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Ernesto Bozzano
A Morte e os seus Mistérios
Théodore Rousseau
Vista da Ile-de-França
Conteúdo resumido
Esta obra reúne três monografias de Ernesto Bozzano, parte de um numeroso conjunto de obras desse grande cientista:
1) - Ernesto Bozzano dedicou uma vasta pesquisa no estudo sobre esta mediunidade de efeitos físicos (Transfiguração) através da coleta de casos ocorridos com determinados médiuns em diversos países da América e da Europa. A transfiguração consiste na mudança do aspecto do corpo do médium, o que significa imprimir em sua matéria semelhanças de fisionomia, expressão, olhar e até mesmo timbre de voz, que varia de acordo com o grau moral do espírito e também do médium.
2) - Ernesto Bozzano dedicou uma vasta pesquisa no estudo sobre a mediunidade de efeitos físicos - Marcas e impressões supranormais de mãos de fogo (A parapirogenia) em casos ocorridos em determinadas épocas da humanidade e também dentro da literatura clássica espírita. A parapirogenia é um fenômeno aonde ocorre a combustão espontânea, ou seja, a queima inexplicável de objetos ou pessoas.
3) - Ernesto Bozzano nos leva a conhecer diversos tipos de casos onde a proeminência da morte está por acontecer e durante a crise de separação do espírito e do organismo somático, aonde se passam, diante da visão espiritual do agonizante, como em "visão panorâmica", isto é, na sucessão mais rápida e quase instantânea, todos os episódios da vida terrestre do moribundo. Eles desfilam em ordem regular, seja em sentido inverso, seja em sentido direto, começando então na primeira juventude e chegando aos últimos dias da vida, e se apresentam objetivamente, em forma "pictográfica".
Prefácio
"Ler um livro de Ernesto Bozzano é penetrar em um mundo desconhecido e conhecer faces novas da Doutrina dos Espíritos; é iluminar-se o leitor de conhecimentos nobres e extremamente belos, os quais vivem a cada passo em nosso derredor sem que sequer o suspeitemos. Infelizmente, porém, esse admirável analista espírita, bom, desinteressado, humilde de coração e generoso como todo iluminado a serviço da Verdade Divina, é desconhecido da maioria dos espíritas que pouco se dedicam ao conhecimento das obras doutrinas clássicas, e fogem à pesquisa bem orientada."
"Ernesto Bozzano é um mestre eminente, uma base sólida para o prosseguimento da pesquisa, digno de ser conhecido e entendido por nós outros, que apenas vemos e sentimos os fatos, sem poder classificá-los na sua verdadeira categoria científica. A questão, longe de haver terminado, permanece aberta aos progressos dos estudos psíquicos" (trechos do artigo "Música transcendental" do Sr. Frederico Francisco, publicado no n.° de junho de 1976 do jornal "Obreiros do Bem", órgão de comunicação da Associação Espírita Obreiros do Bem, do Rio de Janeiro.)
Ernesto Bozzano, o grande Mestre da Ciência da Alma, escreveu os trabalhos constantes deste volume nos tempos áureos do Espiritismo Científico, isto é, quando se procuravam provas concretas da sobrevivência da alma e de sua comunicação com os vivos da Terra. Hoje, particularmente no Brasil, parece que se bastam as obras mediúnicas, esquecendo-se de que há ainda muita gente incrédula, os Tomés de todos os tempos. Estes querem provas e, se as sessões de efeitos físicos rareiam, temos estes admiráveis trabalhos de Bozzano que vimos traduzindo e publicando.
Isto vimos fazendo principalmente porque, depois da II Grande Guerra Mundial, travada, em grande parte, na Europa, o Espiritismo, com as Pesquisas Psíquicas, devido a ditaduras políticas e religiosas, lá desapareceu quase por completo, sendo mesmo proibido em Portugal e na Espanha, e, na Itália, terra do grande Bozzano, só pôde surgir mais tarde apenas com o nome de Metapsíquica. Tivemos, por nossa vez, um Espiritismo de catacumbas, como os primeiros cristãos.
Já na Inglaterra, por ser um país protestante e separado do continente, sem a influência católica (os perseguidos transformados em perseguidores), o Espiritismo, lá chamado de Espiritualismo por não seguir ainda a Codificação Kardecista, continuou a ser pregado e praticado, tornando-se, graças a Lorde Dowding, o Marechal do Ar, que, com os seus aviões, salvou a Inglaterra do domínio nazista, reconhecido como religião em pé de igualdade com as demais.
Como, de livros de Espiritismo Científico, só podemos ler alguns em tradução no português, a não ser que conheçamos o inglês, pois são muitos os publicados na Inglaterra e nos Estados Unidos da América, certos estamos de que, traduzindo e publicando mais algumas das estupendas monografias do Grande Mestre da Ciência da Alma, estamos contribuindo muito para a manutenção dos alicerces do magnífico edifício que vem sendo construído para a elevação do Homem no planeta Terra.
Estas singelas palavras são de um velho Advogado da Sobrevivência, que nunca cobrou nem espera receber honorários de qualquer espécie. Dever cumprido, apenas.
Francisco Klors Werneck
1ª Monografia
Impressionantes fenômenos de "transfiguração"
O primeiro a tratar dos fenômenos de "transfiguração" foi Allan Kardec, que, no "Livro dos Médiuns" (cap. VI, n° 122); assim os define: "Os fenômenos de "transfiguração" consistem na mudança de aspecto do corpo de um vivo." Contudo, quase sempre a mudança de aspecto é circunscrita aos traços do rosto do médium, mudança que pode consistir em uma transfiguração do semblante, por contração e adaptação dos músculos faciais, contração determinada por uma vontade qualquer, subconsciente ou extrínseca, como pode resultar uma transfiguração do semblante, no qual já se encontre um princípio de materialização ectoplásmica sob a forma de barba, de bigodes, de "sinais", de cicatrizes, ou outros característicos, surgidos inesperadamente sobre o rosto do médium ou também de uma completa máscara sobreposta ao mesmo.
Os fenômenos de "transfiguração" existem, embora se mostrem entre os mais raros da casuística metapsíquica e, por isto, no momento, apresentam escasso valor científico, porquanto as condições em que são observados dependem muito da perspicácia e do estado de ânimo dos observadores, apresentando o flanco a legítimas dúvidas e cepticismos, ao menos na maior parte dos casos. Resulta daí que, até que se consiga fixá-las numa chapa fotográfica, não é o caso de se falar de sua investigação científica. (1) Todavia, repito que tais fenômenos existem e, como em todos os ramos do saber, a observação espontânea das manifestações que lhe constituem o material bruto precede sempre a pesquisa sistemática das mesmas manifestações, resultando de tal forma o necessário incentivo à intervenção científica, não será inútil recolher certo número de episódios do gênero, para extrair deles algumas deduções interessantes, pois que os fenômenos em exame se prestam a esclarecer de modo notável os fenômenos correspondentes das "materializações integrais de fantasmas, independentes do organismo do médium" e assim se deveria dizer que tudo concorre para demonstrar como a "transfiguração" nada mais é que uma fase inicial da "materialização".
(1) - Depois que Bozzano escreveu esta monografia já se conseguiram tirar várias fotografias de fenômenos produzidos pela Senhora Bullock (N. T.).
Desenvolverei a seu tempo este último conceito, o qual se mostra teoricamente instrutivo.
Passando à citação dos casos, começo por narrar alguns pertencentes ao grupo das transfigurações por contração e adaptação dos músculos faciais, grupo pouco interessante, porquanto com a sugestão hipnótica seria possível obter algo de semelhante, se bem exista, na realidade, uma radical diferença entre as duas ordens de fatos.
Tiro os poucos exemplos, que me apresto a referir, de recentíssimos relatos do gênero, abandonando os de data antiga, com o intuito de atenuar, até onde possível, as legítimas dúvidas teóricas relativas a uma classe de manifestações muito dependentes da perspicácia e do estado emocional dos observadores. Para dizer a verdade, seria injusto afirmar que os observadores de setenta anos passados fossem mais impressionáveis que os atuais, mas, de qualquer maneira, existe o hábito de preferir sempre relatos de data recente e é unicamente por isto que me resolvo a suprimir os casos de data antiga.
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CASO I - O Rev. Walter Wynn, na obra intitulada Rupert lives (Roberto vive), em que narra as manifestações do seu falecido filho, por meio de diversos médiuns, assim se refere a uma sessão com o médium Srta. Mac Creadie:
"Há outros espíritos em torno de vós que desejam falar convosco, continuou a Srta. Mac Creadie". De repente o médium parece mudar-se em outra pessoa e comecei a experimentar uma sensação que até esse momento jamais conhecera e que não desejo sentir de novo. Digo com toda a sinceridade, digo mesmo com certa convicção, era como se a Srta. Mac Creadie tivesse tomado a aparência de minha mãe. A cabeça inclinada, a tosse, a mão estendida para mim, tudo isto representava minha progenitora com perfeição; e ela me disse: "Meu filho! Meu filho! quero sempre ser sua mãe!"
Isto foi tão inesperado que não experimentei nenhuma emoção. Eu estava inteiramente calmo. A visão durou muito pouco tempo, depois desapareceu." (pág. 34).
Do prosseguimento da narração se infere que o Rev. Walter Wynn possui faculdade mediúnica e, assim sendo, ter-se-ia que deduzir que a desagradável sensação experimentada durante o desenvolvimento do fenômeno provinha, presumivelmente, do fato de que ele contribuíra com os seus próprios fluidos para a "transfiguração" do médium em sua própria mãe.
Do ponto de vista da hipótese espírita, poder-se-ia dizer que, no episódio exposto, se tratava de um fenômeno de "possessão mediúnica", a tal ponto produzido que determinara a "transfiguração" do rosto do médium, combinada com as atitudes mímicas habituais em vida à defunta comunicante.
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CASO II - Tiro o seguinte episódio do livro de H. Dennis Bradley The wisdom of the gods (A sabedoria dos deuses). Ele teve ocasião de observar duas vezes, com o médium Sra. Scales, o fenômeno de "transfiguração" por contração e adaptação dos músculos do rosto, fenômeno que, nos limites indicadas, se mostra sobretudo freqüente nos médiuns de "possessão ou incorporação".
Escreve ele:
"Ela (Cloé, o espírito-guia, uma jovem índia) disse que "Annie" hesitava em manifestar-se de uma forma em que não se manifestara antes. Não ousava ocupar o corpo do médium e não sabia se seria capaz de controlar e utilizar-se do seu organismo. Eventualmente, foi levada a tentar a experiência. O médium caiu sentado na cadeira e nós esperamos dois minutos. A Sra. Scales é uma mulher baixa e gorda. O tom de sua pronúncia, para ser delicado, é o vulgar. Seu rosto é o que se pode dizer agradável e comum. Gradualmente, a expressão do rosto do médium se foi mudando completamente. Era uma "transfiguração". Ao passo que o semblante permanecia, os olhos e a expressão se tornavam belos. Não era uma alucinação. Minhas faculdades de observação são tão argutas ou mesmo mais argutas do que nunca, e eu devo lembrar que essa maravilhosa mudança foi vista não só por mim, mas pela Sra. Sargeant e em plena luz.
A princípio foi com grande dificuldade que as primeiras poucas palavras foram articuladas, mas gradativamente a força aumentou consideravelmente e o espírito de minha irmã tornou-se capaz de assumir completo controle dos órgãos do médium. Era minha irmã. Era seu espírito usando o organismo de outro corpo físico e falando a mim em sua própria voz. Não me importo que os cépticos se riam disto, mas os que hão estudado os fenômenos espíritas sabem e compreenderão. Eu já lhe falara em voz independente, na presença de testemunhas célebres, em centenas de vezes. Conheço sua personalidade, conheço seu espírito. A voz de "Annie" possuía sua antiga beleza, sua tonalidade era perfeitamente enunciada da forma que lhe era peculiar quando neste planeta. Nenhuma atriz viva poderia simular essa maravilhosa personalidade. Ela conversou comigo acerca de fatos íntimos de sua vida terrena... Durante a nossa maravilhosa palestra, enquanto usava o organismo de outra pessoa, deu-me a mais íntima e excepcional prova da sobrevivência. Nome após nome, fato após fato, foram mencionados: minha esposa, Pat, Dennis, tudo. Havia uma grande tragédia em sua vida, citada de forma velada em Towards the stars. Essa tragédia, cujos detalhes nunca foram publicados e que são apenas conhecidos de duas ou três pessoas vivas, foi por ela referida... Na manhã seguinte, telefonei à Sra. Sargeant a fim de fazer-lhe uma pergunta que esquecera. Pedi-lhe para descrever a voz que ela passara a ouvir desde que minha irmã se incorporara no médium. Isto fiz para afastar qualquer possível dúvida quanto ao tom ter sido produzido pela minha imaginação. A Sra. Sargeant disse, descrevendo a voz da minha irmã, que o seu falar era lento e a enunciação das palavras excepcionalmente suave e clara. Essa era a voz característica de "Annie" quando na Terra." obra citada, págs. 120-123).
No episódio exposto, a "transfiguração" do rosto se mostra menos desenvolvida que no caso precedente, limitando-se a uma transformação da expressão animada de um semblante, mas em compensação há a transformação da tonalidade vocal, com perfeita reprodução da voz de uma defunta, transformação que representa um notabilíssimo fenômeno em demonstração da realidade da incorporação mediúnica ocorrida. E, como uma laringe não pode mudar de tom sem ter experimentado uma correspondente contração muscular de adaptação, dever-se-á reconhecer que, no caso em apreço, a "transfiguração" se verificou de modo especial sobre a laringe do médium. Observo a tal respeito que, na hipótese de um real fenômeno de possessão mediúnica, dever-se-ia presumir que tais processos de transformação temporária dos órgãos dos médiuns nos órgãos homólogos do defunto comunicante são obra de um despertar automático daquela misteriosa "força organizadora" que plasma os seres vivos, "força organizadora" que, sendo uma faculdade do espírito, sobreviveria à morte do corpo e, em conseqüência, operaria nos casos análogos aos expostos, determinando os fenômenos de transfiguração dos órgãos e dos membros dos médiuns, sem que necessário fosse pressupor uma ação direta, intencional, dos defuntos comunicantes. Ao mesmo tempo, os automatismos de tal natureza, reprodutores da voz ou do rosto de um defunto, implicariam e demonstrariam a realidade do fenômeno da possessão ou incorporação temporária, no médium, do espírito que se diz presente.
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CASO III - Tomo este episódio à "Light" (1921, pág. 719), e quem o narra é o Dr. Ellis Powell, personalidade bastante conhecida no campo das investigações metapsíquicas. Escreve ele:
"Há algumas semanas achava-me em Preston, e tive ocasião de entrar em relação com a personalidade mediúnica do "doutor Bancroft", a qual se manifesta por intermédio do médium H. B. Tyler, de Preston, e a forma por que se manifesta é o "transe" do médium, com transfiguração completa do rosto.
O doutor Bancroft informou ter sido médico de grande clientela e falecido no ano de 1837. Forneceu detalhes sobre sua própria carreira terrena, os quais foram reconhecidos verdadeiros, compulsando-se publicações médicas do período indicado. Havia quatro pessoas presentes além do médium: minha mulher, minha irmã, minha mãe e eu. Não se fizeram preparativos especiais. Sentamo-nos em semicírculo em torno do médium, sem abaixar as persianas, de modo que o sol dardejava no quarto.
Depois de cerca de dez minutos de uma conversação de ordem geral, o médium deu sinais de passar ao estado de "transe" e com isto assistimos a um fenômeno estupefaciente: no espaço de três ou quatro minutos seu rosto se transformou a tal ponto que, se não houvesse assistido por inteiro ao processo de transfiguração, observando-a de perto e em plena luz, não o teria mais reconhecido pelo mesmo indivíduo. Ocorrido isto, o doutor Bancroft beijou as mãos das três senhoras com estudada cortesia do século décimo oitavo, e logo depois iniciou o seu trabalho de médico consultado. Tive o cuidado de nada dizer acerca dos sintomas de minha moléstia e da sua presumida natureza, pois que ele próprio descreveria tudo, e com isso me poria em situação de poder julgar se estava ou não plenamente informado a respeito. Tomou-me uma das mãos por alguns instantes, e logo começou a descrever, de modo exatíssimo, estupefaciente, os sintomas do meu mal, que me mantinham sob viva preocupação. Depois me dirigiu perguntas, as quais subentendiam conhecimento a meu respeito que ninguém no mundo podia saber. Em seguida, assegurou-me que em mim não existiam moléstias orgânicas, mas que se tratava de uma desordem funcional acentuada, que descreveu em termos de fisiologia. Depois ditou as prescrições. Tal consulta de além-túmulo não foi só grandemente benéfica a minha saúde, mas revelou-se extremamente interessante como exemplo magnífico da capacidade de um "espírito-curador" para diagnosticar e descrever não só o significado preciso dos sintomas de um mal, mas as causas originárias dos próprios sintomas, sem a mínima indicação da parte do consulente..."
Na narrativa acima não se encontram indicações que autorizem a presumir que a transfiguração ocorrida fosse algo mais que uma simples transformação do rosto do médium, por contração e adaptação dos músculos faciais. Não obstante deve-se admitir que, se não houve manipulação ectoplásmica do rosto, o fenômeno de contração e adaptação muscular atinge, no caso em apreço, a máxima eficiência realizável com meios de tal natureza, visto que o narrador declara que, se não tivesse assistido por inteiro ao processo de transformação, não teria mais reconhecido o médium no personagem que se achava diante de si.
Noto que também neste caso sobressaem particularidades de identificação pessoal da entidade comunicante, embora se não os possa reputar suficientes, mas já se compreende que, à distância de um século, não é possível identificar de maneira adequada a personalidade de um defunto que viveu modesta e obscuramente. Não é este, porém, o tema do presente trabalho, pelo que limitar-me-ei a repetir que o caso em apreço é um bom exemplo de transfiguração, em que se pode supor atingidos os limites extremos da deformabilidade realizável mediante o muito simples auxílio da contração e adaptação dos músculos faciais.
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CASO IV - Passando a referir exemplos de "transfiguração" com indícios de concretização ectoplásmica, não posso deixar de aludir aos famosos alongamentos do corpo de Daniel Dunglas Home; antes de tudo porque tais alongamentos constituem já um princípio de manipulação ectoplásmica do corpo do médium, depois porque, durante alguns destes alongamentos, sucedia observar-se a transfiguração mais ou menos ectoplásmica do seu rosto. Limito-me a narrar, a propósito, dois breves episódios, que extraio de um longo estudo publicado no vol. IV do "Journal of the Society of Psychical Research". (Julho 1889, págs. 101-136). Escreve o General Boldero:
"Em poucos minutos Daniel Dunglas Home caiu em profundo "transe". Levantou-se e passeou em volta durante breves instantes; depois veio a mim, tomando-me pela mão, e aludindo a si próprio na terceira pessoa, disse: "Deverás observar os pés de Dan (Home) e verificar que ele não se move do chão, e dirás aos outros que observem atentamente sua cabeça." Assim fiz, enquanto ao mesmo tempo se assistia ao espetáculo do seu corpo alongar-se até atingir a um comprimento maior de nove polegadas ou um pé. Quis abaixar-me e controlar-lhe os calcanhares, que pousavam regularmente no soalho. A luz de um bico de gás iluminava em cheio a sua pessoa. Era um espetáculo extraordinário. O médium murmurou: "Agora aproxima-te mais." Ele permanecia sempre com a estatura aumentada de um pé. Tomou minhas mãos, levou-as aos dois lados do próprio corpo, um pouco acima dos quadris, onde encontrei um vácuo correspondente entre o cós das calças e a barriga. Assim continuou: "Palpa Dan, a fim de que fiques plenamente satisfeito." Pousei as mãos sobre seus flancos e senti que as suas carnes se contraíam. Fitei Home: voltara à estatura normal! Mas logo renovou a prova: novamente seu corpo se alongou, e senti suas carnes se distenderem sob minhas mãos, para depois se contraírem novamente, apenas retomada por ele a estatura normal. Vê-lo alongar-se e diminuir-se daquela forma, com os pés sempre imóveis no chão, era um espetáculo estupefaciente...". (Op. cit., págs. 125-126).
Este outro é um fenômeno de alongamento com transfiguração ectoplásmica do rosto. Relata o Sr. Hawking Simpson:
No ano de 1868 eu quis investigar os fenômenos que se produziam com a mediunidade de Daniel Dunglas Home... Em uma sessão realizada sob boa luz, tive oportunidade de controlar o fenômeno do alongamento e contração do seu corpo; e isto repetidas vezes e em rápida sucessão, no centro do quarto. Daniel Dunglas Home estava em "transe", mas falava sem interrupção. Pus-me diante dele, introduzindo os meus pés sob a ponta de seus pés; vale dizer que ele estava com os calcanhares no soalho e os próprios pés sobre o peito dos meus. Depois coloquei sobre as nossas cabeças um grande caderno de música e entreguei-me à observação do seu rosto; ao mesmo tempo Lorde Crawford (depois Lorde Lindsay) apalpava-lhe os músculos e as pernas, vigiando atentamente a barriga do médium, que se elevava lentamente duas três polegadas acima da cintura para, após, voltar ao primitivo tamanho. Depois trocamos de incumbência e eu encarreguei-me de vigiar os músculos, as pernas e as vestes do médium, porém mais estupefacientes ainda se mostraram as transformações do rosto, o qual alternadamente se fazia mais largo e longo e em seguida muito menor; enfim, voltava às dimensões normais. No primeiro caso seu rosto parecia aumentar e adquirir gradativamente volume em cada uma de suas partes; depois também gradativamente se reduzia, tornando-se cada vez menor, e os seus traços diminuíam, caso em que a pele do rosto ficava profundamente contraída e flácida. Depois disso foi levitado e vimo-lo oscilar no ar como um pêndulo, assim se transportando até o divã. Ninguém se lhe achava próximo. Quando desceu sobre o divã, despertou bruscamente e correu ao jardim onde foi acometido de vômitos. Enquanto se produziam os fenômenos falou sempre na terceira pessoa, como se tivessem estado presentes diversas entidades espirituais que o dirigissem. Com efeito, elas assim se exprimiam: "Agora faremos isto e aquilo outro com Dan... etc., etc..." (Op. cit., págs. 123-124).
Tendo em vista este último episódio, não padece dúvida de que, no caso de Daniel Dunglas Home, não se tratava de transfiguração por contração e adaptação dos músculos faciais, mas de um verdadeiro e adequado processo de concentração ou manipulação ou materialização ectoplásmica, o que é sobretudo demonstrado pela importante particularidade da pele do rosto do médium, nos processos de diminuição do mesmo rosto, se mostrar profundamente contraída e flácida, indício certo de subtração de substância ectoplásmica, em quantidade considerável, das tecidos do rosto do médium.
Do ponto de vista do significado teórico do fenômeno de transfiguração, nota-se uma radical diferença entre as modalidades com que ele se produzia com Daniel Dunglas Home e as com que se produz quase sempre com os outros médiuns, isto é, ao passo que, com estes últimos, se observa quase constantemente que a transfiguração implica uma tentativa mais ou menos bem sucedida de representar o rosto de um defunta que se diz presente, no caso de Home, ao contrário, é claro que as personalidades mediúnicas operantes se propunham exclusivamente transformar o rosto do médium, variando-lhe as dimensões, ora aumentando-as, ora reduzindo-as notavelmente, e isto em correspondência com o outro fenômeno simultaneamente operado do alongamento e redução do seu corpo.
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CASO V - Tiro-o dos "Annales des Sciences Psychiques" (1906, págs. 34-37), e quem o relata é o Dr. Joseph Maxwell, nome assaz conhecido no campo das investigações psíquicas. O diretor da revista, Sr. Cesare de Vesme, esclarece: "O caso foi comunicado ao Dr. Maxwell por um eminente magistrado seu colega, que não deseja seja revelado seu nome; todavia, se houver investigadores sérios que desejem conhecer os nomes dos dois percipientes, bem como o da cidade em que se produziu o fenômeno, o Dr. Maxwell tudo revelará interessados."
Esta a narrativa do protagonista:
"Meu pai era doutor em medicina e sempre exerceu a profissão numa vila do sul da França. Nascera em 1812; casara-se em 1843 e, a partir dessa data, habitara na mesma casa até a morte, ocorrida em julho de 1903.
Aos primeiros dias de janeiro de 1903, meu pai foi assaltado pelos sintomas da moléstia que, seis meses depois, devia levá-lo ao túmulo. Cerca de dois meses antes da sua morte, eu me encontrava no seu quarto às oito e meia da noite. Ele dormia na sua poltrona ao lado da chaminé e eu me sentara diante dele, vigiando-lhe o sono.
Estávamos sós, e não tardei a perceber que sua fisionomia ia gradativamente assumindo um aspecto que não era mais o seu, até que chegou um momento em que verifiquei, positivamente, que seu rosto se transformara no de minha mãe. Dir-se-ia que sobre o rosto de meu pai se colocara a máscara de minha mãe. Note-se que, desde muito tempo, faltavam inteiramente ao meu pai os supercílios; mas naquele momento, acima de seus olhos fechados, se desenharam as vastas sobrancelhas negríssimas que minha mãe conservara até os últimos dias de vida. As pálpebras, o nariz e a boca se haviam tornado os de minha mãe. Não obstante, seu rosto parecia consideravelmente maior, mas devo observar a respeito que, no período pré-agônico, o rosto de minha mãe se hipertrofiara notavelmente, até atingir aproximadamente as proporções assumidas pela efígie que aparecia diante de ruim. Observo, além disso, que a própria efígie reproduzia mais fielmente o semblante dela do que o poderia ter feito se acaso houvesse reproduzido o seu rosto alterado pela moléstia. Meu pai usava os bigodes e a barba em ponta muito curta. Barba e bigodes permaneceram; mas, contrariamente ao que se poderia supor, contribuíam eficazmente para completar os traços maternos. A aparição manteve-se intacta por dez ou doze minutos; depois, lentamente se dissipou e meu pai retomou os traços normais. Cinco minutos depois despertou, e eu perguntei-lhe se sonhara porventura com sua esposa; respondeu negativamente.
Durante a manifestação do fenômeno eu fiquei imóvel, a observar o espetáculo que se me deparava, abstendo-me de estender a mão para tocar a aparição, e isto por temer que se dissipasse. Com efeito, meu pai contara ter visto minha mãe várias vezes e ter sempre se arrependido por ceder ao impulso instintivo que o impelia a abraçá-la, ato que determinara sempre a desaparição instantânea do fantasma.
Eu provavelmente teria atribuído importância muito relativa à aparição por mim observada, pois que me teria facilmente convencido de haver sido vítima de uma alucinação, mas houve isto: não fui o único a vê-la. Durante a aparição, a criada de meu pai - uma moça de 31 anos - à qual minha mãe, no leito de morte, recomendara velar por meu pai, entrara no quarto e eu me limitara a dizer-lhe: "Joana, olha meu pai adormecido!" - Ela exclamou: "Oh! Como se assemelha à pobre senhora! Estupefaciente! Extraordinário!" Logo, não era eu vítima de uma alucinação, pois que se Joana viu e reconheceu a aparição é sinal de que a mesma era objetiva. Resulta daí que a natureza coletiva da visão ocorrida, tendo-me dado certeza sobre a realidade da mesma visão, fez com que eu ficasse profundamente impressionado e, se vivesse cem anos, jamais a esqueceria. Em seguida, perguntei a mim mesmo se teria sido o rosto de meu pai que se transformara a ponto de tomar os traços de minha mãe, ou se, ao contrário, uma máscara do rosto de minha mãe se teria sobreposto ao semblante paterno. O que me faz pender para esta última hipótese é a particularidade dos vastos supercílios maternos que eu percebi nitidamente nos traços da aparição. Ora, se se pode admitir que o semblante de um marido, após uma longa coabitação, possa algumas vezes assemelhar-se ao da mulher (o que no caso de meu pai estava longe de se ter dado), não parece possível admitir-se que os supercílios de um surjam sobre o semblante do outro que era totalmente privado de supercílios. Devo não obstante acrescentar que o fenômeno por mim observado não desapareceu subitamente, isto é, pareceu-me que o rosto de meu pai retomava gradativamente, por pequenas zonas, o seu aspecto normal."
A criada Joana B. fez a seguinte declaração:
"Recordo-me perfeitamente de que, cerca de dois meses antes da morte de vosso pai, eu subi ao seu quarto e vos encontrei com ele. Vós me dissestes: "Joana, olha meu pai adormecido!" - E eu logo exclamei: "Oh! como se assemelha à pobre senhora!" É estupefaciente! É uma coisa extraordinária!" - Confirmo que vosso pai, no curso da sua última enfermidade, repetiu-me muitas vezes ter visto em várias ocasiões a aparição de sua esposa, acrescentando ter-se arrependido de haver estendido as mãos para atraí-la a si, pois que, assim agindo, provocara sempre a sua instantânea desaparição." (Assinado: Joana B., esposa de R.).
O caso exposto é de natureza espontânea e não experimental ou mediúnica e, como se viu, realizou-se à aproximação da morte do protagonista, o qual tivera, precedentemente, várias visões do fantasma daquela que chegou a materializar a própria efígie, transfigurando o seu rosto, circunstâncias estas todas a que não falta valor sugestivo, tendo em vista o fato de que os casos de "aparição de defuntos no leito de morte" são relativamente comuns e que entre eles são relativamente freqüentes os casos percebidos coletivamente ou sucessivamente por várias pessoas, circunstância que confere certeza a respeito da sua objetividade. Daí resultaria que o caso em apreço poderia ser classificado como um episódio de "aparições reiteradas de uma defunta no leito de morte do marido", com o acréscimo de uma manifestação física complementar, sob forma de transfiguração do rosto do enfermo e isto, presumivelmente, com o objetivo de fazer-se notar também pelo filho.
Do ponto de vista probatório é de notar no caso em apreço a feliz circunstância de ter sido visto o fenômeno de transfiguração coletivamente por duas testemunhas, e como a criada Joana não percebera a efígie da defunta logo ao entrar no quarto, circunstância que exclui a existência nela de estados passionais predisponentes de alucinação por influência de circunstâncias, deve-se reconhecer que a objetividade do fenômeno se mostra desta vez provada de maneira cientificamente adequada.
Sob um outro ponto de vista, manifesto é que o fenômeno de "transfiguração" não poderia ser esclarecido com a hipótese por demais simplista da contração e adaptação dos músculos faciais. Serve especialmente para demonstrá-lo o fenômeno dos "nigérrimos supercílios maternos" aparecerem sobre a cara do enfermo, desprovido de sobrancelhas. Deve-se, portanto, concluir que se está em presença de um caso de transfiguração com notáveis rudimentos de materialização, e, adaptação de substância ectoplásmica ao rosto do indivíduo.
Com relação à observação do narrador, segundo a qual o fenômeno não se tendo dissipado repentinamente e havendo o rosto paterno retomado gradativamente sua própria expressão, significando isso o que os fatos não pareciam conciliar-se com a hipótese de uma máscara ectoplásmica sobreposta ao rosto paterno, noto que os fatos poderiam, ao contrário, conciliar-se muito bem com tal hipótese, com a condição única de se não tomar ao pé da letra as palavras com que se definiu a hipótese; vale dizer que não se deveria pensar na existência de uma máscara móvel de ectoplasma colocada sobre a cara do paciente, mas certamente na existência de uma substância ectoplásmica distribuída e integrada, por pequenas zonas, nas tecidos do seu rosto, isto é, nos pontos em que os traços fisionômicos deveriam ser modificados, caso este em que nada impediria de se presumir que a máscara ectoplásmica pudesse dissipar-se gradualmente, zona por zona.
Como quer que seja, preciso é considerar que tudo concorre para demonstrar que o fenômeno de transfiguração ectoplásmica se mostra quase sempre combinado com as outras modalidades de manifestação do mesmo fenômeno no sentido de que, para completar a concretização da máscara ectoplásmica, tanto podem contribuir o fenômeno da contração e adaptação dos músculos faciais, quanto o outro fenômeno da subtração de substância viva aos tecidos do rosto e isto com o escopo de reduzir-lhe ou remodelar-lhe alguns traços, adaptando-o de tal forma à máscara do defunto que se deseja representar.
Ter-se-ia, portanto, de concluir que, nos casos de completa transfiguração do rosto de um vivo, concorrem todas as modalidades de manifestação que o fenômeno comporta, modalidades combinadas harmonicamente umas com as outras, por uma vontade operante - subconsciente ou extrínseca - servida automaticamente por aquela mesma misteriosíssima "força organizadora" que preside, na natureza, a organização dos seres vivos.
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CASOS VI e VII - A condessa Helena Mainardi, nome fartamente conhecido pelos cultores de investigações psíquicas de quarenta anos passados, era um poderoso médium. Ela enviou ao "Congresso Espiritualista de Londres", do mês de junho de 1898, uma longa relação dos fenômenos obtidos em seu próprio círculo familiar, com sua mediunidade combinada com a da baronesa Rosenkrantz, também muito notável médium, círculo em que eram freqüentes os casos de "transfiguração". O relato em apreço foi publicado integralmente pela "Light", da qual faço o seguinte extrato (1898, pág. 471).
A condessa Mainardi escreve o que se segue:
"Numa noite de inverno do ano de 1898, obtivemos fenômenos muito interessantes. Achavam-se presentes a baronesa Rosenkrantz; o General Gugiani, com sua esposa; o Dr. Visam Scozzi, meu marido e eu. Uma lâmpada vermelha, colocada sobre a mesa, iluminava nossos rostos.
A baronesa Rosenkrantz estava de pé, atrás da minha cadeira, fazendo "passes magnéticos" sobre minha cabeça e ombros, quando, de repente, meu esposo, que estava sentado defronte, exclamou:
"Não vejo mais minha mulher!" Por sua vez o General Gugiani observou: "Dir-se-ia que a condessa desapareceu." O Dr. Visam Scozzi declarou que também não me via, mas que percebia no meu lugar uma coluna de substância escura. Eu ouvia perfeitamente suas exclamações, porém, por mais que tentasse, não lograva articular uma palavra, embora não houvesse deixado um só momento de ver os assistentes, os quais continuavam discutindo acaloradamente o fenômeno da minha desaparição, quando repentinamente me viram reaparecer, mas com o rosto de outra pessoa. Meu marido exclamou assustado: "Oh! esta não é minha senhora!" A baronesa Rosenkrantz inclinou-se para mim, olhou-me fixamente de perto e disse: "Reconheço as feições de Helena Blavatsky!"
Pouco depois a máscara da Blavatsky desapareceu e tornei a ser eu mesma, reconhecida como tal por todas os assistentes, com grande satisfação.
Eis, porém, que, por seu turno, a baronesa Rosenkrantz é envolvida em um influxo mediúnico e, sentando-se junto de mim, exclama: "Olha com atenção o meu rosto!" Transcorridos uns breves instantes, vimos transformar-se o seu semblante, que se tornou muito jovem, ao passo que a baronesa é um tanto entrada em anos. Acreditei por um momento ser vítima de uma alucinação, pelo que me dirigi ao Dr. Visani Scozzi, perguntando lhe o que estava vendo. Vi que tinha ficado imóvel como uma estátua, com os seus grandes olhos cravados sobre a manifestação e com uma expressão de estupor indescritível! Respondeu-me: "Este é o rosto de uma jovem a quem eu conheci intimamente há vinte anos."
Tais são os episódios de "transfiguração" relatados pela condessa Mainardi.
Do ponto de vista da fidelidade da narrativa, o nome do Dr. Visani Scozzi, autor de um livro clássico sobre a mediunidade, e a quem foi apresentado o relato antes de ser enviado ao seu destino, constitui um ótimo testemunho a respeito.
Do ponto de vista da realidade objetiva das transfigurações observadas, destaca-se a circunstância de sua natureza coletiva, a cujo respeito convém insistir sobre o fato de que foram cinco os experimentadores que observaram, coletivamente, os mesmos rostos nas transfigurações ocorridas.
Faço notar que, na produção do primeiro episódio, sobressai o detalhe pouco comum da ocultação do médium dentro de uma nuvem de ectoplasma, o que presumivelmente deve ser atribuído à poderosa mediunidade de efeitos físicos da condessa Mainardi, potencialidade que permitiu uma emissão abundante de substância ectoplásmica que logo se concretizou na máscara da transfiguração.
Observo, por último, que, em ambos os episódios, os rostos que se materializaram foram identificados e o caso do Dr. Visani Scozzi, que reconheceu no semblante da jovem, que se manifestou, o de uma jovem senhora que conhecera vinte anos antes, é um caso bastante notável no seu gênero, porquanto a baronesa Rosenkrantz, que ele conhecera em casa da família Mainardi, sem dúvida alguma ignorava por completo a existência da jovem dama que se havia materializado por transfiguração do seu próprio rosto. Deve-se, sem embargo, reconhecer que o relato dos fatos deveria comportar maior abundância de detalhes, se bem que é mister admitir que um relatório mais extenso não era possível exigir em um sumário relato de numerosas experiências, como era o que a condessa Mainardi remetera ao "Congresso Espiritualista" de Londres.
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CASO VIII - Alexandre Aksakof, no seu livro "Um caso de desmaterialização parcial do corpo de um médium" (pág. 211), conta o seguinte caso, extraído de um artigo da Srta. Killingsbury, publicado em "The Spiritualist", de 22-10-1876:
"A Sra. Crocker, médium particular de Chicago, contou-me que há alguns meses, sob a direção de seu "guia" espiritual, iniciou uma série de sessões para o desenvolvimento de uma nova fase de sua mediunidade, as quais se realizaram no seu círculo familiar. Uma noite, à luz das velas que ardiam no recinto e ao clarão da lua, sofreu uma transformação do seu rosto, que mudou de tamanho, forma e natureza, brotando depois sobre ele uma barba negra e abundante. Todos os assistentes viram a mesma transformação e o primo do médium, que estava sentado junto ao mesmo exclamou: "É o rosto de meu pai!" - Desaparecida a manifestação, confirmou que se tratava da efígie perfeita do rosto paterno. Pouco depois, o médium se transformou em uma velhinha de cabelos brancos. Todas estas metamorfoses se realizavam sob os olhares dos presentes, que não deixaram de as observar um instante.
Ela afirma que conservou sempre a consciência de si mesma, mas que havia experimentado uma sensação muito viva de formigamento e comichão em todo o corpo, tal como se estivera apertando com as mãos os dois pólos de uma forte bateria elétrica . . . "
Esta alusão final do médium, que disse experimentar uma viva sensação de formigamento e comichão em todo o corpo, reveste grande importância do ponto de vista probatório, uma vez que bom número de médiuns de efeitos físicos acusa justamente a mesma sensação, quer antes, quer durante a manifestação dos fenômenos. A Sra. D'Esperance aludia muitas vezes a essa sensação, que é como um prenúncio dos fenômenos, e com Eusápia era habitual a mesma sensação. Quando durante as nossas experiências de três anos, em Gênova, com o Prof. Morselli, ouvíamos o médium acusar a sensação de comichão em todo o corpo, ficávamos na expectativa, pois sabíamos, por prática adquirida, que era o prelúdio da produção dos fenômenos. Repito, portanto, que do ponto de vista probatório, essa espécie de detalhes secundários adquire não pouca importância em favor da legitimidade dos fatos, pois eles pertencem a um gênero que um médium fraudulento, como também um narrador infiel, não pensam em assinalar. E bem-vindas sejam estas observações no que concerne ao episódio exposto, em que o relato de "segunda mão" e a falta de detalhes não podem satisfazer do ponto de vista probatório. E, como já vimos, o caso por si só seria por demais interessante devido aos incidentes da barba e dos cabelos brancos que apareceram sobre o rosto e a cabeça de uma jovem senhora.
A estas observações em favor da legitimidade dos fatos, Alexandre Aksakof acrescenta o seguinte:
"Um argumento de peso em favor da legitimidade de tais manifestações consiste na consideração de que não só não se mostram contraditórias com o princípio de acordo com o qual se produzem os fenômenos de materialização, como constituem, ao contrário, uma espécie de fase inicial transitória, prestes a transformar-se em outra, sob a ação de uma força organizadora ignorada (pág. 219)."
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CASO IX - No livro autobiográfico do médium Sra. Russell Davies: The Clairvoyance of Bessie Williams (A Clarividência de Bessie Williams), publicado a conselho de grande amiga Sra. Florence Marryat, lê-se, entre outras coisas, que o referido médium possuía a pouco invejável faculdade de provocar fenômenos de assombramento cada vez que permanecia em alguma casa onde tivesse ocorrido, no passado, cenas de sangue.
Sucedeu que, tendo o médium adquirido uma casa de verão, onde se alojara com a sua família, não tardaram a manifestar-se fenômenos de assombramento muito importunos como sejam: ruídos insistentes de passos pesados, que deambulavam pela casa, de lutas e de combates violentos, seguidos de quedas de corpos ao solo. Certa noite produziu-se um fenômeno impressionante de transfiguração do rosto da Sra. Russell Davies, descrevendo-a seu esposo nos seguintes termos:
"Estava eu sentado à mesa da sala de jantar e minha senhora diante de mim, com o menino nos braços. De repente ela exclamou: "Sinto como se me tivessem ferido em um braço. Oh! que dor!" Fiz-lhe observar: "Minha querida, são dores reumáticas." Como não replicasse, olhei para aquele lado e notei que a sua fisionomia se havia transformado horrivelmente e ficado embrutecida, adquirindo uma expressão de diabólica perversidade. Em lugar de minha esposa, sempre afável e sorridente, se achava diante de mim um velho repugnante, de fronte proeminente, cujos olhos de abutre se esquivaram ao meu olhar, com intenções furtivas que quase me faziam desmaiar de terror. Eu havia ouvido falar em fenômenos de "transfiguração", porém jamais assistira ao desenvolvimento dos mesmos. Levantei-me apressadamente para acudir em auxílio do menino. O braço de minha esposa o foi deixando lentamente nos meus, ao mesmo tempo que a sua outra mão se estendia sinistramente para uma faca que estava sobre a mesa e que eu me apressei a pôr fora do seu alcance. Pouco depois minha senhora suspirou profundamente, e, com grande regozijo para mim, vi que o seu rosto voltava ao estado normal..."
Averiguou-se, logo depois, que alguns séculos antes, aquela casa fora uma hospedaria, cujo dono, quando se lhe mostrava propícia a ocasião, assassinava os hóspedes para roubá-los. Naturalmente, depois do referido fenômeno de "transfiguração"; os Russell Davies apressaram-se em abandonar a casa.
Também neste episódio, como em outros já relatados, dever-se-ia admitir que o fenômeno de "transfiguração" do rosto do médium no de um "velho repugnante, de fronte proeminente e com olhos de abutre", teve origem na combinação das diversas modalidades de produção que os mesmos fenômenos comportam: contração e adaptação dos músculos faciais, distribuição de ectoplasma ou subtração de substâncias vivas nas zonas a serem modificadas no rosto do médium.
Do ponto de vista da hipótese espírita, mostrar-se-ia sugestiva e instrutiva a causa determinante do fenômeno de "transfiguração", que se realizara pelo fato de encontrar-se o médium em um ambiente onde outrora haviam ocorrido vários crimes, ambiente que se tornou assombrado tão-somente devido à presença de uma "sensitiva" que, mediante seus "fluidos" exteriorizáveis, tornara possível a produção dos usuais fenômenos de assombramento, isto é, tornara possível a manifestação aos vivos, na forma que se mostrara realizável, dos protagonistas dos dramas que se verificaram em um determinado ambiente.
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CASOS X e XI - No n.° de julho de 1930 da revista inglesa The Occult Review, o Sr. R. M. Sidgwick relata uma série de experiências obtidas em seu círculo familiar, com sua própria mediunidade combinada com a de uma senhora a quem denomina Sra. A.
Entre outros cita dois casos de "transfiguração alternante", nos quais se materializou duas vezes a efígie do seu avô; a primeira vez, com a mediunidade da Sra. A. e a segunda, com a sua própria mediunidade.
Eis quanto é pelo mesmo relatado:
"Numa tarde de inverno, fui visitar a Sra. A., que possui mui notáveis faculdades mediúnicas. Encontrei-a sentada junto ao fogão, onde ardiam alguns carvões, porém sem chama, irradiando em torno uma forte luz vermelha. A luz do dia havia desaparecido quase completamente, deixando o quarto em plena obscuridade, salvo um amplo círculo em volta do fogão.
A Sra. A. se achava muito perto do fogo, de maneira que seu rosto aparecia vivamente iluminado. Conversamos durante um bom pedaço de tempo; logo fizemos uma pausa que se prolongou durante dois ou três minutos, após o que lhe fiz uma pergunta, sem obter resposta. Ao mesmo tempo notei que a minha amiga respirava ruidosamente e, olhando-a fixamente no rosto, verifiquei que sua fisionomia, assim como a sua respiração, não davam mostras de achar-se em um estado de sonolência normal. Fiquei, pois, à espera de alguma manifestação e tal como ocorre com freqüência em nossas experiências a manifestação teve lugar; mas, por certo, mais distinta do que eu podia esperar. Enquanto eu vigiava atentamente a médium, percebi que o seu semblante ia lenta, mas positivamente se transformando. O oval do rosto, as linhas, os traços da fisionomia já não eram os mesmos tão familiares para mim. Logo se produziu improvisadamente a transformação final, desaparecendo também o nariz aquilino da Sra. A., vendo-me eu diante de um rosto de homem. Com indescritível assombro reconheci nessa cara a reprodução perfeita do meu avô. Fiquei a tal ponto impressionado que deixei escapar um grito de estupor, o que determinou a instantânea desaparição do fenômeno e diante de mim ficou a Sra. A., já desperta, a qual se apressou a pedir-me desculpa por haver dormido, incorrendo em uma falta de atenção.
Nada lhe disse de quanto havia ocorrido, pois eu esperava que esse fenômeno teria ulteriores desenvolvimentos e sabia por experiência que as manifestações adquiriam maior valor teórico quando o médium ignorava os antecedentes... Transcorreu algum tempo, e outra vez se produziu o inesperado...que, provavelmente, se realizou por ter-se reproduzido casualmente uma idêntica situação de ambiente. Com efeito, eu de novo me achava sentado ao lado da Sra. A., na sala de jantar, junto do fogão, onde ardiam vivamente, mas sem chamas, alguns tições, que irradiavam em torno uma brilhante luz vermelha. Achava-se então também presente a filha da Sra. A. Não tardou que eu notasse não serem as condições de ambiente inteiramente normais, sentindo um gelado sopro de ar que, baixando do teto, me envolvia a cabeça. Esta última circunstância, unida às demais sensações subjetivas me induziram a vigiar atentamente o que estaria ocorrendo com relação à Sra. A.; reparei, porém, que por sua vez ela me fitava com uma expressão de grande assombro.
Transcorrido algum tempo ela falou por fim, explicando que, alguns momentos antes, meu rosto havia desaparecido debaixo da máscara de outro rosto muito mais velho, de olhos claros e pele corada, com uma massa compacta de cabelos branquíssimos. Ao mesmo tempo, tivera a impressão subjetiva de que era meu avô que se manifestava. Sua filha, que estava sentada atrás de mim, nada havia visto, naturalmente, de tal transfiguração, mas ficara alguns momentos perplexa ao ver uma espécie de emanação de luz lunar em torno da minha cabeça. O que mais me surpreendeu em tudo isto foi o fato de a Sra. A. nada saber, em absoluto, a respeito de meu avô, apesar do que me descreveu com muitíssima fidelidade. Era, pois, inegável que lhe percebera a imagem.
Estendi-me mais do que costumo fazer na descrição destas duas manifestações, não só porque pertencem a uma categoria bem mais rara e interessante, como também porque, no meu entender, das mesmas sobressai manifestamente o deliberado propósito de proporcionar-me a tão desejada prova da sobrevivência do espírito humano. Da primeira vez fui testemunha do fenômeno; da segunda, porém, o foi a Sra. A. e isto quer dizer que houve dois testemunhos independentes, que assistiram ao mesmo fenômeno, com a formação do mesmo rosto de defunto, o que reforça notavelmente a prova exigida acerca da realidade objetiva do fenômeno em referência."
Tais são as conclusões do relator e protagonista dos fatos e o significado probatório, que decorre da observação coletiva do mesmo fenômeno, é, desta vez, eficientemente reforçado pela circunstância, quiçá única, da sucessiva manifestação do mesmo defunto mediante a transfiguração dos rostos de dois médiuns.
Do ponto de vista da interpretação espírita dos fatos, mostra-se sem dúvida notável a primeira manifestação do defunto por um médium que jamais o conhecera e que ignorava o seu semblante: circunstâncias de fato estas que induzem a concluir que o fenômeno da transfiguração do rosto da mesma no da entidade não poderia, desta vez, atribuir-se às "faculdades modeladoras" da subconsciência.
Neste ponto parece indispensável que eu me detenha em examinar o assunto nos limites que circunscrevem os denominados "poderes criadores" da subconsciência humana e isto com o fim de eliminar algumas opiniões errôneas a propósito, as quais não são apenas compartilhadas por nossos opositores, mas, sob certos aspectos, também pelos propugnadores da hipótese espírita. Entre estes últimos há, de fato, quem admite que os "espíritos dos defuntos" estão em condição de tomar a "forma fluídica" ou a "forma materializada", animada e inteligente, de outro defunto, mistificando de tal forma os vivos, enquanto os opositores sustentam que o subconsciente do médium é capacíssimo de criar fluidicamente ou materializar fantasmas animados e inteligentes de defuntos por ele conhecidos em vida, ou de defuntos também pelo médium desconhecidos, mas conhecidos de algum dos presentes (clarividência telepática ou telemnésia).
Ora, tudo concorre para demonstrar que estão em erro tanto os nossos antagonistas quanto certos espíritas já que a análise comparada dos fatos demonstra, ao contrário, que os "espíritos encarnados" como os "desencarnados" não estão em condições de exteriorizar ou de reproduzir outra forma fluídica ou materializada, animada e inteligente, que não a sua.
Não há quem não veja quanto se mostra teoricamente importante tal afirmação, da qual me apresto em demonstrar experimentalmente a validade, recordando antes de tudo que Gabriel Delanne já a havia revelado e repetido numerosas vezes. Assim, por exemplo, no 2° volume da sua obra "Les apparitions materialisées dos vivants et des morts" (pág. 318), observa:
"Existe um incidente que parece confirmar a hipótese de que o espírito tenha o poder de modificar o "corpo espiritual" e isto até o ponto de conferir ao mesmo uma aparência radicalmente diversa da sua própria. Ora, ainda uma vez se devem examinar a fundo os fatos, se não se quiser perder-se atrás de uma falsa pista. É verdade que o espírito desencarnado pode à sua vontade retomar uma das formas que teve, ao voltar à Terra, reaparecendo materializado, seja como era no momento da morte, seja como era em outra época da sua vida. Mas, de assumir a fisionomia de outro se interpõe um abismo e eu não conheço exemplos de espíritos que, voluntariamente, se tenham transformado até tomar o semblante de outro espírito de defunto."
Assim falou Delanne, mas, se teve a intuição da verdade, não se deteve em comentar por quais considerações científicas a afirmativa de tal verdade se mostra legitimamente válida.
Apresso-me, pois, a salientar como isto serve de base para uma prova por analogia fundamental e formidável, porquanto versa sobre processas biológicos e morfológicos que determinam a organização dos seres vivos, processos que se resumem no grande fato de que preside a origem da vida uma misteriosíssima "força organizadora", imanente em todos os seres vivos e diversa em cada um deles, a qual, no plano da existência encarnada, age ocultamente dos seres que vai plasmando.
Tal sendo a lei, daí se infere que, se o espírito sobrevive à morte do corpo, então também a "força organizadora" é uma faculdade do espírita, deve, por sua vez, sobreviver à morte do corpo; e, assim sendo, dever-se-á reconhecer que nos fenômenos das "transfigurações", das "materializações" e das "fotografias transcendentais", quando resultam de natureza espírita, é a mesma "força organizadora" plasmadora dos seres vivos, aquela que retoma automaticamente as próprias funções não apenas estimulada pela vontade do defunto sem que necessite aí de pressupor uma ação direta, intencional, em tal sentido, do próprio defunto, assim como a mesma "força organizadora" age automaticamente na organização e plasmação dos seres vivos sem que precise aí ainda do concurso intencional dos seres vivos que essa vai plasmando.
E agora chegamos às conclusões: Do exposto resulta que, nos casos em que o automatismo da "força organizadora" se mostra de natureza subconsciente ou de natureza anímica, o médium não poderá fazer outra coisa senão reproduzir a própria forma exteriorizada, materializada ou fluídica, animada e inteligente, assim como existia em qualquer época da sua vida, isto é, não poderá jamais tomar o semblante animado e inteligente de uma terceira pessoa, visto que se é verdade, como indubitavelmente é verdade, que a "força organizadora" age automaticamente, então isto equivale dizer que essa tem o poder de reproduzir e não o de criar. E, ao contrário, nos casos em que o automatismo se mostra de natureza extrínseca ou espírita, o defunto comunicante não poderá fazer outra coisa senão reproduzir, por sua vez, a própria forma materializada ou fluídica, animada e inteligente, tal como existia em qualquer época da sua vida, e jamais reproduzir a forma animada e inteligente de outro espírito, porque, repito, a "força organizadora", por ser um automatismo, reproduz e não cria, o que, se se notar bem, é o contra-senso invariável de qualquer forma de automatismo.
Resulta daí que estes simples, mas inabaláveis, argumentos de fato bastam por si sós para demonstrarem que a hipótese por mim defendida parece irrefutável, visto que, se se trata de um processo automático, então é verdade que tal automatismo não poderá fazer outra coisa senão reproduzir formas e rostos plasmados automaticamente e nunca criar novos, porquanto criar novos subentende-se um processo ativo e intencional, e já não passivo e automático.
É, pois, evidente, no que se refere aos fenômenos de materializações de fantasmas e rostos animados e inteligentes, que são estes os limites em que deverão ser circunscritos os poderes modeladores do espírito humano, encarnado ou desencarnado, limites impostos pelos fatos de que o pensamento e a vontade não têm poder dirigente sobre a misteriosíssima "força organizadora" e criadora das "formas arquétipos" individuais, "força organizadora" que se identifica com a "Idéia diretriz" pressentida por Claude Bernard, como se identifica com a teoria do "impulso vital criador" de Bergson e com a outra teoria análoga de Geley, sobre a existência de um "dinamismo vital organizador" posto nas fontes da vida, ao passo que tudo concorre para fazer presumir que, na manifestação de tal mistério imperscrutável do ser, nós assistimos ao manifestar, nos mundos, de um atributo da imanência divina do Universo.
Vemos, em conclusão, que o Pensamento e a Vontade teriam ao contrário poder diferente no vasto campo da natureza inanimada, vale dizer, no domínio das criações puramente plásticas ou artísticas. Isto posto, e tornando aos fenômenos de transfiguração, concluiremos observando que se é verdade, como indubitavelmente é verdade, que as considerações expostas provam que os "espíritos encarnados" e os "desencarnados" não têm poder dirigente sobre a modalidade pela qual funciona automaticamente a "força organizadora" e plasmadora da Vida nos mundos, então quando se obtém um rosto radicalmente diverso do semblante do médium, se deverá inferir que a "forma organizadora" em ação não é a do médium, mas uma outra a esse extrínseca.
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CASO XII - O episódio que se segue, pela excepcional modalidade de produção, é único em toda a classe dos fenômenos de transfiguração.
O Sr. James Smith, de Melbourne, em um interessantíssimo opúsculo intitulado: "How I became a Spiritualist" (Como me tornei espiritualista), narra que teve o primeiro contato com a fenomenologia mediúnica graças ao auxílio de um médium de "transfiguração", a propósito do que relata o seguinte:
"Pelo fim do ano de 1870, a curiosidade impeliu-me a procurar uma senhora idosa que residia em Charlton, vivia em um casebre composto de três aposentos e tinha fama de ser um médium extraordinário. Eu esperava colhê-la em fraude, mas, pela segunda vez que a procurei, achei-me em face de uma manifestação estupefaciente. Ela era alemã e esposa de um alfaiate ambulante. Não tivera educação alguma; sua conversação era vulgar e sua personalidade destituída de qualquer atrativo. Enquanto, com os meus botões, fazia essas observações, ela caiu em transe, seu corpo foi abalado por uma sacudidela convulsiva, assaz penosa, e pouco depois, pela sua boca, se manifestou uma personalidade inteligentíssima, que não podia certamente identificar-se com a do médium. A acentuação tedesca da sua palestra desaparecera totalmente; assumira uma atitude grave e digna, a linguagem tornara-se característica e elegante, de maneira que, inesperadamente, me foi dado ouvir uma conferência interessantíssima sobre a evolução cosmogônica; e quem me falava dizia ter vivido na Terra anteriormente a qualquer aurora histórica...
Em seguida, eis que se manifesta uma outra entidade espiritual que se mostrou profundamente versada nas indagações etnológicas; e, depois de me ter descrito os doze tipos principais de gênero humano, assim continuou: "Se na próxima vez vieres acompanhado do amigo Vievers, que é um hábil desenhista, nós te mostraremos sucessivamente, sobre a cara desta mulher, os doze tipos primitivos da raça humana. Naturalmente no dia seguinte voltei, juntamente com o amigo desenhista e a entidade manteve a palavra. Meu amigo logrou traçar, em bem sucedidos esboços, os doze tipos da humanidade primitiva tais como apareceram sobre o semblante transfigurado do médium, alguns dos quais era a tal ponto repulsivos que causavam espanto. O amigo Vievers remeteu-me cópias que ainda conservo cuidadosamente. Os tipos aparecidos foram os seguintes: o Caraíba, o Asiático do norte, o Europeu do sul, o Africano, o Malaio e o Peruano. Como disse, alguns dos restos eram horríveis de ver-se e isto a ponto do meu amigo Vievers se espantar com eles de tal maneira que, em dado momento, só com dificuldade cheguei a impedir que atirasse fora o lápis e fugisse.
Cada tipo daquelas transfigurações se manteve por tempo bastante longo, pois que a entidade fornecia interessantes informações em torno à história de cada um deles, informações a que eu transcrevia rapidamente. A título de exemplo, relato aqui o que ele disse a respeito do tipo caraíba:
"Seu crânio está cuidadosamente classificado nos vossos museus, depois de ter estado durante dezenas de milhares de anos sepultado nas cavernas da Terra. Ele fornece uma salutar lição ao homem moderno. Observai quão rudimentar ainda era o desenvolvimento deste crânio. Aparece deprimido, chato, limitado, exclusivamente adequado a guiar este ser na satisfação de suas quotidianas necessidades materiais, elas próprias estreitamente limitadas. Meditai particularmente sobre este crânio, pois que se trata de um importante anel de ligação na evolução em série da espécie humana. Parece-vos que este crânio tenha pertencido a um ser digno de ter a mesma sorte que os anjos? Não, certamente; eram seus companheiros as feras das florestas e os animais que faziam os seus ninhos nas tenebrosas cavernas. Suas cordas para caça eram tiras de couro cortadas da pele de animais selvagens; seu arco era uma costela extraída de animais gigantes; suas flechas tinham um chifre na ponta. Estes os utensílios de sua existência selvagem... Sedento de sangue e astuto, com o passo cauteloso, revelava pelo olhar a expressão terrível da sua natureza feroz. Não estremecei, ó amigo, pois o que vos digo não é senão uma pálida descrição do vosso antepassado caraíba. Orgulhoso europeu, ficai sabendo que vossa genealogia em coisa alguma é superior a do vosso pobre irmão caraíba, o qual neste momento vos contempla do alto, pois sua evolução no mundo espiritual é agora superior a vossa no mundo terreno. As suas vigílias de caça na luta pela vida estão afastadas, no tempo, milhares de séculos; e a sua lenta ascensão fez-se agora para sempre espiritualmente radiosa; e talvez, quando entrardes no reino espiritual, não recusareis aceitar por guia o pobre caraíba que está diante de vós e a primeira lição que recebereis no meio espiritual talvez vos seja dada por aquele e que foi descendente do lobo." (Op. cit., págs. 3-5-).
A primeira vista dir-se-ia que esta sucessão de "tipos" representantes das raças primitivas da humanidade consistiria em projeções intencionais, não mais automáticas, de verdadeiras máscaras plásticas, criadas para a circunstância, pela vontade da entidade comunicante, assim como as modelaria plasticamente um escultor no mundo dos vivos, mas, se tem na devida consideração algumas palavras com que se se exprime a personalidade mediúnica comunicante, então será preciso concluir que também neste caso extremo, o qual se mostra único em toda a casuística dos fenômenos em apreço, também neste caso excepcional, se encontre em ação a mesma lei, enquanto que a transfiguração do rosto do médium no do pré-histórico caraíba teria sido devido à autêntica intervenção de um espírito de caraíba, e, assim sendo, dever-se-ia inferir outro tanto para os demais episódios de transfiguração, devidos, por sua vez, à intervenção de cada um dos representantes das raças primitivas que se materializaram, os quais, por um ato de vontade, teriam posto em ação o automatismo modelador da sua "força organizadora", chegando a plasmar sua efígie tal qual era ela nos tempos remotíssimos da sua encarnação terrena.
Mudando de assunto, observo que os "esboços" executados pelo artista desenhista constituiriam já um primeiro encaminhamento para a contribuição de documentações da investigação científica dos fenômenos de transfigurações. Aliás, os esboços de que fala o narrador, informando tê-los conservado cuidadosamente, não são acessíveis e, em conseqüência, não podem ser utilizados na pesquisa científica. Todavia, devo informar que o Professor Marco Tullio Falcomer, de Veneza, o qual há muitos anos me enviou o opúsculo de James Smith, achava-se em relações epistolares com este último e escreveu-me que o Sr. Smith publicara em fototipia, em uma revista australiana, a coleção dos desenhos em apreço; mas não me lembro do título da revista, que não era espírita e sim científica. Soube, além disso, pelo Prof. Falcomer que o Sr. Smith era um apaixonado cultor de pesquisas geológicas e etnológicas, o que explicaria a manifestação pela "lei de afinidade", das duas entidades que lhe forneceram informes relativos às investigações que lhe eram prediletas.
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CASO XIII - Entre os médiuns contemporâneos de "transfiguração"; podemos citar, na França, a Sra. Picquart e, na Inglaterra, a Sra. Bullock, com as quais se principiou a experimentar com critério científico, fotografando os fenômenos das "transfigurações", que se realizam à luz do dia ou com luzes diversamente coloridas, mas sempre suficientes.
Para começar pela Sra. Picquart, observo que o Sr. A. Barbier, no número de maio de 1924, da "Revue Scientifique et Morale du Spiritisme", expõe os métodos rigorosamente científicos com que o hipnotizador M. Piara e o Dr. Potheau, de Nice, experimentam com o referido médium. O doutor em apreço já possui uma conspícua coleção de fotografias variadas, entre as quais se acham fotografias de raios especiais que denomina "raios bio-elétricos", de fenômenos de "materializações parciais", de "concretizações ectoplásmicas" e de "transfigurações".
O médium Sra. Picquart é envolta em uma roupa aderente, sendo uma e outra previamente revistadas por testemunhas sempre novas, as quais podem levar seus aparelhos fotográficos. Depois de alguns minutos, o médium cai em transe, passando à catalepsia, e durante toda a sessão fica em estado de rigidez, sem que se lhe note o menor movimento.
Como disse, as sessões se realizam geralmente à luz do dia, mas para determinadas experiências adota-se a luz vermelha ou verde, ou amarela, caso em que se fotografa à luz do magnésio. Nos casos de "transfiguração", a Sra. Picquart muda radicalmente de fisionomia, e quando a efígie é masculina, aparecem-lhe barba e bigodes no rosto. ( loc. cit., págs. 149-151).
Esta, em resumo, a descrição genérica das experiências.
Tiro da "Light" (1927, pág. 508) a seguinte narrativa de uma sessão com a Sra. Picquart, assistida pelo Sr. Niel Gow, sessão que, entretanto, não atingiu o seu pleno desenvolvimento. Cito-a porque não disponho de outra documentação a respeito e também porque tal narrativa serve para ilustrar as modalidades com que se produzem as manifestações.
Relata o Sr. Niel Gow:
"Foi com um sentimento de grata expectativa que entrei na sala das sessões, em casa da Sra. Oudot (Rue du Fauburg Montmartre, Paris), para assistir às experiências com o médium Sra. Picquart, a respeito de quem ouvira falar com admiração. E o meu interesse fora mais do que nunca estimulado pela conspícua coleção de fotografias obtidas pela Sra. Oudot, nas quais se observa o médium nas variadas transformações do seu transe, pois que a Sra. Picquart é um médium de "transfiguração". A Sra. Oudot tinha-me explicado que ela entrava em condições de catalepsia, durante as quais se transformava de fisionomia e, quando a efígie representava um homem, apareciam-lhes pêlos no rosto. E, com efeito, várias das fotografias por mim vistas o atestavam, mostrando-se extraordinariamente interessantes.
Ao mesmo tempo que eu, assistiam à sessão um senhor norte-americano, representante de uma sociedade de investigações psíquicas dos Estados Unidos; um senhor inglês, membro de bem conhecida sociedade de investigações psíquicas de Londres; uma senhora inglesa, e três senhoras francesas, uma das quais era médium, e uma outra, a mulher de um artista dramático.
A Sra. Picquart foi apresentada a nós todos. E uma senhora pequena e de aspecto comum; pertence à burguesia e aparentemente é surda. Após a apresentação, retirou-se para pôr uma vestimenta negra muito aprimorada, com um xale negro sobre as espáduas nuas. Em nossa presença, ela mesma enrolou um lenço preto em volta da cabeça e estendeu-se a comprido sobre o tapete, apoiando a cabeça em uma almofada especialmente preparada. Estava-se em plena luz do dia e nós começamos a observá-la atentamente.
O médium emitiu dois longos suspiros e logo caiu em estado de transe. Os lábios vibravam fortemente, e os olhos giravam convulsivamente nas órbitas. Depois apareceram sobre a pele do peito e da espádua esquerda largas manchas vermelhas, e seu rosto se tornou muito pálido. A Sra. Oudot levantou um braço do médium, o qual caiu pesadamente sobre o tapete, produzindo um ruído surdo. A expectativa se fazia sempre mais ansiosa. De repente a Sra. Oudot exclamou: "Pronto! Neste momento, o espírito entra no corpo do médium." Observamos uma mudança. As bochechas do médium tornaram-se flácidas, caídas, as narinas se dilataram, os lábios se projetaram para a frente. Foi logo tomada uma fotografia da manifestação. Poucos minutos depois o médium despertou. Parecia esgotado e abatido, e foi preciso ajudá-lo a levantar-se. Urgentes negócios a liquidar impediram-me de ficar ainda e, com pesar, fui obrigado a ir-me embora. A experiência revelou-se interessante, mas devo confessar que permaneci um tanto desapontado por não ter logrado observar o fenômeno no seu completo desenvolvimento. . . "
E é realmente muito rudimentar o fenômeno de transfiguração, que foi dado ao relator assistir, fenômeno privado de qualquer forma de superposição ectoplásmica sobre o rosto do médium. Assim como se deu, a manifestação aparece como um exemplo assaz modesto de transfiguração por contração dos músculos faciais. Entretanto, são de notar-se as placas vermelhas que apareceram sobre a epiderme do médium, as quais indicariam uma emergência incipiente de transformação ectoplasmática, que por uma causa qualquer não chegou a progredir. Assim sendo, é claro que se não houvesse o precedente de numerosas fotografias, superposições ectoplásmicas, obtidas pela Sra. Oudot, e sobretudo pelo Dr. Potheau, teria sido preferível não citar a experiência.
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CASO XIV - Os fenômenos de "transfiguração" que se obtêm com a Sra. Bullock são por demais notáveis e interessantes. Como se trata, porém, de uma mediunidade muito recente, publicaram-se poucas relações de suas experiências e, ademais, só me é possível referi-las pelos resumos das relações publicadas na revista Light. Passo, pois, a referir-me às mesmas, já que não é possível mencioná-las sendo numa classificação destes fenômenos.
No n.° de 12 de junho de 1931 da Light (pág. 283) encontra-se uma relação resumida da seguinte forma:
"O Rev. Will J. Erwood publica na revista "The National Spiritualist", de Chicago, a relação de uma sessão feita por ele em Hale, Manchester, com o médium de transfiguração Sra. Bullock durante a qual se obtiveram manifestações por demais notáveis.
A Sra. Bullock se achava sentada em plena luz, de maneira que se faziam visíveis os mais minuciosos detalhes das manifestações e, no espaço de uma hora e meia, apareceram nada menos de 50 rostos diferentes, sobrepostos ao rosto do médium. O Rev. Erwood observa: "Era como se o resto do médium fosse uma massa elástica moldável à vontade e modelada, ademais, com assombrosa perícia e rapidez, por um exímio mestre na arte, o qual, com fervor inesgotável, passara de uma a outra efígie. No decurso dessa admirável sessão apareceram todas as espécies de rostos e, entre eles, fisionomias de orientais e hindus, calmos, graves e espirituais. Um dos episódios mais impressionantes foi a personificação de uma menina paralítica, conhecida por mim nos Estados Unidos da América. Todo o corpo do médium, juntamente com seu rosto, se havia contraído e transformado em forma radicalmente distinta do aspecto normal da mesma, representando, com toda a exatidão, as lamentáveis condições em que se encontrara aquela pobre vítima da paralisia."
Em outro número da mesma revista, lê-se o seguinte resumo:
"Os estudiosos das Investigações psíquicas de Belfast se interessaram muito, ainda há pouco, pelas experiências da Sra. Bullock, que se realizaram na sede da "Sociedade de Pesquisas Psíquicas". Essas manifestações foram de um caráter incomum. O referido médium sentou-se defronte de uma lâmpada vermelha, de uma luz algo tênue, e, depois que se manifestou seu "espírito-guia", começaram a produzir-se as assombrosas transfigurações de seu resto, que ia tomando os semblantes dos espíritos que, sucessivamente, se comunicavam.
Por detrás do médium fora estendido um largo pedaço quadrado de veludo preto, e, como o médium se vestira igualmente de preto, as caras, que apareciam, se destacavam de forma notável. O mais extraordinário verificado na produção das transfigurações consistiu na circunstância de que essas cresciam e se desenvolviam internamente e, como se manifestaram também rostos de orientais muito velhos, era muito interessante e prodigioso observar-se como o rosto do médium se tornava, de repente, enrugado, ao mesmo tempo que as sobrancelhas se alargavam obliquamente e se desenhava sobre o lábio a sombra de bigodes virados para baixo. Desnecessário é dizer que se manifestaram muitas personalidades de defuntos conhecidos dos presentes, que conversaram, assim, com parentes e amigos.
Devo acrescentar que a Sra. Bullock é uma pessoa muito simpática, cuja modéstia iguala sua sinceridade. O seu aparecimento entre nós, com sua mediunidade rara e prodigiosa, foi um acontecimento que despertou o maior interesse (Light, 1932, pág. 141).
Como se verifica por estes sucintos relatos, a mediunidade da Sra. Bullock é realmente notável e promissora e, posto que se trate de um médium todavia muito novo, dado é esperar ulterior e próximo desenvolvimento de suas faculdades supranormais, desde que a estudem experimentadores que se proponham a observar os fenômenos de um ponto de vista rigorosamente científico.
Teoricamente falando, mostra-se importante a observação feita pelo relator quando diz que as transfigurações "cresciam e se dissolviam interiormente", o que induz a presumir que, em tais fenômenos, se verifiquem uma produção e conformação interior da substância ectoplásmica que constitui os tecidos do rosto do médium, caso em que os tecidos se dissolveriam em uma substância amorfa muito maleável, com a qual as distintas personalidades espirituais comunicamos plasmariam suas efígies em virtude de um ato volitivo, devido ao qual entrariam em função suas próprias "forças organizadoras" individuais. A este respeito quero recordar que anteriormente citei um caso sucedido com o médium Home (Caso IV) em que houve uma circunstância que vem confirmar tal interpretação dos fatos. Disse, na ocasião, que nos processos da diminuição do rosto daquele, notava-se a curiosa circunstância da pele que se tornava profundamente enrugada e flácida, indício evidente de que o fenômeno de transfiguração se produzia com a ajuda de processos de "dissolução interior", isto é, de subtração de substância ectoplásmica dos tecidos do rosto do médium, pelo qual se subtende que os processos opostos de retoque com adição de massa ectoplásmica ao rosto do médium se deviam realizar igualmente por "integrações e manipulações internas".
Mostra-se assombroso-até o inconcebível o fato de que, no intervalo de hora e meia, se tenham podido sobrepor, materializar e dissolver, 50 rostos sobre o do médium. Contudo e apesar da nossa incapacidade para compreender o fenômeno, é raro nas experiências de transfiguração, mas já foi citado antes um caso análogo.
Com o intuito de atenuar, de certo modo, o espanto justificado do leitor, quero recordar que sucede o mesmo nos fenômenos das materializações de fantasmas independentes do médium. Valem por todas as experiências relativamente recentes de Varsóvia com o médium Frank Kluski, em que os fantasmas se manifestavam em sucessão ininterrupta, dissolvendo-se instantaneamente ante os espectadores, da mesma forma instantânea com a qual se haviam materializado. Quero recordar, também, que, nas clássicas experiências de William Crookes, o fantasma materializado de "Katie King" aparecia e desaparecia com fulminante instantaneidade, se bem se tratasse de um fantasma solidamente conformado e perfeitamente organizado. Infere-se que esse segundo mistério, mais imperscrutável ainda que o primeiro, serve, quando menos, para tornar mais aceitável a particularidade da sucessão rapidíssima com que se concretizam e se dissolvem os rostos supranormais nas experiências de transfiguração.
Noto, enfim, que ambos os narradores falam de manifestações de defuntos conhecidos dos experimentadores, com provas de identificação pessoal, entre as quais se mostra muito notável a referida pelo Rev. Erwood, em que o médium se transfigura no rosto e no corpo, personificando uma pobre paralítica, conhecida do narrador. Não há quem não veja como tal episódio, em que se nota uma completa identificação física da defunta que se manifesta, induz racionalmente a presumir que, se o episódio mesmo não pode desta vez explicar-se com o trabalho de uma força modeladora subconsciente, e isto pelas considerações precedentemente expostas, reforçadas pelo fato de que o médium jamais conhecera a moça que se manifestara, então dever-se-ia concluir no mesmo sentido para as materializações de todos os outros rostos, isto é, na sentido de que, nos numerosos semblantes aparecidos, dever-se-ia pressupor a intervenção de outras tantas personalidades de defuntos.
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CASO XV - Este último caso, de data recentíssima, realizou-se espontaneamente, com o conhecido médium Sra. Barkel, que possui faculdades de "clarividência" e é uma "oradora por inspiração", como são tantas em países anglo-saxões. Aquele a quem foi dado observar nela o fenômeno da transfiguração do rosto foi o Sr. Leonard Farqhuar, um céptico, que se dirigira à reunião com a intenção de formar uma opinião pessoal a respeito de semelhantes experiências. Escreve ele:
"Declaro que não sou espírita, mas sei manter-me prudentemente neutro quando se trata de assuntos que não conheço e os meus conhecimentos a respeito remontam a uma semana antes da sessão de que me proponho a falar. Eu sou positivista materialista e, em conseqüência, não se poderia dizer que tivesse tendência para ter visões por auto-sugestão.
Na minha qualidade de neófito, propus-me a vigiar, atentamente, o médium no momento em que caísse em "transe". Assim procedendo não me parecem notar indícios de sua passagem a condições anormais quando se pôs de pé para começar o sermão, o qual me deixou profundamente decepcionado. Nada encontrara que fosse de molde a sugerir uma origem supranormal... e foi para mim verdadeiro alívio quando vi a Sra. Barkel tornar a sentar-se. Sentia-me mais decepcionado, irritado e quase hostil.
A "presidente" pôs-se a falar por sua vez, mas eu não a escutava e fixava o olhar perscrutador sobre o médium, com o escopo de assegurar-me se realmente se manifestariam indícios da sua emergência em um estado anormal.
Pois bem: desta vez houve indícios, e de um gênero inspirado. A Sra. Barkel estava sentada tranqüilamente, com a cabeça levemente reclinada. Pouco depois observei um movimento dos seus ombros, que se puseram em linha horizontal, enquanto a cabeça caía bruscamente para frente, indo apoiar-se com o queixo sobre o peito, mas o queixo se mostrava particularmente indistinto. Depois, o médium permaneceu imóvel como uma estátua. Eu continuava a observá-la com impassível insistência, enquanto a "presidente" prosseguia no seu discurso. De repente, com imenso estupor meu, notei que a cabeça e o rosto da Sra. Barkel estavam totalmente mudados, ou melhor, tinham sido substituídos pela cabeça e o rosto de um homem. Entretanto, eu não notara mesmo o mais insignificante movimento! Isto não impedia que, no lugar do rosto da Sra. Barkel, reclinado sobre o peito, se achasse o másculo rosto de um homem, que se sobrepusera ao primeiro, mas sem o menor movimento perceptível e apesar de redobrada atenção. Depois esfreguei os olhos e lancei rápido olhar à assembléia, para assegurar-me se alguém se apercebera do fenômeno, mas todos escutavam atentamente o discurso da "presidente" e ninguém prestava atenção ao médium. Voltei a contemplar o espetáculo com o mais vivo interesse. Se se tratasse de uma visão fugaz, teria acabado por dar de ombros, pensando nas estranhas ilusões que os "jogos de sombra" chegam a criar, mas aquele rosto de homem permaneceu diante de mim vários minutos, não apenas um instante fugacíssimo.
A Sra. Barkel envergava um comprido vestido preto, ornado de um colar branco, e eu jamais esquecerei o grotesco contraste gerado pelo fato dela achar-se sentada imóvel, como morta, e com uma cabeça que não era a sua, mas a de um homem!
Nesse meio tempo, o grande discurso da "presidente" continuava a absorver a atenção da assembléia, enquanto a seu lado uma mulher-homem jazia enrijecida, com aspecto de morta.
Procurei certificar-me se a cabeleira da Sra. Barkel, que é de uma cor louro-dourada brilhantissima, permanecera tal qual era, mais não; ela se tornara opaca, enquanto uma boa parte da mesma desaparecera sob a máscara máscula sobreposta ao seu rosto, que, como eu disse, pousava o queixo sobre o peito do médium.
Parecia a máscara de um homem que tivesse sido fulminado na própria cadeira, reclinando a cabeça sobre o peito. Desgraçadamente, eu o divisava de perfil e não consegui estudar-lhe exatamente os tratos de maneira a descrevê-los eficazmente. Do canto de onde olhava, distinguia-lhe uns três quartos, uma porção dos quais se apresentavam em ótima luz para mim, mas os traços daquele rosto não eram distintos. Também os cabelos pareciam indefinidos e não saberia descrevê-los. A parte do queixo, que se me apresentava, era imberbe e amarelada como pergaminho, mas no conjunto o rosto parecia acinzentado. Na base das faces se distinguiam rugas, que pareciam produzidas pela pressão do queixo sobre o peito. Na região das orelhas observavam-se "costeletas", que se prolongavam até o queixo. O rosto do rosto era barbeado.
Como disse, aquele semblante não era distinto, não obstante, posso afirmar que se tratava do rosto de um homem maduro, mas não velho, de muito grave aspecto e aparentemente morto.
Fiquei a contemplar o fenômeno por vários minutos (não simplesmente "segundos" é bom notar), até que vi a Sra. Barkel mover-se durante um instante na cadeira, para depois levantar-se e olhar em torno com expressão de estupor. Voltara a si, com transformação instantânea, e os seus cabelos de ouro brilhavam novamente à luz!
E agora pergunto a mim mesmo: Como explicar-se semelhante fenômeno? Talvez atribuindo-o à minha imaginação super excitada pelo sermão inspirado que ouvira? Não, de certo, visto que aquele sermão aguçara, ao contrário, o meu cepticismo, deixando-me impassível e decepcionado. Talvez atribuindo-o aos efeitos do álcool? - Excluo também isto, pois que sou abstêmio. - Talvez a um sonho em estado de sonolência? - Mil vezes excluído, pois que nunca estive tão vigilante e atento como naquele momento. - Talvez à incubação de qualquer enfermidade? Excluído, pois que continuo a gozar perfeita saúde do corpo e do espírito." (Psychic News, 1932, n.° 22, pág. 10).
Como se infere das respostas a estas interrogações finais, o relator-percipiente está bem seguro de quanto viu, ao passo que da narração exposta sobressai, outrossim, que ele é, de fato, um observador inteligente e sagaz, ao qual não escapou nenhuma particularidade do fenômeno acorrido, o que é mais importante, porquanto, sendo um céptico e um decepcionado, era por isso mesmo o observador melhor indicado para analisar serena e desapaixonadamente o que se desenrolava diante de si e se a tais considerações se acrescenta a circunstância de ter podido observar o fenômeno durante vários minutos consecutivos, não nos resta senão reconhecer que assistira a um magnífico fenômeno de "transfiguração" (fenômeno cuja existência ignorava), mediante o qual, presumivelmente, um defunto, cujos parentes se achavam presentes, tentara reproduzir a cena da própria morte com o escopo de reconhecimento. É, pois, bem deplorável que o discurso da "presidente" tivesse impedido os assistentes de prestar atenção ao que se passava, espontaneamente, diante deles.
No que se refere à classificação das manifestações, tudo concorre para demonstrar que se tratava de um fenômeno de transfiguração verdadeiro, porquanto se notaram na mesma alguns sinais de adição ectoplásmica sobre o rosto do médium, tais como as "costeletas" que, partindo das orelhas, se prolongavam até o queixo do rosto másculo que se veio sobre por ao outro, feminino. Acrescente-se que o fato do percipiente insistir sobre a aparência indistinta dos traços daquele rosto tende a reforçar a mesma tese, porquanto se deveria presumir que os traços indistintos derivassem de uma produção imperfeita da materialização, o que equivale a admitir a existência de um processo de exteriorização ectoplásmica.
Observo que o percipiente teve a impressão de que o fenômeno consistisse em uma máscara de ectoplasma concretizada, não se sabe como, sobre o rosto do médium e tal observação adquire valor teórico pelo fato de quem assim se exprime é um profano, absolutamente ignorante da técnica dos fenômenos a que assistiu, o que leva a reconhecer que a semelhança de sua expressão com as de vários outros que assistiram a idêntico fenômeno tende a fazer presumir que, para a classe das manifestações em apreço, deva realizar-se algo de semelhante.
Observo, enfim, que nas experiências mediúnicas do gênero, como também algumas vezes fora delas (veja-se o caso V), se repete freqüentemente o interessante fato da manifestação espontânea dos fenômenos de "transfiguração", conquanto o mais das vezes isso sucede sob a forma menos interessante da "adaptação dos músculos faciais", adaptação, porém, que é muitas vezes levada a tais extremos (não realizáveis normalmente) que chega à representação de uma terceira pessoa defunta. Viu-se, ao contrário, que, no caso exposto, se bem que estivesse presente um médium dotado de faculdades supranormais diversas, o fenômeno assume valor de transfiguração ectoplásmica.
Agora, assaz difícil é explicar-se tais formas de transfiguração espontânea, se não se recorrer à intervenção de uma entidade de defunto que se tivesse apoderado do organismo do "sensitivo" em condições de sono. Assim, por exemplo, no caso V., em que se trata de um filho que vela o pai adormecido e vê transformar-se o seu rosto no da própria mãe, enquanto a camareira nota, espontaneamente, o mesmo fato, em um caso semelhante, o único modo de explicar o fenômeno é o de presumir que a mãe defunta, que, por várias vezes, aparecera ao marido enfermo e prestes a morrer, tenha querido manifestar-se ao filho pela única forma por que podia atingir o seu objetivo. Por outro lado, caso se quisesse explicar o fenômeno com uma hipótese naturalista, dever-se-ia admitir que a transfiguração do rosto do enfermo fosse devida à circunstância de o enfermo ter sonhado encontrar-se com a mulher defunta, o que se mostra uma hipótese literalmente gratuita e insustentável, tanto mais se se considerar que, para provocar a transformação do rosto do adormecido no da pessoa sonhada, não bastou que ele a visse diante de si, e dever-se-ia afirmar que ele teria sonhado transformar-se na pessoa sonhada, o que não é, certamente, um sonho verossímil. Suponho que não se conheçam exemplos de pessoas que hajam sonhado ter mudado de sexo, sem contar que um sonho semelhante não poderia determinar um fenômeno de transfiguração em um adormecido que não seja médium. Além disso, recordo que a mesma hipótese tornar-se-ia mais do que nunca insustentável nos casos do gênero em transfiguração do rosto do adormecido assume o caráter geração ectoplásmica, e isto por força das considerações desenvolvidas nos comentários aos casos X e XI.
Com isto ponho termo à enumeração dos casos de "transfiguração" que rebusquei, laboriosamente, no meio de um número elevado de episódios do gênero, os quais, se bem que algumas vezes muito interessantes, não apresentavam as necessárias garantias de autenticidade, fosse por insuficiência de dados, fosse, enfim, por uma certa desconfiança, talvez injustificada, por mim concebida pelas faculdades de observação de quem as referia.
E também com relação aos poucos casos citados, recordarei como, na introdução ao presente trabalho, tive oportunidade de observar que eles apresentavam escasso valor científico, e isso pela natureza das próprias manifestações, as quais eram observadas em condições que dependiam muito da perspicácia e do estado de alma dos experimentadores e ofereciam o flanco a legítimas dúvidas e cepticismos, de modo que dever-se-ia reconhecer que a classe dos fenômenos em apreço tinha conquistado o lugar que o espera na casuística metapsíquica quando se houvesse difundido entre os experimentadores o método científico de fixar sobre a placa fotográfica as transfigurações dos médiuns.
Isto posto, passo a enumerar o pouco do experimentalmente adequado que se contém nos casas relatados, notando, antes de tudo, que entre eles se notam seis casos observados coletivamente por dois, por cinco, ou por numerosos observadores (casos V - VII - VIII - XI - XIV), e que já servem para eliminar a hipótese alucinatória. Para excluir a outra hipótese, ou melhor, a outra objeção da insuficiência dos dados para prova de que nas transfigurações intervenham elementos de integração ectoplásmica, podem aduzir-se os casos IV-VIII-X-XI-XIII-XIV-XV, em que foram observadas materializações de supercílios inexistentes sobre o rosto do médium, de bigodes e de barba aparecidos em rostos femininos, de cabelos branquíssimos em rostos juvenis de médiuns, de narizes que mudaram radicalmente de forma, e de alongamentos supranormais do corpo do médium no caso de Home. Recordo, enfim, que três dos casos em apreço são acompanhados de documentação permanente, em um das quais ela consiste em desenhos da realidade, tomados simultaneamente com a produção dos fenômenos, e nos outros consiste em uma copiosa coleção de fotografias. E esta última circunstância assinala já a introdução dos métodos de indagação científicos nas experiências em apreço, conquanto o que por ora se obtém seja ainda de ordem particular e em conseqüência dificilmente utilizável em serviço da ciência.
Resta-me observar que, entre os médiuns contemporâneos com os quais se obtêm fenômenos de transfiguração, devem ser incluídos o médium alemão Heinrich Melzer, de Dresden, e o médium sueco Ana Rasmussen, que não citei na classificação dos casos porque não dispunha de relatos adequados para o fazer.
Não obstante? informo que o médium Melzer realizou recentemente uma série de sessões na sala do "British College of Psychic Science", cujo presidente, o Sr. James Hewat Mackenzie, publicou a respeito um relato na revista "Psychic Science" (1927, pág. 19). Ora, em tal relato se lê este parágrafo:
"Em dado momento achamo-nos em face da máscara autêntica de um personagem chinês, mascara que veio sobrepor-se ao rosto do médium.
Ninguém, a não ser quem se achasse presente, poderia apreciar o realismo impressionante de semelhante transfiguração do rosto de um europeu no de oriental e isto em conseqüência da substituição das personalidades mediúnicas."
Por sua vez, o naturalista Professor Tillyard, em uma conferência realizada no "National Laboratory of Psychic Research", aludiu a um caso análogo ocorrido com o médium Ana Rasmussen, observando a respeito:
"A sessão se realizou em plena luz do dia e o médium não caiu em transe, mas somente em um estado de estupor... Seu nariz se transformou e as características faciais se tornaram as de um homem, enquanto o médium começou a conversar com timbre vocal absolutamente másculo. Todos os cientistas presentes discutiram longamente sobre diversas hipóteses para de alguma forma explicar cientificamente o estranho fenômeno a que haviam assistido." (Light, 1926, pág. 472).
Passando às induções e deduções que os fenômenos em exame sugerem, observo, antes de tudo, que a análise comparada dos melhores fenômenos leva logo a notar a circunstância de que uma relação indubitável existe entre os fenômenos de "transfiguração" e os das "materializações integrais de fantasmas independentes do médium" e tal relação se mostra evidente a ponto de se dever inferir que os primeiros são uma fase de exteriorização incipiente dos segundos.
Alexandre Aksakof já o tinha notado no seu livro "Um caso de desmaterialização parcial" (págs. 210-211), observando que os fenômenos de "transfiguração" eram importantes, porquanto representavam a fase inicial dos fenômenos de "materialização" e, a propósito da exteriorização de um fantasma materializado com o médium Sra. Compton, observa:
"Quando a forma materializada nada mais apresenta de comum com o aspecto do médium, encontramo-nos em face de uma completa transformação. Por quem ou por que foi produzido o fenômeno? É nisto que reside a tão formidável quão espinhosa questão a resolver. É certamente inverossímil que tão radical transformação seja devida às faculdades supranormais da subconsciência do médium e quando a forma materializada responder a todas as exigências por mim formuladas para o reconhecimento legítimo de uma individualidade, obter-se-ia com isso uma prova eficacíssima em demonstração de que uma outra personalidade transcendental, independente do médium, se apoderara unicamente da substância orgânica deste último, para servir aos próprios fins. Mas, se assim for, não seria talvez mais simples para a personalidade transcendental em questão utilizar-se para tais fins do próprio corpo do médium, ou somente do seu rosto, transformando-o segundo seus desejos, sem recorrer à produção maravilhosa, mas muito mais difícil, de um corpo distinto e absolutamente diferente do corpo do médium? Se existissem fatos de tal natureza, então, entrar-se-ia na posse de uma prova admirável, tangível, visível, em demonstração de que as materializações que reduzem a um fenômeno de transmutação. Pois bem. Estes fatos existem, mas são raros e se acham dispersos na massa enorme de material grosseiro existente na literatura espírita."
Após o que Aksakof procedeu à citação de dois casos de "transfiguração", com aparecimento de barba e cabelos grisalhos no rosto e na cabeça do médium, observando a respeito:
"Se bem que a Sra. Killingbury denomine os casos relatados de "fenômenos de transfiguração", notam-se neles circunstâncias de produção tais como barba e cabelos grisalhos, bem como aumento de peso do corpo, os quais indicam, de maneira manifesta, o desenvolvimento incipiente de um processo de transformação ectoplásmica." (op. cit. 21).
Nota-se que ele estabelece uma justa distinção entre os casos de "transfiguração" em que o fenômeno se reduz a um simples jogo mais ou menos maravilhoso de contração e adaptação dos músculos faciais, e aqueles nos quais se encontra um princípio de adição ectoplásmica sob forma de características faciais inexistentes no médium. São estes os casos que ele tem em grande conta, porquanto representam o processo inicial dos fenômenos de materialização integral de fantasmas independentes do organismo do médium.
Eis a que ponto se apresenta a formidável perplexidade a resolver, a que Aksakof se refere, perplexidade que não existiria se as materializações de fantasmas fossem sempre radicalmente diferentes dos médiuns e outro tanto sucedesse com os rostos transfigurados, casos em que não se poderiam contrapor objeções sérias à interpretação espírita dos fatos, porém a produção dos fenômenos em apreço não é tão simples e nos casos das materializações, como nos das "transfigurações" se verifica muitas vezes que o rosto transfigurado ou o fantasma materializado é em parte diferente e em parte semelhante ao médium e, em determinados casos clássicos de fantasmas materializados, as semelhanças sobrepujam as diferenças, mas, ao contrário, em ambas as classes dos fenômenos, notem-se casos em que nos achamos em presença de duas personalidades radicalmente diferentes. Como explicar essas circunstâncias antitéticas, tendentes a sugerir interpretações opostas? Em minha opinião, e baseado na análise comparada dos fatos, dever-se-ia inferir que a perplexidade em apreço deriva do fato de que os fenômenos de "transfiguração", mas sobretudo os fenômenos de "materialização", podem realizar-se com duas modalidades de produção notavelmente diferentes, a primeira das quais consistiria no fato de que a personalidade mediúnica não retiraria somente substância ectoplásmica ao médium, mas apossar-se-ia do seu "fantasma ódico" (no sentido conferido ao termo pelos ocultistas), do qual se revestiria, transformando-o, mas conseguindo dificilmente dominar com a vontade a resistência passiva oposta pela "força organizadora" latente no próprio "fantasma ódico", com a conseqüência de que a transfiguração ficaria sempre imperfeita, quando a segunda de tais modalidades consistiria, ao contrário, na circunstância de que a personalidade mediúnica, favorecida por condições propícias, retiraria unicamente substância ectoplásmica do médium, sem apoderar-se do seu "fantasma ódico", caso em que estaria em situação de reproduzir, de modo perfeito, o próprio simulacro materializado e isto porque a vontade da personalidade mediúnica não teria que vencer a resistência passiva da "força organizadora" inerente ao "fantasma ódico" do médium.
Lembro-me de ter lido nos relatórios de Florence Marryat que ela perguntou um dia ao fantasma de "Katie King" por que motivo se assemelhava algumas vezes ao médium e "Katie King" lhe respondeu: "Eu não posso impedi-lo, pois a resistência passiva que me opõe o corpo fluídico do médium é
mais forte do que a minha vontade." Resposta preciosa que confirma as presunções expostas e que ao mesmo tempo demonstra que o fantasma de "Katie King" se servia do "corpo fluídico" ou "fantasma ódico" do médium para materializar-se. Isto é confirmado pela resposta obtida do médium Eusápia Paladino, em condições de hipnose, pelo Cel. Albert De Rochas.
O Sr. De Rochas relata:
"Um dia Eusápia Paladino permitiu que eu a adormecesse em presença da minha esposa (ela foi tantas vezes torturada pelos homens de ciência que se tornou medrosa). Consegui rapidamente levá-la aos estados profundos da hipnose e então, com grande espanto seu, viu aparecer à sua direita um fantasma de cor azul. Perguntei-lhe se esse fantasma seria "John". - "Não, respondeu ela, mas é desta substância de que se serve John. - Dito isto tomou-se de um sentimento de medo e pediu insistentemente para ser despertada, o que diz, deplorando não ter podido prosseguir ulteriormente nas minhas pesquisas." (A. de Rochas: "A exteriorização da motricidade", pág. 17).
Assim se pronuncia De Rochas. Observo, antes de tudo, que o experimentador dirigira à Eusápia uma pergunta formulada de maneira a sugerir de preferência uma resposta em sentido afirmativo, ao passo que Eusápia respondeu negativamente, e o fez em termos inesperados para o experimentador, o que serve para excluir a hipótese de uma presumível sugestão por parte deste último. Isto posto, observo que a explicação fornecida por Eusápia a respeito de "John", o qual se serviria do seu "fantasma ódico" para produzir os fenômenos físicos, se acha em perfeito acordo com a resposta de "Katie King". Não obstante, se quisermos ser precisos no uso dos termos, em vez de falar de "corpo fluídico" e do "corpo etéreo" (expressões que correspondem ao termo "perispírito" ou "invólucro do espírito"), deveríamos falar de "fantasma ódico" no sentido conferido a tal expressão por De Rochas e por todos os ocultistas, sentido que corresponde ao que a "Vidente de Prevorst" (no ano de 1820) chamou de "espírito de nervos", ou "princípio de vitalidade nervosa", o qual permitia à alma entrar em relação com o corpo e ao corpo com o mundo, e a "Vidente" explicava a respeito que "por semelhante intermediário os espíritos, que se achavam na região média, eram postos em estado de atrair a si elementos atmosféricos que lhes conferiam o poder de fazer-se ouvir pelos vivos, de entrar em contato com eles, de suspender as leis de gravidade ou de mover objetos pesados". Observo que estas revelações da famosa "Vidente" têm grande importância, pois foram, igualmente, fornecidas em termos equivalentes per uma sonâmbula do Rev. Werner (1840), que afirmou que "o organismo humano é vitalizado por um fluido nervoso, que é o intermediário indispensável para que a alma entre em relação com o mundo exterior", e que, por sua vez, acrescentara que "depois da morte as almas não podiam libertar-se imediatamente do fluido nervoso..., que as almas muito terrenas se saturavam dele com júbilo, porque o fluido nervoso lhes conferia o poder de retomar a forma humana e tornar-se visíveis aos vivos ou fazer-se notar por eles ou ainda entrar em contato com os mesmos, ou, enfim, produzir ruídos e sons na atmosfera terrena...". Convêm notar que estas importantes revelações de duas sonâmbulas, em torno da gênese dos fenômenos mediúnicos de ordem particularmente física, foram feitas muitos anos antes do advento do Espiritismo, o que vale dizer quando o mundo inteiro ignorava a possibilidade da existência de fenômenos de tal natureza, experimentalmente obtidos. É preciso notar igualmente a asserção de Eusápia de "que John se servia do seu "fantasma ódico" para produzir os fenômenos físicos".
A vista do que vem sendo exposto, chega-se à conclusão de que a questão formulada por Aksakof se mostra elucidável, desde que se concorde em que, nos casos de materializações de fantasmas com rostos em parte semelhantes ao do médium, se deva inferir que tal se dá porque o espírito se serve unicamente da substância ectoplásmica subtraída ao médium, evitando apoderar-se do seu "fantasma ódico", sempre ressalvados os casos em que a vontade da entidade espiritual operante se revela a tal ponto poderosa que sobrepuje a resistência passiva oposta pela "força organizadora" imanente no "fantasma ódico". Já ao contrário, nos casos dos fenômenos de "transfiguração", em que dificilmente a entidade operante poderia evitar achar-se em contraste com a "força organizadora" inerente no organismo do médium, dever-se-ia inferir quase sempre que, quando não existem semelhanças entre o rosto do médium e o rosto que aparece por transfiguração, isso sucede por ter sido a vontade da entidade espiritual operante bastante poderosa para sobrepujar a resistência passiva que se lhe opunha.
Na referida dupla solução da perplexidade enunciada por Aksakof se contém, presumivelmente, uma grande parte de verdade, pois que os fatos contribuem para demonstrar ser tão necessária a segunda interpretação quanto a primeira. E como confirmação ulterior de que as personalidades mediúnicas não se servem sempre do "fantasma ódico" do médium, observo que se conhecem exemplos de materializações simultâneas de dois ou mais fantasmas, o que não poderia ser explicado com a transformação do "fantasma ódico" do médium. Recordo a respeito as clássicas experiências do banqueiro F. Livermore com o médium Kate Fox, em que se manifestavam às vezes, simultaneamente, até quatro fantasmas materializados, visíveis à luz suficiente, e, hodiernamente, recordo as memoráveis experiências com o médium polaco Frank Kluski, nas quais sucedeu outro tanto. Acrescento finalmente que estou em situação de confirmar o que digo por experiência pessoal, pois que nas nessas trienais investigações experimentais com o médium Eusápia Paladino, no "Círculo Científico Minerva", de Gênova, investigações em que tomaram parte com o signatário o Professor Enrico Morselli e o Dr. Giuseppe Venzano, materializou-se uma noite, no gabinete mediúnico, para depois abrir as cortinas e apresentar-se, em ambiente iluminado por um bico de gás, uma forma de mulher carregando nos braços um menino que mantinha bem alto, quase em atitude de atirá-lo. Observo que o fantasma feminino apresentava particularidades de identificação pessoal e que o menino, a um dado momento, se inclinara, e, aproximando o rostinho do da forma de mulher, dera-lhe dois beijos na fronte, beijos ouvidos por todos. Ao mesmo tempo, através do intervalo das cortinas, era visível o corpo do médium estendido sobre uma maca de campanha e de quem o Prof. Morselli ligara mãos e pés. (Para melhores informações, reporto-me ao meu livro "Hipótese Espírita e Teorias Científicas", bem como ao livro do Prof. Morselli "Psicologia e Espiritismo"; volume II, págs. 214-268).
Assim sendo, manifesto que, se a forma materializada da mulher poderia circunscrever-se a uma transfiguração do "fantasma ódico" exteriorizado pelo médium, o mesmo não se pode afirmar quanto ao menino, cuja forma materializada devia necessariamente ser independente do seu "fantasma ódico", conquanto dependesse dele pela substância ectoplásmica.
Decorre daí que fica confirmado, na base dos fatos, que as personalidades espirituais dos defuntos podem bem deixar de recorrer ao "fantasma ódico" do médium; mas, por outro lado, fica não menos confirmado que, quando os fantasmas materializados se assemelham ao médium, isso se esclarece exclusivamente com a outra hipótese segundo a qual as personalidades espirituais se servem muitas vezes, para fins, do "fantasma ódico" do médium, hipótese que, como fiz notar, se mostra confirmada pela explicação em tal sentido fornecida pelo fantasma de "Katie King", e pela observação análoga que fez Eusápia Paladino em condições de hipnose.
Isto estabelecido, apresso-me a declarar que a argumentação exposta tem por único escopo resolver a questão levantada por Aksakof, e de nenhum modo o de fazê-la valer em serviço exclusivo da tese espiritualista, como se poderia inferir de determinadas expressões por mim usadas, em que eu falo de entidades espirituais de defuntos, expressões a que recorri para melhor conformar-me ao quesito enunciado por Aksakof; mas compreende-se que, no investigar a gênese dos fenômenos mediúnicos, preciso é ter sempre presentes as duas soluções com que são susceptíveis de ser interpretados, segundo as circunstâncias: Animismo e Espiritismo. E isto tanto mais no nosso caso, em que se conhecem episódios de desdobramento e de materializações de autênticos "duplos" dos médiuns, como se conhecem episódios de materializações de retratos, "simulacros chatos" de defuntos. E esta última classe de manifestações se mostra teoricamente interessante, porquanto traz confirmação à bem conhecida hipótese segundo a qual o pensamento e a vontade subconscientes dos médiuns, como o pensamento e a vontade conscientes dos defuntos, são "forças plásticas", fato este último, entretanto, que não deve ser confundida com o outro fato precedentemente discutido, acerca do poder que teriam os "espíritos desencarnados" de modificar, à vontade, o seu "corpo etéreo", de maneira a conferir ao mesmo os traços de um outro espírito, fato cuja possibilidade deve ser excluída, de acordo com as conclusões e que se chegou anteriormente, isto é, que a manifestação do próprio "corpo etéreo" sob forma visível e tangível, bem como animada e inteligente, depende de um automatismo da misteriosíssima "força organizadora" imanente em cada indivíduo e diferente em cada um, automatismo que reproduz mas não cria. E uma vez demonstrado que a Vontade dos "espíritos encarnados e desencarnados" não tem poderes dirigentes sobre o automatismo funcional da "força organizadora" que plasma a Vida nos mundos, uma vez demonstrado isto, resulta que, nas circunstâncias em discussão, em que não se trata, direi assim, de obras de arte em forma de retratos ou simulacros chatos de defuntos, mas sim de fantasmas organizados, vivos e inteligentes, é sempre necessário admitir a presença, in loco, do defunto que se manifesta com identidade de semblante.
Em outros termos: suponho ter demonstrado, baseado em provas por analogia, as três seguintes proposições teóricas: Em primeiro lugar, que nas circunstâncias em que o fantasma materializado, vivo e inteligente, é criado e animado pelo pensamento e pela vontade subconscientes do médium, isso é necessariamente uma obra de "desdobramento" do médium, caso em que a "força organizadora" imanente no "corpo etéreo" não poderia deixar de modelá-lo automaticamente sobre a "forma arquétipo" particular ao médium. Em segundo lugar, que, nas circunstâncias em que o fantasma materializado, vivo e inteligente, é criado e animado pelo pensamento e pela vontade de um defunto, então, por motivo idêntico, não poderá deixar de modelar-se, mais ou menos fielmente, sobre a "forma arquétipo" peculiar ao defunto. Em terceiro lugar, que, nas circunstâncias em que a vontade subconsciente do médium ou a consciente do defunto se proponham a modelar a efígie de um terceiro indivíduo, vivo ou defunto, que lhes seja conhecido, elas conseguirão exteriorizar um simulacro plástico inanimado e nada mais, pois que, para criar o fantasma integral organizado, vivo e inteligente, deveria animá-lo com o seu próprio "corpo etéreo", no qual existe imanente a "força organizadora" que o plasmou, a qual não poderia deixar de modelá-lo automaticamente sobre a própria "forma arquétipo", impedindo-lhe a manifestação com traços outros que os seus próprios. Tais deduções parecem claras, precisas, irrefutáveis, pelo fato anteriormente discutido e demonstrado, isto é, que a criação de um fantasma materializado, vivo e inteligente, ou de um rosto obtido por transfiguração, são obra de um automatismo da "força organizadora" imanente nos seres vivos e diferente em cada um deles. Daí decore que quem pretenda impugnar as minhas proposições deverá demonstrar-me que a lei em apreço, regedora dos fenômenos das materializações mediúnicas, lei por mim enunciada e discutida nos comentários ao caso XI, é uma criação da minha fantasia, empresa assaz difícil para quem quiser basear-se em provas.
No que diz respeito aos fenômenos da produção materializada de "simulacros inanimados" ou "retratos supranormais", observo que estes tanto podem, a seu turno, serem anímicos quanto espíritas, segundo as circunstâncias. Assim, por exemplo, no caso das magistrais e sugestivas experiências do Dr. Wolfe com o médium Sra. Hollis, nota-se que, quando escasseavam os "fluidos", obtinham-se simulacros materializados chatos do rosto e do busto do defunto presidente dos Estados Unidos, James Buchanan, amigo do Dr. Wolfe; mas, quando os "fluidos" eram abundantes, então o mesmo Buchanan conseguia materializar-se integralmente, mostrando-se capaz de se fazer ver em plena luz, de tomar uma carta que lhe apresentava o Dr. Wolfe, de folheá-la, de lê-la e de responder com relação ao conteúdo da mesma Dr. N. Wolfe: "Startling Facts in modern Spiritualism", (pág. 347). Assim sendo, dever-se-ia deduzir que, nas circunstâncias indicadas, também os simulacros chatos do amigo do Dr. Wolfe eram de origem espírita, isto é, plasmados pelo pensamento e pela vontade do defunto Buchanan, visto que, em circunstâncias propícias, este era capaz de mostrar-se sob a forma de fantasma materializado vivo, inteligente e falante. Ao contrário, no caso das materializações de simulacros chatos obtidos com o médium Eva Carrière, nas experiências da Sra. Bisson e do Prof. Schrenck-Notzing, em que tais simulacros representavam reproduções de caras observadas pelo médium em jornais ilustrados, e no outro caso do médium Linda Gazzera, que, depois de ter contemplado com vivo interesse a cabeça de São João em uma pintura de Rubens, materializou um simulacro da mesma, na sessão seguinte, dever-se-ia inferir que se tratava de simulacros criados pelo pensamento e pela vontade subconscientes dos médiuns.
Isto estabelecido, não me resta senão repetir o que outras vezes já declarei a propósito do valor reciprocamente complementar que assumem as hipóteses do Animismo e do Espiritismo, ambas necessárias para explicar a totalidade das manifestações metapsíquicas, e é de que, se se admite a sobrevivência, não se pode deixar de reconhecer que o homem é um "espírito", ainda que "encarnado", pelo que deveremos esperar que, nas crises de enfraquecimento vital que subjugam es indivíduos (sono fisiológica, sono mediúnico e hipnótico, êxtase, narcose, coma), brotem, por lampejos fugazes, aos recessos da subconsciência, faculdades de sentidos supranormais lá existentes em estado latente (fato este último fora de discussão, porque por todos reconhecido), dando lugar à produção de fenômenos análogos aos espíritas, conquanto quase sempre rudimentares e fugacíssimos (o que os torna facilmente separáveis dos outros), circunstâncias estas todas que demonstrem - note-se bem - que o Animismo é o complemento necessário do Espiritismo e que sem o Animismo ao Espiritismo faltaria base, conclusão esta teoricamente importantíssima, porquanto arrebata aos adversários da sobrevivência a única argumentação de que se servem sob múltiplas formas contra a hipótese espírita. Entretanto, do ponto de vista da pesquisa das causas, é fato que a existência do Animismo impõe aos investigadores a adoção de métodos de investigação destinados a separar os casos anímicos dos espíritas e conquanto seja verdade o que existem categorias inteiras de manifestações mediúnicas que excluem, de modo absoluto, a hipótese anímica (tais, por exemplo, os casos de xenoglossia em línguas ignoradas por todos presentes), não é menos verdade que uma parte das mesmas manifestações não é de fácil interpretação, e o único critério de pesquisa utilizável é o de submeter a um exame analítico, esmeradíssimo cada caso isolado, para em seguida pronunciar-se, caso por caso, com ponderado conhecimento de causa, em favor de uma ou outra das causas em ação; e é este o único critério de pesquisa legítimo, de vez que é manifesto não poderem as questões do mediunismo ser resolvidas com o critério oposto das generalizações totalitárias, exclusivamente aplicáveis a dados de fato de alguma sorte homogêneos, o que não impede que determinados opositores pretendam aplicá-los às manifestações metapsíquicas, as quais são por excelência multiformes e heterogêneas, pois que em sua origem existe sempre uma vontade operante, a qual, podendo ser subconsciente ou extrínseca, determina uma diversidade teoricamente radical entre as causas agentes a serem consideradas. Não nos esqueçamos, porém, de que, em última análise, nos achamos em face de uma única Vontade: a do espírito humano, ao qual dado é, algumas vezes, exercer, em ambiente terreno, as próprias faculdades espirituais latentes, tanto na fase "encarnada" como na "desencarnada".
FIM
2ª Monografia
Marcas e impressões supranormais de mãos de fogo
Em 1905, o Professor Charles Richet publicou, nos Annales des Sciences Psychiques, um artigo intitulado "Fenômenos metapsíquicos de outrora", no qual traduziu do latim uma crônica do ano de 1654, relativa aos "milagres" operados por um espírito que se manifestou a uma moça chamada Regina Fischerin, residente em Presburg, na Hungria. Entre os milagres em referência, registraram-se a impressão inflamada de uma mão do espírito, que ficou gravada num tecido, e outras impressões do mesmo gênero, em forma de cruz, traçadas na mão da vidente. Uma fototipia dessas impressões foi reproduzida no artigo em questão.
Em 1908 e 1910, o Sr. Francesco Zingaropoli, advogado em Nápoles, publicou, por sua vez, na Luce e Ombra, dois longos estudos sobre o mesmo assunto, e, depois de citar o caso relatado pelo Sr. Richet, acrescentou doze outros casos semelhantes, todos tirados de crônicas antigas. Ele tratou igualmente das impressões de mãos de fogo gravadas, em roupas brancas e outras vestes e nos corpos dos percipientes, por fantasmas de defuntos.
Na maior parte dos casos, essas manifestações eram acompanhadas de diálogos com os espíritos, assim como de fenômenos supranormais diversos, em grande parte semelhantes aos que se produzem em nossos dias.
Infelizmente, porém, a insuficiência da documentação dessas narrações antigas leva-me a não grupá-las em uma classificação científica, ainda que o Sr. Zingaropoli tenha razão em notar que as relações de circunstâncias existentes entre essas diversas manifestações contribuam, de modo elevado, em favor de sua autenticidade. Sem dúvida, mas, se essa prova indireta é incontestável e eficaz, não basta para compensar a insuficiência da documentação testemunhal.
É preciso reconhecer que, mesmo para as pessoas ao corrente dos métodos de investigação, não poderiam ser apresentados confusamente alguns episódios bem documentados e outros revestindo uma aparência de contos fantásticos ou de lendas místicas, sem que produzissem no espírito dos leitores um efeito desastroso, de natureza a neutralizar e acabar com o valor probatório de alguns episódios bem documentados. Em resumo, importa salientar que, numa classificação científica, devem-se eliminar inexoravelmente elementos que apresentem lacunas ou defeitos, sem o que seria inútil submeter os fatos aos processos de análise comparada.
De qualquer forma, observarei sempre a respeito dos fatos em questão que, mesmo que se quisesse relegar para as "lendas místicas" quase todos os casos que as compõem (o que não constituiria uma decisão racional), eles não deixariam, entretanto, de apresentar certo interesse introdutivo. Com efeito, assim como fez notar o Prof. Richet "ninguém teria pensado em imitar ou inventar manifestações supranormais de uma ordem muitas vezes estranha e inesperada, se manifestações autênticas da mesma natureza não tivesse ocorridos antes".
Ora, como tudo contribui para demonstrar que o mesmo deve acontecer em nosso caso, pareceu-me oportuno colecionar, analisar e comparar alguns episódios desta categoria, buscando e examinando sua autenticidade e origem.
Folheando com cuidado minhas classificações, encontrei vários casos dessa natureza; a maior parte, porém, é infelizmente tirada também de crônicas antigas, insuficientemente documentadas. Achei alguns, todavia, que se recomendam pelo nome autorizado das pessoas que os recolheram; observei, além disto, entre eles, dois pequenos incidentes que se renovaram mediunicamente em nossos dias, nos quais mãos de fantasmas provocaram a queimadura e a inflamação da parte do corpo das pessoas em que tocaram. Só se trata de pequenos incidentes, repito-o, mas que são de natureza incontestável; por conseqüência, se os considerarmos conjuntamente com alguns outros fenômenos da mesma espécie, que estão bem documentados e que inclui neste trabalho, parece-me que eles autorizam a concluir que os casos das impressões supranormais de mãos de fogo constituem manifestações autenticas mediúnicas.
Não se poderia, certamente, explicar o fenômeno supondo que as impressões de mãos de fogo provam a presença de espíritos que ardem nas chamas do Purgatório ou do Inferno, conclusões que satisfaziam completamente os teólogos dos séculos passados.
É, pois, útil procurar verificar em que consiste a natureza provável desse fenômeno tão estranho e perturbador.
CASO I - Começo por mencionar os fatos, apresentando antes um resumo do caso narrado pelo Prof. Richet, assim como dois outros bem documentados, citados pelo Dr. Zingaropoli.
A crônica latina traduzida pelo Prof. Richet foi pela primeira vez publicada em 1654, por ordem de Monsenhor Jorge Lippai, Arcebispo de Sttigont. Ela está guardada no "Venerável Capítulo" de Pest.
A narrativa diz que vivia em Presburg um alemão chamado João Klemens, que se convertera à religião luterana, mas que, mais tarde, quando já velho, voltara ao catolicismo, tendo falecido aos 60 anos.
Vivera de modo pouco louvável e, depois de morto, aparecera a várias pessoas, mas a crônica em referência se ocupa mais especialmente de suas manifestações a uma moça de Hallstad, Áustria, chamada Regina Fischerin, de 19 anos, católica fervorosa e de costumes irrepreensíveis.
Passo por cima das manifestações que nada têm com o assunto de que nos ocupamos aqui: fenômenos luminosos, transportes e deslocamentos de objetos, "voz direta" que conversou com os padres teólogos que acorreram ao local e alguns dentre eles reconheceram, como verdadeira, a voz do defunto.
Notarei, também, que sobressai da narração que, numa circunstância em que se produziam os mais interessantes fenômenos de transportes de objetos sem contato, sob uma direção evidentemente inteligente, "Regina ficava sem conhecimento e como inanimada, durante duas horas", ao passo que noutro trecho diz que "Regina, manifestamente esgotada por todas essas provas, adormecia profundamente".
Estas duas preciosas passagens demonstram que a vidente era médium e que caía em transe no momento em que se produziam os fenômenos físicos, o que serve para demonstrar a autenticidade dos fatos relatados.
Com efeito, as observações relativas aos casos desta categoria, quando narradas por pessoas que ignoram a significação e o interesse delas, constituem a melhor garantia da autenticidade, todas as vezes que se trata de relatos dos quais não se pôde controlar a veracidade por métodos diretos.
Passo agora a citar os episódios que nos interessam.
Em dado ponto, o narrador nota que o espírito se mostrava irritado e violento, batia portas e arrastava cadeiras ao tempo que Regina perdia o uso da fala e ficava desmaiada por algum tempo. Foi então que o pai aconselhou a filha a procurar agarrar o espírito para imobilizá-lo. A filha obedecia, mas nada retinha em seus braços: foi assim que ela se apercebeu de que se tratava de uma sombra vã.
A crônica continua assim:
"Temendo, então, ser vítima de uma ilusão, ela disse ao espírito que, se ele fosse um espírito bom, a tocasse com o dedo. Ele a tocou no braço direito, o que sentiu com logo. Subitamente, apareceu no lugar tocado uma bolha com a dor que produz uma queimadura e os criados a viram. Depois, a fim de verificar se não se tratava da obra de um espírito mau, Regina pediu-lhe, como prova de que era um espírito bom, que fizesse o sinal da cruz. "Eis, disse ele, o que me pedes." Na mesma ocasião, sobre a sua roupa, mostra uma cruz de chamas e queima, profundamente, a mão de Regina, deixando impressa nela uma cruz que todos puderam ver. A moça, porém, desejando provas mais amplas, pede ainda outro sinal. Mostra-lhe cartas que o Bispo de Smirna escrevera e assinara, e nas quais perguntava diversas coisas que a moça ignorava. O espírito respondeu que não sabia ler cartas; iria, entretanto, dar satisfação; então segurando as cartas com seus três primeiros dedos, sua mão sendo, sem dúvida, uma mão de chamas, atravessou-as, como se fossem postas ao contato de uma chama.
Recordou, a seguir, com dor, o crime que cometera, dizendo que o dinheiro produzido pelo crime existia ainda (o que se verificou, em seguida, ser verdade), que uma parte servira para encargos domésticos e que a outra devia servir para outros fins.
Regina, porém, continuou a pedir-lhe outras provas, apesar da cruz na mão ser já uma prova muito apreciável. Isto, todavia, não bastou à Regina que, para ficar certa da presença de um espírito bom, lhe pediu que fizesse o mesmo sinal em uma moeda. O espírito obedeceu, tomou a moeda, jogou-a no chão e arrancando das mãos da moça um pano, atirou-o sobre ela; depois, segurando-lhe uma das mãos, com força e, queimando-a profundamente, como dantes, nela imprimiu o desenho de uma tríplice cruz. "Eis outro sinal", disse ele, e isto fez com tanta força que a chama atingiu o coração da moça e foi tocar na parede que estava defronte.
Regina tombou desmaiada. Sua irmã viu e ouviu tudo isto, e mais tarde os criados puderam ver, com seus próprios olhos, as queimaduras produzidas no pano e na moeda. E muitas pessoas puderam ver e tocar as marcas no pano, o dinheiro, assim como as cartas queimadas.
O fato é extraordinário; primeiro porque uma cruz e uma impressão de mão direita ficaram marcadas, em seguida porque a marca de fogo não ultrapassou seus traços, embora, no pano que arde, o fogo tenha tendência para estender-se.
Finalmente, a mão direita, que ficou marcada, representa exatamente a mão direita de Klemens, como se fosse sua mão material. Com efeito, quando vivo, uma parte do dedo indicador fora cortada por um cirurgião, devido a uma enfermidade que se chama "Vermes", o que se verificou na marca supranormal produzida."
A narração desses fatos é antes confusa e em parte insuficiente; mas não se poderia pretender de um narrador de há três séculos a precisão científica nem a clareza literária que se exigiria em uma narração moderna dos fenômenos metapsíquicos.
Assim, por exemplo, o fenômeno mais importante, o da mão em brasa que ficou gravada na fazenda, é nela relatado de modo imperfeito.
Felizmente, essa impressão de mão foi conservada até nós e testemunha a autenticidade do fenômeno e da perfeita conformação da impressão obtida com a prova de identificação constituída pela falta da falangeta do dedo da mão direita.
O Prof. Charles Richet analisa o caso com uma prudência extrema, distinguindo os fenômenos que teriam sido produzidos pela intervenção consciente de Regina daqueles em que sua intervenção parecia muito duvidosa ou inadmissível. Notarei, todavia, que, em sua análise das circunstâncias favoráveis à autenticidade supranormal dos fatos, Richet não considerou que Regina caía em transe no momento em que eram produzidos os mais importantes fenômenos físicos; também se esqueceu da "voz direta" que foi reconhecida por alguns padres como sendo a do falecido João Klemens.
A propósito dos fenômenos que estudamos aqui, escreve o Prof. Richet:
"Os fenômenos relativos à impressão da mão de fogo no pano e do estigma em forma de cruz na mão são de explicação um pouco delicada. Certamente que não é impossível reproduzir-se marcas de fogo em cartas, mas numa fazenda, fazer a impressão de uma mão (semelhante ou não à mão do defunto Klemens) é coisa um pouco mais difícil e seria uma fraude habilíssima, se tivesse havido fraude, imprimir num pano de linho a marca de uma mão que queima o tecido é outra coisa. Não se pode contestar, creio, que a marca foi feita."
Tudo bem considerado, o professor Richet termina dizendo que os fatos estão provados e que a narração é verdadeira. Quanto à interpretação de alguns desses fatos, escreve:
"Há também as bolhas e a marca de uma cruz na mão de Regina. Não acreditamos a que se trate de fenômenos simulados ou falsificados, porque sabemos, de fonte limpa, que os estigmas podem aparecer nos histéricos, com formas determinadas, sob a influência de uma emoção moral ou de um delírio religioso. São fatos cientificamente estabelecidos, provando apenas a influência das emoções cerebrais sobre a circulação e o tropismo da pela."
Esta interpretação poderia ser admitida para a bolha no braço e para cruz na mão, mas como servir ela para o mesmo fenômeno capital da mão de fogo que ficou gravada no pano? Aqui, a tese dos estigmas por auto-sugestão não tem lugar.
E, se assim é, se esta hipótese não pode explicar o conjunto dos fatos, não deverá ser admitida para a bolha no braço e a cruz na mão, tanto mais que, nas circunstâncias em apreço, a vidente não pensava de modo algum na possibilidade de produzir esses fenômenos, e não podia, pois, auto-sugestionar-se graças a uma "emoção moral intensa" nesse sentido.
Reservo-me para discutir mais amplamente o assunto nas conclusões que tirar dos fatos, buscando a origem provável de cada um.
*
CASO II - Este outro caso, que extraio da monografia do Sr. Zingaropoli, da qual fiz alusão (Luce e Ombra, 1910, págs. 46-47) refere-se a impressões de mãos de fogo que estão guardadas ainda no convento das religiosas de Santa Clara, de Todi, na Úmbria.
Escreve o Sr. Zingaropoli:
"O Padre V. Jouet, Missionário Apostólico, fundou em Roma (Lungo-Tevere Pratt 12) um museu de coisas de além-túmulo. Apresenta aos seus visitantes preciosos objetos e documentos relativos a diferentes manifestações de mortos. Possui centenas de gravuras de épocas diversas, quadros e livros antigos. A parte, porém, mais curiosa da coleção em questão consiste nas fotografias de impressões de mãos de fogo, coleção que, diz ele, aumenta cada dia. Várias dessas figuras, acompanhadas de artigos destinados a ilustrá-las, são reproduzidas na revista mensal "O purgatório visitado pela caridade dos fiéis".
O número de abril de 1908, pág. 114, trata das famosas impressões de mãos de fogo que estão guardadas no convento da Santa Clara, de Todi. A protagonista do memorável fato foi Clara Teresa Fornari, nascida em Roma, a 25 de junho de 1637, abadessa do convento de Santa Clara, de Todi, morta em 1744, com cheiro de santidade. O processo de beatificação se acha em andamento; ela já é "venerável".
Cedo agora a palavra ao Padre Jouet, que expõe as impressões de sua visita a esse convento: "Sexta feira, 17 de julho de 1901, tivemos a consolação de parar em Todi, província de Perúgia, no convento das irmãs clarissas, onde se santificou, há cerca de dois séculos, a venerável Clara Isabel Fornari, cujos numerosos milagres lhe valeram processo de beatificação e canonização junto à Santa Congregação de Roma. Com uma carta de recomendação de Sua Eminência, o Cardeal José Vives y Tuto, a Monsenhor Rudolfi Bispo de Todi, pudemos ver, com nossos próprios olhos e segurar com nossas próprias mãos, entre outras relíquias e outras lembranças preciosas, os traços ainda distintos e intactos que deixaram, em objetos e roupas da venerável Clara Isabel Fornari, as mãos de fogo do falecido Reverendo Padre Panzini, abade clivetano de Mântua, alguns minutos antes de ser liberto do Purgatório.
A reverenda Madre Clara Isabel Patrizi, atual abadessa do convento, depois de ter admirado algumas fotografias reproduzidas em nossa revista, permitiu-nos amavelmente fotografar, pela primeira vez, depois de 170 anos de existência, esses documentos de tão alto interesse para o nosso "Museu de além-túmulo" e para nossa associação pia.
A tábua de madeira, na qual o defunto deixou a marca de fogo de sua mão esquerda e traçou, com o polegar da mão direita, uma cruz de fogo, servia à venerável irmã Clara Isabel para a preparação das imagens em cera do Menino Jesus. A folha de papel, com a impressão de fogo da mão esquerda do morto, está encerrada entre duas placas de cristal. Fotografamo-la dos dois lados. A manga da túnica assim como a manga da camisa com a marca em fogo da mão direta foram fotografadas de um só lado.
O relatório, abaixo reproduzido, todo escrito pelo confessor Padre Isidoro Gazale, abade do Santíssimo Crucifixo, bem no dia do próprio acontecimento, foi transcrito das duas páginas do registro em que são narrados os "milagres" da venerável.
Fotografamos, numa chapa única, esta cópia que está presentemente guardada no convento de Todi."
Assinado: V. Jouet, Missionário Apostólico, cônego honorário de Marselha.
RELATÓRIO
A Irmã Clara Isabel Fornari recebera de mim, Padre Isidoro Gazale, abade do Santíssimo Crucifixo, seu confessor ordinário, ordem de se oferecer pela alma do falecido Padre Panzini, abade de Mântua. Tinha ela, nestes últimos dias, suportado grandes abandonos e outros grandes sofrimentos que o Senhor lhe enviara para aliviar e libertar essa alma que sofria atrozmente no Purgatório. Nessa mesma manhã, quando essa mesma irmã padecia outros sofrimentos, obteve do Senhor enviar essa alma ao Paraiso, no momento justo em que se celebrava para ela a Santa Missa. Disse à Irmã Clara Isabel que desejaria que alguns dos meus amigos falecidos, que ela havia visto subir para o Céu, me dessem um sinal, assim como acontecera ao Padre Pio Crivello, seu antigo diretor de consciência. Com efeito, o irmão desse eclesiástico deixara na Irmã Clara Isabel o sinal de sua mão ao ir para o Paraíso. Desejava que algo de semelhante se produzisse comigo para melhor autenticar os fatos. E Deus permitiu que a alma do meu amigo me trouxesse o consolo almejado porque ele apareceu à Irmã, Clara Isabel quando eu celebrava a Missa e muito exortou-a a sofrer, agradecendo-lhe as promessas generosas que ela fizera em sua intenção e a mim mesmo pela celebração dos Santos Sacrifícios. Essa alma assegurou à Irmã Clara Isabel que lhe guardaria eterno reconhecimento porque, graças à sua intervenção, o Senhor lhe abreviara as penas do Purgatório. Isto dizendo, colocou a mão sobre a mesinha que a Irmã Clara Isabel tinha diante de si, para confecção das imagens do Menino Jesus em cera e imprimiu nessa mesinha o sinal da Cruz, assim como as almas do Purgatório tem o costume de fazer ao passo que as almas condenadas não o fazem nunca.
De qualquer modo, a cruz e a mão ficaram gravadas na mesinha. A aparição segurou, em seguida, Irmã Clara Isabel pelo braço e com a outra mão uma folha de papel.
Foi assim que a verdadeira mão do Abade Panzini ficou impressa no braço, na camisa, na túnica e numa folha de papel.
A mão me parece bem a do abade; aqueles que o conheceram como eu são da mesma opinião. Não se poderia desejá-la mais semelhante, pois é evidente que essa impressão só poderia ter sido produzida por ele próprio. Jamais se viu uma reprodução tão semelhante ao original. Depois disto haver feito, deixando esses sinais, essa alma evolou-se para enviar a essa religiosa mil bênçãos do belo Paraíso. Depois que a Irmã Clara Isabel tudo relatou, ordenei-a destacar a manga da sua túnica, assim como a manga da sua camisa e de mas entregar, bem como a folha de papel e a mesinha. Isto ela fez, não guardando senão para si a ferida que lhe ficou no braço em conseqüência da queimadura produzida pela mão do espírito e sua cicatriz só desapareceu quando a religiosa terminou os padecimentos, aos quais se sujeitaria para livrar essa alma do Purgatório. Guardei os objetos em referência como atestado da veracidade dos fatos e das sublimes graças concedidas e agradeço cada vez mais ao Senhor a misericórdia que teve por nós, graças a essa criatura que lhe foi agradável.
Atesto por este documento, escrito do próprio punho, que tudo isto é verdade, do que dou fé.
Todi, 1º de novembro de 1732.
Assinado: Padre Isidoro Gazele Confessor.
Notarei, primeiramente, que o caso, cuja narração acabo de transcrever, deve ser considerado como documento de modo satisfatório, considerando-se que o relatório foi redigido pelo próprio padre confessor da venerável Madre Abadessa, que foi a percipiente protagonista.
Acrescentemos que ele escreveu seu relatório no próprio dia em que se produziram os fenômenos. Outra circunstância que se faz mister considerar: as personalidades da percipiente e do narrador são, moralmente, insuspeitáveis, o que leva racionalmente a admitir-se sua boa-fé absoluta. Enfim, a existência das impressões, ainda guardadas no convento onde foram obtidas, atesta, de modo decisivo, que se trata de um caso de alucinação coletiva.
Nesse relatório, encontram-se frases de molde a demonstrar que a venerável Clara Isabel Fornari era realmente dotada de faculdades mediúnicas. O redator escreve, com efeito, que a Madre Abadessa "tinha nestes últimos dias padecido grandes abandonos e outros grandes sofrimentos que o Senhor lhe ordenara suportar para aliviar e livrar essa alma que sofria atrozmente no Purgatório. Pouco mais adiante, ele ajunta que "submetendo-se a outros sofrimentos, ela obteve do Senhor enviar a alma ao Paraíso". Ora, compreende-se facilmente que os abandonos que o narrador menciona correspondem a uma sucessão de estado de "transe" e que os grandes sofrimentos eram crises de gemidos, esses acessos convulsivos que precedem e seguem de ordinário o sono mediúnico. Todas estas circunstâncias servem para confirmar a autenticidade supranormal dos fatos. Quanto às impressões de fogo que se obtiveram, foram, nesse caso, excepcionalmente numerosas. Registraram-se, com efeito, as impressões de uma mão esquerda e uma cruz numa mesinha de madeira, a impressão de uma outra mão esquerda numa folha de papel, a impressão de uma mão direita numa das mangas da túnica e da camisa da venerável Madre Abadessa, enfim, a impressão ou mais precisamente a bolha que ficou gravada no braço da religiosa, em conseqüência do contato da mão do fantasma. Este último incidente é inteiramente análogo ao de que tratei no caso anterior, no qual o espírito do defunto, tendo tocado com o dedo o braço da percipiente, uma bolha aí apareceu logo, como se fosse uma queimadura, e a percipiente sentiu-lhe a dor, uma espécie de cozedura de carne, como se se tratasse realmente de um contato de coisa ardente.
CASOS III e IV - É chegado o momento de citar dois pequenos incidentes semelhantes ao que acabo de narrar e que se produziram mediunicamente mais recentemente conforme disse na introdução deste estudo.
O primeiro se produziu no decurso das famosas experiências do Rev. William Stainton Moses. Eis como a Sra. Speer dele fala em data de 18 de abril de 1873:
"Nosso círculo recomeçou suas sessões depois de uma interrupção de três semanas. Obtiveram-se os fenômenos físicos habituais, mas, em seguida, manifestou-se o espírito de uma pessoa falecida há pouco, que o médium conhecera muito antes. Anunciou sua presença com golpes muito fortes e sua influência logo apareceu a todos repulsivo. O médium via o espírito sentado no tamborete de harmônio, olhando-o em atitude zombeteira. Fez com que se visse que se tratava de um espírito muito atrasado; quis infelizmente tocar a mão do médium e esse se queixou de uma queimadura de carne no lugar em que o espírito tocara. Com efeito, uma bolha de uma cor vermelha formara-se nesse lugar." (Light 1892, pág. 627).
O segundo dos incidentes aconteceu em Leipzig, na casa do engenheiro Paul Horra, tendo sido registrado no numero de julho do Die Uebersinnliche Welt.
Foi numa sessão com o famoso médium de transportes Heinrich Melzer, de Dresden, que fora encerrado num saco guarnecido de mangas e de uma abertura onde introduziu a cabeça.
As mangas eram fixas e seladas. Obtiveram-se numerosos transportes, entre os quais duas plantas inteiras, com os vasos onde tinham sido plantadas. Os ramos e os botões foram achados intactos, ainda que uma das plantas fosse de uma espécie extremamente delicada. Foram depositadas nas mãos de dois experimentadores, um dos quais sentiu, ao mesmo tempo, a dor de uma queimadura no dedo polegar. Acendeu-se a luz e viu-se que, nesse lugar, se formara a marca de uma queimadura com uma bolha.
Tais são os dois incidentes que se produziram mediunicamente. Compreende-se facilmente que constituem uma confirmação eficaz dos casos análogos que se produziram há séculos. Ora, esta confirmação reveste-se de um valor teórico notável.
Com efeito, os quatro modestos incidentes que acabo de narrar, se autênticos, bastam por si sós para demonstrar a existência real dos fenômenos das impressões de mãos de fogo. Por outro lado, os dois casos de natureza mediúnica servem, também, para eliminar a hipótese dos estigmas por auto-sugestão, considerando-se que é necessário excluir deles toda forma de crise emotiva nos percipientes, que não esperavam, de modo algum, o que se ia produzir.
Demais, estando esses experimentadores familiarizados, de há muito, com os fenômenos mediúnicos, assistiam às manifestações com perfeita serenidade de espírito.
Voltando ao caso em questão, vou resumir os fatos, observando que nos encontramos em face de cinco impressões de fogo feitas em roupas e objetos e uma gravada na pele da percipiente. É; pois, evidente, que a hipótese dos estigmas por auto-sugestão não é admissível, considerando-se que só serviria para explicar, até certo ponto, um único episódio nos seis casos que se produziram.
Ainda uma observação: Como pudemos ver, o espírito comunicante afirmava estar no Purgatório, ou melhor, julgava ali estar. Ele disse à percipiente que "o Senhor, por intermédio dela, lhe abreviara o tempo que deveria passar no Purgatório".
Em numerosos casos extraídos de crônicas antigas, essas afirmações concordam entre si e o Sr. Zingaropoli comenta suas concordâncias, tendendo para as mesmas considerações que constituiriam mais tarde o fundamento teórico de minha obra "A crise da morte".
Com efeito, escreve ele:
"Todas essas almas pecaram e temem merecer de Deus um justo castigo; para todas, o fato de crerem encontrar-se em punição lhes faz experimentar as dores da expiação, tal como lhes foi ensinado na Terra."
Isto efetivamente acontece e a análise comparada que escrevi a respeito, na obra que acabo de citar, faz também sobressair que o poder criador do pensamento torna transitoriamente reais e espirituais ou etericamente objetivas as condições do meio espiritual imaginado.
O Sr. Vicenzo Cavalli, citado pelo Sr. Zingaropoli, desde então manifestara também a mesma idéia, nos seguintes termos: "Na segunda vida, sabemos que crer é sentir e sentir equivale a ser, por causa do grande poder da imaginação:'
Essas intuições dos Srs. Zingaropoli e Cavalli são notáveis para a época em que foram feitas, considerando que só mais tarde cheguei às mesmas conclusões, pelos processos da análise comparada e da convergência das provas aplicadas a grande número de fatos.
Nestas condições e voltando às afirmações dos espíritos que se comunicam, apresso-me a notar que, ainda que os teólogos concordem em suas interpretações sobre as impressões das mãos de fogo, explicadas pela lenda do fogo e das chamas do Purgatório e do Inferno, nenhum dos espíritos comunicantes jamais disse, de qualquer modo, encontrar-se no meio de fogo e de chamas.
Eles afirmam unicamente estar num plano espiritual de expiação, que chamam de Purgatório, conforme lhes foi ensinado.
*
CASO V - Ocaso de que vou ocupar-me, muito bem documentado, foi igualmente tirado da monografia do advogado Zingaropoli (Luce e Ombra, 1910, págs. 614-7). Produziu-se em uma época relativamente recente.
O Dr. Zingaropoli reproduziu, na íntegra, as passagens mais emocionantes da narração assinada pela Madre Abadessa e as Irmãs decanas do Convento das Terciárias Franciscanas de Santana de Foligno, província de Perúgia, a qual foi confirmada por outras testemunhas, como adiante se verá.
A morta que se manifestou chamava-se Irmã Teresa Margarida Giesta. Nasceu em Bástia, Córsega, a 15 de março de 1797 e era filha de um rico negociante. Levada à contemplação, renunciara à facilidade da vida profana e vestira o hábito religioso a 24 de outubro de 1836, no Convento das Terciárias Franciscanas de Foligno, onde desencarnou a 4 de novembro de 1853. Vou ceder agora a palavra à Madre Abadessa Maria Vitória Constância Vichi:
"No dia 5 solenes exéquias foram realizadas e a 6, como se devia inumá-la, pensou-se a princípio em colocá-la num lugar especial; mas se decidiu, em seguida, fazer-lhe um caixão de tábuas, coisa que não se fizera ainda, e enterrá-la no túmulo comum das religiosas. Enquanto se esperava, o confessor da comunidade, Padre Lourenço, de Solero, perto de Alexandria, no Piemonte, após ter escrito algumas indicações sobre a defunta, colocou o escrito num frasco de vidro que depositou ao lado do corpo, no esquife, e pronunciou as seguintes palavras, na presença das outras religiosas: "Nada quero dizer sobre os dons com que ela foi favorecida por Deus, porque, se ela quiser alguma coisa, far-se-á ouvir."
O caixão foi fechado e descido ao túmulo.
Três dias apenas haviam transcorrido após o falecimento, quando uma voz lúgubre e lastimosa começou, de quando em quando, a fazer-se ouvir no quarto em que a Irmã Teresa morrera ou nas peças ao lado deste, mas não se deu nenhuma importância ao fato, pensando-se que se tratava de uma alteração da fantasia de religiosas tímidas e crédulas.
No dia 16 do mesmo mês de novembro, às 10 horas da manhã, a Irmã do coro, Ana Feliciana Menghini, de Montefalco, mais corajosa do que suas companheiras, que fora à grande sala de roupas brancas para cumprir alguma ordem que lhe deram, quando subia a escada, ouviu um gemido abafado e creu reconhecer, nesse som, a voz da defunta companheira de trabalho, Irmã Teresa Margarida. Todavia, armou-se de coragem, pensando: "Trata-se, talvez, de um gato fechado num dos armários da parede." Abriu então um desses armários, mas nada encontrou. O queixume se fez ouvir de novo. A Irmã abriu outro armário, e nada, porém, tendo encontrado, fechou-o assim como ao primeiro, quando um terceiro gemido se fez escutar. Abriu ainda outro armário sem nada descobrir. Então, a religiosa, espantada, exclamou: "Jesus, Maria! Que é que há?"
Havia, apenas, acabado de pronunciar estas palavras, quando a voz lúgubre da defunta, com um suspiro penoso, exclamou; "Meu Deus, como eu sofro!"
Isto ouvindo, a Irmã Ana Feliciana tremeu e empalideceu, reconhecendo claramente a voz da morta, Irmã Teresa Margarida. Retomando, porém, a coragem, perguntou: "Por quê?" E a defunta respondeu: "Pela pobreza". "Como, replicou a outra, você era assim tão pobre?" - Não é por mim, retorquiu a morta, é pelas religiosas! Se basta um, por que dois ou três? Agora, preste a atenção - Com estas palavras, o quarto encheu-se de densa fumaça e a sombra da defunta se dirigiu de um dos armários para a escada, continuando a falar, mas sem que Ana Feliciana, sempre tomada de espanto, pudesse compreender o que dizia. Chegando à porta, a defunta disse em alta voz: "É uma misericórdia, aqui não mais voltarei e em sinal disto..." - Nesse momento, deu na porta uma pancada bem clara e logo a fumaça se dissipou e o grande quarto tornou-se claro."
Tem lugar, em seguida, a descrição da agitação que produziu no convento a notícia do que acontecera, depois do que a narrativa continua assim:
"As monjas correram todas para o aposento da Abadessa e em torno da Irmã Menghini se comprimiram para ouvir de sua própria boca a narração do que se produzira. Ela lhes contou o que sucedera e as religiosas, sabendo que a defunta houvera dito: Em sinal disto.... e que dera uma pancada na porta, exclamaram logo: "Ela deve então ter deixado algum sinal!". A Irmã Menghini respondeu: "Nada sei a respeito. Estava muito aterrorizada para pensar em examinar a porta." Então, as Irmãs em conjunto foram examinar a porta e acharam nela gravada a mão da Irmã Teresa Margarida, de modo mais perfeito do que teria feito o artista mais competente, por meio de uma mão de ferro em brasa."
O relatório continua narrando um sonho que teve nessa noite a Irmã Ana Feliciana. A defunta apareceu-lhe para agradecer às companheiras o efeito benéfico de suas preces. E acrescentou: "Pensas em apagar da porta a impressão de minha mão. Jamais o conseguirás, mesmo com o auxílio de outras pessoas. Trata-se de uma misericórdia de Deus, de um aviso, e sem isto nunca seria eu acreditada: "
Tendo sabido do que se passara, o arcediago de Foligno, no dia 23 do mesmo mês, fez redigir uma ata do fato. Abriu-se então o túmulo, aplicou-se a própria mão da morta a impressão que deixara na porta e as testemunhas que fizeram vir, atestaram que a mão se adaptava perfeitamente na impressão.
A impressão foi em seguida coberta com um véu que a ocultava e a porta, tirada dos gonzos, foi guardada num lugar reservado. Mais tarde, sempre por ordem do arcebispado, levantou-se o véu e permitiu-se a todos os pedintes vê-la claramente. Depois, para maior precaução, fez-se uma cornija de cristal com fechadura e a impressão da mão ficou assim bem guardada.
O relatório está assinado pela Madre Abadessa, Irmã Vitória Vichi, pelas Irmãs decanas Maria Eleta Bertoccini, Ana Teresa Giovagnoni, Maria Conceta Folcri, Ana Feliciana Menghini, Maria Madalena Minelli e pela Irmã vigária Maria Angelina Torelli.
Seguem-se outros testemunhos datados de 2 de julho de 1870: são os do Padre Vicente Amoressi, da Ordem dos Pregadores, e do Padre Joaquim Priore Medori, pró-vigário Geral. Enfim, o Padre José Sensi, guardião dos Menores Observadores de São Bartholomeu, certifica o que segue, com data de 4 de abril de 1871: O relatório da abadessa de Santana está conforme os testemunhos recolhidos por ela, que podem ser considerados como não duvidosos, levando-se em conta as circunstâncias precedentes, posteriores e concomitantes dos tempos, lugares e pessoas, segundo as regras da sã moral católica e da exatidão crítica.
Como se vê, o caso está confirmado por testemunhos irrecusáveis, tendo sido escrito logo após os acontecimentos e deu lugar a um inquérito imediato, ordenado pelas autoridades eclesiásticas, no qual se encontra o detalhe muito notável do túmulo aberto para se fazer a confrontação da impressão da porta com a mão da morta. É preciso notar que ainda esta vez não se trata de um fato com a Antigüidade de alguns séculos, mas de um que se passou em 1859, isto é, em uma época relativamente recente.
Na magnífica fototipia da impressão, publicada pela Luce e Ombra, a mão aparece nitidamente gravada na madeira com o traço característico das falanges extremas de cada dedo, que ficaram profundamente gravadas na madeira queimada pelo contato da mão da morta. Esse detalhe reveste um interesse considerável, do ponto de vista probatório, porque não se poderia obter um resultado semelhante aplicando-se contra o batente da porta uma mão aberta, em ferro em brasa. Em outros termos, teria sido preciso que a suposta mão de ferro fosse feita com as cinco falanges extremas numa posição dobrada; neste caso não se teria podido obter a impressão inteira dos dedos e da mão.
Só digo isto a título de digressão crítica, pois não é possível que existisse, no convento, uma mão de ferro à disposição de mistificadores eventuais e que, demais, essa mão fosse uma reprodução exata da mão da defunta.
Notarei, além disto, que, na produção do fenômeno em questão, mister se faz não só considerar-se o fato de ter a defunta se exprimido em "voz direta" e com um timbre vocal que foi reconhecido, mas também esta outra circunstância: que o fantasma se manifestou no meio de uma nuvem de ectoplasma, que a Irmã tomou por uma "densa fumaça". Nas experiências de materializações mediúnicas tem-se observado que uma nuvenzinha de ectoplasma precede sempre ou quase sempre a manifestação do fantasma objetivo. Ora, como a vidente ignorava inteiramente essas coisas, resulta daí que sua alusão a uma pequena nuvem de "densa fumaça", que precedeu a visão do fantasma da morta, reveste grande valor probatório em favor da realidade supranormal do fenômeno.
Na magnífica fototipia da impressão, publicada pela Luce e Ombra, a mão aparece nitidamente gravada na madeira com o traço característico das falanges extremas de cada dedo, que ficaram profundamente gravadas na madeira queimada pelo contato da mão da morta. Esse detalhe reveste um interesse considerável, do ponto de vista probatório, porque não se poderia obter um resultado semelhante aplicando-se contra o batente da porta uma mão aberta, em ferro em brasa. Em outros termos, teria sido preciso que a suposta mão de ferro fosse feita com as cinco falanges extremas numa posição dobrada; neste caso não se teria podido obter a impressão inteira dos dedos e da mão.
Só digo isto a título de digressão crítica, pois não é possível que existisse, no convento, uma mão de ferro à disposição de mistificadores eventuais e que, demais, essa mão fosse uma reprodução exata da mão da defunta.
Notarei, além disto, que, na produção do fenômeno em questão, mister se faz não só considerar-se o fato de ter a defunta se exprimido em "voz direta" e com um timbre vocal que foi reconhecido, mas também esta outra circunstância que o fantasma se manifestou no meio de uma nuvem de ectoplasma, que a Irmã tomou por uma "densa fumaça". Nas experiências de materializações mediúnicas tem-se observado que uma nuvenzinha de ectoplasma precede sempre ou quase sempre a manifestação do fantasma objetivo. Ora, como a vidente ignorava inteiramente essas coisas, resulta daí que sua alusão a uma pequena nuvem de "densa fumaça", que precedeu a visão do fantasma da morta, reveste grande valor probatório em favor da realidade supranormal do fenômeno.
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CASO VI - Esse caso, no qual a mão de um fantasma ficou gravada na face da percipiente, é suscetível de ser interpretado pela hipótese dos "estigmas por auto-sugestão emotiva".
O caso foi recolhido e examinado por Frank Podmore, extraindo-o eu dos Proceedings of Society for Psychical Research (vol. X, pág. 304).
A Srta. M. P., em data de 16 de fevereiro de 1890, escreveu nos seguintes termos à direção dessa Sociedade:
"Minha irmã e eu dormíamos no mesmo quarto do último andar da casa, em pequenos leitos que estavam a uma distância de cerca de três pés um do outro. Há três anos (eu tinha então 20 anos e minha irmã 18), acordei em sobressalto com a horrível sensação de que havia alguém no aposento. Fiquei muda por alguns instantes, paralisada pelo terror até que encontrei a força necessária para chamar minha irmã. Esta, num fio de voz que exprimia um terror intenso, perguntou: "Quem está no quarto? Há bom tempo que estou acordada, mas não tive coragem de falar." Nesse momento, uma mão gelada pousou em minha face. Louca de horror, tremendo, chamei desesperadamente por minha irmã, todavia sem dizer uma única palavra do que estava me acontecendo. Um segundo depois, ela exclamou: "Uma mão pousou em cima de mim." Presa de um terror indescritível, ocultamos ambas a cabeça em baixo das cobertas, pedindo socorro com todas as forças dos pulmões.
Nosso irmão acorreu logo e nós lhe dissemos que alguém se introduzira no quarto. Ele rebuscou todos os cantos, todos os móveis, mas inutilmente. Enquanto isto, minha irmã se lastimava de violenta queimadura no rosto. Acendeu-se o gás e vimos então que, num lado do rosto, aparecia um rubor vivo que tinha a forma de uma impressão de mão, com os dedos abertos.
Por duas vezes ainda, em intervalos de cerca de um mês, acordamos, ambas, presas do mesmo sentimento horrível da presença de um ser em nosso quarto: esse sentimento nos paralisou o uso da fala durante certo tempo e certa vez percebemos o ente em questão no espaço que separava os dois leitos."
O Sr. Podmore foi pessoalmente à casa das duas percipientes para interrogá-las a respeito:
Reproduzo de sua narração as seguintes passagens:
"As manifestações se reproduziram quatro vezes, em intervalos de duas ou três semanas. Na primeira manifestação, a Srta. P. nada viu. Na segunda, as duas irmãs tiveram a impressão muito viva de uma presença no quarto: acordaram sobressaltadas, presas de um vivo terror, mas nada perceberam. Na terceira vez, a Srta. P. viu uma forma vaga, uma sombra toda envolta. Finalmente, na quarta vez, foi a Srta. E. P. quem, por sua vez, percebeu a sombra.
As impressões dos dedos no rosto da Srta. P. eram muito nítidas como se achavam no lado sobre o qual não dormira, não era possível atribuí-las à compressão do rosto sobre o travesseiro da cama."
Os membros da "Comissão de recenseamento das alucinações", de cujo Relatório extraio o caso em questão, explicam o incidente da impressão de cada mão na face de uma das percipientes comparando-a a outras impressões que ficaram gravadas no corpo humano, em conseqüência de auto-sugestões emotivas. Pode-se, sem dúvida, admiti-la no caso, considerando-se que a percipiente se achava presa de uma crise de terror, embora se possa opor, no case, outras impressões semelhantes, obtidas simultaneamente em fazendas e outros objetos, como nos casos precedentes.
Não se deveria ainda esquecer a existência dos quatro casos análogos que relatei, nos quais nenhum dos percipientes se encontrava com crises emotivas predisponentes a auto-sugestões dessa espécie e, também, nos quais nenhum dos perceptivos pensava na possibilidade de fenômenos deste gênero. Esta consideração leva a supor que, na realidade, mesmo no caso de que nos ocupamos, a hipótese dos "estigmas" não serve para explicar a verdadeira causa do fenômeno.
Em todo caso, devemos assinalar uma circunstância verdadeiramente embaraçosa, se se afastar a hipótese da autosugestão: é que a primeira percipiente fora, por sua vez, tocada na face pela mesma mão fantástica, sem experimentar nenhuma impressão de queimadura de carne e sem que a mão ficasse gravada no seu rosto. Como explicar que, um momento após, a mesma mão, pousando no rosto da irmã, tenha provocado uma sensação de queimadura, com o fenômeno da impressão de uma mão de fogo na face? Que se acrescente que a primeira percipiente fala de uma mão gelada que pousou no seu rosto, o que explicaria por que a mão fantástica não provocou sensação de queimadura e não deixou impressão, mas se assim é, como devemos considerar o que aconteceu, um momento após, à outra irmã? É, pois, evidente que a hipótese dos "estigmas por auto-sugestão emotiva" retoma seu lugar no caso em questão.
Uma vez declarado isto por um sentimento de justiça científica na pesquisa das causas, repito que eu não acho, entretanto, que não deva buscar nesta explicação a verdadeira causa do fenômeno. É possível, com efeito, que as sensações opostas, que as duas percipientes experimentaram, possam ser explicadas por uma mudança rápida da condensação ectoplásmica da mão do fantasma, que seria produzida em conseqüência do seguimento de uma brusca modificação da tonalidade vibratória de ectoplasma nas duas ocasiões em que a mão em questão pousou nas pessoas das percipientes.
Essa tonalidade vibratória parece ser, em certas circunstâncias, muito mais intensa que a da substância viva ou da matéria inanimada e por conseqüência deve destruir, como o faria o fogo, os tecidos animais e vegetais vivos, o que daria lugar aos fenômenos das "impressões de mãos de fogo".
Aproveito a oportunidade para fazer notar que a hipótese, que me reservo para desenvolver nas conclusões deste estudo, está justamente baseada nesta última circunstância da intensidade vibratória indubitável da substância ectoplásmica e fluídica: é graças a ela que se poderiam explicar os fenômenos das "impressões supranormais de mão de fogo".
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CASO VII - Resumo a narração de um caso muito conhecido na Inglaterra, ainda que nele se encontrem detalhes de natureza a deixar-nos perplexos por causa das modalidades insólitas com que foi produzido. Mas quem ousaria circunscrever os limites das manifestações supranormais?
O caso em questão foi publicado, pela primeira vez, pelo Sr. T. M. Jarvis, na sua obra Accredited Ghost Stories, (Estórias verídicas de fantasmas), em 1823, tendo a percipiente protagonista falecido pouco tempo antes.
A Sra. Crow, na sua obra The Nightsides of Nature, (Os lados obscuros da natureza), pág. 196 da nova edição, a ele faz referência nos seguintes termos:
"No que concerne ao caso de Lady Beresford, estou em condições de assegurar que a família da morta afirmou sempre a autenticidade dos fatos. Deve-se dizer outro tanto da família de Lady Cobb que, como se sabe, quando Lady Beresford expirou, foi quem cortou do seu pulso a fita que o envolvia, fita que a morta sempre trouxera desde o dia em que Lord Tyrone lhe aparecera, e isto com o fim de ocultar a impressão indelével que lhe deixara no pulso direito o contato da mão do morto."
Tenho a acrescentar que a narração dos fatos foi ditada pela própria Lady Beresford.
Começo resumindo as premissas do caso: Lord Tyrone e Lady Beresford foram íntimos desde tenra idade e educados na mais rígida ortodoxia religiosa. Mais tarde, sentiram influências teológicas de natureza diversa e, em conseqüência disto, concluíram entre si um pacto solene: aquele que morresse primeiro, se Deus o permitisse, deveria aparecer ao que sobrevivesse, para dizer-lhe da confissão religiosa que ao Ser Supremo agradasse mais. Chegada à idade adulta, Lady Beresford casou-se e não teve mais ocasião de encontrar-se com seu amigo de infância.
Ora, certa noite, aconteceu que ela se levantou sobressaltada e percebeu a seu lado Lord Tyrone que a informou ter falecido subitamente, na véspera, às 4 horas. Predisse em seguida acontecimentos na vida futura de Lady Beresford, que se realizaram totalmente.
Lady Beresford faz, assim, sua narrativa:
"Eu lhe disse: Amanhã de manhã, quando me levantar, como poderia ficar convencida de não ter sonhado tudo isto?" - Ele respondeu: "Receberás amanhã, notícia da minha morte. Esta prova não te basta?" - "Não, respondi eu, há sonhos proféticos e eu acabarei por convencer-me de haver tido um sonho dessa natureza. Dá-me uma prova material de tua presença!" - Ele disse: "Tê-la-ás." Então levantou a mão e logo as pesadas cortinas do leito, feitas de veludo vermelho, foram projetadas com força através de um amplo círculo de ferro que fazia parte da abóbada do leito. Logo em seguida observou: "Ficarás amanhã convencida por esta prova, porque nenhum braço humano poderia executar coisa semelhante." - "Sim, disse eu, no estado de vigília não poderia realizar esta prova de força, mas dormindo adquirem-se, às vezes, poderes excepcionais. Continuo a duvidar." - Ele então disse: "Eis um caderno: vou lançar nele minha assinatura. Conheces bem a minha letra." Com efeito pegou num lápis e fez no caderno sua assinatura. Eu ainda observei: "Na estado de vigília não poderia imitar tua assinatura, mas no de sonambulismo a coisa é possível. É o que concluirei sem dúvida amanhã de manhã." - Ele exclamou: "És difícil de convencer! Que prova mais poderia dar-te? Poderia tocar-te, mas um espírito não tocaria uma pessoa viva sem deixar na sua pele uma marca indelével." - "Se se tratasse de uma marca limitada, disse eu, submeter-me-ia de boa vontade a essa prova." - "És uma mulher corajosa, respondeu ele. Estende-me a tua mão." Eu o fiz e ele me apertou o pulso. Sua mão estava gelada, todavia a pele se enrugou no momento, as veias se encheram e os nervos ingurgitaram.''
Desde aquele dia Lady Beresford foi sempre vista com uma fita preta em torno de seu pulso direito, pois o espírito de Lord Tyrone lhe dissera que o sinal deveria ficar oculto aos olhos dos vivos. Quando Lady Beresford expirou, Lady Netty Cobb, sua amiga, cortou de seu pulso a misteriosa fita e verificou a existência de uma impressão de queimadura, que a morta descrevera na sua narrativa.
Tal é o caso realmente notável que aconteceu com Lady Beresford.
Como disse, parece bem autenticado; apenas se encontra o episódio da longa conversa entre o espírito do morto e a percipiente, o que nos deixa um tanto surpresos relativamente à autenticidade de toda a narração, porque, nas manifestações, habituais de fantasmas que falam, observa-se que quase sempre pronunciam apenas algumas frases, nada mais.
De qualquer modo, deve-se admitir que se conhecem alguns episódios raros, muitos bem documentados, nos quais se encontram longas conversas entre os espíritos desencarnados e os percipientes, o que nos leva a refletir antes de resolvermos circunscrever os limites das manifestações supranormais.
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CASO VIII - O Prof. Vicente Collis, de Chrudim, Tcheco-Eslováquia, escreveu nos seguintes termos à redação da Revue Spirite, de Paris, pág. 320, da coleção de 1926:
"Recentemente um velho número (25 de agosto de 1891) do jornal tcheco Chrudimski Kvaj, diário político-econômico da região de Chrudim, caiu-me sob os olhos e, na rubrica "Tribunais", li o artigo "A alma de uma morta que não tem repouso". Em vista da importância que os fatos citados têm para a ciência psíquica, sua indiscutível autenticidade e, portanto, seu valor documentário e probatório tal que poderia, talvez, decidir a eterna controvérsia sobre a realidade da sobrevivência da alma humana, resolvi enviar-vos a tradução do artigo sobre o caso em questão, visto não ter ele ainda encontrado eco nas revistas espíritas.
A ALMA DE UMA MORTA QUE NÃO TEM REPOUSO
(Ata de uma audiência perante o tribunal de segunda instância de Chrudim.)
Nossos leitores se lembram ainda do misterioso assassinato da chamada Ana Mracek, mulher de João Mracek, proprietário de uma pequena barraca e negociante da linha Noroeste, da estrada de ferro de Vojtechov, subprefeitura de Illinako.
Na tarde do dia 11 de setembro de 1690, a Sra. Mracek partiu de sua barraca, a fim de catar um pouco de palha para suas vacas, e não voltou mais à sua casa. No dia seguinte, pela manhã, seu cadáver foi achado nas moitas que bordejam um ribeiro que corre pelos arredores. Um tiro nas costas a matara. Quem teria atirado? E por quê? eram perguntas que pareciam ficar sem respostas. As suspeitas do crime recaíram sobre o marido da vítima que, após uma detenção de vários meses, foi posto em liberdade por falta de provas. Depois dele, achou-se dever incriminar os concessionários da caça comunal, os proprietários José Zavrel e Miguel Vesely. Esses, por sua vez, foram também postos em liberdade, pois suas famílias e criados testemunharam que, durante toda a noite fatal, os cultivadores não haviam saído de casa. Como não havia outras suspeitas, o processo foi encerrado e, pouco a pouco, o esquecimento se fez sobre o caso, quando, repentinamente, no mês de fevereiro de 1891, um fato novo e completamente inesperado se produziu.
A 21 de fevereiro de 1891, o rendeiro José Kreil compareceu ante o procurador-geral de Chrudim e lhe fez, tremendo de medo, esta imprevista narração:
"Há vários dias, por volta da meia-noite, fui despertado por uma força insólita e irresistível e, abrindo os olhos, percebi a defunta Ana Mracek perto do meu leito, toda vestida de branco. Não tive trabalho em reconhecê-la. Cheio de espanto, meu primeiro pensamento foi o de fugir, mas o fantasma me disse: "Não tenha medo! Foi Lastuvka (apelido do cultivador José Zavrel) quem me matou com um tiro de espingarda e Vesely me arrastou para o estábulo da granja de Lastuvka. Vá à casa do senhor cura e lhe narre o que acabo de lhe contar. Ele se encarregará do resto." Três vezes o fantasma repetiu estas palavras, depois desapareceu. Eu estava inteiramente acordado e senhor absoluto de meus sentidos, portanto não podia tratar-se de um sonho. Olhando o relógio, verifiquei que era meia-noite e meia. No dia anterior, não fui a nenhum botequim e não bebi nem cerveja nem aguardente. Do mesmo modo não me falaram mais do caso, se bem pudesse crer que minha visão fosse a conseqüência de qualquer recordação do fato passado. Sou inteiramente estranho na aldeia de Vojtechov e nada tenho a ver com o assassínio de Ana Mracek, no qual não estou interessado."
Foi nestes termos simples e persuasivos que Kreil contou o estranho episódio noturno. Isto, porém, não devia ser tudo. A aparição se produziu pela segunda, terceira e quarta vez, sempre depois da meia-noite e nas mesmas circunstâncias que na primeira noite. Na última vez, a morta ameaçou Kreil com sua cólera, dizendo que não cessaria de persegui-lo enquanto não cedesse a suas injunções.
O pobre homem não sabia o que fazer. Os cépticos zombavam dele, ninguém acreditava em suas declarações e ele, noite após noite, não podia dormir tranqüilo. Ainda uma outra aparição se verificou na casinha de Kreil. Como anteriormente, o fantasma se achava junto do leito, dizendo como sempre: "Lastuvka me matou com um tiro de espingarda e o outro, Vesely, me arrastou."
O bom homem, cujos dentes batiam e cuja testa estava coberta de suor frio, pôde apenas balbuciar: "Bem, deixa-me uma prova da tua presença; ao menos um sinal visível, a fim de que acreditem em minhas palavras." Ao que o fantasma respondeu: "Para dar uma prova de minha presença não possuo os meios; mas aproxima-te de mim, se desejas um sinal."
Kreil, dócil e sem vontade própria, saltou da cama e acendeu uma vela. Mesmo na claridade, o fantasma continuou visível, de pé, firme, no mesmo lugar, junto da cama. "Ei-la, disse ele, e, levantando o braço, pousou a mão direita sobre o ombro esquerdo do homem. Kreil atônito, desfalecido, olhos fixo em Ana Mracek, a contemplava em todos os detalhes, fisionomia e vestes. Enfim a viu desaparecer pouco a pouco, como que se dissolvendo.
Kreil, no meio do quarto, com a vela acesa na mão, assim pensou: "Não foi alucinação." E, desta vez, tomou resolução. No dia seguinte, foi à casa do cura e, de acordo com o conselho que dele recebera, saiu para contar o fato ao procurador-geral de Chrudim, que dele fez logo uma ata. Em seguida, lido e assinado o depoimento, com grande espanto do magistrado, Kreil entreabriu a camisa e sobre o ombro esquerdo apareceu a marca escura de uma mão com os dedos abertos. Os cinco dedos e mais particularmente o polegar eram visíveis.
Logo após o depoimento do granjeiro Kreil, o marido da morta fez conhecer algumas circunstâncias suspeitas que lançaram novos indícios sobre José Zavrel e Miguel Vesely.
O processo contra os dois cultivadores retomou seu curso e, dessa vez, o resultado foi verdadeiramente surpreendente.
Com os dois incriminados, as famílias Zavrel e Vesely, assim como seus criados, foram incluídos no inquérito judicial como cúmplices dos culpados e por falsos testemunhos, por ocasião do primeiro inquérito.
Segundo as peças do novo processo, os fatos relativos à morte de Etna Mracek foram os seguintes: Na tarde do dia 11 de setembro de 1890 os dois concessionários da casa comunal, Zavrel e Vesely, foram à floresta, em busca de caça. A sorte não lhes foi favorável e voltavam de mãos abanando. Estando o tempo tão escuro que nada distinguia a dois passos, pois chovia muito.
Chegando perto de sua plantação de beterraba e couve, Zavrel divisou uma forma que se levantava e se abaixava no meio do campo. Não reconheceu se se tratava de uma pessoa ou de um animal. Avançando, viu a forma desaparecer para parecer de novo e, logo a seguir, fugir. Zavrel, armado como se achava, partiu em sua perseguição. "Para ou atiro", gritou ele. De repente tropeçou e, pareceu, caiu, e, na queda, a arma detonou. O ser misterioso continuava a fugir.
O caçador a alcançou em algumas pernadas no momento em que ela se embrenhava nas moitas que bordejam o arroio.
Então, estupefato, Zavrel reconheceu Ana Mracek que, durante 16 anos, fora empregada em sua casa, e que, depois do seu casamento com João Mracek, aí vinha, de momento, para ajudar em trabalhos urgentes.
O incidente foi tanto mais penoso para Zavrel porquanto manchas de sangue no pescoço da vítima mostravam que ela fora morta.
Todavia, sem se ocupar da morta, correu ao encontro de Vesely e lhe confessou sua intenção de ir no dia seguinte apresentar-se ao juiz de Chrudim. Vesely, porém, o dissuadiu disto, dizendo que não o denunciaria, que o fato não tinha testemunhas e que, assim, ele não podia ser preso. Depois, sem saberem porque, tal eram o seu espanto e terror, arrastaram o cadáver para o estábulo de Lastuvka, onde ficou até a manhã do dia seguinte.
De madrugada, tendo refletido um pouco e já mais calmo, Lastuvka o tornou a colocar entre as moitas, no lugar em que foi encontrado no dia antes anterior.
Pelas 11 horas da noite, João Mracek, tendo terminado o serviço e voltado à sua casa, não encontrou a mulher e interrogou a filha, que lhe respondeu:
"Mamãe saiu de casa à tarde e não voltou mais. Papai, não há muito ouvi um tiro em qualquer lugar... lá em baixo."
Nada pressentindo de bom, Mracek muniu-se de sua lanterna de chaminé e foi à procura da esposa. Errou por toda parte onde esperava encontrar a sua companheira. Na margem da plantação de Zavrel, encontrou cabeças de beterrabas sobre a erva, e chorou sem encontrar, contudo, o cadáver de Ana, sobre o que foi informar-se na granja de Zavrel.
Por muito tempo bateu à porta que, finalmente, se abriu, mas não o deixaram entrar. Zavrel afirmou nada saber acerca da desaparecida.
"Então ela foi mesmo morta", gemeu Mracek que se pôs de novo à procura do corpo. Durante toda a noite, debaixo de uma chuva torrencial, explorou os arredores, molhado até a medula dos ossos e em estado de desespero. De repente, já no despontar de um dia tristonho, à margem do campo de Zavrel, tantas vezes explorado, percebeu, perto da água e meio coberto pelas moitas, o cadáver de Ana.
Hirta, Ana estava estendida de costas, mas o que o espantou enormemente foi que, a despeito da chuva noturna, tinha ela as vestes secas. No mesmo dia João Mracek foi preso sob a acusação de assassinato da própria mulher.
Depois, Zavrel e Vesely foram acusados; tendo porém, obtido testemunhos unânimes a seu favor, foram beneficiados com um impronunciamento.
A seguir, com a aparição da morta e o depoimento de Kreil, o processo retomou seu curso e Zavrel e Vesely acabaram por confessar.
(Seguem os nomes dos magistrados que constituíram o tribunal, do procurador-geral e dos defensores, assim como a declaração das penas impostas aos culpados.)
O jornal assim conclui:
"Eis o que deve fazer refletir as pessoas que não acreditam na sobrevivência da alma humana e na realidade das comunicações entre mortos e vivos."
Parece-me que o jornalista tem bastante razão em concluir deste modo. Com efeito, nenhuma hipótese naturalista: nem alucinação, nem telepatia, nem criptestesia, nem criptomnésia, nem clarividência no passado e no presente, nem a hipótese do "reservatório cósmico de memórias individuais" poderiam explicar os fatos em seu conjunto, considerando-se que o incidente da impressão de uma mão de fogo bastaria para eliminar todas elas.
Como se pôde ver, o Prof. Vicente Collis conclui no mesmo sentido. Não o digo, entretanto, senão incidentemente, por não querer ocupar-me, neste estudo, de provas de identificação de espíritos.
No que concerne à documentação dos fatos que acabo de expor, acho que o Prof. Collis tem bastante razão em notar: "Em vista da autenticidade indiscutível dos fatos em questão e, portanto, de um valor documentário e probativo tal que ela poderia, talvez, decidir a eterna controvérsia sobre a realidade da sobrevivência da alma humana, resolvi enviar vos a tradução do caso em questão, visto o mesmo não ter ainda encontrado eco nas revistas espíritas."
Eu acrescento que, assim agindo, prestou ele notável serviço à nova "Ciência da Alma", visto que o caso apresentado é, teoricamente, de grande eloqüência em favor da hipótese da sobrevivência. De outra parte, o caso está documentado e demonstrado por um inquérito judicial, pelo depoimento dos acusados, por todos os testemunhos, inclusive do procurador-geral da província de Chrudim que viu, com os próprios olhos, a impressão da mão de fogo no ombro do percipiente protagonista. Todas estas circunstâncias constituem um conjunto de provas importantes e decisivas em favor dos fatos.
Tenho a notar um ponto importante: o percipiente conversou varias vezes com o fantasma da morta, o que confirma, eficazmente, caso de Lady Beresford, no qual se encontra o mesmo e raro detalhe. Raro, dizemos, mas que sempre se produz.
Resta-nos encarar o incidente da impressão de mão de fogo do ponto de vista da hipótese dos estigmas por auto-sugestão emotiva.
No caso em questão, trata-se de uma impressão em fogo que ficou gravada no corpo do percipiente em condições de crise emotiva.
E, como a hipótese auto-sugestiva não poderá ser teoricamente afastada, notarei que o fato de admiti-la equivaleria a pretender analisar isoladamente cada um dos casos de que nos ocupamos, sem considerar os outros, o que seria absolutamente contrário aos métodos de pesquisas científicas.
Além disto, seria pretender dividi-los arbitrariamente em duas categorias, pondo os casos que se produziram no corpo humano na categoria dos fenômenos subjetivos e auto-sugestivos e as que sucederam em tecidos e objetos na classe dos fenômenos que tiveram origem supranormal ou mediúnica, o que constitui outra afirmação contrária aos métodos de pesquisas científicas, segundo os quais deve admitir-se como legítima a hipótese que consiga explicar os fatos em seu conjunto e afastar, como falhas, todas as hipóteses que só em parte os expliquem.
Segue-se daí que se, em nosso caso, os fenômenos das "impressões de queimaduras no corpo humano" foram obtidos ao mesmo tempo que outras impressões idênticas, gravadas em tecidos e outros objetos, todos aqueles que não querem afastar-se dos métodos de pesquisas científicas, métodos que coincidem também com a lógica e o bom-senso, deverão admitir a hipótese que explica a reunião dos fatos supondo sua origem como supranormal ou mediúnica.
Seria preciso admitir apenas algumas exceções a regra geral quando o estado emotivo de um perceptivo sugestionável pudesse determinar um fenômeno rudimentar de estigma. Em suma, esta última possibilidade pode ser considerada como teoricamente admissível em circunstâncias excepcionais, tão excepcionais, na realidade, que não se conhece nenhum caso desse gênero que possa autorizar, com algum fundamento, esta explicação.
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CASO IX -Vou narrar agora um caso muito conhecido, que se deu nas prisões de Weinsberg, Alemanha, em 1835, e que foi examinado pelo Dr. Justino Kerner, médico das prisões e autor da famosa obra Die Seherin von Prevorst (A vidente de Prevorst). Ele fez aparecer a narração do caso em uma brochura, na qual reproduziu os numerosos interrogatórios a que submeteu os prisioneiros, que introduzia sucessivamente na cela da vidente, a fim de vigiá-la. Essa vidente era uma tal Elisabeth Eslinger, que fora detida por infrações às leis, por ocasião da pesquisa de um tesouro oculto. Era uma grande "sensitiva" ou antes um grande médium, pois já antes da sua prisão tiver a colóquios com o espírito que se manifestou, em seguida, com tanta insistência, no seu cárcere.
De ordem do diretor da prisão, o juiz Mayer, prometeu-se recompensar com a liberdade imediata o prisioneiro que conseguisse levar a vidente a fraudar. Compreende-se, porém, que, na cela de uma prisão, fraudes e artimanhas eram impossíveis, tanto assim que todos tiveram que reconhecer a autenticidade dos fatos.
Além dos testemunhos dos prisioneiros, a brochura contém as narrações de vários sábios e artistas que o Dr. Kerner, a pedido dos magistrados encarregados do inquérito, convidou para passar algumas noites no cárcere da "mulher assombrada por um espírito". Notam-se, entre outros, os nomes dos Drs. Seyffer e Sicherer, do Juiz Heyd, do Barão von Hugel, do Prof. Kapft, do advogado Fraas, do pintor Wagner e do gravador Dettenhoffer.
No caso em apreço houve numerosos incidentes de impressões de mãos de fogo, das quais a última é a mais importante, pois os cinco dedos de uma mão do espírito ficaram gravados no lenço em que Elisabeth Eslinger envolvera a mão antes de estendê-la ao espírito. Além do fenômeno das "impressões", verificaram-se manifestações de todas as espécies, que relato sucintamente aqui, porque não dizem respeito ao assunto de que tratamos.
Extraio os fatos do livro da Sra. Crow: The Nightsides of Nature (Os lados obscuros da Natureza) cap. XIV, que reproduz quase na íntegra o opúsculo do Dr. Kerner.
Quase todas as noites Elisabeth Eslinger, que era uma mulher sã e robusta, com cerca de 38 anos, era visitada em seu cubículo por um espírito que dizia ser um padre católico, que vivera em Wimmenthal e que se achava há muito no mundo espiritual em condições inferiores de existência, em conseqüência de graves faltas que cometera quando vivo na terra. Ele era, evidentemente, obsediado por um "monoteísmo post-mortem" que concordava com o fato de ter sido padre católico, visto que esse "monoteísmo" consistia em pedir à vidente e a todo o mundo que orasse por sua alma.
Manifestava-se entrando pela porta ou pela janela. Quando entrava pela porta, abria-a e fechava-a de modo muito visível, pois que os assistentes percebiam, durante um momento, o interior do corredor que dava para a cela. Quando entrava pela janela, que se achava num lugar alto e era fechada por sólidas barras de ferro, a sacudia violentamente.
Alguns magistrados, querendo certificar-se a que ponto podiam ser sacudidas essas grades, ordenaram a vários homens robustos que o fizessem e verificaram, então, que eram precisos seis homens para sacudi-las fracamente, ao passo que o espírito as sacudia com violência. Quando a entidade se aproximava de uma pessoa, esta sentia, invariavelmente, "golpes de vento gelado" acompanhados de uma espécie de crepitar elétrico e de ruídos análogos a tiros de pistola.
Além disto, o espírito exalava um fedor cadavérico insuportável, que chegou a causar desmaios a alguns dos assistentes.
Sua cabeça estava cercada de uma luminosidade fosforescente, e, ao passo que alguns não a percebiam, outros viam uma sombra vaporosa, de forma humana, distinguindo os sensitivos o aspecto normal do espírito, tal qual o descrevia a vidente.
Quando o fantasma tocava uma pessoa, essa sentia no lugar tocado a sensação de uma queimadura e aí se formava logo uma mancha avermelhada ou uma bolha. Falava com um voz penosa e profunda, que vários assistentes percebiam ao mesmo tempo que a vidente. Todos, indistintamente, ouviam os ruídos diversos que se produziam e sentiam os golpes de vento fresco e o terrível mau cheiro cadavérico que dele exalava. A propósito da objetividade indubitável dos fenômenos, pode-se salientar esta circunstância.
Alguns membros da comissão encarregada do inquérito tiveram a idéia de pôr na cela da vidente um gato pertencente aos guardas da prisão. Logo que o fantasma apareceu, o gato se mostrou terrivelmente impressionado e, em suas tentativas para fugir, se atirou cegamente contra as paredes da prisão. Meteu-se a seguir debaixo das cobertas do leito e não se mexeu mais. Outra experiência se fez, essa porém, com resultadas deploráveis para o pobre felino que, desde então, recusou toda alimentação e não tardou a morrer.
O espírito se manifestou, também, nas casas dos membros da comissão e nas do diretor da prisão e do Dr. Kerner, anunciando-se aos presentes com os seus sinais habituais, consistentes em jatos de ar frio ou crepitação elétrica, em tiros semelhantes aos que são produzidos com uma pistola, tudo acompanhado do terrível fedor cadavérico e dos contatos que deixavam estigmas.
Certo Sr. Dorr, de Heilbronn, zombava dos que ditavam nessas "baixas superstições". O Dr. Kerner pediu, então, à vidente que conseguisse que o espírito fosse à casa desse céptico para o convencer. O espírito lá foi, com efeito, manifestando-se no seu quarto de dormir com seus modos costumeiros. O Sr. Dorr convenceu-se dos fatos e contribuiu com seu próprio testemunho para o inquérito do doutor Kerner. Sua narrativa dos fatos termina com as seguintes palavras: "Quando eu ouvia falar desses fatos, ria-me com todo gosto, o que me colocava bem alto na estima dos espíritos fortes. Penso agora como esses se rirão de mim."
Vou, agora, relatar alguns incidentes típicos de "mãos fogo" que se produziram com Elisabeth Eslinger.
Começo por um fenômeno bastante curioso. Falando da vidente, observa o Dr. Kerner:
"Ela dizia muitas vezes ao espírito que as preces de uma pecadora como ela não podiam servir para libertá-lo do sofrimento; que ele devia, ao contrário, dirigir-se ao Redentor; ele, porém, continuava com suas súplicas. Quando ela, lhe falava assim, ele se entristecia e se chegava para perto dela, de modo tal que sua cabeça ficava muito perto do rosto de Elisabeth. Parecia ter fome de preces. Ela sentia, muitas vezes, que lágrimas do fantasma lhe caíam sobre a face e o pescoço; eram geladas e, entretanto, a pobre mulher experimentava uma sensação de queimadura no lugar em que elas caíam e uma marca azul e vermelha aí se formava."
Tal é o curioso fenômeno que se produziu por várias vezes. Concebe-se que lágrimas realmente liquidas não teriam podido escorrer do corpo fluídico do fantasma, podendo-se, todavia, admitir que a vontade do fantasma as tenha materializado para a circunstância, mas não as consideraremos ainda e suporemos que a sensação das lágrimas, que caíam sobre a pessoa da vidente, era puramente subjetiva.
De qualquer modo não é menos verdade que essas lágrimas deixaram no rosto da vidente uma impressão permanente. Reconheço que esse fenômeno poderia ser interpretado pela hipótese dos "estigmas por auto-sugestão emotiva", mas observo, de novo, que aí se chegaria considerando-o isoladamente e não conjuntamente com os outros fenômenos semelhantes que se produziram com a mesma sensitiva. Com efeito, neste último caso, seria audácia sustentar esta tese em face da produção dos mesmos fatos com os membros da comissão de inquérito, os quais não podiam todos se sugestionar. Enfim, ela não se sustentaria mais se se a considerasse juntamente com o fenômeno da impressão de mão de fogo que ficou gravada num lenço.
O juiz Mayer, diretor da prisão, não quis acreditar que os fatos tivessem origem supranormal e assim é que disse a Elisabeth que, se ela quisesse convencê-lo nesse ponto, pedisse então ao espírito que fosse a sua casa.
O Sr. Mayer continua assim sua narrativa:
"Na noite seguinte ao dia em que disse isto, deitei-me e dormi, não esperando tal visita; fui porém, despertado cerca da meia-noite por algo que me tocava no cotovelo esquerdo. Senti depois uma dor e, de manhã, quando olhei para essa parte do braço, vi várias manchas azuis. Disse todavia a Elisabeth que isto não bastava e que era preciso dizer ao fantasma para me tocar no outro cotovelo. Isto se deu na noite seguinte, na qual senti o horrível fedor de putrefação. As manchas azuis apareceram. Percebi, também, os jatos de vento frio e os ruídos habituais do fantasma, mas não consegui vislumbrar a sua forma. Minha esposa, ao contrário, viu o fantasma e rezou todo o tempo em que ele permaneceu no nosso quarto."
Como se aproximasse o dia em que Elisabeth Eslinger deveria ser solta, o espírito a exortara com insistência para ir a Wimmenthal, a fim de orar por ele no lugar em que nascera e vivera. Ela partiu para esse lugar, a conselho de pessoas amigas, que acompanharam em sua piedosa peregrinação.
Logo que Elisabeth se ajoelhou ao ar livre e começou orações, os presentes viram o fantasma perto dela, mas nem todos o perceberam com a mesma nitidez, sendo que uma das testemunhas só divisou nesse lugar uma nuvem branca.
Elisabeth Eslinger hesitara par muito tempo, antes de partir para Wimmenthal, como se temesse que alguma desgraça lhe sucedesse; por isto, antes da sua volta, quis orar por seus filhos. Em dado momento, os presentes notaram que não rezava mais, e, aproximando-se dela, encontraram-na desmaiada. Voltando a si, Elisabeth contou que o fantasma, antes de deixá-la definitivamente, lhe pedira para apertar-lhe a mão. Após tê-la enrolado num lenço, ela lhe estendeu. Ao contato da mão do fantasma, uma chamazinha se desprendeu do lenço e aí se encontraram as marcas dos dedos do fantasma, sob a forma de queimadura.
Depois desse incidente, o espírito não reapareceu mais, nem na prisão, nem na casa dos membros da comissão de inquérito.
Este o interessante caso que se produziu, tal como acabo de narrar, e que foi examinado pelo Dr. Kerner, assistido por vários sábios, magistrados e artistas. O fato de ter-se este produzido numa prisão constitui, por si mesmo, uma excelente garantia em favor da autenticidade dos eventos em questão, considerando-se que, nessas condições, uma simulação não se poderia dar sem o auxílio de objetos indispensáveis a uma mistificação tão complicada e prolongada. Se se considerar ainda que as mesmas manifestações se produziram nas casas de quase todas as pessoas que se ocuparam do exame dos fatos, mesmo no quarto de dormir do Dr. Kerner e no do diretor da prisão, não se pode deixar de pensar que a autenticidade dessas manifestações deve ser considerada como demonstrada de um modo cientificamente irrepreensível.
Não me ocuparei dos fenômenos tão diversos que acompanharam a aparição do fantasma, visto isto não entrar no tema deste estudo. Limitar-me-ei a notar que alguns deles são tão interessantes como, por exemplo, o dos "jatos de ar frio" que precediam constantemente à manifestação do espírito, sendo que essa particularidade se produz com a mesma constância, em nossos dias, nas experiências mediúnicas. Esta concordância contribui indiretamente para demonstrar a autenticidade dos fatos. Com efeito, na época em que estes se produziram, o movimento espírita ainda não tinha nascido, por conseqüência, ninguém poderia pensar que manifestações de uma entidade espiritual, assim como fenômenos mediúnicos de natureza física, fossem precedidos de "golpes de ar fresco".
Quanto ao fenômeno estranho e pouco agradável do "fedor cadavérico" que se desprendia do espectro, limito-me a notar que esse fenômeno é um dos mais raros da casuística mediúnica, tão raro que nas minhas classificações apenas encontro registrados três casos.
A Sra. Florence Marryat, em seu livro "There is no death" (Não há morte), descreve um fenômeno semelhante, que sempre se produzia no decurso de uma longa série de experiências feitas com um médium de materializações, mas era apenas quando se materializava certa personalidade mediúnica que tal fedor se desprendia, de modo tal que a própria Sra. Marryat era atacada de náuseas.
É preciso que se concorde que, do ponto de vista probatório, esse detalhe pouco agradável reveste uma importância considerável, porque não se poderia explicá-lo pela fraude. Ao contrário, do ponto de vista teórico, difícil é interpretá-lo. Pode-se supor que, em tais casos, dissociações de substâncias orgânicas se produzissem no corpo do médium, com uma emissão de azoto e outros gases que engendravam o terrível fedor cadavérico. Ficaria, todavia, uma circunstância embaraçosa a explicar, no caso da Sra. Marryat, porque uma única personalidade mediúnica apresentava esse deplorável inconveniente, no meio de uma série de outras personalidades mediúnicas que se materializavam com o mesmo médium. Do ponto de vista espírita, essa circunstância poderia ser explicada admitindo-se as razões que dão a este respeito os "espíritos guias", isto é, que esse traço característico é próprio de uma "entidade espiritual muito inferior". Do ponto de vista anímico, não se poderia compreender porque, numa série de fantasmas materializados com o auxílio do mesmo médium, apenas um tinha a prerrogativa de subtrair azoto e outros gases deletérios do organismo do médium.
Passando às manifestações que constituem o objeto desta monografia, farei observar que, no caso em questão, encontra-se um conjunto de fatos teoricamente interessantes, porque são semelhantes a outros de que tratei antes.
Sobressai, com efeito, da narração, que, quando o espírito tocava uma pessoa, essa sentia ao mesmo tempo uma sensação de queimadura, que era logo seguida de uma marca azulada ou de uma bolha. Trata-se, pois, de uma reunião de fatos que se juntam aos quatro que narrei antes e que agrupei nos comentários do segundo caso citado. Segue-se daí que esse outro grupo de fatos análogos que se produziram no caso de Elisabeth Eslinger serve para confirmar, ulteriormente, os quatro casos que narrei antes desse, entre dois foram em nossa época observados com os médiuns William Stainton Moses e Heinrich Melzer. Tendo sido estes últimos observados experimentalmente, confirmam indiretamente a autenticidade dos outros obtidos espontaneamente, em épocas diferentes. Em outros termos: os incidentes em questão, embora de natureza menos sensacional do que as "impressões de mãos de fogo", poderiam bastar, por si mesmos, para provar a existência real dos fenômenos em questão.
A outra manifestação análoga, na qual o fantasma apertou uma mão protegida por um lenço, deixando na fazenda a impressão em fogo de cinco dedos, é por sua vez interessante, porque ela se deu em plena luz do dia, na presença de várias pessoas que viram o fantasma mais ou menos nitidamente. De outra parte, essa manifestação se reúne, eficazmente, às outras antes citadas, nas quais as impressões ficaram gravadas em tecidos e objetos, o que serve para excluir, definitivamente, a hipótese dos "estigmas por sugestão emotiva", destinada a explicar, em bloco, os fenômenos de mãos de fogo.
Já que o material dos casos recolhidos é abundante, não preciso escolher outros que possam ser considerados como suficientemente documentados. Trata-se, na maior parte, de casos tirados de velhas crônicas, especialmente da hagiografia cristã e, por conseqüência, desprovidos de qualquer testemunho autorizado. Com efeito, durante os séculos passados – séculos de fé e não de ciência - a documentação dos episódios que se relatavam parecia ser aos autores uma superfluidade árida, prejudicial ao fim principal e eficaz da narração.
Infelizmente o fato de dever excluí-los em bloco desta classificação prejudica o estudo desta categoria de fenômenos; porque a autenticidade de alguns dentre eles sobressai nitidamente da concordância dos detalhes secundários.
Trata-se de episódios que teriam considerável valor teórico se se pudesse utilizá-los para a pesquisa das causas, mas, como não se poderia cientificamente fazê-lo, preciso é resignar-se ao inelutável.
De qualquer modo, observo que os 9 casos que acabo de narrar e que são suficientemente documentados, concordam inteiramente entre si, em certas particularidades de manifestação que, considerando-se sua natureza estranha e imprevista, não podiam, certamente, surgir identicamente no espírito de pretensos mistificadores, que ignoravam a existência de manifestações semelhantes. Nestas condições, parecendo-me que são bastantes para demonstrar a existência real dos fenômenos das "impressões de mãos de fogo", vou investigar a origem provável desta categoria de manifestações, ou melhor dito, vou pesquisar a natureza dos elementos psicofísicos que os determinam.
Ora, se se põe de lado a lenda teológica das almas que ardem nas chamas do Purgatório ou do Inferno, só resta uma hipótese rigorosamente possível considerar os fatos, e da qual já falei, isto é, a hipótese "vibratória", que em mais maravilhosa revelação científica, graças á qual assistimos, espantados, aos milagres do "Rádio" e da "Televisão". Se se pensa que o que chamamos "calor" e "frio" constitui um fenômeno único, que difere enormemente para os nossos sentidos, em conseqüência da intensidade maior ou menor com que se produz, mister se faz deduzir daí que, se a tonalidade vibratória dos fluidos, de que se revestem os espíritos dos mortos para se tornarem visíveis e tangíveis, fosse consideravelmente mais intensa do que a inerente à substância viva ou aos tecidos vegetais, deverá inevitavelmente seguir-se que as vibrações muito intensas da substância espiritual, encontrando-se com as relativamente fracas dos tecidos vivos e vegetais, devam destruir estes últimos como o faria o fogo, o que determinaria os fenômenos das "impressões de mãos de fogo".
Com esta explicação, o enigma referente à natureza do elemento psicofísico que determina os fenômenos em questão pode ser considerado como teoricamente resolvido, em perfeita concordância com as últimas generalizações científicas. Ora, notável é que a interpretação dos fatos está inteiramente conforme com o que afirmam as personalidades mediúnicas a respeito das sensações de calor e frio que sentem os vivos ao contato das mãos dos fantasmas.
Vou relatar o que disse uma mensagem mediúnica sobre o assunto; é de data recente e muito notável.
A revista espírita americana The Progressive Thinker, de Chicago, em seu número de 7 de abril de 1923, publicou uma narração das experiências mediúnicas do doutor em medicina George B. Kline, no decurso das quais foi dirigida a uma personalidade mediúnica a seguinte pergunta: "Por que as materializações de fantasmas, com raras exceções, não se produzem nunca em plena luz?" - A explicação dada pela entidade comunicante é de natureza "vibratória" e reveste certo interesse teórico, entretanto não a citarei porque sai do tema de que nos ocupamos e dela me limito a extrair a seguinte passagem, na qual se toca nas sensações de calor e frio, sentidas pelos vivos ao contato dos fantasmas:
"Quando um espírito toca um dos assistentes e esse experimenta uma sensação de frio, isto significa que as moléculas fluídicas que o tornaram substancial, vibram com uma tonalidade muito inferior à das moléculas que constituem o corpo o experimentador. Ao contrário, como sucede na maior parte das vezes, quando ao contato da mão de espírito, o experimentador sente uma impressão de calor causticante, isto significa que as moléculas fluídicas, que constituem essa mão, vibram com uma intensidade extraordinária. Essas variações são invisíveis para os vivos, mas não são imperceptíveis para nós."
Tais são as explicações concordantes das personalidades mediúnicas.
Elas devem ser olhadas como decisivas, não porque venham de entidades espirituais, mas porque suas explicações concordam perfeitamente com as conclusões a que chegou a ciência, estudando a natureza do que os nossos sentidos percebem sob a forma de impressões térmicas chamadas "calor" e "frio".
Resta-nos resolver uma última questão, teoricamente muito importante. Eis de que se trata: Se é verdade - e isto não pode dar lugar à menor dúvida - que o fenômeno das "impressões das mãos de fogo" depende da elevadíssima tonalidade vibratória dos fluidos que se acham no fantasma, então, do ponto de vista naturalista, como considerar a extraordinária intensidade na tonalidade vibratória da substância de que se reveste o fantasma, comparada com a tonalidade vibratória da substância de que se compõem os organismos? É evidente que, se se acolhesse a hipótese naturalista, segundo a qual a substância ectoplásmica, a inteligência e a vontade que caracterizam o fantasma provêm do médium, a tonalidade vibratória da substância de que o fantasma é formado deveria ser idêntica à da substância somática do organismo humano. Como, porém, assim não é, como a tonalidade vibratória no fantasma é muito mais intensa que a do organismo humano, lógico é deduzir-se daí que a origem dessa tonalidade vibratória é estranha ao médium. Nesse caso, ela só pode depender da natureza espiritual da entidade que se manifesta, isto é, de um ser independente do médium. Eis-nos, deste modo, chegados, muito naturalmente, à interpretação espírita dos fenômenos das "impressões de mãos de fogo", interpretação que é a única a fornecer uma solução racional dos fenômenos de que tratamos.
Meditei longamente sobre esta questão, com a intenção de achar uma outra solução, conforme a interpretação naturalista, mas não consegui concebê-la.
Espero, pois, que um dos defensores da origem naturalista de todas as manifestações mediúnicas chegue, com mais sucesso, à solução do problema e que me faça conhecer as suas conclusões.
3ª Monografia
Visão panorâmica ou memória sintética na iminência da morte
Ensinam as escolas ocultistas que, durante a crise de separação do espírito e do organismo somático e, algumas vezes, quando o "laço fluídico", que une o espírito ao corpo, já rompeu, passam, diante da visão espiritual do agonizante, como em "visão panorâmica", isto é, na sucessão mais rápida e quase instantânea, todos os episódios da vida terrestre do moribundo. Eles desfilam em ordem regular, seja em sentido inverso, seja em sentido direto, começando então na primeira juventude e chegando aos últimos dias da vida, e se apresentam objetivamente, em forma "pictográfica", de modo que o percipiente verifica enfim, plenamente, o que foi, em um conceito que lhe falta, a sua vida corrente.
Além disto, as ditas escolas ocultistas são acordes em afirmar que, raramente, tal "primeira visão recapitulativa" provoque, no vidente, sensações profundas de satisfação ou de remorso, e acrescentam que assim é para conter o risco de que sentimentos emocionais sejam obstáculos ao desenrolamento regular dos quadros figurativos da vida decorrida. E, sempre a crer nos ocultistas, todos os acontecimentos da vida escoada, emergindo integralmente perante a visão espiritual dos moribundos, estão gravados, em traços indeléveis, no "corpo astral" e aí constituem um Grande Livro de Créditos e Débitos espirituais que ele deverá liquidar, inexoravelmente, numa nova existência. E assim, nos primeiros tempos se apresentará uma segunda vez ao espírito, então desencarnado, a mesma visão panorâmica de suas recordações. E, nesse momento, ele os considerará com um critério de julgamento penetrante, plenamente capaz de apreciar, desde que o espírito esteja em estado conveniente para fazer a avaliação dos efeitos em relação às causas, engendradas por suas próprias ações, durante a existência terrestre. Acontece, nesse momento, que experimenta satisfação muito pura em todas as vezes que os quadros pictográficos lhe apresentam os esforços que ele fez para o elevar-se. Ao contrário, experimenta remorso e diminuição profunda à vista dos símbolos objetivos que lhe recordam suas fraquezas e a seqüência das suas faltas. Não existe mais, nesse instante, para ele nenhuma ilusão possível. Quanto mais vivazes são as imagens que ele considera, tanto mais eficaz e intensiva é a reação do espírito e, proporcionalmente, tanto mais depressa são dissipadas suas baixas inclinações. O resultado dessa revisão do passado pode contribuir para abreviar, na medida do arrependimento, a duração das sanções.
Tais são os ensinamentos das escolas ocultistas. Convém notar que sua afirmativa concernente ao reaparecimento, em "vista panorâmica", de todos os aspectos da vida, no momento da morte, longe de ser opinião estritamente teórica e de ordem fantástica, tem o caráter de fato cientificamente reconhecido, apoiado que está em grande número de observações incontestáveis. Esta certeza, de resto, tem sido aceita sem reserva, mesmo pelos representantes da psicologia oficial. Entretanto, concebe-se que eles expliquem o fenômeno de modo bem diferente do que o fazem os ocultistas. Suas interpretações, de natureza rigorosamente psicológica, parecem racionais e legítimas, ainda que sejam puramente formais e bem pouco substanciais, assim como ficam bem longe de resolver o problema, o que, aliás, não afirmam os homens de ciência. Ora, proponho-me a analisar os fenômenos de que se trata, considerando-os nas suas íntimas relações cem a existência latente, na subconsciência humana, de outras faculdades supranormais, de natureza multiforme, e desejaria tentar estabelecer uma relação entre esta categoria de fatos e os novos conhecimentos adquiridos no que concerne ao processo de separação do espírito do organismo corporal.
Entre os primeiros que se interessam pelas manifestações deste gênero, importa citar os fisiologistas ingleses, professores Forbes, Winslow e Munk, assim como o Dr. Feré e o Professor Th. Ribot, na França. Este último, na sua monografia Les maladies de la memoire (As doenças da memória), pág. 141, exprime-se nestes termos:
"A excitação geral da memória parece depender exclusivamente de causas fisiológicas e, em particular, da rapidez da circulação cerebral... Existem várias narrativas de afogados, salvos de morte iminente, que concordam neste ponto que, no instante em que começava a asfixia, lhes pareceu ver, em um momento, a sua vida inteira nos menores incidentes. Um pretende que lhe pareceu ver toda a vida passada se desenrolando em sucessão retrógrada, não como simples esboço, mas com detalhes bem preciosos, formando panorama de sua existência inteira, de que cada ato era acompanhado de um sentimento de bem e de mal". Em circunstância análoga, "um homem de espírito notavelmente lúcido atravessava uma estrada de ferro no momento em que o trem chegava a toda velocidade. Ele não teve senão o tempo de estender-se entre as duas fileiras de trilhos. Enquanto o trem passava por cima dele, o sentimento de perigo lhe trouxe à memória todos os incidentes de sua vida, como se o Livro do Juízo tivesse sido aberto diante de seus olhos".
Tal como se vê, segundo o Professor Th. Ribot, o fenômeno da "visão panorâmica" na iminência da morte seria determinado "exclusivamente por causas fisiológicas e, em particular, pela rapidez da circulação cerebral". Teoricamente falando, não há nada de inverossímil em tal interpretação dos fatos ainda que se conheçam numerosos episódios inconciliáveis com esta hipótese.
O Dr. Feré limita-se a apontar uma analogia presumida entre os fenômenos da "visão panorâmica" e "certas rememorações que se produzem nos epilépticos antes da crise e que constituem uma forma de aura intelectual". Nada de mais inverossímil nesta analogia, ainda mais porque, na verdade, nada explica nem implica.
Já Victor Egger escreveu:
"Se a morte sucede imprevista e súbita, não se tem tempo de se pensar, de traduzir seu "eu" em conceitos e proposições; talvez também o pensamento propriamente dito fique como que paralisado pela rapidez do acontecimento. Vê-se, então, simplesmente sob a forma concreta de uma série de recordações visuais, de que cada uma tem um sentido profundo e cujo conjunto resume a vida que se viveu... O afluxo das lembranças, quaisquer que sejam a ordem e o número, significa o "eu" que vai acabar e, se o passado surge assim na consciência, é que ele é chamado pela idéia subitamente concebida da morte iminente." (Revue Philosophique, 1896, vol. 1, pág. 30).
A hipótese de Egger poderia ser uma explicação essencialmente psicológica dos fatos. Segundo ela, a idéia da morte iminente faria afluir, por contraste auto-sugestivo, recordações integrais da existência percorrida, mas, na verdade, não se saberia adivinhar por qual misterioso laço causal o fato é determinado, visto que uma pessoa sã que, de imprevisto, se ache em perigo de morte, é assaltada por bem outras preocupações que as de evocar recordações de seu passado. Aqui falta, em suma, todo laço lógico e plausível para unir a causa em ação e o efeito presumido.
O Dr. Sollier declara por sua vez:
"Creio, então, que o mecanismo da rememoração, nos casos de síncope por esgotamento, podendo terminar pela morte, é idêntico ao da rememoração, da regressão da personalidade, na histeria, sob a influência do despertar cerebral. A única diferença é que, no caso de esgotamento cerebral, o potencial é normal e cai da normalidade a zero, ao passo que, na histeria, ele está abaixo do normal e volta para o seu máximo, mas o resultado é o mesmo, porque, em ambos os casos, o cérebro apresenta sucessivamente todos os estados pelos quais já passou, e é a essa sucessão de estados que é devida a sucessão mesma das imagens dos estados de personalidade na ordem exata em que se produziram; que essa ordem seja a mesma ou a inversa pouco importa, aliás, ao porto de vista da fisiologia cerebral e da compreensão das relações entre o estado cerebral e o estado psicológico. Quanto à questão da rapidez, ela não tem absolutamente qualquer valor, tal como expliquei mais acima." (Bulletin de l'Institut général psychologique, 1903, pág. 51).
A hipótese do Dr. Sollier deixa perceber as modalidades pelas quais, verossimilhante, é determinado o fenômeno da rememoração nas relações com o organismo cerebral e esta concepção é tanto mais válida quando ela corresponde às verificações que se fizeram nos casos de experiências hipnóticas, tocantes à regressão da memória.
Estas explicações dos fisiologistas e psicólogos, todavia, encaradas em seu conjunto, parecem bem insuficientes e baseadas em simples presunções ou analogias, muito provavelmente errôneas. Fossem elas, aliás, formuladas com brilho, não forneceriam ainda a solução do problema, considerando que tendem exclusivamente em afirmar a existência presumida de um paralelismo psicofisiológico nos fenômenos de visão panorâmica, paralelismo que ninguém, até hoje, põe em dúvida. A verdadeira equação a resolver não consiste nisto: ela consiste no fato de que as manifestações espontâneas da visão panorâmica concorrem - de modo resolutivo - para demonstrar a existência latente, na subconsciência humana, de uma memória integral perfeita e indelével, constatação de fato absolutamente inconciliável com postulados da morfologia, da fisiologia, da psicologia. Na verdade, tais postulados se mostram inconciliáveis com este outro fato colateral: a existência latente, na subconsciência humana, de faculdades supranormais dos sentidos, independentes das leis da evolução biológica.
O eminente filósofo Bergson não deixou de se preocupar com os fenômenos aqui considerados. Se a explicação sugerida por ele pode parecer pouco clara e pouco concludente, pelo menos o desenvolvimento dos argumentos que a precedem é dos mais notáveis. Vê-se destacar dele o ponto de vista em que se coloca Bergson para penetrar o mecanismo da memória, ponto de vista em tudo conforme ao que será exposto no decorrer destas páginas.
Diz ele:
"Inúmeros fatos parecem indicar que o passado se conserva até em seus menores detalhes e que não há esquecimento real. Todos devem lembrar-se de que os afogados e os enforcados, logo que foram restituídos à vida, declararam ter tido, em alguns segundos, a visão panorâmica da totalidade de sua vida passada. Poderia citar outros exemplos, porque a asfixia não representa nada no fenômeno, apesar do que se tem dito. Um alpinista jazendo no fundo de um precipício, um soldado em torno do qual surge de repente uma saraivada de balas, terão, às vezes, a mesma visão. A verdade é que o nosso passado todo inteiro existe continuamente e que basta virarmos para trás para o perceber; apenas não podemos nem devemos voltar-nos. Não o devemos porque o mecanismo cerebral tem precisamente o papel, aqui, de nos ocultar o passado, de não deixar transparecer, em cada instante, senão o que pode esclarecer a situação presente e favorecer a nossa ação: é mesmo obscurecendo a totalidade de nossas recordações, salvo o que nos interessa e que o nosso corpo já esboça pela mímica, que ele faz ressurgir essa lembrança útil. Agora que a atenção à vida vem a enfraquecer um instante - não falo da atenção voluntária, da que depende do indivíduo, mas de uma atenção que se impõe ao homem normal e que se poderia chamar "a atenção da espécie" - então, o espírito, cujo olhar era mantido forçado para a frente, se detém e, pela mesma força, se volta para trás: á totalidade de seu passado lhe aparece. A visão panorâmica do passado é, pois, devida a um brusco desinteresse da vida, produzido, em certos casos, pela ameaça de uma morte súbita. Era precisamente em manter a atenção fixa na vida, a retrair utilmente o campo da visão mental, que se achava ocupado até então o cérebro, tanto quanto o órgão da memória." (Annales dos Sciences psychiques, 1913. pág. 326).
Assim se exprime Bergson. Diante destas considerações, deve-se convir que elas são filosoficamente muito sutis para serem de natureza a elucidar o enigma do ponto de vista das causas, psíquicas ou psicofisiológicas, determinantes do fenômeno que é aqui estudado. Estas considerações, porém, têm a mais alta importância no sentido de que salientam uma grande verdade: saber que nada some de nosso passado, que nos refolhos da subconsciência humana existe a memória integral, perfeita e indelével, e, mais, que a verdadeira função do mecanismo cerebral, nas suas relações com as funções de rememoração, é de nos ocultar o passado. São conclusões inovadoras, onde está contida, em gérmen, uma profunda verdade de ordem metapsíquica, que tudo concorre para uma demonstração fundamentada. Voltaremos, em tempo oportuno, a este argumento capital, citando outras claras afirmações bergsonianas.
Presentemente, há necessidade de passar em revista certo número de episódios circunstanciados, com relação ao assunto. Nós os observaremos com uma ótica que não será exclusivamente a da psicologia oficial, inteiramente insuficiente. Para dizer com mais precisão, nós os consideraremos nas suas relações com várias categorias de manifestações supranormais, de ordem similar, pois que também é verdade que a orientação da psicologia do futuro não pode se determinar senão nesta nova direção.
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Começando a exposição de diversos casos, declaro, antes do mais, que os subdividi em três grupos distintos. No primeiro grupo, estão classificados os casos de visão panorâmica sucedidas na iminência da morte. No segundo, entram os episódios, bem pouco freqüentes, em que a visão panorâmica acontece com pessoas sãs, fora de qualquer perigo mortal. O terceiro reúne diversos incidentes no decurso dos quais a entidade, que se comunica por meio de um médium, conta, sem lhe ter sido perguntado, que assistiu, no momento da morte, a um espetáculo panorâmico que retrata a visão integral do passado vivido, afirmações bem freqüentemente feitas na presença de pessoas que ignoravam a existência de tal fenômeno. Se os episódios desta forma ainda não podem revestir certo valor científico, claro é, todavia, que mereçam registro com complemento necessário ao tema em estudo. E isto com maior razão, porque a existência real de manifestações deste gênero confere indiretamente certo valor probativo às afirmativas de médiuns quando essas manifestações se produzem sob o aspecto experimental supracitado.
Enfim, devo prevenir que, a meu pesar, não me será possível relatar, neste trabalho, mais que uma parte mínima dos numerosos casos assinalados pelos representantes da ciência oficial - salvo louváveis exceções - porque estes autores têm o desagradável e deplorável hábito de apresentar os casos sem documentação, sem se preocuparem de fazer conhecer os nomes dos protagonistas e em resumos absolutamente insuficientes para servir de fundamentos a uma teoria qualquer.
l.º categoria
Casos de "visão panorâmica" acontecidos na iminência da morte ou em perigo de vida.
CASO I - Tiro este caso de um artigo de Victor Egger (Revue Philosophique, 1896, vol. I, pág. 27). Está suficientemente relatado e se refere a quedas sofridas de montanhas.
"Eis agora um caso bem recente... o Sr. F., de Wysewa, analisou, recentemente, uma conferência feita, no Clube Alpinista de Zurich, por um sábio suíço, o Professor Heim, sobre as impressões experimentadas por turistas que sofreram quedas de montanhas e viram a morte de perto. O próprio Heim fora vítima de uma queda semelhante que lhe forneceu uma observação típica em torno da qual agrupou casos iguais colhidos da boca de diversos viajantes. Deste conjunto surgiram os seguintes fatos mais ou menos constantes nesta espécie de acidentes, desde o momento em que se perdeu o pé até ao em que se produziu o choque na queda física:
1.° - um sentimento de beatitude;
2.° - a anestesia do tato e do sentido da dor, a vista e o ouvido conservando a sua acuidade normal;
3 ° - extrema rapidez do pensamento e da imaginação;
4.° - em inúmeros casos, a alma revê todo o curso de sua vida passada.
"Para narrar o que o que experimentei durante os breves instantes de minha queda, agora me exigiria uma hora inteira, quando nela todos os pensamentos e todas as imagens me apareciam com extraordinária rapidez e clareza. Em seguida, vislumbrei todos os fatos de minha vida terrena que se desenrolaram diante de meus olhos em imagens inumeráveis."
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CASO II - Eis um segundo exemplo de visão panorâmica, em conseqüência de queda. Descobri-o no livro de Camille Flammarion Avant la mort (Antes da morte):
"Conhece-se grande número de observações sobre a relatividade de nossas impressões referentes ao tempo, que não tem nada de absoluto. Meu saudoso amigo Alphonse Bué me contou muitas vezes, e sempre nos mesmos termos, a seguinte observação sobre a relatividade de nossas impressões sobre o tempo:
"Ele estava na Argélia e seguia, a cavalo, a margem de um precipício bastante profundo. Em conseqüência de uma causa qualquer, o cavalo deu um passo em falso e caiu no precipício, arrastando, na sua queda, o cavaleiro que, durante alguns segundos, esteve inconsciente. Durante essa queda, que não podia durar mais de dois ou três segundos, desenrolaram-se, clara e lentamente, no seu espírito, cenas, brinquedos infantis, a vida escolar, o curso na escola militar em 1848, a vida de soldado na guerra da Itália, no corpo de lanceiros da guarda imperial, nos carabineiros, no Castela de Fontainebleau; os bailes da Imperatriz, nas Tulherias etc. Todo esse lento panorama se desenrolou a seus olhos em menos de 4 segundos, porque ele despertou imediatamente."
Trata-se, aqui, de um panorama que se desenrola, clara e lentamente, diante da visão espiritual do percipiente, mas compreende-se bem que semelhante modo de falar é motivado pelas impressões do próprio perceptivo, impressão que, por sua parte, demonstra a relatividade de nossa concepção de tempo e, de outra parte, não impede que a visão tenha sido, na realidade, assombrosa e no espaço de alguns segundos.
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CASO III - Vou citar alguns exemplos de visão panorâmica, acontecidos durante a asfixia por submersão, que são mais freqüentes na estatística do assunto aqui estudado. Escolho o seguinte caso na obra do Dr. Binns Sleeps, Sensation and Memory (Sonhos, sensação e memória):
"Um de meus amigos quis, em certo dia, aventurar-se ao mar alto, ainda que não fosse exímio nadador. Pouco depois, sentiu-se descontrolado e tomado de pavor. Os movimentos das braçadas não mais se coordenavam, e o nadador não sabia o que fazer. Então, gritou por socorro, embora não lhe restasse qualquer esperança de ser salvo. Subitamente, viu, num vasto panorama, toda a sua existência terrena, desde a primeira aurora de suas recordações infantis até o momento em que nadou para o mar alto. A história de sua vida lhe apareceu reunida em um todo no qual os mínimos incidentes estavam dispostos na ordem de sucessão em que se produziram, de tal maneira que com um só olhar, viu todos os dias de sua vida. Para ser mais preciso, direi que não se tratava de leitura, mas de uma visão total como se houvesse sido fotografada sob seus olhos ou pintada em relevo luminoso, sob as aparências de maravilhoso panorama representativo de sua existência inteira."
Tanto neste caso como nos dois anteriores, nota-se que os perceptivos falam de uma visão panorâmica que se desenrola sucessivamente e com a maior rapidez perante sua vista espiritual, e que também falam de percepção completamente simultânea, isto é, efetivamente panorâmica. Qualquer que seja a circunstância e a forma da visão, a sucessão cronológica dos acontecimentos é precisa e infalível no quadro visualizado. Essas diferenças nas impressões experimentadas (sucessão ou simultaneidade) são facilmente explicáveis. Podem ter por origem ilusão consecutiva à extrema rapidez dos quadros que se desenrolam à vista do percipiente. Também temos o direito de pensar que elas podem corresponder a uma diferença na maneira de perceber. Admitida esta tese, é de crer que essas maneiras de registrar a visão provêm de uma idiossincrasia peculiar ao próprio percipiente. Quer dizer que, em uns, a "memória sintética" conserva ainda ligeira apreciação do tempo, tal qual nós o concebemos nas relações com as nossas sensações, ao passo que, em outros, a "memória sintética" funcionaria com esta absoluta simultaneidade que - como veremos - é a das percepções espirituais no ambiente essencialmente espiritual.
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CASO IV - Hudson Tuttle, em seu livro The arcana of Spiritualism (Os arcanos do Espiritualismo) cita exemplos semelhantes de visão panorâmica, entre os quais o seguinte, relativo a um caso de asfixia por submersão:
"A experiência de John Lamont, que, durante 22 anos, foi presidente da Liverpool Psychological Society, é das mais interessantes, e larga foi a sua publicidade, especialmente no jornal Tino Worlds. Por três, vezes esteve em perigo de morte. Da primeira vez, quase se afogou: da segunda, foi num acidente de estrada de ferro e, da terceira, durante uma congestão pulmonar. No primeiro caso, depois de certa impressão de medo, não experimentou sofrimento algum e, ao contrário, reconheceu possuir extraordinárias faculdades espirituais ao mesmo tempo que, diante de sua visão espiritual, se sucedia, com a maior rapidez, todo o painel de sua vida, em projeção panorâmica. O fato mais espantoso é que ele podia analisar as próprias sensações, das quais a mais assombrosa consistia no fato de sentir-se viver em estado de desdobramento. Tudo se dissipou com a maior rapidez, porque salvaram-no a tempo e foi restituído à vida. Desse incidente, ele conservou profunda impressão, especialmente por interesse, visto que, nesse momento supremo, pôde verificar e analisar os poderes supranormais do espírito."
Neste caso, convém salientar a observação, altamente sugestiva, do fenômeno do desdobramento incipiente com aparecimento de faculdades supranormais subconscientes, fenômeno que se verificou simultaneamente com a visão panorâmica. O fato de poderem se combinar as faculdades e sensações supranormais com a manifestação visual tenderia a apontar a sua origem comum. Quer dizer que o fenômeno da "visão panorâmica" deveria ser considerado como um efeito do início de separação entre a "memória sintética" e o organismo cerebral, sendo esta desunião provocada pelo começo de separação do "corpo astral" (sede da memória sintética ou espiritual) do organismo somático. Em suma, isto fica dito, no momento, a título de parêntesis porque eu me proponho a resolver esta sugestão, em termos úteis, nas minhas conclusões.
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CASO V - Tratemos do seguinte exemplo, extraído do volume da Sra. De Morgan From Matter to Spirit (Da Matéria ao Espírito). O Almirante inglês Beaufort, em carta dirigida ao Dr. Wolloston, assim descreve, e de maneira bem típica, sua experiência pessoal de visão panorâmica consecutiva a uma asfixia por submersão:
"Muitos anos atrás, quando eu era ainda grumete a bordo de uma fragata de Sua Majestade, achava-me em Portsmouth, de volta ao meu navio, em minúsculo bote, e me dispunha a atracar, quando, com esse estouvamento peculiar à mocidade, pisei na borda do bote, que logo afundou. Caí na água e, como não soubesse nadar, inúteis foram todos os meus esforços para agarrar a embarcação. Ninguém percebera o acidente, até que, finalmente, uma corrente me arrastou para perto da fragata. Então fui descoberto por uma sentinela que deu o alarma e um tenente se atirou no mar, seguido de um sargento, que saltou da ponte, enquanto que um barqueiro se aproximava com a sua embarcação para me socorrer. Quando eles me arrancaram da água, eu me achava completamente exausto, havia bebido muita água e deixei que cuidassem de mim, sem dificuldades.
Lembrei-me de certa parte dos detalhes que vou fornecer, quando recuperei os sentidos, e a outra parte me foi contada pelas testemunhas. Compreende-se bem que uma pessoa, no momento de afogar-se, está muito absorvida pela trágica situação em que se debate e, portanto, incapaz de anotar a sucessão dos acontecimentos. Não direi o mesmo para as circunstâncias que se seguiram ao instante em que eu desapareci na água, porque se produziu em minha mente verdadeira revolução, graças à qual as menores particularidades de minha vida terrena se imprimiram em caracteres profundos em minha memória, de acordo com as épocas em que as vivi. Desde o momento em que deixei de lutar pela minha salvação - esse abandono foi, assim o suponho, a conseqüência da asfixia – senti-me como que tomado por uma impressão de calma absoluta, em contraste com o tumulto de emoções por que acabara de passar. Poder-se-ia chamar esse estado de apatia, mas nunca de resignação. Ainda que eu estivesse consciente de estar me afogando, o acontecido não se me afigurava uma desgraça. Sem sombra de pesar, eu renunciara a toda a esperança de virem me salvar e não experimentei qualquer espécie de sofrimento físico. Bem ao contrário, subitamente as minhas impressões haviam tomado um caráter pacífico; elas participavam do sentimento confuso, mas delicioso, que precede o sono, quando o corpo está relaxado. Se os meus sentidos físicos, porém, se achavam inertes, Já o mesmo não acontecia com a mente, cuja atividade era centuplicada a ponto de desafiar toda descrição. Os pensamentos sucediam-se com tão vertiginosa rapidez que nem ao menos posso dar uma idéia aproximada deles, mas também seriam inconcebíveis a quem não se tivesse encontrado em circunstâncias semelhantes. Ainda agora revejo, bem claramente, a sucessão desses pensamentos em tal momento. No começo, foi a idéia do acidente em si, depois, o ato irrefletido que lhe dera causa. A seguir, pensei na emoção que a minha infelicidade provocara a bordo, pois tive de observar que dois homens haviam pulado no mar. Depois, pensei na emoção que a notícia fatal causaria a meu pai e calculei os rodeios que empregariam para predispor minha família ao triste acontecimento. Enfim, houve mil circunstâncias minuciosas associadas às minhas relações familiares. Foram estes os primeiros pensamentos que sucederam em tropel, mas logo outros se lhes juntaram, que eram recordações: minha última viagem, terminada em naufrágio e, em seguida, a escola, os progressos que fiz nos meus estudos, o tempo malbaratado e todas essas pequenas coisas da mocidade. Em suma, cada incidente de minha curta vida se reanimava em ordem contrária, não com a brevidade da presente enumeração, mas numa representação vivida e perfeita em seus mínimos detalhes intrínsecos e colaterais. Em resumo, toda a visão de minha existência terrena desfilou diante de mim, à maneira de uma reconstituição panorâmica, e cada quadro parecia acompanhado de uma concepção do bem e do mal que ele continha, sem prejudicar as reflexões que eu pudesse fazer sobre as causas e as conseqüências das minhas ações. Também apareceram muitos outros incidentes insignificantes, há muito esquecidos e que eu revi com o frescor somente próprio aos fatos vividos na véspera.
Não será lícito deduzir deste relato a existência, em nós, de uma memória integral com a qual nós despertaremos em uma outra vida e pela qual seremos constrangidos - quer queiramos ou não - a contemplar todos os atos de nossa existência? E não demonstraria tudo isto a realidade da hipótese segundo a qual a morte nada mais é do que uma modificação do ser, a porta, em suma, pela qual passaremos para uma nova modalidade de existência, sem estacionamento nem interrupção? Seja lá como for, a experiência por que passei me parece uma circunstância bem notável no sentido de que as inúmeras idéias, que se apresentaram à minha visão, se referiam todas a um espetáculo retrospectivo. Além disso, devo salientar que fui criado religiosamente e que as minhas esperanças e meus temores do Além nada haviam perdido de intensidade - quero dizer que a idéia de me encontrar no limiar da eternidade poderia ter provocado em mim um tumulto de emoções de ansiedade e terror - mas, pelo contrário, nada disto aconteceu. Quando estava cônscio de não mais pertencer a este mundo, em nenhuma só ocasião o meu pensamento se orientou pela sorte que me aguardava. Eu estava completamente mergulhado no passado. Impossível me é avaliar o tempo preciso à sucessão dessa multidão de idéias, mas, indiscutivelmente, desde o instante em que, debaixo da água, a asfixia começara a sua obra até ao em que fui salvo, não deveriam ter passado senão dois minutos."
Pode-se depreender deste interessante episódio que o fenômeno da "visão panorâmica", experimentado pelo Almirante Beaufort, foi acompanhado da consciência do valor moral das visões que diante dele se desenrolaram, consciência que se nota em sete outros casos por mim colecionados, dos quais um foi citado no início deste trabalho. Mas, como a soma dos episódios que conheço atinge uma centena, esta proporção de "noção de consciência" prova que ela é bem rara. Viu-se, em nossa introdução, como as escolas ocultistas afirmam que a "visão panorâmica" nos moribundos raramente desperta sentimentos profundos de satisfação ou de remorso "para impedir o risco que os sentimentos emocionais possam impedir o desenrolar regular dos painéis figurativos da vida transcorrida". O caso do Almirante Beaufort não contradiz semelhante afirmativa no sentido de poderem ser considerados como excepcionais os que raramente se produzem em percipientes cuja existência - quer pela sua mocidade, quer pelo temperamento - não se imunizou contra os excessos de toda a sorte. Efetivamente, nos casos em exame, não se faz, de modo particular, referência a fortes sentimentos emocionais experimentados sob a ação de uma consciência do valor moral inerente à visão da vida decorrida.
De todo modo, os fatos deste gênero não deixam de ser interessantes e sugestivos, concorrendo para demonstrar a significação transcendental da "visão panorâmica" nos moribundos, visão a que conferem o caráter de "exame de consciência", de desenvolvimento automático e fatal.
A observação do Almirante é notável:
"Ainda que eu estivesse consciente de estar me afogando, a aventura não se me afigurava como uma desgraça."
Este sentimento corresponde ao de numerosos enfermos que, após terem temido a morte até o momento em que a crise fatal os assalta, subitamente se tranqüilizam e, cheios de resignação sobre o seu estado, aguardam o fim sem queixume, por vezes, mesmo, alegremente, como se o fato de se encontrarem no limiar do Além lhes houvesse revelado grande verdade, isto é, que a morte é um bem e que este bem só tem aparência de um mal por efeito do instinto natural indispensável à conservação da espécie.
Saliento, finalmente, a importância teórica dos comentários com os quais o Almirante Beaufort termina a sua narrativa. Ainda que os fatos, a propósito de uma experiência panorâmica, houvessem ocorrido há um século, o percipiente já estava habilitado a pressupor a existência, em nós, da "memória integral que sobrevém à morte do corpo" e isto demonstra a espontaneidade racional e inevitável desta conclusão.
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CASO VI - Tomo o seguinte episódio de um relatório de experiências supranormais pessoalmente acontecido com uma doutora em medicina, conhecida íntima do Professor Hyslop. O presente relato foi publicado pelo Journal of the American Society for Psychical Research:
"Há dois anos fui submetida a uma grave operação cirúrgica, em conseqüência da qual os médicos declararam desesperados o meu caso, pois não esperavam meu restabelecimento. Eu me achava extremamente fraca e, quando me esforçava por falar, conseguia apenas balbuciar palavras confusas. A enfermeira estava ajoelhada à cabeceira de meu leito, orando pela minha alma. Subitamente, diante de meus olhos, desfilou toda a visão de minha vida, as contrariedades por mim suportadas e todos os erros que cometi nela; tudo isto desfilou diante de mim. Mas, ao mesmo tempo, eu percebia que tudo o que me havia acontecido, durante minha existência, fora para bem e tudo que sobrevém é providencial e salutar. Logo depois ouvi uma voz a me dizer: "Tu deverás voltar ao corpo." Certamente não o desejava, mas compreendi que era preciso obedecer. Foi por esta razão que me voltei para a enfermeira e sussurrei: "Levantai-vos, eu viverei!"
Este episódio apresenta sinais de afinidades com o anterior. De fato, verifica-se nele que a percipiente teve, também, a noção do valor moral da visão que desfilava diante de seus olhos, bem como a noção complementar de que todos os acontecimentos de sua vida foram produzidos para seu bem: princípio verdadeiro e moralmente justo. Por outro lado, compreende-se bem a importância da segunda circunstância, quando a sensitiva declarou: "Certamente não o desejava, mas compreendi que era preciso obedecer", declaração que se deve comparar com a do Almirante Beaufort quando este disse que a morte não lhe parecia uma desgraça. Há, entre as duas declarações, concordância de impressões que contribuem para consolidar ulteriormente as reflexões que fizemos a propósito de sentimentos similares por parte de moribundos.
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CASO VII - Cito ainda dois exemplos relativos a pessoas gravemente enfermas, por abuso de morfina. O Dr. Sollier narra o seguinte caso na Revue Philosophique:
"O primeiro caso é o de certa moça morfinômana, gravemente atingida, que, no momento da supressão do tóxico, apresentou repetidos acidentes de síncope que facilmente lhe poderiam ter produzido a morte. Tinha a idéia muito clara de que ia morrer... Ao sair de síncope das mais graves, da qual fora arrancada graças à ministração de diversas doses de morfina, exclamou: "Oh! como eu volto de longe! Como me sentia tão bem!" E, a seguir, me contou que, no mesmo instante em que sentia fugir-lhe a consciência, experimentara extraordinário bem-estar, não mais se reconhecendo na Terra, ainda que continuasse a ver e ouvir tudo, com extrema claridade, ao mesmo tempo que revia, numa espécie de panorama, de fantasmagoria, toda a sua vida passada. Mas os fatos não se desenrolaram em ordem cronológica, quer progressiva, quer regressiva, pois tudo lhe aparecera, ao mesmo tempo, no mesmo plano, por assim dizer..."
Também este caso reveste apreciável valor teórico no sentido de ter tido a percipiente, simultaneamente com o fenômeno da visão panorâmica, o sentimento de não mais se achar na Terra, de voltar de muito longe, de um ambiente em que se sentia feliz. Todas as expressões deixam presumir que na enferma havia se verificado a separação do "corpo astral" e do organismo somático. Apraz-me confrontar esta experiência com a de que falei no caso quatro, em que o percipiente afirma sentir-se existir em estado de desdobramento. Não se pode negar a eloqüência sugestiva destas concordâncias de expressão por parte dos sensitivos, eloqüência que, para qualquer pessoa suficientemente versada na matéria, por saber que os fenômenos de "desdobramento no leito de morte" se realizam efetivamente, concorre para fortalecer a observação supracitada, a saber: se os fenômenos da visão panorâmica se produzem ao mesmo tempo em que se realizam os de desdobramento com manifestação de faculdades supranormais subconscientes, isto significa, pois, que a "visão panorâmica" é conseqüência da desunião da "memória sintética" e do órgão cerebral, desunião correspondente ao começo da separação entre o "corpo astral" (sede da memória sintética ou espiritual) e o organismo somático.
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CASO VIII - Eis o segundo exemplo de visão panorâmica sucedida com uma morfinômana. A observação é devida ao Dr. Sollier, que a publicou no Bulletin de 1'Institut Général Psychologique:
"Trata-se de moça nervosa e sujeita a síncopes, morfinômana de doses elevadas que caíra em alarmante estado de caquexia com complicação de albuminúria. Foi submetida a uma desmorfinização rápida. A supressão durava já vinte e quatro horas sem apresentar nada de particular, exceto as perturbações habituais - diarréia, vômitos biliosos, suores - quando subitamente, experimentou enorme sensação de esgotamento. Ao mesmo tempo sentiu violenta dor que comparou a um ferro em brasa que lhe tivesse atravessado a cabeça do vertex à nuca, dor muito curta e que diminuíram gradualmente experimentou em seguida uma sensação de bem-estar, de repouso e, de súbito, viu desenrolar toda sua existência. Foi como se todos os acontecimentos de sua vida tivessem sido impressos em filme que, diante dela, passasse de cima para baixo. Os acontecimentos sucediam-se na ordem inversa, de hoje até a idade de cinco anos ou menos. "Tudo o que tenho na cabeça, eu o vi", contava-me a paciente, com detalhes inauditos, acompanhados de vagas saudades e de impressões de saudade, nunca de alegria (verdade é que nunca os houve em minha vida), que cada imagem me fazia experimentar. Tudo era sombrio... As coisas apareciam em uma superfície plana, mas certos fatos de minha vida, as emoções, por exemplo, para mim se apresentavam em relevo: era como se estivéssemos a olhar três fotografias de pessoas que conhecêssemos bem. Duas nos pareceriam planas e uma, a que muito amamos, nos pareceria mais clara e em relevo. . ."
Quando voltou a si, ela primeiro experimentou uma sensação de tédio por se achar aqui. Sentia-se amorfa, como se o corpo estivesse estendido no leito e ela em outro lugar. Só experimentava sentimento muito vago de si mesma... A partir desse instante, tornou-se completamente anestesiada... Por outro lado, apresentou alucinações "autoscópicas" muito nítidas, que terei ocasião de relatar neste mesmo Boletim."
No caso precedente, a percipiente descreve, de medo instrutivo, a própria experiência e sua descrição concorda com as outras, no que se refere às particularidades essenciais, diferindo, entretanto, nas particularidades secundárias, que não podem ser idênticas em cada caso, isto devido às idiossincrasias peculiares a cada percipiente.
Cumpre observar que a enferma experimentou por sua vez, "uma sensação de tédio por se encontrar aqui frase que exprime o desejo manifesto, nesse percipiente como em tantos outros, de permanecer no lugar em que havia sido transportada durante o momento de sua visão. Enfim, observo o sentimento de "desdobramento" traduzido nestas palavras: "Como se o corpo estivesse estendido no leito e ela em outro lugar", sentimento legítimo pelo fato de a mesma enferma, em outras circunstâncias da mesma doença, ter tido verdadeiras visões "autoscópicas" em correspondência com a mesma anestesia total de seu corpo. De tais visões, destacasse esta informação instrutiva que, à medida que certas partes de seu corpo recuperavam a sensibilidade perdida (ou, em outros termos, quando o elemento fluídico vitalizador do membro somático correspondente tornava a entrar função), ela via o seu próprio fantasma, privado desse membro que aí acabava de readquirir sua sensibilidade, mas a percipiente não via nem seus braços, nem seus pés, e que ela agora sente quando são pinçados (ob. cit. pág. 49). Bem entendido, o Dr. Sollier explica correspondências semelhantes entre a sensibilidade renascente e a mutilação do fantasma "autoscópico", do ponto de vista restritivo da psicopatologia universitária mas, é evidente que as explicações deste gênero só podem ser parciais e ilusórias, visto se acharem desprovidas de bases fundamentais de todas as investigações neste domínio, bases que as disciplinas metapsíquicas são exclusivamente capazes de fornecer.
2.ª categoria
Casos em que a "visão panorâmica" acontece com pessoas sãs, sem a ocorrência de perigo de morte.
Fizemos observar, ns introdução deste trabalho, que os casos pertencentes a esta segunda categoria são bem raros. De fato, só temos quatro exemplos deles. Na verdade, esta categoria não oferece valor teórico particular, porque, se o despertar da "memória sintética" se produz na crise que precede a agonia ou nas circunstâncias de acidente que põem a vida em perigo, não se diz que, por exceção, o mesmo fenômeno não possa acontecer com pessoas que estão de boa saúde, real ou aparente. Casos iguais excepcionais podem ser observados em não importa qual categoria de manifestações metapsíquicas de ordem intelectual. Dão-se fenômenos de telepatia, de telestesia, de clarividência no passado, no presente e no futuro entre pessoas aparentemente normais, seria, pois, de admirar-se que não se encontrassem pessoas normais às quais não acontecesse terem "visões panorâmicas", visões que têm a origem - como os outros fenômenos supracitados - em um súbito impulso de faculdade supranormal subconsciente.
Isto dito, passemos à exposição dos casos.
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CASO IX - No seguinte episódio, relatado por Myers e que eu tiro do vol. XI, pág. 355 dos Proceedings of the Society for Psychical Research, não se trata precisamente de "visão panorâmica", mas, sim, de brusca revivescência de um grupo de recordações remontando a anos da infância (hipermnésia) e com tal vivacidade que a percipiente se sente reviver em um passado esquecido.
A este propósito, a Sra. Clarkson Manning escreve, nos seguintes termos, ao Professor William James:
"Quando era ainda pequena, residia em Rochester (Estado de New York), e estava confiada aos cuidados de minha irmã mais velha. A noite, quando ia para a cama, ficava ela sentada na cabeceira até que eu adormecesse. Muitas vezes, porém, acontecia-me acordar e, como tivesse grande medo do escuro, eu a chamava com todas as minhas forças: - "Jessie! Jessie!"Ela acorria apressadamente, acalmava-me e permanecia junto de mim todo o tempo em que eu não reconciliasse o sono. Em 1875, fui residir com o meu marido, oficial do exército, em Fort Hartsuff, no Nebraska. Minha irmã residia, então, em Omaha, a uma distância de 300 milhas de minha casa. Certa noite de novembro, acordei durante um sono sem sonhos, com o sentimento de ser a filhinha que fora muitos anos antes. Parecia-me residir ainda na casa paterna e estar ainda no meu quartinho e de me sentir sozinha no escuro. Levantei-me e sentei-me na cama, chamando em alta voz: - "Jessie! Jessie!" Meu marido, então, acordou e me perguntou o que me acontecera. Lentamente, dificilmente, custei a reconhecer o ambiente em que me achava, mas, para readaptar-me ao presente, tive que fazer um esforço mental considerável. Nesse momento, eu havia literalmente revisto toda a minha existência de criança, na casa de meus pais, e essa sensação era tão verídica, tão natural, tão real, que me vi desprovida de vocabulário conveniente para o descrever. Ainda mais, durante vários dias, não cheguei a libertar-me dessa estranha concepção de que era a menina de outrora, o que me parecia legítimo pelo fato de me ser possível recordar, nos mínimos detalhes, a visão de minha existência de criança, visão que eu havia há muito esquecido até esse dia. Na manhã do dia seguinte, escrevi à minha irmã contando-lhe a curiosa experiência, mas a minha carta cruzou com outra que ela me dirigira com a mesma data que a minha, carta na qual me narrava uma sua experiência pessoal, não menos extraordinária: na noite anterior, ela havia acordado, em sobressalto, pela minha voz que a chamara por duas vezes: - "Jessie! Jessie!" A realidade do fato era indubitável e seu marido fora abrir a porta, supondo que, de fato, eu estivesse lá. Minha irmã acrescentava que não se tratava de um sonho, pois que havia distintamente reconhecido a minha voz. Estava absolutamente certa de que ninguém, em volta dela e de sua família, a havia chamado nessa noite."
(O marido da pessoa que escreveu esta relação, Sr. W. C. Manning, a irmã, Sra. Jessie Clarkson Thrall, assim como o marido dela, Sr. George Thrall, escreveram pra confirmar o texto que acaba de se ler).
Não se trata, aqui, de uma "visão panorâmica", mas de um caso de hipermnésia. Contudo, a identidade fundamental de ambos os fenômenos parece de toda evidência, pois que, nas duas circunstâncias, trata-se de revivescência de recordações do passado, recordações inteiramente esquecidas. Em outros termos, está-se na presença de uma reaparição parcial da "memória sintética", com a existência de um período determinado do passado e a ressurreição muito vivaz de todos os acontecimentos colocados nesse período. A sensação persistiu alguns dias na consciência da percipiente. Era a conseqüência de um sonho? (o que, de resto, não modificaria o valor teórico do fato, tanto que provando a conservação integral subconsciente das recordações). Um sonho? Não, certamente, assim como atesta bem esse fato de o incidente ter provocado, à distância, manifestação telepática na casa de sua irmã Jessie, principal companheira da percipiente, em tempos recuados. Não podia tratar-se lá de sonho mais ativo que os sonhos habituais, mas da aparição de faculdades subconscientes, pois que a telepatia é função da subconsciência humana.
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CASO X - O Dr. Justinus Kerner, em seu livro sobre a "Vidente de Prevorst", pág. 44, da versão francesa, assim se exprime:
"As bolas de sabão, os copos de vidro, os espelhos, provocavam a sua vista espiritual. Uma criança, tendo inflado uma bola de sabão, fê-la exclamar: "Ah! meu Deus. Vi na bola de sabão tudo o que eu havia passado, algo remoto que se foi, e não em breve momento, mas em toda a minha vida, e isto me espanta."
Neste caso, a vidente estava em um estado absolutamente normal, se se pode falar de estado normal quando se trata de uma sensitiva excepcional como a "Vidente de Prevorst"."
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CASO XI - O Professor Frederic Myers, em sua obra sobre a "Consciência subliminal", narra este incidente:
"Do mesmo modo, nos casos de pessoas absolutamente sãs, podem acontecer subitamente irrupções de recordações persistentes, com detalhes há muito tempo passados e bem mais completos que os de que a percipiente teria podido, voluntariamente, fazer a recordação em sua memória. Um jovem oficial da marinha real conta essa experiência, de que foi protagonista, quando ele lia deitado na cama, em estado de absoluta vigília e na plena calma de seu espírito, assim: "Todo acontecimento, que me tinha acontecido desde o dia em que embarquei pela primeira vez, me passou diante dos olhos, como distribuído em um quadro: localidades, episódios, rostos e nomes de pessoas conhecidas: tudo, absolutamente tudo. Essa manifestação se prolongou por cerca de uma hora, depois da qual as imagens pictográficas se apagaram e nada restou delas salvo uma impressão visual confusa. Esse fenômeno exerceu sobre mim um efeito profundo, do qual experimentei como uma espécie de mal-estar durante dois anos." (Proceedings of the S.P.R., vol. XI, pág. 354).
Nesse episódio, é preciso salientar a circunstância de duração da manifestação: cerca de uma hora. Este detalhe, na realidade, não apresenta um significado teórico especial, pois que, uma vez admitida a existência, na subconsciência humana, de uma "memória sintética", pode-se presumir, a priori, que ela deveria emergir e se manifestar sob uma forma panorâmica, seja de uma maneira cronológica mais ou menos rápida, seja sob as aparências de um grupo orgânico de recordações.
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CASO XII - Este episódio figura em uma relação das mais interessantes, publicada pelo Professor Hyslop (Journal of the American S. P. R., 1913, págs. 406-421), na qual estão detalhadas as terríveis peripécias atravessadas pelo viajante Everts, extraviado, em pleno inverno, nas florestas virgens dos Estados Unidos da América. Ele se alimentou de raízes durante trinta e sete dias e sem fósforos, pelo que só podia conseguir fogo concentrando, por meio de uma lente, os raios de sol em cima de gravetos de madeira seca. Certo dia, aconteceu-lhe perder esse objeto tão precioso e foi no desespero de tal perda fatal que experimentou o fenômeno da "visão panorâmica".
Eis o episódio em questão:
"Dois ou três dias antes de ser encontrado, quando subia uma colina com grande elevação, caí de fadiga sobre pequena moita, sem ter energia para me levantar. Então desatei o cinturão - como tinha o hábito de fazer - e logo adormeci. Não tenho idéia do tempo que durou o meu sono, mas, acordando e reajustando a correia de meu cinturão, esforcei-me, com dificuldade, para pôr-me de pé e continuei a marcha. Como o sol descesse para o poente, escolhi um canto conveniente para me servir de abrigo, reuni um ramo de galhos secos e procurei, no bolsinho do cinturão, a lente para acender o fogo. Que surpresa desoladora! A lente não se achava mais lá! Eu a tinha perdido. Se a terra tivesse se aberto para me engolir, eu não ficaria mais aterrorizado. Minha última possibilidade de me salvar me fora retirada! Minha suprema esperança morrera... Cobri-me o melhor que pude com ramos de árvores e galhos de arbustos, guardando a terrível certeza de que a minha luta pela vida chegara ao fim e que eu não acordaria mais... E, súbito, com a rapidez de um raio, se apresentaram, diante de meu espírito, episódios de minha vida. O poder de minha faculdade de pensar estava duplicado, triplicado, tão bem que se apresentou, sob os meus olhos, como em visão, o panorama todo inteiro de minha existência. Tudo aparecia, posto em boa ordem, como colorido pelos raios do sol e depois, tudo desapareceu, logo após, como os fantasmas de um sonho vivaz.
Quando me voltou a calma, a razão retomou o seu curso. Por felicidade, o frio ficara temperado. Procurei rememorar o incidente, refazendo de memória cada passo que eu havia dado na floresta durante o dia e conclui que a lente devia ter saltado do bolso do cinturão no momento em que havia adormecido sobre a moita, lugar de meu desfalecimento. Para voltar a esse local, devia percorrer cinco longas milhas na montanha, mas não havia outra alternativa e, antes de surgir a aurora, havia caminhado, cambaleante, a metade do caminho. Quando atingi o dito lagar, experimentei a grande alegria de achar a lente na moita sobre a qual dormira."
Ainda que o desenvolvimento dos fatos, nesta relação, pareça conforme o título desta 2.º categoria de fenômenos, não se poderia afirmar que a substância da presente narração corresponda plenamente à mesma. Se é verdade que o percipiente estava em estado normal de saúde e não se achava em perigo de morte acidental, não é menos evidente que se inclinava para um estado de alma desesperado pelo fato de ter perdido um objeto e que essa perda equivalia, para ele, a uma ameaça de morte pelo frio, ameaça algo afastada.
Como quer que seja, se se considera o caso relatado em conjunto com os outros três casos que o precederam e se reflete sobre os diversos estados de saúde e estados de alma sob a influência dos quais se realizam as manifestações de "visões panorâmicas", pode-se tirar daí uma conclusão instrutiva, isto é, que as explicações dos fisiólogos concernentes às causas que provocam as manifestações de que se trata parecem de uma insuficiência mais ou menos pueril, tanto mais se se considera que, com as suas elucidações hipotéticas, eles não concorrem somente para lhes precisar as causas, como ainda dissipar o mistério que nos dissimula a significação teórica dessas manifestações.
3.º categoria
Casos de espíritos comunicantes que afirmam ter passado pela experiência da "visão panorâmica"
Recordo que, a respeito dos fatos enquadrados nesta categoria, já tive ensejo de avisar que eles não apresentavam valor científico dado a impossibilidade de verificar, diretamente, as afirmações das personalidades mediúnicas, todavia, semelhantes afirmações são dignas de ser aqui mencionadas, de modo complementar, ao estudo do tema proposto, e isto, sobretudo, porque, em todos os episódios, a seguir narrados, dá-se esta circunstância: as personalidades mediúnicas comunicantes fazem menção espontânea da experiência da "visão panorâmica" pela qual passaram na crise da morte e nunca a pedido dos experimentadores.
Como as sessões, em que foram obtidas essas informações, tiveram lugar em épocas diferentes e continentes diversos e, não raramente, na presença de pessoas que ignoravam a existência deste gênero de fenômenos, este concurso de circunstâncias, indiretamente, reveste, de certo valor, as comunicações assim feitas. Em apoio desta consideração, devo acentuar o seguinte: se se tratasse de personalidades subconscientes, então essas personalidades não poderiam ter descrito, exatamente e menos ainda de modo concordante, um fenômeno real de que os médiuns e os experimentadores ignoravam a própria existência. Ainda que se pudesse aceitar que a fertilidade inventiva das personalidades sonambúlicas não tenha limites, contudo não se pode admitir - diga-se isto em homenagem ao bom senso e ao cálculo das probabilidades - que grande número de personalidades sonambúlicas, comunicando-se mediunicamente, em momentos diferentes, em continentes diversos e na presença de pessoas que ignoram a existência de determinada categoria de fenômenos, tenham todas podido inventar a mesma história fantástica, onde os detalhes concordam admiravelmente e sobretudo concordam com uma classe de manifestações autenticadas. Segue-se daí que, quando se produzem fatos deste gênero, somos logicamente levados a procurar sua explicação em outra parte, o que equivale a admitir que eles não podem ser explicados de outra maneira senão reconhecendo a sua origem francamente espírita.
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CASO XIII - O seguinte episódio é devido à mediunidade de eminente precursor do movimento espírita: o juiz Edmonds, de New York. Pouco antes havia ele perdido um dos seus mais caros amigos, o juiz Peckham, da Corte de Apelação da mesma cidade, o qual morrera, tragicamente, com a esposa, num acidente de colisão entre dois vapores
Numa experiência pessoal de escrita automática, manifestou-se o falecido amigo, fornecendo-lhe excelentes provar de sua própria identidade e narrando a visão de sua morte, assim como sua presente vida espiritual. De uma longa comunicação, destaco a passagem que se refere a este fato especial.
Conta o espírito comunicante:
"Se eu tivesse podido escolher o modo de separar-me de meu invólucro corporal, certamente que não teria preferido o que me levou a desencarnar. Todavia, isso agora já não me interessa, depois do instante em que, bruscamente, me achei transportado a ambiente tão belo e tão extraordinariamente variado...
No momento da morte, revi, integralmente, toda a minha existência terrena. Todas as ações, todas as cenas, todos os incidentes da vida se desenrolaram diante de meus olhos, tão vivamente expressos como se tivessem sido gravados na minha mente em fórmulas luminosas. Nem um só de meus amigos foi esquecido. No instante em que mergulhei no mar, com minha esposa nos braços, apareceram-me meu pai e minha mãe, e foi esta que nos tirou da água com um facilidade cuja natureza só agora compreendo." (Juiz Edmonds, Letters and tracts on Spiritualism.
Era a primeira vez que o juiz Edmonds ouvia falar de "visão panorâmica" e, quando a sua mão traçou essa comunicação, ele se achava sozinho. É, pois, evidente que, com a hipótese das personalidades subconscientes, não se consegue explicar semelhante alusão espontânea feita a um fenômeno real, mas ignorado pelo médium. Fica, assim, confirmado o que fora observado acima, isto é, que os fenômenos deste gênero só podem ser explicados pela aceitação de sua origem espírita.
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CASO XIV - Este caso figura no livro da Sra. De Morgan intitulado From Matter to Spirit. A personalidade mediúnica do Dr. Horace Abraham Ackley descreve, nestes termos, sua própria experiência de separação entre o espírito e o corpo somático:
"Eu sentia que me soltava gradualmente de meu corpo, mas, achando-me em estado de consciência pouco lúcida, parecia sonhar. Experimentava a sensação de estar minha personalidade em duas partes que, entretanto, pareciam associadas por um laço indissolvível. Quando o organismo corporal deixou de funcionar, meu espírito pôde libertar-se completamente e então me pareceu que as partes separadas de minha personalidade se recompunham em uma só. Simultaneamente senti-me levantado acima de meu cadáver, à pequena distância dele, de onde via distintamente as pessoas que rodeavam meu corpo. Não poderia dizer por qual poder consegui erguer-me e a tornar-me livre no ar. Depois desse acontecimento, suponho ter passado um período bem longo em estado de inconsciência (o que, aliás, acontece freqüentemente, se bem que tal não acontece em todos os casos), deduzindo-o do fato de que, quando tornei a ver meu cadáver, achava-se ele em adiantado estado de putrefação.
Logo que voltei a mim, todos os acontecimentos de minha vida desfilaram diante de meus olhos como num panorama; eram visões vivas, muito reais, em dimensões naturais, como se o meu passado tivesse se tornado presente. Foi efetivamente todo o meu passado que revi, inclusive o último episódio de minha desencarnação. A visão desfilou diante de mim com tal rapidez que quase não tive tempo de refletir, achando-me como que arrebatado por um turbilhão de emoções e, a seguir, desapareceu com a mesma rapidez com que se mostrava. As meditações sobre o passado e o futuro suscitaram em mim vivo interesse por minha condição atual.
Já ouvira os espíritas dizerem que os espíritos desencarnados eram acolhidos no mundo espiritual por seus parentes ou por seus espíritos-guias. Não percebendo ninguém perto de mim, concluí que os espíritas estavam enganados, mas, apenas este pensamento me atravessou a mente, vi dois espíritos que me eram desconhecidos e para os quais me sentia atraído por um sentimento de afinidade. Soube que haviam sido homens muito instruídos e inteligentes, mas que, como eu, não haviam pensado em desenvolver em si próprios os elevados princípios da espiritualidade. Chamaram-me pelo nome, embora não o tivesse eu pronunciado, e me acolheram com uma familiaridade tão benévola que me senti agradavelmente reconfortado. Deixei em companhia deles o meio em que desencarnara e que me conservara até aquele instante. Pareceu-me nebulosa a paisagem que atravessei, mas, dentro daquela meia obscuridade, fui conduzido a um lugar onde vi reunidos numerosos espíritos, entre os quais muitos que eu conhecera na Terra e que já haviam morrido há algum tempo."
Do ponto de vista em apreço, o espírito comunicante afirma ter passado pela prova da "visão panorâmica" de seu passado, prova que, neste caso, em lugar de se desenrolar espontaneamente, em conseqüência de uma superexcitação sui generis das faculdades mnemônicas (superexcitação produzida pela crise da agonia, ao que dizem os psicólogos), parecia antes provocada pelos "guias" espirituais com o propósito de predispor o espírito recém-chegado a uma espécie de "exame de consciência".
Não possuindo o livro de que a Sra. De Morgan extraiu a citação reproduzida acima, não me é possível saber se, neste casa, o médium e as pessoas presentes ignoravam a existência dos fenômenos de "visão panorâmica", mas, como esta obra foi escrita em 1857, a presunção de que os experimentadores deveriam todos ignorar a existência deste gênero de fenômenos é tão provável que equivale a uma certeza, tanto mais que do conteúdo da mesma comunicação se depreende a noção de que o episódio em apreço (revisão da vida) foi relatado espontaneamente pela entidade comunicante.
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CASO XV - Tiro-o do livro do Dr. Wolfe Startling facts in modern spiritualism (Maravilhosos fatos do neo-espiritualismo). Jim Nolan, o espírito-guia da célebre médium Sra. Hollis - espírito que afirmou e demonstrou ter sido soldado na guerra de secessão norte-americana e haver morrido de tifo num hospital militar - assim respondeu às seguintes perguntas formuladas por um dos experimentadores:
P. - Que impressão tiveste de tua primeira entrada no mundo espiritual?
R. - Parecia-me que despertava de um sono, com um pouco de atordoamento a mais. Já não me sentia enfermo e isso me espantava grandemente. Tinha vaga suspeita de que algo de estranho se passara, mas não sabia definir de que se tratava. Meu corpo estava estendido no leito de campanha e eu o via bem. Dizia para comigo mesmo: "Que estranho fenômeno!" Olhei ao derredor e vi três camaradas meus, mortos nas trincheiras diante de Viksburg e que eu mesmo enterrara. Entretanto, ali estavam na minha presença. Olhavam-me, a sorrir. Então, um dos três me saudou, dizendo:"
- Bom-dia, Jim; também és um dos nossos.
- Sou dos "nossos"? Que queres dizer?
- Mas... que te encontras aqui, conosco, no mundo dos espíritos. Não te apercebes disto? É um meio onde se está bem.
Estas palavras eram muito fortes para mim. Fui presa de violenta emoção e exclamei: "Meu Deus! Que dizes? Estou morto?" - "Não, estás mais vivo do que nunca, porém te encontras no mundo dos espíritos. Para ficares convencido, não tens mais do que olhar para teu corpo."
Com efeito, meu corpo jazia inerte, diante de mim, sobre uma tarimba. Como, pois, contestar o fato? Pouco depois chegaram dois homens que puseram meu cadáver em cima de uma prancha e o transportaram para perto de outro carro, em que o meteram, subiram à boléia e partiram. Acompanhei então o carro, que parou à borda de um fosso, onde meu cadáver foi arriado e sepultado. Fora eu o único assistente de meu próprio enterro...
P. - Quais as sensações que experimentaste na crise da morte?
R. – A que se experimenta quando o sono se apodera da gente, mas deixando ainda que se possa lembrar de alguma idéia que tenha tido antes do sono. É o que se dá por ocasião da morte. Mas, um pouco antes da crise fatal, minha mente se tornara muito ativa; lembrei-me subitamente de todos os acontecimentos de minha vida; vi e ouvi tudo que fizera, dissera, pensara, todas as coisas a que estivera associado. Recordei-me até dos jogos e brincadeiras do acampamento militar; gozei-os como quando participei deles."
No que diz respeito ao caso e querendo argumentar o modo pelo qual se exprime a entidade comunicante, pode-se dizer que, para ela, a recapitulação da morte se desenvolveu, antes, sob a forma de uma "síntese de recordações" do que sob a forma de uma "visão panorâmica", diferença que, naturalmente, não modifica os termos do problema a resolver e que demonstraria apenas que a entidade comunicante, na vida terrena, não pertencia ao que, em linguagem psicológica, é qualificado de "tipo visual", mas de preferência ao "tipo auditivo-mental".
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CASO XVI - Num opúsculo intitulado How I became a Spiritualist (Como me tornei espiritualista), James Smith, conhecido escritor espírita, conta como ele foi progressivamente levado a se interessar pelas experiências mediúnicas.
Certa noite, ele deixou-se convencer a assistir à uma sessão espírita em que se manifestou seu próprio irmão, falecido há anos. A propósito, ele assim escreve:
"O médium, mergulhado em profundo sono, volta-se para mim e diz: "Ao seu lado está um jovem extremamente parecido consigo. Ele se mostra a mim como se saído da água e afirma ser seu irmão. Quando tomou posse do médium, o recém-vindo descreveu sua morte por afogamento, acrescentando que, no momento supremo, passaram diante de seus olhos, em traços rápidos e como que em panorama, os acontecimentos de sua vida inteira, seguidos de outro panorama, onde se delinearam todas as circunstâncias, não ainda vividas, do resto dessa mesma existência, tal como deveria desenrolar-se caso ele houvesse escapado à morte e continuado a viver até o termo natural de sua vida terrena."
Esta última afirmativa do espírito comunicante quer dizer que, na "visão espiritual", desfilaram, em panorama, os acontecimentos do resto de sua existência, a mesma que deveria realizar-se caso não sucedesse o acidente fatal e ocasional de morte por asfixia, parece, ao menos, inesperado e curioso, ainda que não seja, no gênero, o caso único na minha coleção de fatos. A sua natureza sugere considerações novas e interessantes sobre o tema do livre arbítrio, do destino e da fatalidade, considerações que, bem entendido, me abstenho de formular, em vista da insuficiência do equilíbrio das bases sobre as quais se apóiam. Contudo, do ponto de vista da abstração filosófica - que permite dela nos afastarmos, à vontade, no campo das idéias - tal indício de uma nova concepção do ser, em relação ao fatalismo, merece ser considerado em face dos horizontes inexplorados que permitem ao pensador entrever.
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CASO XVII - A Srta. Lillian Whiting, conhecida autora em assuntos espíritas, relata, na Light, interessante sessão realizada por uma de suas amigas com a Senhora Keeler, médium com quem o Dr. Hodgson realizou longa série de experiências, A essa amiga se manifestou uma entidade desencarnada pouco antes, a quem ela perguntou quais haviam sido suas primeiras impressões no mundo espiritual. São as seguintes as palavras da Srta. Whiting:
"A entidade se lembra de ter atravessado um período de longa inconsciência. Depois do que despertou subitamente ao som de uma voz que conhecia, ao que se seguiu música paradisíaca, tudo tão surpreendente de maneira a não poder ela compreender como essas música e voz se fizessem ouvir no seu aposento. Então, ela viu surgir uma árvore de luz que, gradualmente, se tornara resplandecente. A seguir, apareceram-lhe rostos de numerosas pessoas queridas, gente falecida havia muitos anos. Diante de tal espetáculo, foi tomada de surpresa e, quase apavorada, se perguntava o que podia ter acontecido e qual o significado de tudo isso. De repente, foi-lhe revelado que acabara de passar pela transformação a que as vivos chamam morte.
(Nesse momento, a relatora reproduz as palavras exatas da entidade, que se exprime da forma abaixo):
"Num relâmpago, tudo o que eu fizera durante a vida e tudo o que eu realmente havia sido me foram mostrados em panorama perfeitamente igual ao que se espera na hora do Juízo, porque, realmente, na visão que sucessivamente se desenrolava diante de mim, nos êxitos e insucessos de minha vida, eu avaliava exatamente o Bem e o Mal que estavam contidos nela."
Neste caso, a "visão panorâmica" não se produziu na ocasião da morte, mas já na vida espiritual, depois do período de inconsciência ou de sono. E o desenrolar da visão está descrita pela entidade como a "hora do Juízo"; hora em que a significação intrínseca moral e real das ações praticadas na existência terrena se revela inexoravelmente e é desvendada ao protagonista desencarnado.
Saliento a que ponto todos estes detalhes, e muito curiosamente, estão de acordo com as doutrinas das escolas ocultistas no que se refere à distinção estabelecida entre a "visão panorâmica'' que se produz na iminência da morte e a que se produz "visão" já na existência espiritual. A primeira é uma síntese recapitulativa; a segunda tendo o caráter de "julgamento com a sua sanção", que se desenrola automaticamente em virtude da natureza intrínseca do espírito e que é o prelúdio de seu destino, ou "gravitação" do espírito para a esfera a que está destinado; isto se produz unicamente pela aplicação do princípio que governa o universo físico e psíquico: a lei das afinidades.
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CASO XVIII - Colho-o dos Proceedings of the S. P. R. Sabe-se que, em certas sessões em que operava como médium a Sra. Piper, manifestou-se uma entidade que afirmou ser o conhecido escritor inglês George Elliot. Assim, na sessão de 5 de março de 1897, Elliot descreve ao Dr. Hodgson o seu despertar no mundo dos espíritos:
"Experimentei, repentinamente, a mais bela a mais indescritível sensação de liberdade a que se possa aspirar. Reconheci que os ideais de minha vida haviam sido literalmente grosseiros em confronto com os verdadeiros ideais. Apenas separado do corpo, que sempre fora um enigma para mim, tive a prova de ter-me sempre enganado em minhas suposições. Pouco depois desse momento, surgiram ao meu espírito, e num relâmpago, as recordações de minha vida inteira. Cada palavra, cada pensamento, que passara pelo meu cérebro, cada ato de minha existência, desfilaram diante de mim como em maravilhoso panorama. Nada mais extraordinário do que meu despertar no ambiente espiritual, onde os aromas balsâmicos são de natureza indescritível e ultrapassam, em suavidade, os poderes da compreensão humana. Jamais vivente algum poderá formar concepção remota desta verdade. É simplesmente impossível sugerir uma pálida idéia desta existência maravilhosa e torná-la acessível à mente dos encarnados. Para compreendê-la, seria preciso conhecê-la. Durante minha vida, freqüentemente me absorvi em profundas meditações e deixava meu pensamento rumar para o fantástico, presumindo que algo deveria existir para lá do sepulcro, mas eu não conseguia formular uma idéia... Aqui, como já vos disse, tive uma visão de minha vida inteira e recordei-me de todos os pensamentos que surgiram fugidiamente em meu espírito... Em seguida, fui presa pelo tormento dos remorsos que, contudo, não duraram muito tempo..., talvez a duração de alguns de vossos dias. Decorrido esse tempo, senti-me invadido por uma sensação de extrema felicidade como igual eu não havia nunca experimentado durante minha existência terrena. Nada mais perturbava a minha alma. Senti-me livre, exultante! E entoei um hino de amor, compreendendo que, também eu, constituía uma partícula integrante do amor universal!"
Novamente, neste caso, a experiência da "visão panorâmica" produziu-se depois da crise da morte e, também nesta circunstância, manifestou-se o "tormento dos remorsos", em seguida ao desenrolar da visão.
Conclusões
Pela precedente classificação, propus-me a fazer surgir o valor teórico de que se revestem os fenômenos da "visão panorâmica", valor que permaneceu até hoje mal compreendido, pois que fisiologistas e psicólogos sempre fizeram alusão a essa categoria de fatos, mas lhe concedendo significação estritamente limitada à pesquisa dos automatismos subconscientes de natureza psicofisiológica.
Entretanto, os fenômenos em questão, juntamente com seus análogos, porém muito menos sugestivos, da "hipermnésia" e da "criptestesia", concorrem para demonstrar, de maneira cientificamente resolutiva, a existência, na subconsciência humana, de uma "memória sintética", perfeita e indelével, susceptível de emergir, em toda a sua plenitude, em raras ocasiões, que, em regra geral, são determinadas pela iminência do perigo de morte. Esta última característica deveria levar os homens de ciência a serem mais reservados nas suas fórmulas explicativas, quando procuravam esclarecer o problema.
Na realidade, posta em face deste formidável enigma referente à função que cumpre, na economia orgânica e em relação com a evolução da espécie, esta perfeita e maravilhosa reserva da memória normal que é sempre bem imperfeita, os fisiologistas têm categoricamente respondido que, em fato de função, ela não exerce nenhuma delas, resposta absurda e insustentável, ainda que eu queira concordar que, até há poucos anos apenas, não se teria podido propor melhor solução. Já não acontece o mesmo hoje, numa época onde o advento das pesquisas metapsíquicas demonstrou a existência, na subconsciência humana, de um grupo inteiro, sistematizado, de faculdades supranormais maravilhosas, que, à semelhança da "memória sintética", não eram destinadas a se exercerem no estado atual da vida terrestre de relação. Seguiu-se daí que, fundada em tal e tão precioso conhecimento concernente à íntima essência de ser, o problema em questão tomou extensão, se elevou, mudou de aspecto, e que a "memória sintética" se tornou, por sua vez, uma faculdade supranormal pertencente, como as outras faculdades, ao mesmo grupo sistematizado. E, como tudo tendia para demonstrar que as faculdades supranormais subconscientes eram faculdades espirituais sensório-psíquicas existindo em estado latente na subconsciência humana, dever-se-ia presumir que acontecia o mesmo com a "memória sintética", que, evidentemente, aí existe em estado latente, aguardando o momento de emergir e de se manifestar no ambiente espiritual.
Ora, semelhantes induções, rigorosamente lógicas, traziam à luz um outro problema. Se era assim como acabamos de dizer, se a "memória sintética" devia ser considerada como uma reserva mnemônica perfeita, destinada a sobreviver à morte do corpo, neste caso, ela não podia residir nos centros corticais, bem como as faculdades supranormais subconscientes não podiam ser - como não eram - função do órgão cerebral. Isto, para as faculdades supranormais subconscientes, era fácil de demonstrar, visto que elas eram independentes da lei de seleção natural e emergiam em razão inversa da atividade da consciência normal. Sobre este ponto, e para a "memória sintética", tal indução era menos evidente, ainda que, entretanto, o fato mesmo de sua existência subconsciente, em condições perfeitas e permanentes, devesse levar racionalmente a julgar a que a "memória sintética" devia ser função de alguma coisa de permanente. Em suma, psicólogos e filósofos não haviam deixado de o observar e, há pouco, o Dr. Geley havia escrito a respeito: "Para que esta recordação seja vivificada, é preciso, com toda evidência, que ela esteja ligada a alguma coisa de permanente. A criptomnésia, como a criptopsiquia, demonstra a insuficiência absoluta da concepção organocêntrica." (revista Vers 1'Unité, pág. 160). Isto é rigorosamente verdadeiro e é impossível aos contraditores refutar tal afirmativa, solidamente fundada nos fatos, afirmativa que me lembra experiência de "autoscopia" sonambúlica do Dr. Sollier, já citada por mim na minha monografia sobre os "Fenômenos de bilocação" e que eu gostaria de reproduzir aqui, pois que ela se mostra admiravelmente de acordo com a afirmação do Dr. Geley, assim como com os ensinos das escolas ocultistas, que situam a sede das faculdades sensório-psíquicas no "corpo astral".
Assim dizia eu na citada monografia:
"Isto estabelecido, volto a ocupar-me exclusivamente do "corpo etérico", colocando a discussão sobre certas outras declarações de sonâmbulas dotadas da faculdade de "autoscopia interna", de agora em diante ligada à ciência e muito bem estudada nestes últimos tempos pelos Drs. Sollier, Bain, Lemaitre. Sabe-se que esta faculdade consiste no dom maravilhoso de perscrutar os refolhos mais ocultos do próprio organismo e não somente macroscopicamente, mas, também, microscopicamente e de modo a ultrapassar de muito os limites dos instrumentos de que dispõe a ciência.
Ora, se se considera que, cada vez que é dado controlar as declarações de ditas sonâmbulas, se verifica que, além de descrever, de forma anatomicamente e fisiologicamente impecável, a estrutura e as funções dos seus órgãos internos, revelam, também, as condições patológicas deles até os menores detalhes da dissociação somática, e isto mesmo quando o operador e o sensitivo ignoram ambos a existência de uma dada lesão no organismo, não há nenhuma razão para não se crer na lucidez delas nos casos em que revelam particularidades funcionais ou histológicas escapadas, até o momento, às pesquisas da ciência. Faço alusão, aqui, às declarações de uma sonâmbula do Dr. Sollier, a propósito das funções dos centros corticais na exteriorização do pensamento."
Eis a passagem em questão, que tiro da relação do Dr. Sollier no número de janeiro da Revue Philosophique:
"Jeanne passa a mão pela fronte, joga a cabeça para trás, curva-se sobre os rins, depois bruscamente para e diz "Pequenas máquinas se abriram aqui..." - "Que são estas pequenas máquinas?" - "Pequenas máquinas que dormiam." - "Que havia dentro?" "Um pequeno buraco redondo com pontas." - "O quê, um pincel?" - "Como uma agulha, pequenas câmaras (são os pequenos buracos de antes) que dormem, são colados; eles são ligados." - "Para que servem eles?" - "Servem para que eu pense; estes cantinhos lá, isto fecha e pára continuamente como uma máquina em vibração, exceto os que dormem e ficam tranqüilos." - "Onde se acham as imagens de que me falastes?" - "Nos pequenos buracos; quando as pequenas pontas começam a mover-se, a vibrar, isto faz vir a imagem diante de meus olhos; quando a imagem vem eu não vejo mais os pequenos buracos; isto toma toda a fronte, mas eu sei que ela está lá dentro, pois que é de lá que ela sai... Porém as imagens se mantêm por fios aqui (ela mostra o seu ociput no nível dos lóbulos óticos), porque, quando elas dormem, não sinto nada lá, mas, quando elas vão vir com as cores, sinto que isto puxa para trás e para diante, isto começa a movimentar no lugar, a mover, a vibrar."
O Dr. Sollier acrescenta a estas declarações da sonâmbula a seguinte nota:
"Todos os enfermos, que recuperam a sua sensibilidade cerebral, falam, do mesmo modo, dos pequenos compartimentos, das pequenas caixas que se põem em ordem, ao mesmo tempo que as idéias se esclarecem."
Em nosso ponto de vista, a idéia fundamental destas citações é a de que a sonâmbula vê, nas células cerebrais, pequenas cavidades internas, ou "pequenas câmaras", revestidas de prolongamentos fibrilares que, quando param e vibram, fazem surgir a imagem psíquica diante delas, imagem que toma uma forma objetiva no interior das "pequenas câmaras". Em outras palavras, durante o processo psíquico da rememoração, ou ideação, toda coisa se produziria como se as imagens existissem em potência nas cavidades ou "pequenas câmaras" celulares, de onde as vibrações fibrilares as fariam surgir a serviço do "eu" consciente.
Ora, tudo isto não implica a idéia de que as imagens psíquicas existem de uma forma externa ao órgão cerebral? E precisamente nos interstícios celulares denominados "pequenas câmaras" pela sonâmbula, campo de ação presumível do "corpo etérico?"
Se era isto, seria preciso pensar daí que o lado físico do processo de ideação consiste justamente no seguinte: que, no meio de prolongamentos fibrilares vibrando em um meio reservado à ação do "corpo etérico" vai se estabelecer a relação necessária entre os centros corticais, registradores automáticos das tonalidades vibratórias variadas, chegadas até eles pelas vias sensoriais, e o "corpo etérico", depositário das imagem psíquicas correspondentes.
Esta concepção das funções cerebrais, a respeito da exteriorização do pensamento, seria fecunda em aplicações teóricas, pois ela se presta a fazer compreender melhor a natureza do "eu" consciente, onde estaria contida a verdadeira personalidade humana e, também, em fazer compreender melhor a relatividade das faculdades psico-sensoriais em sua qualidade de funções da personalidade espiritual, durante o ciclo de sua existência terrestre.
Parece-me hoje que semelhantes considerações contribuem às maravilhas para indicar a via pela qual devem encaminhar as pesquisas psicológicas e histológicas do futuro, onde elas poderão esclarecer o supremo mistério da união do espírito e do organismo somático. E se se consideram as palavras do Dr. Sollier "todos os enfermos, que recuperam a sua sensibilidade cerebral, falam, do mesmo modo, dos pequenos compartimentes, das pequenas caixas que se põem em ordem ao mesmo tempo em que as idéias se esclarecem", palavras que indicam que não se acham na presença de uma afirmativa isolada, numa sonâmbula, mas de observações concordantes em numerosos sensitivos, quando se mostra poderosamente consolidada a presunção de que o auxiliar da lucidez sonambúlica descobriu uma grandiosa verdade histológica de ordem ultramicroscópica, verdade cujo valor científico seria incomparável no sentido que equivaleria à demonstração experimental do grande fato que a sede do pensamento, inclusive da "memória sintética", seria exterior ao organismo cerebral, ou, em outras palavras, que ele residiria no "corpo etérico".
Vimos como tais revelações "autoscópicas", nos sensitivos sonambúlicos, concordam excelentemente com as induções do Dr. Geley, induções solidamente apoiadas nos processos das análises comparadas no reino animal, combinadas com os ensinos que resultam das pesquisas metapsíquicas. Acrescento que estas mesmas revelações concordam, ademais, e admiravelmente, com o pensamento filosófico de Bergson.
No seu discurso presidencial na Society for Psychical Research (Annales dos Sciences psychiques, 1913, pág. 326), assim se exprime ele a respeito da sede presumível da memória:
"O que me parece se depreender do estudo atento dos fatos é que as lesões cerebrais características das diversas afasias não atingem as recordações e que, por conseqüência, não há, armazenadas, em tal ou qual ponto da película cerebral, recordações que a enfermidade destruiria. Essas lesões tornam, na realidade, impossível ou difícil a evocação das recordações: elas descansam no mecanismo da lembrança, e neste mecanismo somente. Mais precisamente, o papel do cérebro é, aqui, de fazer com que o espírito, quando tem necessidade de tal ou qual recordação, possa obter do corpo certa atitude, ou certos movimentos nascentes, que apresentam à recordação buscada um quadro apropriado. Se o quadro estiver lá, a recordação virá, por si própria, nele se inserir. O órgão cerebral prepara o quadro; ele não corre atrás da recordação. Eis, na minha opinião, o que mostra um estudo atento das doenças da memória das palavras e o que faz, aliás, pressentir a análise psicológica da memória em geral."
Estas profundas observações de Bergson concordam com as revelações das sonâmbulas a tal ponto que se poderia considerá-las para comentários nas mesmas revelações. Esta circunstância merece salientada: não lhe falta valor sugestivo.
Acrescento, enfim, a opinião de E. W. Friend no Journal of the American Society for Psychical Research (1915, pág. 112), a propósito de uma comunicação mediúnica registrada pelo autor:
"No estado em que estão as coisas, elas confirmam a tese bergsoniana de que, no cérebro, só estão contidos os mecanismos da recordação, ao passo que as nossas experiências, no que têm de substancial e de intrínseco, são conservadas fora do cérebro, num meio puramente psíquico."
Resulta, por conseguinte, que, em virtude da "autoscopia sonambúlica", achamo-nos no limiar de grande descoberta histológica e psicológica, a qual, de uma parte, coincide com os resultados das pesquisas mais recentes no domínio das ciências naturais e metapsíquicas, que acabam de provocar a obra do Dr. Geley De 1'Inconscient au Conscient e, de outra, concorda com as geniais especulações filosóficas do Professor Bergson. Eis uma demonstração de grande importância da "autoscopia sonambúlica" como instrumento de pesquisa a serviço da ciência, de modo que seria altamente desejável que os representantes do Saber o reconhecessem, orientando, neste sentido, as suas investigações, multiplicando as experiências deste gênero e aplicando-lhes os métodos da análise comparada.
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Voltemos à "visão panorâmica".
Ulteriormente, eu deveria considerar a característica essencial pela qual ela se exterioriza, isto é, a que lhe permite apresentar, em termos de "simultaneidade", o que a inteligência humana não pode assimilar senão em termos de sucessão. Agora, apoiando-me na análise comparada de diversas manifestações metapsíquicas, verifico como a mesma característica mostra ser substancialmente idêntica nas modalidades segundo as quais se manifestam outras faculdades supranormais.
Esta característica já havia sido revelada há muito tempo, no que concerne às manifestações da memória sonambúlica e, notadamente, nos Proceedings of the S. P. R. (vol. VI, pág. 95). O Sr. Thomas Barkworth havia observado:
"Assim, como se sabe, as funções da memória ordinária consistem em um encadeamento de idéias associadas entre si, cada idéia ligando à idéia vizinha e esta a uma outra, e assim por diante... Tal é a idéia da exteriorização da memória pertencente à atividade da consciência normal, mas eu aventaria a conjuntura de que a "consciência latente" possui a sua memória particular, fundamentalmente diferente da outra: a memória consciente consistindo em um encadeamento sucessivo de idéias e a memória subconsciente em uma impressão pictural simultânea. Se essas hipóteses tivessem fundamentos, deveríamos esperar que a memória subconsciente de um sensitivo hipnotizado fosse capaz de repetir, igualmente bem, uma lição, começando pelo fim, assim como pelo princípio, e isto é precisamente o que se verifica nas experiências congêneres."
Essas experiências são conhecidas de todo o mundo, a começar pelo caso clássico de uma sonâmbula que tivera o poder de ouvir uma conferência e depois de a repetir em sentido inverso, como se tivesse diante dos olhos o texto impresso, e a terminar pelo caso de Malvina Gérard, caso dos mais notáveis, em que a sensitiva era capaz, em estado sonambúlico, de compor comédias e de recitar trechos dela, indicados, ao acaso, por seu hipnotizados, em diversos atos, como se tivesse improvisado suas comédias de modo instantâneo e se tivesse o manuscrito diante dos olhos (Maurice Sage em Annales des Sciences psychiques, 1904, págs. 65 e 129).
Uma outra categoria de manifestações (onde, à característica da "simultaneidade", na rememoração, corresponde o equivalente da "instantaneidade" - ou mais ou menos, - na concepção mental) é a dos "calculadores prodígios", manifestação cuja particularidade consiste em resolver, com uma rapidez, com efeito, prodigiosa, às vezes, mesmo, súbita, cálculos da maior dificuldade e de uma extrema complicação, rapidez que contrasta com a lentidão da mente normal no encaminhamento para a solução dos mesmos problemas.
No que diz respeito às sonoridades, recordemos o curioso fenômeno habitual em Mozart, que percebia subjetivamente, e com simultaneidade, a sucessão e a coordenação das notas compondo uma peça de música inteira e tirando dessa aptidão um supremo deleite estético. Partindo desta preciosa anomalia verificada nesse músico, observa-se uma analogia com os fenômenos que examinamos aqui: a abolição, ou pouco que falta dela, da sucessão, no tempo, para a audição subjetiva de uma composição melódica e, conseqüentemente, para toda coordenação de sons em ordem sucessiva.
Consigno ainda que a mesma característica da "instantaneidade" do desenrolar de uma ação qualquer se encontra entre as manifestações da transmissão telepática do pensamento e da visão telestesia, que se exteriorizam através do espaço, numa duração de tempo inapreciável. Pode-se dizer outro tanto nos casos de clarividência do passado e do futuro, que se traduz, no sensitivo, por uma visão panorâmica no presente; do mesmo modo, na circunstância dos fenômenos, de "bilocação" tendo relação com a translação instantânea, no espaço, do "fantasma desdobrado". E se se leva em conta o que afirmam as personalidades mediúnicas, haveria algo de semelhante para a noção abstrata do tempo e o sentido prático de espaço, no ambiente espiritual.
Saliento ainda - no ponto de vista do sentimento da individualidade pessoal em suas relações com o Universo e com a Causa primária - que se conhecem exemplos tendentes a demonstrar como esse mesmo sentimento pode se transmutar em uma instituição sintética da imanência em Deus, conservando, portanto, intacta a consciência do ser, ainda que desmesuradamente enlanguescida. Esta noção foi pressentida, por exemplo, nos momentos de excepcional intuição transcendental, pelo ilustre poeta inglês Alfred Tennyson. Respondendo a um amigo, que havia experimentado impressão similar em seguida a uma inalação de "clorofórmio", assim se exprimiu nestes termos:
"Jamais tive revelações deste gênero por meio de anestésicos, mas experimentei freqüentemente uma espécie de "êxtase no estado de vigília" (exprimo-me assim na falta de um termo apropriado), a começar pela minha primeira adolescência e em momentos em que me achava sozinho. Algumas vezes eu conseguia provocar este estado, repetindo, mentalmente, o meu próprio nome, até o instante em que a intensidade, com a qual remontava em mim a concepção de minha individualidade pessoal, atingia o seu limite supremo. Então, esta individualidade mesma parecia se dissolver e se esvanecer numa sensação de conhecimentos ilimitados. Este estado de consciência não era um estado confuso, mas o mais límpido entre os mais límpidos, o mais certo entre os mais certos e, literalmente, indescritível. Graças a ele, a morte me parecia uma impossibilidade ridícula. Em suma, tal extinção da personalidade (se se pode assim definir este estado) não me parecia uma extinção do ser, mas a verdadeira e única existência real. Sinto-me humilhado pela maneira tão completamente imperfeita com a qual vos descrevo este sentimento, porém já não vos disse que um tal estado é verdadeiramente impossível de se descrever?" (Light, 1903, pág. 257).
Tennyson volta a este assunto no seu poema The Ancient Sage e o desenvolve em magníficos versos.
Outro sensitivo que experimentou este mesmo sentimento de imanência em Deus foi Vincent Turvey, autor do livro The Beginnings of Seership, no qual, já enfermo e caminhando para a tuberculose, quis reunir, para o serviço de futuros investigadores o fruto de suas experiências pessoais, como sensitivos clarividentes.
Em uma carta ao Professor Hyslop, dizia ele:
"Começo a me capacitar de que todos nós, mais ou menos, participamos de um Oceano da Consciência Universal e que cada vórtice nesse oceano, em que estamos todos mergulhados, pode, por vezes, ciente ou inconscientemente, tomar contato ou mesmo misturar-se com outros vórtices semelhantes a ele. Em apoio do que afirmo, declaro-vos que tive, efetivamente, a prova da realidade de tal condição do ser humano. Eu havia, então, perdido todo sentimento de individualidade e não somente tinha a sensação de ser um vórtice no grande Oceano da Consciência Universal como ainda sentia que eu estava em outros vórtices (ou individualidades humanas) passadas, presentes e futuras, que tinham existido ou que existiram nesse Oceano." (Journal of the American S. P. R. , 1912, pág. 509).
Para quem quer que não tenha passado pela experiência acima descrita, é bem difícil conceber no que consiste este sentido da imanência em Deus, ou, de outra forma, da "Consciência Cósmica". Do ponta de vista filosófico e de uma lógica rigorosa que eu diria mais ou menos inevitável, é conceber tal finalidade para o espírito humano. E a teologia mais antiga na civilização dos povos - a do Budismo - o ensina sempre pela doutrina do Nirvana, doutrina que, para muitos, significa, de uma forma errada, a extinção da consciência individual, quando ela, na realidade, prescreve que a meta final do ser é a assimilação em Deus, ainda que a consciência do ser aí fique intangível, mas aí seja somente elevada a proporções incomensuráveis. É bem o que haviam intuitivamente percebido Tennyson e Turvey. Resulta daí que, pela lei da analogia, dever-se-ia concluir que o Microcosmo Homem, reintegrando-se no Macrocosmo-Deus, concorreria, por uma medida infinitesimal, para constituir o Ser Infinito e participaria, de modo não menos infinitesimal, de Sua natureza, ainda que seja conservada a consciência do ser. Assim, e da mesma maneira, milhares de células compõem o organismo humano e concorrem, a título infinitesimal, para constituir a personalidade físico-psíquica, participando de sua natureza, pela mesma infinitesimal proporção, permanecendo intacta a individualidade que lhe é própria.
Ainda que possa ser assim, não insistiremos sobre estas especulações filosóficas, de caráter inconcebível para a mente humana (salvo os raros casos de intuição nos videntes, de que ele falou). Queremos desde já observar como os exemplos acima ratificam o que se disse a respeito do assunto: a saber, que a característica da "simultaneidade", em oposição à da "sucessão" - nas rememorações pictográficas da "visão panorâmica" - é também a característica de todas as faculdades supranormais existentes na subconsciência. Assim sendo, é lícito deduzir daí que esta mesma característica - tanto para as funções da memória quanto para o processo da ideação, a transmissão à distância do pensamento, a translação no espaço, ou, ainda, para o sentimento da imanência em Deus - constitui a modalidade pela qual se exercem as faculdades espirituais no ambiente espiritual.
Tão maravilhosa perspectiva sobre a existência de além túmulo fora como que esclarecida no espírito profundamente filosófico de Frederic Amiel por ocasião da revivescência de uma recordação de sua infância, que ele esquecera havia mais de quarenta anos.
"Nossa consciência é, pois, como um livro cujas folhas, viradas pela vida, se cobrem e se ocultam sucessivamente, a despeito de sua semitransparência, mas, ainda que o livro esteja aberto na página do presente, o vento pode voltar, durante alguns segundos, as primeiras páginas para leitura. E, por ocasião da morte, essas folhas deixariam de sobrepor e veríamos todo o nosso passado ao mesmo tempo? Seria a passagem do sucessivo à simultaneidade, isto é, do tempo à eternidade? Compreenderemos, então, em sua unidade, o poema ou o episódio misterioso de nossa existência, soletrada, até então, frase por frase? Seria essa a causa de glória que envolve tantas vezes a fronte e a face daqueles que acabam de morrer? Haveria, neste caso, analogia com a chegada do viajante ao cimo de uma montanha, de onde se desdobra, diante dele, a configuração de uma região percebida antes por relances? Pairar sobre a própria história, adivinhar o sentido dela no concerto universal e no plano divino seria o começo da felicidade. Até então se tinha sacrificado à lei agora se saboreava a beleza da lei. Tinha-se penado sob o chefe da orquestra; tornava-se agora ouvinte surpreso e encantado. Só havia divisado o seu pequeno caminho na neblina; agora um panorama maravilhoso de perspectivas imensas se desdobra de repente diante de sua visão extasiada. Porque?" (Henri-Frederic Amiel, Fragments d'un journal intime, vol. II, pás. 172).
Desejando resumir, em um parágrafo final, o que acabou de ser exposto, diremos que, se, quanto às manifestações da "visão panorâmica", os fisiólogos e psicólogos se tinham limitado a afirmar a correlação incontestável, pelas leis da equivalência, entre as atividades opostas, morfológica e psíquica (no significado de uma correspondência paralela, e não de uma conversão absoluta), ninguém teria pensado em contradizê-los. Eles, porém, pretenderam que as suas induções "sobre a rapidez da circulação cerebral" ou "sobre a regressão da memória na histeria" se mostravam suficientes para explicar, fisiológica e psicologicamente, os fatos, sem que restassem, na expectativa de uma solução, questões de outra natureza. Tem-se o dever de reconhecer que, assim apresentadas, as suas presunções foram parcialmente justificáveis, porquanto eles não conheciam ainda a existência da fenomenologia metapsíquica, única capaz de esclarecer os enigmas da psicofisiologia. Isto não impede que o seu ponto de vista, nos dias presentes, pareça bastante acanhado e deficiente para que se espere inverossimilmente que alguém se satisfaça com ele. Ainda que se pense nele, é fato que, quando se estudam os fenômenos em questão em suas multiformes modalidades de manifestação, quando se os considera em suas relações com o grupo das faculdades supranormais existentes na subconsciência, e se verifica que a característica essencial da "visão panorâmica", isto é, a "simultaneidade", em oposição à "sucessão" na percepção dos estados de consciência, é, também, sob formas diversas, a característica de todas as modalidades de manifestação das faculdades supranormais subconscientes, então, é-se levado, inevitavelmente, a concluir que a "visão panorâmica", embora reveladora da existência subconsciente de uma "memória sintética", pertence, por sua vez, ao grupo das manifestações supranormais subconscientes.
Tais conclusões, combinadas com o fato de que a "memória sintética" é de natureza permanente, indicam que a sua sede não pode ser achada na substância, cambiante por excelência, dos centros corticais, mas que se deve buscar os seus traços em "algo" que é permanente, exterior a esses centros mesmos, ainda que intimamente ligados a eles por natureza.
Ora, esta indução, logicamente necessária, leva a admitir a existência de um "corpo etérico", sede natural das faculdades supranormais subconscientes; e a existência de um "corpo etérico" já foi demonstrada, baseando-se nos fenômenos da "exteriorização da sensibilidade", da "autoscópia interna", da "bilocação" e do "desdobramento fluídico" no leito de morte. Já vimos como estas conclusões se tornaram susceptíveis de se acharem validados dedutivamente, assim como o demonstraram o Professor Bergson e o Dr. Geley. Verificamos, além disto, que a tese sustentada por eles era admiravelmente confirmada, ela também, pelas percepções "autoscópicas" de sensitivos sonambúlicos.
Resta, assim, estabelecer que a "memória sintética", donde derivam os fenômenos da "visão panorâmica", pertence ao grupo das faculdades espirituais inerentes à subconsciência humana, faculdades que, lá, existiriam pré-formadas, em estado latente, na expectativa do momento em que surgirão e começarão a se exercer no meio espiritual, da mesma maneira que, no embrião, existem, pré-formadas e em estado latente, as faculdades de sentido terrestre, na expectativa do instante em que surgirão e começarão a se exercer no meio terrestre.
Ernesto Bozzano
FIM