerem entrar na corrente do seu destino.

*

Há, pois, na lei de repercussão dos atos, alguma coisa mecânica, automática na aparência. Entretanto, quando implica acerbas expiações, reparações dolorosas, grandes Espíritos intervêm para regular-lhe o exercício e acelerar a marcha das almas em via de evolução. Sua influência faz-se principalmente sentir na hora da reencarnação, a fim de guiar essas almas em suas escolhas, determinando as condições e os meios favoráveis à cura de suas enfermidades morais e ao resgate das faltas anteriores.

Sabemos que não há educação completa sem a dor. Colocando-nos nesse ponto de vista, é necessário livrarmo-nos de ver, nas provações e dores da humanidade, a conseqüência exclusiva de faltas passadas. Todos aqueles que sofrem não são forçosamente culpados em via de expiação. Muitos são simplesmente Espíritos ávidos de progresso, que escolheram vidas penosas e de labor para colherem o benefício moral que anda ligado a toda pena sofrida.

Contudo, em tese geral, é do choque, do conflito do ser inferior, que não se conhece ainda, com a lei da harmonia, que nasce o mal, o sofrimento. É pelo regresso gradual e voluntário do mesmo ser a essa harmonia que se restabelece o bem, isto é, o equilíbrio moral. Em todo pensamento, em toda obra há ação e reação e esta é sempre proporcional em intensidade à ação realizada. Por isso podemos dizer: o ser colhe exatamente o que semeou.

Colhe-o efetivamente, pois que, por sua ação contínua, modifica sua própria natureza, depura ou materializa o seu invólucro fluídico, o veículo da alma, o instrumento que serve para todas as suas manifestações e no qual é calcado, modelado o corpo físico em cada renascimento.

Nossa situação no Além resulta, como vimos precedentemente, das ações repetidas que nossos pensamentos e nossa vontade exercem constantemente sobre o perispírito. Segundo sua natureza e objetivo, vão-no transformando pouco a pouco num organismo sutil e radiante, aberto às mais altas percepções, às sensações mais delicadas da vida do espaço, capaz de vibrar harmonicamente com Espíritos elevados e de participar das alegrias e impressões do infinito. No sentido inverso, farão dele uma forma grosseira, opaca, acorrentada à Terra por sua própria materialidade e condenada a ficar encerrada nas baixas regiões.

Essa ação contínua do pensamento e da vontade, exercida no decorrer dos séculos e das existências sobre o perispírito, faz-nos compreender como se criam e desenvolvem nossas aptidões físicas, assim como as faculdades intelectuais e as qualidades morais.

Nossas aptidões para cada gênero de trabalho, a habilidade, a destreza em todas as coisas são o resultado de inumeráveis ações mecânicas acumuladas e registradas pelo corpo sutil, do mesmo modo que todas as recordações e aquisições mentais estão gravadas na consciência profunda. Ao renascer, essas aptidões são transmitidas, por uma nova educação, da consciência externa aos órgãos materiais. Assim se explica a habilidade consumada e quase nativa de certos músicos e, em geral, de todos aqueles que mostram, em um domínio qualquer, uma superioridade de execução que surpreende à primeira vista.

Sucede o mesmo com as faculdades e virtudes, com todas as riquezas da alma adquiridas no decurso dos tempos. O gênio é um longo e imenso esforço na ordem intelectual e a santidade foi conquistada à custa de uma luta secular contra as paixões e as atrações inferiores.

Com alguma atenção poderíamos estudar e seguir em nós o processo da evolução moral. De cada vez que praticamos uma boa ação, um ato generoso, uma obra de caridade, de dedicação, a cada sacrifício do “eu”, não sentimos uma espécie de dilatação interior? Alguma coisa parece expandir-se em nós; uma chama acende-se ou aviva-se nas profundezas do ser.

Essa sensação não é ilusória. O Espírito ilumina-se a cada pensamento altruísta, a cada impulso de solidariedade e de amor puro. Se esses pensamentos e atos se repetem, se multiplicam, se acumulam, o homem acha-se como que transformado ao sair de sua existência terrestre; a alma e seu invólucro fluídico terão adquirido um poder de radiação mais intenso.

No sentido contrário, todo pensamento ruim, todo ato criminoso, todo hábito pernicioso provoca um estreitamento, uma contração do ser psíquico, cujos elementos se condensam, entenebrecem, carregam de fluidos grosseiros.

Os atos violentos, a crueldade, o homicídio e o suicídio produzem no culpado um abalo prolongado, que se repercute, de renascimento em renascimento, no corpo material e traduz-se em doenças nervosas, tiques, convulsões e até deformidades, enfermidades ou casos de loucura, consoante a gravidade das causas e o poder das forças em ação. Toda transgressão à lei implica diminuição, mal-estar, privação de liberdade.

As vidas impuras, a luxúria, a embriaguez e a devassidão conduzem-nos a corpos débeis, sem vigor, sem saúde, sem beleza. O ser humano que abusa de suas forças vitais, por si mesmo se condena a um futuro miserável, a enfermidades mais ou menos cruéis.

Às vezes a reparação se efetua numa longa vida de sofrimentos, necessária para destruir em nós as causas do mal, ou então numa existência curta e difícil, terminada por morte trágica. Uma atração misteriosa reúne às vezes os criminosos de lugares muito afastados num dado ponto para feri-los em comum. Daí as catástrofes célebres, os naufrágios, os grandes sinistros, as mortes coletivas, tais como o desastre de Saint-Gervais, o incêndio do Bazar de Caridade, a explosão de Courrières, a do “Iena”, o naufrágio do “Titanic”, do “Ireland”, etc.

Explicam-se assim as existências curtas; são o completamento de vidas precedentes, terminadas muito cedo, abreviadas prematuramente por excessos, abusos ou por qualquer outra causa moral, e que, normalmente, deveriam ter durado mais.

Não devem ser incluídas em tais casos as mortes de crianças em tenra idade. A vida curta de uma criança pode ser uma provação para os pais, assim como para o Espírito que quer encarnar. Em geral, é simplesmente uma entrada falsa no teatro da vida, quer por causas físicas, quer por falta de adaptação dos fluidos. Em tal caso, a tentativa de encarnação renova-se, pouco depois, no mesmo meio; reproduz-se até completo êxito, ou então, se as dificuldades são insuperáveis, se efetua num meio mais favorável.

*

As considerações que acabamos de fazer demonstram que, para assegurar a depuração fluídica e o bom estado moral do ser, tem-se de estabelecer uma disciplina do pensamento, de se seguir uma higiene da alma, assim como é preciso observar uma higiene física para manter a saúde do corpo.

Em virtude da ação constante do pensamento e da vontade sobre o perispírito, vê-se que a retribuição é absolutamente perfeita. Cada um colhe o fruto imperecível de suas obras passadas e presentes; colhe-o, não por efeito de uma causa exterior, mas por um encadeamento que liga em nós mesmos o pesar à alegria, o esforço ao êxito, a culpa ao castigo. É, pois, na intimidade secreta de nossos pensamentos e na viva luz de nossos atos que devemos procurar a causa eficiente da nossa situação presente e futura.

Colocamo-nos segundo nossos méritos e no meio ao qual nos chamam nossos antecedentes. Se somos infelizes, é porque não temos suficiente perfeição para gozar de melhor sorte; mas nosso destino irá melhorando na medida que soubermos fazer nascer em nós mais desinteresse, justiça e amor. O ser deve aperfeiçoar, embelezar incessantemente sua natureza íntima, aumentar o valor próprio, construir o edifício da consciência – tal é o fim de sua elevação.

Cada um de nós possui a disposição particular a que os druidas chamavam awen, isto é, a aptidão primordial de todo ser para realizar uma das formas especiais do pensamento divino. Deus depositou no íntimo da alma os germens de faculdades poderosas e variadas; todavia, há uma das formas de seu gênio que, acima de todas as outras, é chamada a desenvolver com trabalho contínuo até que a tenha levado a seu ponto de excelência. Essas formas são inumeráveis. São os aspectos múltiplos da inteligência, da sabedoria e da beleza eternas: a música, a poesia, a eloqüência, o dom da invenção, a previsão do futuro e das coisas ocultas, a ciência ou a força, a bondade, o dom de educação, o poder de curar, etc.

Ao projetar a entidade humana, o pensamento divino impregna-a mais particularmente de uma dessas forças e assina-lhe, por isso mesmo, um papel especial no vasto concerto universal.

As missões do ser, seu destino e sua ação na evolução geral ir-se-ão definindo cada vez mais no sentido de suas próprias aptidões, a princípio latentes e confusas no começo de sua carreira, mas que vão despertar, crescer, acentuar-se à medida que ele for percorrendo a imensa espiral. As intuições e as inspirações que ele receber do Alto corresponderão a esse lado especial de seu caráter. Consoante suas necessidades e apelos, será sob essa forma que ele perceberá, em seu íntimo, a melodia divina.

Assim, Deus, da variedade infinita dos contrastes, sabe fazer brotar a harmonia tanto na Natureza como no seio da humanidade.

E se a alma abusar desses dons, se os aplicar às obras do mal, se, por causa deles, conceber vaidade ou orgulho, ser-lhe-á preciso, como expiação, renascer em organismos impotentes para sua manifestação. Viverá, gênio desconhecido, humilhado entre os homens, por tanto tempo quanto seja necessário a que a dor triunfe dos excessos da personalidade e lhe permita continuar o vôo sublime, a carreira, por um momento interrompida, para o ideal.

*

Almas humanas que percorreis estas páginas, elevai os vossos pensamentos e resoluções à altura das tarefas que vos tocam. As vias para o infinito abrem-se, semeadas de maravilhas inexauríveis, diante de vós. A qualquer ponto que o vôo vos leve, aí vos aguardam objetos de estudo com mananciais inesgotáveis de alegrias e deslumbramentos de luz e beleza. Por toda parte e sempre, horizontes inimagináveis suceder-se-ão aos horizontes percorridos.

Tudo é beleza na obra divina. Reservado vos está, em vossa ascensão, apreciar os inumeráveis aspectos, risonhos ou terríveis, desde a flor delicada até os astros rutilantes, assistir às eclosões dos mundos e das humanidades; sentireis, ao mesmo tempo, desenvolver-se vossa compreensão das coisas celestiais e aumentar vosso desejo ardente de penetrar em Deus, de vos mergulhardes nele, em sua luz, em seu amor; em Deus, nossa origem, nossa essência, nossa vida!

A inteligência humana não pode descrever os futuros que pressente, as ascensões que entrevê. Nosso Espírito, encarcerado num corpo de argila, nos laços de um organismo perecível, não pode encontrar nele os recursos necessários para exprimir esses esplendores; a expressão ficará sempre aquém das realidades. A alma, em suas intuições profundas, tem a sensação das coisas infinitas, de que participa e às quais aspira. Seu destino é vivê-las e gozá-las cada vez mais. Mas, em vão procuraria exprimi-las com o balbuciar da fraca linguagem humana, debalde se esforçaria por traduzir as coisas eternas na linguagem da Terra. A palavra é impotente, mas a consciência evolvida percebe as radiações sutis da vida superior.

Dia virá em que a alma engrandecida dominará o tempo e o espaço. Um século não será para ela mais do que um instante na duração e, num lampejo do seu pensamento, transporá os abismos do céu. Seu organismo sutil, apurado em milhares de vidas, há de vibrar a todos os sopros, a todas as vozes, a todos os apelos da imensidade. Sua memória mergulhará nas idades extintas. Poderá reviver à vontade tudo o que tiver vivido, chamar a si as almas queridas que compartilharam de suas alegrias e de suas dores e juntar-se a elas.

Porque todas as afeições do passado se encontram e se ligam na vida do espaço, contraem-se novas amizades e, de camada em camada, uma comunhão mais forte reúne os seres numa unidade de vida, de sentimento e de ação.

Crê, ama, espera, homem, meu irmão, depois, exerce tua atividade! Aplica-te a fazer passar para tua obra os reflexos e as esperanças de teu pensamento, as aspirações de teu coração, as alegrias e as certezas de tua alma imortal. Comunica tua fé às Inteligências que te cercam e participam de tua vida, a fim de que te secundem na tua tarefa e de que, por toda a Terra, um esforço poderoso erga o fardo das opressões materiais, triunfe das paixões grosseiras, abra larga saída aos vôos do Espírito.

Uma ciência nova e restaurada – não mais a ciência dos preconceitos, das práticas rotineiras, dos métodos acanhados e envelhecidos, mas uma ciência aberta a todas as pesquisas, a todas as investigações, a ciência do invisível e do Além – virá fecundar o ensino, esclarecer o destino, fortificar a consciência. A fé na sobrevivência edificar-se-á sob mais belas formas, assentes na rocha da experiência e desafiando toda crítica.

Uma arte mais idealista e pura, iluminada por luzes que não se apagam, imagem da vida radiosa, reflexo do Céu entrevisto, virá regozijar e vivificar o espírito e os sentidos.

Sucederá o mesmo com as religiões, as crenças e os sistemas. No vôo do pensamento para elevar-se das verdades de ordem relativa às verdades de ordem superior, elas chegarão a aproximar-se, a juntar-se, a fundir-se para fazer das múltiplas crenças do passado, hostis ou mortais, uma fé viva que há de reunir a humanidade num mesmo impulso de adoração e prece.

Trabalha com todas as potências de teu ser por preparar essa evolução. É mister que a atividade humana se dirija com mais intensidade para os caminhos do espírito. Depois da humanidade física, é indispensável criar a humanidade moral; depois dos corpos, as almas! O que se conquistou em energias materiais, em forças externas, perdeu-se em conhecimentos profundos, em revelações do sentido íntimo. O homem está vitorioso do mundo visível; as aberturas praticadas no universo físico são imensas; restam-lhe as conquistas do mundo interior, o conhecimento de sua própria natureza e do segredo de seu esplêndido porvir.

Não discutas, pois, mas trabalha. A discussão é vã, estéril é a crítica. Mas a obra pode ser grande, se consistir em te engrandeceres a ti mesmo, engrandecendo os outros, em fazeres o teu ser melhor e mais belo. Porque não deves esquecer que para ti trabalhas, trabalhando para todos, associando-te à tarefa comum. O universo, como tua alma, renova-se, perpetua-se, embeleza-se sem cessar pelo trabalho e pela reciprocidade. Deus, aperfeiçoando sua obra, goza dela como tu gozas da tua, embelezando-a. Tua obra mais bela é tu mesmo. Com teus esforços constantes podes fazer de tua inteligência, de tua consciência, uma obra admirável, de que gozarás indefinidamente. Cada uma de tuas vidas é um cadinho fecundo do qual deves sair apto para tarefas, para missões cada vez mais altas, apropriadas às tuas forças e cada uma das quais será tua recompensa e tua alegria.

Assim, com tuas mãos irás, dia a dia, moldando teu destino. Renascerás nas formas que teus desejos constroem, que tuas obras geram, até que teus desejos e apelos te tenham preparado formas e organismos superiores aos da Terra. Renascerás nos meios que preferes, junto dos seres queridos, que já estiveram associados a teus trabalhos, a tuas vidas, e que viverão contigo e para ti, como tu reviverás com eles e para eles.

Terminada que seja tua evolução terrestre, quando tiveres exaltado tuas faculdades e tuas forças a um grau de suficiente capacidade, quando tiveres esvaziado a taça dos sofrimentos, das amarguras e das felicidades que nos oferece este mundo, quando lhe houveres sondado as ciências e crenças, comungado com todos os aspectos do gênio humano, subirás então com teus amados para outros mundos mais belos, mundos de paz e harmonia.

Volvidos ao pó, teus últimos despojos terrestres, chegada às regiões espirituais tua essência purificada, tua memória e tua obra hão de amparar ainda os homens, teus irmãos, em suas lutas, em suas provações, e poderás dizer com a alegria de uma consciência tranqüila: “Minha passagem na Terra não foi estéril; não foram vãos meus esforços!”


Terceira Parte
As Potências da Alma

XX
A vontade

O estudo do ser, a que consagramos a primeira parte desta obra, deixou-nos entrever a poderosa rede de forças, de energias ocultas em nós. Mostrou-nos que todo o nosso futuro, em seu desenvolvimento ilimitado, lá está contido no gérmen. As causas da felicidade não se acham em lugares determinados no espaço; estão em nós, nas profundezas misteriosas da alma, o que é confirmado por todas as grandes doutrinas.

“O reino dos céus está dentro de vós”, disse o Cristo.

O mesmo pensamento está por outra forma expresso nos Vedas: “Tu trazes em ti um amigo sublime que não conheces.”

A sabedoria persa não é menos afirmativa: “Vós viveis no meio de armazéns cheios de riquezas e morreis de fome à porta.” (Suffis Ferdousis).

Todos os grandes ensinamentos concordam neste ponto: É na vida íntima, no desabrochar de nossas potências, de nossas faculdades, de nossas virtudes, que está o manancial das felicidades futuras.

Olhemos atentamente para o fundo de nós mesmos, fechemos nosso entendimento às coisas externas e, depois de havermos habituado nossos sentidos psíquicos à escuridade e ao silêncio, veremos surgir luzes inesperadas, ouviremos vozes fortificantes e consoladoras. Mas, há poucos homens que saibam ler em si, que saibam explorar as jazidas que encerram tesouros inestimáveis. Gastamos a vida em coisas banais, improfícuas; percorremos o caminho da existência sem nada saber de nós mesmos, das riquezas psíquicas, cuja valorização nos proporcionaria gozos inumeráveis.

Há em toda alma humana dois centros ou, melhor, duas esferas de ação e expressão. Uma delas, a exterior, manifesta a personalidade, o “eu”, com suas paixões, suas fraquezas, sua mobilidade, sua insuficiência. Enquanto ela for a reguladora de nosso proceder, teremos a vida inferior, semeada de provações e males. A outra, interna, profunda, imutável, é, ao mesmo tempo, a sede da consciência, a fonte da vida espiritual, o templo de Deus em nós. É somente quando esse centro de ação domina o outro, quando suas impulsões nos dirigem, que se revelam nossas potências ocultas e que o Espírito se afirma em seu brilho e beleza. É por ele que estamos em comunhão com “o Pai que habita em nós”, segundo as palavras do Cristo, com o Pai que é o foco de todo o amor, o princípio de todas as ações.

Por um desses centros perpetuamo-nos em mundos materiais, onde tudo é inferioridade, incerteza e dor; pelo outro temos entrada nos mundos celestes, onde tudo é paz, serenidade, grandeza. Somente pela manifestação crescente do Espírito divino em nós chegaremos a vencer o “eu” egoísta, a associar-nos plenamente à obra universal e eterna, a criar uma vida feliz e perfeita.

Por que meio poremos em movimento as potências internas e as orientaremos para um ideal elevado? Pela vontade! Os usos persistentes, tenazes, dessa faculdade soberana permitir-nos-á modificar a nossa natureza, vencer todos os obstáculos, dominar a matéria, a doença e a morte.

É pela vontade que dirigimos nossos pensamentos para um alvo determinado. Na maior parte dos homens os pensamentos flutuam sem cessar. Sua mobilidade constante e sua variedade infinita oferecem limitado acesso às influências superiores. É preciso saber se concentrar, colocar o pensamento acorde com o pensamento divino. Então, a alma humana é fecundada pelo Espírito divino, que a envolve e penetra, tornando-a apta a realizar nobres tarefas, preparando-a para a vida do espaço, cujos esplendores ela começa fracamente a entrever desde este mundo. Os Espíritos elevados vêem e ouvem os pensamentos uns dos outros, com os quais são harmonias penetrantes, ao passo que os nossos são, as mais das vezes, somente discordâncias e confusão. Aprendamos, pois, a servir-nos de nossa vontade e, por ela, a unir nossos pensamentos a tudo o que é grande, à harmonia universal, cujas vibrações enchem o espaço e embalam os mundos.

*

A vontade é a maior de todas as potências; é, em sua ação, comparável ao ímã. A vontade de viver, de desenvolver em nós a vida, atrai-nos novos recursos vitais; tal é o segredo da lei de evolução. A vontade pode atuar com intensidade sobre o corpo fluídico, ativar-lhe as vibrações e, dessa forma, apropriá-lo a um modo cada vez mais elevado de sensações, prepará-lo para mais alto grau de existência.

O princípio de evolução não está na matéria, está na vontade, cuja ação tanto se estende à ordem invisível das coisas como à ordem visível e material. Esta é simplesmente a conseqüência daquela. O princípio superior, o motor da existência, é a vontade. A vontade divina é o supremo motor da vida universal.

O que importa, acima de tudo, é compreender que podemos realizar tudo no domínio psíquico; nenhuma força permanece estéril quando se exerce de maneira constante, visando alcançar um desígnio conforme ao direito e à justiça.

É o que se dá com a vontade; ela pode agir tanto no sono como na vigília, porque a alma valorosa, que para si mesma estabeleceu um objetivo, procura-o com tenacidade em ambas as fases de sua vida e determina assim uma corrente poderosa, que mina devagar e silenciosamente todos os obstáculos.

Com a preservação dá-se o mesmo que com a ação. A vontade, a confiança e o otimismo são outras tantas forças preservadoras, outros tantos baluartes opostos em nós a toda causa de desassossego, de perturbação, interna e externa. Bastam, às vezes, por si sós, para desviar o mal; ao passo que o desânimo, o medo e o mau-humor nos desarmam e nos entregam a ele sem defesa. O simples fato de olharmos de frente para o que chamamos o mal, o perigo, a dor, a resolução de os afrontarmos, de os vencermos, diminuem-lhes a importância e o efeito.

Os americanos têm, com o nome de mind cure (cura mental) ou ciência cristã, aplicado esse método à terapêutica e não se pode negar que os resultados obtidos são consideráveis. Esse método resume-se na fórmula seguinte: “O pessimismo enfraquece; o otimismo fortalece.” Consiste na eliminação gradual do egoísmo, na união completa com a Vontade Suprema, causa das forças infinitas. Os casos de cura são numerosos e apóiam-se em testemunhos irrecusáveis.[1]

De resto, foi esse – em todos os tempos e com formas diversas – o princípio da saúde física e moral.

Na ordem física, por exemplo, não se destroem os infusórios, os infinitamente pequenos, que vivem e se multiplicam em nós; mas se ganham forças para melhor lhes resistir. Da mesma forma, nem sempre é possível, na ordem moral, afastar as vicissitudes da sorte, mas se pode adquirir força bastante para suportá-las com alegria, sobrepujá-las com esforço mental, dominá-las por tal forma que percam todo o aspecto ameaçador, para se transformarem em auxiliares de nosso progresso e de nosso bem.

Em outra parte demonstramos, apoiando-nos em fatos recentes, o poder da alma sobre o corpo na sugestão e auto-sugestão.[2] Limitar-nos-emos a lembrar outros exemplos ainda mais concludentes.

Louise Lateau, a estigmatizada de Bois-d'Haine, cujo caso foi estudado por uma comissão da Academia de Medicina da Bélgica, fazia, meditando sobre a Paixão do Cristo, correr à vontade o sangue dos seus pés, mãos e lado esquerdo. A hemorragia durava muitas horas.[3]

Pierre Janet observou casos análogos na Salpêtrière, em Paris. Uma extática apresentava estigmas nos pés quando lhos metiam num aparelho.[4]

Louis Vivé, em suas crises, a si mesmo dava ordem de sangrar-se em horas determinadas e o fenômeno produzia-se com exatidão.

Encontra-se a mesma ordem de fatos em certos sonhos, bem como nos fenômenos chamados “noevi” ou sinais de nascença.[5] Em todos os domínios da observação, achamos a prova de que a vontade impressiona a matéria e pode submetê-la a seus desígnios. Essa lei manifestas-se com mais intensidade ainda no campo da vida invisível. É em virtude das mesmas regras que os Espíritos criam as formas e os atributos que nos permitem reconhecê-los nas sessões de materialização.

Pela vontade criadora dos grandes Espíritos e, acima de tudo, do Espírito divino, uma vida repleta de maravilhas desenvolve-se e se estende, de degrau em degrau, até ao infinito, nas profundezas do céu, vida incomparavelmente superior a todas as maravilhas criadas pela arte humana e tanto mais perfeita quanto mais se aproxima de Deus.

Se o homem conhecesse a extensão dos recursos que nele germinam, talvez ficasse deslumbrado e, em vez de se julgar fraco e temer o futuro, compreenderia a sua força, sentiria que ele próprio pode criar esse futuro.

Cada alma é um foco de vibrações que a vontade põe em movimento. Uma sociedade é um agrupamento de vontades que, quando estão unidas, concentradas num mesmo fito, constituem centro de forças irresistíveis. As humanidades são focos ainda mais poderosos, que vibram através da imensidade.

Pela educação e exercício da vontade, certos povos chegam a resultados que parecem prodígios.

A energia mental, o vigor de espírito dos japoneses, seu desprezo pela dor, sua impassibilidade diante da morte, causaram pasmo aos ocidentais e foram para eles uma espécie de revelação. O japonês habitua-se desde a infância a dominar suas impressões, a nada deixar trair dos desgostos, das decepções, dos sentimentos por que passa, a ficar impenetrável, a não se queixar nunca, a nunca se encolerizar, a receber sempre com boa cara os reveses.

Tal educação retempera os ânimos e assegura a vitória em todos os terrenos. Na grande tragédia da existência e da História, o heroísmo representa o papel principal e é a vontade que faz os heróis.

Esse estado de espírito não é privilégio dos japoneses. Os hindus chegam também, com o emprego do que eles chamam a hatha-yoga, ou exercício da vontade, a suprimir em si o sentimento da dor física.

Numa conferência feita no Instituto Psicológico de Paris e que Les Annales des Sciences Psychiques, de novembro de 1906, reproduziram, Annie Besant cita vários casos notáveis devidos a essas práticas persistentes.

Um hindu possuirá bastante poder de vontade para conservar um braço erguido até se atrofiar. Outro deitar-se-á numa cama eriçada de pontas de ferro sem sentir nenhuma dor. Encontra-se mesmo esse poder em pessoas que não praticaram a hatha-yoga. A conferencista cita o caso de um de seus amigos que, tendo ido à caça do tigre e tendo recebido, por causa da imperícia de um caçador, uma bala na coxa, recusou submeter-se à ação do clorofórmio para a extração do projétil, afirmando ao cirurgião que teria suficiente domínio sobre si mesmo para ficar imóvel e impassível durante a operação. Esta efetuou-se; o ferido tinha plena consciência de si mesmo e não fez um só movimento. “O que para outro teria sido uma tortura atroz, nada era para ele; havia fixado sua consciência na cabeça e nenhuma dor sentira. Sem ser yogui, possuía o poder de concentrar a vontade, poder que, nas Índias, se encontra freqüentemente.”

Pelo que se acaba de ler, pode-se julgar quão diferente dos nossos são a educação mental e o objetivo dos asiáticos. Tudo, neles, tende a desenvolver o homem interior, sua vontade, sua consciência, à vista dos vastos ciclos de evolução que se lhes abrem, enquanto o europeu adota, de preferência, como objetivo, os bens imediatos, limitados pelo círculo da vida presente. Os alvos em que se põe à mira nos dois casos são diferentes; e essa divergência resulta da concepção essencialmente diferente do papel do ser no universo. Os asiáticos consideraram por muito tempo, com um espanto misturado de piedade, nossa agitação febril, nossa preocupação pelas coisas contingentes e sem futuro, nossa ignorância das coisas estáveis, profundas, indestrutíveis, que constituem a verdadeira força do homem. Daí o contraste surpreendente que oferecem as civilizações do Oriente e do Ocidente. A superioridade pertence evidentemente à que abarca mais vasto horizonte e se inspira nas verdadeiras leis da alma e de seu futuro. Pode ter parecido atrasada aos observadores superficiais, enquanto as duas civilizações fizeram paralelamente sua evolução, sem que entre uma e outra houvesse choques excessivos. Mas, desde que as necessidades da existência e a pressão crescente dos povos do Ocidente forçaram os asiáticos a entrar na corrente dos progressos modernos – tal é o caso dos japoneses –, pode-se ver que as qualidades eminentes dessa raça, manifestando-se no domínio material, podiam assegurar-lhes igualmente a supremacia. Se esse estado de coisas se acentuar, como é de recear, se o Japão conseguir arrastar consigo todo o Extremo Oriente, é possível que mude o eixo da dominação do mundo e passe de uma raça para outra, principalmente se a Europa persistir em não se interessar pelo que constitui o mais alto objetivo da vida humana e em contentar-se com um ideal inferior e quase bárbaro.

Mesmo restringindo o campo de nossas observações à raça branca, aí vamos verificar também que as nações de vontade mais firme, mais tenaz, vão pouco a pouco tomando predomínio sobre as outras. É o que se dá com os povos anglo-saxônios e germânicos. Estamos vendo o que a Inglaterra tem podido realizar, através dos tempos, para execução de seu plano de ação. A Alemanha, com seu espírito de método e continuidade, soube criar e manter uma poderosa coesão em detrimento de seus vizinhos, não menos bem dotados do que ela, mas menos resolutos e perseverantes. A América do Norte prepara também para si um grande lugar no concerto dos povos.

A França é, pelo contrário, uma nação de vontade fraca e volúvel. Os franceses passam de uma idéia a outra com extrema mobilidade e a esse defeito não são estranhas as vicissitudes de sua História. Seus primeiros impulsos são admiráveis, vibrantes de entusiasmo. Mas, se com facilidade empreendem uma obra, com a mesma facilidade a abandonam, quando o pensamento já a vai edificando e os materiais se vão reunindo silenciosamente ao seu derredor. Por isso o mundo apresenta, por toda parte, vestígios meio apagados de sua ação passageira, de seus esforços depressa interrompidos.

Além disso, o pessimismo e o materialismo, que cada vez mais se alastram entre eles, tendem também a amesquinhar as qualidades generosas de sua raça. O positivismo e o agnosticismo trabalham sistematicamente para apagar o que restava de viril na alma francesa; e os recursos profundos do espírito francês atrofiam-se por falta de uma educação sólida e de um ideal elevado.

Aprendamos, pois, a criar uma “vontade de potência”, de natureza mais elevada do que a sonhada por Nietzsche. Fortaleçamos em torno de nós os espíritos e os corações, se não quisermos ver nossas sociedades votadas à decadência irremediável.

*

Querer é poder! O poder da vontade é ilimitado. O homem, consciente de si mesmo, de seus recursos latentes, sente crescerem suas forças na razão dos esforços. Sabe que tudo o que de bem e bom desejar há de, mais cedo ou mais tarde, realizar-se inevitavelmente, ou na atualidade ou na série das suas existências, quando seu pensamento se puser de acordo com a Lei divina. E é nisso que se verifica a palavra celeste: “A fé transporta montanhas.”

Não é consolador e belo poder dizer: “Sou uma inteligência e uma vontade livres; a mim mesmo me fiz, inconscientemente, através das idades; edifiquei lentamente minha individualidade e liberdade e agora conheço a grandeza e a força que há em mim. Amparar-me-ei nelas; não deixarei que uma simples dúvida as empane por um instante sequer e, fazendo uso delas com o auxílio de Deus e de meus irmãos do espaço, elevar-me-ei acima de todas as dificuldades; vencerei o mal em mim; desapegar-me-ei de tudo o que me acorrenta às coisas grosseiras para levantar o vôo para os mundos felizes!”

Vejo claramente o caminho que se desenrola e que tenho de percorrer. Esse caminho atravessa a extensão ilimitada e não tem fim; mas, para guiar-me na estrada infinita, tenho um guia seguro – a compreensão da lei de vida, progresso e amor que rege todas as coisas; aprendi a conhecer-me, a crer em mim e em Deus. Possuo, pois, a chave de toda elevação e, na vida imensa que tenho diante de mim, conservar-me-ei firme, inabalável na vontade de enobrecer-me e elevar-me, cada vez mais; atrairei, com o auxílio de minha inteligência, que é filha de Deus, todas as riquezas morais e participarei de todas as maravilhas do Cosmo.

Minha vontade chama-me: “Para frente, sempre para frente, cada vez mais conhecimento, mais vida, vida divina!” E com ela conquistarei a plenitude da existência, construirei para mim uma personalidade melhor, mais radiosa e amante. Saí para sempre do estado inferior do ser ignorante, inconsciente de seu valor e poder; afirmo-me na independência e dignidade de minha consciência e estendo a mão a todos os meus irmãos, dizendo-lhes:

Despertai de vosso pesado sono; rasgai o véu material que vos envolve, aprendei a conhecer-vos, a conhecer as potências de vossa alma e a utilizá-las. Todas as vozes da Natureza, todas as vozes do espaço vos bradam: “Levantai-vos e marchai! Apressai-vos para a conquista de vossos destinos!”

A todos vós que vergais ao peso da vida, que, julgando-vos sós e fracos, vos entregais à tristeza, ao desespero, ou que aspirais ao nada, venho dizer: “O nada não existe; a morte é um novo nascimento, um encaminhar para novas tarefas, novos trabalhos, novas colheitas; a vida é uma comunhão universal e eterna que liga Deus a todos os seus filhos.”

A vós todos, que vos credes gastos pelos sofrimentos e decepções, pobres seres aflitos, corações que o vento áspero das provações secou; Espíritos esmagados, dilacerados pela roda de ferro da adversidade, venho dizer-vos:

“Não há alma que não possa renascer, fazendo brotar novas florescências. Basta-vos querer para sentirdes o despertar em vós de forças desconhecidas. Crede em vós, em vosso rejuvenescimento em novas vidas; crede em vossos destinos imortais. Crede em Deus, Sol dos sóis, foco imenso, do qual brilha em vós uma centelha, que se pode converter em chama ardente e generosa!

“Sabei que todo homem pode ser bom e feliz; para vir a sê-lo basta que o queira com energia e constância. A concepção mental do ser, elaborada na obscuridade das existências dolorosas, preparada pela vagarosa evolução das idades, expandir-se-á à luz das vidas superiores e todos conquistarão a magnífica individualidade que lhes está reservada.

“Dirigi incessantemente vosso pensamento para esta verdade: podeis vir a ser o que quiserdes. E sabei querer ser cada vez maiores e melhores. Tal é a noção do progresso eterno e o meio de realizá-lo; tal é o segredo da força mental, da qual emanam todas as forças magnéticas e físicas. Quando tiverdes conquistado esse domínio sobre vós mesmos, não mais tereis que temer os retardamentos nem as quedas, nem as doenças, nem a morte; tereis feito de vosso “eu” inferior e frágil uma alta e poderosa individualidade!”

XXI
A consciência – O sentido íntimo

A alma é, como nos demonstraram os ensinos precedentes, uma emanação, uma partícula do Absoluto. Suas vidas têm por objetivo a manifestação cada vez mais grandiosa do que nela há de divino, o aumento do domínio que está destinado a exercer dentro e fora de si, por meio de seus sentidos e energias latentes.

Pode-se alcançar esse resultado por processos diferentes, pela Ciência ou pela meditação, pelo trabalho ou pelo exercício moral. O melhor processo consiste em utilizar todos esses modos de aplicação, em completá-los uns pelos outros; o mais eficaz, porém, de todos, é o exame íntimo, a introspecção. Acrescentemos o desapego das coisas materiais, a firme vontade de melhorar a nossa união com Deus em espírito e verdade, e veremos que toda religião verdadeira, toda filosofia profunda aí vai buscar sua origem e nessas fórmulas se resume. O resto, doutrinas culturais, ritos e práticas não são mais do que o vestuário externo que encobre, aos olhos das turbas, a alma das religiões.

Victor Hugo escrevia no Post scriptum de ma vie: “É dentro de nós que devemos olhar o exterior... Inclinando-nos sobre esse poço, o nosso espírito, avistamos, a uma distância de abismo, em estreito círculo, o mundo imenso.”

Dizia também Emerson: “A alma é superior ao que se pode saber dela e mais sábia do que qualquer uma de suas obras”.

As profundezas da alma ligam-na à grande Alma universal e eterna, de que ela é uma como vibração. Essa origem e essa participação da natureza divina explicam as necessidades irresistíveis do Espírito em evolução adiantada: necessidade de infinito, de justiça, de luz; necessidade de sondar todos os mistérios, de estancar a sede nos mananciais vivos e inexauríveis cuja existência ele pressente, mas que não consegue descobrir no plano de suas vidas terrestres.

Daí provêm nossas mais altas aspirações, nosso desejo de saber, jamais satisfeito, nosso sentimento do belo e do bem; daí os clarões repentinos que iluminam de tempos em tempos as trevas da existência e os pressentimentos, a previsão do futuro, relâmpagos fugitivos no abismo do tempo, que luzem às vezes para certas inteligências.

Sob a superfície do “eu”, superfície agitada pelos desejos, esperanças e temores, está o santuário que encerra a consciência integral, calma, pacífica, serena, o princípio da sabedoria e da razão, de que a maior parte dos homens só tem conhecimento por surdas impulsões ou vagos reflexos entrevistos.

Todo o segredo da felicidade, da perfeição, está na identificação, na fusão em nós desses dois planos ou focos psíquicos; a causa de todos os nossos males, de todas as nossas misérias morais está na sua oposição.

Na Crítica da Razão Pura, o grande filósofo Emmanuel Kant demonstrou que a razão humana, isto é, a razão superficial de que falamos, por si mesma nada podia perceber, nada provar do que respeita às realidades do mundo transcendental, às origens da vida, ao espírito, à alma, a Deus.

Dessa argumentação infere-se, lógica e necessariamente, a conseqüência de que existe em nós um princípio, uma razão mais profunda que, por meio da revelação interior, nos inicia nas verdades e leis do mundo espiritual. William James faz a mesma afirmação, nestes termos: “O “eu” consciente faz um só com um “eu” maior, do qual lhe vem o resgate”. [6]

E, mais adiante:

“Os prolongamentos do “eu” consciente dilatam-se muito além do mundo da sensação e da razão, em certa região que se pode chamar mística ou sobrenatural. Quando nossas tendências para o ideal têm sua origem nessa região – é o caso da maior parte delas, porque somos possuídos por elas de maneira que não podemos perceber – ali temos raízes mais profundas do que no mundo visível, pois nossas mais altas aspirações são centro da nossa personalidade. Mas, esse mundo invisível não é somente ideal, produz efeitos no mundo visível. Pela comunhão com o invisível, o “eu” finito transforma-se; tornamo-nos homens novos e nossa regeneração, modificando nosso proceder, repercute no mundo material. Como, pois, recusar o nome de realidade ao que produz efeitos no seio de uma outra realidade? Com que direito diriam os filósofos que não é real o mundo invisível?”

*

A consciência é, pois, como diria W. James, o centro da personalidade, centro permanente, indestrutível, que persiste e se mantém através de todas as transformações do indivíduo. A consciência é não somente a faculdade de perceber, mas também o sentimento que temos de viver, agir, pensar. É una e indivisível. A pluralidade de seus estados nada prova, como vimos,[7] contra essa unidade. Aqueles estados são sucessivos, como as percepções correlativas, e não simultâneos. Para demonstrar que existem em nós vários centros autônomos de consciência, seria necessário provar também que há ações e percepções simultâneas e diferentes; mas isso não é exato e não pode ser.

Todavia, a consciência apresenta, em sua unidade, como sabemos, vários planos, vários aspectos. Física, confunde-se com o que a Ciência chama o sensorium, isto é, a faculdade de concentrar as sensações externas, coordená-las, defini-las, perceber-lhes as causas e determinar-lhes os efeitos. Pouco a pouco, pelo próprio fato da evolução, essas sensações vão-se multiplicando e apurando, e a consciência intelectual acorda. Daí em diante não terá limites seus desenvolvimentos, pois que poderá abraçar todas as manifestações da vida infinita. Então desabrocharão o sentimento e o juízo e a alma compreender-se-á a si mesma; tornar-se-á, ao mesmo tempo, sujeito e objeto. Na multiplicidade e variedade de suas operações mentais terá sempre consciência do que pensa e quer.

O “eu” afirma-se, desenvolve-se, e a personalidade completa-se pela manifestação da consciência moral ou espiritual. A faculdade de perceber os efeitos do mundo sensível exercer-se-á por modos mais elevados; converter-se-á na possibilidade de sentir as vibrações do mundo moral, de discriminar suas causas e leis.

É com os sentidos internos que o ser humano percebe os fatos e as verdades de ordem transcendental. Os sentidos físicos enganam, apenas distinguem a aparência das coisas e nada seriam sem o sensorium, que agrupa, centraliza suas percepções e as transmite à alma; esta registra tudo e tira o efeito útil. Abaixo, porém, desse sensorium superficial, há outro mais profundo, que distingue as regras e as coisas do mundo metafísico. É esse sentido profundo, desconhecido, inutilizado para a maior parte dos homens, que certos experimentadores designaram pelo nome de consciência subliminal.

A maior parte das grandes descobertas, na ordem física, foi simplesmente a confirmação das idéias percebidas pela intuição ou sentido íntimo. Newton, por exemplo, havia muito tempo que concebera o pensamento da atração universal, quando a queda de uma maçã veio dar a seus sentidos materiais a demonstração objetiva.

Assim como existe um organismo e um sensorium físicos, que nos põem em relação com os seres e as coisas do plano material, assim também há um sentido espiritual por meio do qual certos homens penetram desde já no domínio da vida invisível. Assim que, depois da morte, cair o véu da carne, esse sentido tornar-se-á o centro único de nossas percepções.

É na extensão e desenvolvimento crescente desse sentido espiritual que está a lei de nossa evolução psíquica, a renovação do ser, o segredo de sua iluminação interior e progressiva. Por ele nos desapegamos do relativo e do ilusório, de todas as contingências materiais, para nos vincularmos cada vez mais ao imutável e absoluto.

Por isso a ciência experimental será sempre insuficiente, a despeito das vantagens que oferece e das conquistas que realiza, se não for completada pela intuição, por essa espécie de adivinhação interior que nos faz descobrir as verdades essenciais. Há uma maravilha que se avantaja a todas as do exterior. Essa maravilha somos nós mesmos; é o espelho oculto no homem e que reflete todo o universo.

Aqueles que se absorvem no estudo exclusivo dos fenômenos, em busca das formas mutáveis e dos fatos exteriores, procuram, muitas vezes bem longe, essa certeza, esse criterium, que está neles. Deixam de escutar as vozes íntimas, de consultar as faculdades de entendimento que se desenvolvem e apuram no estudo silencioso e recolhido. É essa a razão pela qual as coisas do invisível, do impalpável, do divino, imperceptíveis para tantos sábios, são percebidas às vezes por ignorantes. O mais belo livro está em nós mesmos; o infinito revela-se nele. Feliz daquele que nele pode ler!

Todo esse domínio fica fechado para o positivista que posterga a única chave, o único instrumento com o auxílio do qual pode penetrar nele; o positivista afadiga-se em experimentar por meio dos sentidos físicos e de instrumentos materiais o que escapa a toda medida objetiva. Por isso, o homem dos sentidos externos raciocina a respeito do mundo e dos seres metafísicos como um surdo raciocina a respeito das regras da melodia e um cego a respeito das leis da óptica. Desperte, porém, e ilumine-se nele o senso íntimo e, então, comparada a essa luz que o inunda, a ciência terrestre, tão grande, antes, à sua vista, imediatamente se amesquinhará.

O eminente psicólogo americano William James, reitor da Universidade de Harvard,[8] declara-o, nestes termos:

“Posso me colocar na atitude do homem de Ciência e imaginar vivamente que nada existe fora da sensação e das leis da matéria; mas não posso fazê-lo sem ouvir uma admoestação interior: “Tudo isso é fantasmagoria.” Toda experiência humana, em sua viva realidade, me impele irresistivelmente a sair dos estreitos limites onde pretende encerrar-nos a Ciência. O mundo real é constituído diversamente, é muito mais rico e complexo que o da Ciência.”

Depois de Myers e Flournoy, cujas opiniões citamos, W. James estabelece, por sua vez, que a psicologia oficial não pode continuar a desconhecer os recessos da consciência profunda, colocados sob a consciência normal. Ele o diz, formalmente:[9]

“Nossa consciência normal não é mais que um tipo particular de consciência, separado, como por fina membrana, de vários outros que aguardam momento favorável para entrar em jogo. Podemos atravessá-los sem suspeitarmos de sua existência; mas, em presença de estímulo conveniente, mostram-se mais reais e complexos.”

A propósito de certas conversões acrescenta:[10]

“Descobrem-se profundezas novas na alma, à proporção que ela se transforma, como se fosse formada de camadas sobrepostas, cada uma das quais permanece desconhecida, enquanto está coberta por outras.”

E, mais adiante:[11]

“Quando um homem tende conscientemente para um ideal, é em geral para alguma coisa vaga e indefinida; existem, contudo, bem no fundo de seu organismo, forças que aumentam e caminham em sentido determinado. Os fracos esforços, que esclarecem a sua consciência, suscitam esforços subconscientes, aliados vigorosos que trabalham na sombra; mas essas forças orgânicas convergem para um resultado que muitas vezes não é o mesmo e que é sempre mais bem determinado que o ideal concebido, meditado, reclamado pela consciência nítida.”

Tudo isso confirma que a causa inicial e o princípio da sensação não estão no corpo, mas na alma; os sentidos físicos são simplesmente a manifestação externa e grosseira, o prolongamento na superfície do ser, dos sentidos íntimos e ocultos.

O Chicago Chronicle, de dezembro de 1905, refere um caso extraordinário de manifestação do sexto sentido, que julgamos dever citar aqui. Trata-se de uma menina de 17 anos, cega e surda-muda, desde a idade de 6 anos, e na qual se desenvolveu, dessa época em diante, uma faculdade nova:

“Ella Hopkins pertence a uma boa família de Utica, Nova Iorque. Há três anos foi colocada pelos pais num Instituto de Nova Iorque destinado à instrução dos surdos-mudos. Como às outras crianças daquela casa, ensinaram-lhe a ler, a ouvir e a exprimir-se por meio dos dedos.

Não somente Ella rapidamente se apropriou dessa linguagem, como chegou a perceber o que se passa em volta de si, tão facilmente como se gozasse de seus sentidos normais. Sabe quem entra e sai, se é pessoa conhecida ou estranha; segue e percebe a conversa sustentada em voz baixa no aposento onde se encontra e, a pedido, a reproduz fielmente por escrito. Não se trata de leitura de pensamento direto, pois que a menina não compreende o pensamento das pessoas presentes senão quando lhe dão uma expressão vocal.

Mas, essa faculdade tem intermitências e mostra-se às vezes com outros aspectos.

A memória de Ella é das mais notáveis. O que aprendeu uma vez – e aprende depressa – nunca mais o esquece. Sentada diante da máquina de escrever, com os olhos fixos, como se vissem, com interesse intenso nas teclas do instrumento, do qual se serve com extrema precisão, tem toda a aparência de uma jovem em plena posse das faculdades normais. Os olhos são claros e expressivos, a fisionomia animada e variável. Ninguém diria que Ella é cega, surda e muda.

Devemos acreditar que o diretor do Instituto, Sr. Currier, está habituado à manifestação das faculdades anormais nesses infelizes, pois que não parece admirar-se com o caso da menina. “Temos todos – diz ele – consciência de certas coisas sem o auxílio aparente dos sentidos ordinários... Aqueles que são privados de dois ou três desses sentidos e obrigados a contar com o desenvolvimento de outras faculdades para os substituir, vêem naturalmente estas se desenvolverem e fortificarem.”

Há, na mesma classe de Ella, outras duas mocinhas igualmente cegas, surdas e mudas, que possuem também este “sexto sentido”, ainda que em menor grau. Faz gosto, ao que parece, vê-las, todas três, comunicarem-se rapidamente pelo vôo do pensamento, tendo apenas necessidade do ligeiro contacto dos dedos sensitivos.”

À enumeração desses fatos acrescentaremos um testemunho de alto valor, o do Prof. César Lombroso, da Universidade de Turim. Escrevia ele na revista italiana Arena (junho de 1907):

“Até 1890 fui acérrimo adversário do Espiritismo. Em 1891, porém, tive de combater numa cliente minha um dos fenômenos mais curiosos que jamais se me depararam. Tive de tratar a filha de um alto funcionário de minha cidade natal, a qual, de repente, foi acometida, na época da puberdade, de violento acesso de histeria acompanhado de sintomas de que nem a Patologia nem a Fisiologia podiam dar explicação. Havia momentos em que os olhos perdiam totalmente a faculdade de ver e em compensação a doente via com os ouvidos. Era capaz de ler com os olhos vendados algumas linhas impressas que lhe apresentassem ao ouvido. Quando se lhe punha uma lente entre o ouvido e a luz solar, ela experimentava como que uma queimadura nos olhos; exclamava que queriam cegá-la... Conquanto não fossem novos esses fatos, não deixavam de ser singulares. Confesso que, pelo menos, pareciam-me inexplicáveis pelas teorias fisiológicas e patológicas estabelecidas até então. Parecia-me bem clara uma única coisa: que esse estado punha em ação, numa pessoa dantes inteiramente normal, forças singulares em relação com sentidos desconhecidos. Foi então que tive a idéia de que talvez o Espiritismo me facilitasse a aproximação da verdade.”

Eis outro exemplo do desenvolvimento dos sentidos psíquicos, para o qual chamamos toda a atenção do leitor. A pessoa de quem vamos falar é considerada como uma das maravilhas de nossa época:[12]

Helen Keller é também uma menina cega, surda e muda. Não possui, em aparência, senão o sentido do tato para comunicar com o mundo exterior. E, entretanto, pode conversar em três línguas com seus visitantes; sua bagagem intelectual é considerável; possui um sentimento estético que lhe permite gozar das obras de arte e das harmonias da Natureza. Pelo simples contacto das mãos, ela distingue o caráter e a disposição de espírito das pessoas que encontra. Com a ponta dos dedos colhe a palavra nos lábios e lê nos livros apalpando os caracteres salientes, especialmente impressos para ela. Eleva-se à concepção das coisas mais abstratas e sua consciência ilumina-se com claridades que vai buscar nas profundezas de sua alma.

Escutemos o que nos diz a Sra. Maëterlinck, depois da visita que lhe fez em Wrentham (América):

“Helen Keller é um ser superior; vê-se sua razão equilibrada, tão poderosa e tão sã, sua inteligência tão clara e tão bela, que o problema logo se transmuda. Já não se procura ser compreendido, mas compreender.

Helen possui profundos conhecimentos de Álgebra, de Matemática, um pouco de Astronomia, de latim e grego; lê Molière e Anatole France e se exprime em seus idiomas; compreende Goethe, Schiller e Heine em alemão, Shakespeare, Rudyard Kipling e Wells em inglês e escreve ela própria como filósofa, psicóloga e poetisa.”

O sentido do tato é impotente para produzir tal estado mental, tanto mais que Helen, dizem seus educadores, consegue perceber o farfalhar das folhas, o zumbido das abelhas. Agrada-lhe o correr nos bosques.

Seu biógrafo, Gérard Harry, assegura que a intensidade de suas percepções confere-lhe aptidões de uma leitora do pensamento.

Evidentemente, encontramo-nos em presença de um ser evoluído, retornando à cena do mundo com toda a aquisição dos séculos percorridos.

O caso de Helen prova que por trás dos órgãos momentaneamente atrofiados existe uma consciência desde muito familiarizada com as noções do mundo exterior. Há, aí, ao mesmo tempo, uma demonstração das vidas anteriores da alma e da existência dos seus próprios sentidos, independentes da matéria, dominando-a e sobrevivendo a toda desagregação corporal.

Para desenvolver, apurar a percepção, de modo geral, é preciso, a princípio, acordar o sentido íntimo, o sentido espiritual. A mediunidade demonstra-nos que há seres humanos muito mais bem dotados, em relação à visão e audição interiores, do que certos Espíritos que vivem no espaço e cujas percepções são extremamente limitadas em vista da insuficiência de sua evolução.

Quanto mais puros e desinteressados são os pensamentos e os atos, numa palavra, quanto mais intensa é a vida espiritual e quanto mais ela predomina sobre a vida física, tanto mais se desenvolvem os sentidos interiores. O véu que nos esconde o mundo fluídico adelgaça-se, torna-se transparente, e por trás dele a alma distingue um conjunto maravilhoso de harmonias e belezas, ao mesmo tempo em que se torna mais apta a recolher e transmitir as revelações, as inspirações dos seres superiores, porque o desenvolvimento dos sentidos internos coincide, geralmente, com uma extensão das faculdades do Espírito, com uma atração mais enérgica das radiações etéreas.

Cada plano do universo, cada círculo da vida, corresponde a um número de vibrações que se acentuam e tornam mais rápidas, mais sutis, à medida que se aproximam da vida perfeita. Os seres dotados de fraco poder de radiação não podem perceber as formas de vida que lhes são superiores, mas todo Espírito é capaz de obter pela preparação da vontade e pela educação dos sentidos íntimos um poder de vibração que lhe permite agir em planos mais extensos. Achamos uma prova da intensidade dessa forma de emissão mental no fato de se terem visto moribundos ou pessoas em perigo de morte impressionarem telepaticamente, a grandes distâncias, vários indivíduos, ao mesmo tempo.[13]

Na realidade, cada um de nós podia, se quisesse, comunicar a todos os momentos com o mundo invisível. Somos Espíritos. Pela vontade podemos governar a matéria e desprender-nos de seus laços para vivermos numa esfera mais livre, a esfera da vida superconsciente. Para isso é mister espiritualizar-nos, voltar à vida do espírito por uma concentração perfeita de nossas forças interiores. Então, nos encontraremos face a face com uma ordem de coisas que nem o instinto, nem a experiência, nem mesmo a razão pode perceber.

A alma, em sua expansão, pode quebrar a parede de carne que a encerra e comunicar por seus próprios sentidos com os mundos superiores e divinos. É o que têm podido fazer os videntes e os verdadeiros santos, os grandes místicos de todos os tempos e de todas as religiões.

William James nota-o nestes termos:[14]

“O mais importante resultado do êxtase é fazer cair toda a barreira levantada entre o indivíduo e o Absoluto. Por ele percebemos nossa identidade com o Infinito. É a eterna e triunfante experiência do misticismo, que se encontra em todos os climas e em todas as religiões. Todas fazem ouvir as mesmas vozes com imponente unanimidade; todas proclamam a unidade do homem com Deus.”

Noutro lugar expõe também nestes termos suas vistas sobre o misticismo:[15]

“Os estados místicos aparecem no sujet como uma forma de conhecimento; revelam-lhe profundezas insondáveis à razão discursiva; é uma iluminação de riqueza inexaurível, que, sente-se, terá em toda vida imensa repercussão.

Chegados a seu pleno desenvolvimento, esses estados impõem-se de fato e de direito aos que os experimentam, com absoluta autoridade... Opõem-se à autoridade da consciência puramente racional fundada unicamente no entendimento e nos sentidos, provando que ela não é mais do que um dos modos da consciência.”

William James pensa igualmente que os estados místicos podem ser considerados como janelas que dão para um mundo mais extenso e completo.

*

O Espiritismo demonstra até certo ponto a exatidão dessas apreciações. A mediunidade, em suas formas tão variadas, é também a resultante de uma exaltação psíquica, que permite entrem os sentidos da alma em ação, substituam por um momento os sentidos físicos e percebam o que é imperceptível para os outros homens. Caracteriza-se e desenvolve-se segundo as aptidões que tem o sentido íntimo para predominar, de uma forma ou de outra, e manifestar-se por uma das vias habituais da sensação. O Espírito que desejar fazer uma comunicação reconhece, à primeira vista, o sentido orgânico que, no médium, lhe servirá de intermediário e atua sobre esse ponto. Umas vezes é a palavra ou também a escrita pela ação mecânica da mão; outras, é o cérebro, quando se trata da mediunidade intuitiva. Nas incorporações temporárias é a posse plena e a adaptação dos sentidos espirituais do manifestante aos sentidos físicos do sujet.

A faculdade mais comum é a clarividência, isto é, a percepção, estando fechados os olhos, do que se passa ao longe, no tempo ou no espaço, no passado ou no futuro; é a penetração do Espírito do clarividente nos meios fluídicos onde são registrados os fatos consumados e onde se elaboram os planos das coisas futuras. A clarividência exerce-se as mais das vezes inconscientemente, sem preparação alguma. Nesse caso resulta da evolução natural do médium; mas é possível também provocá-la, assim como a visão espírita.

Sobre esse assunto, o Coronel de Rochas exprime-se da maneira seguinte:[16]

“Mireille descrevia-me assim os efeitos, sobre si, das minhas magnetizações:

– Quando estou acordada, minha alma está aprisionada ao corpo e eu me sinto como uma pessoa que, encerrada no pavimento térreo de uma torre, não vê o exterior senão através das cinco janelas dos sentidos, tendo cada uma vidros de cores diferentes. Quando me magnetizais, livrais-me pouco a pouco das minhas cadeias e minha alma, que deseja sempre subir, penetra na escada da torre, escada sem janela, e não percebo que me guiais, senão no momento em que desemboco na plataforma superior. A minha vista estende-se em todas as direções com um sentido único muito aguçado que me põe em relação com objetos que ele não podia perceber através dos vidros da torre.”

Pode-se também adquirir a clariaudiência, a audição das vozes interiores, modo de comunicação possível com os Espíritos. Outra manifestação dos sentidos íntimos é a leitura dos acontecimentos registrados, fotografados de algum modo na ambiência de um objeto antigo ou moderno. Por exemplo, um pedaço de arma, uma medalha, um fragmento de sarcófago e uma pedra de ruínas evocarão na alma do vidente uma série completa de imagens referentes aos tempos e aos lugares a que pertenceram esses objetos. É o que se chama psicometria.[17]

Acrescentemos também a esses fenômenos os sonhos simbólicos, os premonitórios e mesmo os pressentimentos obscuros que nos advertem de um perigo do qual não desconfiamos.

Já dissemos que muitas pessoas têm, sem o saberem, a possibilidade de comunicar com seus amigos do espaço por intermédio do sentido íntimo. Nesse grupo estão as almas verdadeiramente religiosas, isto é, idealizadas, em que as provações, os sofrimentos e uma longa preparação moral apuraram os sentidos sutis, tornando-os mais sensíveis às vibrações dos pensamentos externos. Muitas vezes, dirigiram-se a mim almas humanas aflitas para, do Além, solicitar avisos, conselhos, indicações que não me era possível proporcionar-lhes. Recomendava-as, então, a experiência seguinte que, às vezes, dava bom resultado: “Concentrai-vos – dizia-lhes eu – em retiro e no silêncio; elevai os pensamentos para Deus; chamai o vosso Espírito protetor, o guia tutelar, que Deus nos dá para a viagem da vida. Interrogai-o sobre as questões que vos preocupam, desde que sejam dignas dele, livres de todo o interesse vil; depois, esperai! Escutai em vós mesmos, atentamente, e, ao cabo de um instante, ouvireis nas profundezas de vossa consciência como que o eco enfraquecido de uma voz longínqua ou, antes, percebereis as vibrações de um pensamento misterioso que expulsará vossas dúvidas, dissipará vossas angústias, embalar-vos-á e consolará.”

É essa, com efeito, uma das formas de mediunidade e não é das menos belas. Todos podem obtê-la, participando daquela comunicação dos vivos e dos mortos, que está destinada a estender-se um dia a toda a humanidade.

Pode-se até, por esse processo, corresponder com o plano divino. Em circunstâncias difíceis de minha vida, quando hesitava entre resoluções contrárias a respeito da tarefa que me foi confiada, de difundir as verdades consoladoras do Neo-Espiritualismo, apelando para a Entidade Suprema, ouvia sempre ressoar em mim uma voz grave e solene que me ditava o dever. Clara e distinta, contudo, essa voz parecia provir de um ponto muito distante. Seu acento de ternura enternecia-me até às lágrimas.

*

A intuição não é, pois, na maioria das vezes, senão uma das formas empregadas pelos habitantes do mundo invisível para nos transmitirem seus avisos, suas instruções. Outras vezes será a revelação da consciência profunda à consciência normal. No primeiro caso pode ser considerada como inspiração. Pela mediunidade o Espírito infunde suas idéias no entendimento do transmissor. Este fornecerá a expressão, a forma, a linguagem e, na medida de seu desenvolvimento cerebral, o Espírito achará meios mais ou menos seguros e abundantes para comunicar seu pensamento com todo o desenvolvimento e relevo.

O pensamento do Espírito agente é uno em seu princípio de emissão, mas varia em suas manifestações, segundo o estado mais ou menos perfeito dos instrumentos que emprega. Cada médium marca com o cunho de sua personalidade a inspiração que lhe vem de mais alto. Quanto mais cultivado e espiritualizado é o intelecto do sujet, tanto mais comprimidos são nele os instintos materiais e com tanto mais pureza e fidelidade será transmitido o pensamento superior.

A larga corrente de um rio não pode escoar-se através de um canal estreito. O Espírito inspirador não pode, semelhantemente, transmitir pelo organismo do médium senão aquelas de suas concepções que por ele puderam passar.

Por um grande esforço mental, sob a excitação de uma força externa, o médium poderá exprimir concepções superiores a seu próprio saber; mas, na expressão das idéias sugeridas, encontrar-se-á seus termos preferidos, seus modos de dizer habituais, ainda que o estimulante que nele atua lhe dê, por momentos, mais amplitude e elevação a linguagem.

Vemos, assim, quantas dificuldades, quantos obstáculos opõe o organismo humano à transmissão fiel e completa das concepções da alma e como é necessária uma longa preparação, uma educação prolongada para o tornar flexível e adaptá-lo às necessidades da Inteligência que o move. E isso não se aplica somente ao Espírito desencarnado que quer manifestar-se por meio de um intermediário humano, um médium, mas também à própria alma encarnada, cujas concepções profundas nunca conseguem vir plenamente à luz no plano terrestre, como o afirmam todos os homens de gênio e, particularmente, os compositores e poetas.

A princípio, a inspiração é consciente; mas desde que a ação do Espírito se acentua, o médium acha-se sob a influência de uma força que o faz agir independentemente de sua vontade; ou então invade-o uma espécie de peso; velam-se-lhe os olhos e ele perde a consciência de si mesmo para passar a um domínio invisível. Nesse caso, o médium não é mais do que um instrumento, um aparelho de recepção e transmissão. Qual máquina que obedece à corrente elétrica que a põe em movimento, assim também obedece o médium à corrente de pensamentos que o invade.

No exercício da mediunidade intuitiva, no estado de vigília, muitos desanimam diante da impossibilidade de distinguir as idéias que nos são próprias das que nos são sugeridas. Cremos, todavia, que é fácil reconhecer as idéias de origem estranha. Brotam espontaneamente, de improviso, como clarões súbitos que derivam de foco desconhecido; ao passo que nossas idéias pessoais, as que provêm do nosso cabedal, estão sempre à nossa disposição e ocupam de maneira permanente nosso intelecto. Somente as idéias inspiradas surgem como por encanto, mas se seguem, encadeiam-se por si mesmas e exprimem-se com rapidez, às vezes de maneira febril.

Quase todos os autores, escritores, oradores e poetas são médiuns em certos momentos; têm a intuição de uma assistência oculta que os inspira e participa de seus trabalhos. Eles mesmos assim o confessam nas horas de expansão.

Thomas Paine escrevia:

“Ninguém há que, tendo-se ocupado com os progressos do espírito humano, não tenha feito a observação de que há duas classes bem distintas do que se chama idéias ou pensamentos: as que em nós mesmos se produzem pela reflexão e as que de si mesmas se precipitam em nosso espírito. Tomei para mim como regra acolher sempre com cortesia esses visitantes inesperados e investigar, com todo o cuidado de que era capaz, se eles mereciam a minha atenção. Declaro que é a esses hóspedes estranhos que devo todos os conhecimentos que possuo.”

Emerson fala do fenômeno da inspiração nos seguintes termos:

“Os pensamentos não me vêm sucessivamente como num problema de Matemática, mas penetram por si mesmos em meu intelecto, como um relâmpago que brilha na escuridão da noite. A verdade aparece-me, não pelo raciocínio, mas por intuição.”

A rapidez com que Walter Scott, o bardo d'Aven, escrevia seus romances, era motivo de assombro para seus contemporâneos. A explicação do fato é ele mesmo quem fornece:

“Vinte vezes encetei o trabalho depois de ter delineado o plano e nunca me foi possível segui-lo. Meus dedos trabalham independentes de meu pensamento. Foi assim que, depois de ter escrito o segundo volume de Woodstock, não tinha a menor idéia de que a história desenrolar-se-ia numa catástrofe no terceiro volume.”

Falando de L'Antiquaire, diz também:

“Tenho um plano geral, mas logo que pego na pena ela corre com muita rapidez sobre o papel, a tal ponto que muitas vezes sou tentado a deixá-la correr sozinha para ver se não escreverá tão bem como quando é guiada por meu pensamento.”

Novalis, cujos Fragments e Disciples de Saïs ficarão entre os mais poderosos esforços do espírito humano, escrevia:

“Parece ao homem que ele está empenhado numa conversa e que algum ser desconhecido e espiritual o determina, de maneira maravilhosa, a desenvolver os pensamentos mais evidentes. Esse ente deve ser superior e homogêneo, porque se põe em relação com o homem de tal maneira que não é possível a um ser sujeito aos fenômenos.”

Convém lembrar também a célebre inspiração de Jean-Jacques Rousseau descrita por ele próprio e que tornou-se, por assim dizer, clássica:

“Eu ia ver Diderot, prisioneiro em Vincennes. Tinha no bolso um Mercure de France, que me pus a folhear durante o caminho. Deparou-se-me a questão da Academia de Dijon, que motivou meu primeiro escrito. Se jamais alguma coisa se pareceu com uma inspiração sutil, foi o movimento que se operou em mim com essa leitura. De repente senti o espírito deslumbrado por mil luzes. Multidões de idéias vivas apresentam-se ao mesmo tempo com uma força e uma confiança que me lançaram numa perturbação inexprimível. Senti a cabeça tomada de um atordoamento semelhante à embriaguez. Violenta palpitação me oprimia e ansiava-me o peito. Não me sendo possível caminhar por não poder respirar, deixei-me cair debaixo de uma árvore da avenida e passei ali meia hora em tal agitação que, ao levantar-me, vi molhada de lágrimas toda a frente do paletó sem ter percebido que houvesse chorado. Oh! Se alguma vez me tivesse sido possível escrever a quarta parte do que vi debaixo daquela árvore, com que clareza teria feito ver todas as contradições do sistema social, com que força teria exposto todos os abusos de nossas instituições, com que simplicidade teria demonstrado que o homem é naturalmente bom... Tudo o que pude reter daquela massa de grandes verdades que, dentro de um quarto de hora, me iluminaram debaixo daquela árvore, foi facilmente disseminado em meus três principais escritos, a saber: este primeiro Discurso, o da Desigualdade e o Tratado da Educação... Tudo mais se perdeu e não houve, escrito no próprio lugar, senão a prosopopéia de Fabrícius.”

O caso de inspiração mediúnica mais extraordinário, talvez, das tempos modernos é o de Andrew Jackson Davis, chamado também o vidente de Poughkeepsie. Essa personagem aparece ao alvorecer do Neo-Espiritualismo americano como uma espécie de apóstolo de forte relevo. Graças a uma faculdade que não teve rival, pôde exercer irresistível influência em sua época, nos Estados Unidos.

Extraímos os seguintes pormenores da obra da Sra. Emma Harding, intitulada Espiritualismo Americano Moderno:

“Na idade de 15 anos o jovem Davis tornou-se, primeiramente, célebre em Nova Iorque e no Connecticut por sua habilidade em diagnosticar as doenças e prescrever remédios, graças a uma admirável faculdade de clarividência. De temperamento franzino e delicado, o jovem médium possuía um grau de cultura intuitiva que compensava a ausência total de educação e uma facilidade de apresentação que não era de se esperar de sua origem muito humilde, porque era filho e aprendiz de um pobre sapateiro da terra.

Havia sido por acaso magnetizado aos 14 anos por um certo Levingston, de Poughkeepsie, que, descobrindo que o aprendiz de sapateiro possuía admiráveis faculdades de clarividência e um dom extraordinário para curar as doenças, tirou-o da loja o fez seu sócio.

Desde que o acaso fizera Levingston descobrir os dons maravilhosos do jovem Davis, o tempo deste último fora tão bem empregado que nem naquele momento, nem em época nenhuma de sua carreira, teve tempo disponível para acrescentar uma letra à sua instrução de campônio. A humildade de classe e os meios de seus pais privaram-no de toda possibilidade de cultura, salvo durante cinco meses em que freqüentou a escola da aldeia e os rudes camponeses dos distritos atrasados.

A celebridade extraordinária a que chegou tornou públicas as menores particularidades de sua infância. Está, pois, averiguado que sua mais alta ciência, na época, pode-se dizer, de sua iluminação espiritual, limitava-se a saber ler, escrever e contar sofrivelmente, e toda a sua literatura se resumia num conto chamado Les troes espagnoles.

Davis tinha 18 anos quando anunciou, ao círculo de admiradores a quem interessava sua clarividência, que ia ser instrumento de uma nova e admirável fase de poder espiritual, começando por uma série de conferências destinadas a produzir considerável efeito no mundo científico e nas opiniões religiosas da humanidade.

Em cumprimento dessa profecia, começou ele uma série de conferências e escolheu para magnetizador o Dr. Lyon de Bridgeport, para secretário o Rev. William Fishbough, para testemunhas especiais o Rev. J. N. Parcker, R. Lapham, Esq. e o Dr. L. Smith, de Nova Iorque. Além dessas, muitas outras pessoas de alta posição ou de extensos conhecimentos literários e científicos eram convidadas de vez em quando a assistir àquelas conferencias. Assim se produziu a vasta miscelânea de conhecimentos literários, científicos, filosóficos e históricos, intitulada Divinas Revelações da Natureza.

O caráter maravilhoso dessa obra, emanada de pessoa tão inteiramente incapaz de produzi-la nas circunstancia ordinárias, excitou a mais profunda admiração em todas as classes sociais.

As Revelações não tardaram a seguir-se; Grande Harmonia, A Idade Presente e a Vida Interior.

Junto às conferências de Davis, a seus trabalhos de editor, às associações que agrupou e à sua larga influencia pessoal, outras volumosas produções realizaram uma revolução completa nos Estados Unidos, nos espíritos de numerosa classe de pensadores chamados os advogados da filosofia harmônica, e essa revolução deve incontestavelmente sua origem ao pobre aprendiz de sapateiro.

James Victor Wilson, de Nova Orleans, bem conhecido por seus trabalhos literários e autor de um excelente tratado de magnetismo, diz, falando das primeiras conferências:

“Não tardará que Davis faça conhecer ao mundo a vitória da clarividência e será isto uma grande surpresa.

“No decurso do ano passado, esse amável rapaz, sem educação, sem preparo, ditou dia a dia um livro extraordinário, bem concebido, bem ligado, tratando das grandes questões da época, das ciências físicas, da Natureza em todas as suas ramificações infinitas, do homem em seus inumeráveis modos de existência, de Deus no abismo insondável de seu amor, de sua sabedoria e de seu poder.

“Milhares de pessoas, que o viram em seus exames médicos, ou em suas exposições cientificas, dão testemunho da admirável elevação de espírito que Davis possui no estado anormal. Seus manuscritos foram muitas vezes submetidos à investigação das mais altas inteligências do país, que se certificaram, da maneira mais profunda, da impossibilidade de ele ter adquirido os conhecimentos de que dava prova no estado anormal. O resultado mais claro da vida dessa personagem fenomenal foi a demonstração da clarividência e a gloriosa revelação de que a alma do homem pode comunicar espiritualmente com os Espíritos do outro mundo, como com os deste, e aspirar a adquirir conhecimentos que se estendem muito além da esfera terrestre.”

*

Falamos incidentemente do método a seguir para o desenvolvimento dos sentidos psíquicos. Consiste em insular-se uma pessoa em certas horas do dia ou da noite, suspender a atividade dos sentidos externos, afastar de si as imagens e ruídos da vida externa, o que é possível fazer mesmo nas condições sociais mais humildes, no meio das ocupações mais vulgares. É necessário, para isso, concentrar-se e, na calma e recolhimento do pensamento, fazer um esforço mental para ver e ler no grande livro misterioso o que há em nós. Nesses momentos apartai de vosso espírito tudo o que é passageiro, terrestre, variável. As preocupações de ordem material criam correntes vibratórias horizontais, que põem obstáculo às radiações etéreas e restringem nossas percepções. Ao contrário, a meditação, a contemplação e o esforço constante para o bem e o belo formam correntes ascensionais, que estabelecem a relação com os planos superiores e facilitam a penetração em nós dos eflúvios divinos. Com esse exercício repetido e prolongado, o ser interno acha-se pouco a pouco iluminado, fecundado, regenerado. Essa obra de preparação é longa e difícil, reclama às vezes mais de uma existência. Por isso, nunca é cedo demais para empreendê-la; seus bons efeitos não tardarão a se fazer sentir.

Tudo o que perderdes em sensações de ordem inferior, ganhá-lo-eis em percepções supraterrestres, em equilíbrio mental e moral, em alegrias do espírito. Vosso sentido íntimo adquirirá uma delicadeza, uma acuidade extraordinária; chegareis a comunicar um dia com as mais altas esferas espirituais. Procuraram as religiões constituir esses poderes por meio da comunhão e da prece; mas a prece usada nas igrejas, conjunto de fórmulas aprendidas e repetidas mecanicamente durante horas inteiras, é incapaz de dar à alma o vôo necessário, de estabelecer o laço fluídico, o fio condutor pelo qual se estabelecerá a relação. É preciso um apelo, um impulso mais vigoroso, uma concentração, um recolhimento mais profundo. Por isso preconizamos sempre a prece improvisada, o grito da alma que, em sua fé e em seu amor, se lança com todas as forças acumuladas em si para o objeto de seu desejo.

Em vez de convidar por meio da evocação os Espíritos celestes a descerem para nós, aprenderemos assim a desprender-nos e subir até eles.

São, contudo, necessárias certas precauções. O mundo invisível está povoado de entidades de todas as ordens e quem nele penetra deve possuir uma perfeição suficiente, ser inspirado por sentimentos bastante elevados para se pôr a salvo de todas as sugestões do mal. Pelo menos, deve ter em suas pesquisas um guia seguro e esclarecido. É pelo progresso moral que se obtém a autoridade, a energia necessária para impor o devido respeito aos Espíritos levianos e atrasados, que pululam em torno de nós.

A plena posse de nós mesmos, o conhecimento profundo e tranqüilo das leis eternas, preservam-nos dos perigos, dos laços, das ilusões do Além; proporcionam-nos os meios de examinar as forças em ação sobre o plano oculto.

XXII
O livre-arbítrio

A liberdade é a condição necessária da alma humana que, sem ela, não poderia construir seu destino. Em vão os filósofos e os teólogos têm argumentado longamente a respeito dessa questão. À porfia têm-na obscurecido com suas teorias e sofismas, votando a humanidade à servidão em vez de guiá-la para a luz libertadora. A noção é simples e clara. Os druidas haviam-na formulado desde os primeiros tempos de nossa História. Está expressa nas Tríades por estes termos: Há três unidades primitivas – Deus, a luz e a liberdade.

À primeira vista, a liberdade do homem parece muito limitada no círculo de fatalidades que o encerra: necessidades físicas, condições sociais, interesses ou instintos. Mas, considerando a questão mais de perto, vê-se que essa liberdade é sempre suficiente para permitir que a alma quebre esse círculo e escape às forças opressoras.

A liberdade e a responsabilidade são correlativas no ser e aumentam com sua elevação; é a responsabilidade do homem que faz sua dignidade e moralidade. Sem ela, não seria ele mais do que um autômato, um joguete das forças ambientes; a noção de moralidade é inseparável da de liberdade.

A responsabilidade é estabelecida pelo testemunho da consciência, que nos aprova ou censura segundo a natureza de nossos atos. A sensação do remorso é uma prova mais demonstrativa que todos os argumentos filosóficos. Para todo Espírito, por pequeno que seja o seu grau de evolução, a lei do dever brilha como um farol, através da névoa das paixões e interesses. Por isso, vemos todos os dias homens nas posições mais humildes e difíceis preferirem aceitar provações duras a se rebaixarem e cometer atos indignos.

Se a liberdade humana é restrita, está pelo menos em via de perfeito desenvolvimento, porque o progresso não é outra coisa senão a extensão do livre-arbítrio no indivíduo e na coletividade. A luta entre a matéria e o espírito tem precisamente como objetivo libertar este último cada vez mais do jugo das forças cegas. A inteligência e a vontade chegam, pouco a pouco, a predominar sobre o que a nossos olhos representa a fatalidade. O livre-arbítrio é, pois, a expansão da personalidade e da consciência. Para sermos livres é necessário querer sê-lo e fazer esforço para vir a sê-lo, libertando-nos da escravidão da ignorância e das paixões inferiores, substituindo o império das sensações e dos instintos pelo da razão.

Isto só se pode obter por uma educação e uma preparação prolongada das faculdades humanas: libertação física pela limitação dos apetites; libertação intelectual pela conquista da verdade; libertação moral pela procura da virtude. É essa a obra dos séculos. Mas, em todos os graus de sua ascensão, na repartição dos bens e dos males da vida, ao lado da concatenação das coisas, sem prejuízo dos destinos que nosso passado nos inflige, há sempre lugar para a livre vontade do homem.

*

Como conciliar nosso livre-arbítrio com a presciência divina? Perante o conhecimento antecipado que Deus tem de todas as coisas, pode-se verdadeiramente afirmar a liberdade humana? Questão complexa e árdua na aparência, que fez correr rios de tinta e cuja solução é, contudo, das mais simples. Mas o homem não gosta das coisas simples; prefere o obscuro, o complicado, e não aceita a verdade senão depois de ter esgotado todas as formas do erro.

Deus, cuja ciência infinita abrange todas as coisas, conhece a natureza de cada homem e as impulsões, as tendências, de acordo com as quais poderá determinar-se. Nós mesmos, conhecendo o caráter de uma pessoa, poderíamos facilmente prever o sentido em que, numa dada circunstância, ela decidirá, quer segundo o interesse, quer segundo o dever. Uma resolução não pode nascer do nada. Está forçosamente ligada a uma série de causas e efeitos anteriores das quais deriva e que a explicam. Deus, conhecendo cada alma em suas menores particularidades, pode, pois, rigorosamente, deduzir, com certeza, do conhecimento que tem dessa alma e das condições em que ela é chamada a agir, as determinações que, livremente, ela tomará.

Notemos que não é a previsão de nossos atos que os provoca. Se Deus não pudesse prever nossas resoluções, não deixariam elas, por isso, de seguir seu livre curso.

É assim que a liberdade humana e a previdência divina conciliam-se e combinam, quando se considera o problema à luz da razão.

O círculo dentro do qual se exerce a vontade do homem é, de mais a mais, excessivamente restrito e não pode, em caso algum, impedir a ação divina, cujos efeitos se desenrolam na imensidade sem limites. O fraco inseto, perdido num canto do jardim, não pode, desarranjando os poucos átomos ao seu alcance, lançar a perturbação na harmonia do conjunto e pôr obstáculos à obra do Divino Jardineiro.

*

A questão do livre-arbítrio tem uma importância capital e graves conseqüências para toda a ordem social, por sua ação e repercussão na educação, na moralidade, na justiça, na legislação, etc. Determinou duas correntes opostas de opinião: os que negam o livre-arbítrio e os que o admitem com restrição.

Os argumentos dos fatalistas e deterministas resumem-se assim: “O homem está submetido aos impulsos de sua natureza, que o dominam e obrigam a querer, determinar-se num sentido, de preferência a outro; logo, não é livre.”

A escola adversa, que admite a livre vontade do homem, em face desse sistema negativo, exalta a teoria das causas indeterminadas. Seu mais ilustre representante, em nossa época, foi Ch. Renouvier.

As vistas desse filósofo foram confirmadas, mais recentemente, pelos belos trabalhos de Wundt, sobre a apercepção,[18] de Alfred Fouillée sobre a idéia-força e de Boutroux sobre a contingência da lei natural.

Os elementos que a revelação neo-espiritualista nos traz, sobre a natureza e o futuro do ser, dão à teoria do livre-arbítrio sanção definitiva. Vêm arrancar a consciência moderna à influência deletéria do materialismo e orientar o pensamento para uma concepção do destino que terá por efeito, como dizia C. du Prel, recomeçar a vida interior da civilização.

Até agora, tanto sob o ponto de vista teológico como determinista, a questão tinha ficado quase insolúvel. E não podia ser de outro modo, já que cada um daqueles sistemas partia do dado inexato de que o ser humano tem a percorrer uma única existência. A questão muda, porém, inteiramente de aspecto ao se alargar o círculo da vida e se considerar o problema à luz que projeta a doutrina dos renascimentos. Assim, cada ser conquista a própria liberdade no decurso da evolução que tem de perfazer.

Suprida, a princípio, pelo instinto, que pouco a pouco desaparece para dar lugar à razão, nossa liberdade é muito escassa nos graus inferiores e em todo o período de nossa educação primária. Toma extensão considerável, desde que o Espírito adquire a compreensão da lei. E sempre, em todos os graus de sua ascensão, na hora das resoluções importantes, será assistido, guiado, aconselhado por Inteligências superiores, por Espíritos evoluídos e mais esclarecidos do que ele.

O livre-arbítrio, a livre vontade do Espírito exerce-se principalmente na hora das reencarnações. Escolhendo tal família, certo meio social, ele sabe de antemão quais são as provações que o aguardam, mas compreende, igualmente, a necessidade dessas provações para desenvolver suas qualidades, curar seus defeitos, despir seus preconceitos e vícios. Essas provações podem ser também conseqüência de um passado nefasto, que é preciso reparar, e ele aceita-as com resignação e confiança, porque sabe que seus grandes irmãos do espaço não o abandonarão nas horas difíceis.

O futuro aparece-lhe então, não em seus pormenores, mas em seus traços mais salientes, isto é, na medida em que esse futuro é a resultante de atos anteriores. Esses atos representam a parte de fatalidade ou “a predestinação” que certos homens são levados a ver em todas as vidas. São simplesmente, como vimos, efeitos ou reações de causas remotas. Na realidade, nada há de fatal e, qualquer que seja o peso das responsabilidades em que se tenha incorrido, pode-se sempre atenuar, modificar a sorte com obras de dedicação, de bondade, de caridade, por um longo sacrifício ao dever.

*

A questão do livre-arbítrio tem, dizíamos, grande importância sob o ponto de vista jurídico. Tendo, não obstante, em conta o direito de repressão e preservação social, é muito difícil precisar, em todos os casos que dependem dos tribunais, a extensão das responsabilidades individuais. Não é possível fazê-lo senão estabelecendo o grau de evolução dos criminosos. O neo-espiritualismo fornecer-nos-ia talvez os meios; mas, a justiça humana, pouco versada nessas matérias, continua a ser cega e imperfeita em suas decisões e sentenças.

Muitas vezes o mau, o criminoso, não é, na realidade, mais do que um Espírito novo e ignorante em que a razão não teve tempo de amadurecer. “O crime – diz Duclos – é sempre o resultado dum falso juízo.” É por isso que as penalidades infligidas deveriam ser estabelecidas de modo que obrigassem o condenado a refletir, a instruir-se, a esclarecer-se, a emendar-se. A sociedade deve corrigir com amor e não com ódio, sem o que se torna criminosa.

As almas, como demonstramos, são equivalentes em seu ponto de partida. São diferentes por seus graus infinitos de adiantamento: umas novas, outras velhas e, por conseguinte, diversamente desenvolvidas em moralidade e sabedoria, segundo a idade. Seria injusto pedir ao Espírito infantil méritos iguais aos que se podem esperar de um Espírito que viu e aprendeu muito. Daí uma grande diferenciação nas responsabilidades.

O Espírito só estará verdadeiramente preparado para a liberdade no dia em que as leis universais, que lhe são externas, se tornem internas e conscientes em razão de sua própria evolução. No dia em que ele se penetrar da lei e fizer dela a norma de suas ações, terá atingido o ponto moral em que o homem se possui, domina e governa a si mesmo.

Daí em diante já não precisará do constrangimento e da autoridade sociais para corrigir-se. E dá-se com a coletividade o que se dá com o indivíduo. Um povo só é verdadeiramente livre, digno da liberdade, se aprendeu a obedecer a essa lei interna, lei moral, eterna e universal, que não emana nem do poder de uma casta, nem da vontade das multidões, mas de um Poder mais alto. Sem a disciplina moral que cada qual deve impor a si mesmo, as liberdades não passam de um logro; tem-se a aparência, mas não os costumes de um povo livre. A sociedade fica exposta, pela violência de suas paixões e a intensidade de seus apetites, a todas as complicações, a todas as desordens.

Tudo o que se eleva para a luz eleva-se para a liberdade. Esta se expande plena e inteira na vida superior. A alma sofre tanto mais o peso das fatalidades materiais quanto mais atrasada e inconsciente é, tanto mais livre se torna quanto mais se eleva e aproxima do divino.

No estado de ignorância, é uma felicidade para ela estar submetida a uma direção. Mas, quando sábia e perfeita, goza da sua liberdade na luz divina.

Em tese geral, todo homem chegado ao estado de razão é livre e responsável na medida do seu adiantamento. Passo em claro os casos em que, sob o domínio de uma causa qualquer, física ou moral, doença ou obsessão, o homem perde o uso de suas faculdades. Não se pode desconhecer que o físico exerce, às vezes, grande influência sobre o moral; todavia, na luta travada entre ambos, as almas fortes triunfam sempre. Sócrates dizia que havia sentido germinar em si os instintos mais perversos e que os domara. Havia nesse filósofo duas correntes de forças contrárias, uma orientada para o mal, outra para o bem. Era a última que predominava.

Há também causas secretas que muitas vezes atuam sobre nós. Às vezes a intuição vem combater o raciocínio, impulsos partidos da consciência profunda nos determinam num sentido não previsto. Não é a negação do livre-arbítrio; é a ação da alma em sua plenitude, intervindo no curso de seus destinos, ou então será a influência exercida pelos nossos Guias invisíveis, que nos impele em direção ao plano divino, ou ainda a intervenção de uma Inteligência que, vindo de mais longe e mais alto, procura arrancar-nos às contingências inferiores e levar-nos para as cumeadas. Em todos esses casos, porém, é somente nossa vontade que rejeita ou aceita e decide em última instância.

Em resumo, em vez de negar ou afirmar o livre-arbítrio, segundo a escola filosófica a que se pertença, seria mais exato dizer: “O homem é o obreiro de sua libertação.” Ele atinge o estado completo de liberdade pelo cultivo íntimo e pela valorização de suas potências ocultas. Os obstáculos acumulados em seu caminho são meramente meios de o obrigar a sair da indiferença e a utilizar suas forças latentes. Todas as dificuldades materiais podem ser vencidas.

Somos todos solidários e a liberdade de cada um liga-se à liberdade dos outros.

Libertando-se das paixões e da ignorância, cada homem liberta seus semelhantes. Tudo o que contribui para dissipar da inteligência as trevas e fazer recuar o mal torna a humanidade mais livre, mais consciente de si mesma, de seus deveres e potências.

Elevemo-nos, pois, à consciência de nosso papel e nosso objetivo e seremos livres. Com os nossos esforços, ensinamentos e exemplos asseguraremos a vitória da vontade, assim como do bem, e em vez de formarmos seres passivos, curvados ao jugo da matéria, expostos à incerteza e inércia, teremos feito almas verdadeiramente livres, soltas das cadeias da fatalidade e pairando acima do mundo pela superioridade das qualidades conquistadas.

XXIII
O pensamento

O pensamento é criador. Assim como o pensamento do Eterno projeta sem cessar no espaço os germens dos seres e dos mundos, assim também o do escritor, do orador, do poeta, do artista, faz brotar incessante florescência de idéias, de obras, de concepções, que vão influenciar, impressionar para o bem ou para o mal, segundo sua natureza, a multidão humana.

É por isso que a missão dos obreiros do pensamento é ao mesmo tempo grande, temível e sagrada; é grande e sagrada porque o pensamento dissipa as sombras do caminho, resolve os enigmas da vida e traça o caminho da humanidade; é a sua chama que aquece as almas e ilumina os desertos da existência; e é temível porque seus efeitos são poderosos tanto para a descida como para a ascensão.

Mais cedo ou mais tarde todo produto do Espírito reverte para seu autor com suas conseqüências, acarretando-lhe, segundo o caso, o sofrimento, a diminuição, a privação da liberdade, ou então as satisfações íntimas, a dilatação, a elevação do ser.

A vida atual é, como se sabe, um simples episódio de nossa longa história, um fragmento da grande cadeia que se desenrola para todos através da imensidade. E constantemente recaem sobre nós, em brumas ou claridades, os resultados de nossas obras. A alma humana percorre seu caminho cercada de uma atmosfera brilhante ou turva, povoada pelas criações de seu pensamento. É isso, na vida do Além, sua glória ou sua vergonha.

*

Para dar ao pensamento toda a força e amplitude, nada há mais eficaz do que a investigação dos grandes problemas.

Por bem dizer, é preciso sentir com veemência; para saborear as sensações elevadas e profundas é necessário remontar à nascente de onde deriva toda a vida, toda a harmonia, toda a beleza.

O que há de nobre e elevado no domínio da inteligência emana de uma causa eterna, viva e pensante. Quanto mais largo é o vôo do pensamento para essa causa, tanto mais alto ele paira, tanto mais radiosas também são as claridades entrevistas, mais inebriantes as alegrias sentidas, mais poderosas as forças adquiridas, mais geniais as inspirações! Depois de cada vôo, o pensamento torna a descer vivificado, esclarecido para o campo terrestre, a fim de prosseguir a tarefa pela qual continuará a desenvolver-se, porque é o trabalho que faz a inteligência, como é a inteligência que faz a beleza, o esplendor da obra acabada.

Eleva teu olhar, ó pensador, ó poeta! Lança teu brado de apelo, de aspiração e prece! Diante do mar de reflexos variáveis, à vista de brancos cimos longínquos ou do infinito estrelado, não passaste nunca horas de êxtase e embriaguez, em que a alma se sente imersa num sonho divino, em que a inspiração chega poderosa como um relâmpago, rápido mensageiro do Céu à Terra?

Escuta bem! Nunca ouviste, no fundo de teu ser, vibrarem as harmonias estranhas e confusas, os rumores do mundo invisível, vozes de sombra que te acalentam o pensamento e o preparam para as intuições supremas?

Em todo poeta, artista ou escritor há germens de mediunidade inconsciente, incalculáveis, e que desejam desabrochar; por eles o obreiro do pensamento entra com o manancial inexorável e recebe sua parte de revelação. Essa revelação de estética, apropriada à sua natureza, ao gênero de seu talento, tem ele por missão exprimir em obras que farão penetrar na alma das multidões uma vibração das forças divinas, uma radiação das verdades eternas.

É na comunhão freqüente e consciente com o mundo dos Espíritos que os gênios do futuro hão de encontrar os elementos de suas obras. Desde hoje, a penetração dos segredos de sua dupla vida vem oferecer ao homem socorros e luzes que as religiões desfalecidas já lhe não podem proporcionar.

Em todos os domínios, a idéia espírita vai fecundar o pensamento em atividade.

A Ciência dever-lhe-á a renovação completa de suas teorias e métodos, assim como a descoberta de forças incalculáveis e a conquista do universo oculto.

A Filosofia obterá um conhecimento mais extenso e preciso da personalidade humana. Esta, no transe e na exteriorização, é como uma cripta que se abre, cheia de coisas estranhas e onde está escondida a chave do mistério do ser.

As religiões do futuro hão de encontrar no Espiritismo as provas da sobrevivência e as regras da vida no Além e, ao mesmo tempo, o princípio de uma união das duas humanidades, visível e invisível, em sua ascensão para o Pai comum.

A Arte, em todas as suas formas, descobrirá nele mananciais inexauríveis de inspiração e emoção.

O homem do povo, nas horas de cansaço, beberá nele a coragem moral. Compreenderá que a alma pode desenvolver-se tanto pela lide humilde como pela obra majestosa e que não se deve desprezar dever algum; que a inveja é irmã do ódio e que, muitas vezes, o ser é menos feliz no luxo que na mediocridade.

O poderoso aprenderá nele a bondade com o sentimento da solidariedade que a todos liga através de nossas vidas e pode obrigar-nos a retornar pequenos para adquirirmos as virtudes modestas.

O céptico achará nele a fé; o desanimado as esperanças duradouras e as resoluções viris; todos os que sofrem encontrarão a idéia profunda de que uma lei de justiça preside a todas as coisas, de que não há, em nenhum domínio, efeito sem causa, parto sem dor, vitória sem combate, triunfo sem rudes esforços, mas que, acima de tudo, reina uma perfeita e majestosa sanção e que ninguém está abandonado por Deus, do qual é uma parcela.

Assim, vagarosamente se operará a renovação da humanidade, tão nova ainda, tão ignorante de si mesma, mas cujos desejos se dirigem pouco a pouco para a compreensão de sua tarefa e de seu fim, ao mesmo tempo em que se alarga seu campo de exploração e a perspectiva de um futuro ilimitado. E, em breve, eis que ela avançará mais consciente de si mesma e de sua força, consciente de seu magnífico destino. A cada passo que transpõe, vendo e querendo mais, sentindo brilhar e avivar-se o foco que arde em si, vê também as trevas recuarem, fundirem-se, resolverem-se os sombrios enigmas do mundo e iluminar-se o caminho com um raio poderoso.

Com as sombras, desvanecem-se pouco a pouco os preconceitos, os vãos terrores; as contradições aparentes do universo dissipam-se; faz-se a harmonia nas almas e nas coisas. Então, a confiança e a alegria penetram-lhe e o homem sente desenvolver-se-lhe o pensamento e o coração. E de novo avança pelo caminho das idades para o termo de sua obra; mas esta não tem termo, porque de cada vez que a humanidade se eleva para um novo ideal, julga ter alcançado o ideal supremo, quando, na realidade, só atingiu a crença ou o sistema correspondente ao seu grau de evolução. Mas de cada vez, também, de seus impulsos e de seus triunfos decorrem-lhe felicidades e forças novas, e ela encontra a recompensa de seus labores e angústias no próprio labor, na alegria de viver e progredir, que é a lei dos seres, comunhão mais íntima com o universo, numa posse mais completa do bem e do belo.

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Ó escritores, artistas, poetas, vós, cujo número aumenta todos os dias, cujas produções se multiplicam e sobem como a maré, belas muitas vezes pela forma, mas fracas no fundo, superficiais e materiais, quanto talento não gastais com coisas medíocres! Quantos esforços desperdiçados e postos ao serviço de paixões nocivas, de volúpias inferiores e interesses vis!

Quando vastos e magníficos horizontes se desdobram, quando o livro maravilhoso do universo e da alma se abre de par em par diante de vós e o gênio do pensamento vos convida para nobres tarefas, para obras cheias de seiva, fecundas para o adiantamento da humanidade, vós vos comprazeis bastas vezes com estudos pueris e estéreis, com trabalhos em que a consciência se estiola, em que a inteligência se abate e definha no culto exagerado dos sentidos e dos instintos impuros.

Quem de vós contará a epopéia da alma, lutando pela conquista de seus destinos no ciclo imenso das idades e dos mundos, suas dores e alegrias, suas quedas e levantamentos, a descida aos abismos da vida, o bater de asas para a luz, as imolações, os holocaustos que são um resgate, as missões redentoras, a participação cada vez maior das concepções divinas!

Quem dirá também as poderosas harmonias do universo, harpa gigantesca vibrando ao pensamento de Deus, o canto dos mundos, o ritmo eterno que embala a gênese dos astros e das humanidades! Ou então a lenta elaboração, a dolorosa gestação da consciência através dos estádios inferiores, a construção laboriosa de uma individualidade, de um ser moral!

Quem dirá a conquista da vida, cada vez mais completa, mais ampla, mais serena, mais iluminada pelos raios do Alto, a marcha, de cimo em cimo, em busca da felicidade, do poder e do puro amor? Quem cantará a obra do homem, lutador imortal, erguendo, através de suas dúvidas, dilaceramentos, angústias e lágrimas o edifício harmônico e sublime de sua personalidade pensante e consciente? Sempre para frente, para mais longe e para mais alto! Responderão: Não sabemos. E perguntam: Quem nos ensinará essas coisas?

Quem? As vozes interiores e as vozes do Além. Aprendei a abrir, a folhear, a ler o livro oculto em vós, o livro das metamorfoses do ser. Ele vos dirá o que fostes e o que sereis, ensinar-vos-á o maior dos mistérios, a criação do “eu” pelo esforço constante, a ação soberana que, no pensamento silencioso, faz germinar a obra e, segundo vossas aptidões, vosso gênero de talento, far-vos-á pintar as telas mais encantadoras, esculpir as mais ideais formas, compor as sinfonias mais harmoniosas, escrever as páginas mais brilhantes, realizar os mais belos poemas.

Tudo está aí, em vós, em torno de vós. Tudo fala, tudo vibra, o visível e o invisível, tudo canta e celebra a glória de viver, a ebriedade de pensar, de criar, de associar-se à obra universal. Esplendores dos mares e do céu estrelado, majestade dos cimos, perfumes das florestas, melodias da Terra e do espaço, vozes do invisível que falam no silêncio da noite, vozes da consciência, eco da voz divina, tudo é ensino e revelação para quem sabe ver, escutar, compreender, pensar, agir!

Depois, acima de tudo, a visão suprema, a visão sem formas, o pensamento incriado, verdade total, harmonia final das essências e das leis que, desde o fundo de nosso ser até a estrela mais distante, liga tudo e todos em sua unidade resplandecente. É a cadeia de vida, que se eleva e desenrola no infinito, escada das potências espirituais que levam a Deus os apelos do homem pela oração e trazem ao homem as respostas de Deus pela inspiração.

Agora, uma última pergunta. Por que é que, no meio do imenso labor e da abundante produção intelectual que caracterizam nossa época, se encontram tão poucas obras viris e concepções geniais? Porque deixamos de ver as coisas divinas com os olhos da alma! Porque deixamos de crer e amar!

Remontemos, pois, às origens celestes e eternas; é o único remédio para nossa anemia moral. Dirijamos o pensamento para as coisas solenes e profundas. Ilumine-se e complete-se a Ciência com as intuições da consciência e as faculdades superiores do espírito. O Espiritualismo moderno a auxiliará.

XXIV
A disciplina do pensamento e a reforma do caráter

O pensamento, dizíamos, é criador. Não atua somente em torno de nós, influenciando nossos semelhantes para o bem ou para o mal; atua principalmente em nós; gera nossas palavras, nossas ações e, com ele, construímos, dia a dia, o edifício grandioso ou miserável de nossa vida presente e futura. Modelamos nossa alma e seu invólucro com os nossos pensamentos; estes produzem formas, imagens que se imprimem na matéria sutil, de que o corpo fluídico é composto. Assim, pouco a pouco, nosso ser povoa-se de formas frívolas ou austeras, graciosas ou terríveis, grosseiras ou sublimes; a alma se enobrece, embeleza ou cria uma atmosfera de fealdade. Segundo o ideal a que visa, a chama interior aviva-se ou obscurece-se.

Não há assunto mais importante que o estudo do pensamento, seus poderes e sua ação. É a causa inicial de nossa elevação ou de nosso rebaixamento; prepara todas as descobertas da Ciência, todas as maravilhas da Arte, mas também todas as misérias e todas as vergonhas da humanidade. Segundo o impulso dado, funda ou destrói as instituições como os impérios, os caracteres como as consciências. O homem só é grande, só tem valor pelo seu pensamento; por ele suas obras irradiam e se perpetuam através dos séculos.

O Espiritualismo experimental, muito melhor que as doutrinas anteriores, permite-nos perceber, compreender toda a força de projeção do pensamento, que é o princípio da comunhão universal. Vemo-lo agir no fenômeno espírita, que facilita ou dificulta; seu papel nas sessões de experimentação é sempre considerável. A telepatia demonstrou-nos que as almas podem impressionar-se, influenciar-se a todas as distâncias; é o meio de que se servem as humanidades do espaço para comunicarem entre si através das imensidades siderais. Em qualquer campo das atividades sociais, em todos os domínios do mundo visível ou invisível, a ação do pensamento é soberana; não é menor sua ação, repetimos, em nós mesmos, modificando constantemente nossa natureza íntima.

As vibrações de nossos pensamentos, de nossas palavras, renovando-se em sentido uniforme, expulsam de nosso invólucro os elementos que não podem vibrar em harmonia com elas; atraem elementos similares que acentua as tendências do ser. Uma obra, muitas vezes inconsciente, elabora-se; mil obreiros misteriosos trabalham na sombra; nas profundezas da alma esboça-se um destino inteiro; em sua ganga o diamante purifica-se ou perde o brilho.

Se meditarmos em assuntos elevados, na sabedoria, no dever, no sacrifício, nosso ser impregna-se, pouco a pouco, das qualidades de nosso pensamento. É por isso que a prece improvisada, ardente, o impulso da alma para as potências infinitas, tem tanta virtude. Nesse diálogo solene do ser com sua causa, o influxo do Alto invade-nos e desperta sentidos novos. A compreensão, a consciência da vida aumenta e sentimos, melhor do que se pode exprimir, a gravidade e a grandeza da mais humilde das existências. A oração, a comunhão pelo pensamento com o universo espiritual e divino é o esforço da alma para a beleza e para a verdade eternas; é a entrada, por um instante, nas esferas da vida real e superior, aquela que não tem termo.

Se, ao contrário, nosso pensamento é inspirado por maus desejos, pela paixão, pelo ciúme, pelo ódio, as imagens que cria sucedem-se, acumulam-se em nosso corpo fluídico e o entenebrecem. Assim, podemos à vontade fazer em nós a luz ou a sombra, o que afirmam tantas comunicações de além-túmulo. Somos o que pensamos, com a condição de pensarmos com força, vontade e persistência. Mas, quase sempre, nossos pensamentos passam constantemente de um a outro assunto. Pensamos raras vezes por nós mesmos, refletimos os mil pensamentos incoerentes do meio em que vivemos. Poucos homens sabem viver do próprio pensamento, beber nas fontes profundas, nesse grande reservatório de inspiração que cada um traz consigo, mas que a maior parte ignora. Por isso criam um invólucro povoado das mais disparatadas formas. Seu Espírito é como uma habitação franca a todos os que passam. Os raios do bem e as sombras do mal lá se confundem, num caos perpétuo. É o combate incessante da paixão e do dever, em que, quase sempre, a paixão sai vitoriosa. Antes de tudo, é preciso aprender a fiscalizar os pensamentos, a discipliná-los, a imprimir-lhes uma direção determinada, um fim nobre e digno.

A fiscalização dos pensamentos implica a fiscalização dos atos, porque, se uns são bons, os outros sê-lo-ão igualmente, e todo o nosso procedimento achar-se-á regulado por uma concatenação harmônica. Todavia, se nossos atos são bons e nossos pensamentos maus, apenas haverá uma falsa aparência do bem e continuaremos a trazer em nós um foco malfazejo, cujas influências, mais cedo ou mais tarde, derramar-se-ão fatalmente sobre nossa vida.

Às vezes observamos uma contradição surpreendente entre os pensamentos, os escritos e as ações de certos homens, e somos levados, por essa mesma contradição, a duvidar de sua boa-fé, de sua sinceridade. Muitas vezes não há mais do que uma interpretação errônea de nossa parte. Os atos desses homens resultam do impulso surdo dos pensamentos e das forças que eles acumularam em si no passado. Suas aspirações atuais, mais elevadas, seus pensamentos mais generosos traduzir-se-ão em atos no futuro. Assim, tudo se combina e explica quando se consideram as coisas do largo ponto de vista da evolução; ao passo que tudo fica obscuro, incompreensível, contraditório, com a teoria de uma vida única para cada um de nós.

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É bom viver em contato pelo pensamento com os escritores de gênio, com os autores verdadeiramente grandes de todos os tempos e países, lendo, meditando suas obras, impregnando todo o nosso ser da substância de sua alma. As radiações de seus pensamentos despertarão em nós efeitos semelhantes e produzirão, com o tempo, modificações de nosso caráter pela própria natureza das impressões sentidas.

E necessário escolhermos com cuidado nossas leituras, depois amadurecê-las e assimilar-lhes a quintessência. Em geral lê-se demais, lê-se depressa e não se medita. Seria preferível ler menos e refletir mais no que se leu. É um meio seguro de fortalecer nossa inteligência, de colher os frutos de sabedoria e beleza que podem conter nossas leituras. Nisso, como em todas as coisas, o belo atrai e gera o belo, do mesmo modo que a bondade atrai a felicidade, como o mal atrai o sofrimento.

O estudo silencioso e recolhido é sempre fecundo para o desenvolvimento do pensamento. É no silêncio que se elaboram as grandes obras. A palavra é brilhante, mas degenera demasiadas vezes em conversas estéreis, às vezes maléficas; com isso, o pensamento se enfraquece e a alma esvazia-se. Ao passo que na meditação o Espírito se concentra, volta-se para o lado grave e solene das coisas; a luz do mundo espiritual banha-o com suas ondas. Há em volta do pensador grandes seres invisíveis que só querem inspirá-lo; é à meia-luz das horas tranqüilas ou então à claridade discreta da lâmpada de trabalho que melhor podem entrar em comunhão com ele. Em toda parte e sempre uma vida oculta mistura-se com a nossa.

Evitemos as discussões ruidosas, as palavras vãs, as leituras frívolas. Sejamos sóbrios em relação aos jornais, pois a sua leitura, fazendo-nos passar continuamente de um assunto para outro, torna o Espírito ainda mais instável. Vivemos numa época de anemia intelectual, que é causada pela raridade dos estudos sérios, pela procura abusiva da palavra pela palavra, da forma enfeitada e oca, e, principalmente, pela insuficiência dos educadores da mocidade. Apliquemo-nos a obras mais substanciais, a tudo o que pode esclarecer-nos a respeito das leis profundas da vida e facilitar nossa evolução. Pouco a pouco, edificar-se-ão em nós uma inteligência e uma consciência mais fortes e nosso corpo fluídico iluminar-se-á com os reflexos de um pensamento elevado e puro.

Dissemos que a alma oculta profundezas onde o pensamento raras vezes desce, porque mil objetos externos ocupam-no incessantemente. Sua superfície, como a do mar, é muitas vezes agitada; mas por baixo se estendem regiões inacessíveis às tempestades. Aí dormem as potências ocultas, que esperam nosso chamamento para emergirem e aparecerem. O chamamento raras vezes se faz ouvir e o homem agita-se em sua indigência, ignorante dos tesouros inapreciáveis que nele repousam.

É necessário o choque das provações, as horas tristes e desoladas para fazer-lhe compreender a fragilidade das coisas externas e encaminhá-lo para o estudo de si mesmo, para a descoberta de suas verdadeiras riquezas espirituais.

É por isso que as grandes almas se tornam tanto mais nobres e belas quanto mais vivas são suas dores. A cada nova desgraça que as fere têm a sensação de se haverem aproximado um pouco mais da verdade e da perfeição, e com esse pensamento experimentam uma espécie de volúpia amarga. Levantou-se no céu de seu destino uma nova estrela, cujos raios trêmulos penetram no santuário de sua consciência e lhe iluminam os recônditos. Nas inteligências de cultura elevada faz sementeira a desgraça: cada dor é um sulco onde se levanta uma seara de virtude e beleza.

Em certas horas de nossa vida, quando morre nossa mãe, quando se desmorona uma esperança ardentemente acariciada, quando se perde a mulher, o filho amado, cada vez que se despedaça um dos laços que nos ligavam a este mundo, uma voz misteriosa eleva-se nas profundezas de nossa alma, voz solene que nos fala de mil leis augustas, mais veneráveis que as da Terra, e entreabre-se todo um mundo ideal. Mas os ruídos do exterior abafam-na bem depressa e o ser humano recai quase sempre em suas dúvidas, em suas hesitações, na vulgaridade de sua existência.

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Não há progresso possível sem observação atenta de nós mesmos. É necessário vigiar todos os nossos atos impulsivos para chegarmos a saber em que sentido devemos dirigir nossos esforços para nos aperfeiçoarmos. Primeiramente, regular a vida física, reduzir as exigências materiais ao necessário, a fim de garantir a saúde do corpo, instrumento indispensável para o desempenho de nosso papel terrestre; em seguida, disciplinar as impressões, as emoções, exercitando-nos em dominá-las, em utilizá-las como agentes de nosso aperfeiçoamento moral; aprender principalmente a esquecer, a fazer o sacrifício do “eu”, a desprender-nos de todo o sentimento de egoísmo. A verdadeira felicidade neste mundo está na proporção do esquecimento próprio.

Não basta crer e saber, é necessário viver nossa crença, isto é, fazer penetrar na prática diária da vida os princípios superiores que adotamos; é necessário habituarmo-nos a comungar pelo pensamento e pelo coração com os Espíritos eminentes que foram os reveladores, com todas as almas de escol que serviram de guias à humanidade, viver com eles numa intimidade cotidiana, inspirarmo-nos em suas vistas e sentir sua influência pela percepção íntima que nossas relações com o mundo invisível desenvolvem.

Entre essas grandes almas é bom escolher uma como exemplo, a mais digna de nossa admiração e, em todas as circunstâncias difíceis, em todos os casos em que nossa consciência oscila entre dois partidos a tomar, inquirirmos o que ela teria resolvido e procedermos no mesmo sentido.

Assim, pouco a pouco iremos construindo, de acordo com esse modelo, um ideal moral que se refletirá em todos os nossos atos. Todo homem, na humilde realidade de cada dia, pode ir modelando uma consciência sublime. A obra é vagarosa e difícil, mas para isso são-nos dados os séculos.

Concentremos, pois, muitas vezes nossos pensamentos, para dirigi-los, pela vontade, em direção ao ideal sonhado. Meditemos nele todos os dias, à hora certa, de preferência pela manhã, quando tudo está sossegado e repousa ainda à nossa volta, nesse momento a que o poeta chama “a hora divina”, quando a Natureza, fresca e descansada, acorda para as claridades do dia.

Nas horas matinais, a alma, pela oração e pela meditação, eleva-se com mais fácil impulso até às alturas donde se vê e compreende que tudo – a vida, os atos, os pensamentos – está ligado a alguma coisa grande e eterna e que habitamos um mundo em que potências invisíveis vivem e trabalham conosco. Na vida mais simples, na tarefa mais modesta, na existência mais apagada, mostram-se, então, faces profundas, uma reserva de ideal, fontes possíveis de beleza. Cada alma pode criar com seus pensamentos uma atmosfera espiritual tão bela, tão resplandecente, como nas paisagens mais encantadoras; e na morada mais mesquinha, no mais miserável tugúrio, há frestas para Deus e para o infinito!

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Em todas as nossas relações sociais, em nossas relações com os nossos semelhantes, é preciso lembrarmo-nos constantemente de que os homens são viajantes em marcha, ocupando pontos diversos na escala da evolução pela qual todos subimos. Por conseguinte, nada devemos exigir, nada devemos esperar deles que não esteja em relação com seu grau de adiantamento.

A todos devemos tolerância, benevolência e até perdão; porque se nos causam prejuízo, se escarnecem de nós e nos ofendem, é quase sempre pela falta de compreensão e de saber, resultantes de desenvolvimento insuficiente. Deus não pede aos homens senão o que eles têm podido adquirir à custa de lentos e penosos trabalhos. Não temos o direito de exigir mais. Não fomos semelhantes aos mais atrasados deles? Se cada um de nós pudesse ler em seu passado o que foi, o que fez, quanto não seria maior nossa indulgência para com as faltas alheias! Às vezes, também nós carecemos da mesma indulgência que lhes devemos. Sejamos severos conosco e tolerantes com os outros. Instruamo-los, esclareçamo-los, guiemo-los com doçura, é o que a lei de solidariedade nos preceitua.

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Enfim, é preciso saber suportar todas as coisas com paciência e serenidade. Seja qual for o procedimento de nossos semelhantes para conosco, não devemos conceber nenhuma animosidade ou ressentimento; mas, ao contrário, saibamos fazer reverter em benefício de nossa própria educação moral todas as causas de aborrecimento e aflição. Nenhum revés poderia atingir-nos, se, por nossas vidas anteriores e culpadas, não tivéssemos dado margem à adversidade. É isso o que muitas vezes se deve repetir. Chegaremos, assim, a aceitar todas as provações sem amargura, considerando-as como reparação do passado ou como meio de aperfeiçoamento.

De grau em grau chegaremos, assim, ao sossego de espírito, à posse de nós mesmos, à confiança absoluta no futuro, que dão a força, a quietação, a satisfação íntima, permitindo-nos permanecer firmes no meio das mais duras vicissitudes.

Quando chega a idade, as ilusões e as esperanças vãs caem como folhas mortas; mas as altas verdades aparecem com mais brilho, como as estrelas no céu de inverno através dos ramos nus de nossos jardins.

Pouco importa, então, que o destino não nos tenha oferecido nenhuma glória, nenhum raio de alegria, se tiver enriquecido nossa alma com mais uma virtude, com alguma beleza moral. As vidas obscuras e atormentadas são, às vezes, as mais fecundas, ao passo que as vidas suntuosas nos prendem, bastas vezes e por muito tempo, na corrente formidável de nossas responsabilidades.

A felicidade não está nas coisas externas nem nos acasos do exterior, mas somente em nós mesmos, na vida interna que soubermos criar. Que importa que o céu esteja escuro por cima de nossas cabeças e os homens sejam ruins em volta de nós, se tivermos a luz na fronte, alegria do bem e a liberdade moral no coração? Se, porém, eu tiver vergonha de mim mesmo, se o mal tiver invadido meu pensamento, se o crime e a traição habitarem em mim, todos os favores e todas as felicidades da Terra não me restituirão a paz silenciosa e a alegria da consciência. O sábio cria, desde este mundo, para si mesmo, um refúgio seguro, um lugar sagrado, um retiro profundo aonde não chegam as discórdias e as contrariedades do exterior. Do mesmo modo, na vida do espaço a sanção do dever e a realização da justiça são de ordem inteiramente íntima; cada alma traz em si sua claridade ou sua sombra, seu paraíso ou seu inferno. Mas, lembremo-nos de que nada há irreparável; a situação atual do Espírito inferior não é mais que um ponto quase imperceptível na imensidade de seus destinos.

XXV
O amor

O amor, como comumente se entende na Terra, é um sentimento, um impulso do ser, que o leva para outro ser com o desejo de unir-se a ele. Mas, na realidade, o amor reveste formas infinitas, desde as mais vulgares até as mais sublimes. Princípio da vida universal, proporciona à alma, em suas manifestações mais elevadas e puras, a intensidade de radiação que aquece e vivifica tudo em volta de si; é por ele que ela se sente estreitamente ligada ao Poder Divino, foco ardente de toda a vida, de todo o amor.

Acima de tudo, Deus é amor. Por amor, criou os seres para associá-los às suas alegrias, à sua obra. O amor é um sacrifício; Deus hauriu nele a vida para dá-la às almas. Ao mesmo tempo que a efusão vital, elas receberiam o princípio afetivo destinado a germinar e expandir-se pela provação dos séculos, até que tenham aprendido a dar-se por sua vez, isto é, a dedicar-se, a sacrificar-se pelas outras. Com esse sacrifício, em vez de se amesquinharem, mais se engrandecem, enobrecem e aproximam do Foco Supremo.

O amor é uma força inexaurível, renova-se sem cessar e enriquece ao mesmo tempo aquele que dá e aquele que recebe. É pelo amor, sol das almas, que Deus mais eficazmente atua no mundo. Por ele atrai para si todos os pobres seres retardados nos antros da paixão, os Espíritos cativos na matéria; eleva-os e arrasta-os na espiral da ascensão infinita para os esplendores da luz e da liberdade.

O amor conjugal, o amor materno, o amor filial ou fraterno, o amor da pátria, da raça, da humanidade, são refrações, raios refratados do amor divino, que abrange, penetra todos os seres e, difundindo-se neles, faz rebentar e desabrochar mil formas variadas, mil esplêndidas florescências de amor.

Até às profundidades do abismo de vida, infiltram-se as radiações do amor divino e vão acender nos seres rudimentares, pela afeição à companheira e aos filhos, as primeiras claridades que, nesse meio de egoísmo feroz, serão como a aurora indecisa e a promessa de uma vida mais elevada.

É o apelo do ser ao ser, é o amor que provocará, no fundo das almas embrionárias, os primeiros rebentos do altruísmo, da piedade, da bondade. Mais acima, na escala evolutiva, entreverá o ser humano, nas primeiras felicidades, nas únicas sensações de ventura perfeita que lhe é dado gozar na Terra, sensações mais fortes e suaves que todas as alegrias físicas e conhecidas somente das almas que sabem verdadeiramente amar.

Assim, de grau em grau, sob a influência e irradiação do amor, a alma desenvolver-se-á e engrandecerá, verá alargar-se o círculo de suas sensações. Lentamente, o que nela não era senão paixão, desejo carnal, ir-se-á depurando, transformando num sentimento nobre e desinteressado; a afeição a um só ou a alguns converter-se-á na afeição a todos, à família, à pátria, à humanidade. E a alma adquirirá a plenitude de seu desenvolvimento quando for capaz de compreender a vida celeste, que é toda amor, e a participar dela.

O amor é mais forte do que o ódio, mais poderoso do que a morte. Se o Cristo foi o maior dos missionários e dos profetas, se tanto império teve sobre os homens, foi porque trazia em si um reflexo mais poderoso do Amor Divino. Jesus passou pouco tempo na Terra; foram bastantes três anos de evangelização para que o seu domínio se estendesse a todas as nações. Não foi pela Ciência nem pela arte oratória que ele seduziu e cativou as multidões; foi pelo amor! Desde sua morte, seu amor ficou no mundo como um foco sempre vivo, sempre ardente. Por isso, apesar dos erros e faltas de seus representantes, apesar de tanto sangue derramado por eles, de tantas fogueiras acesas, de tantos véus estendidos sobre seu ensino, o Cristianismo continuou a ser a maior das religiões; disciplinou, moldou a alma humana, amansou a índole feroz dos bárbaros, arrancou raças inteiras à sensualidade ou à bestialidade.

O Cristo não é o único exemplo a apresentar. Pode-se, de um modo geral, verificar que das almas eminentes se desprendem radiações, eflúvios regeneradores, que constituem uma como atmosfera de paz, uma espécie de proteção, de providência particular. Todos aqueles que vivem sob essa benéfica influência moral sentem uma calma, um sossego de espírito, uma espécie de serenidade que dá um antegozo das quietações celestes. Essa sensação é mais pronunciada ainda nas sessões espíritas dirigidas e inspiradas por almas superiores; nós mesmos o experimentamos muitas vezes em presença das entidades que presidem aos trabalhos do nosso grupo de Tours.[19]

Essas impressões vão-se encontrando cada vez mais vivas à medida que se afastam dos planos inferiores onde reinam as impulsões egoístas e fatais e se sobem os degraus da gloriosa hierarquia espiritual para aproximar-se do Foco Divino; pode-se assim verificar, por uma experiência que vem completar as nossas intuições, que cada alma é um sistema de força e um gerador de amor, cujo poder de ação aumenta com a elevação.

Por isto também se explicam e se afirmam a solidariedade e fraternidade universais. Um dia, quando a verdadeira noção do ser se desembaraçar das dúvidas e incertezas que obsidiam o pensamento humano, compreender-se-á a grande fraternidade que liga as almas. Sentir-se-á que são todas envolvidas pelo magnetismo divino, pelo grande sopro de amor que enche os Espaços.

À parte esse poderoso laço, as almas constituem também agrupamentos separados, famílias que se foram pouco a pouco formando através dos séculos, pela comunidade das alegrias e das dores. A verdadeira família é a do espaço; a da Terra não é mais do que uma imagem daquela, redução enfraquecida, como o são as coisas deste mundo comparadas com as do Céu. A verdadeira família compõe-se dos Espíritos que subiram juntos as ásperas sendas do destino e são feitas para se compreenderem e amarem.

Quem pode descrever os sentimentos ternos, íntimos, que unem esses seres, as alegrias inefáveis nascidas da fusão das inteligências e das consciências, a união das almas sob o sorriso de Deus?

Esses agrupamentos espirituais são os centros abençoados onde todas as paixões terrestres se apaziguam, onde os egoísmos se desvanecem, onde os corações se dilatam, onde vêm retemperar-se e consolar-se todos aqueles que têm sofrido, quando, livres pela morte, tornam a juntar-se com os bem-amados, reunidos para festejarem seu regresso.

Quem pode descrever os êxtases que proporciona às almas purificadas, que chegaram às cumeadas luminosas, a efusão nelas do amor divino e os noivados celestes pelos quais dois Espíritos se ligam para sempre no seio das famílias do espaço, reunidas para consagrarem com um rito solene essa união simbólica e indestrutível? Tal é o matrimônio verdadeiro, o das almas irmãs, que Deus reúne eternamente com um fio de ouro. Com essas festas do amor, os Espíritos que aprenderam a tornar-se livres e a usar de sua liberdade fundem-se num mesmo fluido, à vista comovida de seus irmãos. Daí em diante, seguirão uns aos outros em suas peregrinações através dos mundos; caminharão, de mãos dadas, sorrindo à desgraça e haurindo na ternura comum a força para suportar todos os reveses, todas as amarguras da sorte. Algumas vezes, separados pelos renascimentos, conservarão a intuição secreta de que seu insulamento é apenas passageiro; depois das provas da separação, entrevêem a embriaguez do regresso ao seio das imensidades.

Entre os que caminham neste mundo, solitários, entristecidos, curvados sob o fardo da vida, há os que conservam no fundo do coração a vaga lembrança da sua família espiritual. Estes sofrem cruelmente da nostalgia dos Espaços e do amor celeste, e nada entre as alegrias da Terra os pode distrair e consolar. Seu pensamento vai muitas vezes, durante a vigília, e, mais ainda, durante o sono, reunir-se aos seres queridos que os esperam na paz serena do Além. O sentimento profundo das compensações que os aguardam explica sua força moral na luta e sua aspiração para um mundo melhor. A esperança semeia de flores austeras os atalhos que eles percorrem.

*

Todo o poder da alma resume-se em três palavras: querer, saber, amar!

Querer, isto é, fazer convergir toda a atividade, toda a energia, para o alvo que se tem de atingir, desenvolver a vontade e aprender a dirigi-la.

Saber, porque sem o estudo profundo, sem o conhecimento das coisas e das leis, o pensamento e a vontade podem transviar-se no meio das forças que procuram conquistar e dos elementos a quem aspiram governar.

Acima de tudo, porém, é preciso amar, porque sem o amor, a vontade e a ciência seriam incompletas e muitas vezes estéreis. O amor ilumina-as, fecunda-as, centuplica-lhes os recursos. Não se trata aqui do amor que contempla sem agir, mas do que se aplica a espalhar o bem e a verdade pelo mundo. A vida terrestre é um conflito entre as forças do mal e as do bem. O dever de toda alma viril é tomar parte no combate, trazer-lhe todos os seus impulsos, todos os seus meios de ação, lutar pelos outros, por todos aqueles que se agitam ainda na via escura.

O uso mais nobre que se pode fazer das faculdades é trabalhar por engrandecer, desenvolver, no sentido do belo e do bem, a civilização, a sociedade humana, que tem as suas chagas e fealdades, sem dúvida, mas que é rica de esperanças e magníficas promessas; essas promessas transformar-se-ão em realidade vivaz no dia em que a humanidade tiver aprendido a comungar, pelo pensamento e pelo coração, com o foco de amor, que é o esplendor de Deus.

Amemos, pois, com todo o poder do nosso coração; amemos até ao sacrifício, como Joana d'Arc amou a França, como o Cristo amou a humanidade, e todos aqueles que nos rodeiam receberão nossa influência, sentir-se-ão nascer para nova vida.

Ó homem, procura em volta de ti as chagas a pensar, os males a curar, as aflições a consolar. Alarga as inteligências, guia os corações transviados, associa as forças e as almas, trabalha para ser edificada a alta cidade de paz e de harmonia que será a cidade de amor, a cidade de Deus! Ilumina, levanta, purifica! Que importa que se riam de ti! Que importa que a ingratidão e a maldade se levantem na tua frente! Aquele que ama não recua por tão pouca coisa; ainda que colha espinhos e silvas, continua sua obra, porque esse é seu dever, sabe que a abnegação o engrandece.

O próprio sacrifício também tem suas alegrias; feito com amor, transforma as lágrimas em sorrisos, faz nascer em nós alegrias desconhecidas do egoísta e do mau. Para aquele que sabe amar, as coisas mais vulgares são de interesse; tudo parece iluminar-se; mil sensações novas despertam nele.

São necessários à sabedoria e à Ciência longos esforços, lenta e penosa ascensão para conduzir-nos às altas regiões do pensamento. O amor e o sacrifício lá chegam de um só pulo, com um único bater de asas. Na sua impulsão conquistam a paciência, a coragem, a benevolência, todas as virtudes fortes e suaves. O amor depura a inteligência, engrandece o coração e é pela soma de amor acumulada em nós que podemos avaliar o caminho que temos percorrido até Deus.

*

A todas as interrogações do homem, a suas hesitações, a seus temores, a suas blasfêmias, uma voz grande, poderosa e misteriosa responde: Aprende a amar! O amor é o resumo de tudo, o fim de tudo. Dessa maneira, estende-se e desdobra-se sem cessar sobre o universo a imensa rede de amor tecida de luz e ouro. Amar é o segredo da felicidade. Com uma só palavra o amor resolve todos os problemas, dissipa todas as obscuridades. O amor salvará o mundo; seu calor fará derreter os gelos da dúvida, do egoísmo, do ódio; enternecerá os corações mais duros, mais refratários.

Mesmo em seus magníficos derivados, o amor é sempre um esforço para a beleza. Nem sequer o amor sexual, o do homem e da mulher, deixa, por mais material que pareça, de poder aureolar-se de ideal e poesia, de perder todo o caráter vulgar, se, de mistura com ele, houver um sentimento de estética e um pensamento superior. E isso depende principalmente da mulher. Aquela que ama, sente e vê coisas que o homem não pode conhecer, possui em seu coração inexauríveis reservas de amor, uma espécie de intuição que pode dar idéia do Amor Eterno.

A mulher é sempre, de qualquer modo, irmã do mistério e a parte de seu ser que toca o infinito parece ter mais extensão do que no homem. Quando este responde como a mulher aos apelos do invisível, quando seu amor é isento de todo desejo brutal, se convertem-se em um só pelo espírito e pelo corpo, então, no abraço desses dois seres que se penetram, se completam para transmitir a vida, passará como um relâmpago, como uma chama, o reflexo de mais altas felicidades entrevistas. São, todavia, passageiras e misturadas de amarguras as alegrias do amor terrestre; não andam desacompanhadas de decepções, retrocessos e quedas. Somente Deus é o amor na sua plenitude; é o braseiro ardente e ao mesmo tempo o abismo de pensamento e luz, donde dimanam e para quem ascendem eternamente os ardentes eflúvios de todos os astros, as ternuras apaixonadas de todos os corações de mulheres, de mães, de esposas, de afeições viris de todos os corações de homens. Deus gera e chama o amor, porque é a beleza infinita, perfeita, e é propriedade da beleza provocar o amor.

Quem, pois, num dia de verão, quando o Sol irradia, quando a imensa cúpula azulada se desenrola sobre nossas cabeças e dos prados e bosques, dos montes e do mar sobem a adoração, a prece muda dos seres e das coisas, quem, pois, deixará de sentir as radiações de amor que enchem o infinito?

É preciso nunca ter aberto a alma a essas influências sutis para ignorá-las ou negá-las. Muitas almas terrestres ficam, é verdade, hermeticamente fechadas para as coisas divinas, ou então, quando sentem suas harmonias e belezas, escondem cuidadosamente o segredo de si mesmas; parecem ter vergonha de confessar o que conhecem ou o que de maior e melhor experimentam.

Tentai a experiência! Abri o vosso ser interno, abri as janelas da prisão da alma aos eflúvios da vida universal e, de súbito, essa prisão encher-se-á de claridades, de melodias; um mundo todo de luz penetrará em vós. Vossa alma arrebatada conhecerá êxtases, felicidades que não se podem descrever; compreenderá que há em seu derredor um oceano de amor, de força e de vida divina no qual ela está imersa e que lhe basta querer para ser banhada por suas águas regeneradoras. Sentirá no universo um poder soberano e maravilhoso que nos ama, nos envolve, nos sustenta, que vela sobre nós como o avarento sobre a jóia preciosa, e, invocando-o, dirigindo-lhe um apelo ardente, será logo penetrada de sua presença e de seu amor. Essas coisas se sentem e exprimem dificilmente; só as podem compreender aqueles que as saborearam. Mas todos podem chegar a conhecê-las, a possuí-las, despertando o que há em si de divino. Não há homem, por mais perverso, por pior que seja, que numa hora de abandono e sofrimento não veja abrir-se uma fresta por onde um pouco da claridade das coisas superiores e um pouco de amor se filtrem até ele.

Basta ter experimentado uma vez só essas impressões para não as esquecer mais. E quando chega o declínio da vida com suas desilusões, quando as sombras crepusculares se acumulam sobre nós, então essas poderosas sensações acordam com a memória de todas as alegrias sentidas e a lembrança das horas em que verdadeiramente amamos cai como delicioso orvalho sobre nossas almas dissecadas pelo vento áspero das provações e da dor.

XXVI
A dor

Tudo o que vive neste mundo, natureza, animal, homem, sofre e, todavia, o amor é a lei do universo e por amor foi que Deus formou os seres. Contradição aparentemente horrível, problema angustioso, que perturbou tantos pensadores e os levou à dúvida e ao pessimismo.

O animal está sujeito à luta ardente pela vida. Entre as ervas do prado, as folhas e a ramaria dos bosques, nos ares, no seio das águas, por toda parte desenrolam-se dramas ignorados. Em nossas cidades prossegue sem cessar a hecatombe de pobres animais inofensivos, sacrificados às nossas necessidades ou entregues nos laboratórios ao suplício da vivisseção.

Quanto à humanidade, sua história não é mais que um longo martirológio. Através dos tempos, por cima dos séculos, rola a triste melopéia dos sofrimentos humanos; o lamento dos desgraçados sobe com uma intensidade dilacerante, que tem a regularidade de uma vaga.

A dor segue todos os nossos passos; espreita-nos em todas as voltas do caminho. E diante dessa esfinge que o fita com seu olhar estranho, o homem faz a eterna pergunta: Por que existe a dor?

É, no que lhe concerne, uma punição, uma expiação, como o dizem alguns? É a reparação do passado, o resgate das faltas cometidas?

Fundamentalmente, a dor é uma lei de equilíbrio e educação. Sem dúvida, as falhas do passado recaem sobre nós com todo o seu peso e determinam as condições de nosso destino. O sofrimento, muitas vezes, não é mais do que a repercussão das violações da ordem eterna cometidas; mas, sendo partilha de todos, deve ser considerado como necessidade de ordem geral, como agente de desenvolvimento, condição do progresso. Todos os seres têm de, por sua vez, passar por ele. Sua ação é benfazeja para quem sabe compreendê-lo; mas, somente podem compreendê-lo aqueles que lhe sentiram os poderosos efeitos. Principalmente a esses, a todos aqueles que sofrem, têm sofrido ou são dignos de sofrer que dirijo estas páginas.

*

A dor e o prazer são as duas formas extremas da sensação. Para suprimir uma ou outra seria preciso suprimir a sensibilidade. São, pois, inseparáveis, em princípio, e ambos necessários à educação do ser, que, em sua evolução, deve experimentar todas as formas ilimitadas, tanto do prazer como da dor.

A dor física produz sensações; o sofrimento moral produz sentimentos. Mas, como já vimos,[20] no sensório íntimo, sensação e sentimento confundem-se e são uma só e mesma coisa.

O prazer e a dor estão, pois, muito menos nas coisas externas do que em nós mesmos; incumbe, pois, a cada um de nós, regulando suas sensações, disciplinando seus sentimentos, dominar umas e outras e limitar-lhes os efeitos.

Epicteto dizia: “As coisas são apenas o que imaginamos que são.” Assim, pela vontade podemos domar, vencer a dor ou, pelo menos, fazê-la redundar em nosso proveito, fazer dela meio de elevação.

A idéia que fazemos da felicidade e da desgraça, da alegria e da dor, varia ao infinito segundo a evolução individual. A alma pura, boa e sábia não pode ser feliz à maneira da alma vulgar. O que encanta uma deixa a outra indiferente. À medida que se sobe, o aspecto das coisas muda. Como a criança que, crescendo, deixa de lado os brinquedos que a cativaram, a alma que se eleva procura satisfações cada vez mais nobres, graves e profundas. O Espírito que julga com superioridade e considera o fim grandioso da vida achará mais felicidade, mais serena paz num belo pensamento, numa boa obra, num ato de virtude e até na desgraça que purifica, do que em todos os bens materiais e no brilho das glórias terrestres, porque estas o perturbam, corrompem, embriagam ficticiamente.

É muito difícil fazer entender aos homens que o sofrimento é bom. Cada qual quereria refazer e embelezar a vida à sua vontade, adorná-la com todos os deleites, sem pensar que não há bem sem dor, ascensão sem suores e esforços.

A tendência geral consiste em fecharmo-nos no estreito círculo do individualismo, do cada um por si; por essa forma, o homem abate-se, reduz a estreitos limites tudo quanto nele é grande, tudo que está destinado a desenvolver-se, a estender-se, a dilatar-se, a desferir vôo: o pensamento, a consciência, numa palavra, toda a sua alma. Ora, os gozos, os prazeres e a ociosidade estéril não fazem mais do que apertar esses limites, acanhar nossa vida e nosso coração. Para quebrar esse círculo, para que todas as virtudes ocultas se expandam à luz, é necessária a dor. A desgraça e as provações fazem jorrar em nós as fontes de uma vida desconhecida e mais bela. A tristeza e o sofrimento fazem-nos ver, ouvir, sentir mil coisas, delicadas ou fortes, que o homem feliz ou o homem vulgar não podem perceber. Obscurece-se o mundo material; desenha-se outro, vagamente a princípio, mas que cada vez se tornará mais distinto, à medida que as nossas vistas se desprenderem das coisas inferiores e mergulharem no ilimitado.

O gênio não é somente o resultado de trabalhos seculares; é também a apoteose, a coroação de sofrimento. De Homero a Dante, a Camões, a Tasso, a Milton, todos os grandes homens, como eles, têm sofrido. A dor fez-lhes vibrar a alma, inspirou-lhes a nobreza dos sentimentos, a intensidade da emoção que souberam traduzir com os acentos do gênio e que os imortalizou. É na dor que mais sobressaem os cânticos da alma. Quando ela atinge as profundezas do ser, faz de lá saírem os gritos eloqüentes, os poderosos apelos que comovem e arrastam as multidões.

Dá-se o mesmo com todos os heróis, com todos os grandes caracteres, com os corações generosos, com os espíritos mais eminentes. Sua elevação mede-se pela soma dos sofrimentos que passaram. Ante a dor e a morte, a alma do herói e do mártir revela-se em sua beleza comovedora, em sua grandeza trágica, que toca às vezes o sublime e o nimba de uma luz inextinguível.

Suprimi a dor e suprimireis, ao mesmo tempo, o que é mais digno de admiração neste mundo, isto é, a coragem de suportá-la. O mais nobre ensinamento que se pode apresentar aos homens não é a memória daqueles que sofreram e morreram pela verdade e pela justiça? Há coisa mais augusta, mais venerável que seus túmulos? Nada iguala o poder moral que daí provém. As almas que deram tais exemplos avultam aos nossos olhos com os séculos e parecem, de longe, mais imponentes ainda; são outras tantas fontes de força e beleza onde vão retemperar-se as gerações. Através do tempo e do espaço, sua irradiação, como a luz dos astros, estende-se sobre a Terra. Sua morte gerou a vida, e sua lembrança, como aroma sutil, vai lançar em toda parte a semente dos entusiasmos futuros.

É, como nos ensinaram essas almas, pela dedicação e pelo sofrimento dignamente suportados que se sobem os caminhos do Céu. A história do mundo não é outra coisa mais que a sagração do espírito pela dor. Sem ela, não pode haver virtude completa, nem glória imperecível.

*

É necessário sofrer para adquirir e conquistar. Os atos de sacrifício aumentam as radiações psíquicas. Há como que uma esteira luminosa que segue, no espaço, os Espíritos dos heróis e dos mártires.

Aqueles que não sofreram mal podem compreender essas coisas, porque neles só a superfície do ser está arroteada, valorizada. Há falta de largueza em seus corações, de efusão em seus sentimentos; seu pensamento abrange horizontes acanhados. São necessários os infortúnios e as angústias para dar à alma seu aveludado, sua beleza moral, para despertar seus sentidos adormecidos. A vida dolorosa é um alambique onde se destilam os seres para mundos melhores. A forma, como o coração, tudo se embeleza por ter sofrido. Há, já nesta vida, um não sei quê de grave e enternecido nos rostos que as lágrimas sulcaram muitas vezes. Tomam uma expressão de beleza austera, uma espécie de majestade que impressiona e seduz.

Michelangelo adotara como norma de proceder os preceitos seguintes: “Concentra-te e faze como o escultor faz à obra que quer aformosear. Tira o supérfluo, aclara o obscuro, difunde a luz por tudo e não largues o cinzel.”

Máxima sublime, que contém o princípio de todo o aperfeiçoamento íntimo. Nossa alma é nossa obra, com efeito, obra capital e fecunda, que sobrepuja em grandeza todas as manifestações parciais da arte, da ciência, do gênio.

Todavia, as dificuldades da execução são correlativas ao esplendor do objetivo e, diante da penosa tarefa da reforma interior, do combate incessante travado com as paixões, com a matéria, quantas vezes o artista não desanima? Quantas vezes não abandona o cinzel? É então que Deus lhe envia um auxílio – a dor! Ela cava ousadamente nas profundezas da consciência aonde o trabalhador hesitante e inábil não podia ou não sabia chegar; desobstrui-lhe os recessos, modela-lhe os contornos; elimina ou destrói o que era inútil ou ruim e, do mármore frio, informe, sem beleza, da estátua feia e grosseira, que nossas mãos mal tinham esboçado, faz surgir com o tempo a estátua viva, a obra-prima incomparável, as formas harmoniosas e suaves da divina Psique.

*

A dor não fere somente os culpados. Em nosso mundo, o homem honrado sofre tanto quanto o mau, o que é explicável. Em primeiro lugar, a alma virtuosa é mais sensível por ser mais adiantado o seu grau de evolução; depois, estima muitas vezes e procura a dor, por lhe conhecer todo o valor.

Há dessas almas que só vêm a este mundo para dar o exemplo da grandeza no sofrimento; são, por sua vez, missionários e sua missão não é menos bela e comovedora que a dos grandes reveladores. Encontram-se em todos os tempos e ocupam todos os planos da vida; estão em pé nos cimos resplandecentes da História e para encontrá-las é preciso ir procurá-las no meio da multidão onde se acham, escondidas e humildes.

Admiramos o Cristo, Sócrates, Antígono, Joana d'Arc; mas quantas vítimas obscuras do dever ou do amor caem todos os dias e ficam sepultadas no silêncio e no esquecimento! Entretanto, não são perdidos seus exemplos; eles iluminam toda a vida dos poucos homens que os presenciaram.

Para que uma vida seja completa e fecunda, não é necessário que nela superabundem os grandes atos de sacrifício, nem que a remate uma morte que a sagre aos olhos de todos. Tal existência, aparentemente apagada e triste, indistinta e despercebida, é, na realidade, um esforço contínuo, uma luta de todos os instantes contra a desgraça e o sofrimento. Não somos juízes de tudo o que se passa no recôndito das almas; muitas, por pudor, escondem chagas dolorosas, males cruéis, que as tornariam tão interessantes aos nossos olhos como os mártires mais célebres. Torna também essas almas grandes e heróicas o combate ininterrupto que pelejam contra o destino! Seus triunfos ficam ignorados, mas todos os tesouros de energia, de paixão generosa, de paciência ou amor, que elas acumulam nesse esforço de cada dia, constituir-lhes-ão um capital de força, de beleza moral que pode, no Além, fazê-las iguais às mais nobres figuras da História.

Na oficina augusta onde se forjam as almas não são suficientes o gênio e a glória para fazê-las verdadeiramente formosas. Para dar-lhes o último traço sublime tem sido sempre necessária a dor. Se certas existências se tornaram, de obscuras que eram, tão santas e sagradas como dedicações célebres, é que nelas foi contínuo o sofrimento. Não foi somente uma vez, em tal circunstância ou na hora da morte, que a dor as elevou acima de si mesmas e as apresentou à admiração dos séculos; foi por ter sido toda a sua vida uma imolação constante.

E essa obra de longo aperfeiçoamento, esse lento desfilar das horas dolorosas, essa afinação misteriosa dos seres que se preparam, assim, para as derradeiras ascensões, força a admiração dos próprios Espíritos. É esse espetáculo comovedor que lhes inspira a vontade de renascerem entre nós, a fim de sofrerem e morrerem outra vez por tudo o que é grande, por tudo o que amam e para, com esse novo sacrifício, tornarem mais vivo o próprio brilho.

*

Feitas essas considerações de ordem geral, retomemos a questão nos seus elementos primários.

A dor física é, em geral, um aviso da Natureza, que procura preservar-nos dos excessos. Sem ela, abusaríamos de nossos órgãos a ponto de os destruirmos antes do tempo. Quando um mal perigoso se vai insinuando em nós, que aconteceria se não lhe sentíssemos logo os efeitos desagradáveis? Iria cada vez lavrando mais, invadir-nos-ia e secaria em nós as fontes da vida.

Ainda quando, persistindo em desconhecer os avisos repetidos da Natureza, deixamos a doença desenvolver-se em nós, pode ela ser um benefício, se, causada por nossos abusos e vícios, nos ensinar a detestá-los e a corrigir-nos deles. É necessário sofrer para nos conhecermos e conhecermos bem a vida.

Epicteto, que gostamos de citar, dizia também: “É falso dizer-se que a saúde é um bem e a doença um mal. Usar bem da saúde é um bem; usar mal é um mal. De tudo se tira o bem, até da própria morte.”

Às almas fracas a doença ensina a paciência, a sabedoria, o governo de si mesmas. Às almas fortes pode oferecer compensações de ideal, deixando ao Espírito o livre vôo de suas aspirações até ao ponto de esquecer os sofrimentos físicos.

A ação da dor não é menos eficaz para as coletividades do que o é para os indivíduos. Não foi graças a ela que se constituíram os primeiros agrupamentos humanos? Não foi a ameaça das feras, da fome, dos flagelos que obrigou o indivíduo a procurar seu semelhante para se lhe associar? Foi da vida comum, dos sofrimentos comuns, da inteligência e labor comuns que saiu toda a civilização, com suas artes, ciências e indústrias!

A dor física, pode-se também dizer, resulta da desproporção entre nossa fraqueza corporal e a totalidade das forças que nos cercam, forças colossais e fecundas, que são outras tantas manifestações da vida universal. Apenas podemos assimilar ínfima parte delas, mas, atuando sobre nós, elas trabalham por aumentar, por alargar incessantemente a esfera de nossa atividade e a gama de nossas sensações. Sua ação sobre o corpo orgânico repercute na forma fluídica; contribui para enriquecê-la, dilatá-la, torná-la mais impressionável, numa palavra, apta para novos aperfeiçoamentos.

O sofrimento, por sua ação química, tem sempre um resultado útil, mas esse resultado varia infinitamente segundo os indivíduos e seu estado de adiantamento. Apurando o nosso invólucro material, dá mais força ao ser interior, mais facilidade para se desapegar das coisas terrenas. Em outros, mais adiantados no seu grau de evolução, atuará no sentido moral. A dor é como uma asa dada à alma escravizada pela carne para ajudá-la a desprender-se e a elevar-se mais alto.

*

O primeiro movimento do homem infeliz é revoltar-se sob os golpes da sorte. Mais tarde, porém, depois de o Espírito ter subido os aclives e quando contempla o escabroso caminho percorrido, o desfiladeiro movediço de suas existências, é com um enternecimento alegre que se lembra das provas, das tribulações com cujo auxílio pôde alcançar o cimo.

Se, nas horas da provação, soubéssemos observar o trabalho interno, a ação misteriosa da dor em nós, em nosso “eu”, em nossa consciência, compreenderíamos melhor sua obra sublime de educação e aperfeiçoamento. Veríamos que ela fere sempre a corda sensível. A mão que dirige o cinzel é a de um artista incomparável, que não se cansa de trabalhar, enquanto não tem arredondado, polido, desbastado as arestas de nosso caráter. Para isso voltará tantas vezes à carga quantas sejam necessárias. E, sob a ação das marteladas repetidas, forçosamente a arrogância e a personalidade excessiva hão de cair nesse indivíduo; a moleza, a apatia e a indiferença desaparecerão em outro; a dureza, a cólera e o furor, num terceiro. Para todos terá processos diferentes, infinitamente variados segundo os indivíduos, mas em todos agirá com eficácia, de modo a provocar ou desenvolver a sensibilidade, a delicadeza, a bondade, a ternura, a fazer sair das dilacerações e das lágrimas alguma qualidade desconhecida que dormia silenciosa no fundo do ser ou então uma nobreza nova, adorno da alma, para sempre adquirida.

Quanto mais a alma se eleva, cresce, se faz bela, tanto mais a dor se espiritualiza e torna sutil. Os maus precisam de numerosas operações como as árvores de muitas flores para produzirem alguns frutos. Porém, quanto mais o ser humano se aperfeiçoa, tanto mais admiráveis se tornam nele os frutos da dor. Às almas gastas, mal desbastadas, tocam os sofrimentos físicos, as dores violentas; às egoístas, às avarentas hão de caber as perdas de fortuna, as negras inquietações, os tormentos do espírito. Depois, aos seres delicados, às mães, às filhas, às esposas, as torturas ocultas, as feridas do coração. Aos nobres pensadores, aos inspiradores, a dor sutil e profunda que faz brotar o grito sublime, o relâmpago do gênio!

Assim, por trás da dor, há alguém invisível que lhe dirige a ação e a regula segundo as necessidades de cada um, com uma arte, uma sabedoria infinitas, trabalhando por aumentar nossa beleza interior nunca acabada, sempre continuada, de luz em luz, de virtude em virtude, até que nos tenhamos convertido em Espíritos celestes.

Por mais admirável que possa parecer à primeira vista, a dor é apenas um meio de que usa o Poder Infinito para nos chamar a si e, ao mesmo tempo, tornar-nos mais rapidamente acessíveis à felicidade espiritual, única duradoura. É, pois, realmente, pelo amor que nos tem, que Deus envia o sofrimento. Fere-nos, corrige-nos como a mãe corrige o filho para educá-lo e melhorá-lo; trabalha incessantemente para tornar dóceis, purificar e embelezar nossas almas, porque elas não podem ser verdadeiras, completamente felizes, senão na medida correspondente às suas perfeições.

Para isso pôs Deus, nesta terra de aprendizagem, ao lado das alegrias raras e fugitivas, dores freqüentes e prolongadas, para nos fazer sentir que o nosso mundo é um lugar de passagem e não o ponto de chegada. Gozos e sofrimentos, prazeres e dores, tudo isso Deus distribuiu na existência como um grande artista que, na tela, combina a sombra e a luz para produzir uma obra-prima.

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O sofrimento nos animais é já um trabalho de evolução para o princípio de vida que existe neles; adquirem, por esse modo, os primeiros rudimentos de consciência; e o mesmo sucede com o ser humano nas suas reencarnações sucessivas. Se, desde as primeiras estadas na Terra, a alma vivesse livre de males, ficaria inerte, passiva, ignorante das coisas profundas e das forças morais que nela jazem.

O alvo a que nos dirigimos está à nossa frente; nosso destino é caminhar para ele sem nos demorarmos no caminho. Ora, as felicidades deste mundo imobilizaram-nos, há atrasos, há esquecimentos; mas quando a demora é excessiva, vem a dor e impele-nos para frente.

Desde que para nós se abre uma fonte de prazeres, por exemplo, na mocidade o amor, o matrimônio, e nos inebriamos no encanto das horas abençoadas, é bem raro que pouco depois não sobrevenha uma circunstância imprevista e o aguilhão faz-se sentir.

À medida que avançamos na vida, as alegrias diminuem e as dores aumentam; o corpo e o fardo da vida tornam-se mais pesados. Quase sempre a existência começa na felicidade e finda na tristeza. O declínio traz, para a maior parte dos homens, o período moroso da velhice com suas lassidões, enfermidades e abandonos. As luzes apagam-se; as simpatias e as consolações retiram-se; os sonhos e as esperanças desvanecem-se; abrem-se, cada vez mais numerosas, as covas em volta de nós. É então que vêm as longas horas de imobilidade, inação, sofrimento; obrigam-nos a refletir, a passar muitas vezes em revista os atos e as lembranças de nossa vida. É uma prova necessária para que a alma, antes de deixar seu invólucro, adquira a madureza, o critério e a clarividência das coisas que serão o remate de sua carreira terrestre. Por isso, quando amaldiçoamos as horas aparentemente estéreis e desoladas da velhice enferma, solitária, desconhecemos um dos maiores benefícios que a Natureza nos proporciona; esquecemos que a velhice dolorosa é o cadinho onde se completam as purificações.

Nesse momento da existência, os raios e as forças que, durante os anos da juventude e da virilidade, dispersávamos para todos os lados em nossa atividade e exuberância, concentram-se, convergem para as profundezas do ser, ativando a consciência e proporcionando ao homem mais sabedoria e juízo. Pouco a pouco vai-se fazendo a harmonia entre os nossos pensamentos e as radiações externas; a melodia íntima afina com a melodia divina.

Há, então, na velhice resignada, mais grandeza e mais serena beleza que no brilho da mocidade e no vigor da idade madura. Sob a ação do tempo, o que há de profundo, de imutável em nós, desprende-se e a fronte dos velhos aureola-se de claridades do Além.

A todos aqueles que perguntam: Para que serve a dor? respondo: Para polir a pedra, esculpir o mármore, fundir o vidro, martelar o ferro. Serve para edificar e ornar o templo magnífico, cheio de raios, de vibrações, de hinos, de perfumes, onde se combinam todas as artes para exprimirem o divino, prepararem a apoteose do pensamento consciente, celebrarem a libertação do Espírito!

E vede qual o resultado obtido! Com o que eram em nós elementos esparsos, materiais informes e, às vezes até, no vicioso e decaído, ruínas e destroços, a dor levantou, construiu no coração do homem um altar esplêndido à beleza moral, à verdade eterna!

A estátua, nas suas formas ideais e perfeitas, está escondida no bloco grosseiro. Quando o homem não tem a energia, o saber e a vontade de continuar a obra, então, dissemos, vem a dor. Ela pega no martelo, no cinzel e, pouco a pouco, a golpes violentos, ou, então, sob o vagaroso e persistente trabalho do buril, a estátua viva desenha-se em seus contornos flexíveis e maravilhosos. Sob o quartzo despedaçado cintila a esmeralda!

Sim, para que a forma se desenvolva em suas linhas puras e delicadas, para que o espírito triunfe da substância, para que o pensamento rebente em ímpetos sublimes e o poeta ache os acentos imortais, o músico os suaves acordes, precisam nossos corações do aguilhão do destino, do luto e das lágrimas, da ingratidão, das traições da amizade e do amor, das angústias e das dilacerações; são precisos os esquifes adorados que descem à terra, a juventude que foge, a gelada velhice que sobe, as decepções, as tristezas amargas que se sucedem. O homem precisa do sofrimento como o fruto da videira precisa do lagar para se lhe extrair o licor precioso!

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Consideremos ainda o problema da dor sob o ponto de vista das sanções penais.

Censuraram a Allan Kardec por ter em suas obras repisado a idéia de castigo e expiação, que suscitou numerosas críticas. Diz-se que ela dá uma falsa noção da ação divina; implica um luxo de punições incompatível com a suprema bondade.

Essa apreciação resulta de um exame muito superficial das obras do grande iniciador. A idéia, a expressão de castigo, excessiva talvez quando ligada a certas passagens insuladas, mal interpretadas em muitos casos, atenua-se e apaga-se quando se estuda a obra inteira.

É principalmente na consciência, bem o sabemos, que está a sanção do bem o do mal. Ela registra minuciosamente todos os nossos atos e, mais cedo ou mais tarde, erige-se em juiz severo para o culpado que, em conseqüência de sua evolução, acaba sempre por lhe ouvir a voz e sofrer as sentenças. Para o Espírito, as lembranças do passado unem-se no espaço ao presente e formam um todo inseparável; vive ele fora da duração, além dos limites do tempo, e sofre tão vivamente pelas faltas há muito cometidas como pelas mais recentes; por isso pede muitas vezes uma reencarnação rápida e dolorosa, que resgatará o passado, conquanto dê tréguas às recordações importunas.

Com a diferença de plano, o sofrimento mudará de aspecto. Na Terra será simultaneamente físico e moral e constituirá um modo de reparação; mergulhará o culpado em suas chamas para purificá-lo; tornará a forjar a alma, deformada pelo mal, na bigorna das provas. Assim, cada um de nós pode ou poderá apagar seu passado, as tristes páginas do princípio da sua história, as faltas graves cometidas quando era apenas Espírito ignorante ou arrebatado. Pelo sofrimento aprendemos a humildade, ao mesmo tempo que a indulgência e a compaixão para com todos os que sucumbem em volta de nós sob o impulso dos instintos inferiores, como tantas vezes nos sucedeu a nós mesmos outrora.

Não é, pois, por vingança que a lei nos pune, mas porque é bom e proveitoso sofrer, pois que o sofrimento nos liberta, dando satisfação à consciência, cujo veredicto ela executa.

Tudo se resgata e repara pela dor. Há, vimos, uma arte profunda nos processos que ela emprega para modelar a alma humana e, quando esta se transvia, reconduzi-la à ordem sublime das coisas.

Tem-se falado muitas vezes de uma pena de talião. Na realidade, a reparação não se apresenta sempre sob a mesma forma que a falta cometida; as condições sociais e a evolução histórica opõem-se a isso. Ao mesmo tempo que os suplícios da Idade Média, têm desaparecido muitos flagelos; todavia, a soma dos sofrimentos humanos apresenta-se, sob as suas formas variadas, inumeráveis, sempre proporcionada à causa que os produz. Debalde se realizam progressos, se estende a civilização, se desenvolvem a higiene e o bem-estar; doenças novas aparecem e o homem é impotente para curá-las. Cumpre reconhecer nisso a manifestação da lei superior de equilíbrio, da qual havemos falado. A dor será necessária enquanto o homem não tiver posto o seu pensamento e os seus atos de acordo com as leis eternas; deixará de se fazer sentir logo que se fizer a harmonia. Todos os nossos males provêm de agirmos num sentido oposto à corrente divina; se tornarmos a entrar nessa corrente, a dor desaparece com as causas que a fizeram nascer.

Por muito tempo ainda a humanidade terrestre, ignorante das leis superiores, inconsciente do futuro e do dever, precisará da dor para estimulá-la na sua via, para transformar o que nela predomina, os instintos primitivos e grosseiros, em sentimentos puros e generosos. Por muito tempo terá o homem de passar pela iniciação amarga para chegar ao conhecimento de si mesmo e do alvo a que deve mirar. Presentemente ele só cogita de aplicar suas faculdades e energias em combater o sofrimento no plano físico, a aumentar o bem-estar e a riqueza, a tornar mais agradáveis as condições da vida material; mas, será em vão. Os sofrimentos poderão variar, deslocar-se, mudar de aspecto; a dor persistirá, enquanto o egoísmo e o interesse regerem as sociedades terrestres, enquanto o pensamento se desviar das coisas profundas, enquanto a flor da alma não tiver desabrochado.

Todas as doutrinas econômicas e sociais serão impotentes para reformar o mundo, para aliviar os males da humanidade, porque assentam em base muito acanhada e porque põem só na vida presente a razão de ser, o fim da existência e de todos os esforços. Para acabar com o mal social é necessário elevar a alma humana à consciência do seu papel, fazer-lhe compreender que sua sorte somente dela depende e que sua felicidade será sempre proporcional à extensão de seus triunfos sobre si mesma e de sua dedicação às outras. Então a questão social será resolvida por meio da substituição do personalismo exclusivo e apertado pelo altruísmo. Os homens sentir-se-ão irmãos e iguais perante a Lei divina, que distribui a cada um os bens e os males necessários à sua evolução, os meios de vencer a si próprio e acelerar sua ascensão. Somente daí em diante a dor verá seu império restringir-se. Fruto da ignorância e da inferioridade, fruto do ódio, da inveja, do egoísmo, de todas as paixões animais que se agitam ainda no fundo do ser humano, desaparecerá com as causas que a produzem, graças a uma educação mais elevada, à realização em nós da beleza moral, da justiça e do amor.

O mal moral existe na alma somente em suas dissonâncias com a harmonia divina. Mas, à medida que ela sobe para uma claridade mais viva, para uma verdade mais ampla, para uma sabedoria mais perfeita, as causas do sofrimento vão-se atenuando, ao mesmo tempo que se dissipam as ambições vãs, os desejos materiais. E de estância em estância, de vida em vida, ela penetra na grande luz e na grande paz onde o mal é desconhecido e onde só reina o bem!

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Muitas vezes ouvimos certas pessoas, cuja existência foi penosa e eriçada de provações, dizerem: “Eu não queria renascer numa vida nova; não quero voltar à Terra.” Quando se sofreu muito, quando se foi violentamente sacudido pelas tempestades do mundo, é muito legítima a aspiração ao descanso. É compreensível que uma alma acabrunhada recue perante o pensamento de tornar a começar essa batalha da vida em que recebeu feridas que ainda sangram. Mas a lei é inexorável. Para subir um pouco na hierarquia dos mundos, é preciso ter deixado neste a embaraçosa bagagem dos gostos e dos apetites que nos prendem à Terra. Muitas vezes levamos conosco esses laços para o Além; e são eles que nos retêm nas baixas regiões. Às vezes julgamo-nos capazes e dignos de chegar às grandes altitudes e, sem o sabermos, mil cadeias acorrentam-nos ainda a este planeta inferior. Não compreendemos o amor em sua essência sublime, nem o sacrifício como é praticado nas humanidades purificadas, em que ninguém vive para si ou para alguns, mas para todos. Ora, só os que estão preparados para tal vida podem possuí-la. Para nos tornarmos dignos dela, será preciso desçamos de novo ao cadinho, à fornalha, onde se fundirão como cera as durezas do nosso coração. E quando tiverem sido rejeitadas, eliminadas as escórias de nossa alma, quando nossa essência estiver livre de liga, então Deus nos chamará para uma vida mais elevada, para uma tarefa mais bela.

Acima de tudo, cumpre aquilatar em seu justo valor os cuidados e as tristezas deste mundo. Para nós são coisas muito cruéis; mas, como tudo isso se amesquinha e apaga, se for observado de longe, se o Espírito, elevando-se acima das miudezas da existência, abarcar com um só olhar as perspectivas de seu destino! Só este sabe pesar e medir as coisas que existem nos dois oceanos do espaço e do tempo: a imensidade e a eternidade, oceanos que o pensamento sonda sem se perturbar!

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Ó vós todos que vos queixais amargamente das decepções, das pequeninas misérias, das tribulações de que está semeada toda a existência e que vos sentis invadidos pelo cansaço e pelo desânimo: se quereis novamente achar a resolução e a coragem perdidas, se quereis aprender a afrontar alegremente a adversidade, a suportar resignados a sorte que vos toca, lançai um olhar atento em torno de vós!

Considerai as dores tantas vezes ignoradas dos pequenos, dos deserdados, os sofrimentos de milhares de seres que são homens como vós; considerai essas aflições sem conta; cegos privados do raio que guia e conforta, paralíticos impotentes, corpos que a existência torceu, imobilizou, quebrou, que padecem de males hereditários! E os que carecem do necessário, sobre quem sopra, glacial, o inverno! Pensai em todas essas vidas tristes, obscuras, miseráveis; comparai vossos males muitas vezes imaginários com as torturas de vossos irmãos de dor, e julgar-vos-eis menos infelizes, ganhareis paciência e coragem e de vosso coração descerá sobre todos os peregrinos da vida, que se arrastam acabrunhados no caminho árido, o sentimento de uma piedade sem limites e de um amor imenso!

XXVII
Revelação pela dor

É principalmente perante o sofrimento que se mostra a necessidade, a eficácia de uma crença robusta, poderosamente assente, ao mesmo tempo, na razão, no sentimento e nos fatos, e que explique o enigma da vida, o problema da dor.

Que consolações podem o materialismo e o ateísmo oferecer ao homem atacado de um mal incurável? Que dirão para acalmar os desesperos, preparar a alma daquele que vai morrer? De que linguagem usarão com o pai e com a mãe ajoelhados diante do berço do filhinho morto, com todos aqueles que vêem descer à cova os esquifes dos entes queridos? Aqui se mostra toda a pobreza, toda a insuficiência das doutrinas do Nada.

A dor não é somente o critério, por excelência, da vida, o juiz que pesa os caracteres, as consciências, e dá a medida da verdadeira grandeza do homem. É também um processo infalível para reconhecer o valor das teorias filosóficas e das doutrinas religiosas. A melhor será, evidentemente, a que nos conforta, a que diz por que as lágrimas são quinhão da humanidade e fornece os meios de estancá-las. Pela dor descobre-se com mais segurança o lugar onde brilha o mais belo, o mais doce raio da verdade, aquele que não se apaga.

Se o universo não é mais do que um campo fechado, unicamente acessível às forças caprichosas e cegas da Natureza, uma odiosa fatalidade nos esmaga; se não há nele nem consciência, nem justiça, nem bondade, então a dor não tem sentido, não tem utilidade, não comporta consolações; só resta impor silêncio ao nosso coração despedaçado, porque seria pueril e vão importunar os homens e o Céu com os nossos lamentos!

Para todos aqueles cuja vida é limitada pelos estreitos horizontes do materialismo, o problema da dor é insolúvel; não há esperança para aquele que sofre.

Não é verdadeiramente coisa estranha a impotência de tantos sábios, filósofos, pensadores, há milhares de anos, para explicarem e consolarem a dor, para no-la fazerem aceitar quando é inevitável? Uns a negaram, o que é pueril; outros aconselharam o esquecimento, a distração, o que é vão e covarde, quando se trata da perda dos que amamos. Em geral, têm-nos ensinado a temê-la, a receá-la e detestá-la. Bem poucos a têm compreendido, bem poucos a têm explicado.

Por isso, em torno de nós, nas relações cotidianas pobres, banais e infantis se têm tornado as palavras de simpatia, as tentativas de consolação prodigalizadas àqueles que a desgraça tocou! Que frias palavras nos lábios, que falta de calor e de luz nos pensamentos e nos corações! Que fraqueza, que inanidade nos processos empregados para confortar as almas enlutadas, processos que antes lhes agravam e redobram os males, a tristeza. Tudo isso resulta unicamente da obscuridade que envolve o problema da dor, dos falsos dados vulgarizados pelas doutrinas negativistas e por certas filosofias espiritualistas. Com efeito, é próprio das teorias errôneas desanimarem, acabrunharem, ensombrarem a alma nas horas difíceis, em vez de lhe proporcionarem os meios de fazer frente ao destino com firmeza.

“E as religiões?” podem perguntar-nos. Sim, sem dúvida, as religiões acharam socorros espirituais para as almas aflitas; todavia, as consolações que oferecem assentam numa concepção demasiadamente acanhada do fim da vida e das leis do destino, como já por nós foi suficientemente demonstrado.

As religiões cristãs, principalmente, compreenderam o papel grandioso do sofrimento, mas exageram-no, desnaturam-lhe o sentido. O paganismo exprimia a alegria; seus deuses coroavam-se de flores e presidiam às festas; entretanto, os estóicos e, com eles, certas escolas secretas, consideravam já a dor como elemento indispensável à ordem do mundo. O Cristianismo glorificou-a, deificou-a no pessoa de Jesus. Diante da cruz do Calvário, a humanidade achou menos pesada a sua. A recordação do grande supliciado ajudou os homens a sofrer e a morrer; todavia, levando as coisas ao extremo, o Cristianismo deu à vida, à morte, à Religião, a Deus, aspectos lúgubres, às vezes terrificantes. É necessário reagir e restituir as coisas a seus termos, porque, em razão dos próprios excessos das religiões, estas vêem a cada dia restringir-se o seu império. O materialismo vai conquistando pouco a pouco o terreno que elas têm perdido; a consciência popular se obscurece e a noção do dever desfaz-se por falta de uma doutrina adaptada às necessidades do tempo e da evolução humana.

Diremos, por isso, aos sacerdotes de todas as religiões: Alargai o círculo de vossos ensinamentos; dai ao homem uma noção mais extensa de seus destinos, uma vista mais clara do Além, uma idéia mais elevada do alvo que ele deve atingir. Fazei-lhe compreender que sua obra consiste em construir por suas próprias mãos, com a ajuda da dor, a sua consciência, a sua personalidade moral, e isso através do infinito do tempo e do espaço. Se, na hora atual, vossa influência se enfraquece, se vosso poder está abalado, não é por causa da moral que ensinais, é por causa da insuficiência de vossa concepção da vida, que não mostra nitidamente a justiça nas leis e nas coisas e, por conseguinte, não mostra Deus. Vossas teologias encerraram o pensamento num círculo que o abafa; fixaram-lhe uma base demasiadamente restrita e, sobre essa base, todo o edifício vacila e ameaça desabar. Cessai de discutir textos e de oprimir as consciências; saí das criptas onde sepultastes o pensamento; caminhai e agi!

Ergue-se, cresce e se alastra uma nova doutrina, que vem ajudar o pensamento a executar sua obra de transformação. Esse novo espiritualismo contém todos os recursos necessários a consolar as aflições, enriquecer a filosofia, regenerar as religiões, atrair conjuntamente a estima do discípulo mais humilde e o respeito do gênio mais altivo.

Pode ela satisfazer aos mais nobres impulsos da inteligência e às aspirações do coração, explica, ao mesmo tempo, a fraqueza humana, o lado obscuro e atormentado da alma inferior entregue às paixões e proporciona-lhe os meios de elevar-se ao conhecimento e à plenitude.

Finalmente, constitui o remédio moral mais poderoso contra a dor. Na explicação que dá, nas consolações que vem oferecer ao infortúnio, acha-se a prova mais evidente, mais tocante de seu caráter verídico e de sua solidez inabalável.

Melhor que qualquer outra doutrina filosófica ou religiosa, revela-nos o grande papel do sofrimento e ensina-nos a aceitá-lo. Fazendo dele um processo de educação e reparação, mostra-nos a intervenção da justiça e do amor divinos em nossas próprias provações e males. Em vez dos desesperados, que as doutrinas negativistas fazem de nós, em vez de decaídos, de réprobos ou malditos, o Espiritismo apresenta, nos desgraçados, simples aprendizes, simples neófitos que a dor ilumina e inicia, candidatos à perfeição, à felicidade.

Dando à vida um alvo infinito, o novo Espiritualismo oferece-nos uma razão de viver e de sofrer que nos faz reconhecer meritório se viva e sofra, numa palavra, um objetivo digno da alma e digno de Deus. Na desordem aparente e na confusão das coisas, mostra-nos a ordem que, lentamente, se vai esboçando e realizando, o futuro que se vai elaborando no presente e, acima de tudo, a manifestação de uma imensa e divina harmonia!

E vede as conseqüências desse ensinamento. A dor perde o seu aspecto terrífico; deixa de ser um inimigo, um monstro temível; torna-se um auxiliar e o seu papel é providencial. Purifica, engrandece e refunde o ser em sua chama, reveste-o de uma beleza que não se lhe conhecia. O homem, a princípio admirado e inquieto com o seu aspecto, aprende a conhecê-la, a apreciá-la, a familiarizar-se com ela; acaba quase por amá-la. Certas almas heróicas, em vez de se afastarem dela, de a evitarem, vão-lhe ao encontro para nela livremente se embeberem e regenerarem.

O destino, em virtude de ser ilimitado, prepara-nos possibilidades sempre novas de melhoramento. O sofrimento é apenas um corretivo aos nossos abusos, aos nossos erros, incentivo para a nossa marcha. Assim, as leis soberanas mostram-se perfeitamente justas e boas; não infligem a ninguém penas inúteis ou imerecidas. O estudo do universo moral enche-nos de admiração pelo poder que, mediante o emprego da dor, transforma pouco a pouco as forças do mal em forças do bem, faz sair do vício a virtude, do egoísmo o amor!

Daí em diante, certo do resultado de seus esforços, o homem aceita com coragem as provas inevitáveis. Pode vir a velhice, a vida declinar e rolar pelo declive rápido dos anos; sua fé ajuda-o a atravessar os períodos acidentados e as horas tristes da existência. À medida que esta decai e se vai envolvendo de névoas, vai-se fazendo mais viva a grande luz do Além e os sentimentos de justiça, de bondade e de amor, que presidem ao destino de todos os seres, tornam-se para ele força nas horas de desalento e tornam-lhe mais fácil a preparação para a partida.

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Para o materialista e até para muitos crentes, o falecimento dos seres amados cava entre eles e nós um abismo que nada pode encher, abismo de sombra e treva onde não brilha nenhum raio, nenhuma esperança. O protestante, incerto do destino deles, nem mesmo por seus mortos ora. O católico, não menos ansioso, pode recear para os seus o juízo que para sempre separa os eleitos dos réprobos.

Aí está, porém, a nova doutrina com suas certezas inabaláveis. Para aqueles que a têm adotado, a morte, como a dor, não traz pavores. Cada cova que se abre é uma porta de libertação, uma saída franca para a liberdade dos Espaços; cada amigo que desaparece vai preparar a morada futura, balizar a estrada comum em que todos nos havemos de reunir; só aparentemente há separação. Sabemos que essas almas não nos deixarão para sempre; íntima comunhão pode estabelecer-se entre elas e nós. Se suas manifestações na ordem sensível encontram obstáculos, podemos pelo menos corresponder-nos com elas pelo pensamento.

Conheceis a lei telepática; não há grito, lágrima, apelo de amor, que não tenha sua repercussão e sua resposta. Solidariedade admirável das almas por quem oramos e que oram por nós, permutas de pensamentos vibrantes e de chamamentos regeneradores, que atravessam o espaço e embebem os corações angustiados em radiações de força e esperança e nunca deixam de chegar ao alvo!

Julgáveis sofrer sozinhos, mas não é assim. Junto de vós, em torno de vós e até na extensão sem limites, há seres que vibram ao vosso sofrer e participam de vossa dor. Não a torneis demasiadamente viva, por amor deles.

À dor, à tristeza humana, deu Deus por companheira a simpatia celeste, e essa simpatia toma, muitas vezes, a forma de um ser amado que, nos dias de provação, desce, cheio de solicitude, e recolhe cada uma das nossas dores para com elas nos tecer uma coroa de luz no espaço.

Quantos esposos, noivos, amantes, separados pela morte, vivem em nova união mais apertada e infinita! Nas horas de aflição, o Espírito de um pai, de uma mãe, todos os amigos do Céu se inclinam para nós e nos banham as frontes com seus fluidos suaves e afetuosos; envolvem-nos os corações em tépidas palpitações de amor. Como nos entregarmos ao mal ou ao desespero, em presença de tais testemunhas, certos de que elas vêem as nossas inquietações, lêem nossos pensamentos, nos esperam e se aprontam para nos receberem nos portões da imensidade!

Ao deixarmos a Terra, iremos encontrá-los todos e, com eles, ainda maior número de Espíritos amigos, que havíamos esquecido durante a nossa estada na Terra, a multidão daqueles que compartilharam das nossas vidas passadas e compõem nossa família espiritual.

Todos os nossos companheiros da grande viagem eterna agrupar-se-ão para nos acolherem, não como pálidas sombras, vagos fantasmas, animados de uma vida indecisa, mas na plenitude das suas faculdades aumentadas, como seres ativos, continuando a interessar-se pelas coisas da Terra, tomando parte na obra universal, cooperando em nossos esforços, em nossos trabalhos, em nossos projetos.

Os laços do passado reatar-se-ão com maior força. O amor, a amizade, a paternidade, outrora esboçados em múltiplas existências, cimentar-se-ão com os compromissos novos tomados, em vista do futuro, a fim de aumentar incessantemente e de elevar à suprema potência os sentimentos que nos unem a todos. E as tristezas das separações passageiras, o afastamento aparente das almas, causados pela morte, fundir-se-ão em efusões de felicidade no enlevo dos regressos e das reuniões inefáveis.

Não deis, pois, crédito algum às sombrias doutrinas que vos falam de leis ferrenhas, ou então de condenação, de inferno e paraíso, afastando uns dos outros e para sempre aqueles que se amaram.

Não há abismo que o amor não possa encher. Deus, que é todo amor, não podia condenar à extinção o sentimento mais belo, o mais nobre de todos os que vibram no coração do homem. O amor é imortal como a própria alma.

Nas horas de sofrimento, de angústia, de acabrunhamento, concentrai-vos e, por invocação ardente, atraí a vós os seres que foram, como nós, homens e que são agora Espíritos celestes, e forças desconhecidas penetrarão em vós e ajudar-vos-ão a suportar vossos males e misérias.

Homens, pobres viajantes que trilhais penosamente a subida dolorosa da existência, sabei que por toda parte em nosso caminho seres invisíveis, poderosos e bons, caminham a nosso lado. Nas passagens difíceis seus fluidos amparadores sustentam nossa marcha vacilante. Abri-lhes vossas almas, ponde vossos pensamentos de acordo com os seus e logo sentireis a alegria de sua presença; uma atmosfera de paz e bênção envolver-vos-á; suaves consolações descerão para vós.

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Em meio às provações, as verdades que acabamos de recordar não nos dispensam das emoções e das lágrimas; seria contra a Natureza. Ensinam-nos pelo menos a não murmurarmos, a não ficarmos acabrunhados sob o peso da dor, afastam de nós os funestos pensamentos de revolta, de desespero ou de suicídio que muitas vezes enxameiam no cérebro dos niilistas. Se continuamos a chorar, é sem amargura e sem blasfêmia.

Mesmo quando se trata do suicídio de mancebos arrebatados pelo ardor de suas paixões, diante da dor imensa de uma mãe, o Neo-Espiritualismo não fica impotente, derrama também a esperança nos corações angustiados, proporcionando-lhes, pela oração e pelo pensamento ardente, a possibilidade de aliviarem essas almas, que flutuam nas trevas espirituais entre a Terra e o espaço, ou permanecem confinadas, por seus fluidos grosseiros, aos meios em que viveram; atenua-lhes a aflição, dizendo-lhes que nada há de irreparável, nada definitivo no mal. Toda evolução contrariada retoma seu curso quando o culpado pagou sua dívida à justiça.

Em tudo essa doutrina nos oferece uma base, um ponto de apoio, donde a alma pode levantar o vôo para o futuro e se consolar das coisas presentes com a perspectiva das futuras. A confiança e a fé em nossos destinos projetam em nossa frente uma luz que ilumina o carreiro da vida, fixa-nos o dever, alarga nossa esfera de ação e nos ensina como devemos proceder com os outros. Sentimos que há no universo uma força, um poder, uma sabedoria incomparáveis e sentimos também que nós mesmos fazemos parte dessa força e desse poder de que descendemos.

Compreendemos que as vistas de Deus sobre nós, seu plano, sua obra, seu objetivo, tudo tem princípio e origem no seu amor. Em todas as coisas Deus quer nosso bem e para alcançá-lo segue caminhos, ora claros, ora misteriosos, mas constantemente apropriados a nossas necessidades. Se nos separa daqueles que amamos, é para fazer-nos achar mais vivas as alegrias do regresso. Se deixa que passemos por decepções, abandonos, doenças, reveses, é para obrigar-nos a despregar a vista da Terra e elevá-la para Ele, a procurar alegrias superiores àquelas que podemos provar neste mundo.

O universo é justiça e amor. Na espiral infinita das ascensões, a soma dos sofrimentos, divina alquimia, converte-se, lá em cima, em ondas de luz e torrentes de felicidade.

Não tendes notado no âmago de certas dores um travo particular e tão característico em que não é possível deixar de reconhecer uma intervenção benfazeja? Algumas vezes a alma ferida vê brilhar uma claridade desconhecida, tanto mais viva quanto maior é o desastre. Com um só golpe da dor levanta-se a tais alturas onde seriam necessários vinte anos de estudos e esforços para chegar.

Não posso resistir ao desejo de citar dois exemplos, entre muitos outros que me são conhecidos. Trata-se de dois indivíduos que depois foram meus amigos, pais de duas meninas encantadoras que eram toda a sua alegria neste mundo e que a morte arrebatou brutalmente em alguns dias. Um é oficial superior na Região de Leste. Sua filha mais velha possuía todos os dotes de inteligência e de beleza. De caráter sério, desprezava, de bom grado, os prazeres da sua idade e tomava parte nos trabalhos de seu pai, escritor, militar e publicista de talento. Havia-lhe ele dedicado, por essa razão, um afeto que ia até ao culto. Em pouco tempo uma doença irremediável arrebatava a donzela à ternura dos seus. Entre os seus papéis foi encontrado um caderno com o seguinte título: “Para meu pai quando eu já não existir.” Posto que gozasse de perfeita saúde no momento em que traçara essas páginas, tinha o pressentimento de sua morte próxima e dirigia ao pai consolações comovedoras. Graças a um livro que este descobriu na secretária da filha, entramos em relações. Pouco a pouco, procedendo com método e persistência, fez-se médium vidente e hoje possui, não somente a graça de estar iniciado nos mistérios da sobrevivência, mas também a de tornar a ver muitas vezes a filha perto de si e de receber os testemunhos do seu amor. Yvonne (Espírito) comunica-se igualmente com seu noivo e com um de seus primos, oficial subalterno no Regimento de seu pai. Essas manifestações completam-se e verificam-se umas pelas outras e são também percebidas por dois animais domésticos, assim como o atestam as cartas do general.[21]

O segundo caso é o do negociante Debrus, de Valence, cuja única filha, Rose, nascida muitos anos depois do matrimônio, era ternamente amada. Todas as esperanças do pai e da mãe concentravam-se na filha estimada; mas, aos doze anos, foi a menina bruscamente atacada de uma meningite aguda, que a levou. Inexprimível foi o desespero dos pais e a idéia do suicídio mais de uma vez visitou o espírito do pobre pai. Cobrou, porém, ânimo devido a alguns conhecimentos que tinha do Espiritismo e teve a alegria de tornar-se médium. Atualmente, comunica com a filha sem intermediário, livremente e com segurança. Esta intervém freqüentes vezes na vida íntima dos seus e produz, às vezes, ao redor deles, fenômenos luminosos de grande intensidade.

Uns e outros nada sabiam do Além e viviam numa culpada indiferença a respeito dos problemas da vida futura e do destino. Agora, fez-se para eles a luz. Depois de haverem sofrido, foram consolados e consolam, por sua vez, os outros, trabalhando por difundir a verdade em volta de si, impressionando todos os que deles se aproximam pela elevação de suas vistas e pela firmeza de suas convicções. Suas filhas voltaram-lhes transfiguradas e radiantes. E eles chegaram a compreender por que Deus os havia separado e como lhes prepara uma vida comum na luz e na paz dos espaços. Eis a obra da dor!

*

Para o materialista, convém repeti-lo, não há explicação para o enigma do mundo nem para o problema da dor. Toda a magnífica evolução da vida, todas as formas de existência e de beleza lentamente desenvolvidas no decurso dos séculos, tudo isto, a seus olhos, é devido ao capricho de um acaso cego e não tem outra saída além do nada. No fim dos tempos será como se a humanidade nunca tivesse existido. Todos os seus esforços para elevar-se a um estado superior, todas as suas queixas, sofrimentos, misérias acumuladas, tudo se desvanecerá como uma sombra, tudo terá sido inútil e vão.

Nós, porém, que temos a certeza da vida futura e do mundo espiritual, em vez da teoria da esterilidade e do desespero, vemos no universo o imenso laboratório onde se afina e apura a alma humana, através das existências alternativamente celestes e terrestres. O objetivo das últimas é um só: a educação das Inteligências associadas aos corpos. A matéria é um instrumento de progresso: o que nós chamamos o mal, a dor, é simplesmente um meio de elevação.

O “eu” é coisa odiosa, tem-se dito; todavia, permita-se-me uma confissão. De cada vez que o anjo da dor me tocou com a sua asa, senti agitarem-se em mim potências desconhecidas, ouvi vozes interiores entoarem o cântico eterno da vida e da luz; agora, depois de ter compartilhado de todos os males de meus companheiros de viagem, bendigo o sofrimento. Foi ele que amoldou meu ser, que me fez obter um critério mais seguro, um sentimento mais exato das altas verdades eternas. Minha vida foi mais de uma vez sacudida pela desgraça, como o carvalho pela tempestade; mas, nenhuma prova deixou de me ensinar a conhecer-me um pouco mais, a tomar maior posse de mim.

Chega a velhice; aproxima-se o termo da minha obra. Após cinqüenta anos de estudos, de trabalho, de meditação, de experiência, é-me grato poder afirmar a todos aqueles que sofrem, a todos os aflitos deste mundo que há no universo uma justiça infalível. Nenhum de nossos males se perde; não há dor sem compensação, trabalho sem proveito. Caminhamos todos através das vicissitudes e das lágrimas para um fim grandioso fixado por Deus e temos a nosso lado um guia seguro, um conselheiro invisível para nos sustentar e consolar.

Homem, meu irmão, aprende a sofrer, porque a dor é santa! Ela é o mais nobre agente da perfeição. Penetrante e fecunda, é indispensável à vida de todo aquele que não quer ficar petrificado no egoísmo e na indiferença. Esta é uma verdade filosófica: Deus envia o sofrimento àqueles a quem ama. “Eu sou escravo – dizia Epicteto –, aleijado, um outro Irus em pobreza e miséria e, todavia, amado dos deuses.”

Aprende a sofrer. Não te direi: procura a dor. Mas, quando ela se erguer inevitável em teu caminho, acolhe-a como uma amiga. Aprende a conhecê-la, a apreciar-lhe a beleza austera, a entender-lhe os secretos ensinamentos. Estuda-lhe a obra oculta. Em vez de te revoltares contra ela ou de ficares acabrunhado, inerte e fraco debaixo de sua ação, associa tua vontade, teu pensamento ao alvo a que ela visa, procura tirar dela, em sua passagem por tua vida, todo o proveito que ela pode oferecer ao espírito e ao coração.

Esforça-te por seres a teu turno um exemplo para os outros; por tua atitude na dor, pelo modo voluntário e corajoso por que a aceites, por tua confiança no futuro, torna-a mais aceitável aos olhos dos outros.

Numa palavra, faze a dor mais bela. A harmonia e a beleza são leis universais e nesse conjunto a dor tem o seu papel estético. Seria pueril enraivecermo-nos contra esse elemento necessário à beleza do mundo. Exaltemo-la antes, com vistas e esperanças mais elevadas! Vejamos nela o remédio para todos os vícios, para todas as decadências, para todas as quedas!

Vós todos que vergais sob o peso do fardo de vossas provações ou que chorais em silêncio, aconteça o que acontecer, nunca desespereis. Lembrai-vos de que nada sucede debalde, nem sem causa; quase todas as nossas dores vêm de nós mesmos, de nosso passado e abrem-nos os caminhos do Céu. O sofrimento é um iniciador; revela-nos o sentido grave, o lado sério e imponente da vida. Esta não é uma comédia frívola, mas uma tragédia pungente; é a luta para a conquista da vida espiritual e, nessa luta, o que há de maior é a resignação, a paciência, a firmeza, o heroísmo. No fundo, as lendas alegóricas de Prometeu, dos Argonautas, dos Niebelungem, os mistérios sagrados do oriente não têm outro sentido.

Um instinto profundo faz-nos admirar aqueles cuja existência não é senão um combate perpétuo contra a dor, um esforço constante para escalarem as abruptas ladeiras que conduzem aos cimos virgens, aos tesouros inviolados; e não admiramos somente o heroísmo que se patenteia, as ações que provocam o entusiasmo das multidões, mas também a luta obscura e oculta contra as privações, a doença, a miséria, tudo o que nos desata dos laços materiais e das coisas transitórias.

Dar tensão às vontades; retemperar os caracteres para os combates da vida; desenvolver a força de resistência; afastar da alma da criança tudo o que pode amolentá-la; elevar o ideal a um nível superior de força e grandeza – eis o que a educação moderna deveria adotar como objetivo essencial; mas, em nossa época, tem-se perdido o hábito das lutas morais para se procurarem os prazeres do corpo e do espírito; por isso a sensualidade extravasa de nós, os caracteres aviltam-se, a decadência social acentua-se.

Ergamos os pensamentos, os corações, as vontades! Abramos nossas almas aos grandes sopros do espaço! Levantemos nossas vistas para o futuro sem limites; lembremo-nos de que esse futuro nos pertence, nossa tarefa é conquistá-lo.

Vivemos em tempos de crise. Para que as inteligências se abram às novas verdades, para que os corações falem, serão necessários avisos ruidosos; serão precisas as duras lições da adversidade. Conheceremos dias sombrios e períodos difíceis. A desgraça aproximará os homens; só a dor verdadeiramente lhes faz sentir que são irmãos.

Parece que as sociedades seguem um caminho orlado de precipícios. O alcoolismo, a imoralidade, o suicídio, o crime e a anarquia fazem as suas devastações. A cada instante surgem escândalos, despertando curiosidades novas, remexendo o lodo onde fermentam as corrupções; o pensamento rasteja.

A alma da França, que foi muitas vezes a iniciadora dos povos, o seu guia na via sagrada, sofre por sentir que vive num corpo viciado. Ó alma viva da França, separa-te desse invólucro gangrenado, evoca as grandes recordações, os altos pensamentos, as sublimes inspirações do teu gênio. Porque o teu gênio não está morto, dormita. Amanhã despertará!

A decomposição precede a renovação. Da fermentação social sairá outra vida, mais pura e mais bela. Ao influxo da Idéia Nova, a sociedade humana encontrará de novo a crença e a confiança. Levantar-se-á maior e mais forte para realizar sua obra neste mundo.


Profissão de fé do século XX

No ponto de evolução a que o pensamento humano chegou; considerando, do alto dos sistemas filosóficos e religiosos, o problema formidável do ser, do universo e do destino, em que termos poderiam resumir-se as noções adquiridas, numa palavra, qual poderia ser o Credo filosófico do século XX?

Já tentei resumir no livro Depois da Morte, à guisa de conclusão, os princípios essenciais do Espiritismo moderno. Se dermos a esse trabalho nova forma, adotando por base, como o fez Descartes, a própria noção do ser pensante, mas desenvolvendo-a e ampliando-a, poderemos dizer:

1 – O primeiro princípio do conhecimento é a idéia do Ser (inteligência e vida). A idéia do ser impõe-se: Eu sou! Essa afirmação é indiscutível. Não podemos duvidar de nós mesmos. Mas essa idéia, por si só, não é suficiente; deve completar-se com a idéia de ação e vida progressiva: Eu sou e quero ser, cada vez mais e melhor!

O Ser, em seu “eu” consciente – a alma –, é a única unidade viva, a única mônada indivisível e indestrutível, de substância simples, que debalde se procura na matéria, porque só existe em nós mesmos. A alma permanece invariável em sua unidade através dos milhares e milhares de formas, dos milhares de corpos de carne que constrói e anima para as necessidades de sua evolução eterna; é sempre diferente pelas qualidades adquiridas e pelos progressos realizados, cada vez mais consciente e livre na espiral infinita de suas existências planetárias e celestes.

2 – Entretanto, a alma só em metade pertence a si mesma. Pela outra metade ao universo, ao todo de que faz parte. Por isso só pode chegar ao inteiro conhecimento de si mesma pelo estudo do universo.

A aquisição desse duplo conhecimento é a própria razão e o objeto de sua vida, de todas as suas vidas, pois a morte é simplesmente a renovação das forças vitais necessárias para mais uma nova fase.

3 – O estudo do universo demonstra, logo à primeira vista, que uma ação superior, inteligente, soberana, governa o mundo.

O caráter essencial dessa ação, pelo próprio fato de sua perpetuidade, é a duração. Pela necessidade de ser absoluta, essa duração não poderia comportar limites: daí a eternidade.

4 – A Eternidade, viva e agente, implica o ser eterno e infinito: Deus, causa primária, princípio gerador, origem de todos os seres. Dizemos eterno e infinito, porque o ilimitado na duração implica matematicamente o ilimitado na extensão.

5 – A ação infinita está ligada às necessidades da duração. Ora, onde há ligação, relação, há lei.

A lei do universo é a conservação, é a ordem e a harmonia. Da ordem deriva o bem; da harmonia deriva a beleza.

O fim mais elevado do universo é a beleza sob todos os seus aspectos: material, intelectual, moral. A justiça e o amor são seus meios. A beleza, em sua essência, é, pois, inseparável do bem e ambas, por sua estreita união, constituem a verdade absoluta, a inteligência suprema, a perfeição!

6 – O objetivo da alma, em sua evolução, é atingir e realizar em si e em volta de si, através dos tempos e das estações ascendentes do universo, pelo desabrochar das potências que possui em gérmen, essa noção eterna do belo e do bem, que exprime a idéia de Deus, a própria idéia de perfeição.

7 – Da lei da ascensão, bem entendida, deriva a explicação de todos os problemas do ser: a evolução da alma, que recebe, primeiramente, pela transmissão atávica, todas as suas qualidades ancestrais, depois as desenvolve por sua ação própria, para lhes acrescentar novas qualidades; a liberdade relativa do ser relativo no Ser absoluto; a formação lenta da consciência humana através dos séculos e seus desenvolvimentos sucessivos nos infinitos do porvir; a unidade de essência e a solidariedade eterna das almas, em marcha para a conquista dos altos cimos.

– FIM –

Notas:


[1] Ver W. James, Reitor da Universidade Harvard, L'Expérience Religieuse, págs. 86, 87. Tradução francesa de Abauzit. Félix Alcan, editor, Paris, 1906.

[2] Ver Depois da Morte, Cap. XXXII, “A vontade e os fluidos” e No Invisível, cap. XV.

[3] Dr. Warlomont - Louise Lateau, la stigmatisée de Bois-d'Haine, Bruxelas, 1873.

[4] P. Janet, “Une extatique”, Bulletin de 1'Institut Psychologique, julho, agosto, setembro de 1901.

[5] Ver, entre outros, o Bulletin de la Société Psychique de Marseille, outubro de 1903.

[6] W. James - L'Expérience Religieuse, págs. 421 e 429.

[7] Capitulo III.

[8] W. James - L'Expérience Religieuse, pág. 436.

[9] Idem, ibidem, pág. 329.

[10] W. James - L'Expérience Religieuse, pág. 160.

[11] Idem, ibidem, pág. 178.

[12] Ver a obra de Gérard Harry sobre Helen Keller. - Livraria Larousse, com prefácio de Mme. Maëterlinck.

[13] Ver Annales des Sciences Peychiques, outubro de 1906, págs. 611, 613.

[14] William James - L'Expérience Religieuse, pág. 355.

[15] William James - L'Expérience Religieuse, pág. 325 e 358.

[16] A. de Rochas - Les Vies Successives, pág. 499.

[17] Ver, sobre esse assunto, a obra Enigmas da Psicometria, de Ernesto Bozzano (N.E.).

[18] Apercepção: intuição; faculdade de apreender imediatamente pela consciência uma idéia, um juízo (N.E.).

[19] Ver, No Invisível, cap. XIX.

[20] Cap. XXI - A Consciência – O sentido íntimo.

[21] Essas cartas estão publicadas in extenso em minha brochura O Além e a Sobrevivência do Ser, págs. 27 e seguintes.

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